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Não obstante o problema que as enfermidades que cursavam sem lesões teciduais
manifestas acarretavam, como teoria das febres que instala toda uma discussão sobre o
que viria a ser a manifestação essencial da doença e o local onde se instala a causa do
mal, sua 'sede' [acrescentar nota: Foucault dedica um capítulo inteiro ao tema das febres.
Cf. 'A crise das febres', in Ref. completa.], o paradigma fundado por Bichat saiu
triunfante, de modo que apenas recentemente as ciências médicas puderam adotar delas
um certo distanciamento crítico.
o campo psiquiátrico
A relação estabelecida entre a doença e a lesão por ela provocada é a de uma verdadeira
'identidade', e não apenas a de uma causa e o efeito dela decorrente ["a lesão é a doença,
é tudo o que pode haver de real e verdadeiramente objetivo na doença" (p. 25)].
Os sintomas são apenas seus efeitos [carregados que são, das expressões subjetivas do
paciente, tanto quanto da interpretação do médico que as recolhe]. A análise patológica
deve, pois, tratar esta possibilidade de engano.
Tal organicismo, embora venha a sofrer algumas restrições, permanecerá como ideal da
prática médica - o que impõe à psiquiatria as maiores dificuldades, posto que teve de
encontrar meios para se adequar ao postulado que a precede enquanto prática médica de
orientação científica. Eis aí, observa Simanke (200), o motivo de que, por tanto tempo, a
psiquiatria figurou como uma medicina das 'aparências'.
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a concepção de processo
É uma necessidade clínica que impulsiona essa discussão, na medida em que o saber
médico está subordinado a uma prática (o 'otimismo médico' que resulta da crença de que
se possa encontrar uma medida eficaz no tratamento da enfermidade, cf. Canguilhem).
Ambas as concepções de doença, têm a doença como uma "situação polêmica" (seja frente
a ação de um agente invasor, a carência a se reestabelecer ou um conflito do organismo
consigo mesmo) (p. 27).
Ora, se a concepção dinamica da doença é capaz de tolerar o fato de que se possa passar
de um a outro estado - do patológico ao normal - mediante um processo intrínseco a ação
do próprio organismo; a distinção qualitativa que deriva da concepção da doença como
situação polêmica impõe um desafio à concepção 'ontológica', uma vez que se espera do
médico a reversão de um a outro estado. Isto se configura como problema na medida em
que o próprio preceito do empirismo reside no pricípio segundo o qual o conhecimento
da natureza não pode opor-se às suas leis.
Ora, se toda ciência empírica da natureza compreende como princípio que uma mudança
de estado qualitativa obedece a variação de princípios quantitativos, como por exemplo
no caso das mudanças de estado físico da matéria (uma variação da energia cinética), o
médico se encontraria, nesse caso, diante de um dilema que o conduz aos próprios
fundamentos da ciência empírica.
É nesse sentido que uma concepção quantitativa permite encontrar uma solução para o
problema. O esvaziamento da diferença qualitativa entre os estados normal e patológico,
resulta em que seja possível, mediante o conhecimento das variações fisiológicas,
depreender os meios para se atingir a cura pela regulação das variantes [a contribuição de
Broussais, que seria elevada a categoria de princípio por Comte - é interessante notar que
o título reservado a sua obra por Broussais, deixa subentender sua pretensão de alcance:
"De l'irritation et de la folie" (nota, p. 28).
Vale notar que a investigação médica, propriamente dita, - aquela que visa os mecanismos
biológicos que interessam à patologia - adequa-se perfeitamente a uma concepção
quantitativa. Assim se instala, segundo nota Simanke (2002), uma dissociação
'epistemológica' entre a clínica (prática médica) e a pesquisa (laboratorial), haja visto que
a prática clínica adequa-se melhor a uma concepção qualitativa e dinâmica da doença,
uma vez que seu objeto segue sendo o sujeito doente e a evolução de sua enfermidade.
Desse modo, o médico pode operar com um saber oriundo de outro lugar, por outro
método, visando a cura, se contradizer a natureza empírica de sua prática.
