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"Rio Triste

Fernando namora

CÍRCULO DO LIVRO SÁ Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil

Edição integral

Copyright (c) 1982 by Fernando Namora, Lisboa Layout da capa: Adalberto Cornavaca

Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Editorial Nórdica Ltda.

Venda permitida apenas aos sócios do Círculo

Composto pela Takano Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias

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No dia 14 de novembro de 1965, nesta cidade de Lisboa, um homem saiu cedo de casa e já não
voltou. Nesse dia e nos que se seguiram. Também não o viram mais no emprego. Chamava-se,
ou chama-se (pois há quem pense que o caso não foi suficientemente deslindado), Rodrigo dos
Santos Abrantes. Um nome vulgar, se excetuarmos talvez o "Rodrigo", e por isso mesmo
detestado pelo próprio, que, como se verá mais adiante, projetara mudá-lo para Rodrigo
Macieira - as razões também as saberemos a seu tempo.

Vale a pena esmiuçar, e sobretudo fantasiar (já que as pistas concretas de que dispomos não
nos levariam longe), as circunstâncias em que se deu esse desaparecimento. Rodrigo, após o
pequeno almoço, tomado como sempre sob a ressaca do maldito despertador, isto é, num
silêncio amuado e gestos irritadiços, espreitou os ares pela janela das traseiras, logo deduzindo
que a friagem recomendava que se precavesse com a gabardina, procurou-a debalde no cabide
do átrio, ali deveria estar (foi pelo menos o que ele pensou, acusadoramente, ao chamar a
mulher para que a descobrisse no roupeiro ou lá onde a fizera sumir), resmungou com a
demora, conquanto o enervasse muito mais o chape-chape das chinelas no corredor, deu um
brusco jeito ao cabelo ao ver-se no espelho que ficava por de cima do bengaleiro, gesto esse
mais de impaciência do que de preocupação no penteado, e por fim saiu de casa. Escapara por
uma unha negra a que o engenheiro do 2.° direito, como sempre furibundo de ter de esperar
por alguém, batesse na porta do elevador, a exigir ligeireza, disponibilidade, espaço vital. O
engenheiro reagia como se ali no prédio tudo lhe pertencesse, desde a porteira às caixas do
correio e ao guarda-noturno. A sua tirania abrangia os decibéis de quem regulasse o aparelho
de rádio ou a TV para ouvir uma orquestra mais puxada à

barulhaça. Todo fanicos, o tipo. Mas tinha um Alfa Romeo de se lhe tirar o chapéu, que
protegia metodicamente dos orvalhos com um resguardo de plástico. Enquanto os vizinhos se
moíam, de manhã, para espevitar os motores, ele, triunfante e sarcástico, punha aquilo a
estrondear ao primeiro contacto.

Aí estava o céu turvo, nem uma aberta. O arrepio nas árvores, que pareciam encolher-se ao
perpassar da aragem. O Tejo, ao fundo, numa pardacenta imobilidade de expectativa. Daí a
meses, porém, nem Tejo estático haveria: já tinham erguido os prumos de cimento para o
edifício que se apossara do último reduto da colina. O Tejo iria desaparecer.

Não beijara a mulher, é verdade. Nem decerto a beijaria quando regressasse, lá pelas oito da
noite, para jantar, a tempo de ouvir as notícias no telejornal. Nada de arrufo, não, embora
Teresa, se acaso tivesse ficado a ruminar no fato, talvez o relacionasse com aquela tendência
do marido para a responsabilizar de as coisas não estarem nos sítios devidos quando eram
necessárias. Como se ele fosse uma pessoa arrumada. Pois não era, ficasse a sabê-lo. Nem
sequer com os seus papéis. Não, Teresa, não se tratou de arrufo. O beijo de despedida, que
pertencera ao ritual familiar, perdera continuidade nos últimos tempos (como muitas outtas
coisas), sem que, aliás, tivesse havido um motivo para que o hábito se alterasse. Um
esquecimento hoje, uma emenda tardia amanhã - os hábitos criam-se e perdem-se as mais das
vezes sem se saber por quê. Ou então esvaziam-se. E será beijo o enjoado resvalar da boca por
uma face?

O engenheiro do 2." direito, todo ele fumos de escape, já dera a volta uns metros abaixo,
pisando sem cerimónias o traço contínuo. Não estava para ir quase até ao fundo da avenida e
só aí inverter o sentido da marcha, havia regulamentos que apenas tinham por objetivo
chatear as pessoas. Um Alfa Romeo, chiça, forros de couro. Teresa ficara ressentida, sabia-o.
com a filha ia acontecendo o mesmo, de quem seria a culpa? Nem quando, à noite, se
aferrolhava no quarto, a pequena tinha uma mimalhice, uma palavra macia, já lhe parecendo
excessivo o até-amanhã dito no extremo do corredor. A porta do quarto a fechar-se
sorrateiramente, daí a nada o gira-discos, um cheiro a tabaco que empestava a casa. Ao menos
o beijo de despedida, Cecília, que custa um afago? Culpa dele, sem dúvida, que dera o
exemplo. Aquele seu feitio todo recolhido para dentro, Teresa tinha razão. As expressões de
afetuosidade sentia-as teatreiras, uma fiteirice que o punha ainda mais bisonho e acautelado.
Ou talvez nem fosse bem assim, pois também lhe dava para os gestos espaventosos, quase
sempre dirigidos às pessoas que menos os justificavam. Até por isso mesmo, Teresa. Que tipo.
Mas quem é que não era feito de contra-sensos? A secura de Cecília é que mais lhe custava.
Alfa Romeo de um raio, pisgou-se que levava fogo.

Ia com essas coisas na ideia (o cérebro nunca tinha descanso, um fervedouro de todos os
momentos) quando, de súbito, viu o autocarro, o seu autocarro, aquele que deveria deixá-lo no
emprego às horas da praxe, avançar a menos de cem metros. Num relance, pareceu-lhe que
vinham passageiros de pé junto do condutor, o que era mau prenúncio relativamente às
possibilidades de conseguir lugar. A lotação ou já estaria esgotada ou iria esgotar-se num rufo
assim que chegasse à próxima paragem, no outro lado da avenida, mais abaixo, em frente do
snack especializado em frangos de churrasco. A bicha formara-se há uns bons minutos, não
tardaria a descrever um círculo em roda da banca de jornais. O costume. O do

2.o direito bem poderia tê-lo levado no Alfa Romeo, pelo menos até ao Chile. É o levas. Nem
naquela manhã, há umas três semanas, em que o céu se desfazia em chuva, não dando tempo
a que se corresse ao abrigo de uma porta. Repassado até aos ossos - e o engenheiro vira-o. Ou
antes: fingira que o não vira. Era assim às horas de ponta, pela manhã e pela tarde. Rodrigo não
tinha que se surpreender. Devia era apressar-se e contar com o pior, mais nada. Atravessar
ligeiro a avenida, por entre dois tufões de automóveis, rezando a todas as almas para que
muitas das pessoas que estavam na bicha fossem candidatas a outro autocarro, o 19, ou o 26,
que iam para bairros fabris. Quase perdeu o equilíbrio ao saltar para o passeio, junto da
paragem uma velhota refilou de o ver esbaforido e desastrado. Nesse preciso momento, o
autocarro abria a porta dianteira para esvaziar a miséria de dois passageiros. A mesma coisa
que nada, já na porta da entrada um grupo de umas oito pessoas competia, competia à bruta,
pelo direito a uma vaga. O condutor deixou subir metade delas, contou-as como um pastor a,
certificar-se do rebanho, fez um sinal lá para diante, o motorista deu um safanão à

alavanca das mudanças, que se arrastou doridamente, como se nunca tivesse sido oleada.

Aquele autocarro, pronto, tinha-o perdido. E se, nos próximos cinco minutos, por milagre, não
aparecesse outro para o mesmo destino, chegaria ao emprego com atraso. Atraso que
significava o telefone interno a convocá-lo daí a instantes, nem dando tempo a que o estupor
da sirena parasse com aquele uivo de fera que ameaça morrer se as pessoas, do mais alto ao
mais baixo da hierarquia, não estivessem a postos à hora convencionada. Tapava os ouvidos
para não a ouvir, as vezes achava-se a tremer por dentro enquanto a sirena não se calasse.
Infalível. Ele, Rodrigo, poderia ser pontual meses a fio que o diretor (diretor - o "patrão") só o
chamaria quando a manhã ia já adiantada; mas tivesse uma merdinha de afaso e o telefone
logo desatava numa gritaria pegada. Parecia que o mundo se acabava, que o escritório, a
fábrica, a cidade inteira dependiam da presença de Rodrigo Abrantes à sua secretária.
"Manuela, onde pára esse senhor, que não atende o telefone?" - "Deve estar mesmo a chegar,
senhor Pereira", desculpava-o a telefonista, sem alarme nem convicção, numa gravidade meio
desinteressada. Coitada da Manuela, também ouvia das boas, nem era senhora de despejar a
bexiga quando a natureza lho pedia. "Pois avise-me assim que ele chegue. Que venha aqui,
quero-o aqui." A telefonista, mal Rodrigo limpava as solas no amplo capacho do fundo das
escadas (preceito higiénico a que ninguém escaparia, estava lá o contínuo para o fazer
cumprir), repetia o recado palavra por palavra, observando-o matreiramente pelo rabinho do
olho azul, enquanto fingia apurar-se na ágil manobra de restaurar o verniz das unhas.

Rodrigo nem se permitia dar uma olhada pelos dossiers da véspera. Automaticamente, corrigia
a posição do nó da gravata e, de mirada rasteira, dirigia-se à diretoria, premindo o botão que
lhe replicaria com uma luzinha verde ou vermelha ao lado da porta. Pela rapidez dessa réplica
poder-se-ia calcular o humor do diretor, ou antes, do "patrão". "Por onde tem passeado, sr.
Abrantes?" O nó da gravata mais uma vez descentrado. "Não se trata de passear, senhor
diretor. O autocarro..." O patrão só o tratava por "senhor" quando os ares se encrespavam.
Depois vinha a tormenta. O pescoço a inchar, a inchar, não haveria colarinho que o folgasse,
como se fosse explodir do

esterno para cima. Por fim, com as palavras pegadas à boca, o peito num fole, o diretor
apontava-lhe o caminho da saída. Voltaria a chamá-lo cinco minutos mais tarde, nem tanto,
fazendo de conta que o via, nessa manhã, pela primeira vez. A voz afetada, os modos distantes.
Mas aquilo também poderia terminar com um inesperado: "E a sua filha, que tal vai nos
estudos?"

Qualquer coisa assim iria repetir-se daí a uma hora, se, entretanto, não aparecesse outro
autocarro. Mas o patife tardava. É preciso explicar que o autocarro que passava ali, na avenida,
não o punha diretamente na fábrica; Rodrigo tinha de tomar novo transporte na Praça do Chile
e era nessas mudanças e desandanças que, por vezes, as demoras atingiam o ponto de ruptura
com o seu horário. Paciência. A bicha, uma sincronia de pescoços esticados a cada gesto de
impaciência, depressa recuperara o tamanho de momentos atrás. Rodrigo sentiu um gume
mais frio roçar-lhe as orelhas, aconchegou-se com a gabardina e, numa viagem do olhar,
reparou que, à janela do seu quarto, Teresa, à sorrelfa, espanejava um tapete, depois de se ter
certificado primeiro de que nenhum polícia andaria perto a vigiar. E então teve a certeza de
que ela o distinguira na bicha. Quase se atreveu a supor que, mesmo àquela distância, lhe
apercebera a contrariedade de o ver ainda ali. Não se despedira dela, que chatice. Não custava
nada ter dessas miudezas de atenção. Cecília, desprendida e fria, tinha a quem sair. A mulher
ficara-se à janela. A observá-lo? A verificar se ele perderia ou não o transporte seguinte? Na
noite passada, ao voltar-se na cama para adormecer, também não lhe dera uma palavra. E ela
lembrou-lho num censurador "boa noite", a que respondera num resmungo de quem acaba de
ser apanhado em falta. Fora só esquecimento, Teresa, bem sabes que sou um distraidão, nada
acontecera que me enfadasse. Ainda à janela, mas com o tapete já limpo. Rodrigo fez-lhe um
aceno. Repetiu-o uma e outra vez, perante o ar desconfiado de quem o ladeava, até que a
mulher deu finalmente pelo gesto e o imitou numa espécie de jubilosa ou enervada ênfase.
Depois firmaram o olhar na direção um do outro, ou assim parecia, e esse olhar pôs-se
gradualmente evasivo e abúlico. Quando o novo autocarro se aproximou, como que despejado
pelos semáforos, a mulher ficou-se a ver a bicha minguar e só então, lentamente, se recolheu.
Sentia-se tristonha, aborrecida. Pôs-se a lidar pelo quarto, sem muito

reparo no que fazia, um tanto entediada. Foi ao corredor chamar uma vez mais pela filha, que,
como habitualmente, se encafuara na casa de banho, esquecida das horas.

- Cecília, tens o café na mesa. Despacha-te.

Um silêncio melindrado - de quê, Cecília? -, depois a condescendência enjoada: "you já". A


máquina de lavar roupa a chinfrinar na cozinha. Ali havia coisa, o ruído não era normal, mas o
técnico cobrava-se pela medida grande só para atravessar a rua. Havia dois meses que Rodrigo
prometia falar com um dos operários da empresa onde trabalhava, sempre ficaria mais em
conta.

O café a arrefecer, para que o deitara na chávena? E Cecília a fazer-se esquecida. Sentia-se
antecipadamente fatigada do que iria seguir-se. Sem disposição para engrenar num dia que
começara e terminaria como todos os outros.

Esse dia, porém, iria ser bem diferente. O marido não voltaria a casa. Teresa acabara de o ver
pela última vez.

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Não sei definir o que sinto ao descer as escadas do velho prédio onde mora o Faria Gomes. É
como se me tivessem fechado uma porta para sempre. Estou certo de que não voltarei aqui -
ou de que voltarei inutilmente. Acabo de me despedir dele há um minuto e eis que o imagino o
herói de uma história que findou. No entanto, não tenho motivos para supor que ele esteja
moribundo o que me perturba é o que há de absurdo na situação, um absurdo funesto, de
girândola final. (Devo ponderar um pouco mais em tudo isto, o Faria Gomes é uma
personagem, é todo um núcleo de uma Lisboa a pedir cronista. Quem sabe se tenho nas mãos
um romance?) No seu rosto sorvido até aos ossos, nessa inquietante resignação das suas mãos
demoníacas, que aceitam cruzar-se, docilmente, sobre os lençóis cheirando a febre, nessa
doença (pneumonia? tuberculose?) que o faz sujeitar-se à solicitude dos amigos, há uma
incongruência suspeitosa. Temo uma armadilha. O Faria Gomes deveria cair de pé, num
descampado, expondo as tripas às bicadas dos abutres ou à fornalha de um sol desértico. Uma
agonia lúcida, telúrica e sem testemunhas. Desagrada-me que ele colabore neste cenário de
apreensão confortável, com o Neves a impingir-lhe drogas eficazes, com a Bia, sua gueixa, de
lágrima oportuna, a confeccionar-lhe desveladamente novenas e caldos quentes. Este Faria
Gomes é uma fraude: o outro, o autêntico, acabou já.

O absurdo, porém, não está apenas no Faria - uma personagem, sem dúvida, devo passar em
revista certas minúcias da sua biografia. Está em tudo isto: na doença que veio mascarar a
fome exibida que tem desbastado este corpo e o deveria consumir até ao fim, na ternura
discreta do Neves. O Neves, então, espantou-me. Que ele viesse ao quarto do Faria Gomes
para se deliciar com os seus próprios berros, apanhando o outro prisioneiro na cama,

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vá lá; o Neves, porém - estive a observá-lo -, não berra, não discute, não enfola o pescoço de
galo brigão. Às vezes ainda levanta um dedo, o tal dedo virulento que aponta à garganta das
vítimas antes de as degolar com uma foiçada de argumentos, mas fica-se por aí, por um falso
prenúncio de trovoada iminente. Reparei mesmo que chegou a permanecer um quarto de hora
silencioso, fitando o Gomes com uma atenta suavidade. Esse silêncio, essa temperança,
cheiram-me a esturro. Não são dele. Estará o Faria Gomes em perigo de vida?

Creio que, antes de mim, já o doente reparara na atitude do Neves, sobretudo na insistência
com que ele o visita e na sua amabilidade agoirenta. O lógico seria que Faria Gomes não
temesse os pneumococos, menos ainda os abutres e a morte solitária, mas sim a solidariedade
grave e sinistra do Neves e contra ela se' rebelasse, atirando os remédios pela janela afora,
expulsando a Bia a pontapés (linguagem figurada, como é óbvio), indo por aí fora, carne em
pedaços, até que os bichos o devorassem. Esse seria o Faria Gomes que eu cobiço para uma
boa história, talvez um romance, cujo título azado me parece O príncipe. Um senhor. Até na
miséria, um senhor. Uma miséria que atravessou a vida toda, desde a infância vagabunda, sem
pai que se apresentasse como tal, mãe falecida ao dá-lo ao negrume deste mundo, apenas uma
tia desmiolada que já não tinha vista para lhe catar a trunfa crivada de parasitas. Mas da
primeira vez, já homem, que regressou à terra, apeou-se de uma carruagem de primeira classe.
E deu uma gorjeta ao tipo do carro de aluguer, que o levou da estação à vila, ainda hoje
comentada no falatório das tabernas. Ora desconfio que está a acontecer o inverso - nada que
lembre o meu "príncipe". Faria Gomes comove-se com todas as migalhas de ternura que lhe
atiram, lambe-as como um cão faminto. Ou a lógica estará nesta segunda reação? Não sei,
tenho de ponderar nisto. O Faria, o Faria Gomes do olhar desafiador e negro, será até ao fim
um enigma ou, afinal, nunca passou de um pobre-diabo. Um lobo ou um rafeiro. O curioso é
que, neste momento, ao Ouiar as janelas do quarto do Faria Gomes (são duas, muito estreitas,
parecem frestas), sinto uma necessidade urgente de o apurar. A minha personagem'precisa
dessa definição, pois de contrário, não me entenderei com ela.

Nos romances policiais, os detetives sagazes apuram o faro indo muitas vezes ao local do crime
e tentando

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reproduzir, pelos elementos colhidos, a personalidade do criminoso. Um puzzle excitante. Na


construção de certos romances acontece o mesmo. Neste caso do Faria Gomes o local do crime
é o café. Assim, desço as ruas que ele, diariamente, ao começo da tarde (a sua hora matutina),
escolhia para chegar ao centro da cidade, e entro no café das arcadas. É esta a sua mesa. Estes
os comparsas da sua comédia ou do seu drama. Sem saudar nenhum deles, quando muito um
erguer do queixo - tal como ele faria -, peço um "carioca" em chávena e compro o jornal. De
uma maneira geral, A Tribuna, para fazer jeito ao Ferreirinha, que é lá repórter - um repórter
que os outros desdenham, por saberem-no candidato a letrado, desde que deixou crescer um
intelectualizado passa-piolho de uma ponta à outra das mandíbulas.

A leitura do jornal foi sempre para o Faria Gomes um rito minucioso e solene. O café é um
templo, o vespertino um missal. Só nos faltam os paramentos. Abro as páginas a toda a largura,
depois de as sacudir, e, continuando a imitar-lhe os modos, sobretudo a sisudez ressentida, leio
as notícias de enfiada, sem hierarquizar assuntos. O jornal é uma espécie de biombo entre mim
e os outros. Escondo nele o rosto, a curiosidade ou o fastio pelo que se passa à minha volta.
Traço as pernas com ostentação, embora sabendo que não conservarei a postura por muito
tempo: sofro de varizes. Faria Gomes não sofria de coisa alguma. E, no entanto, acabo de lhe
assistir àquele ar seráfico, preso de uma verdade ou de uma mentira do Neves, consolado dos
mimos da Bia, que dorme aos pés da cama do seu amo, numa esteira acolchoada.

A notícia da doença já é conhecida (a partir do Ferreirinha não há segredo que não infeste
Lisboa), conquanto, habitualmente, ninguém repare que um dos companheiros de tertúlia
deserte por uns dias ou por uns meses. Uma coisa é este convívio efémero, ou antes,
artificioso, do café, onde se projeta ou onde se encena uma atividade suspeitosa, e outra os
amigos com quem, sem prevenções, nos misturamos; uma coisa é a nossa personalidade
(fictícia?) de literatos e outra a que corresponde às tarefas legítimas, ser amanuense ou
advogado, por exemplo, iguais às do comum das pessoas. Vivemos uma vida dupla - um dos
palcos da nossa zona de clandestinidade é este café. Reparo, às vezes, nas outras tertúlias que
por aqui se vêem, cada uma com o seu território demarcado - as
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de comerciantes, médicos, técnicos, gente assim. A maneira como se comportam (riem com
uma saúde que lhes vem de dentro, falam sem mordaças) e se relacionam nada tem que ver
com a atmosfera de rabiosa cumplicidade que observo na nossa tertúlia. Não haverá uma certa
morbidez nessa atmosfera? Eis um pormenor em que devo demorarme, se um dia me atirar ao
tal romance.

Dobro o jornal, raspo com a colher o melaço que ficou no fundo da chávena. O Alcindo, na sua
perpétua sonolência de pálpebras a meia haste, olha-me insistentemente os ombros e
aproxima-lhes tanto o nariz, um grosso nariz de cónego glutão, que parece farejar na minha
roupa o odor ainda fresco da moléstia de Faria Gomes.

-Coitado, coitado... Como foi possível uma coisa tão repentina?

E suspende-se, meditabundo, como se ruminasse já o epitáfio do Faria Gomes. O Alcindo é


mestre em prosa fúnebre. Cada escritor que morre tem direito a duas colunas de pungente
evocação (o seu prestígio no jornal permite-lho), que é uma espécie de vingança pelo descaso
dos vivos, a ponto de a maioria dos leitores, contagiados de póstuma e culpabilizada
reverência, se interrogarem mas afinal quem foi este tipo? Porém, os adeuses literários do
Alcindo são sentidos, ninguém o negará. Em parte, porque ele também se assumiu como
escritor, embora frustrado - deu à luz, com esforço, apenas uma magra biografia de Rilke. E
sobretudo porque nessa sinceridade há um protesto e um grito de socorro. Alcindo, um
corpanzil lento, as calças folhudas sem vinco, apanhou uma pérola sequestrada que podia ser
sua filha, e não quer morrer. Cada um que desaparece lhe avisa o pressentimento de que a sua
hora poderá não tardar. Mede a tensão arterial todas as semanas.

- Que idade tinha ele?

- Tinha, não. O Faria Gomes está mais vivo que você. Mesmo doente, seria capacíssimo de
cobrir duas ou três mulheres de enfiada, de lhes fazer uma ranchada de filhos. Nunca precisou
que lhe injetassem hormonas.

A réplica veio do Ferreirinha, seu rival, ou antes, seu declarado adversário n'A Tribuna.
Desconfia-se que Ferreirinha nunca passou de repórter, ou seja, de pau para toda a colher,
porque o Alcindo lhe corta pela raiz as oportunidades. Ele, no vespeiro da redação, é poderoso.
- Isso é piada?

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É, claro, e sangrenta. O Alcindo corre os consultórios à procura de uma pujança perdida, desde
que descobriu a mocinha e lhe pôs casa. Mas achei que o Ferreirinha foi demasiado longe na
crueldade. Não está nos seus hábitos. Entre os da tertúlia, é, aliás, dos menos venenosos,
quando ataca fá-lo mais por mímica, talvez porque, ao zangar-se, às vezes gagueja.

-Isso é piada? - repete ele, numa lividez sofrida, passando as mãos, um tanto senis mas
aristocráticas, pelos restos desbotados da cabeleira, nos últimos tempos apenas atufada nas
têmporas. Depois pôs-se a fixar um ponto vago, lá longe, agora que o alvo dos meus ombros
fora desviado pela interferência do Ferreirinha.

Largo definitivamente o jornal e estico as pernas, que começam a ficar dormentes. Ó Castel-
Branco, até aí alheado (só na aparência, todos o sabemos), morde o cigarro e pergunta-me lá
dos altos da sua suficiência:

- Como está ele, afinal?

-Não faço ideia. Mas a sua magreza impressiona. Não vais lá?

- Receio não ter coragem.

Não tinha, nisso ele não estava a representar. O que justificaria dúvidas era se aqueles fundos
sulcos aos cantos da boca seriam de comiseração ou de repulsa. O sofrimento físico, que ele
interpreta como decadência, injuria-o. E, no entanto, o Castel-Branco nunca foi de cultivar
ginásios. Pelo contrário, até faz gala nos bracitos definhados (como quem diz: quanto a miolos,
o caso é outro), nos cabelos a arruçar a destempo, uma madeixa, que parece encanecida à
força, a revoltear-se sobre a testa cheiinha de pregas, tudo à Faulkner, seu patrono. Deu
mesmo em beber uns copos para que as coincidências se multiplicassem. Mas que a doença
lhe provoca repugnância, isso sabe-se. Há no Castel-Branco (e eu conheço-o bem) um secreto
padrão de virilidade, que a natureza, às vezes velhaca, capricha em lhe regatear. Diz-se pelos
cafés que está impotente, e acredito. No dia em que ele se resignou à masturbação, um tanto
como represália contra o requinte vingativo da governanta com quem, solteirão, vivia e que,
por castigo de infidelidades (sempre com prostitutas, sua especialidade), o expulsava da cama,
era de contar que as coisas se acelerassem. E se aceleraram. Não houve técnica que o
espevitasse. Agora, resta-lhe o rancor pelos que ainda são capazes de uma ereção eficaz. Ajusta
contas nos seus

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Textos apologéticos, rodapé semanal n'A Tribuna (às segundas-feiras), onde não falha um
detalhe que possa enxovalhar os concorrentes. O Castel-Branco tem a alma de um pide. Foi
para isso que nasceu, está provado. De tudo o que se passa ao alcance das suas antenas, e
sobretudo do que distorce ou fantasia em seu proveito, faz um registo acusatório que faria
inveja ao mais aplicado dos bufos. O rodapé é um sucesso; o jornal aumenta a tiragem nos dias
em que o publica.

Ele foi meu companheiro em Coimbra, há um ror de tempo, no período heróico desta geração.
Estou a vê-lo de batina esverdinhada, conhecido já pela avareza e pela perícia de onanista, logo
azedado, e para sempre, quando a sua namorada, uma "pára-quedista" vinda não sei donde,
decidiu trocá-lo por um certo "Esfola-Virgos" (era a alcunha), que punha as mulheres em
estado de as levarem ao hospital para uma cosedura de urgência, e que, portanto, se mostrou
mais apreciadora da fornicação do que do gozo manual. Creio que a obra e o temperamento do
Castel-Branco têm nesse fait-divers a sua exegese. Coimbra - foi há séculos e é um presente.
Quando olhamos para trás, sentimo-nos perdidos ou transviados; por isso nos encaramos com
resguardo, como se temêssemos averiguar qual de nós traiu.

Mas estou a ir depressa demais. O fait-divers porventura decisivo (são apenas cogitações
minhas) nem foi esse, não. Se quem me lê passou por Coimbra entender-me-á melhor. Que era
Coimbra para essa rapaziada adolescente, ainda a sair da casca e a fazer o seu tirocínio das
pessoas e das coisas, tantas vezes em condições de pura brutalidade? Aquilo tinha de ser um
banho batismal de emancipação numa pia de água a ferver. Os ingénuos, os tímidos e os
amimados não podiam contar com uma liturgia de punhos de renda. Nada disso: o mergulho
era súbito e impiedoso.
Ora, a essa iniciação pertencia uma instituição familiar que me consta ter acabado: as casas de
putas. Não disse "familiar" por acaso. com menor ou maior assiduidade, ia-se à Olindinha ou à
Elisabeth (as patroas mais prestigiadas com material de primeira) nem sempre por imposição
dos ardores sexuais, que, nessa época, muito dificilmente tinham outro meio de serenarem; ia-
se para nos sentirmos numa atmosfera convivente, agasalhada, divertida, tudo isso junto, e
onde se respiravam presenças femininas. Ia-se para fazer sala. Havia um sofá comprido,

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naturalmente com o forro verde numa lástima, por de cima um espelho tamanhão a apanhar
quase toda a parede, mais uns cadeirões de duvidosa segurança, pois serviam com frequência
de arpéu ou de escudo quando se armavam rixas, e, ao fim da tarde, sobretudo ao serão,
aquilo enchia-se. "Meninas à sala", era o clarim de guerra, e lá vinham elas ainda a ajeitar os
bandós. Às vezes, porém, o tempo passava árido, bocejado, com as raparigas frustradamente
distribuídas nos lugares estratégicos, saia acima, saia abaixo, o rego das mamas descomposto,
um braço que se estende como por acaso e não encontra réplica, um olhar lascivo a sugerir
prazeres suplementares, por último o fastio de um croché ou de uma revista de atualidades
que se vão buscar à prateleira - e nem assim um cliente (muitos deles irresolutos ou timoratos)
se decidia ao sinal convencionado, após o qual a puta se levantava sem mais perda de tempo,
pegando na mão do candidato, se este lhe merecia a familiaridade, ambos subindo, sob as
vistas cúmplices dos demais assistentes, os três degraus que levavam ao patamar das alcovas,
quase todas do mesmo modelo - a cama de corpo e meio, o lavatório portátil, o bidé, o penico,
excepcionalmente a cómoda com frasearia de bondoir. O sinal podia ser um breve deslizar de
cabeça, um dedo que muda de posição, subtilezas cabalísticas cuja linguagem só os convertidos
decifram, como nos leilões, ou, em contraste ostensivo, a proposta bem-declarada de gozos a
preço fixo. É que (repetindo) eram mais as vezes em que se ia à Olindinha (já na reforma) para
a vermos delamber-se narcisicamente defronte do espelho emoldurado a talha dourada -
"Filho, eu hoje até parece que bebi éter" -, para ser convidado às ceatas no terraço do terceiro
andar, que terminavam com uma companhia na cama a noite inteira, "só por amor", para se
escrever as canas às meretrizes analfabetas, para se desabafar um desgosto, do que para
cumprir um calendário sexual. Ia-se (desculpem a heresia) para nos sentirmos num lar - as
pensões e as "repúblicas" de estudantes é que nunca poderiam fingir que o eram, não há lares
sem mulheres.

De quando em quando, nesse convívio ritualizado, em que a grosseria coexistia com a


afetuosidade larvada, rebentavam paixões. Ou da parte delas, as pobres, no seu zoo carcerário,
ou da parte deles, na idade em que o mundo se descobre pondo nele toda a sentimentalidade
e toda a vibração. O Castel-Branco, acanhado e lúgubre,

i
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indo reveses que só mais tarde teriam uma expressão ;ativa, foi um dos que passaram a
frequentar a idinha, não apenas já como se participa de uma seroada léstica, mas, sobretudo,
porque todo ele ardia no fogo Aurora Zarolha. Não era o único da corte privada da ora, mas
depressa o consideraram oficiosamente o isio preferido - pouco importavam as razões, embora
sse de se estranhar que a Aurora, um nadinha estrábica que talvez a fizesse mais apetitosa,
sabe-se lá), mas hora do mais sumptuoso corpo do Terreiro da Erva, se atenção àquele
gimbrinhas incapaz de, no salão, ter s falas amalandradas, meter-se numa boa briga,
enrolarluma mulher entre dois passos de tango ou, sequer, de

propor irem para a cama. As coisas, porém, são como . com o andar dos tempos, o Castel-
Branco, a bem í r, instalou-se na Olindinha. Depois das aulas, ali era o e achado. Mudo e quedo,
um olhar de raivas baciadas, mas firme. Tão da casa como o Niquitas, um irata moço de
recados das raparigas só a troco de fazer te da família. O Castel-Branco esperava em silêncio,
no uro, que a clientela rareasse e que, enfim, a Olindinha nensasse a Aurora das suas
obrigações profissionais. O soai gozava. Havia mesmo um clã de estudantes igateiros que o
tomara de ponta, atirando-lhe sem nência as indiretas mais soezes - "cá o nosso :a-cricas", e
assim por diante. Nessa época havia irtados códigos de licenciosidade, e o Castel-Branco, por
to, ofendia-os.

O grupo eri capitaneado por dois boémios afamados, "Come on Brothers" ("Camones",
aportuguesando), que ivam a lei nofar west académico. Eram simultaneamente ifes e
pistoleiros. Um murro deles levava um tipo a jar o chão, o Niquitas punha-se logo borrado
quando os ria à distância. Até a polícia, posta continuamente em lações caricatas, os temia,
quanto mais ao largo melhor, era escusado acrescentar que, se decidiam fazer a ronda Terreiro
da Erva, as salas esvaziavam-se de fregueses ;ntuais, mais ainda de tudo o que cheirasse a
futrica.

Mas o Castel-Branco aguentava. O seu gólgota, porém, baria por lhe impor limites. E teve-os.
Da condescenicia, a Aurora passou depressa ao enjoo, deste ao ;dém e deste, ainda, ao
deliberado vexame. A partir de ta altura, maldosamente, esperava que um cliente a imasse e,
terminadas as funções, fazia um sinal ao

apaixonadiço. Sinal impositivo, amestrador. Como se quisesse que ele fosse chafurdar no que
os outros lhe deitavam no corpo. E que todos soubessem disso. O Castel-Branco andava nas
bocas de Coimbra inteira, uma vergonha.

Até que. Até àquela vez em que a Aurora Zarolha repetiu o infamante convite e em que um dos
''Camones" o enlameou de alto a baixo:
- Lá vai o cachulo da Aurora.

Nem uma reação do Castel-Branco, à parte a terrível palidez. Mas, dez minutos depois, ouviu-
se um grito agudíssimo, vindo do lado dos quartos. com um instrumento que fazia parte do
estojo de unhas da Aurora, ele rasgara-lhe o ventre do umbigo ao sexo. Ferida superficial, mais
sangue que outra coisa, mas para susto chegou.

Quando as primeiras pessoas entraram no quarto, arrombado à força, ainda ele tinha o objeto
nas mãos, os olhos vidrados, a expressão em transe. Mais nada do que isso. Os "Camones"
levaram-no sem protesto, era preciso abafar o caso, para enxovalho bastara, a Olindinha
saberia como calar o mulherio.

No entanto, mais tarde, e bem relacionadas as coisas, o incidente até deu prisão - talvez um dia
eu volte ao assunto. De qualquer modo, será curioso observar que o Castel-Branco ainda hoje
tem este gesto de pegar em pequenos objetos metálicos que lhe estejam à mão e de os reter
distraidamente nos dedos, numa carícia que vai embravecendo e às vezes faz medo.

Deixemos isso. O que eu aqui vinha procurar eram os sinais do Faria Gomes e não os encontro
neste Castel-Branco para quem o mundo é uma ilha (ELE) cercada de vazio por todos os lados.
Encontrá-los-ei no Alcindo, no Ferreirinha, que está com o desassossego de um caçador
furtivo? Não me parece. Decididamente, hoje o café nada me diz do Faria. Não sentimos a sua
presença, aquela espécie de presença de alguém que deixa por momentos um lugar, o marca
com um lenço, um livro, ou apenas a tepidez do seu hálito, e regressa em breve. O que
sentimos é a sua ausência. É bem diferente, embora não seja menos significativo. Isso. Afinal, o
fato de não o sentir aqui é estimulante. Poderei evocá-lo, recriá-lo, inventá-lo. Ele é o meu
"príncipe". E ponho-me a associar recordações,

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imbuindo-me da atmosfera que elas me sugerem, salientando pormenores que, na altura,


deixei que se desperdiçassem.
Foi aqui que nos conhecemos, no Café Martinho, embora de há muito o áspero Faria Gomes
das novelas rústicas, que nos davam a sensação de um baldio de cardos lavrado a suor, me
fosse já familiar. Mas aí começava o mistério: por detrás das frases sincopadas e rudes, do
fragor sensual da narrativa, havia uma sentimentalidade vulnerável. Os críticos tentavam-se às
vezes a falar de lirismo "bárbaro", à Fialho. Talvez. Mas a designação não me satisfazia de todo.
De qualquer modo, naquela prosa havia fosse o que fosse de secreto e frágil. E também de
obsessivo, conquanto sem qualquer parentesco com as obcecações filosofantes, do estilo o-
mundo-todo-no-meuumbigo, do Castel-Branco.

Faria Gomes era magro, como eu o imaginara. Sabia-se, de resto, que passava fome.
Literalmente fome. E pude então verificar quanto eram fiéis as fotografias que no-lo
apresentavam como um eremita apanhado no covil, sobrancelhas furibundas, os olhos dois
fuzis no instante do disparo. A expressão era de uma mobilidade estonteante. As unhas, à
mandarim, de um amarelo tabágico e agressivas.

Respondeu com um resmungo à minha abordagem de apresentação, enterrou-se no jornal


logo a seguir, e foi à saída que, mascando as palavras (reparo agora que o Ferreirinha o imita
nessa maneira de falar), evitando olhar-me de frente, disse:

- Você cheira a província que tresanda. Gosto disso. Senti-me imediatamente envergonhado
das minhas

botas labregas e do camisolão que trouxera: o meu exibicionismo de provinciano, que faz luxo
em ostentá-lo, não escapara ao Faria Gomes, que escolhera aquele tiro direto para mo
salientar. Mas só depois de ninguém mais nos poder ouvir - atenção ao pormenor. Retorqui:

- Se se refere ao meu traje, sempre me vesti assim. Suspendeu a marcha, preguicenta mas bem
ritmada,

encarou-me com melindre:


-Que ideia. Que tenho eu com a sua maneira de trajar? O que me interessa é você, o que você
me traz desses sítios onde vive. Das coisas que mais me tentam seria o reencontro periódico
com os cheiros da terra onde

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nasci. Os cheiros, note bem, e quase nada as pessoas. Gosto do odor do mijo, do gado, do
estrume. Não conheço cheiro mais autêntico do que o do mijo. Admira-se?

- Por que não passa temporadas na sua terra?

- Eu não sou dos que regressam. Seja aonde for.

E lá fomos na direção do Chiabo, nossa coutada tribal.

Ferreirinha corta-me os pensamentos:

-Já viram o filme do Osório? Bestial.

Castel-Branco arredonda a boca, em eu de galinha, pregueia a testa, leva o polegar direito à


cava do colete o Faulkner usava colete. E colocando a voz no timbre catedrático, interpela-.

- Diga-me onde está esse "bestial".

Vamos ter o Ferreirinha a gaguejar. Vamos ter o Castel-Branco numa devastadora peroração.
Ele sente como uma ofensa pessoal qualquer elogio dirigido seja a quem for, mesmo excêntrico
à sua zona estratégica - a literatura. Num país tão escasso, o génio não pode desbaratar-se por
muitas pessoas. Seria um desperdício. É indubitavelmente mais justo que se concentre numa
única pessoa - ele. Aliás, é o que os Textos apologéticos (teria ele posto uma ironia equívoca,
mas provocante, no título?) nos sublinham todas as segundas-feiras, a ponto de o Faria, na
altura em que o rodapé ainda aquecia os soalheiros literários, lhe ter dito:
-Você, que é todo Jorge Luís Borges, leu por acaso esta frase dele: "A mais estúpida tentação
do artista é a de julgar-se génio"? Mais ou menos isto.

- A que vem a piada?

- Era só para saber.

Afinal, dentro de momentos, o Faria Gomes vai ser esquecido. Ou já o foi. Não tenho hoje
disposição para os torneios verbais do Castel-Branco. Daqui a nada ir-me-ei embora, talvez
ainda escreva uma página ou duas antes de jantar. A dúvida está no assunto. Começo uma
história quase com raiva e, meia dúzia de palavras além, logo a sinto frouxa e mastigada. Não
posso expor-me a mais um fracasso. O Faria Gomes seria um ponto de partida excitante, tenho
esta atmosfera toda dentro de mim, a guerra nas Áfricas, o marasmo, o mal-estar, uma
juventude desesperada, tenho esta erosão a desertificar-me, sinto a expectativa
antecipadamente exausta, estamos na sala de espera de uma estação de caminho de ferro sem
saber a que horas chegará o comboio, sem saber, tampouco, qual o

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seu destino, tenho tudo isso dentro de mim, o país descrente, o êxodo, a fadiga, é como se
fosse um rastilho a pedir que lhe deitem fogo, do que preciso é do gesto decisivo. Que gesto?
Que empurrão? O Faria Gomes, talvez, não ele propriamente, bem o sei, mas tudo o que pode
convergir ao seu descalabro. O pior é que ainda não estou certo disso, poderei muito bem
tomar a nuvem por Juno. E se eu tivesse a coragem de deixar de escrever, mesmo à custa de
assistir à minha agonia? Não serei capaz. Tenho de percorrer a minha vida na solidão que
escolhi.

