You are on page 1of 6

DOI: 10.1590/1413-81232018236.

09172018 1723

Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos

ARTIGO ARTICLE
Thirty years of the Unified Health System (SUS)

Jairnilson Silva Paim 1

Abstract This article, which aims to explore Resumo Com o objetivo de dialogar com alguns
questions relating to SUS at 30 and to dialogue estudos e perguntas acerca do SUS, ao completar
with other studies, presents an overview of the 30 anos, o artigo apresenta um balanço de veto-
positive drivers, the obstacles and the threats to res positivos, obstáculos e ameaças, sublinhando a
Brazil’s Unified Health System. It points to a lack falta de prioridade pelos governos, o subfinancia-
of prioritizing the SUS on the part of the govern- mento e os ataques perpetrados pelas políticas do
ment, underfunding and attacks on the system capital. Ressalta a financeirização da saúde vin-
made by capital’s policies. The article also suggests culada à dominância financeira como uma das
that one of the most significant threats to SUS maiores ameaças ao SUS. Conclui que o SUS não
is the financialization of health, linked to the fi- está consolidado, justificando alianças entre forças
nancial dominance. It concludes by arguing that democráticas, populares e socialistas, com novas
the SUS is not consolidated, justifying alliances estratégias, táticas e formas organizativas para
between democratic, popular and socialist forces, enfrentar o poder do capital e de seus representan-
with new strategies, tactics and forms of organi- tes na sociedade e no Estado.
zation to face up to the power of capital and its Palavras-chave Sistema Único de Saúde, Políti-
representatives in society and in the State. cas de saúde, Reforma sanitária brasileira
Kew words Unified Health System, Health poli-
cy, Brazilian health reform

1
Instituto de Saúde
Coletiva, Departamento
de Saúde Coletiva I,
Universidade Federal da
Bahia. R. Basílio da Gama
sn, Canela. 40110-040
Salvador BA Brasil.
jairnil@ufba.br
1724
Paim JS

