You are on page 1of 10

Elementos para uma pneumatologia brasileira

Uma leitura pós-moltmanniana

Jorge Pinheiro dos Santos

Resumo

O artigo analisa a pneumatologia e suas implicações


para a construção de uma espiritualidade que repou-
se sobre a multiculturalidade brasileira. A partir de
Jürgen Moltmann, vê a espiritualidade brasileira en-
quanto correlação entre a manifestação do Espírito
na existência e as expressões das religiosidades, em
especial a católica popular. Nessa releitura de Molt-
mann, o livre Espírito é visto como princípio que se
faz carne e osso na vida das comunidades de fé. Tal
leitura permite ver a multiculturalidade brasileira para
além de toda a situação, remete à unidade cósmica
do Espírito nas comunidades de fé.

Palavras-chave

Espírito – espiritualidade – comunidade de fé – multi-


culturalidade – cristianismo – Brasil.

Jorge Pinheiro dos Santos é


professor de teologia e História
da Faculdade Teológica Batista
de São Paulo, pastor auxiliar
da Igreja Batista em Perdizes,
São Paulo e pós-doutor em
Ciências da Religião pela
Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Endereço eletrônico:
jorgepinheiro.sanctus@gmail.com
Elements for a Brazilian pneumatology

A post-Moltmann reading

Jorge Pinheiro dos Santos

Abstract

This article analyses Pneumatology and its implica-


tions for the construction of a spirituality that can
be laid upon the Brazilian multiculturality. Based on
Jürgen Moltmann, it sees Brazilian spirituality as a
correlation between the manifestation of the Spirit in
existence and the expressions of religiosities, more
specifically the popular Catholic one. In this re-rea-
ding of Moltmann, the free Spirit is seen as a principle
that becomes flesh and bones in the lives of the faith
communities.

Keywords

Spirit – spirituality – faith community – multiculturality,


Christianity – Brazil.

Jorge Pinheiro dos Santos


is professor for theology
and History at the Baptist
Theological Faculty, São Paulo,
assistant pastor in the Baptist
Church in Perdizes, São Paulo
and holds a post doctorate in
Religous Studies by Mackenzie
Presbyterian University. Email:
jorgepinheiro.sanctus@gmail.com
Elementos para una pneumatología brasileña

Una lectura pos-moltmanniana

Jorge Pinheiro dos Santos

Resumen

El artículo analiza la pneumatología y sus implicaciones


para la construcción de una espiritualidad que repose
sobre la multiculturalidad brasileña. A partir de Jürgen
Moltmann, se ve la espiritualidad brasileña como cor-
relación entre la manifestación del Espíritu en la exis-
tencia y las expresiones de las religiosidades, en espe-
cial la católica popular. En esa relectura de Moltmann,
el libre Espíritu se ve como principio que se hace carne
y hueso en la vida de las comunidades de fe. Tal lec-
tura permite ver la multiculturalidad brasileña más allá
de toda la situación, remite a la unidad cósmica del
Espíritu en las comunidades de fe.

Palabras clave

Espíritu – espiritualidad – comunidad de fe – multicul-


turalidad – cristianismo – Brasil.