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Os jornais não pegaram no caso às primeiras. Por desconhecimento dos fatos e, mesmo que
assim não fosse, porque Rodrigo não era ninguém. Nessas circunstâncias, seria preciso que a
própria imprensa criasse a notícia e criasse o herói. A partir daí, sim, já tudo poderia suceder.
No verão passado, por exemplo, A Gazeta preenchera uma página inteira com uma reportagem
sobre (transcreve-se o título) "Álcool, prostituição, morte - crime passional reconstituído em
Santa Tecla". Reportagem assinada por Alfredo Mourão. Nela se lia (transcreve-se o recheio
com ligeiras alterações):
"Para a maioria das pessoas (algumas centenas) que, na tarde de ontem, suportando o calor, se
mantiveram durante horas no monte de Santa Tecla, em Joane, a alguns quilómetros de
Famalicão, o homem que, perante uma equipe de investigadores da Judiciária, exemplificava a
forma como praticara um crime ali ocorrido quatro meses atrás, não passava de um maldito ou
mesmo um 'animal que nunca mais terá perdão', como lhe ouvimos chamar.

Algum tempo depois da reconstituição das várias cenas de que o Esganado' foi protagonista, o
juízo modificava-se já e, então, essas mesmas vozes, que pouco antes o acusavam, referiam,
em jeito de contrição: Mas qual de nós não faria o mesmo? O pobre do Esganado' quis
defender a sua honra. Temos a certeza que o tribunal saberá compreender.

Henrique da Silva, de trinta anos, e sua mulher Gertrudes da Silva, de vinte e sete, pais de três
filhos vivos e de outro que morreu, formavam um casal que vivia miseravelmente. Era à base
de esmolas que, na maioria dos dias, se alimentavam, revertendo algumas moedas para o
álcool. A habitação da família era um casebre com cerca de

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doze metros quadrados, onde uma enxerga, algumas tábuas e uma borralha constituíam todo o
mobiliário".

Depois vinha um subtítulo: "Toda a vida foi um vadio". E o relato prosseguia-.

"Foi em 8 de março findo. Na casa do Esganado' o ambiente era de indigência. As crianças


vestiam-se dos restos de um ou outro familiar, que por vezes também lhes matava o jejum.
Terá sido essa mesma miséria que segundo o Henrique - um dia a atirou para a prostituição.
Quanto a algumas vizinhas, o Esganado' toda a vida fora um vadio, nunca se tendo preocupado
como e onde a mulher arranjava algumas moedas.

Depois de, por várias vezes, se ter travado de razões com conterrâneos seus, que acusava de o
traírem, enquanto eles lhe diziam Vai-te embora, chulo', o Henrique sentia-se de cabeça
perdida. Em 8 de março viver-se-ia apenas mais uma etapa. Na madrugada seguinte, o corpo
de um homem banhado em sangue aparecia morto num caminho do montado, não muito
distante do casebre do Esganado' e da Gertrudes. As autoridades locais entraram de imediato
em ação. A maioria da população local acusou o Henrique e, entretanto, a mulher sucumbia a
uma forte dose de remédio contra o escaravelho.
Mas tudo acabou por ser esclarecido, o drama do Henrique é deveras impressionante. Ele
próprio nos falou da sua vida, das suas andanças pela guerra de África, da sua tristeza quando,
de regresso à terra, era recebido com comentários como este: Vai-te embora, chavelhudo, a
tua mulher é de todos'.

Eis a sua versão da noite do crime. Era já noite, talvez dez horas, quando discutimos pela última
vez. Ela chamou-me corno e filho da puta. Depois saiu. Meti uma faca no bolso do casaco e
segui-a de longe. Foi ter com o amante. Às tantas, desconfiaram de alguma coisa e separaram-
se. Ela desandou para baixo e ele regressou à estrada. Foi já nas bermas que nos cruzamos, eu
e o amante. Agarramo-nos, caímos juntos, eu fiquei por baixo e ele a bater. Nesse momento,
saquei da faca. Um de nós teria de morrer.'

As palavras, acompanhadas de gestos, de novo as ouvimos na tarde de ontem. Foi assim,


senhores, foi tudo como lhes disse', afirmou, já no final da reconstituição do

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crime. Caminhando pelos mesmos atalhos, repetiu friamente a cena que então se terá
desenrolado. O que depois se passou em casa faz parte do segredo da Justiça. É provável que
tenham discutido. Há mesmo quem afirme que a mulher ameaçou denunciá-lo. O que é certo é
que poucos dias depois a Gertrudes era cadáver".

Um último subtítulo - "A bênção do pai". E lia-se:

"Já no termo da reconstituição, o Esganado' foi autorizado a deslocar-se ao quintal de


familiares. Irmãos e cunhados procuravam esconder a emoção, enquanto o Henrique beijava
os filhos. Um velho aproxima-se do Henrique, que se emociona pela primeira vez e lhe pede a
bênção. É o pai. Este estende a mão, mas não responde. Não tem palavras, mesmo quando lá
do fundo dos bolsos das calças retira os únicos cem escudos que possui e os entrega ao filho".

com esta reportagem, A Gazeta criara o acontecimento, e o Henrique, que não era ninguém,
passara a ser o'Esganado', isto é, alguém. Pelo menos, para uma boa porção de leitores, sem
excluir intelectuais, como um tal André Bernardes, frequentador do Café Maninho, onde o
jornalista Alcindo comentara profissionalmente a reportagem com alguma acerbidade. Mas
esse André Bernardes colocava-se noutra perspectiva, enfrentando com irritação o olhar triste
e sonolento do seu opositor:
-Não é isso, Alcindo. Você, noutros tempos, também escreveu destas coisas, ou não? -
Concordância pesada do outro, num aceno reprovativo, que permitia várias interpretações. -
Eu apenas quero frisar que um país está nas páginas dos seus jornais. Basta lê-los.

Nessa altura, Castel-Branco, outro da tertúlia, transigira em descer a essa pobre arena onde se
discutiam assuntos tediosos, menores.

-Se tu não havias de deleitar-te com o suco miserabilista do dramalhão! Simplesmente


grotesco.

Talvez fosse. Mas seria difícil que qualquer assunto resistisse à óptica mordaz do Castel-Branco.
Incluindo o do desaparecimento de Rodrigo dos Santos Abrantes, se a imprensa, como afinal
veio a suceder, lhe deitasse a mão. Deitou-lhe, pois, e ocasionalmente, embora logo com um
tempero intrigante. Estava assim forjado o "mistério do

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cacilheiro", como haveriam de crismá-lo com inspirada propriedade, sabendo-se quanto o


leitor mais esquivo morde sempre no isco das brumas e das assombrações.

Calhou um repórter d1 A Tribuna' (diga-se, desde já, que foi o Ferreirinha) entrar num café,
correr ao balcão para não perder tempo a ser servido e sentir uma espécie de ferroada na sua
curiosidade sempre em alerta ao captar frases de dois parceiros que lhe ficavam à ilharga. O
diálogo decorria mais ou menos assim:

-Pois é, mas um homem, quando desaparece, é para ser encontrado. Nem que seja num
buraco. E ele não tinha razões para se pôr na alheta.

- Então foi assaltado.

- E depois, volatilizou-se?
-Ou raptado. Crime, houve. Cheira-me a crime - e ajustou a samarra aos ombros.

O outro pareceu reticente e, enquanto media aquelas hipóteses, foi adiantando:

- Isso é no cinema que acontece.

Ferreirinha, com um fervilhar na garganta, pediu nova bica, a perna direita pusera-se a oscilar
na banqueta. Estivera dois anos em Bruxelas, lavador de pratos num restaurante, para escapar
à tropa, casos daqueles havia lá em barda, um repórter só tinha a dificuldade da escolha.

-Acontece onde tem de acontecer, pá. E a verdade é que o Rodrigo era...

- Era ou é? Vê-me lá esse tempo dos verbos.

-Lá estás tu. O Rodrigo era um tipo que não pisava o risco. Se ninguém lhe põe a vista em cima,
nem em hospitais nem em calabouços, é porque o mataram.

- Calabouços? Que raio de conversa é essa?

-Quem desaparece, tem de estar nalgum sítio, foi o que tu próprio disseste.

Ferreirinha estava já com um atraso de dez minutos, daí a pouco não seriam dez nem vinte, ia
haver um aranzel danado com o chefe, sob as vistas regaladas do Alcindo, mas aquilo não era
de perder. Podia até dar-se o caso...

-Talvez um acidente. Quem é que havia de querer matar o Rodrigo?

-Um acidente? Sim, também pode ser. Um carro apanhou-o e, para evitarem
responsabilidades, despejaram-no aí num sítio qualquer já costa.
- Chiça, não te parece que estamos a exagerar?

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De súbito, Ferreirinha associou toda aquela leria ao evento que, anos atrás, pusera o Alcindo
na confortável posição que tinha hoje no jornal - um terço de coluna por dia, sempre
cabalística e maldizente, e o resto do tempo a ver os demais a esfolarem. Fora uma
reportagem. Nos bancos dos hospitais, lixo humano, terra-de-ninguém de cruezas e dores. A
Ordem dos Médicos escandalizada, a rádio e a televisão a apregoarem o feito do Alcindo. Só
faltou passearem-no pelos ombros. A partir daí, e com a ajuda do Rilke, não havia chefe de
redação que pusesse um dedo no Alcindo. Virado a letrado, depois de o terem esquecido como
herói. Borrando nos outros. Sacaneando com deslavada impunidade.

-Qual exagero? Um acidente, pois, não tinha pensado nisso. E a polícia? Já foram à morgue? A
filha, uma telhuda, nem quer ver ninguém.

Nessa altura, Ferreirinha teve de respirar - intervindo. Ei-lo a passar várias vezes o indicador
direito pela asa do nariz, os olhos estreitados como numa espera.

-Os senhores desculpem, mas de quem estão a falar?

- assentou logo o antebraço no balcão, inclinando a cabeça para o mesmo lado, que era o seu
modo de estar atento.

Sondado o homem, um deles retorquiu:

- De uma pessoa nossa amiga que desapareceu.

- E isso já é conhecido?
-Conhecido de quem? - desafiou o outro, o da samarra, avaliando com relutância o
intrometido.

- Dos jornais, por exemplo.

- Isso creio que não. Pelo menos, não ouvi dizer.

- bom, eu sou jornalista.

Era jornalista e, a partir da reverenciosa surpresa alastrada no rosto dos sujeitos, não duvidou
de que ganhara o dia. Aqueles iriam fosse aonde fosse para lhe recolher os ingredientes
necessários a uma boa reportagem. Nem daria ao chefe tempo para abrir a boca quando lhe
entrasse na redação com uma "caixa" no bolso. Se os tipos tinham falado num desaparecido,
em morgues, etc, não iria ficar de mãos vazias, por muito que a realidade estivesse longe
daquela excitação.

Levaram-no dali à casa de Rodrigo, um quarteirão acima. Um deles até insistira em lhe pagar as
duas bicas.

A mulher acudiu à campainha, entre ávida e assustada, quase certa de que aquele
desconhecido que se deixara

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ficar para trás dos amigos de Rodrigo lhe trazia más notícias. A mão cravada na ombreira da
porta, o olhar receoso, e não menos sombrio, correndo-os um por um. A palidez dera lugar a
um brusco rubor quando lhe ouviu:

-Só precisava que me respondesse a umas perguntas. Coisa pouca. Sou jornalista.

-Entrem, por favor - agora numa voz pausada, que tinha mais fadiga do que inquietude, em
desacordo com o que lhe ia na expressão.
Afinal, a mulher (lindos olhos verdes, um verde marinho, uma pessoa tinha mesmo que
reparar) nada sabia, pouco dizia, parecendo bem mais preocupada em se desfazer do avental,
que decerto acabara de vestir momentos antes de eles a procurarem. Aquilo não valia um real.
O Alcindo, se o adivinhasse ali, teria tido um daqueles seus espaçados risos brancos, só mímica,
nem um som. Provavelmente, o homem escapara-se de casa depois de uma trivialíssima briga
doméstica. Estava nalgum hotel dos arredores, quem sabe se consolado por uma putéfia. O
pormenor da ausência no emprego, em si mesmo também banal, é que, apesar de tudo,
permitia algumas especulações. Ferreirinha sentia o seu faro beliscado. Esse Rodrigo teria saído
de casa já com a intenção de... É verdade: e teria levado consigo roupa, objetos pessoais?

-A senhora tem telefonado para os escritórios da fábrica?

-A toda a hora. E eles também telefonam. Ninguém percebe, ele não era de faltar.

- O seu marido saiu de casa levando alguma mala?

- Que mala?

-Foi cá uma ideia, desculpe. Como se chama a empresa onde ele trabalha?

-Novilectra. Tem escritórios comerciais e tem fábrica. Em edifícios separados. O senhor vai
escrever tudo isso?

- Não sei ainda.

-Eu preferia que não - as mãos suaves e apreensivas a afagarem-se sobre o joelho um tudo-
nada proeminente. Mas via-se que estava indecisa. - Gostaria de pensar um pouco mais em
todas estas coisas. Estes senhores conhecem bem o meu marido,

-Eles já mo disseram. - Naquela mulher havia fosse o que fosse que o enternecia. Fragilidade?
Não, longe disso, talvez antes um desencanto que se aceita sem drama e sem acusar ninguém.
- E a polícia?
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-Correram os hospitais e... outros sítios. Nenhum

sinal.

- Como é o seu marido?

- O que quer dizer com essa pergunta?

Ferreirinha acudiu a um prurido na barbicha. A verdade é que fizera a pergunta à toa, como se
esperasse que um imprevisto, frase, gesto, cataclismo, viesse salvarlhe a reportagem. Ali, entre
eles, estava o Alcindo, era essa presença que ainda o incitava a ser paciente, pois, de contrário,
já se teria escapado para o jornal.

Um dos amigos de Rodrigo respondeu pelo repórter:

-Os jornais costumam descrever a aparência das pessoas, não é?

Ferreirinha aquiesceu, mas desagradado. Parecia-lhe que estava a cometer uma má ação. Ela
dizia agora, numa estranha calma:

-O meu marido é uma pessoa sossegada. Estes amigos sabem.

O repórter, desiludido, não insistiu. Não adiantaria. Só quando chegou à rua, sempre
acompanhado dos seus solícitos medianeiros, é que se lembrou de que deveria ter pedido uma
fotografia do desaparecido. Mas não valeria a pena voltar atrás, de certeza que o chefe não a
iria publicar. Nem a fotografia nem coisa nenhuma.
Mais tarde, no Café Martinho, o Alcindo contaria as peripécias jornalísticas do Ferreirinha, de
meias com uma segunda dose de Tríplice, e o Castel-Branco, de queixo em proa,
majestaticamente chateado de tão fraca sociedade, comentaria displicentemente;

-Você agora, meu caro Ferreira, saiu-me detetive. Não está mal. É assim que começam os
realistas durázios. Como aqui o nosso André Bernardes.

O Bernardes e o Castel-Branco eram dois galos no mesmo poleiro. Um dia, as esporas de um


deles ficariam sangrando. Decapitadas. Mas enquanto o Bernardes era de jogo limpo, ainda
que bravo, o outro maquinava pela calada, avançando os seus peões de briga, tendo o Alcindo
como reserva estratégica.

Apesar do cepticismo do Ferreirinha, A Tribuna desse mesmo dia noticiava, em nove linhas e a
uma coluna (sem filete), o "estranho desaparecimento de um tal Rodrigo dos Santos Abrantes",
chefe de família com vida regrada, pai de uma estudante da Faculdade de Ciências. Era casado
com Teresa Castro Souza Abrantes, doméstica, e empregado da

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conhecida firma Novilectra - boa anunciante do vespertino. A quem eventualmente soubesse


do seu paradeiro, a família agradecia, etc.

Era tudo o que restava das duas esforçadas laudas de original que o repórter pusera nas mãos
do chefe da redação, um espirra-canivetes de cigarro pendente, após se ter justificado que
demorava lá fora porque, daquela fortuita conversa de café, lhe palpitara uma "caixa".

- "Caixa", esta merda?

O repórter encolheu os ombros, por sorte que o Alcindo não assistira, fora aos lavabos - ia lá de
meia em meia hora. Estava habituado àquela linguagem. A relativa afabilidade de trato, da
parte do chefe, só se dava por ela de redator para cima. Apenas cismara no pormenor de ter
escapado ao lápis censório do chefe (um lápis azul, grosso, libidinoso) aquela referência à filha
estudante da Faculdade. Por outro lado, ficara certo de que, se a notícia saíra, mesmo assim
tão escassa, se devera a uma relampejante associação de ideias do chefe:
-Ouve lá, essa Novilectra não é cliente? Pergunta aí à Publicidade.

A Publicidade dispensara a consulta aos arquivos:

- Um anúncio quase todos os sábados.

- Publica.

E, nisto, Ferreirinha deu com os olhos no secretário da administração, que atravessava a sala no
seu passo articulado, o cabelo untuoso apartado em duas madeixas gémeas, que reduziam a
quase nada a testa rudimentar. Tinha uma das pernas defeituosa, dizia-se que com uma
prótese, e chamava-se Abrantes. Ele e o chefe da redação detestavam-se com uma porfia ora
pitoresca, ora caricata, desde que perpassara pela Tribuna uma estagiária que decidira pôr os
seus atributos femininos em leilão. Até que ponto o desdém do chefe pela notícia do homem
desaparecido se relacionara com o fato de este também se chamar Abrantes? Podia ser. Tudo
ali era possível. Ao congeminar nisso, o repórter pôs-se a bater com a esferográfica no tampo
da mesa e, numa toada inocente, inquiriu de longe:

-Haverá estatísticas sobie o total de gente desaparecida em cada ano?

Os colegas, à volta, sondaram-se interrogativamente, nenhum deles saberia responder. O


Alcindo alteou as

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sobrancelhas, prestes ao ataque ou à indiferença. Naquela altura, convinha-lhe mais a


indiferença.

-Para quem é a pergunta? - disse o chefe, mais desconfiado do que curioso.


- Para ninguém em especial.

- Então, cala-te.

No entanto, aquilo ficara a roer no chefe, via-se que a sua expressão tinha o azedume ou o
desconforto das vezes em que algum dos redatores o apanhava desprevenido em questões de
"ideias gerais" - a definição, aliás, pertencialhe e era uma autoria de que se orgulhava. "Ideias
gerais, é tudo do que um jornalista precisa, meus caros. O resto é palha, literatice." Daí a
pouco, voltou ao assunto, precavidamente, tendo sempre o Alcindo debaixo da mira, pois o
Rilke já era qualquer coisa que excedia o saber das enciclopédias, de que tinha uma celebrada
coleção.

- Desaparece mais gente do que se imagina.

-Ah, também me parece - rematou o repórter com velhacaria.

Mas as coisas, nessa manhã, haviam ficado por aí.

Mais tarde, no café, o Ferreirinha, que se agradava muito mais do André Bernardes do que do
resto daquela malta de sinceridade duvidosa, disse-lhe discretamente:

-Leia n'A Tribuna uma pequena notícia sobre um tipo que desapareceu. A notícia é minha. Fiz
uma visita à mulher, o caso interessou-me. E também o há-de interessar a si.

- Conte, conte lá isso.

-Depois conversaremos. Amanhã já saberei mais coisas.

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Vamos então recapitular.


No dia 14 de novembro de 1965, nesta cidade de Lisboa, desapareceu um homem de casa.
Chamava-se Rodrigo dos Santos Abrantes, mas desejaria chamar-se Rodrigo Macieira. Por que
tal bizarrice? Porque Abrantes não se adapta a nome de artista. Será um motivo convincente,
poderemos aceitá-lo sem ironia? Mas o que importa é o que Rodrigo pensava do assunto e ele
levava esse pormenor muito a sério. Abrantes não era nome de artista e ele confiava em que
um dia acabaria por ser conhecido como pintor. Ou talvez como escultor. A verdade é que sua
inclinação ia saltando de uma para outra dessas artes, consoante os humores e também sob a
influência das exposições que visitava - e, praticamente, visitava-as todas, sempre de catálogo
nas mãos, onde anotava, com asteriscos judicativos, os trabalhos mais da sua feição.

Ao fim da tarde, no regresso do emprego, era um dos frequentadores do Café Martinho, onde
se reuniam tertúlias de artistas, estrategicamente isoladas umas das outras por cordões de
mesas de clientela avulsa - os Abrantes da cidade. Dir-se-iam praças fortes em permanente
estado de sítio, embora mutuamente neutralizadas pelo modo como se dispunham no terreno.
Rodrigo pertencia à terra-de-ninguém pacificadora, mas bem gostaria de se achar do lado dos
sediosos. Lá chegaria, porém. Identificava-os quase todos e o seu dilecto alvo de atenção era
um certo Jesus Domingos, uma bela cabeça shakespeariana (analogia gratuita) sobressaindo da
vulgaridade do café, simultaneamente homem de teatro e autor de algumas das esculturas
que, lembrando destroços de navios naufragados, se viam nos últimos tempos nos jardins de
Lisboa, embuçando o seu acanhado vanguardismo no folhedo das arvores. Um mestre, e era a
esse título que os outros se lhe

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dirigiam. Que pode uma pessoa sentir se alguém, sem escárnio, lhe chamar mestre? Rodrigo,
por ora, não tinha resposta. Diziam os jornais que ele trabalhava na maqueta de um
monumento a Maria da Fonte, símbolo do povo inconformado. Mas seria difícil que o projeto
passasse da maqueta.

Rodrigo, pois, saíra de casa para o emprego, Teresa acenara-lhe da janela. Uma rotina que
atravessava pelo menos dez meses do ano. Qual fora, então, a sequência dos acontecimentos?
Primeiro, já cerca do meio-dia, telefonaram da Novilectra a saber dele. Manuela ao telefone:

- O senhor Abrantes está doente?


- Bons dias. Por que pergunta?

-É que ainda não o vimos hoje. E o senhor diretor tem urgência em falar com ele.

Houve uma pausa densa na pessoa que atendia, seguramente a mulher de Rodrigo, até pelo
modo como interpusera o sereno "bons dias" na automatizada destreza verbal de Manuela,
que só pelo dia adiante ia aos poucos doseando a fala profissional, despachada e fria, com as
arritmias coloquiais mais personalizadas. Manuela calculou que ela preparava uma desculpa,
era da praxe. Havia sempre uma boa reserva de maleitas para os faltosos. Mas não. Teresa
ficara, na verdade, surpresa. Aquilo já se dera outras vezes, mesmo muitas vezes (quando
calhava ser Cecília a receber as "mensagens" ou questionários telefónicos da Novilectra, a
garota punha-se fora de si - "Mas como é possível que o pai suporte esses abusos?" -, vexada
de que o dono ou diretor da fábrica, ou lá o que era, interpelasse rispidamente os funcionários
na sua própria casa), só que as histéricas impaciências do patrão manifestavam-se mais cedo,
quando se podia admitir um ligeiro atraso nos transportes, uma avaria, qualquer percalço que
justificasse uma razoável demora. Naquele dia, porém, devia reconhecer-se que a demora
estava para lá dessa razo?bilidade. Alguma coisa sucedera, coisa inabitual. Domina-te, Teresa.
Não és para destemperar sem uma razão sólida. Rodrigo, sim, embora não pareça. Se tivesse
havido acidente, já a teriam prevenido, ele levava na carteira uma molhada de papéis que o
identificavam.

Teresa magicou tudo isso durante a pausa e continuava a pensar no mesmo enquanto lhe
acudiu uma frase

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disparatada, como se, ao dizê-la, ganhasse tempo. Ou o fizesse ganhar a Rodrigo. A frase foi:

- E da Novilectra?

Era claro. Manuela falara explicitamente no senhor diretor. E que não tivesse falado, ela bem
lhe conhecia a voz, das ocasiões (não muitas, afinal) em que tivera de comunicar com o
escritório da empresa por qualquer motivo urgente. Até já haviam trocado uma receita de
culinária ao telefone. Um bolo de aniversário, agora se lembrava, Rodrigo, ao chegar a casa,
dissera.- "A telefonista da fábrica fez hoje anos e houve festa. Ela levou um bolo que era uma
delícia", e Teresa não resistira a pedir-lhe a receita, sob o pretexto de um recado para o marido.
Mas no telefonema seguinte ambas tinham recuperado o cómodo anonimato da voz. Teresa
não era de fáceis expansões.
-Pois, ele saiu daqui à hora do costume. Se não aparecer entretanto, peço-lhe que me previna.

Dissera tudo isso numa voz cadenciada, sem um sobressalto, só um tudo-nada rouca. A
rouquidão era nela o prenúncio de desassossego, mas a maioria das pessoas nem dava por tal,
viam-na apenas sob aquela aparência de disciplinada suavidade.

De fato, nesse dia, melhor, na tarde desse mesmo dia, Manuela informou-a uma data de vezes
("Continuamos sem notícias, talvez fosse melhor a senhora..."), num progressivo ainda que
sofreado alarme, e Teresa comunicou com ela outras tantas. Apenas ao terceiro telefonema
Manuela lhe ouviu:

- Estou inquieta.

Não havia dúvidas: Rodrigo já não apareceria no emprego e restava agora aguardar que ele
regressasse a casa. Não regressou. Teresa hesitava ainda em inquirir junto dos amigos. Quanto
a dirigir-se à esquadra de polícia mais próxima ('Vamos, mãe", incitava-a Cecília, "não podemos
ficar assim de mãos atadas"), ou aos serviços de urgência dos hospitais (tudo tão complicado, a
perspectiva de repetir os detalhes a uma data de gente, que seria o mesmo que desnudar-se,
logo a deixava paralisada), a todo o custo refreava essa óbvia tentação. Por um lado, não era
pessoa de exibir as suas preocupações e, por outro, previa o desagrado de Rodrigo se viesse a
saber que ela dera passos de tonta por uma coisa talvez de nada. Podia ter havido um acidente
de que ele fosse não o sinistrado mas a

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testemunha. Essas coisas, às vezes, retinham as pessoas horas e horas. E havia ainda outros
cenários possíveis e de certo modo tranquilizadores. Mas por que não fizera ele um
telefonema, a prevenir? Era estranho, até na voz de Manuela se apercebia quanto, na fábrica
(referiam-se indiferentemente a "empresa", "fábrica", "escritório", dependia do estado de
espírito de Rodrigo), aquela ausência servia os mexeriqueiros. Por isso mesmo deveria conter-
se, saber esperar. Documentos pessoais, ele levava-os consigo, por aí não haveria problema,
Teresa certificara-se. Tomara o hábito de atulhar ridiculamente a carteira com todos os
possíveis documentos identificadores - até o cartão de sócio do Atlético -, desde uma noite em
que, num café do Parque Mayer, a polícia, numa rusga de rotina e pondo-o a monte com chulos
e vadios, o levara preso só porque não pudera comprovar logo ali a identidade. Ficara-lhe de
emenda. Rodrigo falava do incidente com uma excitação humilhada. E referia, de todas as
vezes, o alto edifício de azulejos onde o haviam retido para as alegadas "averiguações", por
certo para os lados do Jardim Zoológico, a brisa mole entranhada do odor dos bichos saturava a
atmosfera, punha agonia no estômago. Mas quando ele recordava o incidente, a viagem
noturna no carro celular, o interrogatório num gabinete enigmático, havia só vexame nessa
evocação? Teresa punha em dúvida, e até lhe pareciam dissonantes, ou demasiado evasivos,
alguns pormenores. Aquilo fora para ele um acontecimento, uma pedrada no charco.

- Que houve de importante em tudo isso, Rodrigo? -Por quê, achas que fantasiei? Bem sabes
que nunca

minto.

Uma pausa - aqueles ameaçadores silêncios de Teresa, que ele sentia preenchidos de dúvidas e
difusos agravos. A pausa, e depois a curta réplica:

- Tens a certeza?

- De quê?

- Que nunca mentes?

Essas e outras coisas, uma cavalgada desordenada de pensamentos, vinham-lhe à ideia


enquanto a expectativa de ouvir o ruído da chave na porta se adensava até se tornar
insuportável. Não, ele entraria a todo o momento. Onde quer que estivesse, ele ouviria o seu
chamado. O seu grito. Por fim, exausta daquele andarilhar pelo quarto, depois na saleta (era ali
que, uma vez por outra, seroavam os três, um

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disco no pick-up, um livro, o íricot - tão raro que Cecília se lhes juntasse), depois no corredor,
agachou-se no átrio, a cabeça em tumulto encostada à friúra da parede. O corpo tinha-se-lhe
quebrado, mas os sentidos continuavam alerta. Por três vezes abriu a porta, ao escutar a zoada
do elevador subindo desde o rés-do-chão. O elevador ficava pelo caminho, quedava-se num
estremecimento brusco, era gente de um dos andares inferiores. Céus, que teria sucedido? Ao
menos que ela soubesse o porquê. Vem, Rodrigo, não demores, estou aqui a esperar-te, diz-me
que o que se passa é um pesadelo.
A noite não chegava ao fim, dando tempo a que o passado refluísse lance por lance. Desde
quando, desde que lugar? Quem poderia ter previsto que aquele encontro e sobretudo aquela
frase "Hoje, entardeceu de repente", no barco, atravessavam ambos o rio, nunca se tinham
visto antes, seria o começo de tudo? Um encontro fortuito, ela sorrira e ele gostara desse
sorriso, uma frase dita numa voz quase apreensiva, o garoto ali perto com a birra de não
apanhar o enorme balão de plástico com um anúncio do Grandela, o Tejo a derramar pelas
margens cintilações afogueadas, a cidade extasiada, uma poalha fumarenta sobre o casario -
Lisboa a banhar-se no antecipado crespúsculo.

Fora uma atração intempestiva ("Para mim, ou tudo ou nada" - ele sabia dizer as coisas), o
garoto lamuriento a servir de álibi para o tal sorriso, ele vira-a despedir-se de um homem, no
cais, com esse mesmo jubiloso sorriso claro, não a perdera mais de vista, e também aquele
modo de levar a mão ao ventre e escorrer sobre ele como uma carícia, fora um ardor
impacientado, em que talvez houvesse o súbito desafogo de expectativas, fora a angústia de
precisarem de estar juntos a partir daquele momento.

Que restava de tudo isso? Nos primeiros tempos, e de todas as vezes com emoção virgem de
uma descoberta, costumava lembrar-se:

-A primeira palavra de amor que te disse foi "Hoje, entardeceu de repente".

E Teresa emendava:

- Não foi uma palavra, Rodrigo, foi uma frase. Uma bonita frase. Arrepiei-me toda.

E ele, um tanto contrafeito com a retificação, justificava-se.

- Gosto mais de áizei palavra, soa-me melhor.

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E ela:
- Como queiras.

Era, aliás, o seu remate habitual, quando as opiniões ou as preferências de ambos não
coincidiam: "Como queiras". Não que lhe faltasse têmpera, bem pelo contrário, mas talvez por
um desejo de harmonia, de relação pacificadora, tudo nela era docilidade. E o curioso é que
essa aparente submissão à vontade de Rodrigo provocava neste uma inesperada dependência.
Não tomava a mais insignificante decisão sem a ouvir primeiro - "Que te parece, Teresa?" -,
mesmo nas coisas triviais, em que já não se hesita, até nos restaurantes era incapaz de optar
por um prato sem que lhe perguntasse: "Já escolheste? Então, eu you pelo mesmo". O braço
rodeando-lhe o ombro ligeiramente descaído, a ponto de ela sentir uma desagradável sensação
de desequilíbrio quando ia sozinha pelas ruas. Assim durante anos. Quantos, Rodrigo? Um
entardecer no rio, nesse ano tinha havido incêndios nas florestas, o casco acobreado dos
grandes navios na sua imobilidade de paquidermes (ou de monstros hibernando?), até o fumo
na atmosfera sugeria queimadas, o rio crescia quando nos afastávamos do cais num golfar de
espumas, o perfil temível dos guindastes.

Tinham repetido a travessia do Tejo, primeiro todas as semanas, quase sempre ao domingo,
era mais calmo, depois todos os meses, como um rito amoroso. Uma promessa mútua. O rito,
porém, cansara, deixara de ter sentido. Pior: sentiam-no ridículo. Mas sem o dizerem. Aliás,
nenhum deles precisava de palavras para se entenderem. Conheciam-se tão bem, ou havia
entre ambos uma tão minuciosa sintonia (confortante? incómoda? desgastadora?), que mal
um deles começava a expor uma ideia já o outro acenava com a cabeça, atalhando: "Estava a
pensar no mesmo". E sorriam então, os olhos repletos de uma luminosidade comunicativa e
saciada. Por isso, ambos também pressentiam as horas túrbidas (mas por quê, Teresa?) muito
antes de terem uma expressão mais concreta. O rosto dela afilava-se de melancolia ou
severidade. Rodrigo sentia-a subitamente distante, as emoções a gelarem-se. Uma espécie de
amuo sem nada dentro. Sem nada dentro, era isso que o intrigava e, por vezes, o fazia explodir:

- Que se passa, Teresa? Em ti só vejo enfado. Tudo nela mudava num repente.

38 l

-Bem sabes que sou assim. Mas passa-me depressa o sorriso todo rasgado, um clarão
resplandecente no seu rosto. As mãos a procurarem-se num afago breve, de incrédula ou
injustificada reconciliação.

As vezes, esse amuo sem nada dentro precisava de se apoiar em qualquer fato ambíguo do
passado quando não o achava no presente. Por exemplo:
- Quem era o homem de quem te despediste no cais?

- No cais?

- Naquele dia em que nos conhecemos.

-Mas via-se logo, era o meu irmão. Somos bem parecidos.

Rodrigo deixara a curiosidade insatisfeita, seria humilhante, para ambos, qualquer insistência.
E, daí, bem podia ser o irmão, a verdade é que nem fixara o homem, a atenção toda ela no
rosto de Teresa, naquele sorriso de límpida, intensa, jovial ternura. O sorriso dela, que tanto
precisava de sentir seu - desde sempre seu. Como se tal sorriso, assim cúmplice e íntimo,
tivesse acontecido apenas porque ele lhe aparecera num barco que fazia, hora a hora, dia a dia,
a travessia de um rio chamado Tejo.

Noutras alturas, as dúvidas de Rodrigo tinham alvo diferente. Teresa, na intimidade sexual, era
uma mulher experiente - sabia graduar-lhe a excitação, num jogo de dádivas e recusas,
conhecia o efeito exato de cada carícia e a oportunidade mais eficaz de a usar, de tempos a
tempos surpreendia-o com mais uma iniciativa que não podia ser ocasional, uma mulher
experiente, sim, calculada, perita. Mas Rodrigo intimidava-se (por orgulho? por receio?) de se
pôr com embaraçosas inquirições, o assunto persistia numa zona de nebulosidades tácitas,
aquilo era dentro dele um abscesso por abrir.

- Tu sabes amar, Teresa.

- É bom ouvir isso.

Não era essa a resposta que ele desejava e, então, ia um pouco mais longe, usando de feios e
ridículos ardis:

- E antes de mim?
-Antes de ti? - e Teresa flectia o braço com indolência, apoiava a face na mão espalmada, os
olhos doces numa vagarosa fuga.

-Antes de ti, tive dois casos, já to disse. Passageiros, tíem sabes que, contigo, foi como se fosse
a primeira vez. Foi contigo que conheci o prazer. E isso conta.

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Ele não fazia qualquer comentário, a expressão cismática, quase ressentida - como é que
Teresa podia ignorar que também outras coisas contavam? Nunca fora capaz de lancetar o
abscesso, perguntando por exemplo: Quem foram eles! Quanto tempo durou? Serias capaz de
me trair? Receava que Teresa, tão arguta, tão conhecedora das reações dele (tão matreira?), o
ludibriasse só para lhe evitar qualquer espécie de dor. Mais tarde. Deixaria a conversa decisiva
(e cruel, e grotesca, e rude) para mais tarde - mas um dia teria de ser.

Certa noite, tinham feito amor depois de um desses passeios rituais, que a repetição ia
esvaziando de significado ("As gaivotas são por metade, ou menos, do que dantes, já
reparaste?" - "Sim, vão desaparecendo, as aves fogem dos homens, o homem é o ser vivo mais
destruidor"), e quando os corpos se deitaram, lassos, lado a lado, na ressaca do desejo
cumprido sem convicção, ele com o olhar algures na parede decorada com um friso de leques
chineses, ela riscando-lhe o ventre suado com a unha aguda (unhas muito brancas, sem um
pingo de sangue), veio aquele comentário - comentário de Teresa:

- Hoje fizemos um amor triste.

Na expressão dele houve um alarme súbito.

-Sério? - e o olhar de Rodrigo persistia erradio e receoso, ela poderia decifrar, peça por peça, a
linguagem labiríntica (e afinal rudimentar) dos seus pensamentos.
-Foi - com aquela firmeza obstinada e afoita de que ela era capaz.

- Por que triste?

-Porque sim. Foi tudo triste. Os beijos, as carícias, o resto. De verdade que não sentiste o
mesmo? Ele deglutiu uma hesitação, mas confirmou.

- Senti.

Estiveram deitados mais uns minutos, observando-se em silêncio. Depois ele soergueu-se na
cama, abriu e fechou o livro que deixara na mesinha-de-cabeceira, quase desequilibrou o
despertador, por fim tomou a iniciativa de vestir os calções numa pressa enervada, que fazia
por parecer natural mas que representava sempre o prelúdio de qualquer coisa como o
inadiável desejo de mudar donde estava - ou de ficar só.

-Vais vestir-te?

- É cedo ainda e não me apetece ler. you passar pelo café.

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Ela não tardaria a vestir-se também, um simples roupão pelo corpo, de modo nenhum iria
sugerir-lhe que poderia acompanhá-lo. O café era o reduto de Rodrigo, não iria violá-lo. Todos
os homens punham nesse convívio do café, que era quase sempre um certo café, uma ciosa
privacidade. Precisavam disso, ela sabia-o, tal como as mulheres (bem mais do que eles?)
tinham os seus conciliábulos secretos, os seus locais de conjura. E, todavia, quanto a tentava ir
com ele naquela noite! Mas nada lhe diria.
Teresa seguiu-o até à porta, a mão enlanguescida a compor os cabelos, depois a estreitá-lo
pela cintura, como se quisesse aliviá-lo da ideia de que aquela inesperada saída lhe
desagradava.

-Até logo, não demorarei.

- Ficaste zangado?

-Bem sabes que não se trata de zanga, Teresa. Passa-se não sei o que conosco. Às vezes sinto-te
uma estranha.

Ela pôs-se sisuda, grave. A boca numa doçura dorida.

- Talvez nem seja conosco. Há fases assim.

- Pois há. Voltarei daqui a nada.

- Quando te apetecer, Rodrigo. Um beijo. Fora também um beijo triste.

E eis que a manhã entrava, insidiosa mas apressada, pelas frinchas das persianas e pelo ralo da
porta. Ergueu-se, as articulações e os músculos quebrados a cada movimento, um aperto nas
têmporas. Ouviu os passos de Cecília. Aí a tinha, face dura, ela não sabia sorrir, um jeito
acusador de quem lhe sobram razões para pedir contas.

- Não te deitaste, mãe.

- Deitei-me, sim, e até dormi.


- Mentes.

Teresa não replicou. Estava cansada, um cansaço de agonia, o corpo a recusar-se ao esforço, na
cabeça um peso de insónia. Naquele exato momento sentia-se mesmo indiferente ao que a
fizera passar a noite ali aninhada como um bicho maltratado que se vai esconder a um canto.
Mas reagiu. Por hábito. Iria atordoar-se nas lidas do quotidiano. Foi à cozinha preparar o
pequeno almoço, acender automaticamente o esquentador, verificar, no frigorífico, se a
manteiga sobrara da véspera. Cecília veio juntar-se-lhe, ncando a meia porta, interrogativa.
Depois aproximou-se da mãe, num repente pôs-se a soluçar.

41

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- Não houve notícias, pois não, mãe?

- Por enquanto, não houve.

Fora preciso aquilo para que Cecília não se esquivasse ao afago da mãe de lhe apoiar a cabeça
de encontro a si. E, de súbito, Teresa foi varada por uma curiosidade: Cecília, desde os tempos
de liceu, tinha um diário, escondia-o como um malfeitor oculta o furto. Teria ela escrito,
durante a noite ou na tarde da véspera, algum desabafo sobre o desaparecimento do pai?
Quanto desejava sabê-lo! Teresa um dia dera com o diário dentro de uma pasta dos trabalhos
escolares, fora um descuido da garota, um acaso, o esconderijo obviamente que não seria
aquele, e tão chocada se sentiu (tão emocionada, tão surpreendida, tão assustada, tudo isso
junto - "tenho apanhado alguns socos na vida, Rodrigo, mas nenhum como este"), que lhe
copiara algumas das páginas para as reler de quando em quando, ainda duvidosa sobre se o
que ali se dizia corresponderia a fatos vividos e, sobretudo, se traduzia verdadeiramente o
sentir de Cecília. Seria possível que ela desconhecesse de tal modo Cecília, sua filha, sua única
filha?

- Que terá acontecido, mãe?


-É o que iremos saber. Toma o café, sossega. Não há razões para que pensemos coisas más.

Cecília deu a volta à mesinha redonda, tentava resistir a uma pergunta.

- O pai nunca fez isto?

- Isto o quê, Cecília? Que pode ter feito o teu pai?

- Não vir dormir a casa.

Teresa voltou-se para o lado do fogão, pegou ao acaso na torradeira, os gestos traíam-na. Foi
de costas, pausadamente, que respondeu:

-Há ocasiões em que temos necessidade de nos ausentarmos.