Introdução nicipais), a Associação Nacional do Ministério


Público em Defesa da Saúde (Ampasa), a Con-
Os projetos Democrático-popular e Esperança e ferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
Mudança, formulados na transição democráti- o Conselho Nacional de Secretários de Saúde
ca, não foram privilegiados pelas forças políticas (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias
que tiveram a oportunidade histórica de ocupar Municipais de Saúde (Conasems), o movimento
o governo federal após a promulgação da Cons- popular de saúde, entre outras.
tituição Cidadã1. O golpe do capital, urdido des- O SUS dispõe de uma rede de instituições de
de 2014 através da mídia, de segmentos da classe ensino e pesquisa como universidades, institutos
média e do Parlamento, com a chancela do Judi- e escolas de saúde pública que interage com as
ciário, rompeu o pacto social estabelecido no fi- secretarias estaduais e municipais, Ministério da
nal da ditadura, atacou a democracia e suprimiu Saúde, agências e fundações. Essa rede contribui
um conjunto de direitos civis, sociais e políticos. para a sustentabilidade institucional, pois pos-
A falta de prioridade ao SUS e os ataques sibilita que um conjunto de pessoas adquiram
visando ao seu desmonte foram reforçados pela conhecimentos, habilidades e valores vinculados
crise econômica, pelas políticas de austeridade aos princípios e diretrizes do SUS. Muitas dessas
fiscal e, especialmente, pela Emenda Constitu- pessoas sustentam o SUS, mesmo em conjuntu-
cional 95 (EC-95/2016) que congela o orçamento ras difíceis, tornando-se militantes de sua defe-
público durante vinte anos2. Assim, o governo sa. A formação de sanitaristas e de outros tra-
Temer deu continuidade e aprofundou a hege- balhadores em universidades e escolas assegura
monia contrária ao SUS, tornando-o ainda mais a reprodução e disseminação de informações e
reduzido, com o risco de se tornar um simulacro. conhecimentos, além da apropriação de poder
O fato concreto é que o SUS foi implantado, técnico.
mas não se encontra consolidado. Pesquisas re- O Brasil empreendeu a descentralização de
centes3-5 estão apontando fenômenos mais com- atribuições e de recursos, ampliando a oferta e
plexos no âmbito da saúde do que as análises de o acesso aos serviços e ações, com impacto nos
conjunturas permitem indicar, de modo a esti- níveis de saúde. Essa diretriz constitucional, com
mular diversas perguntas: a) quais os vetores po- comando único em cada esfera de governo, foi
sitivos que têm sustentado o SUS? b) quais têm implementada em menos de uma década para
sido os obstáculos e as ameaças? c) quais são as 27 unidades da federação e quase 5.600 municí-
alternativas que se apresentam? d) como ampliar pios, garantindo a participação da comunidade
as bases de apoio sociais e políticas? e) O SUS através de conferências e conselhos, bem como
vai acabar? f) que estratégias e táticas podem ser criando instâncias de pactuação, a exemplo das
acionadas para viabilizar a sua consolidação? comissões intergestoras tripartite e bipartite. Esse
O objetivo deste artigo de opinião é dialogar processo de construção do SUS tem gerado entu-
com alguns desses estudos e perguntas acerca do siasmo e compromisso de trabalhadores da saúde
SUS ao completar 30 anos. vinculados às secretarias e ao Ministério, apesar
das limitações impostas pela gestão do trabalho
Quais os vetores positivos nas três esferas de governo que geram insatisfa-
que têm sustentado o SUS? ções nos serviços públicos.
Uma engenharia político-institucional cria-
Inspirado em valores como igualdade, de- tiva possibilitou a elaboração de normas opera-
mocracia e emancipação, o SUS está inserido cionais básicas, pactos, programação pactuada
na Constituição, na legislação ordinária e em integrada, plano de desenvolvimento da regio-
normas técnicas e administrativas. O Movimen- nalização e plano diretor de investimentos que
to da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) que contribuíram para a sustentabilidade institucio-
lhe sustenta é composto por entidades com mais nal do SUS e para a sua materialidade expressa
de quatro décadas de história e de compromis- em estabelecimentos, equipes, equipamentos e
so com a defesa do direito universal à saúde, a tecnologias. Daí o legado de avanços no sistema
exemplo do Centro Brasileiro de Estudos de Saú- de vigilância em saúde, na vigilância sanitária,
de (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde na assistência farmacêutica, nos transplantes,
Coletiva (Abrasco). Conta com o apoio de outras no SAMU e no controle do tabagismo, do HIV/
organizações como a Associação Brasileira de AIDS e da qualidade do sangue. O Programa Na-
Economia da Saúde (Abres), a Rede-Unida, os cional de Imunizações é o maior do mundo, in-
conselhos de saúde (nacional, estaduais e mu- duzindo a autossuficiência de imunobiológicos.
1725

