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A “questão agrária” em Mariátegui

FREDERICO DAIA FIRMIANO*

Resumo
Neste breve artigo temos como objetivo refletir sobre a “questão agrária” no
pensamento de José Carlos Mariátegui, sobretudo a partir de sua principal obra,
os “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”. Nosso argumento é que
o socialista peruano não tratou os problemas da formação social peruana a partir
da chave teórica dada pela “questão agrária”, mas a encontrou no curso de uma
interpretação marxista, profundamente original e inventiva, sobre esta formação
social (desenvolvida ao lado da intensa militância política), identificando o
problema indígena ao problema da terra, aos que Amauta conferiu uma
alternativa socialista.
Palavras-chave: Mariátegui; Desenvolvimento desigual e combinado; Problema
Indígena; Problema da Terra; Questão Agrária; Socialismo.

Abstract
Our goal in this paper is to reflect on the “agrarian question” in the thinking of
José Carlos Mariátegui, considering specially his masterpiece, the “Seven
Interpretative Essays on Peruvian Reality”. Our statement is that the Peruvian
socialist didn’t focus the problems of Peruvian social structure from a certain
theoretical point of view, namely the agrarian question, but rather faces it in the
course of his deeply original and creative Marxist interpretation of the same
social structure (developed throughout his intense political activism). His
conclusions bound the Indian problem to the land problem, to which Amauta has
conferred a socialist alternative.
Key words: Mariátegui; Unequal and combined development; Indian Problem;
Agrarian Question; Socialism.

*
FREDERICO DAIA FIRMIANO é Mestre e doutorando em Sociologia, pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, campus
de Araraquara - FCLar/Unesp. Professor Assistente da Fundação de Ensino Superior de
Passos/Universidade do Estado de Minas Gerais-Fesp/Uemg. Bolsista CAPES. É autor de A formação
cultural dos jovens do MST: a experiência do assentamento Mário Lago, em Ribeirão Preto (SP), 2009,
pela Cultura Acadêmica.

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Colocando no primeiro plano o Para ele, a colonização espanhola não
problema econômico-social, teve “força criadora”; erigiu-se sob as
assumimos a postura menos lírica ou bases da conquista, da força, sob a
literária possível. Não nos insígnia da psicologia do “buscador de
contentamos em reivindicar o direito
ouro”. (Mariátegui, 2010, 75-77). E “por
do índio à educação, à cultura, ao
progresso, ao amor e ao céu.
cima das ruínas e resíduos de uma
Começamos por reivindicar, economia socialista, lançaram as bases
categoricamente, seu direito à terra de uma economia feudal” (Mariátegui,
(Mariátegui, 2010, p. 67-68). 2010, p. 34). A Independência de 1821
não realizou sequer a tarefa liberal,
como em boa parte do continente. E os
indígenas, mais de 90% da população,
foram apartados da vida política,
integrados à ordem como força de
trabalho necessária para o intenso
processo de extração de recursos
minerais, sobretudo.

Desde já é preciso esclarecer que Distante da Europa, o comércio com o


Mariátegui não refletiu os problemas da Oriente predominou, relegando ao Peru
formação social peruana a partir da uma posição subalterna dentro da
chave teórica dada pela “questão subalternidade do continente. O período
agrária”. Diferentemente, encontrou a que se abre no pós-Independência é de
questão agrária, no curso da busca por descoberta do salitre e do guano. Com
uma interpretação marxista sobre esta isso, o país, agora sim, pode juntar-se a
formação social, identificando, pois, o outras colônias ou ex-colônias latino-
problema indígena ao problema da terra, americanas no fornecimento de riquezas
aos que o socialista peruano conferiu à Inglaterra. “Os lucros do guano e do
uma alternativa socialista. Assim, não há salitre criaram no Peru, onde a
em seu pensamento a elaboração de uma propriedade havia conservado até então
“questão agrária”, propriamente. A um caráter aristocrático e feudal, os
forma como o socialista peruano primeiros elementos sólidos de capital
interpela a formação social peruana o comercial e bancário” (Mariátegui,
leva, inequivocamente, ao caráter 2010, p. 40).
agrário e latifundista da economia de sua
época. Porém, a extração colonial ou
neocolonial de riquezas naturais não foi
Mariátegui não tinha como ponto de capaz de eliminar as relações de
partida os grandes problemas teóricos de servidão e dependência externa. A
seu tempo. Mas os encontrava na república se constituiu sobre princípios
reflexão crítica dos problemas imediatos liberais e burgueses, mas não só não
e mediatos da formação histórico-social tinha uma burguesia para realizar seus
peruana, conferindo-lhes a inventividade princípios, como esbarrava nos
necessária à compreensão e interesses dos grandes proprietários. A
transformação daquela particularidade economia costeira prevalecente fundou
concreta. Sim, pois Mariátegui, antes de uma ordem social composta por uma
tudo, era um homem de ação política. burguesia “... confundida e enraizada em
Por isso, a história viva é o campo onde sua origem e estrutura com a
se move política e teoricamente. aristocracia, formada principalmente