Jorge Pinheiro dos Santos es


profesor de teología e Historia de
la Facultad Teológica Bautista de
São Paulo, es pastor auxiliar de
la Iglesia Bautista en Perdizes,
São Paulo e pos-doctor en
Ciencias de la Religión por
la Universidad Presbiteriana
Mackenzie. Correo electrónico:
jorgepinheiro.sanctus@gmail.com
Quero fazer um convite: vamos seguir to do mundo e da Igreja, correspondentes
um sábio professor, Jürgen Moltmann, às três Pessoas da Trindade.
num vôo espiritual que para nossa alegria A primeira idade correspondeu ao
se tornou livro, O Espírito da Vida.1 Ele vai governo do Pai e foi representada pelo
nos ajudar nesse vol d´oiseau a pensar a poder absoluto, inspirador do temor que
possibilidade de uma pneumatologia bra- atravessa o Antigo Testamento. A segun-
sileira. É uma viagem através do Espíri-
da idade iniciou-se no Novo Testamento,
to, como se fosse tapete que sobrevoa a
com a fundação da Igreja de Cristo, onde,
história cristã e mundos desconhecidos.
através do Filho, a sabedoria divina, que
Mas, ao voar com Moltmann no Espírito,
tinha permanecido escondida da humani-
queremos ir além, desejamos sobrevoar
dade, se revelou. A terceira idade haveria
tempos e terras brasileiras, acrescentando
de vir e corresponderia ao domínio da ter-
ao pensamento do mestre um pouco des-
ceira Pessoa. Seria o advento do Império
sa riqueza civilizatória que chamamos de
do Divino Espírito Santo, um tempo novo
multiculturalidade brasileira.
onde o amor e a igualdade entre todos os
membros do Corpo Místico de Deus se-
riam alcançados.
O quinto Império
No Império do Divino Espírito Santo, as
leis evangélicas seriam realizadas não só
Olhe que coisa interessante: o proje-
na sua letra, mas no seu espírito, ou seja,
to português de expansão e, posterior-
a mensagem que nelas está escondida
mente, de colonização das terras brasi-
seria compreendida e aceita pela huma-
leiras, nasceu sob o símbolo do Espírito
nidade. Nessa terceira idade não haveria
Santo. Os portugueses acreditavam que
necessidade de instituições disciplinadoras
um novo mundo estava a ser formado,
da fé, já que ela estaria fundamentada na
um mundo que seria dirigido pela tercei-
inspiração divina. Seriam dispensadas as
ra Pessoa da Trindade, onde não haveria
estruturas institucionais do poder tempo-
fome, nem presos, e que teria uma crian-
ral da Igreja. Qualquer pessoa, sem im-
ça como rei.
portar gênero ou posição social, poderia
O culto do Espírito Santo em Portugal ser imperador/a, pois a sabedoria divina
desenvolveu-se a partir do reinado de D. iluminaria a todos. A humanidade seria,
Dinis (1261-1325) e teria nascido pela fé também, beneficiada por uma inteligência
de sua esposa Isabel de Aragão, a Rainha espiritual que possibilitaria a plena com-
Santa, por volta de 1323. Ela teria insti-
preensão dos mistérios divinos.
tuído a primeira festa do “Império do Es-
pírito Santo”, que elegia um imperador ou Em sua época, Joaquim de Fiore acre-
uma imperatriz do Espírito Santo entre as ditava que a segunda idade estava no seu
crianças pobres. fim e que o advento do Império do Espírito
Santo estava para acontecer. O Império
A Rainha Santa e seu esposo Dom
do Divino Espírito Santo, já às portas da
Diniz conheceram e foram influenciados
História, seria a apoteose, e duraria até a
pela teologia mística de Joaquim de Fio-
segunda vinda gloriosa do Cristo.
re(1132-1202), abade cisterciense, que
fez a defesa do milenarismo e do advento Duzentos anos depois do reinado de
da idade do Espírito Santo. Segundo suas Dom Diniz a teologia do Império do Espí-
interpretações das Escrituras existiriam rito Santo tinha conquistado os corações
três idades na História, no desenvolvimen- e mentes dos portugueses. Assim, dois
padres jesuítas, um deles espanhol e o
outro português, contam como viajando
1
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida: uma pneuma-
para a Índia em 1561 na nau “Nossa Se-
tologia integral. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999.

