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Paidéia

ISSN: 0103-863X
paideia@usp.br
Universidade de São Paulo
Brasil

Neris de Queiroz, Norma Lucia; Albuquerque Maciel, Diva; Uchôa Branco, Angela
Brincadeira e desenvolvimento infantil: um olhar sociocultural construtivista
Paidéia, vol. 16, núm. 34, agosto, 2006, pp. 169-179
Universidade de São Paulo
Ribeirão Preto, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=305423754005

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169
Paidéia, 2006, 16(34), 169-179

BRINCADEIRA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL: UM OLHAR SOCIOCULTURAL


CONSTRUTIVISTA1
Norma Lucia Neris de Queiroz
Diva Albuquerque Maciel1
Angela Uchôa Branco
Universidade de Brasília
Resumo: Como e por que as crianças brincam? Qual o significado desta atividade em cada cultura?
Estas questões da temática da brincadeira e sua relevância para a compreensão científica do desenvolvimento
infantil são discutidas neste estudo. Analisa-se o conceito da atividade de brincar a partir de diferentes autores,
privilegiando quem a vê como socialmente construída. Aborda-se a importância da brincadeira do faz-de-conta
como atividade que promove a representação e a metarepresentação no desenvolvimento da criança. Final-
mente reflete-se sobre a brincadeira no contexto pedagógico vivenciado pelas crianças em instituições de
educação infantil, o papel do professor no desenvolvimento e educação infantil.
Palavras-chave: brincadeira; abordagem sociocultural; desenvolvimento infantil; educação infantil.

PLAY AND CHILD DEVELOPMENT: A SOCIOCULTURAL


CONSTRUCTIVIST APPROACH
Abstract: How and why do children play? What does such activity means in different cultures? These
issues are discussed in this present paper, which stresses its relevance for the scientific understanding of child
development. The concept of play according to different theorists is analyzed; especially those that conceive
play as socially constructed activity. It is verified the role of pretend-play as an activity of representation and
metarepresentation along child development. Finally on discusse how such theoretical ideas can be translated
into educational practices within the contexts of child care and preschool settings, stressing the role of teacher
in promoting child development and education.
Key words: play; sociocultural approach; child development; early childhood education.

Introdução gram a condição humana (Andrensen, 2005; Branco,


Em grande parte das sociedades contemporâ- 2005).
neas, a infância é marcada pelo brincar, que faz parte Para a maioria dos grupos sociais, a brincadei-
de práticas culturais típicas, mesmo que esteja muito ra é consagrada como atividade essencial ao desen-
reduzida face à demanda do trabalho infantil que ain- volvimento infantil. Historicamente, ela como lúdico
da se insere no cotidiano dos segmentos sociais de sempre esteve presente na educação infantil, único
baixa renda. A brincadeira permite à criança vivenciar nível de ensino que a escola deu passaporte livre,
o lúdico e descobrir-se a si mesma, apreender a rea- aberto à iniciativa, criatividade, inovação por parte
lidade, tornando-se capaz de desenvolver seu poten- dos seus protagonistas (Lucariello, 1995). Com o ad-
cial criativo (Siaulys, 2005). Nesta perspectiva, as que vento de pesquisas sobre o desenvolvimento huma-
brincam aprendem a significar o pensamento dos par-
no, observou-se que o ato de brincar conquistou mais
ceiros por meio da metacognição, típica dos proces-
espaço, tanto no âmbito familiar, quanto no educacio-
sos simbólicos que promovem o desenvolvimento da
cognição (Kishimoto, 2002) e de dimensões que inte- nal; no Referencial Curricular Nacional para a Edu-
cação Infantil (1998), a brincadeira está colocada
1
Recebido em 23/06/06 e aceito para publicação em 20/10/06.
2
Endereço para correspondência: Diva Albuquerque Maciel, como um dos princípios fundamentais, defendida
LABMIS, Programa de Pós-graduação em Psicologia em como um direito, uma forma particular de expressão,
Desenvolvimento Humano e Saúde – PED/IP – UnB, Brasilia- DF,
E-mail: diva@unb.br pensamento, interação e comunicação entre as cri-
170 Norma Lucia Neris de Queiroz

