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TRABALHO FORÇADO
NA FAZENDA DA VOLKS: CRÔNICA DE UM
ESCÂNDALO AMAZÔNICO NA ALEMANHA
Antoine Acker
TRABALHO FORÇADO FORCED LABOUR IN THE
NA FAZENDA DA VOLKS: VOLKSWAGEN RANCH:
CRÔNICA DE UM CHRONIQUE OF AN
ESCÂNDALO AMAZÔNICO AMAZONIAN SCANDAL IN
NA ALEMANHA GERMANY
Antoine Acker
RESUMO ABSTRACT
Este artigo é dedicado ao escândalo de The object of this article is the scandal
trabalho forçado relacionado com a fa- of forced labor linked to the Vale do Rio
zenda amazônica Vale do Rio Cristalino, Cristalino Amazonian ranch, which be-
gerida pela firma alemã Volkswagen longed to the German firm Volkswagen
(VW) entre 1973 e 1986. As represen- (VW) between 1973 and 1986. Focusing
tações, a percepção e a recepção do on the representations, the perception and
escândalo na Alemanha constituem o the reception of the scandal in Germany,
ponto de enfoque do texto. O objetivo this article has the following three aims:
deste artigo é triplo: explicar como uma - explaining how a multinational company
multinacional de reputação moderna e of modern and humanist reputation could
humanista chegou a permitir uma ges- tolerate the existence of archaic forms of
tão arcaica da mão de obra na própria labor in its own ranch
fazenda, analisar o movimento de soli-
dariedade trans-nacional que se desen- -analyzing the movement of trans-national
volveu na Alemanha em reação às notí- solidarity, which developed in Germany
cias de trabalho forçado na “Cristalino”, in reaction to the news of forced labor at
e avaliar o impacto dessa polêmica “Cristalino”
na conscientização ao nível internacio- -evaluating the impact of this polemic in
nal do problema de trabalho forçado the sensibilization, at the international lev-
amazônico. el, as regards the problem of Amazonian
Palavras-chave: Trabalho forçado, Ama- forced labor.
zônia, Volkswagen, Alemanha, solidarie- Keywords : forced labour, Amazon, Volk-
dade internacional swagen, Germany, international solidarity
zenda de gado onde havia também pro- Estas foram as reflexões que orientaram
dução de madeira. Em 1976, quando o este texto, que foi desenvolvido a partir
satélite americano Skylab identificou na de três questões com elas relacionadas e
Amazônia um incêndio de tamanho con- que se focaram, sobretudo, no lado ale-
siderável, pelo qual a Cristalino era em mão dos debates em torno da fazenda
parte responsável, a fazenda foi acusada Cristalino:
de praticar um desmatamento abusivo e, 1) Como se tornou possível uma empresa
a partir daí, se tornou um potencial obje-
como a VW, modelo da “economia social
to de críticas. Alguns anos depois, acusa-
de mercado” alemã, ver-se envolvida num
ções de recurso à mão-de-obra forçada
grave processo de exploração humana?
para as operações de desmatamento em
Cristalino foram lançadas pela Comissão 2) Poderá considerar-se a coligação que
Pastoral da Terra (CPT). A informação agiu contra a Volks e que agiu não só no
foi difundida na Alemanha, em 1983 país dos acontecimentos mas também no
(Brasilien-Nachrichten (BN), 81/1983). país de origem da empresa um modelo de
Dentro da fazenda, existia um sistema resistência aos abusos das multinacionais?
segundo o qual os trabalhadores sazo- 3) Terá a mediatização do assunto
nais (os “peões”) contratados por subem- “Cristalino” na Alemanha ajudado a sen-
preiteiros da Volks ficavam endividados sibilizar o país em torno do fenômeno
de diversas formas (engano nos salários, do trabalho forçado contemporâneo no
pagamento de preços desonestos por di- campo, um fenômeno então ainda pouco
versos serviços fornecidos pelos emprei- conhecido na Europa?
teiros, entre outros), eram mantidos den-
tro da fazenda durante vários meses sem
poder fugir e eram ainda submetidos à I. Longe da “Fazenda Modelo” de
violência de guardas (“os gatos”), que co- Wolfsburg, a “fazenda invisível” dos
metiam contra eles sevícias físicas e mo- trabalhadores sazonais
rais (Le Breton, 2003, p.147-60).
Desde o início, a operação de Volkswagen
Embora tenham sido poucos os autores a na Amazônia foi, sobretudo, um meio
interessar-se pelo assunto, as suas carac- para evitar que uma parte dos benefí-
terísticas essenciais já foram apontadas cios da empresa acabesse gasta com
(Ibid.; Rezende, 2000; Buclet, 2005): taxas públicas. O governo brasileiro,
- O paradoxo de um tratamento de mão no âmbito da sua nova política de de-
de obra arcaico que era utilizado por senvolvimento da Amazônia, distribuía
uma empresa de grande dimensão que incentivos fiscais generosos a investido-
representava o capitalismo moderno; res que tinham projetos pela região.