88 Jorge Pinheiro dos SANTOS, Elementos para uma pneumatologia brasileira


nhora da Graça”, depois de passadas as Esta seria, então, a terra da constru-
ilhas de Martim Vaz, coroaram um impe- ção do “Quinto Império”, profetizado por
rador do Espírito Santo, aos 25 de maio, Daniel, e que em breve haveria de se ins-
dia do Pentecostes, quando se fez uma talar no mundo. Esses elementos culturais
festa solene, e religiosos que permeiam a multiculturali-
dade brasileira apontavam para uma teolo-
porque havia Imperador elegido e esta-
gia do Espírito, como presença de Deus no
va a nau toda de festa, embandeirada
e toldada de goderins muito frescos, e universo, na comunidade e na experiência
com um dossel de tafetá azul onde o humana. Tal visão foi utilizada por Vieira
imperador tinha a cadeira.2 quando fez uma hermenêutica do percurso
histórico de Portugal à luz dessa revelação
Sabemos que não foi assim, sem fome, providencialista. Colocou a história de Por-
sem presos e com uma criança como impe- tugal em paralelo com a história do povo
rador do Espírito Santo que a colonização de Israel, que a Bíblia apresenta como
se fez. Mas o imaginário cristão de uma povo eleito. Então, é o Espírito que/quem
terra de fartura, liberdade e justiça, sem convence as comunidades e pessoas de
dúvida, esteve nos fundamentos do ideal seus alvos, da incondicionalidade da justi-
português. A partir daí começou a surgir ça e do juízo que paira sobre a existência.
os principais elementos de uma pneuma- Nesse sentido, as comunidades e cada ser
tologia brasileira, onde as leituras e com- humano são chamados à liberdade pela
preensões do Espírito Santo, de sua ação obra redentora de Cristo. Donde,
no universo, nas comunidades e sobre a
vida das pessoas, repousaram sobre essa a tese da constituição sagrada e da
conservação imune da singularidade e
esperança levantada pelos cristãos do sé- liberdade do reino de Portugal interliga-
culo quatorze em Portugal. Aos poucos o se e justifica-se com outra tese segun-
culto ao Espírito Santo, símbolo dos ide- do a qual este reino estaria designado
ais de liberdade e fraternidade da doutrina para ser um instrumento especial de
uma missão, também ela sagrada, em
cristã, assumiu caráter de fé do povo bra-
relação a outros povos. Essa missão é
sileiro. E assim deveria ser, pois, segundo iluminadora e fundamentadora de uma
o padre Antonio Vieira, no livro de Isaías visão sacralizante da história de Por-
há um sinal divino dado às “costas e ilhas tugal — a missão teofânica de levar o
distantes e a povos longínquos” (Isaías conhecimento de Cristo aos povos igno-
rantes da sua doutrina.4
49.1; 66.19). Por isso Vieira dizia:

Digo primeiramente que o texto de Isaí- Não queremos aqui definir se nossos
as se entende do Brasil, porque o Brasil irmãos portugueses estavam certos ou
é a terra que direitamente está além equivocados na compreensão dessa mis-
e da outra banda da Etiópia, como diz
o profeta: quae est trans flumina Ae-
são teofânica, mas reafirmar que nas co-
thiopae [Isaías 18.1]. E assim é na ge- munidades e pessoas essencializadas pela
ografia destas terras, que em respeito fé, o Espírito é o centro do querer humano,
de Jerusalém, considerado o círculo que que produz um novo fazer. Então, o Espí-
faz o globo terrestre, o Brasil fica ime-
rito advoga, em lugar do humano, a partir
diatamente detrás da Etiópia. 3
da justiça imputada pelo Cristo, o justo. O
Espírito é atração que vem da incondicio-
2
Carlos Francisco Moura, “Festa a bordo, O Império nalidade e nos faz cair para cima, manten-
do Espírito Santo, das naus quinhentistas às canoas
do sertão Brasileiro, no século XXI”, In: As novidades
do mundo. Conhecimento e representação na época
moderna, Edições Colibri, Lisboa, 2003, pp. 345-364. 4
José Eduardo Franco, “Duas utopias em confronto: A
Texto da carta de Estêvão Dinis, p. 349. História de Portugal do Padre Fernando Oliveira e A
3
Antonio Vieira, Livro anteprimeiro da História do futu- História do futuro do Padre António Vieira”, Instituto
ro, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983, p. 148. Organi- São Tomás de Aquino. Site: Triplov. WEB: http://tri-
zador: Van Beesselaar. plov.com/ista/cadernos/franco_2.html