anças. Assim, a brincadeira é cada vez mais entendi- afirma que ela é desenvolvida pela criança para seu
da como atividade que, além de promover o desen- prazer e recreação, mas também permite a ela interagir
volvimento global das crianças, incentiva a interação com pais, adultos e coetâneos, bem como explorar o
entre os pares, a resolução construtiva de conflitos, a meio ambiente.
formação de um cidadão crítico e reflexivo (Branco, Como a criança é um ser em desenvolvimen-
2005; DeVries, 2003; DeVries & Zan, 1998; Tobin, to, sua brincadeira vai se estruturando com base no
Wu & Davidson, 1989; Vygotsky, 1984, 1987). que é capaz de fazer em cada momento. Isto é, ela
Hoje, pode-se afirmar que já foi superado par- aos seis meses e aos três anos de idade tem possibi-
te do equívoco, de que o conteúdo imaginário do brin- lidades diferentes de expressão, comunicação e rela-
quedo determinava a brincadeira da criança. Segun- cionamento com o ambiente sociocultural no qual se
do Benjamin (1984), encontra inserida. Ao longo do desenvolvimento, por-
“a criança quer puxar alguma coisa, torna-se tanto, as crianças vão construindo novas e diferentes
cavalo, quer brincar com areia e torna-se pa- competências, no contexto das práticas sociais, que
deiro, quer esconder-se, torna-se ladrão ou guar- irão lhes permitir compreender e atuar de forma mais
da e alguns instrumentos do brincar arcaico ampla no mundo.
desprezam toda a máscara imaginária (na épo- A brincadeira das crianças evolui mais nos seis
ca, possivelmente vinculados a rituais): a bola, primeiros anos de vida do que em qualquer outra fase
o arco, a roda de penas e o papagaio, autênti-
do desenvolvimento humano e neste período, se estrutu-
cos brinquedos, tanto mais autênticos quanto
ra de forma bem diferente de como a compreenderam
menos o parecem ao adulto.” (pp. 76-77).
teóricos interessados na temática (Brougère, 1998). A
Para o autor, quando a criança brinca, além de partir da brincadeira, a criança constroi sua experiência
conjugar materiais heterogêneos (pedra, areia, ma- de se relacionar com o mundo de maneira ativa, vivencia
deira e papel), ela faz construções sofisticadas da experiências de tomadas de decisões. Em um jogo qual-
realidade e desenvolve seu potencial criativo, trans- quer, ela pode optar por brincar ou não, o que é caracte-
forma a função dos objetos para atender seus dese- rística importante da brincadeira, pois oportuniza o de-
jos. Assim, um pedaço de madeira pode virar um ca- senvolvimento da autonomia, criatividade e responsabi-
valo; com areia, ela faz bolos, doces para sua festa lidade quanto a suas próprias ações.
de aniversário imaginária; e, ainda, cadeiras se trans- O termo cultura é entendido aqui a partir das
formam em trem, em que ela tem a função de condu- formulações teóricas de Valsiner (2000), para quem a
to, imitando o adulto (Benjamin, 2002). cultura não se refere apenas a um grupo de indivíduos
Neste trabalho, pretende-se olhar a temática que compartilham características semelhantes, mas
da brincadeira enfatizando três aspectos: primeiro deve ser compreendida como mediação semiótica, que
analisar-se-á o conceito da atividade de brincar a partir integra o sistema psicológico individual e o universo
de autores que a vêem como construída social e cul- social das crianças dela participantes. É no contexto
turalmente; segundo, será destacada a importância da cultura que se dá a construção social, de significa-
do faz-de-conta para o desenvolvimento da criança dos, com base nas tradições, idéias e valores do grupo
pequena; e, por fim será vista a brincadeira no con- cultural que cria e recria padrões de participação, dan-
texto pedagógico vivenciado por crianças em institui- do origem ao desenvolvimento de típicas categorias de
ções de educação infantil, com a intenção de orientar pensamento e de recursos de expressão.
a atuação de professores deste nível de ensino.
Fein (Spodek & Saracho, 1998) afirma que é
Conceito da Atividade de Brincar muito “difícil definir a brincadeira, mas, em certo sen-
“A brincadeira é uma atividade que a criança tido, ela se auto-define” (p. 210). A preocupação em
começa desde seu nascimento no âmbito familiar” conceituar o que é a brincadeira não é apenas dos
(Kishimoto, 2002, p. 139) e continua com seus pares. educadores, mas está na pauta de outros profissio-
Inicialmente, ela não tem objetivo educativo ou de nais, dentre eles psicólogos, filósofos, historiadores e
aprendizagem pré-definido. A maioria dos autores antropólogos.
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil 171