Cf. Canguilhem (citado por Simanke, p. 32), numa passagem em que comenta (citando
Renan) o fato de que a psicologia valendo do princípío quantiativo pôde definir o campo
privilegiado de sua investigação, na medida em que os processos que interessam a essa
disciplina, como o sonho, a loucura, o delírio, o sonambulismo, a alucinação, são
fenômenos que, no estano normal, estão mais ou menos apagados, ou subsistem numa
forma tênue, ao passo que nas crises, os mesmos aparecem aumentados,
quantitativamente exacerbados e, portanto, aptos ao manejo e à observação de forma mais
sensível. [ed. fr. p. 15-16];
É a inviabilidade de uma ciência empírica dos fatos mentais que conduz a psiquiatria a
um organicismo que reune as qualidades do mecanicismo, do atomismo e,
consequentemente, do reducionismo - No dizer de Ey, citado por Simanke (p. 35), tais
qualidades se distribuem em medicina psiquiátrica entre: teorias semiológicas atomistas
(os disturbios psíquicos são correlacionados com lesões orgânicas localizáveis); uma
etiologia mecânica (a causa, situada no nível de uma lesão positivável no nível do
organismo, tem por efeitos as alterações patológicas observáveis) e uma nosografia das
entidades clínicas (tal como se concebeu na medicina de inspiração orgânica). Como nota
Simanke, ao aderir ao sistema organicista, a psiquiatria não faz senão somar aos impasses
que lhe são próprios em sua tentativa de se estabelecer no domínio das ciências, aqueles
derivados do própria orientação organicista (pp. 35-36).
O nó, portanto, que une a medicina e uma concepção dualista derivada do 'cartesianismo'
no domínio da psiquiatria – dualismo inerente a seu objeto: a 'doença mental' – torna
possível a produção de uma "doutrina das entidades clínicas", cujo argumento central
Simanke (2002) resume nestes termos: "a medicina lida com doenças; ora, uma doença
não pode, por definição, ser do espírito; portanto, só pode ser do corpo" (p. 38). Desso
modo, a 'doença mental' não é senão uma enfermidade orgânica que resulta em
manifestações no nível subjetivo (o 'epifenomenismo' que se deixa ler, em nossos dias,
através da teorias informáticas aplicadas às neurosciências, onde: cabe a psiquiatria
ocupar-se das alterações de 'software' que decorrem 'diretamente' de um mal
funcionamento localizável no 'hardware' onde se instalam seus mecanismos gerais).
Dessa forma, a psiquiatria pôde preservar os princípíos de uma prática que se dita
'científica', na medida em que preserva, no campo da patologia que lhe interessa, uma
orientação calçada nos termos da patologia orgânica (mecanicismo, atomismo,
ontologização).
Dessa maneira, é notável que Lacan dedique a primeira seção do capítulo inicial de sua
tese em psiquiatria - 'Formação histórica do grupo das psicoses paranóicas' - a uma revisão
das distinções clássicas entre o grupo das então chamadas 'demencias' e o grupo das
'psicoses', colocando a ênfase de sua fina análise no segundo. Tampouco é ocasional,
adverte Simanke (p. 38), a 'eleição' que o jovem psiquiatra Lacan faz da 'psicose
paranóica', afecção mais expressiva do grupo das 'psicoses'. A 'folie raisonnante' -
denominação, por si só, intrigante, se oferta como paradigma de um campo psiquiátrico
diametralmente oposto aquele que se erige em torno da paralisia geral progressiva de
Bayle.
[Simanke (2002) faz uma observação 'interessante', em uma nota das páginas 39-40, ao
discutir as relações que Lacan estabelece com dois nomes de relevo na psiquiatria de sua
época: Jaspers e Clérambault. A doutrina de Clérambault, cuja orientação é lida
frequentemente nos termos de um estrito organicismo, será alvo de interesse de Lacan já
em sua tese de medicina. Todavia, o que se destaca quanto a leitura lacaniana de
Clérambault, se dá num momento posterior, quando retoma a noção de 'automatisme
mentale', vinculando-a a noção de 'automatisme de répétition', cuja origem remonta a
uma leitura do 'Wiederholungszwang' (compulsão a repetição) freudiano, sob as lentes de
uma combinatória do significante (em termos estruturalistas). Tal apropriação reflete,
dentre outras coisas, uma notável capacidade de reordenação conceitual, ao extrair da
noção cujo valor paradigmático se encontra do organicismo de seu 'mestre' em psiquiatria,
o 'elemento' que lhe interessa destacar em sua visada de inspiração estruturalista. Se num
primeiro momento, Lacan critica o organodinamismo de Clérambault valendo-se da
psicopatologia fenomenológica de Jaspers, ao realizar, sob a influência do organon
estruturalista, a crítica do primado do sentido, a reflexão lacaniana afasta-se das doutrinas
de Jaspers, reabilitando o automatismo mental de Clérambault no seio de sua estruturação
do 'fenômeno psicótico’. ]
É precisamente em torno deste novo dilema que se verifica o surgimento de duas vias
privilegiadas de sua resolução: a organogênese - herdeira da explicação do fenômeno
mental patológico enquanto manifestação 'epifenômenica' - e a psicogênese - que se torna
o sistema de referência principal das teorias compreensivas e fenomenológicas. Assim
definem-se dois extremos: uma incorporação imedianta da psiquiatria ao campo das
ciências médicas, na verte organogenética [que implica, em alguma medida, o abandono
de seu domínio específico, o do mental], e sua 'dossolução' numa espécie de psicologia
geral, a psicogênese [o que implicaria, por sua vez, a perda de sua inserção imediata no
campo próprio a medicina].
