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cena n.

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Inimigos do Teatro

Edélcio Mostaço
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
Email: hateatro33@gmail.com

Resumo Abstract

O ensaio aborda as condenações realizadas The essay focuses the censure against the-
por Tertuliano, Santo Agostinho e Rousseau ao atre as institution by Tertulian, St. Augustine
teatro enquanto instituição. and Rousseau.

Palavras-chave Keywords
Inimigos do Teatro. Tertuliano. Santo Agosti- Theatre Enemies. Tertulian.St. Augustine,
nho. Rousseau. Rousseau.
cena n. 23

Cartago “não cometerás adultério” e o “não enganarás


o próximo”, deduzindo que as representações
Nem sempre o teatro despertou simpatias enveredavam pelos mesmos pecados verificá-
ou granjeou adeptos ao longo de seu transcur- veis na vida real.
so histórico. Nos primórdios do cristianismo Em seu texto Os espetáculos (Tertuliano,
despontaram algumas vozes fazendo coro à 1974, p 100), classifica o recinto teatral como
sua condenação e, nos séculos que se segui- um “santuário de Vênus”, recordando, assim,
ram, foram elas tomadas como base para di- não apenas sua origem idólatra (já havia feito o
versas condenações da arte teatral e daqueles mesmo em relação aos jogos e ao circo), como
que a ela se dedicaram ao longo da história do também um local onde impera o vício, espesso
Ocidente. de “fumo miserável de incenso e sangue” ao
O primeiro teólogo da Igreja a invectivar qual se dirigem “dois juízes emporcalhados”: o
contra a atividade cênica foi Quintus Septimo diretor de cena e o arúspice. Ambos são toma-
Florens Tertullianus, ou apenas Tertuliano (160 dos como cultores de Baco e Vênus: o primei-
d.C.- 220 d.C.), no segundo século, um pagão ro, em razão das “numerosas libações” ali pra-
convertido e batizado em 195 em Cartago, re- ticadas e, à segunda, pela “malícia dos gestos
gião do norte da África dominada pela coloni- e dos requebros, os desbragamentos sexuais”
zação romana, provável filho de um advogado que as figuras de cena não se cansavam de
emigrado da capital, e que se tornou uma das cultuar para contentar uma plateia ávida de lu-
mais intransigentes vozes a pregarem contra bricidade. É preciso lembrar que Cartago dis-
o paganismo na República romana. Escreveu punha, à época, de numerosos locais para a
muitas obras, divididas pelos escoliastas em prática teatral que, a exemplo do que ocorria
apologéticas, polêmicas e disciplinares, en- em Roma, comportava a tragédia e a comédia,
feixando um sem número de abordagens que mas, sobretudo, a atelana e o mimo.
transitavam entre temas teológicos, vinculados Consideradas formas cênicas autóctones
à fé e à penitência, bem como à moral e aos da península itálica, sobretudo da região da
comportamentos. Ao final de sua vida aderiu à Etrúria, na Magna Grécia, a atelana e o mimo
seita montanista, uma vertente especialmente faziam dos histriões suas figuras mais desta-
sensível à decadência moral, escrevendo sobre cadas, em apresentações que não distinguiam
as mulheres e os espetáculos. Considerando a exatamente o que era dança e o que era pan-
mulher a fonte de todo pecado, tomou-a como tomima declamada em modo improvisado,
a raiz dos malefícios que conspurcam as almas não deixando de apelar para o escárnio e a
daqueles que se deixam arrastar por suas ig- sátira, sendo esse o viés que caracterizava o
nomínias. Em relação aos espetáculos, Tertu- mimo mais explicitamente. Homens e mulhe-
liano ajuntou numa mesma rubrica o circo, os res ali subiam ao palco, ao contrário do teatro
gladiadores, os jogos e o teatro, segundo ele grego, e frequentemente eram abordados para
manifestações proscritas desde as escrituras favores sexuais ou efetivamente exerciam a
sagradas quando ali se enuncia a proibição de prostituição como meio de vida.
culto aos ídolos. Sem distinguir entre realidade Quanto à cena, propriamente, Tertuliano ca-
e ficção, o autor ajunta o “não matarás” com o racteriza as figuras ali presentes como ídolos