Revista Caminhando v. 13, n. 22, jul-dez 2008 89


do-nos fiéis e produzindo na vida humana a espiritualidade como fenômeno univer-
o amor que arrebata. sal na experiência brasileira e se esque-
Assim, através do catolicismo popular ciam que ela é o Espírito da liberdade
brasileiro, o culto ao Espírito Santo es- cósmica, que traduz a vivacidade da vida.
praiou-se pelo país. As celebrações mais E por não compreender a multiculturali-
alegres, sempre de forte expressão comu- dade brasileira, declararam-na vazia de
nitária, aconteciam cinqüenta dias após a espiritualidade. Ao começar do zero, lon-
Páscoa, lembrando o dia de Pentecostes, ge das raízes das brasilidades, definiram
quando o Espírito desceu sobre os apósto- a salvação como fenômeno individual, so-
los de Jesus como centelhas. Na Europa, litário na pessoa convertida, sem festa e
as festas ao Espírito eram realizadas na expressão nas comunidades. E assim, ao
época das primeiras colheitas, traduzindo lado da teologia do Espírito do catolicismo
a esperança da chegada de uma nova era popular, alegre e comunitário, foi sendo
para o mundo, com liberdade, prosperida- construída outra, cheia de consciência e
de e abundância. Aqui, as festas podem sentido teológico, mas sem coração, vida
ser encontradas em praticamente todas as e emoção brasileiras.
regiões do país, apresentando diferentes Aprendemos, então, que o Espírito é
características, mas guardando em co- Pessoa da tri/unidade de Deus. É Pessoa
mum a imagem da pomba branca, a co- que dá vida nova e consola os que so-
roa, e a distribuição de comida. E foi assim frem. Adota e enche de amor. Transmite
que o Deus tri/uno se revelou ao brasileiro conhecimento, sabedoria e justiça. Der-
pobre, como voz de presença. É o Espíri- rama arrependimento e graça, dá poder e
to de Deus, o Espírito de Cristo, o Espírito torna as pessoas prudentes. Vive em nós:
Santo, que merece festa e adoração. pertencemos a Ele. Mas como viver isso
Tal compreensão apresentou às bra- em nossas comunidades de fé? Qual é
silidades a fé como produto comunitário, expressão desse Espírito, teologicamen-
quando, todos juntos, recebemos o sopro te correto, no dia a dia de nossas vidas?
do Espírito, que fala as verdades da vida Será que vida no Espírito não significa ex-
que devemos compreender. Ou seja, o periência religiosa?
Espírito dissemina a vontade do Deus tri/ Não há vida humana sem experiência.
uno entre as pessoas, dá aos fiéis poder e Vive-se na experiência da vida e essa é
autoridade para o serviço no cotidiano do uma realidade palpável nas brasilidades.
reino de Deus, prepara para a ação procla- Por que então negar a experiência reli-
matória do Verbo e nos coloca sob missão giosa no Espírito? Por que esta tentativa
livre e dinâmica, em obediência criativa ao de pasteurizar o Espírito? Por que a vida
Verbo de Deus. Esse é o direcionamento brasileira, para aqueles que chegavam de
da mais antiga teologia popular do Espírito fora era feia, suja, pobre e sem espiritua-
no Brasil. lidade? Perguntinhas desagradáveis, mas
que estão escondidas em nossos cora-
ções protestantes. Moltmann nos ajuda na
A liberdade é cósmica construção de respostas.
Uma pneumatologia brasileira deve
O tempo passou e os primeiros mis- tornar-se uma reflexão hermenêutica so-
sionários da Reforma protestante pisaram bre a afirmação da justificação pela graça,
em terras brasileiras. Acreditaram que por meio da fé. Essa expressão “por meio
estavam chegando num país sem cristia- da fé” não é somente posicional, mas exis-
nismo, que desconhecia a mensagem da tencial. E, nesse sentido, falamos da espi-
salvação, ou seja, na prática descartavam ritualidade na vida da comunidade de tal