Tal problema é incontornável, haja vista a especificidade de seu objeto que reúne
fenômenos que se exportam a ambos os campos. A derivação dessa classificação
'genérica' que distingue as teorias organogenéticas e psicogenéticas, se dá, observa
Simanke, na forma de uma constante e interminável 'reedição' do dilema fundamental que
as atravessa. O autor recupera de Henry Ey [Cf. La position de la psychiatrie dans le cadre
des sciences médicales], a denominação dada pelo célebre psiquiatra ao problema
fundamental da psiquiatria: "dilema psiquiatricida".
Há, vale notar, uma dependência necessária da psiquiatria em relação à psicologia, pois,
ainda que aquela se valha da mais estreitra orientação organicista, resta-lhe ainda a tarefa
de descrever os 'epifenomenos' que se apresentam enquanto 'dados clínicos' da patologia
mental, os quais são indispensáveis para o estabelecimento do diagnóstico e para a eleição
do método terapêutico. Dessa forma, instaura-se, como observa Simanke (p. 41) uma
relação inextirpável entre psicologia e psiquiatria [tanto quanto aquele se verifica entre a
medicina orgânica e a fisiologia]. Somados ao problemas que importam à psiquiatria de
orientação organicista - no que tange ao problemático correlato anatomo-clinico dos
trantornos mentais - estão os dilemas próprios à disciplina psicológica, da qual depende
para o exercício de sua prática clínica [Tal como Foucault demarca primorosamente em
'doença mental e psicologia' quando diz que a psicologia, nunca pôde oferecer à
psiquiatria o mesma justificativa que a fisiologia pudera dar a medicina orgânica; vale
lembrar, como nota Simanke, que essa 'sobrecarga' que se acrescenta aos dilemas da
psiquiatria dada a sua relação com a primeira, não fez senão intensificar o peso e a
relevância das teorias restritas do organicismo.
Não será difícil entao supor que, se uma psicologia geral dos epifenômenos já constitui,
por si mesma, um dilema a acrescentar à conta da psiquiatria, a psicologia que deriva da
chamada escola 'psicogenética' acarreta um 'superfaturamento' do problema [Vale notar,
como observa Simanke, que os esforços de Lacan não passaram ao largo desse problema,
posto que, em sua tese, o obstinado psiquiatra Lacan, procura traçar as linhas gerais de
uma 'ciência da personalidade', ao elencar as vantagens de uma psicogênese, um tal
ciência deveria oferecer o solo concreto e seguro à psiquiatria enquanto disciplina
médica.]
Por outro lado, uma abordagem exclusivamente psicogenética põe a perder a própria
noção de explicação, situando em seu lugar a via que se abre para uma compreensão dos
fenômenos psíquicos segundo a experiência particular de um sujeito. Adere-se então a
uma vertente compreensiva, na medida em que se desloca toda possibilidade de
explicação para um plano causal o qual não é acessível à compreensão [É nestes termos
que veremos como a clássica distinção jaspersiana entre 'explicar' e 'compreender' irá
transportar, sob a forma de um consentimento pouco esclarecido, qualquer possiblidade
de explicação do 'processo' psicótico para o plano de uma causalidade orgânica destituída
de sentido, verdadeira demissão do pensamento];
É importante notar que as teorias psicogenéticas ganham validade à partir de sua aplicação
ao terreno restrito das psicoses, afecções cujo correlato anatomo-patológico não é
diretamente positivável - até nossos dias, diga-se de passagem ,vê-se uma profusão
heterogênea de hipóteses sistêmicas em termos de circuitos de neurotransmissores, de
regulação cortical da funções psíquicas globais, até o extremo de teorias que visam
localizar disposições genéticas latentes para o desenvolvimento do quadro
esquizofrênico. Contudo, como observa Simanke (p. 43), a maior parte dos teóricos não
avançou senão com extrema prudência na delimitação da complementareidade entre
fatores orgânicos e determinantes psíquicos na constituição dos quadros psicóticos. Isso
se explica, sobremaneira, se considerarmos que os chamados 'sintomas negativos'
(aqueles relacionados ao embotamento do humor, aos estados confusionais, aos efeitos
de comprometimento cognitivo, etc.) se prestavam à explicações em termos de lesão ou
comprometimento orgânico, com maior veracidade que os chamados 'sintomas positivos'
(as alucinações e o delírio) - que, no entanto, eram essenciais ao diagnóstico diferencial
das psicoses e permaneceram como eventos contingentes de fundo inexplicado.