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insuflados pelos demônios, a que chamam tregam à gesticulação efeminada”, bem como
deuses. Tal passo demanda observar que, im- conduzem à apreciação das deformidades dos
portada da cultura grega, a crença nos daimo- mimos, mais apropriadas aos prostíbulos. “Se
nes corria livre entre as práticas religiosas mais se trata de tragédias e comédias inspiradoras
prosaicas; mas numa versão decaída e con- de crimes e devassidões, inspiradoras ensan-
fundida com o maniqueísmo, levando a crer guentadas e lascivas, ímpias e desbragadas,
que maus daimones poderiam se apossar de melhor fora falar de outra coisa vil ou atroz e
um indivíduo e leva-lo a cometer atos os mais não falar de coisa nenhuma: nem falar se deve
abomináveis. Tais crenças irão, num breve fu- consentir do que é detestável fazer-se” (Tertu-
turo, se associarem com usos e doutrinas do liano, 1974, p. 109).
judaísmo e conformarem a demonologia como Sobre os atores, o autoratesta:
entendida e configurada pela teologia cristã.
os que dão e organizam os espetáculos
A seguir, Tertuliano faz observações sobre
aos cocheiros, aos comediantes, aos
as emoções provocadas pelo teatro: “toda a ginastas e gladiadores de quem se ca-
assistência a um espetáculo provoca emo- tivam e a quem os homens prostituem
o espírito e as mulheres os corpos,
ções. Onde estoura o prazer, lavra por igual a quando por eles arrastados praticam o
paixão, que é o sabor do prazer; e onde sur- que censuram, pela mesma razão por-
que os têm em grande conta, por essa
ge a paixão aí aparece também a emulação. mesma ordem os abatem e degradam
E onde há emulação, aí barafustam o furor, a e manifestamente os condenam à ig-
nomínia negando-lhes direitos cívicos,
ira, a bílis e o desespero, que levam de venci- escorraçando-os das assembleias, do
da as regras do bom proceder. “[...] Ninguém foro, do senado, da ordem equestre e
das restantes honras, ao mesmo tem-
fica de ferro frio perante a solicitação do pra- po em que os proíbem de usar certas
zer, e o afeto desregrado provoca alguma ruí- insígnias (Tertuliano, 1974, p. 113).
na”, (Tertuliano, 1974, p.106). Não é somente a
Convém lembrar, para que o trecho aci-
cena e seus atores que são visados pelo crivo
ma seja inteiramente assimilado, que desde
moralizador do padre, mas também seus efei-
o edito de Caracala, em 212, todos os envol-
tos sobre o público, preocupado com os maus
vidos com o teatro e os espetáculos em ge-
hábitos que poderiam disseminar na vida coti-
ral foram colocados na lei dainfâmia, ou seja,
diana. Pois, contemplando cenas de sexo “an-
um conjunto de limitações a que estavam su-
tinatural”, um homem poderia ir para casa com
jeitos – os citados direitos civis referidos por
a imaginação fértil e o desejo açulado - e aí
Tertuliano -, que os segregava da população
residia o perigo.
restante e que muito contribuiu para manter os
O circo, em seu gigantismo, insufla a ira e o
artistas cênicos discriminados durante quase
furor, como bem evidencia a turba barulhenta
dois mil anos. No caso da França, por exem-
e obcecada pelo sangue que ali faz apostas,
plo, essa legislação restritiva só será abolida
negociando a morte seja de cristãos seja de
com a Revolução Francesa.
gladiadores. No teatro, a sedução maior “vem
Não é difícil perceber nas palavras de Ter-
cozida com a espurcícia que escorre dos ges-
tuliano a munição argumentativa utilizada ao
tos dos atores nas atelanas, que desprezam
longo da Idade Média para excomungar os
todo respeito e pudor pelo outro sexo e se en-

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atores e aparenta-los com cultores do demô- Aparece anotado, inicialmente, o estranho