90 Jorge Pinheiro dos SANTOS, Elementos para uma pneumatologia brasileira


maneira que a justificação se transforma comunidade contra a perda de sentido.
em vida aberta. Dizer que o Espírito é san- As comunidades de fé reivindicam seu
to é afirmar que não pode ser violado, que estabelecimento como cumprimento da
sua ação sobre nós e para nós é benéfica, pessoalidade do Espírito prometido. Assim
segura e eficaz. a identidade de Deus e do Espírito é clara
Ora, o Espírito é criador, mas o que para as comunidades de fé. E essa pesso-
significa isso? Poderíamos falar da cria- alidade do Espírito se dá no chão da mate-
ção do cosmo e de outros atos criadores rialidade das comunidades de fé, na carne
do Espírito, mas não podemos nos esque- e no osso da Igreja. Por isso, na experi-
cer que a pneumatologia deve funcionar ência da comunidade, podemos dizer que
como uma cristologia eclesial, já que a o Espírito procede do Pai e do Cristo, que
vida é Espírito e que a comunidade tam- o Cristo é gerado pelo Pai e pelo Espírito,
mas, também, que o Pai é fruto do amor
bém tem Espírito.5 A comunidade de fé,
do Cristo e do Espírito. Assim, entende-
assim como as pessoas, são as criações
mos que na comunidade de fé, de forma
por excelência deste Espírito. E como a
existencial para cada um de nós, o Espírito
comunidade de fé é formada por discí-
é Pessoa na comunhão de Deus.
pulos do Cristo, seu Espírito está aí pre-
sente, criando gente nova e expandindo É a pessoalidade do Espírito que nos
leva à questão da espiritualidade. Quan-
o reino.
do dizemos espiritualidade, queremos
As comunidades cristãs brasileiras, dizer uma vida no Espírito, um intenso
todas elas, são comunidade de Jesus, e é convívio com o Espírito: esse é o sen-
isso que define a Igreja. Quando as comu- tido cristão da palavra. Dessa maneira,
nidades de fé se defrontam com desafios a idéia de uma vida forte, a idéia da
que as fazem pensar sobre o propósito e vitalidade de uma vida criativa a partir
caráter da Igreja cristã, elas devem refle- de Deus nos remete à espiritualidade,
tir sobre suas realidades históricas e cul- ou seja, a uma vida espiritualizada por
turais a partir do fato e da identidade do Deus. Por isso, podemos dizer: as pes-
Jesus glorificado. Só nesse sentido, pode- soas procuram a Deus porque o Espírito
mos entender na prática, de forma viva e as atrai para si. Estas são as primeiras
comunitária, o permanente ato criador do experiências do Espírito no ser humano.
Espírito na cristologia da Igreja. E o Espírito as atrai como um imã atrai
as limalhas de ferro. O íntimo atrativo
É verdade, o Espírito é Pessoa. Mas
do Espírito é experimentado pela pessoa
aqui também somos chamados a dar
em sua fome de viver e em sua busca
carne e osso à nossa pneumatologia. A
de felicidade, que nada no universo pode
pessoalidade do Espírito pode melhor ser
satisfazer ou saciar.
compreendida na materialidade da comu-
A espiritualidade da vida se opõe à
nidade de fé, pois cada comunidade de
mística da morte.6 Quanto mais sensíveis
fé possui um só Espírito. Inversamente,
as pessoas se tornam para a felicidade da
a espiritualidade de uma comunidade, ou
vida, mais sentem a dor pelos fracassos
é o Espírito de Deus, ou um dinamismo
da vida. Vida no Espírito é vida contra a
ameaçador. Assim todas as comunidades morte. Não é vida contra o corpo, mas a
se confrontam com a transcendência, e favor de sua libertação e sua glorifica-
o Espírito aparecerá como a liberdade da ção. Dizer sim à vida significa dizer não
à fome e a suas devastações. Dizer sim à
5 MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida: uma pneuma-
tologia integral. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999.
p. 71. 6
Jürgen Moltmann, op. cit., p. 97.