Ciência & Saúde Coletiva, 23(6):1723-1728, 2018


Merece destaque a atenção primária em saúde, gestão como a falta de profissionalização, o uso
vinculando cerca de 60% da população brasileira clientelista e partidário dos estabelecimentos pú-
às equipes de Saúde da Família. blicos, número excessivo de cargos de confiança,
O país avançou no desenvolvimento de sis- burocratização das decisões e descontinuidade
temas de informação em saúde, a exemplo dos administrativa, têm sido destacados, embora as
referentes à mortalidade, às internações hospi- alternativas acionadas impliquem a desvaloriza-
talares e aos agravos de notificação, importantes ção dos trabalhadores de saúde, através das ter-
para o monitoramento e avaliação de políticas, ceirizações e da precarização do trabalho.
planos e programas. Outros aspectos negativos na construção
Cabe, ainda, destacar o reconhecimento for- do SUS podem ser identificados nas políticas
mal do direito à saúde que tem possibilitado a de medicamentos e de assistência farmacêutica,
difusão dessa conquista na sociedade, seja nas no controle do Aedes e na segurança e qualida-
manifestações da cidadania e na mídia, seja nos de do cuidado. A insuficiência da infraestrutura
processos de judicialização relevantes do ponto pública, a falta de planejamento ascendente, as
de vista cultural, pois podem evoluir para uma dificuldades com a montagem de redes na regio-
consciência sanitária crítica. nalização e os impasses para a mudança dos mo-
delos de atenção e das práticas de saúde também
Quais são os obstáculos e ameaças ao SUS? comprometem o acesso universal e igualitário às
ações e serviços de saúde. Verifica-se a reprodu-
Em termos ideológicos, os valores dominantes ção do modelo médico hegemônico, centrado
na sociedade brasileira tendem mais para a dife- mais na doença que na saúde, no tratamento que
renciação, o individualismo e a distinção do que na prevenção ou promoção, no hospital e nos
para a solidariedade, a coletividade e a igualdade. serviços especializados, e menos na comunidade,
Esse aspecto negativo é agravado pelas limitadas no território e na atenção básica.
bases sociais e políticas do SUS que não conta com Durante muito tempo o subfinanciamento
a força de partidos, nem com o apoio de trabalha- crônico era identificado como um dos maiores
dores organizados em sindicatos e centrais para a obstáculos para o SUS. Diversas iniciativas foram
defesa do direito à saúde inerente à condição de adotadas para contorná-lo, a exemplo da Contri-
cidadania, tal como ocorrera em países europeus buição Provisória de Movimentação Financei-
que optaram pelo Estado de Bem-Estar Social. ra, da EC-29/2000 e do movimento Saúde+10,
O SUS sofre resistências de profissionais de mas não alteraram, efetivamente, a estrutura do
saúde, cujos interesses não foram contemplados financiamento, de modo que o gasto público,
pelas políticas de gestão do trabalho e educação como percentagem do Produto Interno Bruto
em saúde. Além da crítica sistemática e oposição destinado a saúde, continuou inferior à propor-
da mídia, o SUS enfrenta grandes interesses eco- ção do gasto privado4.
nômicos e financeiros ligados a operadoras de Com insuficientes recursos o SUS enfrenta
planos de saúde, a empresas de publicidade e a problemas na manutenção da rede de serviços
indústrias farmacêuticas e de equipamentos mé- e na remuneração de seus trabalhadores, limi-
dico-hospitalares. tando os investimentos para a ampliação da in-
O predomínio da doutrina do neoliberalismo fraestrutura pública. Diante dessa realidade, a
justamente no período de implantação do SUS, decisão de compra de serviços no setor privado
com as limitações do Welfare State nos países eu- torna-se fortalecida e a ideologia da privatização
ropeus e a crise econômica de 2008, representam é reforçada. Prevalece, assim, um boicote passi-
um sério obstáculo para o desenvolvimento de vo através do subfinanciamento público e ganha
sistemas universais de saúde. Do mesmo modo, força um boicote ativo, quando o Estado premia,
a proposta político-ideológica da Cobertura Uni- reconhece e privilegia o setor privado com subsí-
versal em Saúde, patrocinada por organismos in- dios, desonerações e sub-regulação. O executivo
ternacionais, só faz reforçar tal doutrina e fragili- assegura um padrão de financiamento para o se-
zar os valores civilizatórios do SUS. tor privado com o apoio do Banco Nacional de
Apesar de a Constituição proclamar a saúde Desenvolvimento Econômico e Social e da Caixa
como direito de todos e dever do Estado, o Esta- Econômica Federal, bastante distinto em relação
do brasileiro através dos poderes executivo, legis- às instituições públicas do SUS. Essa ação estatal
lativo e judiciário, não tem assegurado as condi- através dos boicotes pelas vias do executivo, do
ções objetivas para a sustentabilidade econômica legislativo e do judiciário comprometeu a vigên-
e científico-tecnológica do SUS. Problemas de cia da concepção de seguridade social, além de
1726
Paim JS