nio, indignos de serem enterrados em campos poder do palco em fazer o homem condoer-se
santos ou conhecerem a benção da extrema diante de cenas dolorosas e trágicas, repor-
unção, uma vez que eram cultores de uma pro- tando a função da compaixão: “o espectador
fissão não apenas pestilenta como amaldiçoa- anseia por sentir esse sofrimento que afinal
da. para ele constitui um prazer. Não é isso uma
Tertuliano consolidou, com sua retórica al- loucura?”, ele indaga (Agostinho, 2010, p. 45).
tissonante e coalhada de expressões que exal- Loucura que se mostra compulsiva, uma vez
tam a condenação e o expurgo, uma definitiva que induz à reincidência e torna o espectador
postura da Igreja frente aos espetáculos, ao acorrentado à cena como um louco que nela
teatro e aos atores que vai perdurar ao longo se compraz com o prazer do fictício: “disso
do tempo, assim como, ressuscitada aqui e ali, provinha meu afeto pelas emoções dolorosas,
em momentos onde o acirramento de forças só por aquelas que não me atingiam profun-
tomou a cena como a responsável pelos peca- damente, pois não gostava de sofrer com as
dos do mundo. mesmas cenas em que a vista se deleitava”
O segundo padre da Igreja a voltar-se contra (Agostinho, 2010, p. 45). Temos aqui, portanto,
o teatro foi Agostinho de Hipona (354-430), no uma economia libidinal transtornada por aquilo
quarto século, também ele um pagão conver- que Freud reconhecerá como histeria, um des-
tido ao cristianismo na mesma Cartago onde locamento de objeto que privilegia o fictício em
Tertuliano pontificara, autor de uma obra teo- detrimento do real. Se, a propósito daqueles
lógica considerada exemplar. Seu texto mais tempos primeiros, tal diagnóstico possa soar
acentuadamente canônico é Cidade de Deus, excessivo, é preciso lembrar, desde sempre,
onde defende os princípios de uma urbe cristã a função exercida pelos diversos formatos de
às voltas com as invasões bárbaras, em sua crenças quanto à satisfação de pulsões que
luta pela preservação de seus princípios mo- significam ou se associam ao prazer.
rais e teológicos. Mas é em suas Confissões Ainda que um prazer um tanto quanto mór-
(Agostinho, 2010), autobiografia onde descre- bido, pois, prossegue o bispo de Hipona,
ve sua vida desde a mais tenra infância até a “como acontece quando remexemos (uma
velhice, onde explicita o contínuo e acidentado ferida) com as unhas, este contato provocava
percurso no rumo da perfeição requerida pelo em mim a inflamação do tumor, a podridão e
verdadeiro amor a Deus. Em sua juventude, o pus repelente”. Ou seja, estamos diante da
transcorrida em Cartago e antes de sua conver- mais rematada repulsa frente à compaixão (ou
são, Agostinho conheceu todos os pecados da catarse) que o teatro costuma inspirar, numa
carne e do espírito, quando “embaciava a sua demonização de suas características – per-
pureza com o fumo infernal da luxúria” (2010, cebidas como maléficas - que atravessará os
p. 45). Frequentador assíduo dos teatros da séculos vindouros, associando o que era tão
grande cidade em sua primeira juventude, ele somente um transporte emocional com a fis-
grifa que eram “cheios de imagens das minhas gada verídica promovida pelo agulhão da las-
misérias e de alimento próprio para o fogo das cívia. Se Platão já advertira sobre esse corro-
minhas paixões” (Agostinho, 2010, p.45). sivo poder degenerescente das almas quando