Revista Caminhando v. 13, n. 22, jul-dez 2008 91


vida significa dizer não à miséria e a suas mo injusto e que transforma as pessoas,
humilhações. Não existe uma afirmação de escravos e vítimas do erro, em alforria-
verdadeira da vida sem luta contra tudo dos pela graça. É este Espírito defensor que
que nega a vida. Nesse sentido, o Espíri- possibilita o encontro das diferentes expe-
to é libertador.7 riências de vida, assim como a comunhão
O mundo das pessoas é o cosmo. Aí da diversidade que Ele próprio cria e admi-
elas constroem seu habitat. Desta forma, nistra em cada um de nós. E é Ele quem
por meio do significado dado pelo ser hu- nos encoraja à esperança. O Espírito da
mano à natureza, de domínio e expansão, unidade e da diversidade não cessa de atu-
dentro de um significado de utilização ar entre nós, mesmo quando distantes uns
que lhe empresta, atua sobre ela, produz dos outros e aparentemente separados.
transformação e cultura, e realiza sua es- Teologicamente, podemos ampliar ain-
piritualidade. da mais a compreensão do Espírito ao dizer
A espiritualidade, sendo relação entre que Ele sopra sobre e através das vidas. Ele
significante e significado, é dialética, pois é a liberdade da historia universal e parti-
é ela que faz da pessoa e da comunidade cular das brasilidades, a espontaneidade da
ser significante e permite ao ser humano realidade, a beleza da criação cósmica e o
e a sua comunidade transferir ao mundo criador da vida nova das comunidades de
que o cerca a transcendência, que tam- fé. E quando falamos que Ele é a esponta-
bém utiliza essa mesma significação. Ao neidade da realidade, estamos dizendo que
fazer significante a realidade que o cerca, o Espírito é paradoxal: se apresenta como
o ser humano dá origem às transforma- gênese e escathon, fim de uma aliança e
ções, engendra causas e passa à constru- princípio de uma nova, fim de uma era e
ção do futuro. Para viabilizar tais transfor- início de uma nova. Quando vem, ninguém
mações, é necessário que a comunidade se controla, mas ele controla a todos. Nin-
transfira novos significados aos processos guém está sem controle, porque ser cheio
históricos, sociais e mesmo espirituais. do Espírito é ser conduzido por sua sobera-
nia. Eis o paradoxo de Espírito.
Por isso, podemos dizer, a partir da es-
piritualidade, que onde há comunidade, há O Espírito é cósmico8 e livre. Mas qual
vida e comunicação, e que a comunicação a relação entre liberdade e cosmo? Se-
é Espírito, ou então, resistência ao Espíri- guindo Irineu, podemos dizer que a comu-
to. Dessa maneira, ou o Espírito é comuni- nicação de Deus levou à existência, mas
cação, ou então subverte a comunicação. pelo Espírito, Ele transforma o existente
A comunicação é a realidade da relação de em cosmo, com sentido, com ordem de
pessoas, e é pela comunicação que temos adequação e adaptação. E se retornarmos
um cosmo e nos encontremos nele. Assim, a Hegel, esse Espírito cósmico é a consci-
a missão das comunidades de fé é a per- ência do universo, Espírito vivo. Ou seja,
manente comunicação no Espírito. assim como o Espírito deu sentido ao exis-
tente, Ele tem como propósito dar sentido
Ora, a ação de libertar está ligada à
à vida humana, por isso é Ele quem vai
ação de defender. A vida humana pode ser
adiante, abre as portas e prepara o cami-
negada e, por isso, para ser realmente vi-
nho para o sucesso da comunicação.
vida, tem de ser afirmada. Vida negada e
recusada é morte. Vida aceita e afirmada O mesmo Espírito, além de preparar
é liberdade. É o Espírito quem convence o as diferenças, e o Brasil é um exemplo dis-
cosmo do alvo errado, que corrige o cos- so, é quem transforma essas bases para a