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pelos sucessores dos encomenderos e passarão a existir para III Internacional
latifundiários da colônia...” que, no Comunista, vai se criar uma intensa
entanto, deviam adotar os princípios polêmica, como mostram Camila
fundamentais da ordem liberal. Lanhoso e María Gabriela Guillén
Enquanto isso, os espanhóis ampliavam Carías, em seu texto “A originalidade do
suas bases na mineração, na serra. Para marxismo indo-americano de Mariátegui
Mariátegui, constituía-se, pois, uma e a polêmica com a III Internacional
contradição entre costa e serra, com Comunista, reunido neste dossiê. Ao
ampla hegemonia da costa. (Mariátegui, fim, esta disputa aniquila o projeto
2010, p. 40-41). socialista de Mariátegui. A compreensão
que o socialista peruano tem da
Uma “questão meridional”, diria
realidade de seu país não pode
Gramsci (2004, p. 405-435), para quem
comportar a noção de um
o desenvolvimento capitalista não é
desenvolvimento igual, linear e
dual, mas desigual e combinado. Aliás,
homogêneo, tal como concebia o
esta é uma importante chave para
Komintern, para quem o imperialismo
compreender o Peru tal como o pensa
mantinha a feudalidade na América
Mariátegui. Vale lembrar que ambos são
Latina e que disso decorria a
contemporâneos, partilharam a mesma
necessidade de um desenvolvimento das
atmosfera intelectual e política, o que
forças produtivas, rumo à produção de
favoreceu a correspondência teórica
uma ordem propriamente capitalista,
entre ambos. Ademais, o socialista
burguesa e democrática que, no futuro,
peruano frequentou reuniões encontros
fossem capazes de alavancar a transição
do partido do qual Gramsci era dirigente,
ao comunismo. Em que pese o
na Itália e, apesar de não haver registros
simplismo de como apresentamos a tese
sobre um encontro entre ambos, é
de Stálin, o fato é que a compreensão
possível que Mariátegui o tenha visto ou mariateguista sobre a realidade peruana
ouvido. não comportava esquemas teóricos
Mas o fato era que com a expansão abstratos e de simplificação da história.
capitalista no Peru “inaugurou-se assim
um regime que, seja lá quais fossem seus
Depois da Independência se deu um
princípios, piorava em algum grau a
caudilhismo militar. Neste período
condição dos indígenas, em vez de
houve um fortalecimento da aristocracia
melhorá-la” (Mariátegui, 2010, p. 83). O
latifundiária. Os setores de comércio e
poder e a força da propriedade feudal
de finanças que estiveram em poder do
permaneceram intocados, anulando a
capital estrangeiro se associam à
própria medida de proteção à pequena
aristocracia. A condição de classe
propriedade instaurada pela república e
proprietária da aristocracia latifundiária
que visava o desenvolvimento de uma
a solidarizou com os interesses de
ordem propriamente capitalista e liberal.
comerciantes e banqueiros estrangeiros.
Por isso, a piora das condições indígenas
Ela detinha também o capital comercial,
não era um problema do liberalismo,
graças aos privilégios que a propriedade
mas uma contradição da dinâmica
da terra garantiu na colônia e, depois, na
capitalista da formação social peruana
república. Por isso, “o liberalismo da
que a república não resolveu. E nem
legislação republicana, inerte diante da
poderia!
propriedade feudal, sentia-se ativo
Não à toa, a partir de 1928, quando somente diante da propriedade
Mariátegui e o Partido Socialista comunitária” (Mariátegui, 2010, p. 88).