facilitar a privatização da saúde. Com a aprova- instituições do SUS nos níveis municipal, estadu-
ção da EC-95/2016, o subfinanciamento crônico al e federal, a definição de alternativas pensadas
do SUS fica constitucionalizado, cristalizando as para serem viabilizadas passam, necessariamente,
dificuldades acumuladas desde 19884. pelos propósitos e pela ação de governos. Assim,
Os obstáculos acima mencionados geralmen- as eleições sempre representam uma oportunida-
te se apresentam nas discussões sobre o SUS, ne- de de discutir as alternativas nos programas dos
gligenciando a articulação público-privada pre- candidatos, a despeito das circunstâncias adver-
datória onde os interesses privados predomina- sas, seja no âmbito federal, seja no nível das uni-
ram nesses 30 anos. Entretanto, como essa amea- dades federadas.
ça do capital não é tão visível como as filas, a falta Nessa perspectiva, é possível conceber algum
de profissionais ou o acesso aos medicamentos, diálogo em defesa do SUS constitucional e do SUS
tem sido menos problematizada e investigada. democrático nas eleições junto às forças e candi-
A privatização da saúde que esteve presente daturas da esquerda e da centro-esquerda, com
na evolução das políticas públicas, mesmo antes alguma incursão no centro do espectro político.
do SUS, apresenta distintas configurações decor- Já a centro-direita e a direita, sendo vitoriosas no
rentes dos movimentos e circuitos do capital no nível federal ou estadual tendem a inviabilizar al-
setor. Atualmente, a articulação público-privada ternativas, pois seu compromisso tem sido com
exibe novas facetas, sob a forma de financeiriza- o desmonte do SUS. Portanto, a construção de
ção da saúde vinculada à dominância financeira 5. um amplo bloco democrático, popular e socialis-
Pesquisas recentes3-5 dão conta da complexidade ta em defesa da RSB e do SUS merece ser incluída
dessa nova fase da articulação público-privada, na agenda política das forças progressistas.
com a venda de empresas, seus ativos e carteiras
de clientes, aprofundando a intermediação entre Como ampliar as bases sociais
prestadores e consumidores, assim como novas e políticas para a sustentação do SUS?
relações entre aparelhos do Estado e o capital
financeiro (inclusive internacional)5. Essa deter- Desde as origens do movimento sanitário
minação econômica representa a maior ameaça à sempre esteve presente a preocupação com as
consolidação do SUS. bases de sustentação política para a RSB/SUS.
O empenho no envolvimento das entidades de
Quais são as alternativas saúde, sindicatos e segmentos populares foi mui-
que se apresentam? to debatido. Partidos políticos e parlamentares
ligados às forças democráticas foram acionados
A defesa do SUS constitucional e do SUS pro- no processo constituinte e na elaboração e apro-
posto pela Reforma Sanitária Brasileira (RSB) vação da Lei Orgânica da Saúde. A instalação e
indica alternativas contrárias à segmentação e à o funcionamento da Plenária da Saúde represen-
americanização do sistema de saúde brasileiro. O tou um espaço de articulação entre essas forças,
SUS realmente existente, com todas as suas difi- configurando um saldo organizativo para a im-
culdades e fragilidades, produziu conquistas e re- plantação do SUS.
sultados significativos nessas três décadas. A sua O protagonismo exercitado pelo Conass e
institucionalidade pode ser realçada pelos seus pelo Cosasems a partir da década de noventa,
gestores, pelo Ministério Público, conselhos de junto à instalação dos conselhos estaduais e mu-
saúde e trabalhadores, favorecendo a resistência nicipais, permitiu ampliar a base de apoio ao SUS.
contra o seu desmonte. Presentemente, o Conselho Nacional de Saúde
As alternativas a serem acionadas não são de- (CNS) tem demonstrado um ativismo significa-
finidas no âmbito da técnica, reiterando-se a tese tivo, mobilizando grupos sociais e confrontando
de que o maior desafio do SUS é político. Desse certas iniciativas do governo. Do mesmo modo,
modo, para além das ações que podem ser reali- a expansão dos gestores municipais de saúde tem
zadas no interior da sociedade civil, há que se re- reforçado essas bases sociais e políticas.
conhecer a necessidade de atuação na sociedade Ainda assim, o golpe de 2016 incidiu sobre
política, ou seja, no Estado e nos seus aparelhos e a correlação de forças a ponto de parte desses
instituições. Isso significa a possibilidade de atuar sujeitos passar a apoiar iniciativas do Ministério
junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judi- da Saúde criticadas pelo movimento sanitário. Se
ciário, bem como nos aparelhos de hegemonia. não é conveniente jogá-los no colo dos golpistas,
No caso do Executivo, independentemente também não é pertinente contar a priori com a
da atuação de profissionais e trabalhadores nas suposição do seu apoio, apenas considerando a
1727