7
Jürgen Moltmann, op. cit., p. 114. 8
Jürgen Moltmann, op. cit., p. 21.

92 Jorge Pinheiro dos SANTOS, Elementos para uma pneumatologia brasileira


expansão da comunicação. A visão da ex- aqueles que a experimentaram realmente:
pansão da comunicação é uma dádiva do a liberdade do medo para a confiança, o
Espírito para as comunidades de fé, mas reviver para uma esperança viva, o amor
a unidade na comunidade só é válida na incondicional à vida.
variedade, nunca na uniformidade. A acei- Para a fé que tem origem no livre Espí-
tação das pessoas ,com suas diferenças e rito, estar liberto não consiste na compre-
particularidades, e aqui devemos falar de ensão de uma necessidade histórica, nem
afrobrasileiros, brasilíndios e neobrasilei- na autonomia sobre si próprio e sobre a
ros, é uma condição indispensável para a propriedade, mas ser tocado pelo poder de
saúde da comunidade cristã. vida do Espírito, significa ser criativo com
A pneumatologia vivida a partir da Deus e no seu Espírito.9 Crer, por isso, sig-
multiculturalidade brasileira apresentará a nifica ultrapassar os limites da realidade
obra do Espírito como realidade comuni- determinada por nosso passado de escravi-
tária, e esse talvez seja o sentido maior, dão, exclusão social e dor, e buscar as pos-
recuperado pelos irmãos carismáticos e sibilidades da vida que não se realizaram.
pentecostais no Brasil. Mas, em meio às E é essa fé que livra da força do mal, da lei
divergências e separações, às inimizades das obras e do poder da morte e leva a uma
e choques, prevalece a amplidão do Espí- comunhão com as pessoas e a comunidade.
rito. Ou seja, Ele cria espaço, põe em mo- Esse é o chão da liberdade no Espírito.
vimento, leva da estreiteza para a largura, Aliás, aqui cabe uma história. Um
cria o horizonte e nas nossas vidas amplia amigo meu, pastor batista brasileiro viu-
o horizonte. Na experiência com o Espírito, se numa situação inusitada. Uma senho-
Deus não é sentido somente como Pessoa ra, fiel de uma igreja das Assembléias
da Trindade, mas também como aquele de Deus, da periferia de São Paulo, que
espaço e tempo de liberdade em que o ser tinha um filho dependente químico, fez-
humano pode se desenvolver. lhe um pedido.
— Pastor, o senhor podia orar ao Espí-
rito e pedir que Ele ungisse esse azeite? É
A liberdade é brasileira que eu vou fazer comida para o meu filho
e vou pingar um pouquinho de azeite na
comida dele e esse azeite ungido pelo Es-
Esta é a experiência no Espírito. Quan-
pírito pode transformar a vida dele e fazer
do o Espírito é experimentado como essa
que ele abandone o vício.
amplidão aberta à vida, quando os seres
humanos vivem no Espírito, Deus é expe- É bom lembrar que dias antes, o jo-
rimentado como um novo tempo de vida. vem chegara drogado e num acesso de
E, então, o Espírito se torna liberdade em fúria destruíra tudo dentro de casa. Coisas
nossas vidas brasileiras. compradas a prazo, com muita dificuldade,
nas Casas Bahia. E o pastor batista brasi-
Nas instituições cristãs, a fé é entendi-
leiro, entre a cruz e a caldeirinha, aceitou
da como uma concordância com a doutri-
o desafio, colocou a mão sobre a latinha
na da igreja ou como uma participação na
de azeite e orou assim:
fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do
que isso, é uma fé que envolve pessoal- — Querido Espírito, o Senhor conhece
mente. A fé que me faz livre é a fé com a a fé da sua filha. Responde a essa fé, e
qual concordo, porque eu a vivo, não por- que esse ato simbólico se materialize na
que seja forçado por hábito ou tradição. cura do filho da sua serva. Faça isso por
A fé pessoal é o início de uma liberdade amor a Cristo.
que renova a vida e vence no cosmo. Essa
fé é uma experiência que não abandona 9
Jürgen Moltmann, op. cit., p. 119.