Cecília olhou-a com suspeita.

-Que queres dizer? Tu sabes para onde o pai foi. A voz tornou-se desabrida: - Sabes, sim.

O rosto de Teresa endureceu, pôs de lado os disfarces.

-Não sei, Cecília. E não costumo enganar-te. Daqui a pedaço teremos de pedir auxílio a alguém.
Virás comigo.

-Aonde?

- Logo veremos.
Cecília, mesmo de pé, esvaziou a chávena em dois tempos, mordiscou uma bolacha e depois foi
para o quarto. Nem nesse dia ela deixava de fazer sentir que era ali uma

42 i

adversária - ou tudo resultaria, afinal, de um mal-entendido? Por quê, Cecília? O diário. Teresa
lera tantas vezes as páginas copiadas, para nelas encontrar uma resposta às suas
perplexidades, quase as tinha de memória.

"Não sei se gosto dele ou se apenas sinto ternura sei sim que posso ir com ele a qualquer parte
e a qualquer hora apenas estreitamos as mãos às vezes a cabeça encostada no seu ombro só
isso e é tanto eu telefono-lhe e digo João vamos ver o mar e ficamos dentro do carro de mãos
dadas só de mãos dadas apenas ternura e ele pergunta-me se eu gosto dele, não querido é
noite o céu está todo estrelado o mar é lindo, gosto de ti por isso tudo por estarmos aqui à
noite junto do mar, só nós e o mar.

Fui eu que lhe preparei os pontos para exame que lhos passei à máquina e ninguém acreditará
que estivemos uma tarde inteira na mesma casa cada um em sua sala no fim ele atirou-me pela
porta um poema que me era dedicado, li-o decorei-o ele dizia que ter um ideal é ter uma coisa
e eu desejo mil coisas ter um ideal é olhar para ti e eu olho para todas as pessoas e em todas o
que eu vejo és tu, entrei-lhe excitadíssima pela sala e perguntei é verdade tudo o que eu li João
e ele deve ter visto na minha cara que eu vinha para abraçá-lo para dar-me toda nesse abraço e
ele passou as mãos pelos olhos e cabelos como se tivesse acordado naquele momento e disse
de que estás a falar, já não sei como começou a conversa e eu pronto senti um rio de gelo aqui,
na garganta.

O João fez anos e eu fui dar-lhe os parabéns ele estava tão contente tão criança, disse-me logo
que iria ao Mónaco com o Artur se eu queria vir também que eu não podia deixar de participar
na festa e eu fui a casa e disse à mãe you ao sapateiro buscar os sapatos ela disse que fosse só
depois lhe falaria no Mónaco não podia ser assim de repente, o sapateiro é meu vizinho e meu
amigo a mulher uma simpatia também é a senhora Gracinda e eu trato-a por dona Gracinda,
não custa nada ela gosta ambos gostam de mim, e eu bati-lhe à porta que nunca tinha
acontecido estar assim fechada e a dona Gracinda apareceu a chorar os olhos tinham inchado.
Perguntei-lhe mas que tem dona Gracinda o meu marido morreu, e eu já não disse mais nada
não falei em sapatos e eu fui dali ao João acusá-lo de fazer anos no dia em que o sapateiro
morreu, que tens Cecília que te sucedeu desde que falamos há pedacinho a
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tua mãe não te deixa ir conosco estava-se mesmo a ver. João como pode ser que tu faças anos
que tenhas automóvel que rias que tenhas um pai que te protege que te mete cunhas no liceu
que vás ao Mónaco ao mesmo tempo que o sapateiro morre? Morreu e tu fazes anos tens
dinheiro e ele nunca o teve. O João olhava-me com aquele espanto assustado e foi recuando
recuando e eu avancei à medida que ele recuava e bati-lhe com os punhos no peito a
responsabilizá-lo de fazer anos no dia em que o sapateiro morria.

Estou tão emocionada parti um prato a mãe fez-se de todas as cores mas não disse nada foi
pior que dizer. O pai anda muito sério e eu estou na cama you ler, hoje deixei queimar o feijão a
teima dela em me ensinar cozinha.

O ambiente de casa está simplesmente detestável a mãe foi hoje ao liceu à hora do almoço
para falar com a professora de francês eu bem a vi sair mas não disse nada deixei correr.
Sempre quero ver a cara da mãe quando na próxima quinta-feira verificar que eu me fiz
distraída que afinal a professora era aquela. A mãe anda sempre a chatear-me com o francês
com a matemática com a física e depois mistura tudo eu pago-as sempre de ela andar amuada
com o pai, não discutem mas eu bem vejo o que se passa apetecia-me dormir e não acordar
mais. A quinta-feira é o dia que eu mais gosto e é também aquele em que me acontecem
desgraças. Apetecia-me ir a qualquer lado mas não you também me apetecia ir com o João de
automóvel mas não tenho essa sorte. Sinto-me não sei como quando fecho os olhos é como se
fosse no ar é uma sensação estranha que não sei definir. Ela está a dar muitos suspiros mau
sinal a bem dizer não vejo o pai há dois dias.

O pai não me foi buscar ao liceu e molhei-me toda. A dona Arminda emprestou-me vinte
escudos para eu ir de táxi e eu mesmo indecente fui comprar um livro que não prestava para
nada. O pai tinha-me prometido que passava

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por lá com o carro da fábrica promessas não lhe faltam é o que mais me irrita.
Sou indecente tenho vergonha de mim mesma mas a culpa foi toda deles que bem sabiam
quanto chovia não se ralaram nada. Ontem comprei o livro e hoje não fui dar o dinheiro à dona
Arminda já sei que quando faço alguma coisa que me agrada o castigo vem sempre só estou
para ver o que acontecerá desta vez.

Fui ver as Violetas imperiais mas não lhes disse eles o mais certo é terem-me dito que não,
gostei embora o da semana passada tivesse sido melhor. O Luís é feio. Eu só quero é ter as
canções do filme depois não me hei-de calar estou aqui na cama a comer pão com manteiga e
a beber café gelado, ela não deu por nada como os vi trombudos disse que me doía o
estômago e não jantei depois foi uma larica dos diabos. A botija já está fria e eu estou cheia de
frio e sono tomei dois comprimidos de fósforo para amanhã ter a memória fresca para o
exercício de história.

A Virgínia aquela alta doce branca que mora nas Amoreiras todas as pessoas que vê na rua são
de barão para cima ela não conhece pessoas conhece títulos, e eu hoje cheguei ao liceu e
disse-lhe Virgínia vi agora ao fundo do parque uma pessoa tua conhecida nobre claro mas não
me lembro o nome ele vê-se muito por ali, e ela perguntou-me se era o conde de Atouguia e
eu disse que este era mais encorpado mais solene, vai dizendo outros nomes e ela cansou-se
de dizer nomes de titulares não é nenhum desses Virgínia deve haver uma falha na tua
memória tu conhece-lo bem eu sei. Já não havia mais nomes para dizer e eu então fiz-me
lembrada espera aí Virgínia veio-me agora mesmo o nome à ideia ali no fundo do parque só
podia ser o Marquês de Pombal. Fui cruel não fui?

Eu disse ao João leva-me ao Dom Quixote e ele respondeu não é para ti, deixá-lo leva-me o
Tozé é mais corajoso do que tu. O Tozé levou-me, entra-se uma sala depois escadas lá ao fundo
tudo em escuro uma orquestra,

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parece que querem imitar não sei que conjunto americano dos filmes uma rapariga loira à
frente deles um decote até ao rego das nádegas, o Tozé diz que ela tem dezoito anos. Então por
cá disse ela o cabrão do meu irmão anda agora por gado mais alto, ah por cem paus ele queria
peixe graúdo, vá disse o Tozé a sossegá-la o que tu queres é comer já que tem que ser hoje
manda vir já o bife. Depois outra também dezoito anos uma blusa preta sem combinação sem
soutien se calhar sem cuecas a saia estava tão justa desenhava tudo, pior que nua metia
impressão. O Tozé deu um assobio, isto sim é com esta que hoje me you deitar. Depois vieram
mais tipos gordinhos todos banha doirada, bons fatos boas gravatas bom dinheiro, e o primeiro
tipo ao ver-me a olhá-lo com insistência disse alto para a loira que já tinha largado o Tozé não
filha eu quando me quiser casar nem é com loiras nem com brasas é com uma gaja séria, e
baixou-me a cabeça num sinal de assentimento como se estivéssemos num baile do tempo da
minha mãe, que deve ter sido uma grande sonsa. Eu disse ao Tozé para sairmos palavra que
não estava a gostar e perguntei-lhe estas raparigas tão novas, e ele cortou logo estão bem
comidas gozo não lhes falta tomaras tu levam um vidão, e deixou passar um bocado até dizer
mas são carotas, cem paus. O cinismo indecoroso os homens!!!!! Lá em casa a peta foi a
doença da Carlota estive a dar-lhe caldinhos até às duas da manhã. Julgam-se espertos mas
engolem tudo talvez porque mesmo quando desconfiam e ralham é neles que estão a pensar,
só pensam neles. O Tozé ofereceu-me um maço de cigarros dos bons.

M. se é que é esse o seu nome aparece-me agora todas as tardes deixa o carro na esquina para
que não o vejam do liceu arranjo uma desculpa para sair sozinha. É um homem extremamente
insinuante tem uns olhos cinzentos que se desfazem em água. Hoje deixou-me ao cima da rua
da Estrela, adeus menina triste beijou-me a testa eu não fiz nada para me afastar. Trazia o lenço
amarelo de pintas pretas.

Há uma senhora que mora na Casal Ribeiro e se vê na necessidade de tomar uma hospede
perguntou à Guida se ela conhecia alguém. Vamos supor que. Vamos imaginar

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que eles viviam na província e eu estava em Lisboa a estudar vamos supor que se zangavam
comigo e me punham fora de casa ou que eu não estava mais para os aturar e me punha ao
fresco. Seria estupendo não tinha transportes poderia ir dançar com o João em todos os
dancings da Costa poderia vestir o meu lindo vestido todas as vezes que me apetecesse
poderia ficar uma noite inteira a sentir o mar."

Não, Cecília, não. Nada disto pode ser verdade.

Teresa aguardou pela hora da fábrica abrir. Seria absurdo supor que Rodrigo apareceria no
emprego sem primeiro comunicar para casa, nada se passara que pudesse justificar uma
atitude dessas, mas ela teria de preparar-se para todos os absurdos. Pressentia-os, havia nas
suas vísceras um estrangulamento iminente, era preciso que nenhuma surpresa a apanhasse
desprevenida.
Manuela demorou a atender, às vezes, se o patrão estava ausente, não corria para o cacifo (a
sua "redoma", dizia ela, o seu "escafandro", corrigia a secretária do diretor) antes de pôr em
dia os mil recados que trazia de casa destinados a uma grossa coluna de consumidores. Era
uma espécie de agência, de comércio miúdo. Recebia encomendas dos colegas, dos amigos e
conhecidos dos colegas, e depois distribuía-as por uns suspeitosos fornecedores. Desse modo
engordava a mensalidade, fazia-lhe jeito.

Manuela disse que, até àquela hora, não vira Rodrigo. E, ao dizê-lo, não escondia o pesar e o
espanto. De súbito, pediu:

-Espere aí um momento. you perguntar, não desligue. - Apercebia-a a meter as cavilhas no


quadro dos telefones, apelando o porteiro, a servente daquele piso, as empregadas da secção
do estrangeiro, que o marido chefiava. Apercebia-lhe, por último, a respiração suspirosa.

- De fato, não chegou ainda. - Teresa ia a agradecer, mas a outra interpôs-se enervadamente,
faltava-lhe o comentário que nela estalava desde que recebera o telefonema: Desculpe, minha
senhora, quer dizer que desde ontem não sabe do seu marido.

- Não sei nada dele, não.

Os silêncios do telefone não têm fim. Manuela estava a alongá-los mais ainda.

-Até me custa a acreditar. Eu iria à polícia, eu...

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- you fazer tudo isso. Queria primeiro ficar certa de que ele não se apresentou ao trabalho.

- Se houver qualquer novidade e se puder prevenir-nos...

- Avisarei, obrigada.

A polícia, ou antes, o agente alentado, dois degraus de papada, que estava sentado à secretária
e, a bem dizer, nem erguera os olhos para a pessoa que acabara de entrar no gabinete. Teresa
dirigira-se à esquadra mais próxima, passara-lhe tantas vezes à porta que o edifício sentia-o
como que familiar, ser-lhe-ia menos penoso acorrer a estes homens fardados do que a outros,
ela nunca gostara de fardas. E não podia mais esquecer a tal aventura noturna de Rodrigo (por
que duvidava ela daquela versão?), o país estava cheio de polícias, uns fardados, outros não,
captavam-se na atmosfera, respiravam-se, como se se habitasse uma casa que, mesmo quando
vazia, dá a sensação de ser partilhada com alguém sem forma, alguém secreto, invisível e, no
entanto, ameaçador. Desde o agente que estava à porta até àquele que, finalmente, iria
decerto interrogá-la segundo as normas protocolares, já tivera de repetir a quatro fardas
diferentes as razões da sua presença ali. O homem mexia em papéis, não tinha pressa. E nem
um migalho de curiosidade por erguer os olhos e saber se quem lhe entrara no gabinete era
baixa ou alta, gorda ou delgada.

- Sente-se. E a menina também.

Ah, agora olhara, mas sem largar os papéis. Teresa pôs-se a observar, enquanto aguardava o
lento cerimonial de gestos. Defronte, na parede: um mapa de Portugal, todo em altura, com
um friso de madeira. Nem o cartão grosso em que o mapa fora impresso, nem a madeira
haviam resistido aos dias quentes: o mapa encurvara de tal modo que prenunciava um arco. As
cidades mais importantes tinham alfinetes espetados, farpas de cor. De cabeça azul, verde,
arroxeada. Dos lados, ainda nas paredes: um calendário reclamando uma marca de pneus, o
chamariz era a mulher nua, o corpo de esguelho para que não tivesse de se ver o sexo; uma
inesperada gravura antiga, ali aberrante, que era um muro forrado de trepadeiras,
interrompido por um portal senhoril, árvores por detrás. Nuvens, quase lhes sentíamos a
lentidão da jornada.

-Então o seu marido não foi dormir a casa. - O homem preparava-se para o festim, nada fazia
para dissimular a ironia. - Isso é costume?

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- Se fosse, eu não estaria aqui.

- Que idade tem ele?

- Quarenta e três anos.


- Huni, está mesmo na conta.

- Não o percebo.

-Nem é para perceber. - Tinha um palito, ou o que dele restava, pendente dos lábios, como se
fosse uma prisca, fê-lo rodar de um canto ao outro da boca. - Então quantas vezes é que isso já
sucedeu?

- Nunca, ainda agora mo perguntou.

O homem fixou-a um tanto desnorteado, os dentes morderam o palito.

- Ele trazia documentos consigo?

-Já tinha pensado nisso. Trazia vários, julgo eu. O bilhete de identidade, a carta de condução. E
ainda outros, creio, pelo menos não os encontrei em casa.

-E até agora ninguém procurou a senhora. Plantou os braços na secretária, com uma firmeza
irritada, e inquiriu: - Houve zanga entre vocês? Ele é homem de paródias?

Cecília, que não quisera sentar-se, que até aí estivera um pouco recuada, disparou sobre o
homem:

- O senhor está a abusar da sua posição!

O agente (era o subchefe da esquadra, lia-se numa placa acrílica sobre a mesa) não esperava
uma daquelas, demorou uns segundos a recuperar:

-Oh menina, que conversa é essa? Estou a ver que precisa de um calmante.
- Ela é minha filha,'está nervosa.

-Dá-se bem por isso. - Baixou os olhos para a secretária, duas rugas a lavrarem a testa
cismática. - Mas não se perde nada em ser mais educada.

Dispôs à sua frente uma molhada de impressos, escolheu três deles de modelos vários, mas a
escolha fora laboriosa e, por fim, cada caprichado gesto no seu lugar, deu a entender que iria
preenchê-los. Também demorou a escolher uma das esferográficas do porta-lápis, que tinha o
feitio de almofariz e, apesar da cor a fingir de bronze, se via ser de barro pintado.

- Nome, idade, residência.

- De quem? Do meu marido?

- Começamos por ele, é claro.

Cecília via-se que tentava sofrear-se, mas não lhe seria fácil. Quando o agente (subchefe,
estava na placa) ia na

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coluna relativa à profissão (e a mãe tivera de retificar duas vezes, explicando ponto por ponto
as tarefas do marido, referindo o nome da empresa, as atividades desta, até ambos acertarem
na designação apropriada - afinal coisa simples, "empregado de comércio"), Cecília interpôs-se:

-Mas não seria preferível que o senhor averiguasse primeiro se o meu pai está nalgum hospital,
nalgum...

O agente largou a esferográfica, os olhos pequeninos, encastoados nas duas papudas bolsas,
cerraram-se por instantes.
-A menina está a pisar o risco, não lhe admito. Deglutiu a ira, havia nele o nítido mas excessivo
esforço de tentar conciliar o despautério da rapariga com a tensão emocional que trouxera ali
mãe e filha. Decidiu-se pela clemência: - Cada coisa a seu tempo.

Foi, pois, bem mais adiante, para que a rapariga não supusesse que o entalara com a refilice,
que ele ligou não se sabia para onde, talvez para outro serviço da polícia.

-És tu, Silva? Lê-me aí a lista dos acidentes identificados. Não, desde ontem. Desde ontem de
manhã. Sim, em todo país, embora suspeite que o que me interessa é o perímetro de Lisboa. É
aqui para um caso que nos veio parar às mãos. - Enquanto ouvia, o homem apoiava com a
cabeça, o palito metodicamente macerado, o tronco massudo a escorrer nas costas da cadeira.
- Está bem. Não, não é nenhum desses. E olha aí, já agora: tens algumas indicações sobre
mortes violentas? Pois, não é fácil. you, you telefonar ao Guedes.

Quando terminou o preenchimento, ergueu-se da cadeira, a mão direita espalmada sobre os


impressos.

-Pronto, minha senhora, por nós é tudo. you dar-lhe uma credencial para a Judiciária. O
assunto é com eles.

-Então o senhor esteve a registrar uma data de informações, telefonou a quem quis, e diz-me
agora que o assunto é com a Judiciária?

O rosto do subchefe ia empolando, os dedos crisparam os papéis.

-Estive a ajudá-la, não percebeu? Tudo porque a senhora reside na área desta esquadra, senão
tinha-a logo despachado, não percebeu? E apesar de a mandar para a Polícia Judiciária, é
minha intenção contactar hospitais, a morgue, os calabouços. Receberá notícias minhas. Leva
tempo. Depois disto, já percebeu? - Mais serenado, fixou-a pela primeira vez com uma espécie
de malícia compassiva.
- Mas o que me palpita é que o seu marido lhe baterá à porta antes de o dia acabar. - Ainda
trocou um olhar belicoso com Cecília, não resistiu a dizer, da maneira mais tolerante que lhe
era possível: - Calma, menina.

Na Judiciária o interrogatório teve as mesmas praxes, quase a mesma sequência, embora os


pormenores fossem mais esmiuçados, às vezes com uma artimanha de permeio, fazendo-a
sentir-se cúmplice de um obscuro delito. No fim, Teresa achou-se, desnuda, a vida dela e de
Rodrigo deixara de lhes pertencer. Estavam expostos àqueles homens, hoje eles eram três,
sete, uma dúzia, amanhã a cidade inteira. Cada pergunta a empurrava para uma arena pública,
devassada e devassadora. E diziam todos: aguarde notícias, volte para casa. Aguarde, aguarde -
o quê, afinal?

Mas de nenhum lado viera qualquer sinal até meia tarde. Teresa, entretanto, telefonara de
novo para a fábrica (seria aquela a última vez, juro, envergonhavam-na as reações quase
lúgubres de Manuela) e, finalmente (nem sabia por que hesitara tanto), para o Carlos Murta, o
amigo mais chegado do marido. Este aparecera-lhe de rajada, não levara dez minutos a
atravessar meia Lisboa, os braços bamboleados, as investidas de furão assustadiço, correndo a
casa ("Mas como foi isto, como foi isto, há-de haver uma explicação para um tal disparate"),
como se nela existisse um esconderijo e Rodrigo por força lá estivesse acoitado. Nunca
entendera o Carlos Murta - tinha sempre de dizer o nome inteiro. Nele farejavam-se recantos
interditos. Porém, uma jóia de amigo, devotado como nenhum.

-Deixe os hospitais comigo, Teresa. you pôr-me em campo.

Flagrantemente, não quisera referir outros "sítios", embora estivesse a pensar neles. Depois de
se ter sentado um pedaço, sem mais que remoer em voz alta, os braços espremidos entre os
joelhos, numa postura de quando lhe dava para a neurastenia ou para a inércia, deslocou-se
lentamente para a saída, ao mesmo tempo que recitava uma ladainha:

-Tudo o que precisar, Teresa, já sabe. Creio que seria útil que houvesse sempre uma pessoa em
casa. Poderá alguém querer telefonar. E não se deixe ir abaixo, Teresa, um homem não
desaparece assim.
Ele ainda se lembrara de dar um beijo a Cecília, retrocedera para isso mesmo. Cecília, porém,
enfiara-se no quarto, não valia a pena chamá-la, só iria azedar. Difícil

II

53

rapariga. Todas eram. Seriam eles, mães, pais, famílias, os responsáveis? Teresa tinha dias em
que sentia uma aguda, inadiável culpabilidade, apetecia-lhe correr para a filha e pedir-lhe
perdão, mesmo não sabendo de quê, sobretudo depois de lhe ter apanhado o diário. Cecília
era uma adolescente, teria de passar por aquela crise. Como sucedera com ela, Teresa, que
também tivera o seu diário (muito efémero), os seus mutismos, as suas desavenças com os
adultos, o seu mundo recôndito rebelado contra as violações dos familiares. Ainda agora se
tentava, de tempos a tempos, por levar certos desabafos ao papel. Partir para longe, libertar-se
- mas de quê, Teresa? Rodrigo, numa dessas fases, dissera-lhe:

- Fazes-me medo.

- Medo? Por quê?

-Há em ti qualquer coisa de fugidio, ou antes, qualquer coisa que resiste, que não se entrega. -
Ela fechava-se logo por dentro e Rodrigo prosseguia, tentando exphcar-se melhor: - Tenho-te
tido completamente algumas vezes, sinto-o bem. Mas nunca definitivamente.

Teresa nem desmentia nem confirmava, o rosto fazia-se grave e magoado.

Partir para longe, libertar-se - mas de quê? Ainda agora sentia o que era uma pessoa morrer
em cada dia, morrer centenas de vezes no mesmo dia e em cada dia ressuscitar. Tal como
Rodrigo, por certo, como toda a gente. Mas como dizer isso uns aos outros? Qual dos três o
sentiria de uma maneira mais dolorosa? Ela ou Rodrigo? Ela ou Cecília? Cecília terminaria os
estudos, teria o seu curso, um emprego em que investiria a sua personalidade. Teresa era
apenas uma dona-de-casa. Uma vez por outra abordava o assunto com Rodrigo, ele,
estranhamente, esquivava-se, mas sem deixar de lhe dar razão - "Uma tarefa, numa mulher, é
importante". Mas nada. com Cecília seria diferente. Aproximou-se do quarto da filha, não pôde
refrear-se, tocou-lhe à porta com o nó dos dedos.
-Abre, Cecília, precisamos de conversar.

-you já, mãe, estou a acabar uma coisa.

O cigarrito, claro. Não era. Cecília sentara-se no chão sobre as almofadas, desde há pedaço que
fora atraída pelas andanças do gato amarelo listrado do segundo andar do prédio fronteiro. O
gato, gradualmente, insidiosamente, viera sobrepor-se àquela imagem do pai num sítio
qualquer da cidade, hora a hora perseguido por bandos de

54

fardas, bandos de pessoas (o Carlos Murta também, embirrava com ele, com os seus modos
clericais), por último acossado e devorado por todas elas.

Entendiam-se bem, Cecília e o gato, embora o bicho não soubesse desse entendimento - e
podia ser que soubesse. O gato era amarelo, mas o mais provável é que tivesse o peito branco,
brasão de nobreza. Daquela distância, a mancha dava a ideia de brancura. E também lhe
apercebia (ou imaginava) as expressões manhosas ou atónitas, os desdéns, as birras, por vezes
as imobilidades de felino desconfiado, ele dava fé de tudo - o quanto Cecília desejava que o
gato fosse seu. Não lhe sabia o nome, mas o mais simples seria chamar-se Tareco. Ele, do
parapeito da janela, ou da varanda pejada de vasos de flores (borrifadas duas vezes ao dia com
uma espécie de spray), observava o vaivém das pessoas e dos automóveis, as orelhas pequenas
em riste captando constantemente os sons mais finos que o tumulto da avenida abafava.
Quando se encaravam (ele e Cecília), o Tareco fazia uma expressão gaiata, sabiam-se cúmplices
- ambos contra aquele cativeiro, de que a críada-mor da velha senhora era a carcereira. Agora o
Tareco levantava-se sem pressas, espreguiçava-se, ia direito à cozinha. Tanto que ela gostava de
o ver ali. Cúmplices em muita coisa - de verdade. No relógio da Torre, quatro noras. E daí a
nada, mais outra, o dia não tardaria a findar. E a espera - por onde andaria o pai? Talvez se
impusesse uma iniciativa de que ninguém se lembrara ainda, pobre mãe, o que ela sofrera
naqueles estúpidos interrogatórios. Afinal, talvez fosse melhor decidir-se por um saia-e-casaco
da cor da camisola. Estava mais uma vez a tender para essa hipótese, tinha classe, o cendré.
Cecília bem quisera comprar umas meias de lã no mesmo tom, mas o pai dissera que eram
mal-empregadas nela. Ele tinha coisas assim. O empregado do armazém vira-os com aquela
boa aparência e fora buscar os tecidos mais caros, logo a mãe os arredara como se tivessem
peste. Que se passaria verdadeiramente entre o pai e a mãe? Nunca discutiam, é certo, mas
aquela intimidade não devia ser um mar de rosas. Até se esquecera do João. A noiva dele viera
a Lisboa tratar da sua transferência, isso, porém, não o aquecera nem arrefecera. Telefonara-
lhe para casa há uns cinco dias, mas ao ouvir a voz da mãe desligara. O Tareco, ei-lo outra vez,
bem aconchegado na sua posição favorita. you já, mãe, estou a acabar uma coisa. Ainda daria
duas fumaças antes de lhe aparecer, ela, coitada, bem precisava de companhia, teria de se
esforçar por isso, que horríveis os interrogatórios, como as pessoas se deliciavam com as
devassas. Só duas fumaças

- cuidado com as beatas, que ficavam a boiar na sanita, seria melhor deitá-las pela janela ou
escondê-las num bolso. O Tareco olha para a rua, a atenção bruscamente retesada, admirado
de qualquer coisa. Que estaria a suceder? E como se acharia, lá bem por dentro, um gato de
casa rica e senhora velha? Comeria ele carapaus ou postas de salmão? Só mais uma boa
fumaça. Cecília gostava de seguir as espirais de fumo cinzento-azuladas a desfazeremse aos
poucos, gostava de respirar o ambiente denso e conspirativo de uma sala com muita gente a
fumar. Abriu a porta num gesto vagaroso, a mãe esperava-a (como é que ela, em dois dias,
emagrecera tanto), juntaram as mãos, foram sentar-se na tal varanda dos serões onde ninguém
seroava - tão poucas vezes que estás aqui conosco, Cecília.

A mãe sorriu-lhe, a animá-la, tinham de saber-se solidárias. Mas não apenas animá-la. Ideias e
sensações tão diversas fundiam-se no mesmo apelo, Cecília mal podia imaginar que, nesse
momento, o que ela lhe dizia sem dizer, a expressão tão assustadoramente serena, é que tinha
conhecimento do diário, que muito gostaria de o ler com a filha ao lado. E dizer-lhe ainda que
queria compreender minuciosamente o que a impressionara e abalara., que as coisas perdem
tensão e dramaticidade quando partilhadas, e também que ela própria se sentia atraída por
essas confissões aliviadoras postas numa folha neutra de papel. Sobretudo à noite, já deitada,
nas raras vezes em que Rodrigo se ausentava em viagem. Era a maneira de estar com ele, de se
sentir em comunicação. A luz ensonada da mesinha-de-cabeceira (ele preferia assim, as
lâmpadas veladas), um halo difuso sobre o deserto do papel, as palavras dentro dela, claras,
cheias, intensas, e logo distorcidas e irreconhecíveis quando passavam para a metamorfose da
escrita. Rasgava-as, rasgava tudo, embora por vezes apontasse num cadernito uma ou outra
frase que lhe doía mais destruir e de que ela decorara algumas, como estas-. "Quando julgo
que já nada de novo e de melhor pode acontecer conosco, tu descobres uma atitude
inesperada, um carinho, uma palavra que me sacode por dentro, que me prende cada vez mais
a ti. Amo-te. Hoje mais do que ontem, sem dúvida, mas talvez menos do que

56

amanhã. Desejarás conscientemente que isso aconteça? Tenho tantas saudades que me dói o
coração". Rasgava tudo. Só não rasgara aquelas páginas a que ela chamara "um quarto de
bife", escritas numa pastelaria na mesma manhã em que tinha feito amor com Rodrigo pela
primeira vez, precisamente três meses antes de casarem. (Cecília, por onde anda o teu
pensamento? É teu pai que está aqui conosco e tu tão alheada me pareces. Ou não, quem
sabe.) Fora em casa dele, ou antes, na casa dos tios, para onde ele mudara transitoriamente, os
tios tinham ido para férias no Algarve. O que Teresa escrevera fora isto, dera-o a ler a Rodrigo,
que a fixara comovidamente (era emoção, sem dúvida), mas também com uma precavida
surpresa. "Um quarto de bife." E a evocação começava uma linha abaixo.
"Creio que havia uma tipografia ali perto, enquanto estivemos lá dentro ouvia-se o ruído das
impressoras. Era a hora do almoço e os tipógrafos mais novos tinham-se juntado ao portão.
Galhofavam, riam, jogavam com uma bola de borracha. Quando me viram aparecer,
investigaram-me traço por traço. Bem o senti. Mas fingi não dar por nada. Tenho um rosto
altivo, talvez mesmo desdenhoso, as pessoas não me olham duas vezes. E o meu andar, que
dizem ser de graça, ajuda a essa altivez. Sou uma senhora. Entre onde entrar. E eu entro em
quase todo o lado. O quase que me falta é uma das minhas tentações. Secretas. Os segredos
do meu mundo inventado.

SaiUpois, subindo ladeira acima. Talvez de cabeça baixa. Mas mesmo de cabeça baixa, sou a tal
pessoa que faz vergar o olhar dos outros. Mal eles sabem a fragilidade que me vai por dentro.
Sobretudo quando me mostro distancia-:,da, um tanto fria, mirando as pessoas até lhes
arrombar as echaduras e fazendo crer que não valem muito para mirrj. Subi a ladeira e vim ter
ao largo. Antiquários, táxis, uma igreja. A pastelaria, essa onde entrei, fica numa das esquinas.
Podia ser uma taberna, tem coisas sujas pelo chão. E o móveis cheiram, um cheiro que se
mistura ao da comida e ao das pessoas suadas. Não gosto das pessoas que suam.

Que iria eu fazer depois daquilo? Ou melhor: que gostaria eu de fazer depois daquilo? Senti-me
eu própria um pouco irreal, talvez, nem feliz nem arrependida, de certeza confusa, num mundo
à parte daqueles jovens que

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corriam em grupo, do vendedor de cautelas, do casal de cegos que se preparava para


atravessar a rua, exatamente na passagem dos peões - como teriam acertado com tal rigor?
Entrei na pastelaria. Sentei-me. É bom sentarmo-nos quando a cabeça anda à roda, assim um
esvaimento, mesmo numa cadeira que parece estar suja e talvez não o esteja, é bom
sentarmo-nos num lugar qualquer quando não sabemos para onde ir, ou quando, embora
saibamos, não nos apetece ir para lá. O empregado aproxima-se, está muito direito ao pé de
mim, enquanto olha em roda, enfastiado, e aguarda que eu fale. Mas não falo, sinto-me ainda
numa saborosa vertigem, amo-o tanto, eu sei que o amo, amo-te, Rodrigo, mas, não sei por
quê, o que sucedeu parece que foi estranho a esse amor, ou então é desta enleadora vertigem,
daqui a pouco já verei as coisas com mais clareza, eu não falo, absorta, é como se estivesse
ainda num outro lugar, ali é apenas o meu corpo magoado, e ele, o empregado, pergunta: Que
deseja'. Que desejo? - repito a mim própria, como num eco, fazendo o possível por estar
realmente ali. Que posso eu desejar, além de estar sentada naquela cadeira, as mãos muito
metidas nos bolsos, roendo o lábio que ele beijou, sugou, mordeu até me fazer sentir, toda eu,
uma polpa inchada e quente, deliberadamente dorida. Que posso eu desejar, Teresa? Voltar
para donde acabas de vir, ainda lá o encontrarias, é, a bem dizer, a casa dele, fazer amor o dia
inteiro, a semana inteira, a vida toda? Fazer amor com este sentimento de culpa - de que és,
afinal, culpada? Que desejas, Teresa: nunca mais lá tornar? Responde. O empregado olha-te,
está à espera, e tu olha-lo também, e como ele esperando, até que o pobre insinua: 'É hora de
almoço. Servimos bifes, meios bifes e... um quarto de bife'. O qie ele hesitou para dizer 'um
quarto de bife'! No mundo há de tudo, de fato. Há a Teresa, que sou eu, há a casa donde
venho, a casa dos tios de Rodrigo (conheci-os protocolarmente há três semanas, mais dia
menos dia), há pastelarias, há barcos lindos, lindos, que atravessam o rio escoltados por
gaivotas, e há quartos de bife. As pessoas que organizam estas coisas nem se ficaram por meio
bife. Pensaram em tudo, pensaram naqueles que não têm apetite nem dinheiro que cheguem
para metade de um bife. Talvez eu também me sinta em menos de metade de mim própria. O
empregado percebeu logo isso, e daí ter acrescentado: Talvez um quarto de bife para a
senhora'. Um quarto de bife, um

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quarto (metade de metade) seja do que for. A dose de nada. A dose dos famintos que nem a
sua fome podem matar. E a Teresa concordou: Está bem, um quarto de bife'.

E pus-me a pensar, que será verdadeiramente, assim à vista, um quarto de bife? Um quarto
(metade de metade) pode ser tão pouco e pode ser tanto. E pode ser várias coisas. Pode ser
um quarto para se dormir, para fazer amor. Este quarto é de quem, Rodrigo? - Meu, querida, o
dos tios é o outro a seguir. Um quarto forrado de papel dourado. Oiro velho, baço, nobre. Velho
de quê? Do tempo. Das mãos do tempo, que também matizam e arrefecem, põem nódoas, dão
vida e dão morte. Estava ela no quarto, toda ela de Rodrigo, e nem assim deixara de pensar no
dourado do papel. O dourado velho já não agride. É mais caricioso, mais suave, não magoa os
olhos que lhe procuram o apagado brilho.

Aqui está o empregado com o quarto de bife. É muito pouco, realmente, um quarto de bife.
Uma miniatura de carne afogada num estendal de batatas fritas. Agora fico a saber a que
cheiram os móveis, a que cheirava a cadeira e esta mesa: a batatas fritas. A carne, de tão
pouca, nem chega a impregnar as coisas do seu odor. Mas, afinal, como é saborosa. Isto é: uma
comida, digamos um bife, não sabe bem ou mal pela quantidade. E por outras coisas. Este
soube-me a manjar de deuses. Comi-o num instante, com tal sofreguidão, com tal deleite, que
o empregado, atento, voltou a aproximar-se: Talvez a senhora deseje outro quarto de bife'. E eu
respondi logo, creio que a minha voz também se fizera cúmplice: Boa ideia. Talvez outro quarto
de bife'.
Um quarto mais um quarto faz metade. Metade de quê? De um bife. Por exemplo, de um bife.
Mas volto com a teima: que poderá ser um quarto seja do que for, incluindo um pedacinho de
carne sob uma cascata de batatas fritas? Nada mais vago do que dizer que uma coisa está em
metade, está num terço, está num quinto - que é isso de uma coisa inteira somando quatro
quartos? De qualquer modo, o que posso afirmar é que este segundo quarto foi bem maior
que o primeiro. O empregado, decerto, engraçou comigo. Ou lá achou que eu preciso de
engordar. Que preciso do conforto de um quarto de bife mais alentado, E porque ele
simpatizou comigo, apeteceme dizer-lhe (embora não lho diga nem possa dizer): Sabe o que
sinto? Esta manhã, enquanto você (deverei tratá-lo

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por você ou por senhor - por tu, nunca) servia quartos de bife, ou copos de leite, ou torradas,
ou enquanto apreciava estes velhotes reformados que começaram a ajeitar o casaco ao
pescoço dois meses antes do frio chegar, esta manhã aconteceu a minha noite de núpcias, a
minha e creio que a dele. Quando se gosta, tudo se passa como numa primeira vez. Há pedaço,
eu estava ainda tonta, insegura, talvez decepcionada (mas não, mas não), agora, porém, que
comi o quarto de bife começo a recompor-me, recomeço a ser eu'.

É manhã. Estou a falar em noite, apenas porque se convencionou que essas coisas devem
passar-se durante a noite, mas sei bem que é manhã. Não só porque o relógio mo confirma e
as pessoas fazem o que costumam fazer nas horas da manhã. É manhã porque ontem uma
chuva de verão, com relâmpagos e tudo, varreu o céu todo, de cabo a rabo, e ficou à espera
que amanhecesse para se mirar neste intenso azul. Os meus olhos encheram-se dele,
absorveram-no, se calhar até azuis ficaram também.

Estava uma bonita manhã, reparaste, Rodrigo? Quando desceste a ladeira, na tua cabeça
haveria um cantinho disponível para um céu lavado? A minha dúvida é porque sei que não a
desceste a pé como eu. Eu vi, pude entregar-me à beleza da manhã. E foi ainda repassada da
frescura da chuva, da chuva que já não era chuva, tendo nos olhos o azul sem nuvens desta
manhã, que te beijei quando me abriste a porta. Tinha chuva o meu beijo. E tinha o esplendor
da luz que vem depois da chuva sentiste, Rodrigo? Pudeste senti-lo enquanto, impaciente, me
sorvias a boca?

Agora me lembro que talvez o empregado nem me tivesse proposto mais um quarto de bife.
Talvez mo tivesse trazido sem eu nada dizer, apenas porque percebera em mim que eu gostaria
de repetir o quarto de bife e que, de tão alheada, não achava palavras para falar. E que you eu
fazer agora depois do segundo quarto de bife? Que you eu fazer depois daquilo? Amo-te, hei-
de dizer-te mil vezes que te amo, mesmo que os lábios me fiquem fechados. As horas que
tenho vivido contigo nunca mais as poderei apagar. Só por elas valeu a pena conhecer-te, valeu
a pena amar-te - e, no entanto, ainda não sei quem és. Mas amo-te, meu desconhecido. Que
you eu fazer de mim depois desta manhã em que nos devoramos, em que amamos e sofremos
como se não houvesse mais nenhuma

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oportunidade para o amor e para o sofrimento, em que quisemos reter todos os minutos
dentro de nós? Deixasteme desamparada. Vazia, não - inquieta, insegura. É que, de súbito, o
teu rosto desfigurou-se. Senti uma presença sufocante entre nós. Tenho de to dizer. De súbito,
os teus dedos ternos, mas já ausentes, acarinharam embaraçadamente o meu corpo, estavam
a despedir-se de mim e ansiosos de que essa despedida se apressasse. De súbito, aquelas
palavras: Bem, Teresa, tenho de ir ao emprego. Arranjei uma desculpa para estas horas, mas
estão à minha espera antes do almoço. Encontramo-nos à tarde'. Eu atónita, gelada. Mas
tentando que não desses por isso terei conseguido? Era a nossa manhã, a nossa noite, e tu
pensavas no emprego, teceste uma historieta para que a tua ausência fosse contabilizada nos
interesses da empresa. Acrescentaste mais não sei quê, não ouvi o resto. Suponho até que te
fiz uma pergunta e que as tuas palavras deviam ser a resposta a essa pergunta, que era desse
teu emprego que falavas, que estavas a ser sincero. Que me punhas em evidência a realidade,
tua e minha: essa empresa que controla as tuas horas, que talvez seja o esteio da tua vida, que,
esta manhã (tão extraordinária e tão banal), começamos a aprender juntos o que vai ser o
nosso quotidiano. A tua sinceridade (desastrada? pueril?) confiou-me tudo isso, revelou-mo.
Não tenho nada a acusar-te. Essa nossa vida será, porventura, a vida de toda a gente. Mas eu
sempre esperei mais - tu próprio, estou certa, esperas mais. O quê, não saberei dizer. Talvez
precise daquilo que não me podes dar. Depois de nos termos conhecido, o entardecer viera de
repente, quantas vezes te espevitei, intervindo insidiosa ou declaradamente nas tuas decisões,
enquanto noutras fases me punha de lado, como desinteressada, como se já estivesse farta de
ti, deixando-te livre para seguires, sem apoio nem coação, o curso impetuoso e ao mesmo
tempo incoerente e frouxo do teu dia-a-dia. Eu própria to confessei, quando tentavas
interpretar os meus silêncios e os meus distanciamentos. Não repares, Rodrigo. Apenas quis
ver até onde irias sozinho. Sempre esperei, para que negá-lo? E é por isso que às vezes me
agarro com ambas as mãos a coisas insignificantes como estas: a solicitude do empregado da
pastelaria, o sabor a pouco de um delicioso quarto de bife." ,

61

A porteira já estava a par do desaparecimento de Rodrigo. Fora a própria Teresa a dizer-lho?