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expostas à mímesis, o neoplatônico Agostinho numa república, controlada por uma oligarquia
(2010, p. 46) só fará aumentar tal repulsa: “mas religiosa cujo órgão executivo, denominado
isso, meu Deus, podia chamar-se vida? ”. Consistório, estava encarregado de executar
E, finalmente, chega-se ao trecho que en- as leis e vigiar pela moral e os bons costu-
feixa toda a condenação agostiniana à função mes. Dividida em distritos, uma comissão por
da kátharsisteatral: “em quantas iniquidades ele designada averiguava, de casa em casa,
me corrompi e a quantas curiosidades sacrí- possíveis desvios de conduta ou relaxamento
legas me entreguei, até precipitar, abandonan- de hábitos derivados da rígida doutrina criada
do-vos, nos profundos abismos da infidelidade pelo fundador. Dançar, jogar cartas, trabalhar
e no serviço enganador dos demônios a quem ou divertir-se no sábado, Dia do Senhor, con-
‘sacrificava’ as minhas maldades!” (Agostinho, sistia em crime - bem como frequentar o teatro.
2010, p. 46-47). A histeria do bispo converte- As ideias de Calvino foram coligidas nas
-se, assim, num duplo açoite, um dirigido a si Instituições da religião cristã (Calvino, 2008),
mesmo e outro a todos que trilharem o mes- francamente inspiradas pela obra de Agosti-
mo percurso. O ascetismo abriu desse modo nho de Hipona e pregavam que todos os ho-
suas veredas rumo ao futuro, não apenas con- mens são pecadores por natureza, amarrados
denando os prazeres como reafirmando as ao mal e dele não podem escapar. Razão pela
recomendações do estoicismo sobre a vida qual a penitência, as confissões frequentes e
– submissão dos desejos à determinação dos o estrito zelo de uma vida voltada às virtudes
princípios morais, a saúde da alma dependen- cristãs eram imperativos a que ninguém podia
te do culto ao deus único -, ao pietismo formu- escapar, nem mesmo aqueles que, predestina-
lado por Agostinho. Nos primórdios da cristan- dos por Deus, alcançariam a vida eterna. Nas-
dade Tertuliano e Agostinho municiaram com cido na cidade e dela tendo se afastado em
poderosos argumentos a luta contra o teatro, direção à França na idade adulta, Jean-Jac-
um terreno fértil e responsivo em seus apelos ques Rousseau estava vivendo novamente em
conjuntos quanto à administração da vida con- Genebra quando, em 1757, foi publicado, no
duzida em estrita vigilância frente aos desvios, sétimo volume da Enciclopédia, o artigo Ge-
base ética sobre a qual a igreja reformada por nebra, da autoria de d’Alembert. Nele, o autor
Martinho Lutero, após o Renascimento, erigirá não se esquivou de louvar os excelentes reló-
seus mais renitentes cânones. gios produzidos na cidade, o clima agradável
da maior parte do ano e sua biblioteca pública,
frequentada pela elegante e ilustrada burgue-
Genebra sia da cidade. Mas reclamou que a urbe não
tinha um teatro.
A Suíça alcançou sua independência em A resposta de Rousseau apareceu no ano
1499 e seus quatro cantões concordaram em seguinte e tornou-se conhecida como Carta a
possuir, cada qual, sua religião própria em d’Alembert sobre os espetáculos( Rousseau,
1531. Genebra foi assomada pelo calvinismo a s/d), um dos mais vivos libelos contra o tea-
partir de 1541, após longo e profícuo trabalho tro jamais escrito. Em certa maneira, a missi-
de Calvino na região. A cidade transformou-se va dirigia-se contra Voltaire, uma vez que esse

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tentara, em anos anteriores, e por diversas ve- ver no espetáculo? Justamente o que gostaria
zes, instituir um teatro na cidade que, como se de encontrar em todos os corações – lições de
sabe, dista poucos quilômetros da divisa com virtude para o público, do qual julga ser exce-
a França. No escrito, Rousseau inicia seus ar- ção, e pessoas que tudo imolam ao dever, en-
gumentos defendendo os princípios religiosos quanto dele nada se exige”. E sobre a tragédia:
e morais preconizados pelo Consistório, jus- “ouço dizer que a tragédia leva, pelo terror, à
tificando porquê não existir uma casa de es- piedade. Seja, mas que piedade é essa? Uma
petáculos na cidade. Inicialmente, porque os emoção passageira e vã, que não dura mais
espetáculos constituem uma distração, e os que a ilusão que a produziu; um resto de sen-
homens de bem não necessitam desse tipo de timento natural, logo abafado pelas paixões;
lazer. Em seguida, porque a atividade teatral uma piedade estéril, que satisfaz com algumas
deve procurar um prazer próprio à índole de lágrimas e nunca produziu o menor ato de hu-
cada povo e, o que se observa, é que cada manidade” (Rousseau, s/d, p. 352).
cidade cultiva um tipo de teatro distinto, se- Nas páginas seguintes o filósofo examina
gundo suas inclinações. Dizer que o teatro é em pormenores vários textos teatrais de dife-
uma escola de convivência social é bastante rentes épocas e autores, com o intuito de ave-
relativo, nos argumentos do autor: “gostaria riguar suas possíveis qualidades, sempre de
muito que me mostrassem, claramente, sem um ponto de vista moral, em relação à plateia.
palavrório, quais os meios que o teatro poderia Descontente com essa amostragem textual,
utilizar para causar-nos sentimentos que não seu desagrado se prolonga sobre a materia-
possuímos e fazer com que julguemos os se- lidade do evento artístico, as atuações, os fi-
res morais de modo diverso daquele que faze- gurinos e os cenários, que podem acarretar a
mos por nós mesmos” (Rousseau, s/d, p. 351). emulação dos espectadores em adotá-los em
Sua postura se adequa, desse modo, àque- sua vida cotidiana, desequilibrando a vida sim-
la mesma que João Calvino havia consagrado ples e frugal que se desfrutava em Genebra. E
em suas Instituições da Religião Cristã respeito isso tudo induz à corrupção, à desagregação
das representações em geral: “Se certamente dos valores, à dissipação de hábitos sadios e
não é lícito representar a Deus em uma forma em acordo com a natureza humana: “porque
visível, muito menos será adorar tal imagem tendo menos modelos, cada um tira mais de
como se fosse Deus ou adorar a Deus nela. si mesmo e em tudo coloca mais de seu”, [...]
Resta, portanto, que seja pintado ou esculpi- “porque vendo-se menos, se imagina mais e,
do aquilo que os olhos são capazes de ver; a finalmente, porque, menos instigando o tem-
majestade de Deus, que está muito acima do po, se tem mais oportunidade para desenvol-
sentido dos olhos, não deve ser corrompida ver e digerir as próprias ideias” (Rousseau, s/d,
por imagens indecorosas” (2008, p. 105), deli- p. 379). Ou seja, como ele resume, uma vida
mitando assim, para qualquer criação artística, simplória convém mais ao espírito gregário e
um horizonte inteiramente adstrito ao realismo favorece o devotamento à família.
e mesmo ao naturalismo da visibilidade. Esse apego à vida simples, à transparência
A disposição álacre de Rousseau prossegue das relações sociais, é o vértice sobre o qual
e, sobre a comédia, ele pergunta: “o que vai repousa a vontade geral, aquela força originá-