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Restou à república atacar as estrangeiro. “Esse sistema econômico
comunidades indígenas. manteve, na agricultura, uma
organização semifeudal...”. O
Na costa, os latifúndios formados no
capitalismo não pode, assim, florescer
período colonial apoiavam-se no
como nas formações clássicas. Para
trabalho escravo. Mais tarde,
Mariátegui, o “feudalismo” prevalecente
substituídos pela mão-de-obra dos
na costa impede o desenvolvimento
africanos e chineses, respectivamente.
capitalista, o desenvolvimento urbano.
Neles, se desenvolveram cultivos
(Mariátegui, 2010, p. 46-50; citação, p.
industriais, mais ou menos avançados do
47). O latifúndio ocupa o lugar que
ponto de vista capitalista e uma
deveriam ocupar as cidades nos vales
agricultura de exportação, dirigida por
peruanos. Este é o signo da formação
comerciantes e banqueiros britânicos,
histórico-social peruana.
diante de uma classe de proprietários
endividada. Mas em seu interior, as leis Por isso, diz ele: “todas as teses sobre o
pouco valiam. Seus proprietários problema indígena, que ignoram ou
consideravam seus latifúndios como aludem a esse como problema
algo que estava “fora” do poder do econômico-social, são outros tantos
Estado. O trabalho livre não tem acesso. exercícios teóricos – e às vezes apenas
Imperam a imposição de obrigações verbais – condenados a um descrédito
pessoais e péssimas condições de absoluto”. É seu ponto de vista socialista
parceria yanaconagem, que combinava que “... descobre e esclarece, porque
salário com formas de apropriação do busca suas causas na economia do país e
excedente, e a sujeição da mão-de-obra não no seu mecanismo administrativo,
por meio da dívida ou da imposição de jurídico ou eclesiástico...”. Para ele,
trabalho desfavorável, o enganche. “qualquer tentativa de resolvê-la com
(Mariátegui, 2010, p. 100-101). medidas de administração ou polícia,
com métodos de ensino ou obras de
Na serra, a agricultura era atrasada. estradas, constituiu um trabalho
(Mariátegui, 2010, p. 90). E também ali, superficial ou adjetivo, enquanto
não pode se desenvolver o trabalho livre subsistir o feudalismo dos gamonale1s”
e assalariado, mas formas precárias de (Mariátegui, 2010, p. 53).
parceria e arrendamento. Na costa e na
serra, as formas de yanaconagem Ainda que tenha faltado a Mariátegui – e
variavam “... em sua própria variedade não podemos lhe exigir isto – uma clara
[e] se identificam em geral com os compreensão teórica de que esta era a
métodos pré-capitalistas de exploração forma própria do desenvolvimento
da terra observados em outros países de capitalista no Peru e que havia, pois,
agricultura semifeudal” (Mariátegui, uma produção capitalista de relações não
2010, p. 104). capitalistas de produção no interior da
reprodução capitalista, isto não o
A serra era responsável por produzir a impediu de ver as diferenças de tempos
maior parte dos produtos agrícolas e históricos e a coexistência de relações
pecuários de consumo interno. Na costa, sociais não-uniformes em uma mesma
os latifundiários ficavam à mercê dos formação social como, mais tarde,
preços internacionais e não conseguiam
se transformar em uma classe 1
Proprietários rurais representantes da oligarquia
propriamente capitalista. Os setores de agrária que subjugavam de modo direito
mineração, comércio, transportes se indígenas e camponeses que viviam e trabalham
encontravam nas mãos do capital em suas terras.