Não tinha a certeza disso, mas admitia que sim. Descera à rua, à padaria, ao posto de
abastecimento de leite, lembrava-se do seu encontro com a porteira, que esfregava os ladrilhos
da entrada, conquanto essa lembrança estivesse diluída numa nebulosidade de insónia. Ou
talvez tivesse sido Cecília. Não importava. De qualquer modo, o acontecimento extravasara do
círculo restrito das pessoas com quem Teresa contactara. Na vizinhança, desde a véspera,
sabia-se que Teresa saía de casa, ia à janela, e sentia-se observada. O

telefone, de repente, começava a retinir, as chamadas sucediam-se, quase todas da Novilectra


ou da roda de amigos. com a mesma brusquidão, calava-se. E calado permanecia uma hora
seguida. Seria profunda a inquietação dos outros? Apenas a obrigação de prestar
solidariedade? As idas à polícia, o estar certa de que Carlos Murta andava a meter o nariz em
todos os sítios. Os dois amigos no café, passando a novidade. A visita do repórter, ele não fora
inconveniente nem importuno. A noticiazita do jornal, sentida como uma violação. E o terrível
silêncio - o silêncio de Rodrigo. Morto? vivo? A polícia, instigada por Cecília, tivera de confessar
que, por enquanto (repetiam enfaticamente: "por enquanto"), as buscas não haviam
conduzido a nenhuma pista. "Mas não esteja assim tão preocupada, minha senhora. Seria bem
pior que se tivesse encontrado o seu marido nalguma valeta. Ele aparece." Teresa tinha o
pressentimento de que aquelas palavras não eram vazias. Rodrigo estava vivo. Ela sabia-o vivo.
Tinha a certeza. Na última noite, Teresa adormecera pela madrugada, nem sabia como, o sono,
muito breve, viera à traição sonhara. Pesadelos sobre pesadelos. Havia neles, porém, uma
espécie de alegoria. Rodrigo aprisionado numa cápsula, até se poderia comparar a uma
placenta, duas cobras enroladas no tronco, os braços a quererem libertar-se do viscoso cárcere,
num apelo, numa prece. E quanto ele odiava as serpentes, todos os répteis. Rodrigo estava
vivo.

Aliás, acontecera uma coisa estranha. O telefone, outra vez o telefone. Atendera Cecília, ambas
corriam para o aparelho sempre que ouviam o retinir tão desejado e tão ameaçador. Ninguém
respondia. Desligaram. "Quem era?", perguntou Teresa. "É alguém de uma cabina, mãe."
Minutos depois, tudo se repetiu. Sentia-se do outro lado

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um ofegar, uma presença, uma respiração. Mais nada. "Quem é?" Uma respiração, sim, estava
uma pessoa naquele telefone emudecido. A pessoa não sabia fazer uso do aparelho, não
premia a moeda, ou então... Três vezes assim sucedeu e, por coincidência, sempre com Cecília.
À terceira, tardaram a desligar, o bafo da pessoa como que corria pelas linhas telefónicas, e
Cecília, de súbito, quase gritara: "És tu, pai? Fala, por amor de Deus fala, eu sei que és tu".
Teresa, um dardo fino a penetrá-la, não lhe fez pergunta nenhuma.

E ainda outro fato. A polícia contactara a averiguar um pormenor:

-Descreva a gabardina do seu marido. Não nos disse aqui que ele saiu de casa com uma
gabardina. A propósito: levava-a no braço ou pelas costas?
-Eu referi-me a isso. O tempo estava fusco, tal como hoje. Estou a tentar lembrar-me se ele pôs
a gabardina pelas costas. É importante?

- Como é essa gabardina?

- É importante? Que sucedeu? Por favor, explique-me.

- Para já, do que precisamos é de uma boa descrição.

- Gabardina vulgar. As que vejo parecem-se todas. A cor é que...

- Diga a cor.

- Bege. -Muito usada?

-Não fazia grande uso dela, mas já a tinha há muito. Cinco anos, talvez.

- Marca?

- Do fabricante?

- Ou da loja, tanto faz. Mas a loja interessava mais. -Espere um momento, deixe-me pensar.
Ah, creio

que a comprou nos Pinheiros.


O interlocutor parecia associar ideias, não desligara ainda. Teresa insistiu:

- Por favor, diga-me por que pergunta tudo isso.

Uma hesitação da outra parte, uma voz meio aborrecida:

-É que encontraram uma gabardina mais ou menos cor de café com leite. Num cacilheiro. Uma
pessoa viu...

Teresa sentiu um estrangulamento, os lábios terrivelmente secos.

-É ele! - " "•' ' ' •-

63

- Ele o quê?

- A gabardina é do meu marido.

- Como sabe?

- Sei. vou já aí.

E desligou, disparando corredor fora. A gabardina era de Rodrigo.

64
O Neves informou-me de que o Faria Gomes teve ligeiras melhoras, embora adiantando logo,
sombriamente: "Mas nada que nos tranquilize. Passe por lá" Passei, contrariado e de fugida,
sem achar tema de conversa, cada segundo a parecer-me uma hora. E a verdade é que não lhe
observei nada de diferente. Talvez por isso, eis-me a prosseguir nestas escavações (nesta
"história pregressa", como o Neves, no seu intolerante rigor, muito gostaria de ouvir da minha
boca), tentando avivar o tempo e a memória.

Estou a rever-me, estou a revê-lo - subimos o Chiado em silêncio. Ele parecia ignorar a minha
companhia. Caminhava muito direito, como numa parada, sobrancelhas ferozmente em
desalinho. Não mostrava a mínima curiosidade pela fauna que nos espremia no passeio. Por
entre a muralha de rapazinhos encostados às montras das livrarias (um sacrilégio, dir-se-ia de
propósito), espreitava, com um olhar arisco, as últimas novidades literárias. Nem uma só vez
parou, como se previamente estivesse certo de não encontrar coisa que valesse a pena. Ao
chegarmos ao Bairro Alto, porém, vi-o percorrer demoradamente os tabuleiros dos
alfarrabistas. Folheava quase todos os livros, sem os tirar do sítio, enquanto, com a mão livre,
num gesto que lhe desconhecia, ia enrolando as pontas mais rebeldes das sobrancelhas. Nunca
vira alguém fazer isso com as sobrancelhas, embora o gesto extravagante logo se associasse ao
meu tio notário, senhor de uma bigodeira jacobina e anafada. O Faria Gomes tinha uma
expressão de fastio, uma ou outra vez lembrando o Castel-Branco, mas sempre perscrutadora.
Não parecia ralar-se de que me fosse agradável ou desagradável essa ronda por velharias. Em
certo momento, estendeu um dos livros ao alfarrabista:

- Quanto?

O homem ajeitou a boina, encostando os olhos míopes à lombada da brochura, e, depois de a


farejar, disse:

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- Doze escudos.

Era uma edição antiga de Os simples. Faria Gomes voltou-se para mim, de olhos firmes, e
perguntou quase ríspido:

- Tem aí vinte escudos?


Entreguei-lhe o dinheiro com alvoroço, esperando que me desse o- que sobrara, mas ele, num
jeito desprendido, enfiou o troco nos bolsos.

Duas raparigas saíram de um bar. Faria Gomes voltou-se várias vezes até as perder de vista,
sem fazer comentários. Era o primeiro sinal de apreço por mulheres que lhe observara. (O
primeiro, não, de modo nenhum estou a vê-lo no café, na correnteza de mesas que fica por
cima, na galeria, sem desfitar por um momento a rapariga morena que se chegava à tertúlia
dos cineastas, e a dizer numa entoação quase raivosa: "Só queria passar uma semana inteira
com esta mulher; depois já tudo me seria indiferente". De fato, aquele era um dado
significativo, eu devia vasculhar melhor a sua relação com a Bia - a esteira aos pés da cama do
seu amo, onde provavelmente regressa assim que ele se acha saciado e servido.)

No miradouro de São Pedro de Alcântara, abrandou a passada e sentou-se na extremidade de


um banco livre. Deixando aquele vasto espaço desocupado convidava-me a que me sentasse
também. Tínhamos ao fundo as colinas ofuscadas por um sol violento que lhes incidia
frontalmente. Algumas janelas pareciam gargantas de um incêndio. Nuvens vermelhas, sem um
estremecimento, recortavam o casario. O conjunto das torres das igrejas, dos prédios com
medo de crescer, das ruelas talhadas a pique, do castelo ao alto, das árvores imóveis, dir-se-ia
um fantástico presépio iluminado por um fogaréu que lhe rebentasse das entranhas. Como
contraste, era agradável o repuxo fresco que sentíamos por detrás do banco. Suavizava-me
uma secura que vinha à boca.

-Gostei do seu romance, se lhe interessa sabê-lo disse-me, e a frase inesperada acertou-me em
cheio como um tiro seco que, de repente, sem uma dor prévia, nos deixa na camisa uma pasta
de sangue. - O seu livro chegou ao café vindo da rua, sem ajudas, sem maquinações. Foram a
rua, o leitor, que o impuseram, nunca se esqueça disso. Está no bom caminho. Mesmo que lhe
mordam nas canelas, vá em frente. Não se esqueça.

66

Não o esqueci. E estava longe de poder avaliar quanto aquelas palavras, lançadas para o chão
como restos da mesa de um príncipe (não há dúvida, o grande título para o meu livro é O
príncipe), significavam, nele, um elogio excepcional e mais ainda: a oferta (magnânima) da sua
proteção. Faria Gomes decidira proteger-me. Por uma pressentida identidade de raízes? A
verdade é que o meu romance poderia sugerir um pouco (talvez muito) a atmosfera física e
humana da sua infância, mas verifiquei, com o rodar dos dias, que, afinal, ele gostava de cobrir,
com a sua asa temível, todos os principiantes, melhor: todos os que, por uma razão ou por
outra, ainda não emparceiravam no jogo sombrio do café. Depois, ao primeiro anúncio de
emancipação, abandonava-os à sua sorte ou passava-se mesmo para as hostes contrárias.
Aliás, gabava-se de, com uma simples frase, erguer ou derrubar uma reputação, não gastando,
portanto, muitas palavras para o conseguir. Quando feria, o seu cutelo ia direito a um órgão
vital. Por exemplo: na altura em que o Castel-Branco começara a publicar os Textos
apologéticos (nos quais, por óbvio respeito pelas sanhas viperinas do Gomes, o tratava com a
mais macia das lisonjas), ele, após ter ouvido, durante semanas, as queixas de meia Lisboa
letrada e os gozos daqueles que traçavam a lápis vermelho os repetidos êxtases de um
paranóico a confessar-se génio, dissera apenas:

- De fato. Nunca o supus tão cagão e tão sacana.

Fora esse o veredicto definitivo aos Textos apologéticos. Um réquiem. Curiosamente, a partir
daí, deixara de se falar no apetitoso e controverso rodapé.

Era essa uma das coisas que, nas minhas surtidas à cidade, me perturbavam: as relações entre
os meus camaradas. Não entendia. Havia entre eles um ressentimento confuso mas profundo,
uma vigilância tensa, que lhes envenenava o convívio. Rivalidades, ciúmes, de acordo. O Castel-
Branco, que às vezes, como o Faria Gomes, condescendia em apadrinhar um neófito, se este ia
além das previsões, com prolongados festejos da crítica, logo amuava:

-Já é demais, caramba. Não é caso para tanto.

Ciúmes, pois, um sofrer bem sofrido perante qualquer êxito alheio. Mas era mais do que isso.
Dava-me a impressão de que cada um deles cometera um ato vil e vivia sob o pânico constante
de ser descoberto. Ao regressar ao meu refúgio labrego sentia um imenso alívio.

67

No entanto, eram pessoas como toda a gente e muitos tinham sido modelados por uma
juventude vivida em generosa comunidade. Que sucedera, então? Este CastelBranco, que
exercia uma espécie de desesperada (ou bulímica?) autofagia, de tanto se enlevar com os seus
dons, que suspeitava conspirações contra ele em qualquer louvor dirigido a outrem, que nos
tais Textos distribuía raivas ou mercês consoante uma hierarquia competitiva, que fizera ele
dessa juventude - ou fora ela já um levedar de rancores? (E que fiz eu próprio da minha, vá,
responde, André Bernardes, somos todos uma pobre caricatura.) Bem olhados de frente, mas
lá fora, longe desta malignidade metastática do café, na vida de todos os dias, a verdadeira
(será essa a verdadeira?, eis a questão fulcral), na sua lida de funcionários públicos,
comerciantes, médicos, jornalistas, professores, em pouco diferiam das pessoas chamadas
gente vulgar. Diferiam mesmo muito pouco dos ganhões dos meus sítios, que me tratavam das
vinhas e, no seu rudimentarismo, não deixavam de ser cobiçosos, egoístas, astutos e
parlapatões,_o,nestre Dionísio, sapateiro vizinho, que batia na mulher e nos filhos apenas1
porque um homem bem homem tem de bater em alguém, As aspirações de uns e outros
eram, afinal, idênticas : que tudo, afirmarem-se, traçarem à volta um território a que
chamassem seu; depois, a cupidez pelas expressões mais nítidas e próximas de ganâncias
elementares. A diferença estava (tenho de dar atenção a esta ideia, sei que irei traduzi-la muito
toscamente) em que os meus camaradas escondiam o que neles havia de puro e autêntico,
como se se tratasse de uma chaga. E esse constrangimento leva diretamente ao inferno íntimo,
à solidão.

Em Faria Gomes essa solidão, assim eu o julgava, era uma segunda pele. Fazia parte dele. Como
certos vermes que se instalam nas vísceras e acabam por pertencer à fauna fisiológica. E, não
obstante, existia a Bia na sua vida, uma presença etérea - que era a Bia para ele? Uma
servente, uma hospedeira, a amante, um amor secreto? Que personagem.

Volto a rememorar essa tarde no miradouro. Não queria perder a oportunidade de o reter
comigo e deixei-o fartar-se da panorâmica citadina. Depois, sem qualquer acordo prévio, pôs-
se de pé, hesitou entre duas direções, investiu para uma ruela do Bairro Alto, nem cuidando de

68

verificar se eu o seguia. Segui-o, claro, e sem protesto. Uma ruela, outra, e não tardou que nos
achássemos de novo perto do miradouro. Via-se que essa vagabundagem estava nos seus
hábitos prediletos. Caminhava como um camponês: o passo sólido, mas também resignado, de
quem enfrenta um longo trajeto. Nas pernas magras, as calças enfoladas pareciam de um
palhaço. E havia de fato alguma coisa de burlesco na ênfase olímpica daquele rosto, tão fora de
propósito sobre um casaco puído e umas calças que tinham perdido os restos de compostura.
Só mais tarde percebi que as passadas de Faria Gomes tinham efetivamente um destino, um
impaciente destino: o crepúsculo. Como se, andando, andando sem desfalecimentos, o
antecipasse. Quando a luz adocicada da tarde (era outono) se agachou aos pés das colinas da
beira-rio, e as coisas, repentinamente, tomaram uma forma severa, Faria Gomes desatou a
falar. Custava decifrar-lhe as palavras: enrolava-as na boca, ensalivando-as, e depois, de súbito,
cuspia-as de uma só vez. Mas não me atrevia a fazê-lo repetir fosse o que fosse. Acontecia
comigo o que eu já observara nos outros, no café: todos se lhe dirigiam cautelosamente, como
quem pisa um terreno semeado de minas. Um pé em falso e a bomba rebentaria.
Estou aqui com isto e, de momento, talvez me interesse mais apanhar o Ferreirinha a jeito, sem
testemunhas, e concentrar-me na notícia que ele me fez ler. Aquela história do desaparecido
cheira-me, por enquanto é coisa nenhuma, mas o Ferreirinha lá tinha as suas razões quando
me chamou a atenção para ela. Descreveu-me com alguma gravidade, como se tivesse acabado
de conhecer alguém importante (e tudo isso é significativo do que ficou por dizer), a visita à
mulher, pintou-ma a traço grosso, mas o bastante para que eu me pusesse a imaginar-lhe o
porte, as esquivas sagazes, a disciplinada emoção das suas reações. É como se a estivesse a ver
neste momento. E há ainda a filha, ao que parece bicho-do-mato, há um quotidiano banal que,
por ser tão previsível, me faz desconfiar: uma moldura enganadora a enquadrar uma peça rara.
Aquele Rodrigo pode até bulir-me mais que o Faria Gomes, entre ele e mim há a distância
clarificadora, a liberdade de o poder urdir sem uma referência impositiva. Um homem que
desaparece, a cidade que passa a saber da sua existência (o que não é o mesmo que interessar-
se) apenas porque esse desaparecimento desafina uma precária, falsa,

69

in

pérfida harmonia. (A rever este possível ponto de partida.)

O que estou é a dispersar-me, não tenho ilusões. Ainda hoje, na carta que recebi no correio da
manhã, Marta me dizia das boas. Deveria estabelecer um plano definido e concentrar nele os
meus cinco sentidos mobilizados para uma pesquisa cujo alvo por enquanto me escapa. Há em
mim um desnorte, as minhas emoções são um desperdício. Por isso adio, you adiando - o que é
que em mim se desgastou? Para um escritor, não escrever é esse sucessivo, erosivo, mortal
adiamento. Mas escrever sobre quê, sobre quem? Estou desorientado. Não escrever é estar-se
dentro da vida sem lá estar - ou estar-se nela mutilado, intruso, estéril. Talvez o Castel-Branco
ponha o dedo na ferida quando diz coisa semelhante e quando atua, perante as pessoas e os
fatos, como se houvesse toda a legitimidade em sacrificar essas pessoas e esses fatos a um
destino terrível mas supremo - escrever. Ele confessa (literariamente, o que logo pressupõe
uma redenção) todos os seus ódios, odeia tudo - até as crianças. As crianças, os simples, os
crédulos, os deserdados, os que acreditam numa ideia ou num amigo. Para ele, isso é lixo,
patetice. Lixo incómodo e impudicamente ruidoso. Ele confessa que é possuído com frequência
pela tentação de pegar num instrumento cortante e ferir alguém. Ferir para desfigurar, para
marcar, para fazer sofrer. Como à Aurora Zarolha. Mas ao despir essas suas entranhas tão sujas
de felonia e solitude, o Castel-Branco põe-nas reverentemente no altar de um deus que se
paga pelas mais atrozes exigências - a literatura. E, ao atormentar-se, como o sinto deleitado!
Tudo isto me perturba, me multiplica as dúvidas, não consigo optar por ficar de dentro ou por
ficar de fora. Marta conhece-me. Essa, conhece-me. Mesmo quando me escondo de mim
próprio, ela entra-me no esconderijo e faz-me ver onde estou. A carta que dela recebi esta
manhã não me fala muito dessas coisas, mas é como se falasse. Marta foi-se, não sei por
quanto tempo. Vai fazer-me falta, embora, por enquanto, me sinta aliviado por a saber longe.
Saudoso, um tanto desapoiado, mas em tudo isso há um respirar como que desoprimido.
Daqui a dias, porém, andarei por aí sem saber que fazer de mim. E tudo complicado, ou sou eu
que o complico. E, ouvindo-a, ouvindo-a instigar-me a ser corajoso, a ser coerente, até tudo me
parece fácil. "Ouve, André, vem para mim. Estou

70

disposta a tudo. Deixei de ter medo." De repente, sou contagiado pelo destemer dela, apetece-
me dizer-lho, apetece-me provar-lho. Já li a carta algumas vezes, Marta até sabe dar-nos a ideia
de que estamos a viver as coisas que ela viveu. Releio-a de novo. , ,, ,,

"Estação da Pampilhosa :

André,

Enquanto atrelam carruagens (aos sacões, à bruta, como quem mete medo à gente) e o
comboio não avança, aproveito para falar um pouco contigo. Estou a ler As palavras são pedras
(que começamos a ler juntos, lembras-te?, foste tu que mo recomendaste) e é como se
estivesse a ouvir-te. A distância parece menor e iludo-me pensando que estás a meu lado. Pena
que a fuga à realidade imediata, envolvente (este ruidoso comboio), seja difícil, pois os

meus

companheiros de viagem querem à viva força fazer-me participar das suas confidências. Se não
fosse este desejo imenso de me sentir isolada talvez entrasse nas conversas. Eles,
indiretamente, insistem, levantando a voz. Os meus olhares (embora raros, vagos, de raspão)
encorajam-nos. Devem pensar que estes olhos de cão batido não inspiram medo nem sequer
respeito. E têm razão, como sabes. A propósito, volto a dizer-te que, quando tiver dinheiro
(tratar-se-á de um desejo autêntico, farsante ou corrompido?), só viajarei de avião. Poupa-se
tempo, cansaço e maçadas. Além disso, pelo que julgo, as pessoas são menos violadas na sua
vontade de estar sós. Isto é: creio que o avião guarda distâncias, afasta as pessoas, enquanto o
comboio as gregariza. A gente entra num comboio e começa logo a contar a sua vida ou a
repartir o farnel com o primeiro desconhecido. Isto tem vantagens, tonifica, mas também se
paga com inconvenientes, não é? Como neste momento.

Todo este falatório numa voz bem gritada nem sequer é o pior. O que me enraivece
(estupidamente, bem o reconheço) é isto: sempre que levanto os olhos, dou de caras com um
rapaz que não parou ainda de me fixar. Já me enjoa esta insistência. Põe-me enervada e
insegura, chateia-me.

O comboio vai partir - que alívio! Até que enfim.

O rapazola enraivece-me (cá estou eu de novo) porque aqueles olhos não são os teus. Os teus
dar-me-iam serenidade e segurança. É assim, de verdade, sem deixar de

71

ser estranho. É que tu és inseguro, andas sempre a rapar dentro de ti umas gotas de coragem,
como se já estivesse gasta ou morta, e afinal estás cheio dela. Eu sei que estás, André. Sinto-a,
vem toda para mim. É ela que me faz viver, que me faz suportar esta viagem e o que para mim
representa, é ela a minha esperança. Pois o olhar dele confirma-me a tua ausência, é como se
me beliscasse esta atmosfera de sonho ludibriador. Confirma-me a tua ausência, previne-me de
que não posso iludir-me. Estes não são os teus olhos, tão afetuosos, tão acariciadores, a irem
até ao fundo do que sou ou do que não sou.

E sempre que penso nos teus olhos vêm-me logo à lembrança as tuas mãos. Sólidas e frágeis,
duras e macias, agitadas, para mim incomparavelmente belas. Elas dão vida a tudo o que
tocam. São rios e são fogo. É no que eu logo reparo em qualquer pessoa - nas mãos.

Nunca to disse, mas vou dizer-to agora: quando te olho sinto-me fascinada, um passarinho
hipnotizado. (Não te envaideças, peço-te.) Mas a força do teu olhar'não fere, não magoa: é
uma força-doçura. Penetra-nos como uma seiva derramada nas artérias.

(Escrevo-te à deriva, tal como os meus pensamentos. Não estranhes a desordem.)

Agora atravessamos a montanha. Os pinheiros, as oliveiras e os eucaliptos são incapazes de


suster a enxurrada verbal que me cerca. Sinto-me atordoada, o cérebro no centro do
redemoinho. Apetece-me gritar: Calem-se! Sinto-me prisioneira, com uma vontade danada de
puxar o sinal de alarme, de fazer parar o comboio, de saltar para fora e correr. Correr. Tirar os
sapatos e penetrar-me da erva e da caruma, beber a atmosfera odorizada, ouvir o sussurro do
vento, deitar-me nos fetos, reconciliar-me comigo.
Esta floresta lembra-me uma outra - a 'minha'. A dos teus cabelos rijos, sem eira nem beira,
umas vezes disparados ao alto, outras formando uma brenha sobre a testa. E as minhas mãos
dentro deles, sentido-os rebelar-se contra a minha sempre frustrada domesticação. É a mais
sedutora e inacessível floresta que conheço. Estou a recordá-la como uma saudade sem
remédio, como um desejo que nunca terá satisfação.

A noite vem chegando de mansinho. A nostalgia destes ermos põe-me serenada, quase feliz.
Gosto da noite. Quando a noite desce, todas as barreiras se esfumam, todas

Agora atravessamos a oliveiras e os eucaliptos enxurrada verbal que me

72

as distâncias se anulam. Como um largo e insondável manto que, cobrindo tudo, concilia
todos os contrários.

Sabes, André, eu tinha a secreta esperança de que me dissesses: Não te deixo ir, Marta. Não
voltas para o teu marido, nascemos um para o outro. Vamos enfrentar juntos o que for preciso
enfrentar'. De tanto desejar que isso acontecesse, quase me pareceu ter acontecido. E essa
miragem (mesmo como miragem é reveladora) saboreei-a como a doçura espantosa de um
oásis oferecido a um viandante sedento. Mas, de repente, a maravilha, a revelação tornaram-
se apenas mágoa. No teu rosto havia dor, havia ternura, havia o desejo de reter-me, mas nada
disso chega. Não sei verdadeiramente o que temes, o que receias perder. Não sei, enfim, o que
verdadeiramente importa para ti. Parece que queres dar muito, mas talvez apenas queiras
receber. O resto é encenação. A literatura, ou lá o que é, tiraniza-te. (Desculpa, eu tinha
prometido não falar disto, sobretudo agora, que já não tenho ensejo de poder reparar o mal
que te faço ao ser assim rude para ti.) Amanheceu já em terras de Espanha. Enclausurada no
ventre deste monstro informe, sinto-me eu própria uma suja entranha. Tento abrir uma fenda
no bojo deste paquiderme para que entre uma lufada de ar fresco que purifique a atmosfera
viciada. Olhares reprovadores fazemme compreender que a ideia é tonta. Não me intimido e,
num gesto sacudido, forço a janela a descer uns centímetros, nem sei como consegui. Os
cabelos voam-me, os pulmões abrem-se a esta golfada de vento áspero e frio. Aspiro-o
avidamente, de olhos fechados, inebriada. Atrás de mim, o senso comum, a sabedoria que
recusa riscos (a sabedoria dos teus campônios, não é, André?) - Menina, o ar frio faz maleitas!
Que gente esta - não são operários, já não são camponeses, estão em vias. de perder a pátria e
nunca terão outra que a substitua, habituados aos invernos, às madrugadas, às nortadas,
assustam-se agora com uma golfada de ar frio! Uma antiga camponesa, hoje se calhar operária
numa fábrica ou criada de uma burguesa de Paris, olhar e gestos cansados (Amamentei nove
filhos, amamentei-os ao meu peito, senhores, que essa história de biberão é para as francesas,
todas elas têm um leite que é uma mijoca'), não se cala com a corrente de ar da janela. Se eu
fosse cruel, teria replicado ao seu refilanço chamando-lhe vaca leiteira. Mas não. Há nela seja o
que for que me impõe respeito e acabo por lhe obedecer. À laia de

73

agradecimento, escolhe-me como interlocutora direta. E vai dizendo: Os patrões preferem-nos


e é natural, as francesas são umas calaceiras. Elas e eles. Que ninguém os tire do bem comer e
melhor beber. E quanto a vergonha, se a menina os conhecesse!'

São assim os nossos pobres emigrantes (às vezes esqueço que sou um deles, que vim na
primeira leva). Cativos em fábricas onde nem se dá pelas estações do ano. Para eles (para esta
ex-camponesa que amamentou nove filhos - em que idade teve ela o primeiro? -, até parece
que nasceu casada), para eles, o ar, o sol, a chuva tornaram-se referências remotas que se
misturam confusamente com os tempos da miséria. Eu já comprei dois prédios em Portugal,
que estão alugados. Também não sou como os franceses, não, que só pensam em gozar. Para
mim, é trabalho e casa, desde os quinze anos. O emigrante que acabou de falar, num jeito
pimpão e sentencioso, anda à roda dos quarenta, é difícil acertar-lhe com a idade. E logo um
outro, esse com sessenta anos bem puxados, se solidariza: Não te arrependas da vida que
levas. Mais tarde é que te vai saber bem. Não há nada como prédio, as rendas são certas'. Logo
um terceiro se meteu na conversa: Pois eu, quando voltar a Portugal, já não virei de comboio.
Virei de banhola e não há de ser uma carripana qualquer'.

Devem estar muito intrigados comigo. Venho modestamente de comboio, como eles aguento
esta estafa, e, no entanto, trago o saco cheio de livros, tenho levado estas horas a escrever ou a
ler. Sou uma intrusa e chateio-os com caprichos, como essa de abrir a janela à friagem. Talvez
por isso, um deles atira-me uma indireta: Estudar para quê? Os estudos já não enriquecem'.
Mas a frase não teve agressividade, pelo contrário. com os meus velhos jeans (é assim que se
escreve, senhor escritor?) devo parecer-lhes um rapazinho, uma estudante que regressa de
férias. A minha cara limpa de maquilagem, a minha tez amarelenta devem representar indícios
seguros de que sou uma dessas emigrantes com pretensões intelectuais. E ele insiste, pica-me:
Gastam todo o dinheirinho que ganham a estudar. Não têm juízo. Os estudos não são para
todos'. Eu sorrio e a camponesa de olhar cansado poisa amistosamente a mão sobre a minha
perna como a confirmar, a chamar-me à razão. Nela, afabilidade é rudeza, palavra bruta. Não
há frase que ela não comece ou termine por

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'grandes cabrões', 'porra', 'filho da puta'. Ninguém repara


- melhor: reparo eu.

Querido André, é tempo de me calar. Aliás, estou mortalmente fatigada. E, quanto a sono, nem
é bom falar. Querido André: que o vento te leve os meus recados de saudade. Esquece aqueles
comentários que escrevi atrás. Eu sei que me amas. E um dia todas as coisas hão de modificar-
se, tenho a certeza. Um dia pegarás em mim, faremos amor ao luar, não consentirás mais que
ele me profane.

Um beijo.

Marta."

Querida Marta, o que sabes e eu sei é que não valho um chavo. E, no entanto, amas-me. E, no
entanto, és a denunciadora implacável das minhas fraquezas. Nem quero pôr-me a imaginar
onde estás agora. com quem estás.

A Maria-Emigrante (tento dissociá-la da Marta-Que-EuAmo) também é uma personagem. you


descrevê-la: trigueira, olhos fundos, úmidos, feitos de mar. Um andar esbelto e dançarino,
apoiado na cintura estreita e requebrada, que logo se espraia numas ancas onde apetece
plantar as mãos. Há um langor quase patético em todo esse corpo vibrante. Marta grita no
instante do prazer. Tem uma maneira ávida, quase aflita, de nos observar. Ainda hoje fico
perplexo quando tento dizer a mim próprio quem Marta é. Há, decerto, várias Martas - a que
eu conheci, vai para três anos, parece-me agora uma grosseira impostura, ela representava um
papel que nunca lhe seria adequado.

Encontramo-nos pela primeira vez nos corredores de um tribunal, ambos testemunhas de uma
moça estudante, sobrinha do poeta João Prudêncio, com quem a Pide tinha grossas contas a
ajustar. Ela pertencia a uma rede juvenil ativista, que abria os caminhos da deserção aos que
partiam para as guerras de África de consciência violentada. Um mês antes do julgamento, a
polícia vira-se forçada a interná-la numa clínica psiquiátrica, João Prudêncio, respeitado e
eficaz, mobilizara meio mundo para que alguns rumores do massacre chegassem à opinião
pública, com protestos avalizados por centenas de intelectuais e uma notícia brava no Lê
Monde, que sempre fazia doer o flanco mais sensível da governação. Havia, aliás, peritos na
recolha das vozes insubmissas, como havia nomes infalíveis nessa
75

insubmissão, com uma ou outra episódica surpresa, como fora o caso do Augusto Travassos,
cineasta na berra - que não, que não assinava, estava farto de fantochadas. Nessa altura,
ninguém poderia futurar que, treze anos depois, no dia 26 de abril de 1974, quando libertaram
os presos de Caxias, o Augusto Travassos haveria de ser dos primeiros a correr ao alto do
cabeço, pondo-se à testa das pessoas que tinham ido saudar os opositores ao regime - estava
lá a televisão.

Pois na tarde do julgamento, a polícia ocupando quase toda a teia do tribunal, dispersando os
mirones do corredor, vimo-nos, as três testemunhas, enfiadas num canto: Marta, que fora
colega da sobrinha de João Prudêncio, uma pintora estarola, Avelinna, da fauna do Chiado, e
eu. Aquilo ia levar o seu tempo e a pintora entendeu preenchê-lo fazendo de conta que eu
poderia interessar-lhe. Ela media, como um marchante, o meu metro e oitenta de altura e
pesava, com o mesmo rigor, os meus setenta e sete quilos. De repente, a longa boquilha quase
a espertar-me o peito, desfechou:

- Qual é o seu segredo?

- Que segredo?

- De tratar as mulheres.

- À bruta - dei-lhe a resposta que ela pedia.

Marta, então, desafiada, achou que devia competir na avaliação, os seus olhos aguados
apalpavam-me os bíceps. Senti-me humilhado. E, como me sucede nessas ocasiões, refinei na
rudeza, que é a cortina de fumo da minha timidez. Quando terminamos os nossos
depoimentos, fomos os três no meu carro, a pintora ficou pelo caminho, tinha um encontro em
atraso. Parei junto ao prédio de Marta, demoramo-nos um pedaço a falaçar banalidades, ela
numa logorréia enervada, até que, no mesmo tom da Avelina, lhe ouvi dizer:

- Acha-me jeitosa?
Tinha de ser coerente com a situação, retorqui:

- Se se refere ao físico, nem por isso. É uma mulher vulgar.

- Pois eu a si acho-o apetitoso. Imaginava-o bisonho e comedido, ainda bem que me enganei.

- Não se fie em aparências.

-Bem o sei, e é por isso que gostaria de tirar a prova. Está de acordo?

76

Engoli a surpresa, não tinha grande espaço de manobra.

- Não brinque.

- Não estou a brincar. - De súbito, mudara. Principalmente os seus olhos: enormes,


dramáticos, varando-nos num apelo ou numa reprovação. - Sou uma amorosa.
Apaixono-me com quantas vísceras tenho no corpo. E agarro-me a essa paixão como as
heras se agarram às paredes em ruínas.

Mesmo doseada pela ironia, a frase era de palco. Mas não tanto como na altura me pareceu.

-Se não está a brincar, do que duvido, quero que assentemos no seguinte: sou um leviano de
pequenas aventuras. E nelas entra apenas o sexo. Tenho mulher, filhos, não me queixo. Além
disso, sentir-me-ei tudo menos uma parede em ruínas.

-Certíssimo. Proponho então que não adiemos a experiência. É só subirmos, não está ninguém
em casa. Porei a hera de parte, não serei mais do que a fêmea.
E foi assim que fizemos amor. com selvajaria, como inimigos numa batalha, cada um a procurar
convencer o outro do que valia e a esconder o que era na verdade. Dias depois, Marta andava
de tertúlia em tertúlia, até me localizar.

-Já não te largo, André, és o meu homem. O primeiro homem que conheci.

- E os outros, Marta?

-Aquilo foi só para te impressionar. E mesmo que eu tivesse dormido c nom dúzias deles, nada
disso conta. Homem és tu, poderoso e rude.

- Preveni-te de que não quero compromissos.

-Nem estou a pedir-tos. Serei a tua outra mulher. Mesmo que nada sintas por mim.

-Não, Marta. Isto acabou. E acabou na melhor fase, ouvindo-te coisas bonitas. Para deleite da
memória.

Efetivamente, durante semanas, Marta não tentou encontrar-me. Ou antes: vimo-nos por duas
vezes, primeiro na rua, no sorriso dela não havia ubiqúidade nem censura, apenas melancolia,
e depois num serão em casa do Augusto Travassos. Ela bebera muito, num exagero patético,
mas à saída não forçara a companhia. Só me disse: "Ainda te recordas? E a recordação é
agradável?" Era como se ainda estivesse a ouvi-la na tarde em que tínhamos feito amor:

77

"Quero ser a mulher que mais prazer te deu até hoje. Que não me possas esquecer".

Sucedeu, porém, que me convidaram a ir a Paris, a um simpósio de escritores. Os jornais


falaram disso. No aeroporto, com minha mulher a meu lado, via-a na sala de espera, na
azáfama de embarcar também. Fiquei varado. Marta tinha o olhar endurecido. E mais
endureceu quando me despedi de Dorita. Assim que passamos o controle da polícia, e ela nada
fizera para se aproximar, interpelei-a:
- Para onde vais?

- Para onde tu fores.

- Como soubeste? .

- Sei tudo de ti.

A verdade, pareceu-me depois, é que ela já nessa altura tentava um emprego em França, em
casa as coisas iam-se deteriorando desde a morte do pai. De qualquer modo, aí estávamos, em
Paris. E a seguir em Bruxelas. Uma louca semana: errâncias, imprevistos, caprichos que nos
punham numa estonteada excitação. "Vês, André, não nos podemos separar. Tens estado
sempre na minha cabeça, noite e dia, como um tumor." Eu não lhe respondia, apenas lhe
encostando a face na minha mão espalmada, nem chegava a ser uma carícia, mas ela logo
fechava os olhos de prazer, tremia-lhe o canto da boca; eu não lhe respondia, emudecido por
um verruminoso e indecifrado sentimento de culpa. E Marta insistia: "Fazemos amor como
mais ninguém sabe fazer, duvidas? E dizemos um ao outro tudo o que nos apetece dizer. Não
achas maravilhoso? Quando vemos um filme descobrimos nele o que o outro também
descobriu. E na rua, num café, estamos sempre certos de que somos atraídos pelas mesmas
coisas. É maravilhoso, André, pertenço-te".

Apanhou-me os retratos da família, num dia em que lhe pedi que me procurasse um papel na
carteira. Ficou tempos infindos a perscrutar o de minha mulher e, na manhã seguinte,
apareceu penteada da mesma maneira, sem pintura, a cabeça inclinada num jeito de mimo -
uma imitação perfeita. É provável que tivesse previsto o meu desagrado, mas não tanto como
asperamente lho manifestei. Desmanchou num ápice o penteado, tudo gestos numa assustada
desordem, e referiu-se logo ao retrato de minha mãe. "És a cara dela, André. A mesma boca.
Esta mordacidade um tanto comprometida é a tua. E esta rugazinha que parece rir. Gosto da
tua mãe."

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Marta nada tinha que ver com a moça deslavada que eu conhecera no tribunal, e era isso
mesmo que me bloqueava, que me dava mal-estar. Ela merecia que a amassem e o que eu
sentia não era amor. Quando regressamos a Lisboa, achei que deveria dar um remate à
"pequena aventura" e até consegui o pretexto de umas férias na província. Marta, porém,
recorria ao telefone e às cartas - escrevia como quem abre as veias e deixa o sangue correr. Ao
telefone não ia muito além de alegorias como estas: "O meu corpo é um fruto recôndito: abre-
o", "continuo habitada por ti", às vezes um simples "olá". As cartas é que eram rubras,
caudalosas. Tudo terminou, afinal, com a sua ida intempestiva para França. Uma decisão no
seu estilo. Não conseguia emprego em parte nenhuma, era um mistério a sobrevivência
daquela família, não espantaria que fosse ela a dar o exemplo de uma viragem inesperada. Aos
caminhos de França acorriam as rebeldias e as desesperanças. Em certos casos, as iras. De
qualquer modo, a coragem, e Marta era corajosa, gostava de o mostrar.

Uma ou outra carta esporádica, férias de duas semanas em Portugal, em que, irresistivelmente,
acabávamos por dormir juntos. "Prepara-te, André, um dia já não deixarei que te vás daqui." A
nossa relação era simultaneamente trivial e excêntrica. E um constrangedor mal-entendido.
Marta pegava-me na mão, seduzia-se muito por tudo o que fosse um desafio à racionalidade.
"Uma linha da inteligência firme, explode numa estrela. E viverás anos e anos, uh, até parece
que a tua- vida nunca mais acaba. Linha do coração acidentada, repara, tantas cruzinhas. Dá-
me a tua mão direita, agora. Vejo aqui uma ilha, já lhe passaste adiante, e depois outra, bem
maior, irás sofrer, André. Mas também sairás desta. O teu destino perturba." De tempos a
tempos, voltava a referir-se às minhas "ilhas", creio que me escondia algum presságio que a
impressionara.

Até que um dia, após um mais largo período de silêncio, ao marcar-me encontro numa
pastelaria Cheguei ontem, André, e tenho uma urgência doida de estar contigo" -, acrescentou:
"Casei-me e quero apresentar-te o meu marido. Sim, é francês".