Os representantes da empresa nunca
- a dimensão internacional dos aconteci- esconderam essa motivação lucrativa às
mentos quer devido às origens multina- autoridades alemãs. No entanto, é impos-
cionais dos investimentos quer devido aos sível resumir o projeto Cristalino por este
protestos que tal projecto suscitou; só objetivo de lucro. Os textos difundidos
- o fato de a divulgação da história es- pela Volkswagen mostram que a compa-
pecífica da fazenda Cristalino ter sido nhia se sentia investida de uma missão
uma etapa importante na divulgação do ideológica consistindo em importar uma
problema mais geral do trabalho força- cultura de “modernidade” nos “países
do contemporâneo no Brasil. em desenvolvimento” (Volkswagen A.G.,
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1980). Autoproclamando-se líder indus- exemplares (Richter, 1980, p.12-4): aloja-
trial do desenvolvimento, a Volks justifica- mento gratuito, piscina, terreno de esporte,
va os seus investimentos em países como o bar, escola, supermercado moderno, entre
Brasil, o Mexico ou a África do Sul atra- outras “vantagens”. Esta ideia de uma re-
vés de uma retórica filantrópica que fa- lação privilegiada entre a empresa e os
zia da empresa o “parceiro do mundo”, seus empregados, baseada num tratamen-
o agente da “ajuda ao desenvolvimento to humanista dos trabalhadores, constituia
no sentido mais nobre do termo” (Ibid.). um elemento central da comunicação da
É nesse âmbito que se pode entender a Volkswagen, a partir do qual a companhia
apresentação do projeto de fazenda ao já tinha construído a sua reputação na
público alemão. Já que a empresa que- Alemanha (Doleschal e Dombois, 1982). A
ria fazer de Cristalino um exemplo do seu atribuição de salários generosos, a oferta
desempenho em favor do “terceiro-mun- aos operários de serviços disponíveis fora
do”, distibuiu à imprensa alemã nume- do tempo de trabalho e a segurança do
rosos folhetos promocionais pelo lança- emprego já faziam parte da imagem posi-
mento da operação e também ao longo tiva de VW na Alemanha Federal. A com-
do seu processo de consolidação (Ibid.; panhia apresentava-se como um modelo
Autogramm, 19/12/1973-01/10/1985 da “soziale Marktwirtschaft” (economia
(dez edições); Frankfurter Allgemeine social de mercado) ou, por outras pala-
Zeitung, 25/09/1979; Volkswagen do vras, de um capitalismo beneficiando tam-
Brasil S.A., 1983; Volkswagen, arquivos bém os operários. Uma imagem semelhan-
de empresa). Em 1980, VW até produziu te era difundida a propósito das fábricas
um filme documentário dedicado à fazen- brasileiras da Volks em São Bernardo do
da, distribuido nas escolas da Alemanha Campo, no Brasil (Volkswagen A.G., 1973).
Ocidental e acompanhado de um ca- No entanto, vários pesquisadores já mos-
derno didático dirigido aos professores traram que essa generosidade frente aos
(Richter, 1980). Todos esses documentos assalariados, apesar de ser fundamen-
apresentavam a fazenda como um pro- tal na reputacão da Volkswagen, tanto
jeto de excepcional modernidade, elabo- na Alemanha como no Brasil, abrangia
rado com a ajuda de técnicos europeus só uma elite minoritária de operários.
e americanos de alto nível. A ambição A partir do meio dos anos 1970, a pro-
era fornecer uma contribuição decisiva dução de automóvel ficou cada vez mais
para nada menos que a modernização transferida para uma mão de obra peri-
de uma região – a Amazônia – “às mar- férica – baseada em empregos precários
gens da civilização”, o desenvolvimento e disponível pelas tarefas menos espe-
econômico do Brasil e a erradicação da cializadas – ou externa – contratada por
fome no país graças à melhoria das téc- sub-empresários, geralmente com baixa
nicas de criação de boi (Brügger, 1985; remuneração e fraca proteção social
Volkswagen A.G., 1980). (Gorz, 1988, 110-5; Kern e Schumann,
Volkswagen elogiava também a situa- 1984). Em resumo, já na época da fazen-
ção exemplar dos seus empregados em da Cristalino, a comunicação humanista
Cristalino. Teriam sido liberados do seu da VW se apoiava na representação de
“modo de vida vagabundo” para ser alo- um círculo limitado de operários, bene-
jados em confortáveis casas de alvenaria, ficiado por direitos superiores à média.
receber uma remuneração “bem mais ele- Ao mesmo tempo, a maior parte da pro-
vada” do que o mínimo legal brasileiro, ducão era efetuada por uma mão-de-
e aproveitar de serviços e infrastruturas -obra “invisível”, ausente da propaganda
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DOLESCHAL, R.; DOMBOIS, R. (Org.). 1982. Wo- Die Grünen Informieren, Hanôver, 12/12/1985.
hin läuft VW? die Automobilproduktion in der
Wirtschaftskrise. Reinbek, Rowohlt. Die Welt, Berlim, 13/5/1983.