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ria que mantêm e sustenta o sistema político (Rousseau, s/d, p. 377, grifo meu). Jacques
na pequena república: “a soberania não pode Derrida (1973, p. 372) não deixou incólume tal
ser representada, pela mesma razão por que contrafação e dispara: “o que Rousseau crí-
não pode ser alienada; consiste essencialmen- tica, em última análise, não é o conteúdo do
te na vontade geral e a vontade absolutamen- espetáculo, o sentido por ele re-presentado,
te não se representa. É ela mesma ou é outra, embora também o critique: é a re-presentação
não há meio termo”, figura no Contrato Social mesma. Exatamente como na ordem política, a
(Rousseau, 1978, pp. 107-108). Uma afirma- ameaça tem a forma do representante”.
ção como essa contrasta, violentamente, com A seguir, a Carta fixa uma diferença radical
o regime da polis grega, o paradigma mais entre o orador ou o pregador e o ator:
invocado por Rousseau para sustentar seus
quando o orador se apresenta, é para
argumentos, ela que foi uma democracia que
falar e não para dar-se em espetá-
instituiu o teatro como um de seus mais des- culo; ele representa unicamente a si
tacados produtos artísticos e um dos pilaresde mesmo, desempenha somente o seu
papel, só fala em seu próprio nome”
sustentação de seu regime. Na mesma linha [...] “mas um ator em cena, exibindo
de raciocínio, cabe destacar o desagrado do sentimentos outros que não os seus,
dizendo unicamente o que lhe fazem
genebrino em relação ao representante e ao dizer, representando frequentemen-
representado. No mesmo capítulo do Contrato te um ser quimérico, destrói-se por
assim dizer, anula-se em seu herói e,
Social, ele já anotara: “[...] a pessoa do último caso reste ainda alguma coisa dele
cidadão é tão sagrada e inviolável quanto a do nesse esquecimento de homem, será
para servir ao divertimento dos espec-
primeiro magistrado, pois onde se encontra o tadores (Rousseau, s/d, p. 395).
representado não mais existe o representante”
(Rousseau, 1978, p. 106); e, a seguir: “a ideia O que o genebrino abomina, portanto, não
de representantes é moderna” (Rousseau, é apenas a dissipação moral que o teatro pos-
idem). sa ensejar enquanto instituição fictícia, mas,
É contra o representante, portanto, que tra- sobretudo, a própria noção de representação,
balha o discurso de Rousseau, esse mal mo- seja no âmbito da assembleia política, seja no
derno que ameaça e pode fazer ruir a institui- âmbito da cena, incapaz de suportar aquilo
ção da soberania da pequena república; o que que ela acarreta enquanto desdobramento,
nos ajuda a entender até onde sua fúria contra referência ou jogo. Ele emula, com outras pa-
o teatro – o próprio mesmo da representação lavras, o mesmo que Platão já condenara em
e do representante – almeja alcançar. Na se- sua feição filosófica e Agostinho reiterara em
quência da Carta a d”Alembert, pode-se ler: sua feição teológica.
“além desses efeitos do teatro relativos às coi- Prosseguindo suas considerações sobre a
sas representadas, há outros não menos ne- profissão de ator, Rousseau é eloquente: “uma
cessários, que se referem diretamente à cena profissão na qual o indivíduo se entrega à re-
e aos personagens representantes; e é a estes presentação a troco de dinheiro, submete-se à
que os genebrinos já citados atribuem o gosto ignomínia e às afrontas que se adquire o direito
pelo luxo, pelo adorno e pela dissipação, cuja de lhe fazer e, publicamente, coloca à venda a
introdução entre nós eles temem com razão” sua pessoa. Desafio qualquer homem sincero