Ele: homem polido, sobre o maneirinho, bigode de merceeiro do Midi, preocupado com o
vinco das calças. Tinham feito a viagem num Calcinhas, crivadinho de mossas e ferrugens;
ambos pareciam ainda sujos e estafados

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da jornada. Apesar de retraído, o acolhimento dele foi de quem tinha comigo coisas em
comum - "Marta fala muito de si". Convidei-os para jantar, o passado arrumara-se assim.
Entretanto, eu observava-a acauteladamente, Marta era uma caixa de surpresas. Que me
beliscou primeiro? Um certo mimetismo de gestos, lá entre eles. O andar, sobretudo - ritmado
e moroso. Isso incomodou-me.

O jantar foi retribuído, as cortesias sucederam-se. E nem eu nem Marta resistimos a "uma
última vez". Curiosamente, ambos sentimos que era nosso direito, ambos fizemos amor sem
qualquer inibição ou culpabilidade. O intruso era ele, ainda hoje o é.
Foi dela que partiu a primeira reação alertadora:

- Sabes, André, não sou mulher para dois homens.

-E talvez também eu não seja homem para duas mulheres.

- Não confundas.

- Não estou a confundir.

-born. O que eu queria dizer-te é que, da última vez que estivemos juntos, ele serviu-se de mim
na mesma noite. Não pude evitar. Foi terrível. Foi degradante.

Despedimo-nos sem mais uma palavra. A palavra veio depois, ao telefone: "Ainda se tu
gostasses de mim, André. O amor suporta tudo, dá-nos todas as legitimidades".

Nunca mais houve entre nós uma intimidade. Mas, como as relações entre eles já não tinham
ponta por onde se lhes pegasse, foi absurdamente a partir daí que o marido projetou em mim
os seus fantasmas, os seus fracassos, as suas raivas. Desconfio de que chegou a ameaçar Marta
de vir a Lisboa resolver o assunto à pistola.

E agora para aqui estou. ,:

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Dessa vez, fora a própria polícia a contactar os jornais. Havia um caso bicudo, era preciso dar-
lhe relevo. Um homem desaparecido, telefonemas misteriosos, uma gabardina deixada num
cacilheiro. O homem que a vestia (ou que, nesse dia, não chegara a vesti-la) fora visto num dos
barcos que fazem a travessia do Tejo, encostado ao gradeamento da amurada, sozinho, num
modo de quem não se sentia muito bem. Mesmo pondo em dúvida o rigor destas minúcias, a
verdade é que o homem chamara as atenções da pessoa que ocasionalmente o observara e
que, no fim da viagem, ao reparar que o enigmático passageiro deixara a gabardina esquecida
no banco, fora sobre ele para o advertir, porém sem resultado, pois sumira-se entre a massa de
gente que se dirigia para o ancoradouro. Então, a pessoa, depois de ter hesitado se deveria
incomodar-se tanto com um desconhecido desmazelado ou distraído, decidira-se a entregar a
gabardina ao mestre do barco. Por último, a gabardina fora parar aos achados e perdidos da
polícia, um agente, por mero palpite, recambiara-a para a secção de pessoas desaparecidas,
talvez porque nessa tarde lera uma pequena notícia acerca de um tal Rodrigo Abrantes.

E aí estava o tempero que faltava para entusiasmar o chefe da redação d'A Tribuna. Este
chamou o repórter:

- O teu homem anda a jogar às escondidas. Ferreirinha estava muito concentrado numa
crônica-re-

portagem sobre o conto-do-vigário de duas ciganas e pareceu não ouvi-lo. O outro insistiu:

- Sabes do que estou a falar? Do teu tipo.

- Qual é o meu tipo?

- O que desapareceu de casa. Guardaste o "boneco"? Ferreirinha suspendeu a frase que nesse
momento

escorria da esferográfica ("De posse do dinheiro e do

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ouro, e com repetidas juras de seriedade") e disse desinteressadamente:

- Por acaso, guardei.

- Dá-mo cá. vou publicá-lo hoje.

O repórter tirou a fotografia da gaveta (tinha-a pedido de urgência a Teresa quando achou que
valeria a pena retificar o esquecimento, nada se perdia em ter o material de reserva), remirou-
a com demorada atenção, estendeu-a ao chefe num gesto propositadamente relutante. Por
enquanto, não poderia abusar desse recuo do chefe quanto à importância do caso, mas, de
qualquer modo, lembrou:

-Afinal, pelos vistos, a minha caixa não era assim tão merdeira.

- Não sei se era, não bufes antes do tempo. O que sei é que vais outra vez à casa do gajo.
Pergunta coisas. Aperta a mulher. Surgiram surpresas, a polícia está interessada. Uma ideia
sombria coincidiu com o que acabara de dizer e, por isso, acrescentou: - E se o tipo tinha
atividades clandestinas?

-Políticas?

- Por que não?

O repórter ferrou-se de novo na crónica sobre as ciganas, repontou sem levantar a cabeça:

- Então, entregue o caso a outro. Não sou pide.

-Estás a ser parvo, baralhas tudo, foi uma simples hipótese. Se andar por aí política, sou o
primeiro a pôr ponto final no assunto. Ouviste-me?

Ouvira muito bem. Ele e os outros. O Alcindo não perdera pitada, a boca desfranzira-se num
sorriso piedoso. Esse sorriso transmitiu-se aos dedos do Ferreirinha, à esferográfica, às palavras
que estava a escrever, disturbando-as, assanhando-as.

- Deixe-me então acabar isto.

- Que estás a fazer? . .

- A história das ciganas.


- Fica para amanhã.

-O Ilustrado vai publicar uma reportagem, disseram-me.

- Então, acaba. Falta-te muito?

- Estou no fim.

-Encurta e passa-me. Tenho urgência no outro' trabalho. É teu, é merecido.

-Merecido? :

disse-

urgência no outro

82

O chefe preferiu não se dar por achado, virando rapidamente a atenção para o Januário, que
desde o começo do diálogo se lhe plantara junto da mesa, com as laudas prontas à leitura.
Januário era um incorruptível calaceíro, capacíssimo de moer uma tarde ou uma manhã com
três folhas manuscritas. A única maneira de o forçar a um mínimo de rendimento, que não
escandalizasse a redação, era aquela: fazê-lo ler em voz alta (era, aliás, uma bela voz de
barítono, desconforme com o seu corpanzil) o que escrevera, em letra floreada e graúda,
durante as regimentais horas de serviço.

Ferreirinha entrou no jogo, deixando que o Januário desse imediato início ao seu número, após
ter levado meia dúzia de vezes uma das mãos à garganta, como a desimpedi-la de obstáculos.
O apuro da prosa ficaria aos cuidados do chefe. Quando terminou - "aí tem chefe" -, também
Januário cumprira já o cerimonial. E cumprira-o com um sentimento de valentia exibida, a
espessa trunfa ao vento.
Pelo sim, pelo não, Ferreirinha passou os olhos em diagonal pelo que escrevera. "No lugar do
Souto (Alto Minho), a Sra. Carmo Vidreiro, moleira de profissão e, ao que rezam os vizinhos,
mulher de armas e de lume no olho, deixou-se há dias intrujar pelo estafado mas sempre eficaz
'canto da sereia' das ciganas. Ela bem se escusou, desdenhando, mas como se tratava apenas
de mostrar a palma da mão e, logo de seguida, de proceder à leitura das linhas, deixou-se ir no
engodo.

Para mais, e aí o Diabo teceu-as, a Sra. Carmo tem o marido em terras de França. Da
brincadeira passou à curiosidade, da curiosidade à dúvida, e não tardou que se tentasse por
saber coisas do comportamento do marido, há um tempão ausente. Foi o que o par de ciganas
(o chefe não ia, de certeza, gostar da prosa, parvamente aliterada) quis ouvir, logo se fazendo
videntes através dos sinais da palma da mão. (Videntes entre aspas ou assim como escrevera?)
E, depois, foi um lavar de roupa suja. Ele, o marido infiel, arranjara a desavergonhada de uma
amante, mulher batida, ávida, que lhe ia sugando todo o dinheiro. Se não se travasse aquela
loucura, o homem acabaria estafadinho e na miséria.

A Sra. Carmo sentiu um misto de indignação e alarme. Tinha de agir, e depressa. Mas como,
santo Deus? (O chefe iria irritar-se em cada frase ou palavra censurada.) As

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ciganas poderiam ajudá-la? Claro que sim, ninguém melhor do que elas. Estavam prontas, mãe
e filha, a porem-se a caminho de França, para livrar o homem das garras da perversa. Havia,
porém, o grande problema da distância, da viagem tão dispendiosa. A não ser que a Sra. Carmo
dispusesse desse dinheiro, elas aprestavam-se a todos os sacrifícios. Quanto tinha disponível?
Um cordão, um fio de ouro, dois contos em dinheiro?

bom, já era alguma coisa, embora fossem absolutamente necessários mais dois contitos, coisa
de nada para o que estava em causa, o regresso do marido a uma vida ajuizada. E, porque
assim era, a Sra. Carmo bateu à porta de todos os parentes, até conseguir a soma desejada. Por
empréstimo, visto que o seu homem voltaria a forrar para levantar cabeça, após o desvario em
que a maldita francesa o metera.

De posse do ouro e do dinheiro, e sempre jurando seriedade e desinteresse - Quem julga


vossemecê que somos? -, as ciganas partiram para a sua viagem, donde, como seria de prever,
nunca mais regressaram... (As reticências tinham-lhe parecido necessárias, não fosse algum
leitor ficar em dúvidas.)
Mulher de trabalho, honesta e entendida, como se sentirá agora a Sra. Carmo depois de tão
ingenuamente se ter deixado ludibriar? E o marido, lá longe, amassando o pão negro do suor e
da ausência (essa, não, o chefe nunca iria admitir), como reagirá ao tomar conhecimento do
conto-do-vigário?"

Rematara a prosa um tanto abruptamente, o chefe é que fora o responsável. Título? Por
exemplo: "Ciganas levaram ouro e dinheiro a uma moleira ciumenta". Se o chefe não gostasse,
que engendrasse outro.

Emigração - uma chaga crónica ou adiada? Ferreirinha não poderia prever, ao dar o ponto final
na pobre e castiça reportagem (ele era o primeiro a reconhecê-lo), que dezasseis anos depois,
num país (as pessoas diziam "este país" e fugiam de psicanalisar tal designação) com um rosto
que se assumia como inacreditavelmente metamorfoseado, onde passara a ser proibido
proibir, país dos muros e das estradas com poéticas ou embravecidas exortações a um futuro
inventado, um novo jornal ("este" país seria também o país dos jornais, da palavra solta, febril,
às vezes errante e perdida), chamado Alvorada, publicaria no seu número 660, de agosto de
1981, uma reportagem sobre o

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mesmo tema. O país reclamava-se "novo", ou em vias de o ser, "novo" era uma palavra em
chamas, ora aflita, ora irada, mas as agruras e as aspirações, por debaixo dessa hipnose verbal
(de sonho ou desespero?), permaneciam substancialmente os mesmos dos anos "antigos" -
esses anos do Ferreirinha escrevendo crónicas pitorescas n'A Tribuna, onde, quando os
censores estavam distraídos, conseguia uma vez por outra camuflar, nas entrelinhas,
insinuações irreverentes ou protestatárias.

Na primeira página desse jornal lia-se - com mais rigor: quem haveria de o ler seria André
Bernardes, a passar férias na praia do Furadouro. Lera-o na esplanada de um café, à hora ritual,
sobre as falésias esgadanhadas pelo vento leste. Lera-o atento, quase cobiçoso. Já então ele
publicara um painel sobre a emigração, intitulado Amanhã a fronteira, que fora um discutido (e
discutível?) êxito e porventura o seu último romance com verdade e vigor.

Na primeira página do jornal, André Bernardes leu: "Imigrantes todo o ano, emigrantes só um
mês - Trazem divisas, levam saudades. Lá são imigrantes, cá são emigrantes. Chegam, em
grande número, todos os dias, a Campanhã e Santa Apolônia. À chegada recebem abraços. Na
viagem receberam maus-tratos. Apesar das anunciadas melhorias do transporte, os comboios
são um inferno (de súbito, a carta de Marta, escrita no comboio Lisboa-Paris, tinham passado
dezasseis anos - que era o tempo? Que eram as pessoas dentro dele?), a duana espanhola
continua a ser a porta de Satanás para estes nossos compatriotas".

Era a chamada para as páginas interiores, concretamente para a página 9, todo o espaço
dedicado à reportagem, no canto superior esquerdo um homem vestido com uma ampla
samarra de couro, uma mala em cada mão, mais duas fotografias tiradas na gare, os bagageiros
sem clientela, o bulício da chegada, uma última fotografia apanhando as crianças a olhar da
janela do comboio "a novidade que é a paisagem de Portugal". E depois o recheio, André
Bernardes foi lendo com uma atenção incómoda, quase fria, aquela era a sua coutada. Após o
seu Amanhã a fronteira custava-lhe aceitar que outros mordessem o mesmo filão.

O recheio: "Manuéis, Marias, Franciscos e Miquelinas regressam à terra de origem pelo tempo
do calor, trazendo consigo as malas do atavio, os cestos da vitualha, as divisas para o
orçamento, saudades adiadas de um ano inteiro (se

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fosse o Castel-Branco ter-se-ia interrogado: Onde é que eu já li isto?), projetos para um futuro.

Abandonam o trabalho na usina, nos batimentos, na ménage e regressam a casa, onde só


chegam trinta e mais horas depois. São emigrantes. Para cavar o pão, o destino pôs-lhes nas
mãos uma enxada com um cabo de milhares de quilómetros.

Na duana, os rostos transfiguram-se. Poderá parecer exagero, mas a vida tem coisas
exageradas - o leitor que experimente ir ver se o que afirmam é real: Vilar Formoso provoca-
lhes a reação de segurança de quem acaba de transpor os umbrais da sua porta. De fato, a sua
casa, lugar em que vestem e despem os projetos mais íntimos, começa aqui. Aqui ou em
qualquer outro dos locais onde um imigrante passa a ser um emigrante. É este sentimento tão
simples quanto legítimo, e o apelo da consanguinidade, que os leva a repetir todos os anos
uma viagem em que se inclui a travessia dos infernos nas planícies castelhanas, em comboios
sem água, sem luz, sem espaço, sem limpeza, e a passagem do estreito de Satanás
alfandegário, subestimados, olhados com desconfiança, como se, de fato, não fossem
merecedores do céu, após tão duro transe.

com as palavras deles, este trabalho da nossa delegação no Porto conta como é".
Seguiam-se algumas transcrições de diálogos com os recém-chegados. Uma amostragem das
respostas - as perguntas estão implícitas: "Quando nasci, já o meu pai lá trabalhava. Quando
tinha oito anos, a minha mãe morreu e fiquei praticamente só. A partir daí, fui criado pelas
senhoras onde a minha mãe fazia limpeza. Tratavam-me bem, sim senhor, mas sabe como é:
um pai é sempre um pai". "Sucede sempre o mesmo. Corre tudo muito bem até entrarmos em
Espanha. Aí é que começam os problemas. São comboios velhos, que prolongam a viagem por
muito tempo. É sempre assim." "Olhe, senhor, dou umas horitas e com esse dinheiro you
ganhando para sustentar a casa. Aquilo que o meu marido ganha é para pôr de lado." "Primeiro
que nos despachem é um problema. Olham para nós como que desconfiados e não entendem
que o que queremos é chegar depressa junto dos nossos." "Levam-nos couro e cabelo, tratam-
nos mal e ainda por cima esmifram o dinheiro da bagagem." "Só visto. Para atravessar aquelas
(como é que se diz mesmo?), aquelas planícies, é um inferno."

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Nada mal, interessou-me deveras - teria de concluir André Bernardes. No mesmo jornal
(dezasseis anos depois), podia ler-se (além das coisas & loisas da política cenográfica, mundana
e medíocre) que Jorge Amado, o mago da Bahia, inauguraria uma exposição em Viana do
Castelo, documentando uma recente "Semana do Estoril Portugal em Salvador", que as
estações de São Bento e Campanhã se transformavam em esterqueiras, que os incendiários
(quais, ao serviço de quem?) prosseguiam a sua devastação de matas e florestas, lôbregos
fantasmas calcinados, e, enfim, que "apesar de as remessas dos emigrantes se situarem numa
média mensal superior a doze milhões de contos, o saldo negativo da balança de pagamentos,
no primeiro trimestre de 1981, foi superior a trinta e três milhões de contos".

-Aí tem, chefe - repetiu o Ferreirinha, munindo-se do bloco-notas mais alentado. -Voltarei logo
que possa.

O chefe assentiu distraidamente, estava a pensar no título da reportagem das ciganas (era
mesmo o género para o leitor médio, o estilo de drama revisteiro), que talvez lucrasse em ser
mudado para "Buena dicha".

Ferreirinha, já de pastilha elástica num começo de ruminação, passou rente à mesa do Alcindo,
que, por sua vez, asseava o nariz com uma unha mais destra, roçou por ele ignorando-o. Ia
desforrar-se. Tinha de desforrar-se. Agora que lhe tinham dado carta branca, não haveria
sacana nenhum que, naquele caso, lhe passasse a perna. Há quantos anos esperava uma
oportunidade. Distribuíam-lhe um trabalho, ele sondava-lhe as implicações, punha a
imaginação a ferver, e de tudo isso resultava um rolo de papéis no lixo. O que se aproveitava
eram as tais nove linhas, paginadas onde fosse preciso preencher um buraco. No máximo, uma
reportagem sobre o conto do vigário, sobre um recém-nascido encontrado num barranco,
sobre a atividade dos marginais durante a madrugada. Aquele caso, se nenhum videirinho se
lhe pusesse à frente, tinha os suficientes condimentos para um brilharete. Um halo de enigma,
uma vida vulgar que, de uma hora para a outra, surge perante as pessoas carregada de
equívocos e labirintos - caberia a ele escavar o fundo dessa aparente ou suspeitada
duplicidade. Fazer dele "uma personagem", como costumava dizer o André Bernardes.

87

O Bernardas, aliás, quanto a isso, poderia ser-lhe útil. Era um tipo experiente, de conselho
fogoso (fogoso, não: caloroso), mas avisado. Havia nele uma dorida sedimentação das
vivências, uma magoada vulnerabilidade - as coisas feriam-no, cicatrizavam, mas a cicatriz
parecia a todo o passo avivada. Um tipo que, mais "que dar, se dava. Por isso se expunha com
uma reincidência que dir-se-ia desesperada - risco de que os outros sabiam alertada e
ardilosamente acautelar-se. Ferreirinha tinha um fraco por ele, aceitando-lhe (ou respeitando-
lhe) as contradições. Gostava dele não apenas por senti-lo genuíno, mas talvez, sobretudo,
porque o sabia alvo de despeites e vilanias. Não era segredo para ninguém (salvo para ele,
Bernardes) que, meses atrás, quando do aparecimento de Brandas colinas, uns tantos se
haviam conjurado na casa de praia do Castel-Branco, sob o pretexto de uma sardinhada, mas
tacitamente no propósito de recrutar voluntários para a maquinação que, em fogo cruzado e
com munições de vário calibre, deveria desacreditar o livro em tribunas especializadas. A cada
um, seu papel. O principal caberia ao Diogo Reynaldo (com ípsilon) que, cenograficamente
barbudo e vanguardista, tinha por si a legitimidade na contestação, a céu aberto, aos
prosadores tradicionalistas, de que André Bernardes, da árvore dos camilianos, era tido, por
alguns, como o cabeça de fila a abater. O seu êxito junto dos leitores era uma impudicícia, uma
afronta

- ele próprio costumava apoiar-se melancolicamente na frase de Picasso de que o êxito era a
punição que os deuses reservavam para os artistas. A primeira diligência fora, naturalmente,
tomar o pulso ao livro, saber-lhe das mazelas antes que se esboçasse um juízo público.
CastelBranco tinha sequazes na editora, onde um dos revisores, metro e meio de rotunda
fraldiqueirice, pôde passar-lhe o trunfo por debaixo da mesa. Jantaram - a finalidade justificava
a despesa. ,,

- Então, meu caro, já leu? -Já, que remédio.

- E que tal, que tal?

O revisor tapou meia boca com a mãozinha gorducha, para velar a inconfidência e torná-la
mais suculenta:
- Um desastre.

Uma semana bastou para que as tertúlias se conciliassem num diagnóstico inquestionável,
mesmo sem conhecerem o enfermo - um desastre.

88

Dias antes, de resto, tinha havido uma dessas periódicas erupções da rivalidade entre André
Bernardes e Mário Castel-Branco. O pretexto, às vezes, era um nada. Desciam a avenida,
alguém sugerira que jantassem ali numa transversal logo abaixo, numa tasca de petiscos
descoberta por um operador de cinema. Castel-Branco escolhera prontamente arroz de polvo,
Bernardes confirmara com a mesma prontidão: "Sigo-te o exemplo". Então o outro, polegar na
cava do colete, empinara a cabeça para desferir uma seta ínvia: "Pois é. Copias-me em tudo".
André Bernardes hesitara na reação, como a digerir os últimos meandros da frase, por fim
calara-se, meditabundo. Entretanto, uma moça da trupe segredara a Ferreirinha: "Aquilo foi a
sério?", obtendo como resposta um gesto discreto e evasivo. Mais tarde, o cineasta basofiara
as suas últimas aventuras amorosas, e Castel-Branco, aproveitando a veia, ironizara:

- Um perfeito guerrilheiro.

Nessa altura, de rompante, o Bernardes desfechou:

- Tanto como tu és um ex-combatente.

-Quê? - soletrara Castel-Branco, preparando nova estocada.

-Chamei-te ex-combatente. Mas, se preferes, poderemos assentar em considerar-te o túmulo


do soldado desconhecido.

Ninguém reagira, aguardando a sequência. A expectativa, porém, frustrou-se. Nesses duelos à


vista da plateia, as coisas habitualmente ficavam por aí - insinuações envenenadas, remoques a
puxar pela claque, protelado o enfrentamento decisivo, que, da parte do Castel-Branco, se
sabia antecipadamente subterrâneo e pérfido. Que se mordessem, que se liquidassem -
alguém, tranquilamente, varreria o lixo na hora apropriada.
bom, o Ferreirinha iria mesmo prevenir o Bernardes da sua nova visita à casa do homem
desaparecido. Preferiu telefonar-lhe de uma cabina pública, não fosse algum alcoviteiro áA
Tribuna apanhar um fio da conversa. Bernardes agradeceu-lhe a ideia, claro que estava
interessado. Não seria difícil engendrar uma justificação para aparecerem juntos, só lhe pedia
que aguardasse meia hora.

Teresa recebeu o repórter com apatia, nem parecendo desagradada de o ver escoltado por um
desconhecido. Apenas comentou:

- O senhor outra vez.

89

-Desculpe, não a incomodarei por muito tempo. Os olhares de ambos convergiram em André
Bernardes, um tanto desajeitadamente Ferreirinha desculpou-se: Trouxe comigo um
companheiro de trabalho.

Ela anuiu com a cabeça, fê-los entrar para a sala, na boca uma crispação de fadiga ou de
irritabilidade sofreada. O jornalista, inibido com a presença do Bernardes (deveria ter previsto
isso mesmo), repetiu as perguntas da primeira visita, sentindo um constrangedor vazio, cada
vez mais alargado, entre cada frase e a seguinte. No entanto, era nítido que Teresa não se
esquivaria a um interrogatório mais particularizado. Ferreirinha, de súbito, pôs-se túrgido,
dentro dele um assanhamento contra si próprio. Estava, de fato, repeso de ter trazido o amigo,
mas a contrariedade, se a sentia assim tardia, deveria explorá-la como acicate. Teresa viu-lhe a
perna direita muito agitada, o bico do sapato a tocar ritmadamente na mesinha rasteira, ali
entre os dois sofás. E, quando a perna se aquietou, vieram aquelas perguntas ambíguas e
devassadoras, porém feitas de um modo irritantemente acusatório e pueril. Quais os hábitos
de Rodrigo, se ele saía com frequência à noite, se se ausentava sozinho para fora da cidade,
que género de companhias preferia, se participava em reuniões.

- Que reuniões?

Ferreirinha cerrou os lábios com força, a encorajar-se, entre ele e Bernardes um mútuo
incitamento de consonâncias.
-Não sei bem, encontros com pessoas que a senhora não conheça, ou com pessoas de ideias
políticas muito marcadas.

Teresa passou os dedos de uma mão pelo dorso da outra, como se a massageasse. Mas não
tardou na resposta:

-Ele fazia uma vida às claras, se é isso que quer saber.

-E mulheres? - o sapato tocou mais impacientemente no tampo da mesinha.

- O senhor está a perguntar se ele me era infiel?

A serenidade de Teresa, temperada de uma subjacente ironia, era-lhe incómoda, esvaziava-o


dos ímpetos e das manhas com que viera ali. Mais do que isso: dava-lhe um sentimento de
vexame. No entanto, aquela mulher, ao mesmo tempo que se lhe impunha, enternecia-o, não
podia deixar de admirá-la, embora lhe fosse difícil esmiuçar o porquê dessa admiração. Estava
certo de que o mesmo

90

estaria a suceder com André Bernardes, havia nele uma expressão de afetuosidade quase
extasiada.

-Bem vê, o meu papel aqui não é simpático, mas todo o nosso intento é ajudar. Preciso de
dados mais circunstanciados, como dizer?, de elementos persuasivos da personalidade do seu
marido. O meu jornal vai publicar uma boa notícia.

- E que me interessa essa notícia?

-Se interessa! Cada leitor participará nas buscas, é a reação do costume, o seu marido acabará
por ser descoberto. É esse o poder da imprensa, despertar a solidariedade. Depende da
maneira como a notícia for redigida, do seu destaque, etc. bom, isso porém já será comigo.
Estaria Teresa a ouvi-lo? Naquela estranha mulher acentuava-se, de instante para instante, o
halo de ausências do seu sisudo rosto emotivo, salvo quando se punha a observar André
Bernardes, numa mirada tangencial mas penetrante. Decerto que a intrigava o silêncio do
espectador atento. Ela era esquisita. Como, aliás, a filha - estaria a garota em casa? E, pelos
vistos, o marido não lhes ficava atrás. A não ser que. Teria de espremê-la com mais afoiteza.

Teresa, com efeito, deixara de estar ali, defronte do repórter sôfrego e inábil. Pela primeira vez
lhe acudira a ideia de que, se Rodrigo estivesse vivo (estava, não podia duvidar), se desgostaria
do arruído voraz em torno do seu desaparecimento. E por que desaparecera ele? Diz-me,
Rodrigo, diz-me por quê. Não suporto mais esta expectativa, esta çbscuridade. Ou será que a
razão a conheço desde o princípio?

- Não lhes ofereci café, desculpem.

O repórter sacudiu as mãos, como a arredar tal preocupação da parte dela. Mas André
Bernardes teve reação oposta. Numa anuência inesperada, retificou:

- Eu aceito.

- Está bem. Não se importa que seja do instantâneo?

- Para mim, é igual.

Enquanto Teresa foi à cozinha buscar as chávenas, Ferreirinha tentou sondar, em Bernardes,
um apoio ou uma crítica, mas viu-o cismático, lábio roído, a preparar-se para o cerimonial do
cachimbo. Teresa, quando ia a servir o escritor, comentou de improviso, sem o encarar, numa
voz que mudara de timbre:

II

91

- O senhor ainda não me perguntou nada.


- Pois não. Não quis interromper o meu colega.

Ela, então, levantou a cabeça desafiadoramente, o traço das sobrancelhas num jogo mímico
que lhe invertia o desenho habitual.

- Diga-me uma coisa. O senhor não é o...

André Bernardes estava afeito a essa situação, e nas circunstâncias menos previsíveis. Antes
que ela terminasse a frase, acenou afirmativamente com a cabeça, entre agradado e
desagradado, um tanto como quem aceita uma fatalidade.

-Cá me parecia. Desde que o vi entrar, suspeitei. Ainda na semana passada vi uma fotografia
sua no Ilustrado.

-Mas olhe que este meu amigo não mentiu. Para todos os efeitos, sou mesmo um camarada de
trabalho.

- Não precisa de se desculpar.

- Não estou a desculpar-me.

-Ainda bem. Não sou de desculpas. Nem de pedi-las nem de dá-las. - Fez uma pausa, apoiando
o queixo na mão fechada, toda ela numa postura de quem se prepara para escutar ou para ser
escutada. - Li o seu último livro, Brandas colinas.

Bernardes corrigiu:

- Esse não é o último.


- Não? Então qual foi o último?

- O dia em que Lisa não veio.

- Lisa? Como é que um título desses me escapou?

- Que quer dizer com isso?

- É um bonito nome, Lisa. Gosto de nomes bonitos.

- Gosta do seu?

-Nem por isso. Como é que escolhe os nomes para as suas personagens?

Ferreirinha teve uma tossícula de mal-estar. Não entendia aquela brusca viragem na atmosfera
em que os três havia m estado envolvidos até aí. Não entendia que aquela mulher, tão sóbria
mas verazmente abalada pelo desaparecimento do marido, pudesse, quase sem transição,
interessar-se por outro assunto. Quanto ao Bernardes, não resistira à lisonjeira oportunidade
de se ver centro de atenções. Era isso. Todos idênticos. Entre ele e o Castel-Branco talvez
houvesse apenas um matiz diverso nos moldes temperamentais. Porém, as guias, as fraquezas,
as susceptibilidades não diferiam. Teria de interrompê-los,

92

não podia desperdiçar tempo. Afinal, a iniciativa de reatar o diálogo partiu de Teresa, ela,
decerto, percebera-lhe a estranheza.

- O senhor já se informou junto da polícia?

-you daqui entrevistá-los também. Preciso de estar no jornal dentro de uma hora. - Fez um
esgar quando passou os olhos pelo relógio. - Oh, que atrasado.
- Então isso é uma entrevista?

Alto aí, a mulher ia pôr-se na defensiva.

-Não propriamente. Apenas uma troca de impressões. Como já lhe disse, ninguém melhor do
que a senhora poderá sugerir-nos a hipótese mais verossímil para o desaparecimento do seu
marido. E num tom de quem confidencia uma mercê: - Vamos publicar-lhe esta tarde a
fotografia.

Teresa, como se não o tivesse ouvido ou fosse retomar uma meada interrompida, disse numa
voz neutra:

-Parece que encontraram a gabardina num barco. Num cacilheiro. A polícia decerto que vai
falar-lhe disso.

- Como? Gabardina dele'

-A polícia lhe explicará. - E, com frieza, voltou-se para André Bernardes: - Estou muito confusa.
Precisava que alguém me orientasse.

Bernardes não esperava que ela se lhe dirigisse tão ostensivamente, como a dar por findo o
questionário do Ferreirinha, e foi nítido o seu embaraço.

-Este meu amigo...

-Ou camarada de trabalho, segundo lhe ouvi há pouco.

- Creia que este meu amigo pôs um grande empenho na cooperação do jornal onde trabalha.

-Acredito.
Um comentário dúbio. O olhar inseguro de André Bernardes vadiou pela sala perpassando de
um móvel ou de um objeto para outro, enquanto escondia a boca na cova da mão direita, aí
acumulando um resfolegar ansiado. Ferreirinha conhecia aquele prelúdio - Bernardes ia atacar.
Brigava com a sua timidez. De novo o relógio. Não poderia demorar-se mais.

- bom, temos mesmo de ir.

-Só um minuto, Ferreira. - E enfrentando impulsivamente a dona da casa: - Já que há pedaço


estranhou o meu silêncio, poderei fazer-lhe agora umas perguntas?

93

Ela sorriu entediada, olhos baixos, os dedos a desenredarem-se. Tinha os braços longos, em
certos gestos mais balanceados pareciam que lhe cresciam do corpo.

- Faça.

- Como conheceu o seu marido?

-Num desses barcos das carreiras para a Outra Banda.

André Bernardes surpreendeu-se-,

-Mas a senhora, a propósito da gabardina, também se referiu a um desses barcos.

- Pois referi.

- Uma coincidência?
Teresa ficou meditativa, o pensamento distanciado. Havia nela como que uma nostalgia secreta
e martirizada. Depois repetiu:

-Foi num desses barcos que nos conhecemos. Por acaso. Era um fim de dia. Eu estagiava para
assistente social. Mandaram-me fazer um inquérito junto dos pescadores, para os lados da
Fonte da Telha.

- Como se deu o encontro?

-Já lhe disse. Ia no barco uma criança a brincar com um balão, o balão escapou-se-lhe, ele
ajudou-a a apanhá-lo. Melhor: ajudamo-la ambos. E então Rodrigo disse-me: "Hoje,
entardeceu de repente". Estremeci, não sei que se passou em mim. Gostei muito da sua voz.
Macia, viril e também caridosa. Foi como se essa voz me tivesse repassado.

-Ainda gosta? " ;

- De quê? Da voz? Ferreirinha atalhou:

- Eu não queria interromper, mas a verdade é que no jornal esperam-me. - Ia a tirar do


bolso a caixa das pastilhas, emendou o gesto. - Desculpe, só mais uma coisa, depois deixo-
a. Se o meu amigo André Bernardes tiver outras perguntas a fazer e se a senhora...

- Se não for demasiado incómodo, eu tomaria de fato a liberdade de ficar um pouco mais.

Ela assentiu com malcontido alvoroço.

- Não incomoda.

Ferreirinha, possivelmente amuado, as pernas sem parança, enfiou a sua questão:

-Ainda é a propósito da gabardina. Estava rasgada? Haveria nela sinais de violência?


94

- De violência? - e o olhar pôs-se acuado. - Não lhe sei dizer.

- Só mais isto: a senhora já deu outras entrevistas?

- Então a nossa conversa sempre foi uma entrevista.

- Foi um modo de dizer. Já deu?

- Não, ninguém me tinha procurado antes.

-Se assim é, e se a senhora for solicitada por outros dos meus colegas, agradecia que
reservasse alguns pormenores. Desculpe, não terei talvez esse direito, mas... Espero que me
compreenda.

Teresa fez um gesto de vaga concordância, levantou-se da cadeira - despedia-o. Não valia a
pena perguntar-lhe se a exclusividade de um depoimento beneficiaria Rodrigo e se esse
pormenor caberia no tal afirmado empenho em ser-lhe útil.

A interrupção quebrara a iniciativa de André Bernardes, que mudou de postura várias vezes.

- De verdade que não estou a importuná-la?

- Não está. Se estivesse, dizia-lho.

Bernardes sabia que ela era sincera. Perturbava-o a naturalidade daquela mulher - uma
naturalidade grave e ritualizada. Um misto de desprendimento e aplicação. Observara-a
durante o ir e vir da cozinha, na maneira de preparar o café, de o distribuir pelas chávenas.
Tudo na medida certa, embora em cada gesto e em cada palavra, mesmo quando
aparentemente alheados, houvesse como que um investimento do seu ser inteiro. Cada coisa,
enfim, era importante no exato momento em que sucedia ou em que apelava a sua
intervenção. André Bernardes pensou que poderia amar uma mulher assim, um amor feito de
inesgotáveis pequenos-nadas. Que haveria nela de oposto ou de afim com Marta, a Marta dos
fascinantes destemperos? Seria Marta a mulher para uma aventura, ainda que plena e
profunda, e Teresa a mulher para uma vida? Como seriam as suas relações com o marido? Que
haveria por detrás do seu amargor assumido e, por assim dizer, racionalizado?

- Na manhã em que o seu marido saiu de casa para o emprego deu-se algum fato especial?

- Foi tudo como de costume.

- Desculpe: entendiam-se bem?

-Depende da ideia que cada um de nós possa fazer desse entendimento. De qualquer modo,
responderei pela afirmativa. Temos um viver normal.

95

- Dialogavam muito, eram expansivos?

Ela hesitou - de novo as suas mãos à procura uma da outra.

-Dantes, sim. Trocávamos impressões sobre quase tudo e nunca escondíamos o que sentíamos,
mesmo se desagradável. Era, entre nós, uma espécie de pacto, ainda que nunca o tivéssemos
definido como tal. Depois esse hábito foi-se gastando, ou talvez alguns passageiros
ressentimentos nos tivessem feito mais acautelados nas palavras. É difícil de explicar. Sabe o
senhor? Quando me ponho a olhar para trás, do que tenho mais saudades é do tempo em que
não tínhamos medo das palavras. Eu até lho dizia: "Rodrigo, tenho tanta necessidade de que
fales comigo, de te ouvir. É do que mais preciso".

- Ama-o?

-Por que mo pergunta? E, já agora, para que esta conversa?


- Aborrece-a?

-De modo nenhum. De contrário, ter-me-ia escusado. E também, para confessar tudo, não exijo
que nas suas curiosidades haja uma finalidade. Faz-me bem ter um interlocutor que possa
compreender certas coisas. Até me sinto um pouco privilegiada, ou antes, compensada de
todos esses contactos a que as circunstâncias me obrigam.

- Ama-o?

-Amo. Há dias ou horas em que me sinto cansada, desiludida, meio morta e com a vida a
passar ao lado, em que sinto por ele hostilidade, animosidade até, mas sei que o amor é isso, o
que fica depois dos antagonismos, desse jogo de contrastes, atrações, repulsas.

- É muito consciente do que se passa consigo. -Minha filha diz que eu racionalizo os
sentimentos.

Mas acho que não. Acho mesmo que a emoção vai sempre à frente e que perdura. Estou agora
a recordar outra frase da minha filha, foi ainda ontem. Ela viu-me absorta e comentou,
perguntando: "Em que estavas a pensar?" Respondi-lhe: "Em nada. Estava adormecida". Isto
talvez não lhe diga muito, mas corresponde a um estado de espírito em mim frequente.

- Gostaria que me falasse da sua filha. -Aque nos conduz este questionário?

-Não é um questionário. E, se o fosse, a senhora já disse que lhe dispensava a finalidade.

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- Mas, afinal, sempre haverá uma finalidade da sua parte?


-Nem eu o sei, pelo menos por enquanto. Um escritor tem por sina observar, perguntar, digerir.
Acaba por ser um vício e um fadário. Às vezes uma degenerescência. Que tem, aliás, um alto
preço. Creio que é terrível viver em função de. É o que, na maioria dos casos, sucede com o
escritor.

-Já o calculava. E eu bem desejaria ajudar a pagar esse preço.

André sondou-a com espanto, logo retificado por um tom neutro na voz:

- íamos a falar de sua filha. Está em casa? -Insisti para que fosse hoje às aulas. Vejo-a muito
tensa, achei que lhe faria bem sair deste ambiente.

- Ela sentiu muito o desaparecimento do pai? -Muito. ;:||

- com quem é parecida?

-Tem de nós ambos, dizem. - De súbito, Teresa assestou os olhos no tapete, alheando-se num
intenso caldear de pensamentos. Quando o encarou de novo, foi naquele seu modo resoluto e
incisivo. - Descobri-lhe um diário. Foi um choque para mim, confesso.

-Mas é normal, um diário. Todas as adolescentes passam por essa fase. Normal e salubre.

-O que me chocou foi o que lá se revela e sobretudo a surpresa que tive e não deveria ter tido.
O que eu estranho é o que está em mim e não nela.

- Haverá motivo para essa sua reação?

Teresa semicerrou os olhos, numa mirada de falsa míope. A André Bernardes quase lhe
pareceu que as veias, naquela testa tão vibrátil e expressiva, tinham mudado de lugar.
Apetecia, com um dedo caricioso, ir guiá-las, sossegá-las. Depois ela falou num ritmo de
enxurrada:
-Oiça: quer lê-lo, ler alguns trechos? Copiei-os. E até nisso me sinto mal. Foi uma má ação.

-A senhora tem tendência para se acusar, para se punir.

-Está enganado. Até sou das pessoas que conseguem pôr de lado os problemas quando nada
se pode contra eles. Evito sofrer. Não gosto de sofrer.

- Não parece.

-Mas é. Ou melhor: eu era assim. Ultimamente, talvez me tenha modificado um bocado.

97

- Por influência do seu marido?

-Da vida em geral, sei lá. Dele também, admito que sim.

-Como é o seu marido? Refiro-me a temperamento, interesses.

-Um homem normal. Sensível, insatisfeito e também sonhador. Nele, o agir, às vezes, basta-se
com a intenção. Precisa das pessoas, creio que se sente muito dependente de mirn. No
entanto, não é raro que se mostre brusco, duro. Em certos momentos, sinto-o um vulcão que
vai rebentar, mas logo se fecha, como a filha. Há dias em que parece exuberante, capaz de
escalar himalaias, outros em que dará a ideia de alguém que chegou a um beco Sém saída e
sem Interesses? Aprecia muito as artes. Pinta, modela, quase recatadamente. Receio que haja
nele algumas frustrações por não ter sido o que desejaria Ser.

- Falou em dependência. Que espécie de dependência?

-Não será exatamente dependência. vou dar-lhe um exemplo e logo perceberá. Em certas
fases, se eu não lhe sorrir ou não o olhar quando precisa que o faça, o dia fica-lhe estragado.
Sofre com isso. Eu sei que é assim. Talvez lhe pareça ridículo o exemplo, mas a culpa será
minha, que não me soube exprimir.

-Soube, sim. E a senhora como se sente, apesar de se saber amada, apesar de...