Simanke (p. 43) destaca, que é precisamente o caráter parcial ou incompleto da explicação
que uma orientação rigorosamente organicista comporta que levará adiante a pesquisa
pelos determinantes psicológicos dos fenômenos mentais patológicos, o que implica em
'revigorar' gradativamente a problemática noção de 'doença mental'. [Simanke observa
ainda que as rupturas - se as há - que a tese lacaniana instaura no interior do domínio
propriamente psiquiátrico, implicam numa reorintenção de sua diretrizes que se alinha
harmoniosamente com esse processo de evolução e baliza do problema do objeto proprio
a esse campo. - Nota (p. 43-44): Lacan, no momento que redigiu sua tese em psiquiatria,
não havia ainda atentado (completamente) para o fato de que uma defesa irrestrita da
'psicogênese' implicaria em radicar o problema da psicose fora do domínio psiquiátrico
enquanto campo médico. É num momento posterior que ele resolverá tais problemas a
partir de uma articulação propriamente psicanalítica. Henry Ey, ao contrário, está certo
do risco de uma 'psicogênese' ao traçar seu 'dilema psiquiatricida': "Ora, renunciando a
ser médico, ele se torna vingador das ofensas, diretor de consciência, psico-higienista,
orientador profissional, psicotécnico, quando não se engaja em especulações filosóficas,
em busca do absoluto, fazendo malabarismos com as palavras, brincando com bolhas de
sabão e colocando etiquetas nas quais ele mal crê, pois 'seu reino não é deste mundo'. Ora,
enfim, ele se desvia de tantas dificuldades e mistérios para se refugiar em um diletantismo
delicado e desabusado" (Cf. La position de la psychiatrie [...], p. 73).].
Ora, é de notar, como acrescenta Baud (2003), que demandar a biologia uma explicação
para a etiologia da esquizofrenia, ou seja, de dar-lhe um sentido fisiopatológico, apenas
pode configurar uma medida razoável se o quadro nosológico adotado é, a priori,
compatível com este tipo de pesquisa - etiopatogênica - bem como, se tal quadro se alinha
bem aos métodos e conceitos operacionais deste campo. De modo que, qualquer que seja
a entidade clínica em psiquiatria, implica-se na pesquisa de suas bases fisiológicas que a
entidade a ser explicada esteja minimamente assentada como categoria claramente
delimitada e tenha, consequentemente, uma definição precisa. Imperativo epistemológico
no campo da etiopatogenia, que encontra, diante do problema da psicose - e,
especificadamente, a esquizofrenia - o risco ingente de uma circularidade lógica: "si la
defition de la schizophrénie est fondée sur la clinique et la psychopathologie, rien
n'assure que cette pertinence classificatrice rencontre celle de ses hypothétiques
fondements biologiques, qui pourraient demeurer inaccessibles" (Baud, 2003, p. 2). Por
outro lado, se partirmos por adotar uma difinição segundo os princípios imperativos de
uma pesquisa fisiopatológica - como seria o caso do esforço, em nossos dias, de
empreender uma nosologia de bases genéticas - é a própria função organizadora da clínica
- enquanto domínio que se delimita como prática junto a entidade que é a doença - que é
posta em questão. É nesse sentido que o Baud (2003) localiza, ao longo da história
conceitual da esquizofrenia, uma "crise permanente" (p. 3). De modo que, o avanço
contemporâneo das pesquisas neurobiológicas sobre a esquizofrenia, e na medida em que
os modelos teóricos delas decorrentes se tornam cada vez mais precisos e,
consecutivamente, mais limitados a seu domínio de aplicação, implica que a entidade
nosológica que a psiquiatria delimitou em torno do termo 'esquizofrenia' seja renunciada
em proveito de um domínio restrito de investigação, onde o caráter sintético da disciplina
nosológica se vê substituído por 'micro-teorias' restritas à modelos de pesquisa
standardizados, como é o caso da conhecida hipótese dopaminérgica [Cf. Patrick Baud,
2003, 'Contribution a l'histoire du concept de schizophrenie' [Thèse]].
Uma abordagem dos problemas relativos a psicose, colhidos no seio de uma psiquiatria
em busca do estalecimento de seu objeto deve, necessariamente, passar pela noção de
'esquizofrenia', cuja formulação, em alguma medida, se confunde com a próprio
surgimento do quadro das 'psicoses'. [Simanke acrescenta ainda, p. 44, que é dentro dos
quadros da esquizofrenia que se definirá, posteriormente, as delimitações da chamada
'psicose paranóica'.] - Simanke adota aqui como referência principal o artigo de Minkoski,
'Minkowski E. La genèse de la notion de schizophrénie et ses caractères essentiels.
