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http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1366
Katia Maheirie
Leandro Almir Aragon
Marcelo Felipe Bruniere
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
Neste artigo analisamos a criação estética do coletivo de RAP Arma-Zen PRN em sua potên-
cia política. Para tanto, partimos do conceito de política em Rancière e do conceito de má-
quina de guerra em Deleuze e Guattari. As informações foram produzidas por meio de duas
entrevistas coletivas realizadas com o coletivo musical, postagens do coletivo e seus mem-
bros em redes sociais, imagens de divulgação e letras de músicas. Estas informações foram
analisadas a partir da análise do discurso, com base nas informações e na bibliografia estu-
dada. A performance estética deste coletivo se dirige à invenção de um outro modo de ser
no mundo que descristaliza experiências. Por fim, encontramos a produção de uma máquina
de guerra-pacificadora que visa produzir um modo de ser que combina a potência combativa
e revolucionária da arma à potência criadora do zen.
Palavras-chave: Música; Política; Estética; Máquina de guerra
Abstract
This paper analyses the aesthetics creations of Arma-Zen PRN, a RAP group of Brazil. The
starting point is the concept of Politics in Rancière and War Machine in Deleuze and Guat-
tari. The information has been produced through two group interviews with the collective
of musicians, publications of the collective and its members in social networks, images and
lyrics. This information was then analyzed through discourse analysis, based on the infor-
mation produced and other studies. The aesthetics performance of this group is directed
towards the production of new modes of existence in the world that decrystallizes experi-
ences. Finally, we find the production of a peacemaking war machine which seeks to pro-
duce a mode of existence that combines the revolutionary power of the weapon, in Arma,
with the creative power of the Zen.
Keywords: Music; Politics; Aesthetics; War Machine
36 Maheirie, Katia; Aragon, Leandro Almir & Bruniere, Marcelo Felipe
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A produção de uma máquina de guerra na criação estética do RAP 37
A polícia é então o modo de governança que Entretanto, diz Rancière (1995/1996), não é
atribui lugares (quem pode falar o quê e on- suficiente que falem, mas que sua fala seja
de) e gerencia esses lugares, isto é, estabele- ouvida como discurso. Caso contrário, temos
ce o que o filósofo chama de partilha do sen- o dissenso, um conflito sobre a configuração
sível: a distribuição das partes entre os parti- sensível: alguém fala algo que não deveria,
cipantes e a partição entre os participantes e onde não deveria:
não participantes. Esta partilha se faz por Os manifestantes tem na rua um espetáculo e um
qualidades substantivas arbitrárias: ser ho- assunto que não tem ai seu lugar. E aos curiosos
mem ou mulher, cidadão ou estrangeiro, etc., que veem esse espetáculo, a polícia diz: vamos
mas, em especial, no que diz respeito à parti- circular, no há nada pra ver. O dissenso tem as-
sim por objetivo o que chamo o recorte do sensí-
cipação política, esta distinção se dá entre vel, a distribuição dos espaços privados e públi-
aqueles que têm posse do logos, de uma raci- cos, dos assuntos de que neles se trata ou não, e
onalidade privilegiada e aqueles que não têm, dos atores que tem ou não motivos de estar aí pa-
seja através de quaisquer mecanismos de le- ra deles se ocupar. Antes de ser um conflito de
classes ou de partidos, a política é um conflito
gitimação dessa racionalidade enquanto privi- sobre a configuração do mundo sensível na qual
legiada - desde o especialista, até o “repre- podem aparecer atores e objetos desses conflitos
sentante” eleito. A partição entre os que to- (Rancière, 1995/1996, p. 373)
mam parte e os que não tomam se faz a partir
A igualdade é esta lógica cuja eficácia reside
da fala, tomar parte na política é, eminente-
na sua capacidade de estabelecer modos de
mente, ser ouvido (ser visto, ser sentido),
subjetivação e estruturar enredos argumenta-
mas há modos de ser ouvido: ora como discur-
tivos. Dito de outro modo, a eficácia da
so, ora como ruído, o que estabelece uma dis-
igualdade reside na emergência de novos su-
tinção entre modos de existir na palavra.