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explicou Henri Lefebvre, a partir do desenvolver. O comunismo, ao
denso e profundo estudo feito das obras contrário, continuou sendo a única
de Marx, na qual trata do defesa para o índio (Mariátegui,
desenvolvimento desigual e combinado, 2010, p. 95).
e que José de Souza Martins É por essa razão, que a defesa da
desenvolveu amplamente para o caso comunidade indígena “... não repousa
brasileiro2. em princípios abstratos de justiça nem
Sua inventividade o coloca à frente da em considerações sentimentais e
tese hegemônica do marxismo europeu tradicionalistas...”. A defesa da
tutelado pelo Komintern, como já comunidade indígena tinha, pois, “...
indicamos. Pois, a experiência histórica razões concretas e práticas de ordem
peruana mostrara a impossibilidade da econômica e social” (Mariátegui, 2010,
constituição da individualização da p. 96).
propriedade da terra. Mesmo sob este Por isso,
impulso dado pela república, distintas
formas de organização de comunidades Deixando de lado razões
(comunidades agrícolas, comunidades doutrinárias, considero
agropecuárias, comunidades de pastos e fundamentalmente esse fator
águas, comunidades de usufruto) incontestável e concreto que dá
caráter peculiar ao nosso problema
mostraram a persistência de formas
agrário: a sobrevivência da
históricas de cooperação e associação comunidade e de elementos de
entre os indígenas. Ora, não se cria uma socialismo prático na agricultura e
ordem social por decreto, seja ela qual na vida indígenas (Mariátegui, 2010,
for. p. 69).
A obra de Hildebrando Castro Pozo, Mariátegui esteve na Europa entre 1919
“Nuestra comunidad indígena”, que o até o início de 1923. Chega à França,
socialista peruano toma como referência, fixa-se na Itália, entre 1920 e 1922, em
afirmava a vitalidade deste “organismo seguida viaja pela Alemanha, Áustria,
vivo”, que manifestava possibilidades de pela antiga Tchecoslováquia e Bélgica.
desenvolvimento, que eram as Encontra uma Europa arrasada pela
comunidades indígenas. Sobre o tema, Primeira Grande Guerra. Mas assiste, ao
Mariátegui vai escrever: mesmo tempo, às intensas lutas
O índio, apesar das leis e de cem revolucionárias na Itália, inspiradas em
anos de regime republicano, não se larga medida pela vivacidade da
tornou individualista. E isso não se Revolução de Outubro de 1917,
origina por ser ele refratário ao conhecidas, depois, como o biênio-
progresso, como pretende o vermelho, entre 1919-1920 que, em
simplismo de seus detratores seguida, dão lugar a formação do Partido
interessados. Depende, isso sim, de Comunista Italiano, em 1921. Vê, ao
que o individualismo, sob o regime
mesmo tempo, a ascensão do fascismo
feudal, não encontra as condições
necessárias para se afirmar e se de Mussolini, que assume o poder em
1922, persistindo até a Segunda Guerra
2
Ver, por exemplo, MARTINS, José de Souza.
Mundial.
A sociabilidade do homem simples: cotidiano e É esse o caldo que dará lugar, por um
história na modernidade anômala. 2011,
especialmente o capítulo “Excurso: as
lado, a recusa pelo desenvolvimento das
temporalidades da história na dialética de Henri forças produtivas capitalistas, que é
Lefebvre”. representada pela abdicação do

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progresso capitalista (lembremos a aposta uma opção teórica dada à
polêmica que, a partir de 1928, vai se construção de tipos ideais (romantismo
travar com o Komintern) e, por outro reacionário, romantismo revolucionário,
lado, a absorção das conquistas da etc.). Trata-se de reconhecer a
cultura ocidental. Para ele, a Revolução persistência histórica de formas de
Russa era a mais importante conquista organização da vida que contêm
do Ocidente. “elementos de socialismo prático” e que
devem se constituir como o ponto de
Como muitos de sua geração, esperava
partida, ao lado da organização de outros
encontrar na Europa os “valores mais
trabalhadores, para o empreendimento
elevados” da cultura ocidental.
revolucionário.
Mariátegui toma contato com a obra de
Marx, de Lênin, Kautsky; dialoga Não se trata apenas do fato de que o
intensamente com a obra de Georges socialismo não pode partir de um
Sorel, convive com Benedetto Croce, “vazio”. Mesmo não tendo elaborado o
polemiza com Henri de Man, entre problema teoricamente, Mariátegui,
tantos outros. (Cf. Mariátegui, 2010c) como dissemos, concebe a existência de
Está em formação intelectual e teórico- diferentes tempos históricos sob uma
socialista. Mas, para ele, o marxismo só formação social. Coerente com esta
ganha sentido se dialogar de modo concepção, a transição socialista, para
intenso e vivo com os problemas da ele, não poderia se dar como um
particularidade concreta em que atua e movimento uniforme dentro de uma
com as expectativas dos sujeitos que formação social desigual. Além disso,
fazem sua história. Ele está a caminho apostar no desenvolvimento das forças
da descoberta de uma via não europeia produtivas para que, mais tarde,
para o socialismo. cumprissem seu devir histórico,
formalmente, significava o mesmo que
Lembremos: Mariátegui não descobre a apostar nas promessas da ordem
especificidade latino-americana através burguesa. Mas, como vimos, a
da teoria. São seus problemas concretos, experiência histórica peruana mostrou
mediatos e imediatos que o levam à seu fracasso.
teoria que, por sua vez, deve constituir
uma unidade profunda com a história É assim, que Mariátegui encaminha o
viva. Eis que a forma particular do “problema indígena” e o “problema da
socialismo mariateguiano será o terra” como o problema do socialismo e
indigenismo, como mostram Silvia não, simplesmente, como uma “questão
Beatriz Adoue e Afonso Mancuso, em agrária” que, como sabemos,
“O socialismo indígena de Mariátegui”, classicamente, é um problema do
reunido neste dossiê. capitalismo, que a ordem burguesa deve
resolver.
Onde existissem, as comunidades
deveriam, pois, se constituir como parte Na citação que faz de si mesmo, do
do socialismo andino, única alternativa prólogo de “Tempestad en los Andes”,
possível às formas de exploração e de Valcárcel, em nota de rodapé, ele diz:
opressão de seu povo, que tem a “A fé no ressurgimento indígena não
expressão indígena. Não se trata, assim, provém de um processo de
de um retorno ao passado, como se a ‘ocidentalização’ material da terra
história fosse um relógio que permite ser quéchua. Não é a civilização, não é o
atrasado ao gosto do relojoeiro; tão- alfabeto do branco, o que levanta a alma
pouco uma atitude romântica como do índio. É o mito, é a ideia da revolução