L'Évolution Psychiatrique, 1925; 1:193–236.'; não pudemos recuperar o artigo referido,
mas cf. Linda Goyet, 'Lacan lecteur de Minkowski: l'approche structurale';
o que permite a Krapelin distinguir a categoria de dementia praecox das demais afecções
que cursavam com o surgimento de um estado degenerativo terminal foi precisamente o
fato de que, nas primeira, a lersão ou comprometimento orgânico correlato (como na
paralisia geral onde se localiza um processo de aracnoidite crônica subsistente) não se
manifesta com suficiente evidência. O prognóstico obtido em quadros clínicos distintos
de degeneração demencial (as verdadeiras demências) é, ademais, menos favorável do
que aquele observado em casos de dementia praecox. De modo que restava por determinar
um mecanismo que desse conta do fundo degenerativo terminal das afecções agrupadas,
tanto quanto daquilo que distinguia a dementia praecox: seu início precoce, sua evolução
insidiosa [Lacan discorda veementemente da descrição de Kraepelin no que diz respeito
ao caráter insidioso da enfermidade, haja visto que o delírio, segundo o entendimento
lacaniano, comporta sempre fases, 'febres', rupturas mais ou menos demarcáveis no curso
da doença; cf. p. 27] e a fatalidade de seu estado terminal.
Kraepelin é então levado a 'ensaiar', demarca Simanke (p. 46), em sua descrição clínica,
o "quadro psíquico geral desta enfermidade", onde se destacam dois grandes grupos de
distúrbios: a deterioração afetiva e a perda da capacidade de síntese (unidade), ambos
remetendo aos processos propriamente ideativos e suas articulações, o que faz com que
surja como pano de fundo a noção de 'unidade da personalidade', na qual os processos
descritos possam ganhar 'sentido' [o que se assemelha, não casualmente, como demarca
Simanke, com o projeto lacaniano da tese, haja vista que o que está em jogo aqui é um
tendência nascente no que diz respeito a compreensão da categoria das psicoses].
A síntese de Krapelin passa a exigir assim um sólida teoria da personalidade bem como
de seus fatores psíquicos determinantes, ainda por esboçar.
É preciso notar, contudo, que a a noção de patologia, domínio cuja especificidade foi
requerida pela 'ciência médica', é, sob o risco de perder tal especificidade, alheia a uma
descrição rigorosamente psicológica, da qual, ao mesmo, qualquer explicação médica que
se pretenda 'completa' no campo das psicoses não pode prescindir. Nisto reside, destaca
Simanke (2002), o incômodo maior instaurado pela 'psicose', enquanto "matriz de todas
as entidades psiquiátricas que não se reduzem a moléstias simplesmente degenerativas"
(p. 47) [Simanke, acrescenta pertinentemente, que Lacan, ao tomar partido do
psicogeneticismo, encontra-se nesse contexto, embora tenha a intenção de propor uma
'terceira via', numa espécie de 'beco-sem-saída', do qual só poderá sair a partir de um
investimento psicanalítico do problema, que lhe permitirá então tomar o problema das
psicoses, sem que tenha de operar teoricamente com o conceito de 'doença'].
Uma determinação da parte pelo todo, como nota Simanke (p. 49), se situa na contramão
da causalidade organicista. Mas a noção de reação, com que se pôde lograr o avanço das
hipóteses psicogenéticas, em termos de reação global ao elemento patológico primário,
não prescinde de uma fundamentação calçada na etiologia orgânica do quadro, cuja
fenomenologia passaria a ser lida em termos de reação psíquica a um dano orgnânico
primário. Nesse sentido, se o organodinamismo de Henry Ey, previa a possibilidade de
assumir um pressuposto organicista sem recair no reducionismo mecanicista, o que, em
alguma medida, contorna a indisposição inerente à ideia de uma psicogênese no campo
propriamente dito da medicina, tal proposição, que será alvo de duras críticas de Lacan
em 'Propos sur la causalité psychique', não altera essencialmente o pressuposto latente da
organogênese.
[É importante observar, vide nota. 36, p. 51, que Freud, empenhado em propor uma
concepção psicológica e histórica das afecções psiquicas, visando uma terapêutica
psicológica causal, instaura com a noção de 'conflito', a indissociabilidade entre os
aspectos intelectual e afetivo dos fenômenos mórbidos. O que rompe com as concepções
clássicas da psiquiatria orgânica nas quais o distúrbio pode possuir primariamente um
caráter ideativo, sendo os aspectos afetivos secundários ou decorrentes daquele. Este
ponto será objeto de preocupação de Lacan, haja visto que o privilégio dado por ele ao
caráter intelectual nas 'psicoses', vai na direção de uma hipótese similar àquela da
psiquiatria orgânica.]