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a dizer se, no fundo de sua alma, não sente que ga mousiké1 volta aqui a fornecer adubo ao
existe alguma coisa de servil e baixo nesse trá- imaginário rousseauniano, uma vez que essa
fico de si mesmo” (Rousseau, s/d, p. 394), fa- partilha de energias em torno de atividades
zendo eco, ainda uma vez, àquelas longínquas coletivistas encontra na festa – e mais es-
reprimendas encetadas por Tertuliano e Agos- pecificamente no baile -, todo seu potencial
tinho, agora refinadas, todavia, pelo crivo mais para manter o povo unido, disposto e robusto
esclarecido do iluminismo. Ainda que reconhe- quando entregue às danças de convivência.
ça que o ator não é um impostor, não deixa Mas sua imaginação vai ainda mais longe co-
de anotar que o cultivo do hábito da impostura roando esse sonho produtivista, ao indagar:
pode apoderar-se de seu caráter, fazendo com “por que, baseando-nos no modelo dos prê-
que “a tentação de agir mal aumenta com faci- mios militares, não fundamos outros prêmios
lidade e impõe-se que os comediantes sejam de ginástica, para a luta, para a corrida, para
mais virtuosos do que os outros homens, caso o disco e para os vários exercícios do cor-
não sejam mais corrompidos” (Rousseau, s/d, po?” (Rousseau, s/d, p. 429), descortinando
p. 395). assim, nos primórdios da modernidade, o ca-
A existência de espetáculos, enfim, pode- minho do desporto olímpico como sólida ve-
ria transtornar todo o cotidiano da cidade: as reda para o mens sana in corpore sano. Com
mulheres gostarão de apresentar suas melho- muita certeza, todos os estrategos de regi-
res roupas, os homens perderão seu contato mes autoritários posteriores aproveitaram tais
fraterno nas estalagens, e todos renunciarão à sugestões do autor de A Nova Heloísa para
vida simples em torno dos círculos de amigos. incluírem, junto à educação das populações,
Estão as pequenas repúblicas, portanto, des- atividades desportivas que insuflassem uma
tinadas a jamais possuírem espetáculos? Não, coesa emulação patriótica.
responde ele, uma vez que “vós mesmos da- Dentre outras iniciativas festivas ao ar livre,
reis um espetáculo, o mais digno que ele pos- embaladas pela música e bailes, Rousseau sa-
sa iluminar”[...] - “fincai no meio de uma praça lienta que aquelas destinadas aos jovens nu-
uma estaca coroada de flores, reuni aí o povo e bentes seriam privilegiadas, como ocasiões
tereis uma festa. Fazei melhor ainda; transfor- de saudável regozijo e sem os percalços dos
mai os espectadores em espetáculo; tornai-os encontros secretos e perigosos, uma vez que
atores, fazei com que cada um se veja, se ame “a alegria inocente gosta de evaporar-se em
nos outros, a fim de que todos terminem, as- pleno dia, mas o vício é amigo das trevas”. E,
sim mais unidos” (Rousseau, s/d, p. 428). para culminar seu espartano projeto paidético,
Com tal solução, Rousseau faz reviver no assevera: “ofereço as festas da Lacedemônia
século XVIII aquele mesmo espírito platôni- como modelo das que desejaria existissem en-
co que fizera de Esparta uma cidade modelo, tre nós. Considero-as recomendáveis não so-
não apenas pela frugalidade de seus hábitos mente pelo seu objeto, mas também pela sim-
de vida como, notadamente, a sisuda mo-
ralidade que nela intermediava a totalidade 1 Mousiké é o termo grego original para designar a dança, o
canto e a melodia que, emanados conjuntamente, não se se-
das relações interpessoais. O estro da anti- paravam no âmbito daquela cultura. Somente muitos séculos
depois o termo passou a designar exclusivamente a melodia,
e daí, tão somente a música.