Revista Caminhando v. 13, n. 22, jul-dez 2008 93


E assim, sem pensar muito, mas sen- _____, Paixão pela vida, São Paulo,
tindo o sofrimento da mulher, aquele pas- ASTE, 1977.
tor batista brasileiro construiu uma ponte MOURA, Carlos Francisco, “Festa a bordo,
entre as medievais crenças anabatistas do O Império do Espírito Santo, das
naus quinhentistas às canoas
livre Espírito e a pneumatologia popular do sertão brasileiro, no século
daquela irmã da periferia de São Paulo. XXI”, in As novidades do mundo.
Conhecimento e representação na
Pensamos uma pneumatologia brasi-
época moderna, Edições Colibri,
leira, atravessando as tradições que re- Lisboa, 2003.
montam ao velho Israel e os tempos, la- PINHEIRO, Jorge, Somos a imagem de
titudes e longitudes da igreja cristã. Mas Deus, caminhos para o diálogo da
procuramos acrescentar às nossas leituras teologia com a brasilidade, São
Paulo, Editora Ágape, 2001.
a materialidade da vida brasileira, que se
fez e se faz presente a partir da tradição _____, Deus é brasileiro, as brasilidades
e o Reino de Deus, São Paulo,
comunitária do catolicismo popular, da Fonte Editorial, 2008.
presença reformada e do avivamento ca- TILLICH, Paul, “A vida e o Espírito” in
rismático e pentecostal,10 isto porque to- Teologia sistemática, parte IV,
das as crenças e as teologias posteriores São Leopoldo, Sinodal, 2005, pp.
a elas nascem no chão da vida dos povos. 475-720.
E é esse brotar do Espírito no chão das VIEIRA, Antonio, Livro anteprimeiro
da História do futuro, Lisboa,
culturalidades brasileiras que acrescenta
Biblioteca Nacional, 1983.
o “pós” na leitura moltmanianna que fi-
zemos e nos leva a dizer que o Espírito é
santo e padroeiro da religiosidade cristã Bibliografia on-line
no Brasil. E uma pneumatologia brasileira
não pode esquecer tal liberdade.
FRANCO, José Eduardo, “Duas utopias em
confronto: A História de Portugal
do Padre Fernando Oliveira e
Referência Bibliográfica A História do futuro do Padre
António Vieira”, Instituto São
Tomás de Aquino. Site: Triplov.
DRIVER, Juan, Convivencia radical, http://triplov.com/ista/cadernos/
espiritualidad para el siglo 21, franco_2.html
Buenos Aires, Ediciones Kairós,
PINHEIRO, Jorge, “A substância católica
2007. e o fator Melquisedeque”. Site:
MOLTMANN, Jürgen, Teologia da Correlatio. WEB -- http://www.
Esperança, São Paulo, Herder, metodista.br/ppc/correlatio/
1979. correlatio10/

10
“Graças a Deus, e em parte devido às colaborações
dos movimentos da reforma radical – que pensavam
que Deus podia continuar a se revelar e que podía-
mos descobrir novas verdades da sua Santa Palavra
– estamos aprendendo a apreciar os diferentes dons e
legados presentes em todas as tradições cristãs. Nós,
herdeiros da tradição anabatista, também temos ele-
mentos importantes a apresentar neste diálogo e, da
mesma maneira, a aprender dos outros”. Juan Driver,
Convivencia radical, espiritualidad para el siglo 21,
Buenos Aires, Ediciones Kairós, 2007, pp. 71-72. (Tex-
to traduzido para o português por Jorge Pinheiro).

You might also like