jeitos de enunciação. Um exemplo deve bas-
Por isso, a igualdade das inteligências (só há tar:
uma inteligência, com diferentes manifesta- Um funcionário de manutenção tomou um avião
ções) é, segundo o filósofo, um operador lógi- num campo vizinho a Londres e, sem ter jamais
co na luta política. Esta igualdade consiste pilotado, atravessou a Mancha. É um homem de
num princípio que afirma a inexistência de cor: é-lhe proibido fazer parte do pessoal de vôo.
Essa interdição torna-se para ele um empobreci-
critérios verdadeiros capazes de fundar a dis- mento subjetivo; mas o subjetivo supera-se ime-
tinção entre inteligências superiores e inferio- diatamente na objetividade: este futuro recusado
res. Criticando a ideia de que a igualdade se- reflete-lhe o destino de sua “raça” e o racismo
ria o ponto de chegada, ou seja, de que par- dos ingleses. A revolta geral dos homens de cor
contra os colonos exprime-se nele pela recusa
timos da desigualdade para atingir a igualda- singular desta proibição. Ele afirma que um futu-
de, Rancière (1987/2011) argumenta que a ro possível aos brancos é possível a todos; esta
igualdade é o princípio sobre o qual se susten- posição política da qual não tem provavelmente
ta a desigualdade. Nas palavras do filósofo: uma consciência clara, ele a vive como obsessão
pessoal: a aviação torna-se sua possibilidade co-
A igualdade jamais vem após, como resultado a mo futuro clandestino; de fato, ele escolhe uma
ser atingido. Ela deve sempre ser colocada antes. possibilidade já reconhecida pelos colonos aos co-
A própria desigualdade social já a supõe: aquele lonizados (simplesmente porque não se pode ris-
que obedece a uma ordem deve, primeiramente, cá-la de início): a da rebelião, do risco, do es-
compreender a ordem dada e, em seguida, com- cândalo, da repressão. (Sartre, 1960/1984, pp.
preender que deve obedecê-la. (1987/2011, p. 153-154)
11)
Resguardadas as semelhanças e diferenças en-
Neste sentido, é porque a pessoa é dotada de tre Jean Paul Sartre e Jacques Rancière, inte-
palavra, que ela é capaz de compreender e, ressa-nos a narrativa. Parece-nos que o ato
portanto, é capaz de falar. Se a lógica da go- descrito por Sartre exemplifica o que viemos
vernança estabelece (a partir de qualidades discutindo sobre política. Para usar uma lin-
substantivas) quem pode falar onde e o quê, a guagem mais sartreana, este homem define-
lógica da igualdade afirma que todos e qual- se negativamente por aquilo que não lhe é
quer um pode falar. Mas, esta lógica só funci- possível: voar (assim como incontáveis outras
ona em ato (Rancière, 1995/1996) e é verifi- coisas das quais está excluído). Seu corpo é
cada sempre que aqueles que não possuem as destinado à determinado lugar no mundo pela
qualidades para tanto (na lógica policialesca) lógica policial. Este lugar possui seu campo
falam. dos possíveis e dos possíveis que lhes são im-
possíveis. Mas, este homem afirma que o des-
tino dos brancos pode ser (e neste caso o foi) gares pela transformação de identidades es-
possível a todos: ele afirma uma igualdade tabelecidas.