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socialista” (Mariátegui citado por – considerado por muitos a primeira
Mariátegui, 2010, p. 53). E por uma aproximação teórica marxista da
razão histórica bastante simples: a realidade latino-americana – dado o
liquidação do gamonalismo ou do caráter fundamentalmente agrário e
“feudalismo” tinha que ter sido feita pela indígena da formação histórico-social
República. Mas não o foi. Com isso, peruana. Sua preocupação é com a
“não é o caso de esperar que hoje, superação do sistema social que oprime
quando esses princípios [liberais e aqueles que vivem do próprio trabalho; é
capitalistas] estão em crise no mundo, com o socialismo!
adquiram de repente, no Peru, uma
Por essa razão, com Mariátegui, mais
insólita vitalidade criadora”. Assim,
que buscar chaves explicativas para a
diante da impossibilidade histórica de
“questão agrária”, devemos procurar o
superação do problema indígena, diante
modo (método) original e criativo de
da crise dos princípios liberais e
compreensão e proposição de superação
capitalistas do qual fala Mariátegui, “o
dos problemas da particularidade
pensamento revolucionário, e mesmo o
concreta sobre a qual interveio, na teoria
reformista, já não [podia e não] pode ser
e na prática, e na qual se deparou com o
liberal, mas sim socialista” (Mariátegui,
problema agrário.
2010, p. 55).
Com Amauta aprendemos a tomar a
Dissemos que as comunidades indígenas relação dialética entre a particularidade e
e camponesas se constituem como parte o universal; a rejeitar qualquer tendência
do socialismo andino mariateguiano, positivista ou progressista e a falsa
pois o socialista peruano nunca linearidade da história e, mais, a nos
descuidou da organização do escasso aproximarmos dos movimentos
proletariado de seu país, que se formou, concretos e mais avançados da
sobretudo, na mineração, no comércio, sociedade, aquelas experiências
nos transportes, entre outros serviços. moleculares – como chamaria Gramsci –
Mariátegui dedicava-se a Confederación que persistem e que contém os
General de Trabajadores del Perú, como “elementos de socialismo prático” que,
à Central Sindical del Proletariado não só não podem ser deixados de lado,
Peruano e, como sabemos, fundou o mas devem se constituir no ponto de
Partido Socialista e foi encarregado de partida da transição socialista.
redigir seus princípios programáticos,
em outubro de 1928. Este último com a Assim, se hoje vemos ressurgir o
tarefa de organizar “... as masas movimento indígena, organizados, entre
trabajadoras de la ciudad, el campo y las tantos outros, pela Coordenação das
minas y el campesinato indígena...” Organizações Indígenas da Bacia
(Mariátegui, 2010b, p. 191). Amazônica, a Coica, que vem reunindo
os povos e movimentos indígenas de
Assim, Mariátegui não foi um Brasil, Bolívia, Equador, Colômbia,
“agrarista”. A “questão agrária” – Peru, Suriname, Venezuela, Guiana e
categoria teórica que não é parte das Guiana Francesa. Também se intensifica
formulações mariateguianas, como já a afirmação de uma “via camponesa” ao
esclarecemos no início deste texto – socialismo, como na proposta da Via
aparece no pensamento de Amauta, que Campesina, à qual se soma um dos
em quéchua significa “sábio”, como era maiores e mais organizados movimentos
chamado, em três de seus “Sete Ensaios sociais do mundo, o Movimento dos
de Interpretação da Realidade Peruana” Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST.