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plicidade: sem pompa, sem luxo, sem aparato, de lastrear o pensamento da totalidade do pré-
tudo nelas se alimentaria, com um encanto se- -romantismo alemão. Foi por esta via filosófi-
creto de patriotismo que as tornaria interessan- ca que seus espartanos princípios ideológicos
tes, de um certo espírito marcial conveniente a agostinianos/calvinistas encontraram foros de
homens livres” (Rousseau, s/d, p. 435). ontologia ou antropologia social, ensejando
No juízo de Jean Starobinski (1991, p. 129), uma reforma da sociedade cujas bases éticas
“a festa campestre, precisamente, oferece às e estéticas foram nutridas pelo mais rematado
belas almas um espetáculo que simula o re- ascetismo e pela mítica pureza existencial.
torno à inocência primeira”, num claro paralelo A Carta a d’Alembert sobre os espetáculos,
entre esse ideal comunitário tido como natural porém, deve ser tomada pelo que é: um libe-
e um estado civil anterior ao contrato social. É lo contra o teatro, não um elogio da festa. E
essa transparência nas relações humanas que como ressaltado, na esteira de uma condena-
a posterior divisão social vai fazer desaparecer, ção apoiada em toda uma teologia cristã que
impondo, sob o formato de obstáculos, dificul- alijou o teatro como um antro de imoralidade,
dades muitas vezes insuperáveis aos verdadei- de falta de verdade e território de corrupção.
ros encontros. Se, de um lado, o conceito de Evidenciando, ainda uma vez, que prazer e as-
festa enquanto um espetáculo total imantou o cetismo se encontram não apenas em polos
sonho cênico de muitos homens de teatro em distais em relação à estética como irreconcili-
séculos posteriores, ele simplificou e esmae- áveis, de um ponto de vista do conhecimento.
ceu, por outro, os verdadeiros contornos das
interações humanas quando no contexto das
Referências
relações de classe, tornando-o mera quimera.
O conjunto da obra rousseauniana apresen- CALVINO, João. A Instituição da Religião Cris-
ta farta capilaridade entre si e se institui, en- tã, trad. Carlos Eduardo Oliveira et al., tomo I,
quanto totalidade, num corpo doutrinal dirigido São Paulo, Unesp, 2008.
contra o absolutismo. Os termos conceituais DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo,
da Carta a d’Alembert sobre os espetáculos já Perspectiva, 1973.
haviam sido evocados, em modo diverso, tan-
to no Contrato Social como nas novelas Emílio ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a d’ Alem-
bert sobre os espetáculos, In: ______. Obras
e A Nova Heloisa, nessa última dissipando num Escolhidas, v. II,trad. Lourdes Santos Macha-
contexto literário e sob o álibi de personagens do, Porto Alegre: Globo, s/d.
as máximas que, nos demais escritos, são
apresentadas sem intermediação. Ao pensar o _______. O contrato social. trad. Lourdes
Santos Machado,São Paulo, Abril Cultural (Os
homem novo, uma síntese de nítido teor refor-
Pensadores), 1978.
mado frente ao decadente mundo aristocráti-
co e católico que sustentava o ancien règime, TERTULIANO. A moda feminina; Os espetácu-
Rousseau disseminou seus preceitos burgue- los, nota bibliográfica e introdução de António
Montes Moreira; tradução e notas de Fernan-
ses através de todos os meios que lhe foram
do Melro e João Maia, Lisboa, Verbo, 1974.
possíveis, numa cruzada ideológica que influiu,
como se sabe, sobre Kant, Hegel e Marx, além

11 Mostaço // Inimigos do Teatro


Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 3-12, set./dez. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 23

SANTO AGOSTINHO. As Confissões, trad.


J. Oliveira Santos, A. Ambrósio de Pina, São
Paulo, Edições Folha de São Paulo, 2010.

STAROBINSKI, Jean. A transparência e o obs-


táculo, trad. Maria Lúcia Machado, São Paulo,
Cia. das Letras, 1991.

Recebido: 25/06/2017
Aprovado: 25/08/2017

12 Mostaço // Inimigos do Teatro


Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 3-12, set./dez. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

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