No ‘Ciclo de Debates sobre o Brincar’1 , Car- duplo referencial semântico, um formado pelos sis-
valho, Salles, Guimarães e Debortoli (2005), obser- temas construídos ao longo da história social e cul-
varam a diversidade de discursos e concepções do tural dos povos, e o outro formado pela experiência
ato de brincar. Examinando essa questão, Spodek e pessoal e social, evocada em cada ação ou verbali-
Saracho (1998) apontam que a dificuldade em se che- zação do sujeito.
gar a uma definição consensual sobre a brincadeira Para Vygotsky (1998), a criança nasce em um
advém da falta de critérios para se classificar uma meio cultural repleto de significações social e histori-
atividade como tal; assim, em alguns contextos ou camente produzidas, definidas e codificadas, que são
momentos uma atividade pode ser considerada brin- constantemente ressignificadas e apropriadas pelos
cadeira, e deixar de sê-lo em outros, o que depende sujeitos em relação, constituindo-se, assim, em moto-
da relação que se estabelece com a situação, do sig- res do desenvolvimento. Neste sentido, o desenvolvi-
nificado que assume para quem brinca. mento humano para ele se distancia da forma como é
Vygotsky (1998), um dos representantes mais entendido por outras teorias psicológicas, por ser vis-
importantes da psicologia histórico-cultural, partiu do to como um processo cultural que ocorre necessaria-
princípio que o sujeito se constitui nas relações com mente mediado por um outro social, no contexto da
os outros, por meio de atividades caracteristicamente própria cultura, forjando-se os processos psicológi-
humanas, que são mediadas por ferramentas técni- cos superiores, sendo a psique humana, nesta pers-
cas e semióticas. Nesta perspectiva, a brincadeira pectiva, essencialmente social.
infantil assume uma posição privilegiada para a aná- Os processos psicológicos superiores para
lise do processo de constituição do sujeito; r Vygotsky (1987) são constituídos
.ompendo com a visão tradicional de que ela é (...) pelos de domínio dos meios externos do
atividade natural de satisfação de instintos infantis, o desenvolvimento cultural e do pensamento: o
autor apresenta o brincar como uma atividade em que, idioma, a escrita, o cálculo, o desenho, bem
tanto os significados social e historicamente produzi- como pelas funções psíquicas superiores espe-
dos são construídos, quanto novos podem ali emergir. ciais, aquelas não limitadas nem determina-
A brincadeira e o jogo de faz-de-conta seriam consi- das de nenhuma forma precisa e que têm sido
derados como espaços de construção de conhecimen- denominadas pela psicologia tradicional com
tos pelas crianças, na medida em que os significados os nomes de atenção voluntária, memória ló-
que ali transitam são apropriados por elas de forma gica e formação de conceitos (p. 32).
específica. O autor afirma, ainda, que o desenvolvimento
Vygotsky (1998), quando discute em sua teo- humano é um processo dialético, marcado por etapas
ria a gênese e o desenvolvimento do psiquismo hu- qualitativamente diferentes e determinadas pelas ati-
mano, destaca que o processo de significação é ela- vidades mediadas. O homem, enquanto sujeito é ca-
borado por meio da atividade em contextos sociais paz de transformar sua própria história e a da huma-
específicos; o que é interiorizado não é a ‘realidade nidade, uma vez que por seu intermédio muda o con-
em si mesma’ (conceito já ultrapassado na perspecti- texto social em que se insere, ao mesmo tempo em
va socio-construcionista), mas o que esta significa que é modificado.
tanto para os sujeitos em relação, quanto para cada Assim, o que caracteriza a atividade humana é
um em particular. Este movimento de interiorização o emprego de instrumentos, signos ou ferramentas,
transformadora das significações não se dá de ma- que lhe dão um caráter mediado. Entretanto, instru-
neira passiva nem direta, pois o sujeito reelabora, im- mentos e signos são coisas diferentes; os primeiros
primindo sentidos privados ao significado comparti- influenciam a ação humana sobre a atividade e são
lhado na cultura. Nesse processo ele se apropria do externamente orientados. Já os segundos não modifi-
signo em sua função de significação, observando seu cam em nada o objeto da atividade, mas se constitu-
1
Universidade Federal de Minas Gerais,em 2003 e 2004,publicado
em em ferramenta interna dirigida ao controle do in-
no livro Brincares, em 2005, divíduo, sendo orientados internamente.
172 Norma Lucia Neris de Queiroz

Desta maneira, os objetos com os quais a cri- no jogo de faz-de-conta, que assume um papel cen-
ança se relaciona são significados em sua cultura e a tral no desenvolvimento da aquisição da linguagem e
relação estabelecida com eles se modifica à medida das habilidades de solução de problemas por elas
em que a ela se desenvolve. Em um primeiro mo- (Meira, 2003).
mento esta relação é marcada pela predominância Vygotsky (1998) definiu a zona de desenvolvi-
de sentidos convencionais, característicos da cultura mento proximal (ZPD) como:
em que está inserida; o objeto, de certa forma, diz
(...) a distância entre o nível de desenvolvi-
para a criança como deve agir. Com o passar do
mento real, que se costuma determinar através
tempo, de modo gradativo, a relação entre objeto sig- da solução independente de problemas, e o
nificado e ação se altera, tendo a brincadeira um lu- nível de desenvolvimento potencial, determi-
gar de destaque nessa mudança. nado através da solução de problemas sob a
A importância do brincar para o desenvolvi- orientação de um adulto ou em colaboração
mento infantil reside no fato de esta atividade contri- com os companheiros mais capazes (p. 97).
buir para a mudança na relação da criança com os
A brincadeira é, assim, a realização das ten-
objetos, pois estes perdem sua força determinadora
dências que não podem ser imediatamente satisfei-
na brincadeira. “A criança vê um objeto, mas age de
tas. Esses elementos da situação imaginária consti-
maneira diferente em relação ao que vê. Assim, é
tuirão parte da atmosfera emocional do próprio brin-
alcançada uma condição que começa a agir indepen-
quedo. Nesse sentido, a brincadeira representa o fun-
dentemente daquilo que vê.” (Vygotsky, 1998, p. 127).
cionamento da criança na zona proximal e portanto,
Na brincadeira, a criança pode dar outros sen- promove o desenvolvimento infantil (Vygotsky, 1998).
tidos aos objetos e jogos, seja a partir de sua própria Entretanto, Vygotsky chama a atenção quando afir-
ação ou imaginação, seja na trama de relações que ma que definir “o brinquedo como uma atividade que
estabelece com os amigos com os quais produz no- dá prazer à criança, é incorreto” (p. 105), porque para
vos sentidos e os compartilha (Cerisara, 2002).
ele, muitas atividades dão à criança prazeres mais
A brincadeira é de fundamental importância intensos que a brincadeira: por exemplo, uma chupe-
para o desenvolvimento infantil na medida em que a ta para um bebê mesmo que isso não leve à saciação
criança pode transformar e produzir novos significa- da fome. Ele destaca, ainda, que há brincadeiras em
dos. Em situações dela bem pequena, bastante esti- que a própria atividade não é tão agradável, como as
mulada, é possível observar que rompe com a rela- que só agradam às crianças (entre cinco e seis anos
ção de subordinação ao objeto, atribuindo-lhe um novo de idade) se elas considerarem o resultado interes-
significado, o que expressa seu caráter ativo, no cur- sante. Os jogos esportivos podem ser outro exemplo
so de seu próprio desenvolvimento. (não apenas os esportes atléticos, mas os que têm
Para Vygotsky (1998), a criação de situações como regra, ganhadores e perdedores). Estes são
imaginárias na brincadeira surge da tensão entre o freqüentemente acompanhados de desprazer para a
indivíduo e a sociedade e a brincadeira libera a crian- criança que não alcança o resultado favorável, isto é,
ça das amarras da realidade imediata, dando-lhe opor- aquela que perde a partida.
tunidade para controlar uma situação existente Assim, o prazer não pode ser visto como uma
(Cerisara, 2002). As crianças usam objetos para re- característica definidora da brincadeira (Cerisara,
presentar coisas diferentes do que realmente são: 2002). Entretanto, não se deve ignorá-lo, pois ela pre-
pedrinhas de vários tamanhos podem ser alimentos enche necessidades da criança e cria incentivos para
diversos na brincadeira de casinha, pedaços de ma- colocá-la em ação, que é de fundamental importân-
deira de tamanhos variados podem representar dife- cia, uma vez que contribui para mudanças nos níveis
rentes veículos na estrada. Na brincadeira, os signifi- do desenvolvimento humano. Para Cerisara (2002),
cados e as ações relacionadas aos objetos convenci- todo avanço nestes está relacionado a alterações acen-
onalmente podem ser libertados. As crianças utilizam tuadas nas motivações, tendências e incentivos. Tor-
processos de pensamento de ordem superior como na-se, então, necessário lembrar que os interesses
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil 173