Ciência & Saúde Coletiva, 23(6):1723-1728, 2018


parceria positiva do passado. Daí a necessidade Ele pode se reproduzir no presente e no futuro,
de manter pontes de diálogo para que as contra- mesmo que restrito, na dependência da dinâmica
dições possam ser explicitadas e os conflitos tra- e da expansão do capital, assim como das respos-
balhados. tas do movimento sanitário.
Considerando as peculiaridades da revolu- Voltado fundamentalmente para a parte da
ção passiva no Brasil que invadiu o processo da população mais pobre que não tem acesso ao
RSB, torna-se fundamental constituir sujeitos da mercado e limitado na atuação típica de saúde
práxis (sujeitos da resistência, novos servidores pública como a prevenção e o controle de riscos,
públicos, sujeitos transformadores), individuais danos e epidemias, trata-se de um SUS reduzido.
e coletivos, capazes de defender o SUS, e sujeitos Assegurando a realização de procedimentos de
da antítese aptos em desequilibrar o binômio da alto custo para o setor privado5, distancia-se do
conservação-mudança a favor das transforma- SUS constitucional e do SUS democrático propos-
ções, radicalizando a democracia e a RSB6. to pela RSB1. Significa um arremedo ou simula-
A constituição de sujeitos não se restrin- cro do SUS.
ge à dimensão pedagógica, podendo se realizar
em diferentes níveis (trabalho, militância e lu- Que estratégias e táticas que podem
tas sociais). Para além dos movimentos sociais ser acionadas para viabilizar a consolidação
progressistas e das entidades do MRSB (Cebes, do SUS?
Abrasco, Rede Unida, Abres, etc.), a conjuntura
pós-golpe de 2016 ensejou a construção da Frente Esta é uma pergunta das mais relevantes a
Povo sem Medo e da Frente Brasil Popular, entre exigir certa reflexão. Seguramente é uma das
outras iniciativas, que tem possibilitado mobili- mais difíceis em termos de resposta. Primeiro,
zações e articulação política contra o retrocesso porque não é qualquer sujeito ou ator capaz de
e os ataques à democracia, em torno da bandeira definir um desenho estratégico. Essa práxis –
Nenhum Direito a Menos. Tais movimentos ten- pensamento e ação – exige não só legitimidade
dem a se expressar no processo eleitoral e na con- de quem indica as estratégias e aponta as táticas,
figuração das forças políticas que conquistarem mas especialmente a capacidade de realizar as
espaços nos âmbitos federal e estadual. análises concretas da situação e de ter o insight
político acerca do momento mais indicado para
O SUS vai acabar? a organização e a intervenção sobre a realidade. A
experiência e as habilidades acumuladas são fun-
Esta é uma pergunta sempre presente em de- damentais para o alcance da efetividade da atua-
bates com interessados. Apesar dos ataques e gol- ção. Segundo, porque não é qualquer intelectual
pes sofridos, incluindo os boicotes do Estado Bra- ou indivíduo isolado que se pode arvorar a res-
sileiro, não é plausível a extinção do SUS. Além ponder essa questão, mas sim sujeitos coletivos
da força relativa dos seus defensores e militantes, como partidos políticos ou outras organizações
existe um conjunto de interesses vinculados ao que disponham de acúmulos históricos e capaci-
capital, ao próprio Estado e às classes dominantes dade de iniciativa para a ação. São eles que lidam
que apontam para a sua manutenção, seja como com a dialética da transparência/opacidade7 e são
meio de legitimação ou cooptação, seja como capazes de escolher a dose adequada de um e do
lócus de acumulação, circulação e expansão do outro termo da dicotomia, pois não cabe mostrar
capital. A articulação público-privada no âmbito o jogo aos adversários.
da saúde engendrada no Brasil possibilitou um No desenvolvimento do processo da RSB fo-
fortalecimento econômico e político das empre- ram acionadas três vias estratégicas: a legislativo
sas privadas em detrimento do interesse público -parlamentar, a técnico-institucional e a socioco-
e independente da Constituição e das leis. munitária. Presentemente, diante das limitações
Mesmo admitindo que não haja política irre- dos partidos e do protagonismo dos movimentos
versível, a agenda desses representantes do capital sociais, a busca da hegemonia político-cultural e
não contempla a extinção do SUS. Pelo contrário, a luta pela radicalização da democracia implicam
o SUS realmente existente tem sido orgânico aos a construção de equivalências entre agendas e
seus negócios e não há porque matar a galinha sujeitos coletivos, para além da contradição ca-
dos ovos de ouro. Este SUS real que em parte se pital-trabalho. Assim, a atuação do Cebes desde
apresenta como SUS para pobres já faz parte do a sua refundação em 2006 e, especialmente, o seu
senso comum de gestores, políticos, mídia, pro- envolvimento nas Jornadas de Junho e nas frentes
fissionais de saúde e, até mesmo, da população. populares depois do Golpe de 2016 recomenda a
1728
Paim JS

