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Resumo
Palavras-chave
Abstract
Keywords
Resumen
Palabras clave
24 Geoval Jacinto da SILVA, Jorge Schütz DIAS, Jünger Moltmann: teólogo e pastor
A alma e o espírito de pastor de Molt- duzentos, nada mais me diziam, em-
mann foram marcados no seu processo bora os recitasse com freqüência. Meu
sonho fora estudar matemática e física.
de conversão. Segundo Santo Agostinho,
Meus heróis eram Einstein e Heisen-
conversão é um processo de mudança berg. Naquele lugar, porém, esse sonho
na vida de uma pessoa, ela pode aconte- se despedaçou: para que tudo isso?
cer de diferentes formas. Na história da (Moltmann, 2002, p. 11).
Memórias das noites de insônia. E de-
Igreja, há uma série de personagens que
pois aquelas noites de insônia, quando
experimentaram o processo de conversão me assaltavam as recordações tortu-
como algo dinâmico dentro da perspectiva rantes dos tanques que rolaram sobre
de conversão como processo. nós nas cercanias de batalha de Ar-
nheim, de modo que eu acordava su-
Moltmann descreve os passos que ando frio, quando surgiam as faces dos
antecederam seu processo de conversão companheiros tombados, fitando-me
como alguém que foi sendo encontrado com olhares apagados. Transcorreram
em um caminho marcado pela miséria e cerca de cinco anos até que eu sentisse
uma certa cura dessas recordações(...)
o desalento. Para ele, o processo de con-
Naquelas noites estávamos “sozinhos”,
versão possibilitou encontrar caminhos em como Jacó, e lutávamos contra poderes
direção a um crescimento de novidade de e potestades que nos pareciam som-
vida e esperança. Seu processo de conver- brias e perigosas. Somente mais tar-
de, depois que aquilo passou, pudemos
são é por ele descrito assim:
compreender quem lutava conosco.
Éramos como sobreviventes. Foi da “Como é pequeno aquilo com que nos
morte em massa da guerra mundial que debatemos, como é grande o que luta
escapamos. Para cada um que sobrevi- conosco...” (Moltmann, 2002, p. 11).
veu a isso caem centenas de mortos.
Para que sobrevivemos a isso e não Moltmann, fala de uma “transformação
estamos mortos como os demais? Em imerecida” da qual ele participou plena
julho de 1943 fui ajudante da Força Aé-
rea numa bateria antiaérea no centro
em sua vida. Essa transformação imere-
de Hamburgo, e por pouco sobrevivi ao cida pode ser entendida também como a
ataque desfechado pela “operação Go- metanóia que ele pode vivenciar em situa-
morra” da Royal Air Force no leste da- ção de muitas privações e humilhações. A
quela cidade. O amigo que estava a meu
transformação aconteceu dentro de duas
lado no equipamento de comando foi
estraçalhado pela bomba que me pou- perspectivas: por um lado, graças à Bíblia
pou. Aquela noite, clamei pela primeira e, por outro por meio de encontros com
vez por Deus: Meu Deus, onde estás? pessoas. Ele descreve essas transforma-
(Moltmann, 2002, p. 10). ções a partir de cinco momentos, dos
Esperanças perdidas – lembranças tor-
turantes. Havíamos escapado da mor-
quais elenco dois deles:
te, mas éramos prisioneiros de guerra.
1. A recepção de uma Bíblia. No campo
Estive primeiro no miserável acampa-
de trabalhos na Escócia, pela primeira
mento 2226 em Zedelgem, próximo de
vez na vida, recebi, como outros deti-
Ostende (Holanda), e depois no campo
dos surpresos, uma Bíblia de um bem-
de trabalhos 22 em Kilmarnock/Ayshi-
intencionado capelão militar. Muitos
re; cheguei a Norton Camp somente em
teriam preferido cigarros. Eu, porém,
julho de 1946.(..). Havíamos escapado,
lia sem compreender muito, até que
porém perdêramos qualquer esperança.
encontrei os salmos de lamentação. O
(Moltmann, 2002, p. 11).