mudam em função do desenvolvimento e da maturi- faz de conta que está andando de velocípede para
dade do sujeito, pois, o que atrai um bebê não o faz a satisfazer seu desejo, pois não tem consciência das
uma criança um pouco mais velha. Portanto, a matu- motivações e emoções que dão origem à brincadeira.
ridade das necessidades é um tópico importante na Nessa perspectiva, Vygotsky (1998) diz que o brin-
teoria da Psicologia histórico-cultural. quedo difere muito do trabalho e de outras formas de
Vygotsky (1998) afirma que não é possível ig- atividade, uma vez que nele a criança cria uma situa-
norar que a criança satisfaz algumas necessidades ção imaginária, algo reconhecido pelos estudiosos, e
por meio da atividade do brincar. As pequenas ten- que portanto não é novo. Ele afirma que a imaginação
dem a satisfazer seus desejos imediatamente, e o in- é característica definidora da brincadeira e não um atri-
tervalo entre desejar e realizar, de fato, é bem curto. buto de subcategorias específicas do brinquedo.
Já as crianças entre dois e seis anos de idade são Cerisara (2002) coloca que toda situação ima-
capazes de inúmeros desejos, e muitos não podem ginária que envolve o brinquedo já pressupõe regras,
ser realizados naquele momento, mas posteriormente ocultas ou não e que o contrário é verdadeiro, ou seja,
por meio de brincadeiras. Vygotsky (1998) diz que, todo jogo tem, explicitamente ou não, uma situação
(...) se as necessidades não realizáveis imedia- imaginária envolvida. Nesse sentido, o faz-de-conta
tamente, não se desenvolvessem durante os é em especial significativo para o desenvolvimento
anos escolares, não existiriam os brinquedos, infantil, por estar relacionado à imaginação.
uma vez que eles parecem ser inventados justa- Em um esforço para compreender a importân-
mente quando as crianças começam experimen- cia da atividade do brincar para o desenvolvimento
tar tendências irreali-záveis (p. 106). infantil, numa perspectiva co-construtivista, pode-se
Com isto, no espaço da sala de aula, a criança considerar que a criança, desde seu nascimento, se
procura satisfazer seus desejos não realizáveis ime- integra em um mundo de significados construídos his-
diatamente envolvendo-se em um mundo imaginário, toricamente. É por meio da interação com seus pares
onde os não realizáveis podem ser concretizados; a que ela se envolve em processos de negociação, den-
este mundo é que se chama da brincadeira. O autor tre os quais, os de significação e re-significação de si
concebe a imaginação como: mesma, dos objetos, dos eventos e de situações, cons-
truindo e reconstruindo ativamente novos significa-
(...) um processo psicológico novo para a cri- dos.
ança em desenvolvimento; representa uma for-
ma especificamente humana de atividade cons- Valsiner (1988) acrescenta que para analisar o
ciente, não está presente na consciência de desenvolvimento infantil deve-se considerar os ambi-
crianças muito pequenas e está totalmente au- entes em que ocorre a atividade da brincadeira, que
sente em animais. Como todas as funções da são fisicamente estruturados, segundo os significa-
consciência, ela surge originariamente da dos culturais das pessoas responsáveis pela criança.
ação e na interação com o outro (p. 106). Valsiner (2000) aponta, ainda, que ela ocupa um pa-
pel ativo na organização de suas atividades, constru-
Há, portanto, uma crença de senso comum que
indo uma versão pessoal dos eventos sociais que lhe
o brincar da criança é imaginação em ação. Vygotsky
(1998) considera que isto deveria ser invertido, uma são transmitidos pelos membros de sua cultura. Esta
vez que a imaginação, nas crianças em idade da edu- construção é elaborada pelos processos de interação
cação infantil e nos adolescentes, é o brinquedo sem social, canalização e trocas, fazendo uso de recursos
ação. Desta forma, fica claro que o prazer que estas e instrumentos semióticos co-construídos, cujos sig-
vivenciam é controlado por motivações diferentes das nificados estão presentes na “cultura coletiva”. Por
experimentadas por um bebê ao chupar sua chupeta. último, o autor afirma que é preciso considerar que a
Para o autor, nem todos os desejos não satis- criança expressa a compreensão do mundo por meio
feitos dão origem à brincadeira; quando uma criança da ação, e que cada classe social tem um sistema de
quer andar de velocípede e isto não pode ser imedia- significação cultural próprio, relacionado às práticas
tamente concretizado, ela não vai para seu quarto e típicas de seu grupo.
174 Norma Lucia Neris de Queiroz

