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Deslocando nossa visada das questões sociais para que se possa vislumbrar
temas estruturais que contribuem na construção da figura do gauche, faço um recorte da
primeira referência usada “a sociedade oferece obstáculos”. Betina Bischof, em Razão
da Recusa, nos mostra como esse entrave social se torna parte da estrutura poética do
poeta: “Esse obstáculo é então central, para a poesia de Drummond – poesia que afasta,
como não pertence à sua estrutura […] a excessiva luz a expressão fluida e melodiosa, a
positividade sem interrupções e cortes.”3. Esses obstáculos são produzidos por uma
escrita que tende, em muitos poemas, à aporia –
1
CANDIDO, Antonio: Inquietudes na poesia de Drummond, IN: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre
azul, 2011. P. 78.
2
CANDIDO, Antonio: Op. Cit. P. 83.
3
BISCHOF, Betina: Razão da recusa: um estudo da poesia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo:
Nankin, 2005. P. 47.
4
BISCHOF, Betina: Op. Cit. P. 15.
O obstáculo que, na visão de Candido, é a força que entorta o “eu todo retorcido”, é um
modus operandi da poética drummondiana. É preciso chegar a aporia, muitas vezes
produzi-la, para que o poema possa nascer, e muitos desses impasses são também as
gêneses do gauche e de suas inquietudes, como veremos em “A bruxa” de José (1942),
“O mito” de A rosa do povo (1945).
A bruxa5
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.
Em sua primeira estrofe o poema nos apresenta a aporia de onde irá se desenvolver o
eu-lírico. Em uma cidade, ou de forma mais ampla e dramática, em um continente e
seus milhões de habitantes, o eu-lírico está só em seu quarto, cômodo esse que se
assemelha a um claustro, pois em nenhum momento é concebido um movimento de
saída do mesmo.
Na sexta estrofe ao tentar construir uma imagem lúdica para o seu ser ao dizer
que imita animais, possui bons beijos, o sujeito acaba por confessar o obstáculo inerente
ao ser que o joga na solidão, ele próprio não consegue se comunicar, o mesmo diz que
se encontra cercado de olhos, mãos, afetos e procuras, porém a comunicação é ainda
inviável. A última estrofe soa como uma apologia a seu estado de claustro, onde o eu-
lírico confessa sua condição gauche e negativa perante a sociedade que se
metamorfoseia na figura de mau agouro da bruxa.
Fulana se movimenta:
Fulana é uma “personagem” que não encontra nenhum obstáculo, ela flui
perante a narrativa do eu-lírico, e é esse que encontra os obstáculos e é jogado a todo
tempo em aporias, como a de amar fulana, que é a pedra de toque do poema. A
aproximação dos problemas sofridos pelos sujeitos de “A bruxa” e “O mito” pode ser
feita a partir das estrofes 27 e 28 do poema de A rosa do povo:
7
ANDRADE, Carlos Drummond de: Op. Cit. P. 198
Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,
E vadeamos a ciência,
mar de hipóteses. A lua
fica sendo nosso esquema
de um território mais justo.
E colocamos os dados
de um mundo sem classes e imposto;
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.
Há após a conversão de Fulana certa superação do gauchismo, pois não existem
mais obstáculos a serem superados. As contradições são extintas e é possível o contato,
a comunicação que enfim sanam o sofrimento do eu-lírico.
BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Carlos Drummond de: Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2008.
BISCHOF, Betina: Razão da recusa: um estudo da poesia de Carlos Drummond de Andrade. São
Paulo: Nankin, 2005.
CANDIDO, Antonio: Inquietudes na poesia de Drummond, IN: Vários Escritos. Rio de Janeiro:
Ouro sobre azul, 2011.