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A vitalidade destes movimentos “...não É certo que este é apenas parte do
repousa em princípios abstratos de movimento mais amplo e complexo do
justiça nem em considerações capital, assim como as respostas dos
sentimentais e tradicionalistas...”, mas trabalhadores hoje organizados. Mas
na persistência de formas coletivas e como afirmamos recentemente,
tradicionais de organização da vida “[...] qualquer projeto
contra a expansão destrutiva do capital verdadeiramente alternativo ao
hoje. capital deve, pois, incorporar as
Nas últimas décadas, a chamada formas profundamente vivas de
“revolução verde” praticamente experiência dos povos indígenas [e
devemos incluir povos da floresta,
universalizou-se, tornando hegemônico
quilombolas, camponeses, entre
um padrão de organização da agricultura outros], sob pena de se converter em
que opera a partir da expansão das alternativa para poucos ou a imagem
monoculturas e da implementação invertida do progresso e
técnica e tecnológica dos processos desenvolvimentismo predominantes,
produtivos. Com isso, emergiu uma que destroem as distintas formas de
agricultura com produção em larga organização coletiva da vida”
escala, altamente especializada, (Firmiano, 2012, p. 3).
intensiva e extensiva, destinada aos
grandes mercados mundiais, que deu
Referências
lugar a um complexo sistema que
constitui largas cadeias produtivas, FIRMIANO, Frederico Daia. O problema
articuladas pelo capital agrário- indígena. In.: Brasil de Fato. Caderno Opinião.
São Paulo. de 19 a 25 de abril de 2012, p. 3.
industrial-financeiro, nas quais
predominam empresas transnacionais. GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Vol. 2.
Organização e tradução Carlos Nelson Coutinho.
Este modelo de desenvolvimento rural, – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
centrado na produção em larga escala de MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de
commodities para exportação que interpretação da realidade peruana; tradução
necessita, permanentemente, (a) Felipe José Lindoso. – 2ª edição. – São Paulo:
expandir a área agrícola agricultável, e Expressão Popular: Clacso, 2010. (Coleção
Pensamento Social Latino-Americano).
(b) aumentar a produtividade, tanto pela
extração de mais-valia absoluta, quanto ______. Ideología y política y otros escritos.
pela ampliação das taxas de exploração Edición Héctor Carrasquero; Fracisco Romero;
Yerbert Vivas. Fundación Editorial El Perro y la
do trabalho através da implementação Rana. Caracas, 2010b. (Biblioteca Mariátegui:
tecnológica dos processos produtivos, Política Revolucionaria. Contribuición a la
coloca grupos de trabalhadores, crítica socialista. Tomo IV).
comunidades e povos e os territórios ______. Defensa del marxismo y otros escritos.
camponeses nos quais reproduzem Edición María Gabriela Blanco; Alfredo Canale;
objetiva e subjetivamente sua existência José Jenaro Rueda; Yerbert Vivas. Fundación
em confronto direto com este modelo, Editorial El Perro y la Rana. Caracas, 2010c.
dado que (a) ocupam parte das terras e (Biblioteca Mariátegui: Política Revolucionaria.
Contribuición a la crítica socialista. Tomo V).
dispõem dos recursos ecológicos
necessários à expansão dos agronegócios MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do
homem simples: cotidiano e história na
e/ou (b) possuem a força de trabalho que modernidade anômala. – 3ª edição. – São Paulo:
estes ramos da economia precisam para Contexto, 2011.
se reproduzir.

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