Pedrosa (1996), em consonância com Valsiner, aceitar ou recusar sugestões, muitos (bola, bonecas,
afirma que a criança desde o seu nascimento interage carrinhos) são, de certa forma, impostos como obje-
com um mundo de significados construídos historica- tos de valor, e daí, graças à força de sua imaginação,
mente; na relação com seus parceiros sociais se en- são transformados em brinquedos admirados e ma-
volve em processos de significação de si, dos outros ravilhosos (Benjamin, 2002).
e dos acontecimentos de seu contexto cultural, cons- As crenças dos adultos sobre a brincadeira in-
truindo e reconstruindo ativamente significados. fantil são geradas em seus sistemas de significado
Nessa perspectiva, destaca-se a importância cultural. Neste sentido, Valsiner (1988) destaca que
de interpretar a brincadeira levando em considera- a criança, como ser ativo, no processo ‘viver a brin-
ção os contextos sociais específicos em que ela ocorre, cadeira’, vai além da cultura de seus pais e professo-
não sendo possível separá-la artificialmente deles; e, res, uma vez que reconstrói as experiências adquiri-
para compreendê-la, deve-se relacionar o valor e o das nos espaços familiares, escolares e comunitári-
lugar que lhe são determinados pela cultura específi- os. Ela, assim, cria, para suas brincadeiras, funções
ca, porque só levando esta em consideração é que e cenários novos para as sugestões sociais, ofereci-
será possível derivar o significado do brincar infantil das por seu grupo; assim, ela externaliza sua subjeti-
em cada uma. vidade sobre os eventos sociais e, ao mesmo tempo,
Assim, a percepção infantil sobre a atividade reconstrói o significado social da brincadeira.
de brincar é marcada pela influência cultural, que se A subjetividade da criança vai se formando nas
torna o elemento de mediação que integra o sistema interações que estabelece com seus parceiros nos
de funções psicológicas desenvolvidas pelo indivíduo contextos cotidianos. Valsiner (1989) acrescenta que
na organização histórica de seu grupo social, por meio o mundo adulto, dependendo de seus valores cultu-
dos processos de interação, canalização e trocas, uti- rais, oferece à criança uma variedade de sugestões e
lizando recursos e instrumentos semióticos co- modos de interação semioticamente marcados pelos
construídos de uma geração mais velha, com os quais modelos sexuais, muitas vezes estereotipados como
a criança entra em contato. masculino, feminino ou indiferenciado. Esta é uma
A cultura, na concepção de Valsiner (2000), das sugestões sociais que levam a criança a brinca-
refere-se à organização estrutural de normas sociais, deiras marcadas pelo gênero, de acordo com a cultu-
valores, regras de conduta e sistemas de significados ra coletiva, o que frequentemente ocorre naqueles
compartilhados pelas pessoas que pertencem a certo em que o menino só pode brincar de carrinho, e me-
grupo com uma história de convivência e relações de nina, de casinha de boneca. As famílias canalizam as
pertencimento. Para ele, a cultura tem duas faces: a) ações, as percepções e representações da criança
como entidade coletiva (significados compartilhados); na direção de assumir um papel social aprovado de
b) como entidade pessoal (significados pessoais). A acordo com suas crenças e valores.
primeira é aprendida pela criança no contexto de suas Para Packer (1994) brincar é uma atividade
experiências em diferentes tipos de ambientes. Es- prática, “na qual a criança constrói e transforma seu
pecialmente os pais e profissionais responsáveis pe- mundo, conjuntamente, renegociando e redefinindo a
los cuidados e educação (escola, creches), devem realidade” (p. 273); “uma construção da realidade, a
procurar organizar o ambiente de forma que este seja produção de um mundo e a transformação do tempo
brincável, isto é, explorável (Dantas, 2002), e que e do lugar em que ele pode acontecer” (p. 271). A
incentive o brincar. participação da criança nesta atividade “requer um
É impossível, porém, a criança fazer a brinca- senso de realidade compartilhado do que é verdadei-
deira em um âmbito apenas relacionado à livre fanta- ro ou falso, certo ou errado” (p.271).
sia; mesmo quando não imita os instrumentos dos Nas afirmações de Valsiner (1998, 2000) e de
adultos, sempre parte de significados culturalmente Pedrosa (1996), a criança é um sujeito ativo da co-
construídos, pois é deles que ela recebe seus primei- construção cultural, o que garante que a cultura de
ros brinquedos, embora tenha certa liberdade para sua geração ultrapasse a dos adultos por ela respon-
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil 175