radical quando cruza a mancha, ao mesmo
Cabe perguntar, no escopo deste trabalho,
tempo em que denúncia duplamente a impos-
sobre a relação da política, sob a ótica de
sibilidade de fazê-lo: em primeiro lugar de-
Rancière, com a ideia de máquina de guerra
nuncia sua contingência, em segundo lugar
em Giles Deleuze e Felix Guattari
denuncia a existência desse dano, denuncia o
(1980/2001). A máquina de guerra produz um
fato de lhe impossibilitarem um possível que
agenciamento revolucionário do desejo, colo-
pode ser possível a todos. Sartre dirá: o que
cado contra os aparelhos de soberania, de
ele fazia era um escândalo emancipador. Tal-
dominação e de conservação. É um dispositivo
vez aí estejam duas palavras cujas cognatas
de bandos, nômades, multiplicidades, modos
caem muito bem à política: escândalo e
existenciais marginais, que produzem e ocu-
emancipação. A política é um ato escandalo-
pam espaços lisos dentro dos espaços estria-
so, ato de emancipação, entendida em Ran-
dos. Estes conceitos designam, em linhas ge-
cière (1987/2011) como saída de um estado
rais, dois modos de ocupar o espaço. O espaço
de minoridade.
estriado é aquele em que se organiza para
Para Rancière (1996), a política é uma ques- ocupar, a partir de uma lógica unificadora, de
tão de sujeitos, modos de subjetivação. A uma métrica das distribuições, enquanto o
subjetivação política, em síntese, é a produ- espaço liso é aquele em que se ocupa primei-
ção de uma nova capacidade coletiva de ramente, ou seja, dizem Deleuze e Guattari
enunciação, é a produção de um múltiplo, na (1980/2001, p. 54): “é uma distribuição muito
forma do nós somos, nós existimos, que trans- especial, sem partilha, num espaço sem fron-
forma identidades definidas num processo de teiras, não cercado”. A máquina de guerra,
desidentificação, de desinvestimento da rela- como a vemos, afirma a existência de um ca-
ção que estabelece um modo de existir a um os fecundo anterior à ordem e combate as
lugar de enunciação e a um modo de partici- formações totalizantes. Neste sentido, é
pação. Este processo se faz por meio de uma afirmação de uma diferença radical.
série de atos que dramatizam e verificam a
A produção de máquinas de guerra inventa
igualdade. Este processo se faz, enfim, de
novas formas de ocupar o espaço, que não
atos políticos que são atos de reconfiguração
aquelas do espaço métrico das distribuições.
de sentidos e experiências.
A máquina de guerra é tensão, descristaliza-
As diferentes formas de experiência ou, mais ção, desterritorialização. Por outro lado, a
propriamente, um sistema de formas que de- máquina de guerra não tem a guerra por ob-
termina o que se sente, um recorte dos tem- jeto, ou, pelo menos, não, como diz Friedrich
pos e dos espaços, como que se pensa, o que Nietzsche (1908/2008), a guerra de pólvora,
se vê ou escuta é compreendido por Rancière mas, a potência de pôr em questão o dado,
(2000/2009) como estética. Assim, a estética de se esgueirar entre, de emergir em qual-
não é o belo, nem o sensível em si, mas for- quer lugar como potência disruptiva. A má-
mas específicas de configuração do sensível, quina de guerra é tática, formações de guerri-
constituindo-se efetivamente na experiência lha, e não estratégia, das molaridades do Es-
do mundo que se vive e, também, em contra- tado. A tática, diz Michel de Certeau
partida, na experiência de ruptura que os (1980/2012), é um golpe do homem comum,
atos políticos fazem romper. Sendo assim, sem qualidades, num lugar que não lhe é pró-
nem toda estética é política, mas, é possível prio, golpe do tempo sobre o espaço, ali onde
afirmar que toda política é estética. o poder não existe mais, “é determinada pela
ausência de poder, assim como a estratégia é
Em síntese, pensamos o campo do político,
organizada pelo postulado de um poder”
em primeiro lugar, como uma atividade, como
(1980/2012, p. 95)
um processo e não como um sistema ou uma
substância. Em segundo lugar, como um pro- No contexto da ação política, vemos a máqui-
cesso que tem por base o conflito (entre a ló- na de guerra como um dispositivo, através do
gica da igualdade e a lógica da governança, qual, modos existenciais marginalizados criam
mas também entre regimes de sensibilidade). modos de enunciação em lugares que não lhes
Em terceiro lugar, como uma recomposição são próprios. A máquina de guerra atesta uma
dos lugares que inclui a invenção de novos lu- organização que desafia a ordem policialesca
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A produção de uma máquina de guerra na criação estética do RAP 39
usando outra expressão cara ao concretismo, se retira do mundo para alcançar sua Dhyana, o
Zen é encontrado na comunidade monástica onde
desenvolvem-se múltiplas subdivisões prismá-
mestre e discípulo partilham todo o trabalho para
ticas do conceito Arma-Zen. Diz McKlaff, um a manutenção do mosteiro - plantando arroz, jar-
dos integrantes, em uma de nossas entrevis- dinando, cozinhando, rachando lenha e mantendo
tas: limpo o local. Assim, se "Zen" é para ser traduzi-
do, o equivalente mais próximo é "iluminação",
A gente discute, a gente vive... e a gente tem mas mesmo assim o Zen não é somente ilumina-
que ter uma missão maior. O Arma-Zen nunca te- ção; é também o caminho para a sua conquista.