Salmo 39 me cativou: “Calei-me, mais
Esperanças perdidas: o alimento de
do que convinha. Minha dor tornou-
minha alma havia sido os poemas de
se insuportável... A duração de minha
Goethe e seu Fausto que minha irmã
vida é quase nada diante de ti... Ouve
me dera: o “fausto de bolso” para sol-
a minha oração, Senhor, e meu grito, e
dados. Esses poemas haviam desperta-
presta ouvido às minhas lágrimas, não
do meus sentimentos de jovem, porém
permaneças surdo, pois não passo de
agora, preso num pavilhão com outros
um migrante junto a ti, um hóspede
26 Geoval Jacinto da SILVA, Jorge Schütz DIAS, Jünger Moltmann: teólogo e pastor
É percebível que Moltmann tem muita Meu traje de luto mudaste
facilidade de assimilar os sinais do tempo em traje de festa.
Por isso a alma te cante
de Deus para sua vida e transformá-los
sem cessar.
em momentos de graça, vida e esperan- Senhor, meu Deus,
ça. A partir de sua visão do vale de Ja- eu te darei graças
boq, ele caminha como que marcado, não para sempre
(Moltmann, 2002, p. 16-17).
para morrer, mas marcado para a vida,
como ele mesmo relata: “mancando de
uma coxa, porém abençoado”, e assim
ele descreve:
Atuação pastoral
O que no inicio parecia ser um desti- e acadêmica
no cruel tornou-se para nós uma bên-
ção de riqueza imerecida. Começou na
noite da guerra, mas quando chegamos Nos dois livros estudados, em especial
em Norton Camp, raiou o sol para nós. em suas primeiras partes, Moltmann dei-
Chegamos com almas feridas, e, quan-
xa explicito sua alma e espírito de pastor.
do saímos, “minha vida foi salva”. Sem
dúvida não vimos, como Jacó naquele Suas experiências de vida nos campos de
lugar no Iaboq, “Deus face a face”. De concentração foram bastante suficientes
acordo com a tradição bíblica, isso será para assimilar um pastorado de compro-
reservado apenas a poucos “amigos de
misso e de entrega ao povo, que resultou
Deus”. A todos os demais, porém, isso
foi prometido somente para o grande por certo, em criatividade pastoral, e pos-
dia da ressurreição, quando veremos sibilitou o desenvolvimento de seu cres-
“face a face” e “conheceremos como cimento de solidariedade e de atividades
somos conhecidos” (1 Cor 13,12). Ocor- academias e teológicas.
reu o inverso: foi Deus quem olhou para
nós com os “olhos radiantes” de sua Certa vez o teólogo e pastor Gustavo
alegria eterna. A bênção e o espírito da Gutierrez, indagado por algo que lhe dava
vida têm sua origem no “olhar o juízo de prazer respondeu:
Deus” que está fundado na “face ocul-
ta de Deus“ (bester panim) e a rejeição (...) o que me dá mais alegria é o tra-
no “olhar desviado de Deus”. Aquilo que balho pastoral. Sinto que essa é a mi-
vivenciamos foi, para muitos de nós, a nha função primária como sacerdote.
mudança do “rosto oculto” para a “face Não fui ordenado para fazer teologia,
resplandecente de Deus”. Experimenta- mas para proclamar o Evangelho. Con-
mos sua ocultação e sua distância com sidero a teologia somente uma ajuda
dor e sentimos que ele olhou para nós para isso, nada mais (Pedroso Mateus,
com “olhar resplandecente”, e senti- 1989, p. 81).
mos o calor de seu amor.
Após cinqüenta anos, reunimo-nos
aqui para enaltecer o Deus oculto, e Moltmann entende que sua proposta
mesmo assim, tão misericordioso, por acadêmica é para o povo e com o povo,
tudo o que experimentamos dele. Com- desta maneira, como acadêmico, faz a se-
parecemos também para lembrar com
guinte advertência aos acadêmicos menos
gratidão as pessoas que vieram ao en-
contro de nós, prisioneiros, com tanta avisados:
disposição de perdoar e com tanta hos-
A teologia acadêmica, além de erudita,
pitalidade. Jamais esqueceremos Birger
é também pastoral. Meus alunos uni-
Forell e John Barwick, que organizaram
versitários procedem de diversas es-
Norton Camp, e continuamos devedores
colas secundárias. Vivem igualmente
da ACM, que organizou aquela genero-
separados do povo que não pode mais
sa ajuda aos prisioneiros de guerra,
freqüentar escolas e, certamente, a
que nos restaurou. Encerro com pala-
Universidade (...) Procuramos interpre-
vras do Salmo 30.12s, confessando:
tar conceitos teológicos de experiências
Senhor, transformaste
passadas, mas raramente trazemos as
meu luto em dança,
28 Geoval Jacinto da SILVA, Jorge Schütz DIAS, Jünger Moltmann: teólogo e pastor
apático. Determina-se por ele. Sofre o para o resto da vida”, reconhece que a
como sofrimento de Deus no mundo; dor tenha contribuído para o seu amadure-
alegra-se com suas alegrias. Unindo-
cimento cristão e para os postulados teo-
se ao amor de Deus, participa inten-
samente desses sentimentos (...) Seu lógicos e pastorais (Pedroso Mateus, 1989,
pequeno sofrimento acha sentido no p. 76-77). Foi Stanley Jones que identifi-
imenso sofrimento de Deus em favor cou que através do sofrimento de Cristo
de um mundo livre e salvo (Moltmann,
a humanidade se beneficia diante de sua
1978, p. 15).