Mas é a análise propriamente dita do 'conteúdo' da psicose que irá desembocar numa tese
de cunho psicogênico. Assim como conceito de 'spaltung' é aplicado para explicar o
déficit associativo de idéias na esquizofrenia [e ao mesmo tempo justifica a existência de
uma lesão orgânica], o conteúdo 'positivo' do quadro [delírio] exige a noção freudo-
junguiana de 'complexo' que engloba tanto o caráter deficitário quanto as consequências
reativas no nível psicológico [Cf. Minkowski, p. 229].
Para que avance mais adiante numa hipótese psicogenética, Lacan deverá,
posteriormente, propor uma teoria da gênese social da personalidade, já esboçada em sua
tese. Todavia aí, o lugar dos fatores orgânicos resta ambíguo: a dependência social do
sujeito permanece restria aos determinantes dos fenômenos da personalidade. Somente
depois, com as formulações em torno do estádio do espelho e dos complexos familiares,
tal concepção ganhará, segundo lê Simanke, um caráter "ontogenético": "o indivíduo
humano se constitui essencialmente como um ser social, esse tecido de relações
interiorizado nos momentos cruciais de sua história, passsando a forma sua própria
substância. Isso porque ele carece, originariamente, de uma determinação biológica
eficaz" (p. 55). [Lacan apoia-se sobretudo sobre as teorias do embriologista Louis Bolk
sobre a prematuração essencial do homem, em contraste com o mundo animal: Cf.
Ogilvie, 'La formation du concept du sujet, p. 110: "o ser humano como um ser inacabado;
isso que, em outras espécies, pertence ao estágio transitório do feto estabilizou-se no
homem, de tal maneira que a hominização aparece como uma fetalização; na linha de
Darwin, ele mostra, portanto, que a estrutura social, na medida em que ela encontra esta
'neotenia' pela permanência da família, faz parte das condições naturais de existência e de
reprodução do ser humano"].
O 'vazio' orgânico, a que se refere Minkowski, será tomado como dado originário, de
modo que os 'complexos' que vêm preenchê-lo coincidem, como observa Simanke (2002),
com o próprio nascimento do sujeito humano, cuja constituição, como observará Lacan
mais tarde, se dá pela linguagem. A opção lacaniana pela 'compreensão', na Tese,
coincidem então com suas pretensões materialistas, na medida em que "é a propria
realidade biológica do homem que priva o orgânico de sua eficácia explicativa" (p. 56).
Nenhuma lesão poderá, doravante, se sobrepôr a este 'vazio' originário, ao menos de modo
a assumir sobredeterminação sobre qualquer processo, seja ele patológico ou normal.
Vale ressaltar que, para Simanke, esta reflexão 'errática' que vai da clínica à metafísica,
passando pela discussão epistemológica, encontrará, como ponto de origem, questões
relativas a clínica psiquiátrica da paranóia, enquanto afecção especialmente refratária às
teses organicistas. A Tese lacaniana conduzirá a conceitualização da paranóia como
'fenômeno de conhecimento', o que permite a Lacan aproximar - e quase identificar -
reflexão clínica e epistemológica.
Ao firmar a tese sobre as relações entre psicose e personalidade, Lacan visa, em primeiro
lugar, refutar a noção de que a primeira apenas 'herdaria' os traços mórbidos da segunda,
os quais, no fenomeno especificadamente patológico se apresentariam de um modo
'exacerbado'. Uma tal concepção, contrária, por princípio, a uma conceituação da doença
como 'entidade clínica' (de valor ontológico), tende a tomar os fenômenos patológicos
como manifestação 'hipertrofiada' de aspectos mórbidos já presentes num caráter
intrinsecamente 'mórbido' (vê-se o teor eminentemente moral de tal concepção), recaindo,
portanto, nos termos de uma relação quantitativa entre o normal e o patológico. Tal
concepçao é incompatível com a noção 'estrutural' da patologia: "se a estrutura mórbida
não é mais, a rigor, um distúrbio da personalidade, mas toda uma personalidade distinta
das consideradas normais, esta diferença só pode ser pensada como qualitativa, mesmo
porque, por aí, vai-se a passos largos em direção a uma relativização dos conceitos de
'norma' e 'realidade', à qual se atribui geralmente uma função normativa, que deixam de
ser o ponto fixo a partir do qual se demarca normalidade e patologia" (p. 73).
Cf. p. 59 [Ed. fr.] da tese de Lacan: "Eis aqui uma gênese que nos remete ao núcleo das
funções da personalidade: conflitos vitais, elaboração íntima destes conflitos, reações
sociais";
É importante notar, adeverte Simanke (2002, p. 72) como em sua tese, Lacan, irá localizar
marginalmente nas concepções de Kraepelin sobre a paranóia uma alusão à situação
social como fator determinante da conformação do quadro mórbido. Ponto de interesse
que soma a uma virtude da descrição Kraepeleriana que é a de deslocar a análise dos
conteúdos do delírio - que aos olhos de Lacan, não é mais que uma espécie de 'truísmo',
haja vista que tais conteúdos somente poderiam vir da experiência interna do enfermo -
para o estrito ponto de vista 'clínico' do fenômeno.