ve um significado próprio, se tu perguntar pra (pp. 19-20)
cada um, cada um vai dizer o que pensa. Então
assim: a gente sabe o que é ser zen, a gente sabe Maicon MLK, outro integrante, ao falar sobre
o que é uma arma. (McKlaff, entrevista, 3 de ju- a relação Arma-Zen, indica o Zen como algo a
nho de 2014)
ser despertado ou criado e que possibilita
O conceito baseia-se num saber que é discuti- controlar a Arma. Diz: “o meu caso foi esse:
do e vivido pelos membros do grupo, cuja ori- eu era uma arma e não sabia que tinha o po-
gem designa “de estudo”, entendido como o der de controlar isso, equilibrar... usar pra
estudo da cidade, da rua, da vivência, que outro meio. E é isso que eu aprendi e ensino
buscam traduzir em suas palavras. Aprender, pros outros amigos” (Maicon MLK, entrevista,
nos mostra Rancière (2008/2012), é aventu- 3 de junho de 2014). Este relato parece pro-
rar-se na floresta das coisas e dos signos e duzir uma oposição entre a Arma e o Zen, on-
traduzir essa experiência singular em uma lin- de a Arma corresponderia à violência e o Zen
guagem própria. Preferimos o termo transcri- a certa potência espiritual de controle. Mas
ar (Campos, 2013), por atestar o caráter cria- esta oposição é apenas aparente, já que, co-
tivo da produção do conceito. Os MCs do Ar- mo dizem os MCs, a Arma se faz do lado Zen e
ma-Zen transcriam suas experiências singula- vice versa.
res em suas próprias linguagens, que discutem A relação entre Arma e Zen é a de um comba-
uns com os outros e buscam transmitir através te, no sentido que Deleuze, partindo de Ni-
da música. etzsche dá ao termo, um combate-entre: “o
O conceito de Arma-Zen não poderia ser de processo pelo qual uma força se enriquece ao
outra forma. Em nossa primeira entrevista, se apossar de outras forças somando-se a elas
McKlaff, apresenta uma definição nominal do num novo conjunto, num devir” (Deleuze,
conceito: 1993/2011, p. 170). O combate, sustenta o
autor, não é um desejo de aniquilação, não
O intuito do Arma-Zen, no início, ele nasceu com
a ideia de unir, de unificar dois lados, né: o lado há negação entre a Arma e o Zen, mas a pro-
Arma e o lado Zen, no sentido de imaginação, do dução de um devir, de um agenciamento de
espírito, da natureza, do trabalho manual e tal. forças em que o combatente é o próprio cam-
[...] o que a gente fazia tinha muito isso, que ti- po do combate entre suas partes, suas forças,
nha que buscar aquele lado, o lado Zen, e do lado
Zen fazer o lado da Arma (McKlaff, entrevista, 10 que se apropriam uns dos outros sem se sinte-
de maio de 2013) tizarem. Maicon ainda diz:
Mas o que significa fazer o lado Arma a partir A gente sabia que a gente era uma arma pra soci-
edade, só que a gente não sabia que a gente ti-
do lado Zen? Allan Watts (1936/2008), um dos nha esse lado zen... outros eram zen e não sabi-
pioneiros na transcriação ocidental da tradi- am que eram uma arma, né? Outros eram uma