Bernardes viu-a repetir o jeito de dobrar o tronco, de deslassar as mãos, como se as


espreguiçasse, de atentar no recorte das unhas com uma minúcia despropositada.

-Olhe: às vezes comparo-me a uma peça de louça a que se partiu uma asa. Estou a pensar
numa chávena, por exemplo. Cola-se a asa, a peça fica inteira. Parte-se depois a outra asa, ou o
rebordo, e de novo se restabelece a sua forma, colando os pedaços. Mas repare: a peça é e já
não é a mesma, ainda que dela se sirvam como dantes.-É um pouco como eu me sinto. Talvez
sem razão.

-Surpreendeu-me que tenha dito "que dela se sirvam". Acha que os outros se servem de si? E,
se assim é, por que consente?

-Voltei a exprimir-me mal. Tenho necessidade de dádiva. Seria capaz de me realizar sabendo
que a minha presença, o meu apoio teriam contribuído para a realização de alguém.

98 . - •)

- Está a pensar no seu marido. A -Estou a pensar nele, claro, e também numa filha,

num irmão ou até numa outra pessoa que me fosse menos próxima. Mas essa dádiva inibe-se
quando me pedem tudo, quando, em cada instante, me fazem sentir que eu existo para que os
outros se achem bem. É complicado de explicar. Querem demasiado de mim, embora isso nem
me desagrade muito. Uma espécie de charada, não é? A minha filha, há tempos, disse-me:
"Pareces um céu liso, mãe, mas lá por dentro só te vejo tempestades".

- O seu marido é possessivo? - •-


-Possessivo será uma palavra pesada. O que ele

gostaria era de estar sempre dentro dos meus pensamentos, ter a certeza de que não há em
mim zonas privadas. Não é bem posse, mas tenho dificuldade em dizer o que é.

- Pôs-se refletida, à procura de vocábulos apropriados. Às vezes, vê-me pensativa, meio


ausente, e logo me passa as mãos pelos olhos, apreensivo ou mesmo angustiado. Sei que é um
gesto banal, mas, nele, não. É como se quisesse interromper uma fuga começada ou recuperar-
ne toda para o mundo que é o dele e a que tenho de pertencer, sob pena de o expor a um
sentimento de precariedade, que ele não suportaria. Foi tendo isso em conta que abandonei a
minha profissão de assistente social.

- Ele é ciumento?

-No sentido vulgar do termo, não; no sentido profundo, é.

- Inseguro, portanto.

-Desigual, mais do que inseguro, e ao mesmo tempo arrojado.

-Desculpe, tenho de insistir no seu qualificativo de possessivo.

-Essa insistência não adianta, discordo da sua ideia. Possessiva é talvez a mãe dele. Possessiva,
domesticadora. Ela apodera-se de tudo à sua volta, não deixa às pessoas um mínimo de
iniciativa. E se as pessoas se defendem, esquivando-se, ousando disporem de si próprias,
sente-se traída, infeliz. "Ingratidão" é uma palavra que usa muito.

- Isso não pode deixar de ter marcado o seu marido. -Marcou. No entanto, como se trata de um
cenário

bem conhecido dele e pelo qual acabou por sentir uma espécie de horror, reage ou tenta reagir
de modo diferente.

- São vivos, os pais dele? ,,?


99

- São. Vivem numa quinta, muito isolados. Foi ela que o isolou.

- Quem é o isolado?

- O pai de Rodrigo, um homem de quem se gosta. Afável, retraído, sofrido. Dá-me a sensação
de que morreu em vida e, por isso, tudo o que sucede só lhe pode ser indiferente.

- Por que esse isolamento?

-Ela quere-o para si, é o seu objeto. Meu Deus, como tudo é tão esquisito.

- Eles sabem já do desaparecimento do filho?

-Estou certa de que não. Não lhes chegam notícias. Quando os vamos visitar é que lhes levo
uma cestada de jornais.

- Acha que eu poderia conhecê-los, passar por lá? -Não vejo dificuldades. Basta que
arranje um pretexto. Dar-lhe-ei o endereço, se desejar. Mas interessa-lhe?

- É apenas uma hipótese.

- Que vai fazer do que ouviu de mim?

-Talvez nada, talvez muito: Depende do que me consentir que eu faça. De qualquer modo, será
para mim um exercício excitante, depois do que lhe ouvi, pôr-me a imaginar os passos do seu
marido.
- Seremos as suas cobaias.

-Se quiser pensar assim, não me atrevo a desmentila. Um escritor, em muitos aspectos,
parasita-se e parasita a vida dos outros. Vive de empréstimo. E põe nas palavras o que deveria
pôr na vida.

- Como prepara os seus livros?

-Já lhe disse: observando, ouvindo, vivendo. E depois inventando, que representa a
cristalização.

- Está a escrever algum?

André Bernardes contraiu os músculos da face, o seu

olhar fugiu. Depois a maçã de Adão subiu e desceu várias

vezes, como se deglutisse uma dor ou um embaraço.

- Tento. Há fases em que nos sentimos saturados,

nauseados das palavras, nauseados de tudo o que fizemos e

sobretudo daquilo em que, inevitavelmente, nos fomos

repetindo, e há outras em que nos sentimos um deserto,

por mais que se rape a areia nem um fiozinho de água se

consegue achar para a nossa sede. Há um provérbio chinês

que diz assim: "As flores murcham e não há nada a fazer".

Tenho-o sempre presente.

-Lendo-o, não parece.


-E há ainda outras frases em que dizemos a nós próprios: pára, nada vale a pena. Ou tem um
preço tal que, pagá-lo, representa uma imolação cruel, uma mutilação masoquista. Mas acaba-
se sempre por reincidir, por pagar o preço. Em suma: escrever é uma impiedosa exigência
íntima, que degenera em fatalidade. Desculpe este discurso pomposo, até parece que recitei
para uma plateia. De resto, ainda há pouco falamos nisso.

-Estou espantada. Não acredito em nada do que disse. E já pensou nos outros, nos que o lêem?
Já pensou quanto é necessário aos outros?

- Necessidade em que sentido?

-Já pensou que milhares de pessoas se sentem esclarecidas, confortadas, apoiadas nos seus
livros?

-Mesmo que assim fosse, ou mesmo que isso suceda com alguns escritores ou em meia dúzia
de casos, cada um de nós é ou deverá ser a pessoa mais importante do mundo. Temos o dever
de não nos esquecermos que existimos.; Osoutros, não. nos fazem felizes se nós não
quisermosou tomarmos em conta essa felicidade.

- Sente=se infeliz?

O meu caso, nesta conversa, não interessa. - André Bernardes replicara de uma maneira seca,
inesperadamente agressiva. - Não leve a mal que eu mude de rumo: em que circunstâncias viu
o seu marido pela última vez?

-Está a desapontar-me. Mas já que prefere, voltemos, pois, ao inquérito.

- Não é inquérito, bem sabe.


-É. Vi o meu marido atravessar a avenida, depois a colocar-se na bicha do autocarro. Eu estava
à janela, fiz-lhe um aceno, o tempo tinha esfriado. Entretanto, chegou o autocarro. Como todos
os dias.

- Seguidamente, que supõe ter acontecido?

- Não suponho nada, espero.

- Vejo-me tentado à mesma curiosidade do meu amigo Ferreira, o repórter, quando insinuou
possíveis atividades clandestinas do seu marido. Seja-me franca: ele era militante? Escusado
será acentuar que o que me disser a esse respeito é sagrado.

- Militante?

- Militante político.

-Francamente, não sei. Mas creio que, se soubesse, não lho diria.

101

-Houve algum fato, na vida dele, que, para si, tenha ficado por esclarecer?

Pelo olhar de Teresa, às vezes frio e acerado (terrivelmente frio e acerado - sublinhou André
Bernardes, numa sensação de incomodidade que, de súbito, o fez imaginar-se no lugar de
Rodrigo, no quotidiano, quem sabe se traumatizador, com aquela mulher de quem, no mesmo
minuto, se poderia aguardar a mais visceral das ternuras e o mais implacável dos desdéns), por
esse olhar perpassou uma desconfiança severa e avaliadora.

- Houve alguns, sim, como deve acontecer com toda a gente. Aqui há uns anos ele trouxe um
amigo para casa, seu camarada na tropa. Esteve conosco uns seis dias e, durante esse tempo,
nunca saiu. Achei estranho, mas não lhe fiz perguntas, nem ao meu marido.
Bernardes levantou-se do sofá.

-bom, parece-me que devo dar por terminado este abuso.

-Não tomei a nossa conversa por abuso. Se se demorou um pedaço mais foi porque também eu
o desejei. Aliviou-me, fiquei menos tensa. Mas ainda não me fez o favor que lhe pedi.

- Qual?

- O diário de minha filha.

- Tem razão, só pensei em mim.

-Mais um café? Ainda sobrou que chegue para umas duas chávenas. you aquecê-lo.

- Não é preciso. Por favor, traga-me então o diário.

A mulher foi lá dentro, no seu modo eficaz e sinuoso. E, com a sua ausência, a sala como que
ficou desabitada. André Bernardes sentiu-o intensamente. Quando ela voltou, trazia uma pasta
azul, de plástico. Abriu-a e caíram folhas de papel no tapete. Bernardes juntou-as uma a uma,
com a ajuda de Teresa. Depois, numa meticulosidade que tinha muito de deleite, como lhe era
habitual, acamou-as bem, prendeu-as entre o polegar e o indicador esquerdos, apoiando o
conjunto na palma da mão, a saborear .antecipadamente o que iria seguir-se, e logo os dedos
da outra mão as foram separando, como se abrissem um fruto exótico. Primeiro, poisou os
olhos aqui e ali - em Teresa uma tremura da asa do nariz, quase instantânea. Depois, fixou-se
numa página, noutra página, depressa se alheou da presença da mulher.

102
"O Jorge da última vez que estive com ele disse-me que estou diferente e é verdade eu era a
menina tímida e feia em que ninguém reparava e agora sinto que já não é assim sou quase
alguém os homens olham-me quando passo e atiram-me piropos ordinários mas não tem
importância, importante é repararem que a Cecília existe e além disso começo a olhar as
pessoas de frente. Aqui está um pormenor bastante curioso tenho medo de olhar os outros
nos olhos mas agora tenho tentado fazê-lo e é uma experiência agradável faz-me sentir mais
forte. Mas hoje deu-me para chorar. Chorei por aquilo que sou e não sou e gostaria de ser.
Chorei por estar naquela esplanada ao crepúsculo tão bonito tão triste, chorei pelo carinho que
não tenho e pelo que o João diria se ali estivesse, chorei pela cor do casaco dele e pela camisa
que lhe está apertada parecia um colete de forças detesto tudo o que sufoca a gente que parva
que eu sou. Chorei pelas mãos dele aninhando as minhas isso tinha sido anteontem, chorei
pelos gatos pelos cães magrizelas o que me doem os pobres bichos, chorei pela minha preguiça
por aquilo que sonho e sobretudo pelo que não sou capaz de sonhar. Por tudo enfim. Chorei
por esta minha triste casa onde nunca parece haver sol. E a chorar quase me sinto bem.

O M. disse-me que quando está com uma rapariga o seu maior desejo é que ela permaneça
calada que comigo sucede o contrário que tenho uma maneira de falar diferente e disse tantas
coisas agradáveis que estou convencida de que queria levantar-me o moral. Pergunteilhe de
que me serviria essa riqueza interior se ninguém a aprecia basta que saibas que a tens disse ele
foi extraordinariamente maravilhoso ouvi-lo sinto-me deliciada ao pé dele embora tenha de
suportar o seu nariz vermelho foi mesmo azar nascer com um nariz assim. Dá-me segurança
não compreendo como há pessoas que não gostam dele não o conhecem como eu eu é que sei
o que dizem os seus olhos inquietos gostaria de lhe pedir que me protegesse e acarinhasse não
tenho receio dele gosto das suas gargalhadas.

Quando cheguei a casa a mãe não estava ouvi bater à porta da vizinha e ela entrou silenciosa
como os gatos os olhos metálicos carregados de lume. Notei que o ambiente à minha volta
tinha mudado e assim continua o pai chegou

103

com a expressão ansiosa do costume não o percebo não quis chá. Creio que ele valoriza tudo
não há nada que não lhe faça mossa mas ao mesmo tempo põe-se longe das pessoas afasta-as
é como me acontece a mim. Penso que ele precisava de uma vida diferente aquele emprego na
í Novilectra chateia-o. Um dia íamos a passar numa esplanada j e ele disse é engraçado mas a
felicidade até pode estar numa pessoa poder sentar-se numa esplanada não às horas <

que lhe permitem mas quando lhe apetecer. s-- -- -


__ Ontem ouvi-os falar na saleta eles não faziam ideia nenhuma de que eu estivesse em casa o
pai dizia és excessivamente inteligente Teresa e isso assusta-me tenho medo às vezes tenho
medo é como se tu inteligente como és pudesses iludir-me e eu não pudesse acreditar no que
me dizes e fazes porque tu sabes exatamente o que eu desejo que me digas e faças mas não é
novidade Teresa antes de nos casarmos já eu te dizia que muitas vezes pensava para mim
próprio esta é a mulher que eu amo que não poderei deixar de amar a mulher a quem serei fiel
por muitas vidas que eu viva embora saiba que me fará sofrer preciso da tua verdade da tua
autenticidade Teresa preciso de sermos capazes de estar horas infindas a olhar um para o outro
só olhar preciso de saber tudo o que está dentro de ti amo-te amo-te Teresa, e ela respondeu
comovidamente também te amo Rodrigo como é possível que suponhas que eu faço alguma
espécie de teatro contigo magoas-me Rodrigo magoas-me tanto.

Não os entendo serei eu um dia assim? Chegarei um dia àquilo? Fizeram-se chorar o que eu
queria era ter corrido para o raio daquela saleta e pô-los muito juntos as testas apoiadas uma
na outra e eu a juntá-los com os meus braços a formarmos uma de três pessoas. Mas preciso
da tua verdade da tua autenticidade Teresa não fiz nada não presto para nada. Depois aquilo
acabou com ela a preparar-lhe um gim.

São onze e trinta da noite e a mãe não há meio de ir para a cama. Estou crivadinha de dívidas e
não arranjo dinheiro para as pagar por isso tenho de fazer uma pequena operação. Pronto já a
fiz.

Gostaria de ter um badmington dos maiores é evidente aqui no bairro custam 105$00 a
Filomena tem um mas só vende com dinheiro na mão.

104

O prémio de San Remo deste ano foi a canção Nel blu di pinto di blu (No azul pintado de azul)
giro mesmo agora o Dean Martin vai cantar a mesma canção.

Se não me engano foi na sexta-feira passada estava na paragem passa um tipo num Fiat 600
igual ao do Carlos Semedo olhei e o tipo deu a volta. Fato às ricas apinocado já o tenha visto
por aí mas não sei o nome dele é meio velhadas. No dia seguinte o Rodolfo Valentino lá estava
à espera no mesmo sítio se calhar tem-me andado a espiar mas nisto o João passou e levou-me
quando cheguei ao liceu o pobre estava lá dentro no pátio, um destes descaramentos. Em
suma na terça-feira deu-me uma veneta e aceitei a boleia. Fomos até Queluz o homem tentou
abraçar-me estava nervoso que até me ri beijou-me e meteu-me a mão pela saia acima pus-lhe
as mãos na cara e repeli-o com quanta raiva tinha. Chovia água que Deus a dava. Voltamos para
Lisboa veio trazer-me perto do jardim e ala, até hoje.
Nunca mais falei ao pai nem tampouco fui à tia. Estou a fazê-la bonita cada vez me afundo mais
dia a dia me you convencendo de que sou um monstro.

Contento-me com pouco. Um toque nas mãos uma festinha na face. A noiva dele não tem
motivos para ser ciumenta. Eu serei apenas alguém que passou. Considero-o bom sem o saber
bom não sei definir esta ideia. Eu tinha-me encaminhado para a porta não me deixou sair
sentei-me junto dele no sofá com os livros bem apertados de encontro a mim e feliz chorei e
falei-lhe em ir para Inglaterra talvez o pai concordasse. Não isso seria uma tremenda asneira
disse ele mas eu continuei a falar disse-lhe que me apetecia abraçá-lo e tudo larguei mala livros
sobre o sofá vermelho. E chorei mais e falei mais e ele dizia, Ceei, Ceei, não deves ir. Tomou-me
o rosto entre as mãos e teimou agora que te estás a encontrar não podes ir. E eu não sei que
fazer. Incontestavelmente que gosto dele mas sofrerei muito mais no dia em que o vir casar
com quem deve. Veio acompanhar-me até à esquina e disse és uma rapariga estupenda Ceei.
Sei que não casarei corn

105

ele mas estes momentos são meus e ninguém mós pode tirar.

Lembrei-me de ir ver se o Júlio estava. Do carro nem sombras mas espreitei pela janela e vi luz.
Entrei-lhe de supetão fiz um estardalhaço chamei-lhe tudo de egoísta para cima até nem sei
quê. Por fim depois daquele disparate todo vi-o sucumbido de fazer pena. Tivemos então uma
cena de ternura fantástica. Nunca o vi assim. Disse-me que eu o tinha mudado por completo
que é outro que tudo o que há de bom nele fui eu que lhe dei que tudo o que é mo deve. Pedi-
lhe de mãos postas que não mentisse.

Palmei ontem ao pai trezentos e cinquenta paus e cheguei hoje a casa com vinte e cinco
tostões por junto. Não procedi bem mas é a necessidade fiz uma compra que não contava
fazer. Fui com a Gaby ao Trindade para fazermos horas fomos ver montras. Resultado entro na
Meia Hora e fico deslumbrada com um pulôver que é um sonho caramba duzentos e trinta e
cinco paus nem menos um centavo. Vesti-o é inglês género da Zulmira fiquei maluca com ele.
Macio trouxe-o Deus queira que fique sempre assim.

Convidou-me a entrar entrei sim mais uma vez entrei. É superior a mim e não faço nada para
recuar então desabafei. Ele acendeu o cachimbo o Agostinho dos Santos cantou, deu-me um
cigarro apagou a luz veio sentar-se ao pé de mim. Comecei a falar. Em francês. É ridículo eu sei
mas foi em francês. Chamei-o mentiroso que o detestava. A música tudo isso influía em nós ele
sabe mentir bem foi amoroso e de uma ternura boa meigamente T;irou-me o casaco e meigo
mo tornara a pôr quando eu sentada no chão disse que tinha frio. Quando me apertou contra
ele fê-lo com fúria quando me beijou a face ou acariciava os ombros foi terno foi born. Eu fazia
por quebrar o encanto com qualquer frase louca ou brincalhona mas ele não ia para diante ele
era mais forte do que eu disse-me merci pelo que me deste de ti mesma. Soube ser delicado
soube ser o que eu quero de um homem para que ser preciso

106

briga como com o João? Também existe ternura sem nada disso talvez seja mais ternura. Disse-
me que eu não era feliz porque não queria pois claro eu sei. Sou demasiado exigente é verdade
no entanto disse-lhe que não acreditava em nada do que se estava ali a passar. Vim embora já
passava da meia-noite quando o Carlos estava a despedir-se eu disse nem a lembrança ficou
ele protestou logo tu sabes bem que ficou Ceei. Ficou para mim e não para ele. O que espero
de alguém nem ele nem talvez nenhum me pode dar. Engraçado não gosto dele de dia gosto
dele quando é uma sombra.

Hoje passei no corredor sem fazer barulho eles tinham a porta do quarto aberta estavam
deitados ao lado um do outro as mãos muito agarradas não se olhavam só as mãos não diziam
nada não disseram nada. Deu-me vontade de soluçar."

André Bernardes aconchegou o maço de folhas, pô-lo quase reverentemente dentro da pasta
de plástico.

- Que lhe parece? - e ela fez um sorriso ávido. -Parece-me muito bem. E não creio que haja
motivos

para se inquietar. Pelo contrário. A sua filha tem sensibilidade às carradas, era de esperar.
Apenas precisa que lhe dêem atenção.

- É tudo o que tem a dizer?

-Tenho mais. - Abriu uma pausa, o olhar rugoso. com estas páginas corrigi ou confirmei muito
do que pensava a vosso respeito. you exprimir-me de outra maneira: se a tivesse ouvido
apenas a si, teria chegado a uma certa opinião; se me tivesse elucidado apenas através deste
diário, a opinião seria outra; se fosse o seu marido a ter conversado comigo, decerto que... Etc.
A tal verdade de cada um e para cada um, que é da mais rudimentar das experiências. Estou a
repetir banalidades. Uma coisa: o seu marido, por acaso, tem gosto por escrever?

-Por escrever, não. Gosta é de pintar ou de esculpir, como lhe disse há pouco. O quadrinho ali
na parede é dele, na varanda tem outros.

André Bernardes, agora desassossegado, já não parecia ouvi-la.

-you despedir-me. Perdi a noção do tempo, exagerei.

107

- Fez-me bem que tivesse estado aqui, acredite. Mas tenho curiosidade em saber se alguma
coisa do que fui

dizendo lhe interessou.

- Claro que sim.

-Como é que aproveita as figuras e os fatos da vida real?

- Servem-me apenas de referência. Quando se tornam personagens, adquirem


imediatamente autonomia, distanciam-se por elas próprias da pessoa ou do acontecimento
que as fizeram sugerir, podendo mesmo apresentarse como os seus contrários. É por isso que
certas pessoas que me procuram para me abastecer das suas vivências...

- ...Não imaginava que tal pudesse suceder. -Sucede... é por isso que essas pessoas se mostram

depois defraudadas. É-lhes difícil reconhecerem-se naquilo que, tendo nascido delas, se lhes
apresenta tão adulterado. Mas do que se trata é de uma irresistível emancipação. Se assim não
fosse, essas personagens perderiam toda a sua verdade. Às vezes, aliás, uma mesma referência
reparte-se por várias figuras, diluindo a sua nitidez ou adquirindo uma outra, mais rica, mais
sólida. Não há regras.

- - Essa possibilidade de reinventar a vida fá-lo feliz?

-De modo nenhum, já falamos disso. A felicidade, sempre tão relativa, ou tão pessoal, está na
sigmificação, o escritor começando essa complicação por, jsi próprio.

Quando o acompanhou à porta, Teresa ainda disse: - -Volte, se lhe apetecer. O meu marido
haveria de gostar.

André Bernardes sobressaltou-se com a última frase, sentiu-a incoerente. No mesmo


momento, saía do elevador Cecília, que teve uma expressão de surpresa contrariada. Não deu
tempo a que a mãe lhe apresentasse o desconhecido (mas a cara não lhe era estranha),
disparando:

- O pai?

- Tudo na mesma.

Bernardes despediu-se muito à pressa, comprometido. Enquanto descia o elevador, reviveu


aquele instante tão fugaz em que, ao apanhar do chão as folhas soltas do diário de Cecília, os
seus cabelos haviam tocado os cabelos de Teresa. Fora um prazer súbito, uma aragem fria
dentro de si.

108

Ferreirinha não almoçou para escrever a notícia - o que teria a mulher de Rodrigo contado ao
Bernardes? Ah, raios, escapara-lhe a porteira. As porteiras são uma mina. Ainda a procuraria
nesse dia. Tudo sobre a hora, que chatice, o jornal ia fechar daí a nada e não lhe saía uma linha
que se dissesse benza-te Deus. Punha uma folha na máquina, batia duas frases, cesto de papéis
com ela. Quase fazia saltar as letras do teclado, tal a fúria. Mas havia o risco de outro jornal se
antecipar, ele tinha de cavalgar os acontecimentos. Por fim, lá preencheu as laudas que o chefe
não consideraria demasiadas. Tipos como o André Bernardes e o Castel-Branco, embora se
lamentassem, é que poderiam digerir as coisas, esperar a maré propícia. Lá chegaria, porém.
Nem pensar em criar musgo naquele jornal e, mesmo enquanto o estupor da vida o forçasse a
suar ali o seu pão, numa inferneira de urgências e balbúrdias, haveria de ir pondo no papel o
que, dentro de si, começava a ser um presságio, uma febre, um apelo secreto.

Eis A Tribuna, eis duas belas colunas de alto a baixo, na terceira página - "texto de Luís Manuel
Ferreira". com autoria e tudo, embora o chefe costumasse advertir: "Nada de nomes, nada de
fulanismos, um jornal é um trabalho coletivo, não quero exibições". Aquela exceção, como a do
Alando, era mesmo exceção, não precisaria que ninguém lho dissesse. Duas colunas e uma
fotografia - um estupendo "boneco" bem nítido, sem uma falha de impressão. (Deveria ter
pedido outras à mulher, talvez de preferência um conjunto, ele, ela e a filha, era mais que certo
que nos dias seguintes o relevo dado ao fait-divers não pararia de crescer.) Título: "O mistério
da gabardina". Um prelúdio biográfico de Rodrigo dos Santos Abrantes, muito pela rama (nem,
aliás, haveria que dizer), pormenores do seu quotidiano, com uma ou outra insinuação

109

matreira, apontamentos sobre o ambiente familiar (Teresa aparecia recortada com traço mais
apurado), umas coisas acerca da Novilectra, onde a estima por Rodrigo era de sublinhar, e, por
fim, a versão, confessadamente insegura, do achado da gabardina, das diligências da Judiciária
e dos telefonemas anónimos. O chefe não lhe surrupiara uma linha, apenas tendo
acrescentado os nomes dos agentes, a censura dera luz verde. Porreiro, porreiríssimo. E
esperassem pelo próximo número do jornal. Durante o serão, a propósito de Rodrigo Abrantes,
iria escrever uma crónica sobre o silenciado problema das pessoas desaparecidas como
desapareciam, para onde, quem as fazia desaparecer. Já que havia estatísticas, o assunto tinha
por onde se lhe pegasse. E o arquivo d'A Tribuna estava bem organizado não gastaria muito
tempo a selecionar uma boa porção de recortes. Enfim: o caso Abrantes chegara na melhor
altura

- precisava de contactar o André Bernardes, talvez desse lado lhe viesse bom material.

Ferreirinha abriu e folhequ o jornal de várias maneiras, tentando enfiar-se na pele dos leitores,
tanto os de sete olhos como os distraídos: não havia dúvida de que a sua reportagem tinha
desde logo um impacto visual. Ao fundo da segunda coluna sobrara um curto espaço, o
paginador metera aí o último e lacónico relato das Forças Armadas sobre a guerra de África: "O
Serviço de Informação Pública das Forças Armadas comunica que morreram em combate, na
província de Angola, os soldados n.05 95224 62 e 44288 64, respectivamente Sérgio da Ponte e
Joaquim Cruzes, e, na de Moçambique, junto à fronteira norte, que faleceu por desastre em
viatura o soldado n.° 37 721 64, Alberto Manuel Campos".

Na página ao lado, a desenvolvida notícia de um discurso do Sr. Comendador António Santos


da Cunha, que se referira "à situação dos emigrantes portugueses em França, ao desamparo a
que estão votados e, de uma maneira muito especial, à necessidade de preservar o nosso
emigrante da ação desnacionalizadora que sobre ele se pretende exercer e exerce, ação que as
condições do seu viver facilitam, no sentido de lhe arrancar do coração os três maiores
sentimentos que podem enobrecer a alma humana: o amor de Deus, o amor da Pátria e o
amor da Família". Mais adiante: "É necessário, é urgentíssimo que a Igreja e o Estado dêem as
mãos, de modo a não permitirem que se esvazie a alma dessa boa gente (...) Seria

110

C.

verdadeiramente funesto que tal gente regressasse portadora de doutrinas malévolas e


despida de sentimentos nobres, contaminando assim a personalidade da nação que nos
compete defender a todo o custo".

Na mesma página, noticiava-se, ainda, "o desmantelamento de uma rede de engajadores,


tendo-se efetuado recentemente algumas detenções, pelas quais se verificou que nestes
últimos tempos saíram clandestinamente para França não só daquela ilha (Madeira), mas
também dos concelhos do Fundão, Covilhã e outros limítrofes, numerosos indivíduos, que
pagaram, para esse efeito, verbas superiores a trezentos contos. Dentro da organização agora
descoberta cada um desempenhava a sua missão: aliciadores, depositários, motoristas,
passadores e demais intervenientes".

Nada disso apoucava a reportagem de Ferreirinha, que, num gesto espreguiçado, dobrou o
jornal, pedindo mais uma bica. André Bernardes não tardaria a aparecer.

Os jornais, de fato, têm desses caprichos. Os matutinos do dia seguinte responderam ao


desafio d'A Tribuna, talvez porque os respectivos chefes da redação, à noite, em casa, tivessem
coincidido em passar um alertador círculo vermelho em torno do título da reportagem do Luís
Manuel Ferreira. Aquilo merecia alguma atenção - os leitores não resistem ao mistério. O
Notícias chamava o caso à primeira página, embora o recheio só figurasse no interior, na
"informação geral". O Globo reproduzia declarações do diretor da Novilectra, sim senhor,
Rodrigo Abrantes era um empregado da maior confiança, o seu desaparecimento só poderia
atribuir-se a um acidente que, por motivos obscuros, ainda não fora detectado. A Novilectra
colaboraria, obviamente, em todas as diligências em curso e incitava os jornalistas a fazerem-se
eco das preocupações da empresa. Quanto à gabardina encontrada no cacilheiro, o diretor da
Novilectra punha ridículo no aranzel feito sobre tal banalidade. Uma gabardina esquecese em
qualquer parte e há milhares de gabardinas iguais. O Globo publicava também uma fotografia
do desaparecido, do seu tempo de serviço militar (na fotografia, Rodrigo aparecia com dois
camaradas, ele era o único que não sorria), acompanhada de uma equívoca legenda, que dizia
textualmente assim: "Um, desapareceu; os outros dois,

111

oficiais das Forças Armadas, saberão acaso do seu paradeiro?"

A imprensa matutina dava também notícias de atividades subversivas a sul do Tejo,


prontamente rastreadas e saneadas, porventura em consonância com uma suspeitosa
atmosfera de agitação no perímetro industrial do Barreiro. Grupos de operários tinham-se
manifestado em locais diversos, numa estranha simultaneidade, alguns haviam decidido entrar
em greve (ilícita, como todas), mas a G. N. R. dominava a situação, logo se tendo restabelecido
a normalidade nas fábricas e nos estaleiros. De um breve recontro com a guarda havia a
lamentar três feridos, atingidos por balas perdidas. Na véspera, a "nota do dia" d'O Comércio
(um modelo de arte de tudo dizer enfiando os dedos nos olhos da censura) referia-se
metaforicamente a problemas de ordem laborai, ao êxodo dos campos, à desmobilização de
uma consciência nacional. Também se falava da quinta de Amália Rodrigues no Alentejo, com
uma janela donde se via o mar. "Quando lá está", descrevia o repórter, "levanta-se muito cedo,
semeia, colhe, rega, conversa com os pastores, aquece-se à lareira da cozinha, come migas e
azeitonas, não deixa tocar nos ninhos e deita-se com as galinhas ('à luz do petróleo', como num
fado que ela cantou). Uma paz, um sossego, a sensação de ter uns palmos de terra que me
pertencem, mesmo aquele silêncio, aquela tranquilidade constituem para mim uma fortuna
enorme. Não quero outra vida."

De qualquer modo, Ferreirinha não se iludia ao supor que o caso de Rodrigo dos Santos
Abrantes, entre todos os demais, não tinha verdadeiramente competidor quanto a chamariz
junto dos leitores, salvo dos mais interessados em descobrir nas entrelinhas, na nebulosa dos
jogos verbais, a palpitação do país real.

Assim estávamos, pois: quem abrisse os jornais dos últimos dias ia decerto julgar que esse
Abrantes, acidentado, raptado, tresloucado (desvario súbito, que nenhum antecedente faria
prever?), desavindo com a família (nada o levava a supor), homem a monte, e por aí fora, era
alguém. Ou melhor: que passara a ser alguém, uma vez que a cobiça pública o tomara de
ponta. E, tendo passado a ser alguém, era necessário que justificasse o alarido, o destaque, a
expectativa.

Nós, porém, que já sabemos um pouco das personagens, ou julgamos saber, temos de Rodrigo
uma ideia

112

manifestamente confusa, mas diferente. Rodrigo é apenas um lisboeta entre milhares e


milhares - não existe nenhum recenseamento destes perfis mais ou menos triviais. É um
empregadote (será talvez exagero falar assim) numa firma de eletrodomésticos, a meio da
escala hierárquica interna, sem grandes possibilidades de passar daí. Seria isso importante para
Rodrigo? Tem sempre a sua importância, responderia qualquer porta-voz do senso comum.
Fora da empresa, coisa nenhuma - a sua queda para as artes, correspondendo à dose de
sortilégio necessária àquele inconformismo que transfigura a realidade, também pertencia às
apetências, intuídas ou elaboradas, de quase todo o humano citadino. Conhecido dos
locatários do prédio onde morava, conhecido de alguns dos vizinhos, pelo menos de vista,
entre os quais a Dona Gracinda, que tinha uma tabacaria em frente, onde ele passava os olhos
pelas revistas estrangeiras, caras como fogo, só para ficar com uma ideia, e comprava o jornal
diário, o semanário desportivo, papel de carta, cigarros, gasolina para o isqueiro, cartões de
boas-festas pelo Natal, miudezas dessas, e, naturalmente, também conhecido no café do
bairro, seu poiso nas manhãs de domingo, e sobretudo no Martinho, onde, todas as tardes,
depois do emprego, se reunia com alguns amigos, desde um agente bancário a um inspetor da
Alfândega. Davam-se todos mais ou menos bem, apesar das divergências, ritualmente
assanhadas às segundas-feiras, quanto a predileções clubistas, até porque o convívio entre eles
não ia muito além dessas horas de café, desafogo nem sempre pacífico, mas aliviador, das
monotonias quotidianas. Carlos Murta era um caso à parte, um irmão.

Voltando aos jornais. Para eles, a fronteira entre o alguém e o ninguém é aleatória. E embora
privilegiem sem dúvida os nomes soantes, o que importa, acima de tudo, é o acontecimento,
ainda que este também possa correr as múltiplas escalas entre a exacerbação e o descaso.
Fazer incidir uma bateria de holofotes sobre um palco ou deixar apenas uma luzinha acesa
depende de uma infinidade de razões fortuitas, deliberadas - ou de nenhuma. Entre essas
razões, como em tudo na vida, entra a emulação, também essa, por seu lado, espicaçada ou
enfraquecida por ingredientes incidentais.

Por isso mesmo, na euforia de Ferreirinha havia uma ruga. O Correio, manifestamente no
enciumado intento de
113

replicar à reportagem d'A Tribuna sobre o homem desaparecido, aplicara uma manchete de
caixa alta (à largura de seis colunas, imaginem) a um fait-divers banalíssimo, mas, na verdade,
veiculado em primeira mão. O brado farfalhudo era este: "Morte de ancião em matagal levanta
suspeitas". E quem era o ancião? Um mendigo. Material a seis colunas, a fotografia tosca do
homem e outra do tugúrio onde dormia. Haviam mandado um repórter ao local - um
despropósito, tanta parra para tão pouca uva. A gorda notícia informava: "O corpo de um
septuagenário que desaparecera há dias (aquele desaparecera logo convidava o leitor a
relacionar as reportagens ou, pelo menos, a confrontá-las) foi descoberto há quarenta e oito
horas por um pastor, num denso matagal entre Belverde e os depósitos da NATO de Fernão
Ferro, na margem sul do Tejo.

Segundo investigações preliminares da Polícia Judiciária parece não haver suspeitas de crime,
refere o relatório elaborado pelo piquete daquela corporação. No entanto, o caso está
envolvido em muitas incertezas, não se sabendo ao certo se o homem, de setenta e quatro
anos, solteiro, sucumbiu por falta de assistência médica ou foi grotescamente assassinado e
abandonado no pinhal onde o encontraram.

Quem o descobriu foi o pastor César Augusto Zebreira. Alertado pelos cães que conduziam um
rebanho de ovelhas e ladravam ruidosamente, o pastor deixou uma estrada de pedra batida
por onde circulava e dirigiu-se para o local onde os cães se encontravam, deparando-se-lhe
então o corpo do José da Silva. O cadáver achava-se em adiantado estado de decomposição,
admitindo-se que ali permanecesse há quatro ou cinco dias. A cerca de dez metros do corpo
estava o casaco da vítima, em cujo interior se encontrou o bilhete de identidade e cerca de
quinhentos escudos, além de uma caderneta da Caixa Geral de Depósitos".

Seguiam-se mais uns parágrafos com o subtítulo "Últimos passos". Leia-se o primeiro período,
o resto não adianta. "José da Silva, que se achava no mais baixo degrau de uma existência
miserável, decerto bem atribulada de frustrações, quer pessoais, quer profissionais, ocupava
ultimamente um quarto na Charneca da Caparica, cedido pelos Serviços Florestais." A
fotografia da choça, aos pés do catre a roupa num reboliço. Distinguia-se uma manta

114 i

listrada e, sobre ela, um cesto com o formato dos usados nas vindimas.

Nesse dia, pois, O Correio fizera de José da Silva uma figura pública. Só que um morto não
chega a saber que, num ápice, milhares de concidadãos dão por ele, talvez lhe invejem a
efémera notoriedade, mesmo que feita de desgraças - a caderneta do depósito não invalida a
"existência miserável", fatos são fatos. Ora, Ferreirinha tinha um herói vivo ou, pelo menos,
supostamente vivo, o que vinha a dar no mesmo: os telefonemas contrapunhamse ao
pormenor, talvez funesto, da gabardina. De qualquer modo, um herói cuja nebulosidade de
contornos permitia que sobre ele se fantasiasse. Aí, Ferreirinha jogava com vários trunfos
(entre eles, Teresa), enquanto não surgisse uma peripécia decisiva.

Mas que pensaria o leitor comum? E que pensaria, mais concretamente, um observador
rigoroso dos fluxos e refluxos da trivialidade posta em notícia? Desaparecidos sem rastro, de
rastro perdido ou com reaparecimento degenerando em drama ou caricatura, eram de todos
os dias - a esse propósito, aliás, o repórter d'A Tribuna estava a documentar-se com eficácia e
interesse crescente, já que seria totalmente improvável que outro andasse a beber na mesma
fonte. Por conseguinte, salvo os familiares e a roda de amizades, às outras pessoas, de tão
cansadas da sua própria vida, de tão aturdidas nas suas raleiras, já não lhes sobraria
curiosidade para que, ao fim de um par de dias, ainda se atraíssem pelo desfecho desses
enredos alheios, mesmo com o tempero do suspense. O caso Abrantes, realçado assim aos
cumes da sensação, apenas se entenderia, portanto, pelo tratamento dado ao tal detalhe
desafiador: uma gabardina esquecida no convés de um cacilheiro - mas um detalhe que, muito
judiciosamente, o gerente da Novilectra não esquecera de desvalorizar. Só que havia o resto - e
Ferreirinha, ciente da precaridade da gabardina como peça de atração, não deixaria de apontar
para as obscuridades que persistiam: o dono dessa gabardina não aparecera no emprego, não
regressara a casa. Tanto nesse dia como nos dias seguintes. O dono da gabardina era um
pequeno burguês de hábitos regularíssimos, tal como a família, a empresa e a sociedade lho
exigiam ou, pelo menos, dele esperavam. Obediente às regras, às praxes, à enleadcwa tutela
do quotidiano, com todos os seus domesticadores gestos repetitivos. Um

115

•'"A

cidadão anónimo, mas perfeito. Desaparecido, mas deixando algures uma peça de vestuário
que lhe pertencia. Como que uma referência, um apelo, quem sabe se um escárnio. E havia
ainda aquela história dos telefonemas. O repórter d'A Tribuna averiguara tudo. Quem é que
poderia estar interessado em telefonar para casa de Rodrigo e ater-se à ligação telefónica, de
um lado o incitamento "Fale, pai!", do outro a sensação de um bafo, um respirar sufocado?
Nenhum jornal desperdiçara esse pormenor. A vida de Rodrigo Abrantes, ainda que sem
arritmias saboreáveis, ia sendo desnudada dia a dia, pouco importando se a invenção a
deformava.
Curiosamente, a toada geral era de simpatia, que, não menos curiosamente, se avivava quando
a mulher do desaparecido, Teresa, era referida. Quem nunca tivesse visto e observado Rodrigo
seria provavelmente conduzido a supor nele facetas dúplices mas atraentes, quem sabe se um
ativista político na cautelosa penumbra ou um perseguido por mafiosos ajustes de contas. De
qualquer modo, uma personagem incomum. No dia em que o desaparecimento fosse
esclarecido, decerto que a opinião pública estaria do seu lado se acaso a justiça visse nele um
prevaricador. Até a aparente normalidade do seu viver, casa-emprego-café-casa, isto é, família-
colegas-amigos-família, um ciclo inalterável e tedioso, fechado em si próprio, levava a
desconfiar. Um homem, mais cedo ou mais tarde, rebentaria com essa cadeia sufocante ou,
então, sempre a iludira sem que ninguém suspeitasse como e por quê. Nem a família.