sáveis. Nesta perspectiva, torna-se necessário olhar concretas com objetos para ações com outros signifi-
a brincadeira para além do conceito da atividade de cados, possibilitando avançar em direção ao pensa-
brincar, e examinar o faz-de-conta, que tem desper- mento abstrato. Tanto Piaget quanto Vygotsky con-
tado especial interesse de teóricos, pesquisadores e cebem o faz-de-conta como atividade muito impor-
profissionais que atuam com a educação infantil, lem- tante para o desenvolvimento.
brando a importância dada por Bateson (1972) quan- Recentemente, estudiosos têm argumentado
do se refere aos processos de metacomu-nicação, que o faz-de-conta não é apenas atividade represen-
por meio dos quais as crianças se comunicam entre tativa, mas metarepresentativa. A teoria da mente se
si, indicando se uma interação deve ser interpretada preocupa em investigar “as habilidades das crianças
como “luta” - fisionomia séria, sem sorriso, ou “brin- pré-escolares de compreenderem seus próprios es-
cadeira”- sorriso, gargalhadas, gritinhos de alegria. tados mentais e os dos outros e dessa maneira, predi-
Olhando a Brincadeira de Faz-de-Conta zerem suas ações ou comportamentos” (Jou & Sperb,
Dentre as brincadeiras realizadas pelas crian- 1999, p. 292). Este interesse levou Sperb e Conti
ças, na faixa etária dos três aos sete anos, o faz-de- (1998), a realizarem um estudo com 14 tríades de
conta é a que mais desperta o interesse e tem sido crianças integradas à pré-escola, com idade média
estudada em detalhes. Alguns pesquisadores que tra- de 5 anos e 2 meses, para verificar se este grupo
balham com as teorias do desenvolvimento cognitivo apresentaria habilidades metarepresentativas na brin-
destacam a sua importância como comunicação in- cadeira de faz-de-conta, aqui entendida não “mais
tegrada, ou seja, o faz-de-conta é uma atividade com- como uma representação do mundo de uma forma
plexa e constituinte do sujeito, diferente das que ca- direta, mas sim, representações de representações”
racterizam o cotidiano da vida real, que já aparece (Jou & Sperb, 1999, p.294), tomando como referên-
nos jogos de esconde-esconde que ela tem com os cia para análise as atividades do início da brincadeira
adultos, quando aprende que desaparecer, no jogo, e o relacionamento com os termos mentais a partir
não é algo real, mas inventado para poder brincar das categorias:a) as formas “planejadas”; b) o “en-
(Oliveira, 1996). Piaget (1978), face ao desenvolvi- tender o faz-de-conta no outro”, c) as conceituadas
mento do pensamento infantil, afirma que a brinca- como de termos mentais, ou seja, “expressão do de-
deira de faz-de-conta: sejo”, “direção da interação”, “modulação da
asserção” e “expressão do estado mental”.
“está intimamente ligada ao símbolo, uma vez
que por meio dele, a criança representa ações, Os resultados desse estudo evidenciaram que
pessoas ou objetos, pois estes trazem como as crianças utilizaram mais as atividades de metare-
temática para essa brincadeira o seu cotidia- presentação em relação às categorias “formas pla-
no (contexto familiar e escolar) de uma forma nejadas” e o “entender o faz-de-conta no outro” que
diferente de brincar com assuntos as de termos mentais: “expressão do desejo”, “dire-
fictícios,contos de fadas ou personagens de ção da interação”, “modulação da asserção” e “ex-
televisão (p.76).
pressão do estado mental”;e mais a categoria de “ex-
Neste sentido, ele diz que o pensamento da pressão do desejo” que a “direção de interação”.
criança pequena não é suficientemente preciso e Concluiu-se que a atividade metarepresentativa apre-
maleável para comunicar um conjunto de idéias, en- sentou-se tanto na brincadeira faz-de-conta quanto
tão, o símbolo assume a função de mediador, dando no uso de termos mentais das pré-escolares inves-
oportunidade à criança de expressar seu pensamento. tigadas. Portanto, nessa faixa etária, ela pode possuir
Para Vygotsky (1998), a brincadeira de faz- uma teoria da mente, à medida que evidencia a habi-
de-conta cria uma zona de desenvolvimento proximal, lidade em entender a sua e a dos outros.
pois no momento que a criança representa um objeto Com relação ao faz-de-conta, Sperb e Conti
por outro, ela passa a se relacionar com o significado (1998) discutem a categorização, que coloca três como
a ele atribuído, e não mais com ele em si. Assim, a essenciais: A primeira quando a criança utiliza repre-
atividade de brincar pode ajudar a passar de ações sentações primárias, isto é, vê o mundo de forma di-
176 Norma Lucia Neris de Queiroz