ção Zen, explica que a palavra Zen não possui arma e não sabiam que eram zen, que tinham es-
equivalente exato em outras línguas. A pala- se poder de controlar. (Maicon MLK, entrevista, 3
de junho de 2014)
vra deriva do chinês Ch’an, corruptela do
sânscrito Dhyana usualmente traduzida como Relação entre forças, a primeira face do con-
meditação. O autor indica que esta tradução ceito Arma-Zen designa esse combate entre
é falha, já que a meditação, no ocidente, ge- uma potência violenta de guerra - que pode
ralmente designa um estado de consciência e materializar-se tanto na criminalidade e na
reflexão profunda, enquanto na tradição io- violência, como na luta e na criação - e uma
gue designa um estado de união e realidade potência de controle, de exercício manual, de
definitiva com a natureza. Diz o autor: caminho. Maikon MLK (2014b) em explica:
Não há nada de "sobrenatural" acerca do Zen, Arma – Zen
pois ele é uma constante atitude mental que tan-
to pode ser aplicada à lavagem de roupas como à Arma - Instrumento que serve para atacar ou de-
execução de ofícios religiosos; e enquanto o iogue fender.
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A produção de uma máquina de guerra na criação estética do RAP 41
Zen - calma, tranquila, mística, contemplativa, acaba aderindo, adere o movimento. (Negro
que não se abala por nada. Rudhy, entrevista, 10 de maio de 2013)
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A produção de uma máquina de guerra na criação estética do RAP 43
ção de sua tradução: uma entre outras ver- palavras do próprio grupo. O caso de X exem-
sões. plifica a implicação e a análise do grupo a
partir do conceito Arma-Zen nesta dimensão:
Poderíamos dizer que o expectador do Arma-
de um lado a Arma pura das mãos que até en-
Zen não consome a ideia como é produzida
tão atiravam ou assaltavam, de outro a rela-
pelo grupo, mas cria sua própria versão do
ção Arma-Zen como criação, invenção e pro-
produto (Rancière, 2008/2012). Por outro la-
dução que questiona o lugar estabelecido e
do, não devemos cair na constatação niilista
tensiona a cidade em que cria. Maicon desta-
de que de nada serve a tentativa do grupo. Se
ca um diálogo com X, em que este lhe diz que
considerarmos que o objeto artístico não pos-
as pessoas estão lhe perguntando sobre X e
sui linearidade causal, não podemos conside-
comentando que está louco, e Maicon acaba
rar também que o próprio texto possua, já
defendo o direito de X ser do jeito que é, in-
que a música do grupo é também textual. En-
ventando formas outras de se apropriar da ci-
tretanto, o texto é fonte e material do con-
dade.
sumo, fonte da produção de sentidos e subje-
tividades. De onde o grupo diz: a ideia está Esta dimensão do resgate, tem como lema
disponível para quem quiser usá-la. Diz Mai- “resgatar um em cem”, sendo a “missão” que
con: norteia o trabalho do grupo, como diz Maicon.