exploração de outras estratégias e táticas no pro- relação ao movimento sanitário devem ser consi-
cesso da RSB em defesa da democracia, do SUS e derados e trabalhados, politicamente, para que se
dos direitos sociais6. recomponham pontes de diálogos em defesa da
Não bastam, porém, o proselitismo em defesa democracia, da RSB e do SUS.
do SUS e a prática ideológica do movimento sa-
nitário. Daí a necessidade de reuniões periódicas
do Fórum da RSB e a articulação progressiva com Comentários finais
os conselhos nacional, estaduais e municipais de
saúde para o desenho de estratégias e o estabele- A retomada de um balanço sobre os vetores posi-
cimento de táticas mais adequadas à conjuntura, tivos, obstáculos e ameaças nesses 30 anos de SUS
a despeito da participação limitada de partidos não significa complacência com equívocos e des-
políticos. caminhos. Para além de fortalecer a motivação
Ao serem identificados movimentos do ca- para a luta dos que defendem o direito universal
pital que articulam dimensões econômicas, po- à saúde, a reflexão sobre estudos e perguntas po-
líticas e ideológicas no âmbito setorial, o arco de derá reforçar certas estratégias e criar novas para
alianças e a unidade a serem perseguidos pelas a preservação do SUS.
forças democráticas, populares e socialistas vão Cumpre incidir sobre a correlação de forças,
demandar instâncias organizativas de outra na- altamente desfavorável no presente, e acumular
tureza para enfrentar o poder acumulado pelos novas energias para tempos mais propícios, sem
empresários e seus representantes na sociedade e desprezar a atuação aqui e agora, com novas
nos aparelhos de Estado. formas organizativas. É esta prática política que
Portanto, unidade, agilidade e efetividade são requer o melhor da militância e convoca para a
fundamentais. A busca de formas organizativas ação em defesa do direito à saúde e do SUS. Se o
mais orgânicas pode sugerir a criação de uma Estado sabota o SUS, resta à sociedade civil lutar
secretaria executiva para que o Fórum da RSB pela RSB e por um sistema de saúde universal,
possa atuar mais prontamente na conjuntura, público, de qualidade e efetivo, cabendo ao mo-
evitando que o movimento seja atropelado ou vimento sanitário contribuir para imprimir um
dirigido pelos fatos. Assim, alguns sinais recen- caráter mais progressista à revolução passiva bra-
tes de afastamento do Conass e do Conasems em sileira.

Referências

1. Paim JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema 6. Paim JS. Reflexiones teóricas sobre sujetos de la práxis
Único de Saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(10):1927- y sujetos de la antítesis para la Reforma Sanitaria Brasi-
1953. leña. Salud Colectiva 2017; 13(4):599-610.
2. Vieira FS. Crise econômica, austeridade fiscal e saúde: 7. Testa M. Pensamento estratégico e lógica de programa-
que lições podem ser aprendidas? Brasília: Ipea; 2016. ção. O caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec,
[Nota técnica]. Abraco; 1995.
3. Monteiro MG. Trayectoria y cambios de dirección em
las políticas públicas: análisis de la reforma del sistema
sanitario brasileño (1975-2015) [tesis]. Barcelona: Uni-
versitad Autónoma de Barcelona; 2016.
4. Melo MFGC. Relações público-privadas no sistema de
saúde brasileiro [tese]. Campinas: Universidade Esta-
dual de Campinas; 2017.
5. Sestelo JAF. Planos e seguros de saúde do Brasil de 2000 Artigo apresentado em 05/01/2018
a 2015 e a dominância financeira [tese]. Rio de Janeiro: Aprovado em 30/01/2018
Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017. Versão final apresentada em 05/04/2018

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

You might also like