reta e imediata, substituindo o objeto, por exemplo a cação Infantil (MEC, 1998) estabeleceu a brincadei-
mãe, pelo pai. Já a segunda, mais complexa, emerge ra como um de seus princípios norteadores, que a
quando ela usa representações secundárias, entendi- define como um direito da criança para desenvolver
das como representações de representações ou seu pensamento e capacidade de expressão, além de
metarepresentações, atribuindo propriedades imagi- situá-la em sua cultura. Atividades de brincadeira na
nárias aos objetos ou eventos, o que ocorre quando educação infantil são praticadas há muitos anos, en-
ela em interação com um parceiro lhe propõe que tretanto, torna-se imprescindível que o professor dis-
faça de conta que o tempo hoje está ótimo (quando tinga o que é brincadeira livre e o que é atividade
está chovendo) ou que limpe o rosto da boneca que pedagógica que envolve brincadeira. Se quiser fazer
está sujo (sem estar). Neste momento, ela vai além brincadeiras com a turma, deve considerar que o mais
do significado comum dos objetos ou dos eventos importante é o interesse da criança por ela; se seu
sem, entretanto, confundir realidade/não-realidade. objetivo for a aprendizagem de conceitos, habilidades
Por último, em uma das formas mais avançadas do motoras, pode trabalhar com atividades lúdicas, só
faz-de-conta, o objeto é imaginário, por exemplo que aí não está promovendo a brincadeira, mas ativi-
“Faz-de-conta que neste prato tem bolo, neste copo, dades pedagógicas de natureza lúdica.
refrigerante”. Quando é mantida a especificidade da brinca-
Observa-se na categorização de Sperb e Conti deira livre, têm-se elementos fundamentais que de-
(1998) que o faz-de-conta é uma brincadeira que além vem ser considerados: a incerteza, a ausência de con-
de envolver a operação de processos mentais, requer seqüência necessária e a tomada de decisão pela cri-
também a metarepresentação, pois a propriedade de ança; ela emerge como possibilidade de experimen-
opacidade suspende o compromisso com referência tação, na qual o adulto propõe, mas não impõe, convi-
à “verdade”. Assim, ele oferece as primeiras pistas da, mas não obriga, e mantém a liberdade dando al-
de que a criança possui a habilidade de entender sua ternativas (Dantas, 2002). Caso contrário arrisca-se
própria mente e a dos outros, como mostram os re- destruir o interesse da criança, tendo em vista que
sultados do estudo citado. neste momento ela domina o espaço de experiência,
A criança é capaz de entender o faz-de-conta mas o professor pode até interferir na brincadeira li-
e usar processos mentais de forma representacional vre, desde que não utilize estratégia destrutiva do in-
a partir dos três anos de idade (Andrensen, 2005; teresse dela.
Branco, 2005). E é nessa faixa etária que ela passa a Essa intervenção dá-se em dois níveis: De um
dar maior importância ao grupo de pares (Eckerman lado, a não destrutiva do interesse pelo brinquedo;
& Peterman, 2001). O faz-de-conta social implica em Do outro, a proposição, no momento propício e em
negociação; para brincar com outra sobre um mes- associação com a brincadeira, de atividades dirigidas
mo tema, a criança precisa de um acordo quanto aos que tenham uma lógica, elaborada em função de ob-
significados implícitos nos papéis e ações, caso con- jetivos pedagógicos, intencionalmente promovidos
trário, a brincadeira não ocorrerá em grupo. Sendo pelos educadores, tornando-se cada vez mais impor-
assim, as transformações realizadas sobre os objetos tantes à medida que a criança cresce. Intervir na brin-
precisam ser acompanhadas pelos parceiros e, para cadeira nunca dá certeza do que vai acontecer, mas
fazer parte da brincadeira, deve haver a aceitação deve ser assegurada a intenção de a atividade conti-
dos papéis e/ou formas de negociação. nuar a beneficiar o grupo.
Sendo a brincadeira atividade estruturadora e Cabe ao professor, como adulto mais experi-
impulsionadora do desenvolvimento infantil, as pro- ente, estimular brincadeiras, ordenar o espaço inter-
postas educacionais que vêm sendo feitas para a edu- no e externo da escola, facilitar a disposição dos brin-
cação desta faixa etária têm reconhecido a sua im- quedos, mobiliário, e os demais elementos da sala de
portância no contexto da sala de aula (Leme, 2005). aula. Outras formas de intervenção podem ser pro-
O Referencial Curricular Nacional para a Edu- postas visando incitar as crianças a desenvolverem
brincadeira nesta ou naquela direção, mas só como
Brincadeira e Desenvolvimento Infantil 177

incitações, nunca obrigação, deixando-as tomarem a social e culturalmente em cada meio.