As vezes eu escrevo um negócio que orienta na
Criando e instigando a criar, através do proje-
caminhada dele... [...] um aprende com o outro. to mais amplo, mas também resgatando cada
Eu aprendo, eu aprendo com as ideias dele e ele um individualmente, o resgatar consiste em
passa as ideias pra mim, então, essa é a nossa, um projeto específico de diálogo e de inter-
que é a maior missão, é trocar esse conhecimento
do outro conhecimento que o McKlaff tem comi-
venção pontual. Diz McKlaff:
go, com o Lucas, com as ideias que vão surgindo Estar apto a escutar a outra pessoa, ou seja... um
e fazer esse mesclado de ideias, essa mistura, fa- cara que tava pronto pra fazer um assalto e foi lá
zer esse caldeirão de ideia, fazer e ver no que e botou na cabeça dele que não, que ele queria ir
dá. (Maicon MLK, entrevista, 10 de maio de 2013) pra casa com a família... ou um cara que ia matar
o outro e tu tirou aquilo da cabeça dele... ou do
Despertar e orientar - primeiro desdobramen- cara que iria dirigir bêbado, é tudo isso aí... é
to do conceito Arma-Zen. O segundo desdo- resgatar. (McKlaff, entrevista, 3 de junho de
bramento se dá em dimensão particular: o 2014)
resgate. O grupo cita o exemplo de X: Se, por um lado, é problemática a suposição
McKlaff: Pô, o maior exemplo é o X eu dei uma de que o RAP possa competir, em termos de
volta hoje na Maloca e fui ver… Não um reflores- desejo, com o tráfico, por outro o grupo se
tamento assim, mas ele tá fazendo um… a própria
comunidade assim. Pegou uma esquina, botou uns
propõe, em primeiro lugar, a acolher aqueles
banquinho, uns pedaço de mármore quebrado e cujo desejo já se afastou do tráfico - como o
fez uma mesinha.
Maicon: é como, vou dizer pra caso de X. Neste último caso, o RAP pode
ti, a comparação é como se fosse imagina Fer- produzir momentos de reflexão em relação a
nandinho Beira Mar: você vê uma notícia agora sua situação, diríamos, de Zen, em momentos
que o Fernandinho Beira Mar não quer saber mais
nada do crime e tá lá numa avenida lá do Rio de nos quais a cumplicidade em relação ao já es-
Janeiro plantando arvorezinha, tá ligado? [...]
tabelecido e normatizado mundo do crime
McKlaff: A gente percebeu isso porque a gente toma a inteligibilidade do momento.
tava o tempo todo esperando que isso aconteces-
se, então, assim a gente consegue perceber mais Considerações Finais
isso. Só que a gente percebe que a política social
é muito maior que a partidária. Se todo mundo Buscamos explorar a potência política de um
tiver, assim, e todo mundo que eu digo é… es- coletivo nos desdobramentos de sua estética,
quecer algumas picuinhas, e arborizar a comuni-
dade tu vai vê… o cara pegou balde quebrado,
de seu articulamento e, enfim, daquilo que
decorou a parte de cima e foi lá e plantou um co- entendemos enquanto conceito central de sua
queirinho.
Maicon: Tipo mostrou que aquelas produção. Fica claro, por outro lado que não
mãos que até então atiravam ou assaltavam po- é possível encerrar a questão: o que pode a
deria fazer artes plásticas como pegar um balde, música no campo da política? Outrora, tanto
transformar um balde (McKlaff e Maicon MLK, en-
trevista, 10 de maio de 2013) movimentos de libertação, como aconteceu
no Brasil com as canções de protesto e, em
Acompanhando as comunidades, circulando alguma medida, com os tropicalistas, quanto
por elas, agindo no cotidiano, o grupo busca movimentos nacionalistas, fascistas e totalitá-
despertar o Zen naqueles que são Arma, nas rios (vejamos por exemplo a posição do Ter-
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A produção de uma máquina de guerra na criação estética do RAP 45
ceiro Reich em relação à música atonal ou a Mas o que afirma, enfim, esta máquina? A
Wagner), entenderam que a música não só possibilidade de outra forma de ser no mun-
possuía a capacidade de mover, mas mover do. Como dizíamos, a territorialidade funda-
para algo específico. Entretanto, durante este mental da produção do grupo, a localidade
artigo, não deixamos de afirmar o contrário. específica - marcada pela luta por direitos,
O que pode a música, então? pelas ocupações e pela violência dos coman-
dos do tráfico - condiciona certa forma de ser
Compreendemos o fazer musical do coletivo
no mundo, a qual o grupo se opõe. A efetivi-
pesquisado como uma prática de afirmação de
dade do processo é uma questão a ser pro-
modos existenciais em ato que se afirmam em
blematizada, onde ora se avança, ora se re-
sua igualdade radical, irreconciliável em
cua na abertura de outros possíveis. No en-
qualquer totalidade superior. Esses modos
tanto, pudemos disponibilizar alguns exem-
buscam, com isso, afirmar que existem e,
plos, como a produção das festas unificadoras
portanto, existem de fato, evidenciando, pelo
e outras ações coletivas pacificadoras, com-
fato, o direito. Buscamos encontrar no con-
bativas e potencializadoras, na afirmação
ceito de máquina de guerra uma dessas for-
constante de que se pode fazer sempre mais e
mas de afirmação.