graça, pois “A única maneira de fugir do
sofrimento é fugir da própria vida” (Jones,
Para ele as imagens do Cristo estão
1965, p. 15). Moltmann afirma que:
presentes na história do Novo Testamento,
um Cristo que experimenta o sofrimento Como pode o sofrimento de Jesus fa-
humano e, portanto, tal sofrimento tem lar hoje a nós? Conhecemos os relatos
que ser visto e entendido não só pelo lado da crucificação. Teria ele também fra-
cassado? Não terá vida, então, outro
humano, mas na dinâmica da paixão que a sentido além da morte na qual, afinal,
torna possível. Assim, “na paixão de Cris- termina? Nesse caso, não deveríamos
to a paixão de Deus confunde-se com a amar apenas com cuidado, para que a
nossa. Nela, eu sinto o amor de Deus e as morte venha a ser menos terrível? Não
acredito que Jesus tenha fracassado no
dores do meu próprio corpo” (Moltmann,
final. (...) A paixão que nos liberta para
1978, p. 15). Partindo de três perguntas, a vida só se efetiva ao se sacrificar. No
ele desenvolve antigos conceitos de apro- fundo, os ferimentos só se curam pelos
ximação a vida de Jesus, são elas: Primei- próprios ferimentos. Jesus cria vida en-
ro: Que tem de especial a vida de Jesus? tre os que sofrem porque os ama e não
por causa do grande poder. (...) O Novo
Segundo: Por que nos chama atenção? Testamento resume a paixão e o sofri-
Terceiro: O que é paixão? Afirma Molt- mento de Jesus nas palavras do profe-
mann, em forma de resposta às questões ta sobre o servo sofredor (Moltmann,
suscitadas, que: 1978, p. 16-17).
Não se trata de meros desejos da alma Moltmann, com sua visão pastoral,
por uma vida sem dores no céu nem de
percebe que toda a crise que vem experi-
um amor pelo reino de Deus no além,
nem ainda a aspiração pela permanên- mentando os segmentos da Igreja na so-
cia da vida depois da morte, mas, isso ciedade está de certa forma vinculada à
sim, da vontade de viver a plenitude da forma de entendimento e vivencia da cris-
vida mesmo antes da morte, até mes-
tologia que a Igreja vem desenvolvendo.
mo contra a morte, que transborda da
vida de Jesus. A vida se faz presente Indica ele: “por trás da crise política e
onde os doentes estão curados, os le- social da igreja na sociedade moderna, es-
prosos aceitos, e os pecadores perdoa-
conde-se a crise cristológica: de onde vem
dos. Essa vida divina, salva, faz-se pre-
sente hoje em nosso meio. (Moltmann, a força da igreja? Quem é Jesus Cristo, re-
1978, p. 16). almente, para nós, hoje? Na crise de iden-
tidade do cristianismo oculta-se a questão
Moltmann apresenta um legado signifi- de Deus: que Deus governa a existência
cativo de sua estrutura pastoral a partir de cristã, o crucificado ou os ídolos da religião
uma cristologia que apresenta um Cristo , classe, da raça e sociedade? (Moltmann,
que, através do seu sofrimento, continua 1978, p. 49). Distanciar-se de Cristo pro-
ainda falando aos nossos dias. Gustavo voca a mudança e o fogo do entendimen-
Gutierrez diz que “a dor amadurece” e que to do Deus Trino, pois o entendimento de
ele, em seu sofrimento, vitima de uma Deus “só pode ser realizado no seguimen-
“osteomielite que o prendeu à cama e à to de Jesus e a partir dele” . Portanto, “só
cadeira de rodas por seis anos, marcando- quando se caminha segundo o Espírito é
30 Geoval Jacinto da SILVA, Jorge Schütz DIAS, Jünger Moltmann: teólogo e pastor