decisão de se engajarem na atividade. Outro aspecto importante é estimular as crian-
O professor também pode brincar com as cri- ças a proporem brincadeiras que realizam em sua
anças, principalmente se elas o convidarem, solici- comunidade. Isto possibilitará que entre em sala de
tando sua participação ou intervenção. Mas deve pro- aula todo o universo cultural próprio dela, permitindo
curar ter o máximo de cuidado respeitando sua brin- ao professor melhor conhecer sua realidade, caben-
cadeira e ritmo; sem dúvida, esta forma de interven- do a ele enriquecer as experiências lúdicas das crian-
ção é delicada, por ser difícil o adulto participar da ças, pois a escola tem um grande número de crianças
brincadeira sem destruí-la; é preciso muita sensibili- da mesma faixa etária, adultos mais experientes,
dade, habilidade e bom nível de observação para par- materiais e espaços pensados para permitir ativida-
ticipar de forma positiva. des de natureza lúdica. Este enriquecimento pode ser
desenvolvido por meio de: intervenções, ordenamento
A chave desta intervenção é a observação das
do espaço, atividades dirigidas que possibilitem o
brincadeiras das crianças, pois é necessário respeitá-
surgimento de novos elementos culturais, que permi-
las: conhecê-las, sua cultura, como e com quê brin-
tirão às crianças integrá-los às suas brincadeiras.
cam, e quando seria interessante o adulto participar.
Melhor, porém, é que não o faça e aproveite este Considerações Finais
momento para observar seus alunos, para conhecê- O tema da brincadeira vem sendo bastante
los melhor. pesquisado, desde o século XVIII em suas diferentes
É também importante o professor desenvolver vertentes. Apesar disso, percebem-se, ainda, lacunas
atividades dirigidas que envolvam brincadeiras, mas de conhecimentos sobre o conceito e os processos
elas precisam ter seus temas relacionados para que envolvidos na brincadeira. A maior preocupação, no
haja contribuição para o desenvolvimento infantil; e entanto, não deve se estabelecer um conceito univer-
elas atuando em conjunto podem, as duas serem sal e fechado sobre a atividade do brincar, mas am-
enriquecidas. pliar as pesquisas, buscando preencher as lacunas
existentes e, paralelamente, subsidiar os docentes e
Outra forma que o professor pode usar para
interessados no assunto para que possam realizar prá-
enriquecer a brincadeira é propondo atividades que ticas educativas mais interessantes.
incentivem a curiosidade das crianças; por exemplo,
Com isso, o ato de brincar, uma ação mediada
a troca de cartas e bilhetes com os parceiros, leva à
pelo contexto sociocultural e o significado construído
escrita e comunicação, sendo experiências que po-
pela criança sobre a função de determinados objetos
derão ajudar a criança, mais adiante, a investir nestas
e da sua participação em certas brincadeiras, não é
habilidades no faz-de-conta.
estático. De um lado existe dependência dos siste-
O professor poderá, igualmente, organizar ati- mas de significação coletivamente compartilhados pelo
vidades que ajudem a criança a descobrir as possibi- grupo a que a criança pertence, envolvendo crenças
lidades que certos materiais possuem; os jogos de e valores dos adultos responsáveis por ela (mãe ou
grupo para crianças mais velhas, ou os de construção professora).
para as mais novas, ensinam a dominá-lo melhor, de- De outro lado, existe a versão construída pela
senvolvendo outros níveis de competência, além de criança sobre os padrões sociais, a partir dos
permitir verificar o interesse da criança. referenciais transmitidos pelo grupo a que pertence,
Para Valsiner (2000), a brincadeira ocorre em mas que são ressignificados no seu cotidiano e nas
ambientes que são fisicamente estruturados de acor- suas interações com seus pares e com ‘outros soci-
do com os sistemas de significado cultural das pesso- ais’. Desta forma, a criança recria seu espaço de
as que os habitam. Muitas crianças que sabem brin- brincadeira, com novos cenários, inventando funções
car descobriram e aprenderam isto em seu meio, com para os objetos, dando-lhe um sentido de acordo com
familiares, pares da mesma idade ou um pouco mais os padrões aprovados socialmente.
velhos; sendo a brincadeira uma atividade construída
178 Norma Lucia Neris de Queiroz

A brincadeira oferece às crianças uma ampla Referências


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dade de interação com o outro, que, sem dúvida con- mind. New York: Chandler.
tribuirão para o seu desenvolvimento.
Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança,
Portanto, é imprescindível que os professores o brinquedo e a educação. São Paulo: Summus.
compreendam a importância da brincadeira e suas
Benjamin, W. (2002). Rua de mão única. São
implicações para organizar o processo educativo de
Paulo: Brasiliense.
modo mais positivo, contribuindo para o desenvolvi-
mento das crianças (Pontes & Magalhães, 2003). Sem Branco, A.U. (2005). Peer interactions,
esta compreensão, corre-se o risco de uma prática language development and metacommunication.
educativa com equívocos, como por exemplo, pro- Culture & Psychology, v.11 n.4, 415-430.
fessores preocupados em desenvolver a brincadeira Brougère, G. (1998). Brinquedo e Cultura.
em sala de aula, objetivando atitudes de cooperação São Paulo: Cortez.
entre os alunos, mas direcionando a atividade para a
Carvalho, A., Salles, F., Guimarães, M. &
competição. No estudo de Palmieri (2003), os pro-
Debortoli, J.A. (2005). Brincares. Belo Horizonte:
fessores confundem cooperação e competição, e ge-
UFMG.
ralmente não percebem estes equívocos, acreditando
que realizam um trabalho de grande qualidade para a Cerisara, A. B. (2002). De como o Papai do
formação dos alunos e se estes não correspondem às Céu, o Coelhinho da Páscoa, os anjos e o Papai Noel
suas expectativas, apontam a eles como incapazes foram viver juntos no céu. Em T. M. Kishimoto (Org.),
ou rotulam sua família como problemática. Nesse O brincar e suas teorias (pp.123-138). São Paulo:
caso, o professor não está conseguindo fazer uma Pioneira-Thomson Learning.
reflexão crítica do seu próprio trabalho. Dantas, H. (2002). Brincar e trabalhar. Em T.
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onal congelados no papel não provocarão mudanças (pp.111-121). São Paulo: Pioneira-Thomson Learning.
no contexto educacional. Mas, a administração públi- Devries, R. (2003). Currículo Construtivista
ca deve proporcionar uma formação continuada aos na Educação Infantil. Porto Alegre: ArtMed.
professores; diante de situações de insegurança, isto
é, de ministrar novos conteúdos e realizar propostas Devries, R. & Zan, B. (1998). A ética na edu-
educativas que exigem conhecimentos diferentes dos cação infantil. Porto Alegre: ArtMed.
que os profissionais acreditam, a tendência dos edu- Eckerman, C. & Peterman, K. (2001). Peer
cadores é desprezá-las, muitas vezes fazendo críti- and infant social/communicative development. In G.
cas infundadas, apesar de reconheceram a importân- Bremner & A. Fogel (Eds.), Peer relashionships and
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da qualidade de ensino. É preciso que o professor Springer.
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