diferente do que fizeram de nós.
A máquina de guerra que buscamos investigar
foi analisada a partir do conceito Arma-Zen.
Referências
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conceito. Em primeiro lugar, surge como o mas da poética de Dostoiévski (Tradução Paulo
combate entre relação de forças que se apro- Bezerra. 4ª ed). Rio de Janeiro: Forense Univer-
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quina semiológica e práxis de combate: infil- semana a todos "o pai retire as pedras pra gente
trar-se na linguagem, conhecer um território segui a paz e tudo que queremos aqui.Por favor
e nele produzir uma arma. Em quarto lugar, ore por nos.Os dias passam vivemos nas ruas no
esta máquina se manifesta como o devir guer- feu sem mosca cadeia nao e mel [Atualização de
reiro da palavra. Fazer da “mente uma Arma- status do Facebook]. Recuperado em:
https://www.facebook.com/pako.armazen/post
Zen que dispara palavras que guardam segre-
s/271801709641124
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direção que aponta para a ideia de “despertar
Campos, Haroldo de (2013). Haroldo de Campos -
e orientar”. O grupo busca despertar a Arma, Transcriação. São Paulo: Perspectiva.
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busca despertar, também, a potência de cada Certeau, Michel de (1980/2012). A invenção do co-
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ato, enfim, desobstruir devires democráticos. zulin.
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Paulo: Ed. 34.
Deleuze, Giles & Guattari, Felix (1980/2001). Mil ou defender. Zen - calma, tranquila, mística,
Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 5. São contemplativa, que não se abala por nada. Ima-
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OMEGA [Atualização de status do Facebook]. Re-
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Horizonte: Autêntica Editora. https://www.facebook.com/photo.php?fbid=470
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gata MLK.47 pro bill ele disse que não sabe se Alegre: Sulina.
vai usar por causa da arma estampada mas ex- Vigotski, Lev. S. (1925/1998). Psicologia da arte.
pliquei pra ele que é uma arma que dispara pa- São Paulo: Martins Fontes.
lavras ele olho pra mim e disse... "entendeu"
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– Zen Arma - Instrumento que serve para atacar
http://quadernsdepsicologia.cat
A produção de uma máquina de guerra na criação estética do RAP 47
KATIA MAHEIRIE
Kátia Maheirie é graduada em Psicologia pela UFSC, com mestrado e doutorado em Psicologia Social
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e com estágio pós doutoral na UNICAMP. É Professo-
ra Associada da Universidade Federal de Santa Catarina, no Departamento e no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia (PPGP).
DIRECCIÓN DE CONTACTO
maheirie@gmail.com
FORMATO DE CITACIÓN
Maheirie, Katia; Aragon, Leandro Almir & Bruniere, Marcelo Felipe (2017). A produção de uma
máquina de guerra na criação estética do RAP. Quaderns de Psicologia, 19(1), 35-47.
http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1366
HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 11/08/2016
1ª Revisión: 13/11/2016
Aceptado: 02/01/2017