Todo o prédio em que vivia Rodrigo começara a fruir as repercussões do acontecimento, aos
poucos a vaga alargava-se às redondezas, quem por ali residisse poderia dizer que era mais ou
menos vizinho, conhecido, por que não amigo?, do desaparecido e, muito naturalmente,
estava de posse de elementos que a imprensa escamoteava. De fato, a porteira, levando os
dias com uma mão à ilharga, a outra num espanador, não era a única pessoa a apresentarse
como discretamente sabedora de alguns estranhos comportamentos de Rodrigo: ela apanhara-
o nas cercanias do mercado da Ribeira, dentro de um automóvel, os dedos a afagarem o
cabelame loiro de uma fúfia qualquer, mas a sua desconfiança crescera quando para o
automóvel avançara um tipo já meio idoso e, sem mais aquelas, ocupara o lugar da loira. Que
poderia aquilo significar?

116

Claro que nem uma palavra a Teresa, uma simpatia, e, pelo Natal, a mais generosa das
locatárias. De outra vez, ela pusera-se a calcular quantas horas, numa manhã de domingo, o Sr.
Abrantes se ficara à janela, pincel na mão, a observar o que se passaria na colina das traseiras,
onde, sob o cerco das novas construções, resistia um mirrado olival, as velhas e desoladas
árvores como que dispostas numa escalada de martírio, convergindo para o colégio de freiras,
lá no alto, semelhando uma peregrinação.

Na Novilectra as coisas passavam-se do mesmo modo ou com bem maior alvoroço. Metade do
tempo, as pessoas não conseguiam escapar à obsessão do caso, cada um que chegava trazia
um molho de jornais, um renovado abastecimento de palpite, uma palavra de excitada
confiança ou do mais enegrecido desânimo. Manuela tivera de ser repetidamente advertida:
do diretor da empresa aos chefes de secção havia razões para censurar-lhe as ausências no
cacifo do PBX, as trapalhadas nos telefonemas, as enervantes demoras em localizar as pessoas.
À terceira vez que alguém a desculpou ao gerente: "Manuela foi à casa de banho, volta já", o
patrão chamou-a, a ira a secar-lhe a boca: "Menina, não está na Novilectra para passar a vida a
mijar. Venha preparada de casa".
Todavia, o falatório em redor de um empregado da Novilectra não desagradava a ninguém,
menos ainda ao gerente. A verdade é que a Novilectra não saía das páginas dos jornais, cada
pessoa que lá trabalhava sentia-se um notório comparsa. E cada um lembrava ninharias,
hábitos, chinesices que só agora pareciam relevantes. A Dra. Leonor, por exemplo, que chefiava
o departamento de verificação de materiais, por coincidência tendo nascido no mesmo dia de
Rodrigo, cada ano era ver qual deles se antecipava ao telefonema do outro, a partir de certa
altura tendo ambos acordado em encomendar o bolo de anos a meias, a cada colega sua fatia e
mais uma taça de espumoso, no intervalo de quinze minutos, à tarde, consentido pela sirena
da fábrica, e um beijo ritual comemorativo - sua amiga de verdade. A Dra. Leonor tinha um
fraco por gatos, abria as portas a todo o bichano escanzelado ou vadio. Tinha-os em casa, uma
boa dúzia deles, e quase outros tantos no seu gabinete da Novilectra. Pois Rodrigo era o único
colega a trazer-lhe, depois de almoço, um saquinho de plástico com leite, restos de comida ou
mesmo algum boleco que ele,

117

de propósito, ia comprar à leitaria quando não havia sobejos à mão. Essas miudezas eram
agora recordadas ou reveladas com emotividade - sendo-lhes dado um realce que só a
anomalia das circunstâncias poderia justificar. Quando O Correio publicara a fotografia da
gabardina, a Dra. Leonor não contivera duas lágrimas (e ela, com porte de senhora, chorava
sorrindo), Manuela, contagiada, não lhe ficara atrás. A gabardina. Muito provavelmente, O
Correio acertara em cheio ao sugerir que houvera luta no barco, coisa repentina e breve, sem
dar tempo a que a maioria dos passageiros se apercebesse, e que Rodrigo se vira forçado a
lançar-se ao rio para salvar a pele. Atacado por desconhecidos, abordado por carteiristas que
tivesse surpreendido na expedita manobra do furto? Saberia ele nadar? Todos os repórteres se
apressaram a fazer a pergunta a Teresa e, pouco seguros do que dela ouviram, foram confirmar
as respostas junto da filha (esquiva e azeda como diabo) e dos amigos, sobretudo um tal Carlos
Murta, que passara a ser tido como o principal confidente de Rodrigo. No entanto, o repórter
do Notícias, a quem o pormenor parecera de quilate, foi na esteira de uma indicação do vizinho
do rés-do-chão - Rodrigo Abrantes, nos meses de mormaça, era frequentador da praia de
Carcavelos - e tentou localizar os cabos de mar mais antigos, destes que ficam a conhecer um
ou outro banhista assíduo, na tentativa, antecipadamente falhada, de obter de algum deles
uma ideia das capacidades de Rodrigo como nadador. Mas era mais que certo de que nenhum
o tivesse identificado pelas fotografias dos jornais. Porém, houve quem telefonasse à polícia
(nessa altura a Judiciária via-se já em competição com outras redes de investigadores) a
fornecer novo dado: um passageiro do barco lembrava-se bem do homem da gabardina.
Estatura média, sim senhor, um tanto pálido mas cabelo áspero e negro. Ele estivera algum
tempo encostado à amurada, depois juntara-se-lhe uma mulher magrota, ambos se haviam
sentado a conversar, sem nada de intimidades, via-se que era uma relação "respeitosa", fora
então que ele despira a gabardina, momentos antes de se chegar um tipo baixo, mal-encarado,
que logo desatara a discutir. A briga durara um abrir e fechar de olhos, Rodrigo, efetivamente,
lançara-se à água ou, então, o outro empurrara-o borda fora. Daí a pouco, no local, só a
gabardina.
O repórter d'A Tribuna exigiu publicamente que se

118

desse início às pesquisas no Tejo. O homem poderia muito simplesmente ter sido assassinado,
fossem quais fossem as causas do ajuste de contas. Quanto aos prováveis assassinos (e, ao
referir-se a isso, lançava uma direta à feia insinuação d'O Correio, que se obstinava em sugerir
as facciosas rixas do mundo do contrabando), Ferreirinha apontava-os a dedo através de um
codificado jogo de referências.

Até que chegou o dia 25 do mesmo mês de novembro, ou seja, onze dias depois de Rodrigo
dos Santos Abrantes ter desaparecido de casa e do emprego.

119

Passei duas vezes por casa do Ferreirinha, não só para pormos em dia as nossas impressões
sobre o que se tem dito acerca do tal Rodrigo (temos feito uma espécie de conjura de silêncios,
não falamos do assunto diante dos companheiros de café), mas também para conversarmos
sobre o Faria Gomes. O Faria Gomes creio que está perdido. Aquele organismo devastado não
vai resistir.

Curioso: o Ferreirinha evitou, durante anos, tanto quanto pôde, que eu lhe soubesse a morada.
Localizava-se vagamente no bairro da Madragoa, mas ninguém lhe arrancava uma precisão.
Nem sequer o nome da rua. Telefone, claro - o do jornal. Certo dia, porém, adoeceu, uma gripe
mais demorada, e mandou-me recado para que eu conseguisse, na tesouraria do jornal (o
tesoureiro era meu conterrâneo), que lhe adiantasse um mês de salário. Não queria que a
minha intervenção fosse além disso, do próprio jornal lhe enviariam o dinheiro por um
portador. Achei, porém, que o Ferreirinha faria gosto na minha visita, ofereci-me para lhe levar
o sobrescrito que o tesoureiro me confiou com manifesta satisfação por me ser prestável.
Averiguei então o endereço - o n.° 30 da Travessa das Naus. Um prédio de rés-do-chão com a
frontaria esfolada por dois ou três séculos de invernias. Atendeu-me uma mulher baixinha,
escura, aí pelos quarenta, após me ter espreitado pelo postigo da porta - tal como nas velhas
casas aldeãs. Não havia engano, não, ali morava Luís Manuel Ferreira. O jornalista, pois. Que
entrasse, que entrasse, ela era a irmã.

A casa. Quantas assim, na cidade, o Neves falava disso. Praticamente, um único


compartimento, dividido segundo as funções por duas grossas cortinas, o estampado lembrava
fustão, embora ao fundo houvesse um tabique de madeira que não subia até o teto e que logo
pude verificar ser o quarto do Ferreirinha - o único membro da família (de

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quantas pessoas?) a dispor dessa relativa privacidade. No obscuro interior, todo sombras,
sobretudo para quem vinha encandeado da luminosidade da rua, o que mais depressa se
distinguia era uma máquina de costura, quase ao centro, como se fosse o móvel nobre da
residência, cestos com roupa, uma tábua de passar a ferro, tudo formando um conjunto de
peças inseparáveis. Foi de súbito, como numa afiguração, que um respirar gorgulhado me fez
voltar a cabeça para um dos cantos. Um homem idoso sentado numa cadeira de rodas, a
manta sobre os joelhos, a cabeça descaída para a frente, um horrível perfil de feto. A irmã de
Ferreirinha - "desculpe a desarrumação, o Luís Manuel fala tanto do senhor, aquele ali é o
nosso pai, teve um ataque há anos, ficou assim" levou-me até à porta do tabique, repassou-me
de um olhar entre reprovativo e súplice, nessa altura o homem da cadeira de rodas teve uma
espécie de prolongado uivo, uma coisa de estertor, cavernosa, desentranhada, inumana, logo
seguida de espasmos de tosse, que o deixaram prestes à sufocação e que terminaram num
fluxo de baba escorrido dos queixos, a derramar-se na manta - Ferreirinha nunca mais me iria
perdoar.

Mas perdoou. Penso mesmo que as nossas relações passaram a ter outra verdade, ainda que
nelas se sentisse, uma vez por outra, o reavivar de uma ferida oculta que estranhamente a
ambos fosse comum. Foi algum tempo depois, íamos a flanar pela avenida, que ele me pediu:

- Não fale daquilo a ninguém.

Achei preferível não lhe pedir que decifrasse a frase, apenas fiz um gesto de assentimento.
Isso, porém, não lhe bastara, fora talvez evidente a minha hesitação, e passos adiante
sublinhou:

- Sobretudo à malta do café.

Ferreirinha estava a pensar em todos eles, sem dúvida, mas em particular no Castel-Branco.
Desde a publicação dos Textos apologéticos que os companheiros de tertúlia sentiam na
presença do outro um bufo em sôfrego alerta. Como se, para ele, o estar, o conversar, o
conviver fossem o cumprimento metódico e ferino de uma missão específica: registar tudo o
que se passasse à volta ("tanto faz que venha sardinha como pescada do alto" - ironizava o
Faria Gomes), elaborar desse registo um relato policiesco, orientado para suspeitas prévias,
para requisitórios

122

rebarbativos, de modo a que um juiz instrutor fosse tão impressionado que dispensasse
contraprovas. Era um remédio para os seus rancores. Era, em simultaneidade, a execução fria e
deliciada de um plano obsessivo - o enxovalho alheio, o enaltecimento pessoal, que raiava a
felonia, a estratégia do terror. Castel-Branco gabava-se de que, logo a partir do segundo ou do
terceiro dos Textos, o mundo das letras ia visitá-lo à sorrelfa nos fins de semana, um a um, a
"beber-lhe à mão", como ele dizia num risinho cacarejado, que era uma maneira de sugerir
assustada vassalagem. Ninguém queria ver-se nos próximos folhetins dos Textos sob uma
versão desprimorosa, que tanto poderia ser a faceta anedótica e caricata, colhida atreira e
distorcidamente de um fato concreto, como um veredicto intelectual arrasador. Tudo isso
levado ao forno das angústias, das flagelações umbilicais - que eram, afinal, nem mais nem
menos, as angústias e as flagelações de toda a gente.

Aquilo, afinal, tivera em Coimbra os seus prelúdios já o disse. E, se volto a referir-me a esses
tempos, que são um estigma, terei de evocar uma vez mais os Camones Brothers. Tudo se liga.

Devem estar lembrados de que o incidente com a Aurora Zarolha fora da responsabilidade
imediata dos Camones, embora essa ou outra explosão tivesse mesmo de dar-se, com ou sem
eles na peripécia. De qualquer modo, o Castel-Branco não esqueceu - nunca esquecia nada. A
sua vocação de denunciante apenas esperava a mecha no fogo para exercitar-se. A mecha
ardeu com o seguinte fato: um dos Camones, o Floriano, estivera preso no Porto, nos
calabouços da Pide, que lhe pôs o corpo numa miséria. Quando transitou para Coimbra, as
cicatrizes do dorso eram exibidas aos noviços, o Floriano desfrutava doseadamente a sua aura
de herói. Ele e o outro dos Brothers, o Zé Lobinho, um algarvio matreiro e estonteadoramente
imaginoso, pondo a polícia à razão de juros, de tanto que a humilhava com o seu jogo do rato e
do gato, formavam uma parelha de estalo. Príncipes da boémia coimbrã, quando desciam ao
Terreiro da Erva eram como pistoleiros num saloon.- uma razia, um ato de posse. Depois da
ceia na cervejaria Choupal (onde a patroa, a Glória do Menezes, para cima de cem quilos de
febra, era senhora de barrar a entrada a um piquete da guarda), nos terraços da Olindinha, eles
escolhiam uma, duas, três

123

mulheres e, ou dormiam ali, ou levavam-nas para a "república".


De uma dessas vezes, só por reinação, a Carmen e a Fanny, de manhã, no momento de darem o
fora, limparam as reservas de água-de-colônia, pastas de dentes e pós de Keating do Zé
Lobinho e saíram da "república" antes que este e o Floriano acordassem. Zé Lobinho, sempre
teatreiro, clamou vinganças e, numa das noites, pagou-se do roubo levando de braçado um
cobertor da Olindinha. Esta (não menos teatreira) fez uma chicanaria dos diabos da janela para
a rua, tudo fita, aquilo pertencia à encenação, mas o certo é que, palavras para baixo, palavras
para cima, quem os ouvisse até julgaria que houvera assalto. Foi entrementes que o Castel-
Branco, que desde o escândalo da Aurora Zarolha se passara para a casa da Elisabeth, viu no
alarido a sua oportunidade e se raspou a chamar a polícia. Iam pagar-lhas.

Normalmente, rapaziadas daquelas, mais tratando-se de "doutores", não iam além de uma
noitada na esquadra da polícia. Mas esta trazia de ponta os Camones, o seu encarniçamento
não era menor que o do Castel-Branco. Antes de se estenderem com palavras, já o Zé Lobinho
apanhara um tabefe, só para pôr as coisas no rumo devido. Floriano, porém, não era homem
para assistir passivo. Um soco meio tangencial e eis dois guardas em terra, um terceiro a
escabrear com um passo de capoeira. Saldo final: seis polícias no posto médico, o Lobinho e o
Floriano a ferros, desfigurados de inchaços, equimoses, fraturas de costelas.

Aliás, apenas um começo: por caprichada coincidência (que até parece desmando do
romancista), o novo comandante da polícia viera transferido do Porto, dos quadros da Pide,
onde fora um dos torturadores do Floriano. Daí não ter ido pelos ajustes de que a sarilhada se
resolvesse nos "pequenos delitos". Meteu prisão, tribunal solenizado, um friso de estudantes
de direito estadeando as suas fitas vermelhas, uma assistência com a ênfase do que, na
universidade, se chamava os "atos grandes".

-Reconhece estes senhores? - perguntava o juiz à Olindinha, apontando os réus.

-Conheço-os muito bem, senhor doutor juiz, por acaso até são bons fregueses.

- E quanto ao roubo?

124

-Roubo, senhor doutor juiz? Foi apenas uma troca de lembranças.


E por aí fora. Mas havia as agressões à polícia, tudo isso. E também o testemunho adverso de
um archeiro da universidade, amante da Fanny, a quem o Floriano chamava chocarreiramente
o "ferrabraz da cimitarra".

A sentença foi benigna, uns dias de cadeia, mas ficara a mancha no registo criminal. Anos
depois, estávamos na Grande Guerra, com a batalha do Atlântico em pleno, o Floriano foi
despachado para os Açores, num barco a cair de podre, à mistura com mulas e cavalos
enjoados. Um dia o comandante do regimento chamou-o, houvera a proposta de promoção de
alferes para tenente médico, mas atravessara-se o diabo daquele papel burocrático: o registo
criminal. Lá estava o ferrete de pessoa duvidosa: roubos, bulhas, tipo de maus fígados. E nunca
mais o Floriano passou de alferes. O labéu agravou-se ao constar que, na confusão de uma
piela brava, ele se metera num avião americano que fizera escala em Santa Maria. Escapou
porque lhe apetecera vir cá fora mijar. Quando deu por si, o avião levantara voo. Por um triz.

Voltemos aos Textos apologéticos. Quase nas vésperas da saída do rodapé, a má consciência de
Castel-Branco tocou-lhe nalgum ponto sensível - havia entre nós um passado, um percurso,
tormentos e alvoroços partilhados. Havia coisas tão de respeitar, reagindo por si próprias, que
nenhuma injúria, por mais brutal, as conseguia emudecer em definitivo. E ele, então, como se
o discurso viesse na sequência de uma daquelas rixas verbais, azedas ou truculentas, mas cuja
ressaca era uma implícita, tácita e mesmo divertida reaproximação, uma daquelas rixas com
que por vezes nos deleitávamos e que os assistentes, mera plateia, nunca poderiam entender
que nem sequer nos arranhavam a pele, tudo exterioridade calculada, encenação lúdica,
conivente e catártica - e ele, então, disse:

-Sabes, André (raríssimo que ele me tratasse com essa familiaridade, jamais na presença de
testemunhas), o Alcindo tem insistido em que eu tenha uma coluna semanal n'A Tribuna. E a
coisa não será mal paga. Pensei em ir alimentando o folhetim com umas prosas memorialistas,

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aquilo, de resto, que sempre te esteve talhado e que, um dia, inevitavelmente acabarás por
escrever. Além dos meus demónios e dos meus achaques, proponho-me falar de amigos,
literatos, maltesaria que passou na minha vida. Francamente, tenho dúvidas sobre o acerto de
tudo o que lá virei a dizer, pois aquilo que já rascunhei fez-me prever certos melindres. Mas
não importa, cada um que se chateie à vontade. Estas prosas serão uma maneira de matar em
mim o outro insuportável que existe dentro de cada um de nós. E talvez, peço-te que acredites,
também de ajudar as pessoas que eventualmente lá figurem a esconjurarem o que nelas existe
precisado de morrer.
Entre nós, nem mais uma referência aos Textos após o início da sua publicação - e eu fui logo
um dos primeiros atingidos. Estou certo de que ele esperava isso mesmo. Da primeira vez que
nos encontramos, num cocktail mundano, saudamo-nos à distância, levantando discretamente
o copo que tínhamos na mão, depois cada um de nós fingiu embrenhar-se na confusão de
grupos que adestravam sorrisos, boatarias, futilidades.

Eu estava magoadíssimo - e ele sabia-o. Eu estava magoado (fizeram-me assim), mas toda a
minha tentação era ir junto dele e, num gesto de pura humildade, numa palavra nua,
apagarmos de uma assentada aquela deliberada agressão ao que em nós deveria permanecer
intocável, sob pena de nos desfigurar para todo o sempre. Seria, porém, duvidoso que Castel-
Branco aceitasse a minha espontaneidade com boa fé. E qualquer reação desastrada, da parte
dele, ter-me-ia terrivelmente humilhado. Aguentei. Em silêncio, aguentei. Como tenho
aguentado tanta coisa, ainda que às vezes me veja um corpo lacerado, ofendido, mutilado,
coberto de lamas e ensurdecido de mudos gritos, passeando os seus restos numa praça de
dentes carnívoros. Frágil, bem sei que o sou, e duro de roer. É pelo menos o que me diz Marta -
para ela eu sou a segurança, a rijura. Para ela eu sou a árvore irrigada de ressurreições, que
nenhum furacão deita abaixo. As tardes do café recuperaram a sua normalidade desconfiada e
pardacenta, nada pareceu alterar-se na cerzidura sempre precária das nossas relações,
absurdamente inquinadas e absurdamente predispostas à imolação.

O único que verdadeiramente mostrava a mais cáustica das indiferenças, senão mesmo o mais
desesperante dos desdéns, pelo onanismo vingativo de Castel-Branco, era o

126

Faria Gomes. Bem vistas as coisas, ele, nos seus extremos, nas suas excentricidades, servia de
elemento aglutinador, tanto como de contraditoriamente moderador, na tão discorde
confraria. Como, por seu lado, o Neves era a pessoa, decerto a única, capaz de lhe fazer frente.
Talvez porque o Neves, além de possuir uma truculência arruaceira, não era bem um literato,
mas um destes adventícios que gravitam à roda das figuras de proa como insetos atraídos por
um lampião. Já queimara as asas de uma vez, mas desistira a tempo. Agora nenhuma pedra lhe
acertaria no telhado. Aliás, o Faria Gomes e o Neves eram vistos amiúde cá fora, num convívio
que parecia ir além da arena do café. O Neves convidava-o frequentemente para jantar (não se
atrevia a associar a Bia ao convite, Bia era apenas "a minha governanta"), e todos sabiam
quanto isso era vital para o outro: sem os amigos, era mais que provável que ele, a maioria dos
dias, não tivesse um centavo para uma refeição. (E a Bia, perguntava-se - como seriam os seus
milagres de subsistência, costureira de alfaiates a tanto por peça, daí tendo de cobrir o aluguer
da casa e sustentar as independências do amante, a que nenhum patrão ou nenhuma tarefa
jamais poriam coleira?) Mas esse fato em nada perturbava os seus elos com os companheiros:
Faria Gomes aceitava os jantares ou os empréstimos de dinheiro com uma soberana
condescendência: ele era sempre o credor.
De novo o evoco naquela tarde. Longínqua, secreta, imaginária. À medida que o lento
crepúsculo, como uma labareda quase extinta que teima em arder, tornava a cidade inquieta, à
procura de um refúgio, Faria Gomes ia-se tornando loquaz. E ainda mais fabuloso do que eu
pensava. Todo o seu mundo era inventado, ele, o ruminador das ervas mágicas de que fala
Carpentier. Tão intensamente inventado, porém, tão coerente de lucidez sonhada, que nos
impedia de coabitá-lo.

Assim que lhe dei oportunidade, falou-me das suas novelas - peçazinhas de três, quatro
páginas, às vezes decalcadas umas das outras, que ele semeava pelos magazines, a troco de
dois patacos.

-Bem vendidas, percebe? Por uma questão de dignidade, valorizo o que escrevo. É do que vivo
e não me queixo.

Quando encontrei um adjetivo mais sonoro para uma delas, com as suas velhas heroínas
agachadas no escuro,

127

mitificadas por uma silente resignação secular, vi-o repetilo com toda a naturalidade:

- Tem razão. É um conto admirável.

É provável que ele esperasse de mim mais dilatada conversa, um novo pretexto para falar de si.
Como eu continuasse expectante, teve de me instigar, dilatando as narinas afiladas e
manifestamente à procura de uma revelação que me abalasse:

-Oito dias depois de o ter publicado, cinco agências estrangeiras telegrafaram-me a pedir os
direitos. Logo viram que o meu conto não é dessas frioleiras de névoa, que não têm nada a
dizer e se esquecem no dia seguinte, como começa a ser moda por aí. Mas recusei.

- Recusou?!
Subitamente, eu dava todo o direito ao Faria Gomes de chamar "admiráveis" aos seus contos.
Isso e muito mais. Olhava-o como um rústico pode olhar um ser ástreo que lhe aterra dentro
do quintal.

-Recusei, sim - insistiu ele, embevecido com o meu espanto. Procurava aliviar-se do aperto do
colarinho, embora me parecesse que o seu pescoço descarnado poderia muito bem suportar
um aperto maior ainda. Tenho tempo, meu caro. A maior riqueza do homem: ter tempo, saber
que o tem. Tempo e liberdade. Sou suficientemente livre para esperar.

Não, retorquia ele à minha curiosidade sobre os seus projetos literários. Não escreveria tão
cedo um romance ou qualquer outra coisa de fôlego. O romance tem de ser uma soma, um
inventário, um suicídio torrencial, apocalíptico. Uma enxurrada de vida a despenhar-se num
abismo. O romance é um ato derradeiro, um testamento. Ora, antes dos cinquenta anos nada
disso pode acontecer. Até lá, que o escritor saiba amealhar e selecionar materiais, afinar a sua
enxada. É tudo o que se lhe deve exigir. Era, enfim, o que ele fazia e se obstinava em fazer.

Não valia a pena desmenti-lo com milhares de exemplos que não encaixavam na sua teoria -
nem eu ousaria. E aí prosseguia ele:

-Se às vezes concordo em publicar uns contarelos é porque os amigos me empurram para essa
leviandade. Mas nunca esquecendo a diferença entre, por exemplo, um azulejo e um painel. Se
tivesse ido mais longe do que isso, acontecia-me como aos outros: partia o nariz.

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Ao ouvi-lo, ia-me sentindo réu de um crime sem perdão: ter escrito um romance aos vinte
anos. No entanto, foi-me difícil sofrear a pergunta sobre que experiência poderia ele colher de
uma vida como se dizia que era a sua: noitadas pelas ruas, vagabundo do luar (a imagem
pertencia-lhe), e café - o santuário daquela religião árida e devoradora. Ruas e café. Mas não
perguntei. Deixei que me falasse de outras coisas, de uma noiva podre de rica que insistia em
casarem no dia seguinte, de uns parentes que o ameaçavam com uma herança. Pelos vistos,
nada disso, porém, o corromperia: nunca tivera emprego, tutelas, guias. Poderia escrever o dia
inteiro, se lhe desse na gana; poderia fazer de si o que quisesse, fruir a incomparável
disponibilidade de não obedecer a relógios nem a calendários - "em tempo de férias, então,
meu caro, toda a cidade é minha". Ele era assim, enquanto os outros (eu inclusive, bem
entendido) tinham aceitado a primeira negaça que lhes haviam estendido, suportando jugos e
ofícios que desgastavam a capacidade criadora, cúmplices, enfim, da engrenagem que, pueril e
enfaticamente, diziam repelir. Ele, não, permanecia inteiro. Não se venderia. Nem a
empresários domesticadores, nem a gloríolas de papel a coisa nenhuma.
-Que pensa você que é a verrina dos nossos camaradas? A envergonhada consciência da sua
duplicidade. Não souberam resistir. - Lançou uma baforada de fumo que parecia ter-se-lhe
acumulado nas entranhas, de cada vez que sorvia o cigarro julgar-se-ia que nada ia restar. E,
encarando-me friamente, sobrancelhas eriçadas, como se a minha presença tivesse, enfim,
acabado por ser nítida, acentuou: - Deixe-se estar pela província. Há por lá as agrestes
fragrâncias, que nos salvam da fraude.

- Mas você veio para a cidade.

-Vim. E é por isso que estou a dizer-lhe que não venha. - Voltou a apreciar-me, dessa vez de
esguelha, e, atentando bem no meu trajo desmazelado, basofiou: - O meu alfaiate passa a vida
a impingir-me fatos novos. "Paga quando quiser", chateia-me ele. Mas nem assim me
convence.

Dizia aquilo num tom enciumado. Um ciúme ridículo, estranhamente infantil. Num gesto que
poderia ser uma carícia ou um protesto, sacudiu primeiro as abas do casaco, a que o uso dera
um lustro esfiampado, e depois as calças

' 129

desmesuradamente largonas, que, ao andar, faziam o som de roupa arejada.

Convidei-o para jantar. Tive a percepção de que Faria Gomes já esperava o convite, estaria
mesmo surpreso, e naturalmente indisposto, de eu não ter falado nisso há mais tempo.

-Onde? - inquiriu ele, agressivo, como se pusesse condições.

-Bem... eu... Agradecia-lhe que escolhesse você.

E assim, desde logo, contrariado mas rendido, senti que seria o Faria Gomes a conceder-me
uma mercê com essa história de jantarmos juntos.
Fomos a um restaurante das cercanias do Chiado, com pretensões a um tipismo que, pelos
vistos, se quedava pelos cartazes de toiros colados nas paredes. Faria Gomes dava aos queixos
com uma eficiência voraz e num silêncio reverente. Atulhava a boca, ou melhor, estávamos
certos de que atulharia a boca pelo volume da comida que, em duas garfadas ágeis e
monumentais, fazia desaparecer aos nossos olhos incrédulos. E depois, não se sabia bem
como, o bolo despejava-se na goela, de repente. Não havia um ruído excessivo, um deslize de
mau gosto, nesse virtuosismo. Parecia ter simplesmente pressa de acabar. Começou a beber só
depois de ter esvaziado a primeira travessa. A beber, era diferente. Bebia com pausas e uma
certa unção. Quando se recostou na cadeira, pressenti que o seu número de prestidigitação
havia terminado. De um modo irrevogável. Aquilo fora uma gula breve, imunda e necessária.

- Fume daqui - e estendeu-me duas cigarrilhas.

Não olhou mais para a mesa. Sentara-se a meia volta, como se o espetáculo dos restos de
comida, das toalhas abandalhadas, dos copos, da simples promiscuidade do ambiente,
marialvas e putas finas, o enojasse. Talvez fosse altura de o acicatar a umas confidências para
além dos devaneios de horas antes, pouco convincentes. Tudo nele era um livro fascinante,
mas de páginas por abrir. O fascínio que ainda hoje sinto, de que jamais me libertarei enquanto
não o reproduzir ou abastardar numa personagem romanesca. Ele intriga-me, domina-me -
preciso de me livrar desta sedução deixando que ela me possua, me transite, se desfaça na sua
própria voz desmistificada. Ele terá de ser o meu "Príncipe", salvo se, num repente tumultuoso,
me aparecer um outro tema de momento mais

130

tentador e, sobretudo, talvez mais acessível. Sei bem que tenho a minha destreza oficinal
enferrujada - preciso mesmo de um safanão. O caso de Rodrigo Abrantes sabe-se lá, aquela
insondável Teresa, só por si, põe-me as ideias em febre. E há a Marta - tem-me escrito todos os
dias ("Vem para mim, André, amo-te"), preciso de lhe responder por atacado. Aliás, na última
carta, previne-me de uma "surpresa", não tendo resistido, no seu habitual post-scriptum, a
desvendar o que será: nada mais, nada menos, do que a carta que o noivo da irmã, a combater
em Angola, lhe enviou por portas travessas. Que vai ser para mim um manjar, que o moço está
de acordo em que eu faça da carta o que quiser, surripiando o nome, claro está. Fiquei em
pulgas. Poderia juntar a emigração e a guerra de África no mesmo saco. Vamos a ver. De
qualquer modo, o Faria Gomes está-me na onda - ele poderá ser o tal safanão.

Mas que sabia eu dele, nessa tarde de um passado que nem parece ter sido vivido - que sei eu
dele ainda hoje, corridos estes anos? Um tipo de talento, mas que ia adiando de ano para ano
o esforço (e o risco) de se investir por inteiro num projeto à sua medida, como se o temesse,
como se a sua personalidade sem "calendários nem cobiças" fosse já de si uma criação, para os
outros suficiente, para ele um sucedâneo anestesiador ou deslumbrado; que se ia iludindo, ou
iludindo a plateia, com escritos duros, a rebentar do telurismo que se lhe entranhara na
infância, mas preguiçosos e fortuitos; que se gastava por aí, metade do dia em casa assediado
por rimas de papéis e livros que rompiam do chão, tinha de se saltar de um reduto para outro
com a perícia de um aficionado de gincanas, a Bia proibidíssima de tocar com um dedo em tal
balbúrdia, a outra metade do dia na vadiagem, marginalizando-se do carreirismo tanto
profissional como literário dos seus confrades sem, porém, lhe rejeitar os proveitos; que
desaguara em Lisboa sem credenciais nem ofício, aqui transplantado como uma árvore que se
exila levando as seivas do seu torrão de origem; que, por mais que os companheiros se lhe
misturassem, persistia nele um recanto inviolado, talvez de temer e, de qualquer modo,
cruento.

Seria ele amigo de alguém? - eis um ponto para o qual eu bem desejaria ter resposta. Seria
capaz de ser solidário, como homem e como escritor? As suas atitudes

131

davam para todas as deduções. Visse-se por exemplo esta indefinição: num país onde toda a
gente é catalogada e não se lhe perdoa a mais tímida fuga a essa catalogação, o Faria Gomes
punha os críticos em bolandas quando se tratava de o arrumar nesta ou naquela prateleira,
neste ou naquele movimento literário. Turvo e esquivo, por qualquer ponta por onde se lhe
pegasse. E, todavia, solene, nítido. E, todavia, assim contraditório, nele se reatavam uma
genealogia literária feita de cernes e linguagens dispersos mas vincadamente convergentes na
mesma peculiaridade, a nossa - erradios contemplativos com pudor da contemplação.

Olhando-o, através da fumarada que ele soprava em cirros espessos, perguntava a mim próprio
que paixões se escondiam naquela exibida impenetrabilidade. Sofrimentos? Os seus maxilares
pareciam ter-se retesado no jeito de triturar as alegrias e as dores.

-Você falou-me esta tarde no drama .dos nossos camaradas, no nosso drama. Que nos
rendemos, que aceitamos as regras do jogo. Não concordo. Uma das saliências da nossa
geração é justamente ter ficado de pé. Em que país sujeito a um regime despótico a literatura
foi mais inconformada?

-A si, meu caro, só lhe falta o tremoço e a guitarra. Está-nos na massa do sangue, O que temos
feito, fique sabendo, é puro melodrama folclórico. Onde se vê, em todos vós, burgueses
irrecuperáveis, essa recusa atuante à domesticação?
-Vê-se em muita coisa, desculpe. Na exemplaridade cívica, por exemplo. Na consciência social.
Aliás, um escritor não nasceu para ir aí pelas ruas, à cacetada. A sua arma é a escrita.

-Arma? Para que batalhas? Ora sebo. Quem vos lê, diga-me, os bacharéis, as donas-de-casa
prendadas? E, se os outros vos lerem que adianta?

Ele estava no palco e eu cá embaixo, condenado ao meu aplauso e à sua sobranceria. Que o
levasse o diabo mais a teatreirice. Amuei.

Uma das suas mãos aduncas apoiara-se numa cadeira vazia. Aquelas unhas de mandarim
tangendo no esterco provocavam-me mal-estar. Havia isso e ainda outras coisas repulsivas na
presença do Faria Gomes. Talvez fosse também do ambiente. Sentia-me tonto, enfim,
nauseado, e com uma necessidade urgente de respirar ar puro. Tive

132

saudades dos meus sítios, dos ralos noturnos, do odor a pinheiros, dos rumores da aldeia
quando se prepara para o serão. Iria regressar no dia seguinte.

Resmunguei qualquer coisa que parecesse um reforço ao que lhe dissera e logo adiantei que
não suportaria mais estar ali. Propus um giro, prevendo a sua fácil anuência.

- É só tomar um café.

Dirigimo-nos ao balcão. Num gesto autoritário, pagou essa ínfima despesa. E de novo tive a
sensação de que o espoliara, que o passeio, o jantar, a chávena de café e o tempo que ele
desperdiçara comigo haviam sido uma dádiva memorável da sua caprichosa benignidade. À
saída, foi a ele que o criado, numa longa vénia, agradeceu a gorjeta que eu deixara sobre a
mesa.

Terminamos a noitada numa leitaria para os lados do Cais do Sodré. Sabia que Faria Gomes ia
lá com frequência à tertúlia noctívaga do poeta João Prudêncio este, insoniado, fazia por adiar
o instante em que se veria só com a sua vigília, um clarão esgazeado sem nada que o apagasse.
Eu ainda não o conhecia e agradeci-lhe a ideia. Senti-a como mais uma mercê.

João Prudêncio já por essa altura era uma Nossa Senhora de Fátima da literatura portuguesa.
Baixote, olhos cinzentos esfíngicos, que os óculos em meia-lua tornavam ainda mais
indecifráveis, e tremendamente sagaz. Apesar das suas estrofes discursivas, comicieiras, do seu
fôlego de corredor de fundo, teria de ser um poeta menor num país onde frequentemente eles
são geniais. Só que o Prudêncio soubera tecer a sua aura de Whitman luso, um Whitman
panteísta e justiceiro. Todos estávamos de acordo quanto à palavrosidade oca da sua poesia
(fora uma vez à URSS, clandestinamente, como se vai a Meca, e daí em diante não havia ode
que não glosasse os "choros dos álamos de Moscou", bonita imagem que sugeria aos leitores
arrojos e lirismos universalistas), todos reconhecíamos, ia eu a dizer, a inevitável precaridade
da sua poesia, mas ninguém o confessava. Pelo contrário: naqueles plebiscitos sazonais das
folhas literárias, o nome de João Prudêncio aparecia sempre à frente - um estratagema para
cada qual não lembrar demasiado um camarada mais temido. A glória de João Prudêncio,
arrumada em definitivo nos limites da sua fugacidade, já não incomodava ninguém. E havia a
creditar-lhe, repito, a viagem à URSS, referência fabulosa, a que ele se ousara não ignorando as
represálias, de ordem

133

INI

policial, que o esperariam no regresso. E isso contava muito.

Eu sempre o imaginara, por instinto, um homem cauteloso, seráfico, encostado ao escaparate


de uma livraria, com um ou dois volumes debaixo do braço, mirada distante e sedosa e, é claro,
rodeado de uma corte - tal como agora sucede com o Castel-Branco, que, embora sempre
tenha troçado do Prudêncio, morre por lhe herdar o cetro. Não me enganara inteiramente. Fui
encontrá-lo presidindo a uma mesinha retangular, bebendo pausadamente água mineral,
enquanto os outros, sempre que arriscavam uma opinião, lhe iam vigiando as reações. Não era
um buda jactancioso nem sectário, não.- deixava-se simplesmente adorar. E na sobriedade
entristecida com que aceitava os desvelos dos iniciados, parecia pedir-lhes desculpa' de o
terem posto naquele lugar. Se às vezes discordava, antepunha à sua discordância um elogio
hábil, um esboço de contemporização, fosse o que fosse que deixava o interlocutor
previamente reconciliado. Ninguém, jamais, pudera acusá-lo de um gesto torpe, de uma
atitude insolente.
João Prudêncio, ao vivo, era, pois, o que dele se calculava: o laborioso e astuto administrador
de uma quinta. A sua obra era um chão ingrato, que ele fertilizava a poder de tenacidade e
apuradíssima intuição, que ele defendia dos azares do clima, tanto das secas como dos dilúvios.
Tudo na sua devida conta. Um chão magro, incapaz de searas eruptivas, mas do qual ele colhia
uma semente escorreita, com alguns assomos de grandeza, que ele sabia colocar no melhor
mercado, na melhor época, ao melhor preço.

Eu estava curioso de observar o comportamento de Faria Gomes naquele ambiente que tinha
qualquer coisa de sacristia. Já de si a luz era anêmica, mesmo agonizante, e, no recanto, ao
fundo da pastelaria, onde o sacerdote e a sua trupe se acoitavam, junto dos lavabos, havia a
segregada penumbra que deixa pressentir um ato religioso.

Eram quatro, incluindo o João Prudêncio. Um tipo gorducho, risonho, de lacinho brejeiro, cujo
nome me trouxe reminiscências das conspiratas políticas previstamente malogradas (o país era
um campo de concentração vigiado por baionetas sem sono) e todos os dias ressuscitadas,
como um destino que ritualiza os seus

134 í

fadários; um pintor vermelhaço e taciturno; e um outro magrote, de graça desdentada, que, ao


lado do mestre, imitando-lhe tardiamente os gestos, poderia desempenhar, talvez, o papel de
sacristão. Esperava-se sempre que ele confirmasse com um âmen as frases breves e ciciadas do
maioral da tertúlia. Ao que me palpitou, devia tratar-se de um tal Abrunhosa, espécie de
trintanário do João Prudêncio, que estabelecia a ligação entre o escritor (que naturalmente se
proclamava avesso às infectas autopublicidades e sofria a valer se os jornais se esqueciam dele
durante mais de uma semana) e as vozes da opinião pública. Ofício maldefinido e sem
recompensa, por pura devoção

- tanto mais que o poeta gozava da fama de avarento.

Gente, enfim, mais ou menos anódina e sem susceptibilidades, comparsas ideais de uma glória
a precisar de repetidos incenses - tal como o Castel-Branco, anos depois, faria por imitar com
duvidosa eficácia. Dali, pois, não havia perigo de um assalto à quintarola do mestre. Seria o
Faria Gomes tão fiel e submisso como eles? Impossível, decerto.

João Prudêncio foi amabilíssimo para comigo. Arredou o copo de água mineral, como se eu
merecesse um espaço desimpedido, e, esfregando os óculos, falou-me de coisas que me
seriam agradáveis e a que eu poderia retorquir com entusiasmo. Vivendo lá longe, subnutrido
por um convívio epistolar reticente (os homens da cidade nunca têm tempo para apagar a sede
de diálogo dos amigos desterrados - quanto eu me iludia sobre esse "desterro"), certas
preocupações dos meus camaradas, ou a forma como eles as traduziam em ação direta (o
cepticismo acerbo de Faria Gomes teria fundamento?), nunca me haviam sido suficientemente
esclarecidas. O Prudêncio falava-me das cruezas do viver do campesino, dos aspectos atuais do
feudalismo rural, homens e bichos no mesmo saco, da aparente fatalidade das humilhações
sociais, reproduzidas de geração para geração sem que um abalo intrínseco interceptasse essa
cadeia metastática. E, na sua voz de quem apresenta condolências por um infortúnio pessoal,
mais se vincava o fato de que, se discorria sobre camponeses, se punha os pés na minha
coutada, era só para manifestar a sua boa vizinhança. Não como intruso, não como invasor

- os camponeses pertenciam-me.