Toda essa disussão resulta, como remarca Simanke (2002) na conclusão de que a chamada
'constituição paranóica' é insuficiente para explicar a psicose, não obstante corresponda a
uma entidade clínica, cujas manifestação requerem ainda ser elucidadas. É nesse sentido
que Lacan opera outro 'tour de route', ao voltar-se para as concepções oridundas da escola
alemã, na qual o acento da questão é posto sobre os chamados 'fatores reacionais'.
Lacan se dirige, então, à Kretschmer, pois, ao que lhe parece, interessa a teoria
kretschmeriana explicar, embora seu conceito de 'caráter' tenha um teor claramente
organicista, as manifestações do delírio em termos 'psicogênicos, ou seja, vigora aqui uma
preocupação com a 'causa', não estando circunscrita a análise à evolução e caracterização
sintomática do quadro (p. 77).
Como observa Simanke (2002), se Lacan não abandona, neste momento [o da tese] o
fundamento orgânico da psicose e da personalidade - embora remoto - é porque ainda não
dispõe de um argumento biológico capaz de ultrapassá-lo; o que se tornará possível a
partir da incorporação de formulações ‘hesitantemente’ psicanalíticas que seguem a tese.
[Ao contrário da orientação fenomenológica e compreensiva de Jaspers que, pela
instauração da categoria de 'processo', decreta 'ad principium', a causalidade orgânica
indeterminada da psicose como categoria não tematizável e destituída de sentido, espécie
de édito ao qual subjaz uma 'demissão do pensamento'];
Como observa Simanke (2002, p. 78): "essa estrutura em que consiste o caráter dito
'sensitivo' "compreende-se por si mesma" (Kretschmer), com o que se faz ligação direta
com as 'relações de compreensão' (Jaspers), impedindo que se possa considerá-lo como
uma mera disposiçao constitucional, mas sim "uma personalidade em toda a sua
complexidade" (Lacan, apud Simanke, [tese, ed. fr]: p. 85).
Assim o 'acontecimento' que se demarca na etiologia das psicoses é tomado como uma
'Erlebnis' (experiência, termo de conotação fenomenológica), original e determinante, ao
mesmo tempo em que aponta para a insuficiência do sujeito. Aqui Simanke, demarca, a
referência a 'vivência da falta', concebida como determinante na etiologia das psicoses
[desde as concepções estritamente organicistas] e que ganhará no seminário dedicado por
Lacan a temática das psicoses, sua maior importância. Em nota da página 79, Simanke
destaca ainda que é nestes termos que Lacan falará da falta de um 'significante primordial'
na constituição simbólica do sujeito. Ele o faz, ajunta Simanke, tomando em consideração
um artigo de Hernard sobre o 'universo mórbido da falta'. Contudo, é preciso acrescentar
que, no seminário sobre as psicoses, a falta já dispõe de um alcance aumentado e se refere
a constituição total do sujeito.
O esforço de Lacan será então o de retirar a noção de 'falta' do domínio estrito da lesão
orgânica ["à uma falta orgânica nunca corresponde, de modo estável, uma falta no
psíquico" (p. 79)], para transportá-la ao plano determinante das 'psicoses' e do próprio
'sujeito'.
O que se destaca, para Simanke, neste percurso exaustivo de Lacan pelos autores alemães
e franceses é seu intento patente de 'esvaziar' a noção de constituição do caráter paranóico,
para o que concorre a própria ambiguidade presente na atuação de tais fatores
constitucionais na eclosão da psicose. Desse modo, os fatores orgânicos constitutivos são
transpostos à categoria de 'hipóteses', sendo o 'material concreto' das análises revisitadas
por Lacan, o estudo das evoluções de caso, ou seja, sua soberana 'abordagem clínica'.
Nesse sentido, Lacan retorna [conforme cita Simanke transcrevendo a tese] as "analises
francesas do automatismo psicológico na gênese das psicoses paranóicas" (tese, ef. p.
126). Vale salientar, ainda com Simanke, que a noção de 'automatismo' atribuída a
Clérambault é a 'pedra de toque' do organicismo francês, de modo que a crítica dirigida a
este movimento implica em recusar - para Simanke, de um modo um tanto quanto 'a priori'
- a determinação orgânica dos automatismos, para considerá-los sob o ponto de vista
clínico como 'fenômenos intelectuais', ["descolados de sua base orgânica" (p. 80-81).].
A estratégia de Lacan, que visa dar uma determinação positiva aos fenomenos sem recair
num objetivismo orgânico, é partir da "ambiguidade fundamental do termo automático"
(T. p. 128), para pensar o automatismo - que reune uma imensa variedade de fatos clínicos
observáveis - como fenômeno concebível segundo o caráter 'reativo' [daí a importância
para Lacan dos fatores reacionais] da personalidade total, operação que seria capaz de dar
'sentido' àquele: "ele [Lacan] pretende inaugurar uma abordagem do automatismo -
característica irrecusável das psicoses, desde um ponto de vista descritivo - que escape ao
elementarismo crônico das leituras organicistas: a ascenção ao primeiro plano da
referência à personalidade implica uma explicação da parte pelo todo, e não o contrário,
esperando Lacan poder purgar, assim, as análises não-reducionistas que passa a revisar
dos resquícios atomísticos que possam ainda conter; essas análises, que se atém em geral
aos fatos clínicos, poderão fornecer, então, mais um argumento contra a hipótese
constitucional" (p. 81).
É válido notar que Lacan nutre uma espécie de 'ogeriza' às concepções energéticas
[mesmo aquela de Freud no Projeto], por nelas indentificar uma espécie de 'tendência
biologizante'; isto se traduz posteriormente, lembra Simanke (p. 82), no esforço lacaniano
de ler a 'Besetzungen' como métafora em termos de lógica significante [na tese Lacan
aborda o conceito de 'libido' enquanto operador teórico, remarca Simanke].
Mas aqui, para Simanke, a noção de processo de Jaspers assumi outra característica
essencial: trata-se de uma ruptura completamente distinta daquela causada por uma lesão
orgânica, que implica sempre numa desagregação do todo [Cf. a noção de 'processo' em
Jaspers e a retomada que dele faz Lacan em sua tese]. Segundo Simanke, o processo
psíquico implicando numa ruptura distinta daquela causada pelo processo orgânico é o
que permite a Lacan "equacionar o problema da continuidade ou descontinuidade entre
personalidade pré-mórbida e a psicose" (p. 84). Isto porque o processo psíquico,
instaurado na eclosão da psicose, explicaria o surgimento de uma nova personalidade e
preservaria, ao mesmo tempo, a significação patológica desse fato, "ao introduzir uma
nova realidade psíqucia que é apenas parcialmente compreensível em termos
fenomenológicos" (p. 83). Além do que, "essa nova realidade [que o processo instaura]
está intimamente vinculada a um evento vivido, que pode ser considerado determinante
e inscrito numa relação causal com a modificação ocorrida" [aqui Simanke lê na
apropriação lacaniana da noção 'processo psíquico' uma propriedade particular: a 'nova
realidade' que o processo instaura "está intimamente vinculada a um evento vivido"
(idem). Cabe verificar em que medida isso se dá em Jaspers, posto que partimos da
'hipótese' de que o processo é justamente algo que não se deixa compreender e que,
portanto, não poderia estar vinculado a estrutura do vivido [em termos de
desenvolvimento], sendo assim ligado a uma causalidade orgânica destituída de sentido.
A leitura que Simanke faz do uso lacaniano dessa categoria é diametralmente oposta: o
processo, justamente por se distinguir da ruptura causada por uma lesão orgânica, é o que
teria permitido a Lacan se valer dele em sua tese. Cabe perguntar em que medida Lacan
relê ou redireciona, como lhe é característico, o conceito jaspersiano de 'processo'].
Prossegue Simanke, dizendo que a nova realidade realidade introduzida pelo processo
psiquico, pôde ser lida por Lacan como intimamente vinculada ao evento vivido,
determinante e inscrito numa relação 'causal' com a alteração psicótica [surgimento de
uma personalidade delirante]. Desse modo, para Simanke leitor de Lacan, por sua vez,
leior de Jaspers, "o conceito de processo complementa o de reação que, sozinha, sempre
pode ser recortada do todo, considerada isoladamente e, portanto, tornada redutível ao
evento desencadeante em sua determinação material" (p. 83). E continua: "o processo, ao
contrário, parte dessa crise localizada e se desdobra numa série de reações encadeadas
que, na verdade, constituem um novo desenvolvimento, conduzindo à formação da
personalidade mórbida" (idem). Assim, o conceito de processo recuperado por Lacan em
Jaspers, na leitura de Simanke: "introduz uma descontinuidade apta, ao mesmo tempo, a
afastar a hipótese constitucional e a justificar o caráter patológico atribuído à nova
situação, sem apelar, no entanto, a um dado orgânico [ou seja, o processo não apelaria a
um dado orgânico, concepção radicalmente oposta àquela que consta em nossa hipótese],
que só poderia produzir um estado desagregativo, o único que uma visada reducionista
seria capaz de explicar" (pp. 83-84).
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