Um feudalismo, repetia ele, com raízes sólidas. Podiam os ventos enfurecer-se, nestas ou
naquelas bandas ("os

135

choros dos álamos de Moscou", veio-me logo à ideia, aliás o poema era muito belo), podiam
embravecer mesmo ao rés dos nossos muros (sentíamos o nosso viver apodrecido e
muralhado), que essas raízes permaneciam como eram e como estavam, sem um
estremecimento. Éramos ainda um tumor incrustado em células passivas que temiam esse
corpo estranho, aberrante. As raízes apodreceriam, por fim, mas ninguém esperasse que elas
fossem violentamente arrancadas antes de a podridão as desagregar. Muito menos por nós,
pobres e segregados escribas.

Quer dizer: aquilo era o Faria Gomes a falar, só com a diferença de estilo - ou estaria eu de pé
atrás. Que raio de gente, que raio de cidade, que raio de país. Mas não seria em resignações
assim que às vezes se registavam (termo técnico) os sismos mais tremendos?

O Abrunhosa, de pálpebras murchas, concordava com sentenciosos acenos de cabeça. Eu


digeria irritadamente esse ceptismo confessado com mágoa e suavidade, enquanto tinha sob
mira as reações de Faria Gomes. Ele estendera os dedos para um guardanapo de papel,
enrolava-o com uma agressividade contida, e vi-lhe não sei que espessa náusea subir e descer
na garganta, como um osso recusado pelo esôfago. E na altura em que o pintor vermelhaço, de
queixo apoiado nas mãos peludas, desviara a atenção de uma adolescente bamboleada para
dizer: "É isso, é, encaremos as coisas com realismo", expeliu não o osso mas um fragor de
gases.
- Gaita, foi o jantar.

João Prudêncio acudiu pressuroso, batendo-lhe carinhosamente nas costas, animando-o numa
toada caritativa:

- Vá, Faria, beba este resto de água mineral. Far-lhe-ia bem, claro, esse resto, e não agravava a

despesa.

Uns instantes depois estávamos na rua - eu errara no meu diagnóstico, o Faria Gomes não
tinha muito que ver com aquela igreja, o fraseado é que dava para vários paladares. Até nisso
ainda era a cidade a fazer-me confundir as coisas. Estávamos na rua e logo percebi, nas narinas
deliciadas de Faria Gomes, na ardência escura do seu olhar, que o crepúsculo, para ele, valia
sobretudo por ser a antecipação da noite. Da noite vasta, livre, acordada, dentro da qual
iríamos esperar a ameaça do alvorecer.

Isto há anos, muitos - agora o Faria Gomes está moribundo (tudo o leva a crer), pervertido pelo
medo,

136 l

exibindo-se num extra grotesco que não constava do seu repertório, e eu um provinciano
exilado, como ele, mas com a fragilidade de quem nem admite curar as feridas desse exílio.
Andamos por aqui a fazer o quê? Que remate nos espera?

137

"André,

O meu endereço mudou, toma nota: Résidence lês Hautes Bruyères, 12, Avenue Maillot,
Emancé. Não te esqueças. O meu marido resolveu tudo isto à pressa, ele tem as reações
corajosas e impacientes dos neuróticos ou dos que atordoam o medo na ação, e, feita a
mudança, partiu para Marrocos, onde a fábrica em que ele trabalha tem uma sucursal. you
estar só por algum tempo, livre, livre da sufocação insuportável que é a presença dele, do seu
olhar vigilante de espia, dos seus silêncios acusadores. Livre das suas mãos a quererem as
minhas. Livre das suas súplicas lastimosas. E, no entanto, tenho pena dele, que julga amar-me e
apenas me detesta, ambos somos prisioneiros da mesma atmosfera demencial, às vezes até
afagá-lo me apetece, como se faz a um louco ou a uma criança, vá lá a gente perceber.

André: levantei-me há pouco e o meu primeiro pensamento foi para ti. Abri as janelas do meu
apartamento e em redor tudo é quietude solene, um princípio do mundo. Rodeiam-me árvores
por todo o lado, o nosso pavilhão está no coração do parque - o parque da casa senhorial das
Hautes Bruyères. A luz aqui tem um brilho úmido, parece água colorida, de vários matizes, a
derramarse na vegetação. Claro que não sei descrever tanta beleza

- tu, sim, André, como dás vida às coisas! -, e tenho pena, porque o parque é na verdade um
sonho.

Levantei-me de coração magoado - tu és a minha mágoa, a minha saudade calada -, mas a


serenidade que me rodeia apaziguou-me. Até o canto dos pássaros é discreto. E pensei de
repente que poderias tomar uma semana de férias e vir até cá. Não há mais ninguém, toda a
gente partiu, ninguém a estorvar-nos. Uma semana, André, como da outra vez em Paris, uma
prenda para relembrar o

139

j resto da vida. Andas dorido, um tanto à deriva, a pensar

' tolices quanto a ti, esquecendo que as tuas reservas são

inesgotáveis, que de um dia para o outro essa força

contagiosa que te sentimos rebentará com um fragor de

tempestade. Vem. Do que precisas é de ser amado, amado


deveras, tanto como de amar - o amor não deixa as

; pessoas envelhecer nem morrer. E morrer estando vivo é a

pior das mortes, tu próprio mo tens dito.

•' Este parque é todo ele rodeado da floresta. Havia de te

! mostrar uma lagoa verde, onde de manhãzinha os bichos

vão beber. André, vem repousar, esquecer as tuas preocupações, recobrar fôlegos e estar um
pouco ao meu lado. Se assim o preferires, vem só como amigo (como ultimamente temos
feito), que o meu carinho não será menor. Vem para conversarmos sem os olhos no relógio,
para passearmos de ( mãos dadas. Vem porque a minha sede de ti é demasiada

- esta última razão não conta, bem o sei.

: Mas está tranquilo. O meu amor por ti deixou de ser

ciclônico. Transformou-se, temperou-se de lúcida calma.

Comecei a ter o sentido das realidades, do relativo. A raiva,

i a fome desapareceram. A amizade e a ternura é que

aumentaram, encheram a taça toda. Tentei esquecer-te, não

o consegui. Portanto, o melhor é aceitar-me como sou e

sobretudo aceitar-te como és. Precisas de ser amado, repito,


não como um objeto de estimação, não como um touro

-que se quer domar, não como uma jóia que se manda

encastoar num anel para uso nos salões - mas por ti,

André, apenas por ti, com os teus defeitos e virtudes

perturbadores, e fazendo tudo para que nada se altere da

i tua pessoa. Precisas de alguém que se sinta feliz sacrifican-

j do-se por ti, precisas de dádiva. Como eu seria capaz.

! Quanto a mim, compreendi que, para obter a paz, não

tenho de esvaziar-me de ti. É mesmo reconfortante saber

que há alguém que, apesar do tempo, da distância e dos

acontecimentos, persistimos em guardar dentro de nós,

emocionadamente, comovidamente. Sabes, André, é como quando entro no comboio que me


traz para França. Sinto

- que há forças que me ultrapassam. Tenho de viver nesta terra porque na minha não
encontrei lugar para mim. Tenho de viver nesta terra, onde me deixei encarcerar por ter um
marido possessivo, que quer fazer de mim uma coisa, e
onde as circunstâncias me obrigam a preparar o futuro da

| minha irmã e, possivelmente, daquele com quem ela irá

casar - o moço mandou de Angola, por um portador,

140

algumas cartas que te excitarão, ele não se importa nada que as aproveites para qualquer texto
que penses escrever sobre a guerra (voltarei a falar-te disto por estes dias). Quando aquela
máquina (o comboio) começa a avançar, a levar-me para onde devo ir, mas para onde não
quero ir, resigno-me - tenho de resignar-me enquanto os outros precisarem de mim. Isso,
porém, não impede (nada mo impedirá) de gostar de ti, de ter sede das tuas mãos neste corpo
que é teu, mesmo quando, injuriado e inerte, se deixa violar.

Vá, reflete, deixa-te entusiasmar por esta minha proposta. Creio que te faria bem. Analisarias
os teus problemas de longe (não me falas deles, mas sinto-os, tudo gira em torno dessa sádica
exigência de ti próprio), sob uma perspectiva menos carregada. Cá espero a tua resposta.
Precipitei o meu regresso por uma série de trapalhadas familiares. Mas também ficar em
Lisboa e nem sequer te ver (não há desculpa que não inventes) é demasiado frustrante. Foi
melhor assim.

Até breve. com toda a ternura da

Marta.

P.S. - Talvez eu te faça um poema de uma terra ressequida, precisando urgentemente de água."

"André,

Telefonei à minha irmã e ela disse-me que lhe parecia que tu estavas ausente, desconfiou disso
pela maneira como a tua mulher se referiu a ti no cocktail da embaixada de Cuba. Fico, pois, na
dúvida sobre se recebeste a minha carta. E eu a convidar-te para passares uma semana comigo
nesta mágica floresta onde são proibidas as amarguras! O homem põe e o acaso dispõe.
Paciência. Nessa minha carta excedia-me a falar dos meus sentimentos. Prometo que,
doravante, porei mão neles e serei mais comedida e sensata - mas o senso nunca foi o meu
forte! Serei apenas uma amiga, que é, suponho, tudo o que pretendes de mim.

Tenho matutado muito nos teus enigmáticos desabafos

- já percebi que tens pudor em falar de assuntos íntimos, obrigas as pessoas a reconstituir por
inteiro um complicado

141

puzzle, onde é difícil saber o que está a mais e a menos. Mas ouvi o suficiente para desde já
desfazer o equívoco daquela minha frase: 'conversa fiada'. Entendamo-nos, André; eu acredito
que estejas atravessando uma fase dura, basta para isso que não consigas arrancar no
romance; o que não me convences é dessa atração pela 'renúncia', desse clima interior de
'ruína' e 'descalabro'. Isso não, desculpa. Eu, que penso conhecer-te bem, talvez por te amar,
de modo nenhum poderei descrer do teu quase feroz instinto de vida.

Não te deixes subjugar, não consintas que ninguém (mas ninguém!) te faça infeliz. Cada um de
nós é a pessoa mais importante do mundo (foi de ti que o ouvi), e tu, André, és a mais
importante de todas as pessoas importantes do mundo. Põe isto bem na tua cabeça.

Nos meus momentos abissais, em que via tudo sombrio, também me parecia que só havia
muros à volta ainda agora os vejo, note-se. Mas sempre consegui lançar um repto a mim
mesma, ao meu tirânico marido, que passa a vida a fazer chantagem com a minha parva
sensibilidade, um repto ao mundo inteiro. E não me deixei vencer, pelo menos até a esta hora
em que te escrevo. Tu também vencerás, está escrito na tua mão. Uma ilha, outra ilha, ambas
serão ultrapassadas. Desejaria estar em Lisboa para te apoiar com a minha amizade, com a
minha ternura. Achei-te muito angustiado, precisas de deitar tudo cá para fora. E, pensando
bem, o mais certo é não teres o mínimo motivo para esse sofrimento, desconfio que te viciaste
na tortura, que necessitas dela como um aguilhão ou como um vinho. Sempre que me
quiseres, aqui me terás. A minha casa é tua, enquanto ele estiver fora. Sabes bem quanto a
minha existência só tem sentido se eu puder fazer seja o que for por ti.

A mim ajudaram-me muito os exercícios de ioga, de relaxação, porque a angústia pede que a
gente a deixe vir ao de cima, sob pena de nos absorver energias preciosas. Paradoxalmente,
vivê-la é mais fácil do que fugir-lhe ou combatê-la. Aprendi a chorar comoi uma criança, como
nunca chorara. Aprendi a calar a fome, o egoísmo, a solidão, o medo, a crueldade. Aprendi a
digerir a desgraça porque tinha de me mostrar forte. A criança sem lágrimas que eu fora, e
nelas, assim retidas, se ia sentindo afogada, deu lugar a uma mulher sem receio de chorar.

142

Enfim, a serenidade. Pensa em mim. Sou a

Marta.

Se acaso não recebeste a carta anterior, olha que o meu endereço é: Résidence lês Hautes
Bruyères, 12, Avenue Maillot, Emancé.

P.S. n.° 2 - Já tinha a carta fechada, mas abri-a para acrescentar mais umas palavrinhas.

Depois de te escrever, fui repousar um pouco. A preguiçar, por que não? Enquanto ele estiver
longe nada há que me pressione. Estava eu pensando em ti, sonhando utópicas maravilhas,
quando o céu deu em escurecer, os trovões num estrondo danado, os relâmpagos a
cegaremme os olhos, a chuva a desabar que nem trinta dilúvios. Por aqui, temos destas. Creio
que é da floresta. Quando o calor aperta em demasia, de sufoco em sufoco, lá em cima refilam
e pronto, a tempestade rebenta num fragor de Juízo Final. Comecei a relembrar os meus
tempos de menina e moça na ilha de Armona (não conheces, é claro), meu pai era lá guarda
fiscal É um paraíso perdido defronte de Olhão, naquele tempo levava-se uma hora de bote a
chegar lá. Tem dunas com uma rala vegetação rasteira, praias virgens a perder de vista, onde o
inviolado mar brando despeja conchas e bichos exóticos, que, com solenidade, se deixam
morrer sob a catástrofe do poente. Também eu, se um dia tiver o pressentimento da morte ou
desejar apressá-la, procurarei a ilha de Armona, minha infância, minha memória, para que a
beleza me sirva de ataúde. Ou então se o amor nos juntasse, André, ali seria a plenitude.

born. Comecei a relembrar esses tempos, em que atravessava as dunas e os arbustos


espinhosos para tomar um banho de chuva, correndo, dançando, enquanto minha mãe
bradava por mim aflita. E a cabecinha pôs-se a trabalhar, André, a moer evidências: Marta, já
tens trinta e quatro anos. Deixaste de ser a mocinha tonta da ilha de Armona. Lá fora, está frio,
as doenças apanham-se assim, et patatí,patata, enfim, as tretas do costume.
E a chuva e o resto a assanharem-se de violência.

Entretanto, fui-me despindo, fiquei nua em cima da cama, mas sem conseguir despegar os
olhos da janela escancarada. Frio, nenhum. De repente, pus-me de pé e

143

aproximei-me lentamente, ritmadamente, voluptuosamente, da janela, as narinas em cio, o


meu corpo ávido de entrega. Imaginei-te lá fora, à espera. Imaginei-te a envolver-me o corpo,
olhos, mãos e boca a tomarem conta de mim célula a célula, os meus seios, o meu ventre, as
minhas coxas (de verdade que aprecias assim tanto as minhas coxas?), sussurrando de dor e
frémito - e tu súbito, apaixonado, lancinante como és. Foi mais forte do que eu. Saltei a janela,
expus-me à tempestade. Corria pela erva encharcada, uma ninfa liberta, deixava-me cair nas
poças, virava-me para trás à tua procura, chamando-te, usando de todos os ardis da tentação,
afastando os pêlos do sexo para que a chuva nele largasse o seu gosto a terra refrescada.

Como é possível não estares aqui? Eu sabia que irias alcançar-me, deitar-me sobre os fetos,
possuir-me ali mesmo. Eu gritando, tu num crescendo de fúria e espanto

- a chuva dando de beber à floresta, tu fecundando o meu corpo. Eu Mulher-Terra, Mulher-


Barro, tu Homem-Chuva, Homem-Sol,

amado sol da minha vida.

Marta."

"André,

Hoje, you falar-te das minhas 'impressões', será uma carta totalmente subjetiva. Que estejas de
acordo ou não com o que exporei é teu legítimo direito. Como introdução, talvez valha a pena
dizer-te que a minha 'linha da inteligência' (linhas da mão, podes rir-te à vontade) revela uma
enorme tendência para a evasão, e de fato assim tem sido. Virá daí, por certo, este dom de eu
'sentir' as pessoas, desvendando-as através de um conhecimento imediato, intuitivo. Isto é
válido sobretudo quando estou junto delas. Se a distância física se interpõe o meu raciocínio
mete o bedelho e as probabilidades de erro aumentam logo. Por outras palavras: sempre tjve
razão em não confiar na razão...
Tudo isto para dizer: 'sinto' na pele e na alma que andas à minha volta, atraído e esquivo. É que
vês em mim um perigo - uma corrente de alta tensão da qual nos devemos manter
cautelosamente afastados, sob pena de ser 'eletrocutado'. Mas não tenhas medo. André. Sou
inofensi-

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vá. Pelo menos, para ti, já que nada de estável é posssível entre nós. Na verdade, decidi ser
para ti (se acaso o permitas) muito pouco: a enseada onde a embarcação vai procurar refúgio
da tormenta. A pausa realentadora antes de prosseguir a viagem. Contentar-me-ei com isso,
pelo simples prazer de dar. Mas acautelando-me também, pois a minha sede de absoluto
expõe-me sempre aos maiores riscos - e tu és um desses riscos, o maior.

Nada disto é fácil, sabemo-lo. Somos preparados para tudo, para a selvajaria da existência-
competição, mas esquecemos o PRAZER despreconcebido.Viva o triunfo do conceito sobre os
preconceitos!

Onde me levará este estado de espírito? Nem já me preocupa tentar adivinhá-lo. Chamei a
mim esta doce volúpia do abandono, en O que for se verá. Da última vez em que ele,
rebuscando nas gavetas as tuas cartas (que eu, tão parva, num reflexo de pânico, havia
destruído), cheirando-me a carne como se nela estivesse impressa a tua presença, repetiu o
teatro de pegar na pistola e de a apontar à testa, dizendo: Neste carregador há uma bala, pode
ser que calhe ao primeiro disparo', eu sentei-me na sua frente e, numa indiferença exausta,
incitei-o: 'Vá, puxa o gatilho'. E a reação dele foi levar as mãos à cabeça, num desamparo
miserando e definitivo.

Muito interessante a leitura de um livro sobre futurologia, que comprei há dias e me custou os
olhos da cara - lá tenho eu de adiar o blusão de que tanto preciso. No novo mundo que se gera
sob os nossos olhos espavoridos só existe mudança. Mal começamos a prendernos a alguém
ou a alguma coisa logo começa a separação. Temos de aprender a viver a precaridade. A dar de
nós mesmos o que houver para dar (senão é melhor fecharmo-nos numa cave sombria e
esperar a morte ou precipitá-la), mas sabendo que nada é duradouro, que a ninguém deve ser
exigido constância ou fidelidade. Deveremos considerar esta implacável fugacidade como a
quinta-essência do terror e a mais refinada das angústias? Seja como for, temos de enfrentá-la
e nunca fugir-lhe. (Meu Deus, lá estou eu na minha veia de moralista, quando a minha intenção
era só falar de 'impressões'.)
A tua vida? Um aturdimento desenfreado, que perdeu a ideia de meta. Tens medo de parar.
Tens medo do silêncio. Tens medo de te dar. Foges de ti próprio, numa correria vã. Vã porque
és lúcido e sabes que foges e por que foges.

145

É inútil a pretensão de nos ludibriarmos. A angústia é a consequência de um desejo recalcado -


li isso algures, não, não foi no Freud, que tem barbas, creio que foi num tal Georg Groddeck.
Serás, talvez, o menino assustado de Drummond de Andrade.

Quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar; '

mas o mar secou.' ~

Etc.,etc.

Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho.'

Etc. O Drummond conhecer-te-á? Lembra-te de mim se puderes, ie souberes, se


quiseres.

Marta."

"André, '

Sou uma precipitada - não precisas de mo repetir. Daqui em diante, contarei até dez antes de
assentar num juízo que me apaixone e aguardar uma semana ou duas antes de registá-lo no
papel. com estes pequenos mas custosos artifícios (truques, truques) talvez pouco a pouco
domestique os meus ímpetos, que, em regra, dão para o torto. E talvez acabe por aceitar um
freio nos dentes, desde que lhe deixem uma certa folga... Serenidade é que não. E por falar em
serenidade: há a dos lagos e há a dos mares. Esta é sempre relativa. As 'correntes' que me
percorrem não podem amansar totalmente - seria um milagre, e eu não acredito em milagres.

Portanto, contrariamente ao que afirmei a pés juntos, cá estou a escrever-te. O tempo pôs um
pouco de ordem na minha pobre cabeça e cheguei a esta-conclusão: é-me insuportável a ideia
de um silêncio-deserto entre nós. Não pode ser. Não se pode deitar uma pazada de cinza sobre
uma coisa viva - que caminho percorrido desde o nosso primeiro encontro, André! Que
cabotina era aquela pintora,

146

cujo nome esqueci. Que imbecil eu fui em querer imitá-la e tu, meu farsante, em querer armar
em femeeiro castiço! Foste, naquele dia e nos outros, uma caricatura - tu, meu homem doce e
amargo.

Estou, pois, de acordo contigo: é preferível uma desesperante verdade a uma repugnante
mentira, mas aqui a verdade é o que está dentro de mim. E essa verdade quer viver e fazer-se
ouvir. Nenhum de nós aceitaria a degradação de uma mentira formalizada, cobrindo-nos como
uma segunda pele que aos poucos nos penetra e habita, mas também não posso admitir o
crime de estrangular a verdade só porque o seu grito é clandestino. O que quero eu, afinal,
André? Se o soubesse ou se optasse por uma resposta suficientemente definitiva para ser
suficientemente pacificadora! O que deverá verdadeiramente importar-nos? A estima, talvez,
uma certa maneira de dizer ternura. O 'amor' é uma palavra gasta e deformada que exprime
uma data de coisas; ou antes, uma data de coisas serve para exprimir 'amor' - e, entre elas, a
palavra 'afeto'. Coisas de que eu preciso. De ternura, de estima. Do teu afeto. Chama-lhe
'amizade', se preferires. Preciso de ti para me dar, pedindo muito pouco em troca. A vida tem-
me ensinado a ser humilde e pequenina, a aceitar somente o que ela decide conceder. Tu, não
- para ti tudo tem de ser imenso, ou nada. Por mim, creio que lê bonheur não passa de
algumas horas boas que os deuses concedem aos míseros mortais que nós somos. A plenitude
não a vejo deste mundo e também não sei de onde será. E há ainda essa imutável lei da vida
humana que a todo o instante nos declara e demonstra que uma alegria, mesmo pequenina, se
paga com uma dor. Às vezes, muitas dores para uma só alegria. Quando tiveres um pouco de
tempo livre escreve • ••••'-•. •- •• Marta.

P.S. - Se eu fosse fada ou feiticeira, tivesse uma varinha mágica ou dons extraordinários, enviar-
te-ia hoje o brilho de uma estrela, o perfume da minha rosa preferida, o cantar do rouxinol, a
frescura de um prado. Faz hoje exatamente quatro anos que te conheci. • , , •••: • .
Marta."
147

"André,

Repara como a nossa correspondência é singular: eu escrevo-te cartas de três, quatro folhas, tu
enfias uns bilhetezinhos dentro de sobrescritos. Nunca recebo de ti o que verdadeiramente se
possa chamar uma 'resposta'; apenas comentas, e com brevidade, qualquer pormenor que te
impressionou. Tu és o meu confidente, um confidente de rara qualidade, atento e obsequioso,
mas nada mais do que isso. Só de tempos a tempos lá vem uma observaçãozita para iluminar
melhor o que foi dito e espevitar a conversa. Comunicando contigo esclareço as minhas
contradições, tomo consciência delas e tento resolvê-las. Tu, não. Preferes a esquiva, a poeira,
a autofagia. Se estivéssemos perto, se falássemos cara a cara, serias decerto menos cauteloso,
ainda que pudesses tentar impingir-me uma imagem fabricada (mas eu fiz o mesmo), como nas
primeiras semanas do nosso conhecimento; por carta, penso eu, torna-se impossível ver-te
como és. Estás protegido de metáforas e envenenado pela fraude literária. Chego a crer, depois
de ter convivido contigo e com outros, que essa será uma das castrações que todo o escritor
impõe ao homem que nele tem medo de se manifestar. Mas adiante. Uma coisa é certa, André:
assisto lucidamente à metamorfose que se vai dando em mim. Sihto-me como uma
convalescente que saiu de uma longa doença, recuperando as forças quase em segredo, só se
notando a diferença quando já ninguém poderá sustê-la. E a cura completa talvez não esteja
longe, pois o apetite voltou. Sim, o apetite. O apetite da vida, a fome de voltar a ser o que fui.
O casamento foi para mim um duro golpe e explico-te por quê. Meu pai, apesar de um pobre
sargento da Guarda Fiscal na ilha encantada de Armona (corremos o diabo antes de lá ir parar),
estava em avanço para a sua época (em certas concepções), era um homem lido e refletido, de
uma prodigiosa liberdade interior, e não educou nenhuma das filhas 'para casar'. Além do mais,
lá em casa não havia esse primário racismo entre sexos. Lembro-me de subir às únicas três
árvores que a ilha tinha, brincar aos cowboys, fazer luta livre com os meus irmãos nas dunas de
areia fina, numa relação de igualdade total. A Eduarda, de vez em quando, muito gosta de me
recordar a fereza com que eu combatia. Minha mãe, por seu lado, ainda hoje diz que eu punha
a família em 'polvorosa', ou

148

então que desaparecia durante quase um dia inteiro (o mar, sabes, André, prolongava a ilha em
vez de a isolar, eu sentia aquilo como a cristalização de uma ideia sagrada, se um dia tivermos
uma lua-de-mel, ali a passaremos, promete-me, verás as marés de tempo e sal petrificadas em
formas marinhas de colorido medular e abstrato, que as brandas ondas vêm trazer à polpa dos
dedos - não prometas, André, nunca haverá uma ilha de Armona nas nossas vidas). Talvez
tenha sido por isso que meu pai, assim que lhe caiu em cima uma herança de um tio brasileiro,
investiu em mim alguns dos seus inconfessados projetos. Como o de eu cursar medicina, por
exemplo, o que talvez me tivesse doseado esta sensibilidade à flor da pele - tu falas de
susceptibilidade, quando te enganas. Se vivesses comigo haveria de, todas as noites, contar-te
uma história, as histórias da ilha de Armona, como Xarazade faltará alguma letra à palavra? E
minha mãe ainda espera que eu um dia cumpra a promessa de escrever um livro sobre a nossa
infância, a minha e a de meus irmãos. Foi maravilhosa, André.

A ilha mudava de forma com as marés vivas, às vezes adelgaçava-se, juntando-se a outras,
línguas de areia que se prolongavam noutras areias, durante o verão apareciam alguns turistas
(os pescadores alugavam as casas de madeira a cinquenta escudos ao mês), via-os gentis e
perplexos, cansavam-se depressa daquele mundo virginal, para eles parado e vazio. Havia,
porém, outras ilhas, como cetáceos emersos a vigiar a costa, a de Fuzeta, a de Tavira, cada uma
delas tinha a sua particularidade e a sua hierarquia. Defronte de Faro, a ilha do Chá.
Chamavam-lhe assim porque era frequentada pela malta fina da cidade, que ia lá merendar à
grande, tudo doçarias de primeira, e havia a ilha do Tinto, preferida, em contraste, pela arraia-
miúda, que, em vez de bolos, comia sardinhas e, em vez de tisanas, bebia naturalmente
carrascão. Meu pai ia a Faro de tempos a tempos - era lá o comando. Demorava-se dois, três
dias, e quando íamos esperá-lo ao desembarcadouro, minha mãe e o rancho inteiro, havia
solenidade e também apreensão nessa espera. Ele trazia mantimentos, lembranças, jornais e o
odor perturbante a outros universos. Certa ocasião, foi no dia 1.° de setembro de 1939, meu
pai saltou do vaporeco para a areia e logo lhe estranhamos a sisudez. O seu rosto vinha
fechado e grave, correu atentamente os olhos por todos nós, como se quisesse certificar-se
bem de que não

149

faltava nenhum membro da tribo, pegou na mão pequenina de minha mãe e disse:

- Rebentou a guerra.

Em Armona, por essa época, não havia rádios, apenas a Gazeta de Vila Real de Santo António
com dois meses de atraso. Chegou o Ti Jaquim Serôdio, pescador de camarão, que usava umas
horríveis ratoeiras chamadas 'burjonas', onde o marisco entrava para já não sair, e fê-lo repetir
a notícia. Ti Jaquim Serôdio fizera a outra guerra, a da Flandres, e nunca mais deixara de falar
disso, até sabia ainda três palavras francesas. Então meu pai repetiu:

- Rebentou a guerra. Os alemães invadiram a Polónia. Ti Serôdio fitou as burjonas, o seu


comentário foi este: -Isto são as únicas máscaras que temos contra os
gases.

Eu não fazia grande ideia do que estava a ouvir. Mas do que me lembro é que olhei a paisagem
em redor e tudo me pareceu o mesmo, sim, e simultaneamente com qualquer coisa de
diferente. Estava aturdida e inquieta sem saber por quê. É um sentimento que, desde esse dia,
se colou a mim.

Já me perdi, André - de que te falava eu? Ah, do casamento. Pois bem: vai daí e caso-me com
um francês. Turista livre e despreocupado em terra alheia, mas superprisíoneiro na dele.
Justamente no momento (oh, ironia!) em que eu, emigrante em França, passava férias no meu
país. Só a mim. Agora compreendo que o conflito resultou do confronto entre duas
personalidades antagónicas. Eu, com uma fúria danada de me libertar em todos os domínios;
ele, com uma concepção tradicional, estreita e opressora acerca da mulher. Dizia-me
tranquilamente: 'O teu raciocínio é lógico e verossímil, mas sinto que sou eu que tenho razão'.
Eu a querer salvar o meu casamento, a tentar com desespero moldar-me a esse figurino, sem
jamais o conseguir, porque acreditava naquilo que vivera no meu ambiente familiar: um
homem e uma mulher, duas metades de um todo. A culpabilizar-me por não conseguir tornar-
me na mulher que exigiam que fosse, e ao mesmo tempo a odiar o 'outro' por este esperar de
mim o que eu não lhe poderia dar. A mutilar-me, a limitar-me, mas também a mutilá-lo e a
limitá-lo (tudo isto inconscientemente), porque a minha natureza se revoltava contra a
subjugação. Quando me tentei pelo divórcio, apesar das reações dele, umas vezes incoerentes
e demenciais, outras

150

de criança perdida, eu só queria fugir a uma sensação de estrangulamento (sonhava


repetidamente com plantas monstruosas, devoradoras, e eu era a sua presa), tendo deixado de
me importar com o porquê do nosso fracasso. Mas essa decisão teve uma importância
tremenda, foi a bola de neve que, rolando, toma vulto - e assim comecei a encadear
observações, análises, juízos. A compreender por que me casei (em França, ou noutro sítio
longe da nossa terra, a pessoa corre mais depressa ao que lhe parece um abrigo e eu sentia-me
tão precisada dele), a compreender por que durante estes anos suportei o que não deveria ter
suportado e, enfim, por que me dispus a pôr a situação às claras, ainda que dela continue
prisioneira.

Por agora, nesta pausa, estou assumindo a minha solidão com um prazer não dissimulado. Fui
sozinha a um almoço de confraternização de portugueses, dancei até às oito horas da noite.
you ao cinema também pelo meu pé (havia mais de um ano que não via um filme), levo o meu
filho aonde muito bem nos apetece, embora muitas pessoas julguem que sou mãe solteira,
tanto mais que não uso aliança.
Há dias, encontrei um jovem de uns vinte e oito anos que, não acreditando que eu fosse
casada, muito insistiu em me acompanhar, querendo por força que fôssemos jantar os três a
qualquer lado. Acho engraçado que as pessoas me julguem muito mais nova. E o melhor de
tudo isto é que o meu filho está a desabrochar como uma flor.

Sabes, André, a mulher que eu sou e pretendo ser agrada muito pouco, porque não é conforme
à regra, mas decidi ir por diante sem olhar ao preço. Mas há uma coisa que me inquieta - tu.
Seria bem melhor que estas cartas tivessem como única finalidade levarem-te as minhas
saudades e a certeza da necessidade que sinto de ti. Porém, tenho de falar também de outras
coisas. De resto, o tempo que, de meses a meses, passamos juntos não chega para perguntar-
te o que desejo saber. Por isso, com frequência, ao pensar em ti, sinto-me a flutuar perdida
num mar de desconhecimento. Mas enfim: não vale a pena lamentar o que não se pode ter;
mais vale valorizar o que realmente se possui e aproveitá-lo da melhor maneira. (Teremos
sempre o mesmo prazer em rever-nos? Da última vez, depois de nos despedirmos, estive
parada a olhar o sítio donde acabáramos de sair, tentando fazer-me acreditar que aquelas três
horas das muitas da minha vida não foram

151

inventadas.) Amo-te, André, admiro-te, respeito-te. E porque penso que estas são as principais
condições para que duas pessoas se possam entender, creio que deveria (poderia) fazer-te um
pouco mais feliz do que és.

Inquietas-me, sim. Nos meus sonhos as nossas relações são de amizade, mas também de amor
- ainda que a ele te furtes. E invade-me então uma tristeza infinita. Talvez eu tenha de resignar-
me a este sentimento como a uma fatalidade que nada pode alterar. Mas será que a desejo
alterada?

Ouve, André: não te esqueças que, mesmo quando há apenas silêncio entre nós, estou contigo
e te amo.

Dá-me a tua mão para eu a apertar na minha e dorme bem.


Marta."

"André,

Agradeço a tua franqueza. Sou como sou e tu és como és. Não serei eu, o mais ínfimo dos
vermes (a mais ínfima das criaturas - soa-me melhor), a mudar a face da Terra. Isso foi há muito
- quando Armona era toda a 'terra' e eu podia mudá-la cada amanhecer e em cada entardecer
só pela maneira como participava em cada um desses milagres telúricos.

Esta é a última carta que te escrevo. Contrariamente ao que te disse, não posso continuar a
escrever-te. Tenho de fazer tábua rasa de tudo o que se passou - afinal, que se passou
verdadeiramente? Nada. Repara bem: em relação a ti, nada. O teu caminho, quando o
manifestas, é apenas um modo de ser. Não o guardas para que o possas sentir como único, não
o privilegias. Nunca me poderás dizer como eu te digo agora: bom dia, sofro a tua falta,
apercebes-te disso? Dói-me a tua ausência.

A última carta, André, irrevogavelmente. No entanto sei que não conseguirei esquecer-te de
todo (On noublie ríen, on s'habitue - diz uma canção de Jacques Brel), mas, com o tempo, essa
lembrança será apenas tépida e fumosa. Tu não me amas, nunca sentiste amor por mim, nunca
serás aquele por quem e para quem inventarei palavras loucas. Esta decisão, contudo, não
obrigará a reciprocidade.

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Escreve-me sempre que te apeteça. As vezes tem-se necessidade de falar com alguém capaz de
escutar, alguém a quem se fale como se falássemos a nós mesmos, alguém que nunca
deturpará as nossas intenções, que não julga nem condena. Quanto a mim, é preferível não te
escrever. Seria arranhar uma ferida. Sabes, tu és mais forte do que eu - sou incapaz de me dar
aos pedacinhos, reservando uma parte, a mais importante, para mim. Quando me envolvo nas
pessoas e nas coisas, dou-me inteira. Suponhamos que te via uma semana por ano; já
imaginaste a miséria que é viver o resto do tempo esperando essa semana, vivendo em função
dela? Quando passávamos horas e horas juntos, eu já sofria a dolorosa certeza de que o tempo
as iria diluindo até não serem mais que lembranças remotas, de contornos em cada dia
desfeitos esses contornos que, quanto mais se querem nítidos, mais se esbatem. Mas, ainda
que se esfumassem, o que eu precisava avidamente de reter era a intensidade emudecida da
tua expressão quando me fixavas, quando me afagavas com uns dedos longínquos e morosos,
quando me dizias coisas como só tu sabes (mesmo que não falasses de amor

- e a verdade é que fugias de fazê-lo), o que eu queria era reter o sentido do nosso encontro e
a intuição de que, naquela época, te era necessária a convicção de que em cada dia eu te
amava um pouco mais do que na véspera.

Está decidido, pois. Sou bem capaz de viver só, ou em solidão. A solidão desejada não me pesa,
pelo contrário. bom dia, André.

Marta.

P.S. - Se algum dia eu mudar de temperamento (ou oito ou oitenta), se algum dia me tornar
conformista, se algum dia, enfim, se, se (tantos 'sés')... talvez possa ser a mulher de um
momento, alguém que passa como a brisa corre as folhas de uma árvore e, após um breve
arrepio, as deixa quietas, no mesmo lugar. Talvez. Se. SE.

1 • Marta."

153

"André,

Gostei da tua carta. Esperava apenas a devolução das folhas que te enviei, mas as palavras com
que as fizeste acompanhar foram deveras reconfortantes.

Nesse rnesmo dia explodiu em mim, mais uma vez, a longa crise que venho vivendo. Foi um
desespero, um apelo ao fim, que nem posso traduzir-te. Já não está em causa o afeto, um afeto
que nunca houve. É a impossibilidade de diálogo, que se vai adensando dia a dia. Para a minha
necessidade absoluta de autenticidade, é insuportável. Não posso. Tudo isto é um viver cruel e
falso, não é vida. Cada um para seu lado devorando-se na sua solidão extrema e sufocando-se
com a presença do outro. Parecer-te-á absurdo, mas todos os dias tenho pavor de voltar a casa.
Pavor da tensão que se cria e do imenso peso que ela tem. Eu, que dantes estava sempre
impaciente por que acabasse o dia de trabalho, quando chega a hora de sair fico receosa e
triste.
Neste momento, a minha cabeça é uma bola de fogo e sinto-me tão frágil e desesperada que
tenho de escrever-te. Não gosto da vida que vivo, das pessoas que fazem parte dessa vida, não
gosto de mim. Mas sei que poderia gostar de viver, como gostei noutras épocas, sei, afinal, que
amo a vida e tenho medo de a perder.

A atitude dele é quase permanentemente acusatória e vai-me desgastando dia a dia. Culpa-me
de tudo - em silêncio. Acusa-me até de depender economicamente do meu trabalho. E, no
entanto, nada faço que justifique essa acusação (salvo amar-te, mas isso ele não o sabe, julga
que tudo passou), chegamos mesmo a 'conspirar' para que pareça que o dinheiro vem de
algum lado que não é de modo nenhum o meu. A única solução certa seria a separação - mas
como, André? Quero libertar-me, LIBERTAR-ME. Não suporto a mentira das nossas vidas, NÃO
SUPORTO. Não suporto esta sufocação, este abscesso permanente que pulsa como uma veia
que vai rebentar. Eu grito: rebenta, rebenta, mas nada acontece. Adia-se tudo na vida. Deixa-se
sempre para depois o momento oportuno, embora se saiba que a oportunidade é só uma. E
enquanto esperamos, destruímo-nos. Mas eu não sou uma instituição de caridade - sou uma
PESSOA! Que posso fazer? Aconselha-me. Tenho de encontrar uma saída. Pensa cinco minutos
seguidos em mim e em como eu gostaria de estar

154

contigo e te acarinhar. Confio em que o amor prevaleça sobre a dor - e, confiando, fico contigo,
amando-te. Até agora falei de mim, pelo menos aparentemente, visto que fazes de tal modo
parte da minha vida que, falar de mim, é implicitamente falar de ti também. Amo por nós
ambos, deixei de pedir-te o que não me podes dar.

you fechar os olhos e sentir a tua mão na minha.

Marta.

P.S. - Não sei quantas vezes já te li. Continuo emocionada. E também pesarosa. Na carta
anterior havia euforia e destemer, deixavas-te possuir pelo júbilo e voavas; nesta, há amargura,
simultaneamente um recalcar e um lançar fora de sentimentos dramáticos - tu, que tão
reservado tens sido comigo. Tudo isso me deixou amarfanhada.
Somos o que somos, paciência. Tu, com um mundo interior que me faz pequenina e
insignificante ao pé de ti, uma força em que me apoio como a uma árvore num descampado;
eu, com muito amor para te dar, com uma reserva de ternura de que não prevejo nem desejo o
fim. Se por vezes te surgirem dúvidas (receio que a fantochada dos primeiros tempos do nosso
convívio te tenha marcado), espero conseguir desvanecê-las com um simples gesto. Tu és o
homem da minha vida e sabe-lo. E ainda bem que vivi até agora (não importa que espécie de
vida) para ter podido encontrar-te.

Fazes-me falta. Sem ti, sinto-me incompleta.

Marta.

P.S. n.° 2 - Desejo imaginar-te com saudades. Bas& que sejam um décimo das minhas."

Eram assim as cartas de Marta. Apaixonadas, românticas, imprevistas, lamechas - ela inteira. E
sofridas. Maravilhosa Marta. Marta-criança, Marta-feita-de-vidro-e-sonho, Marta-poesia,
Marta-labareda.

Mas André Bernardes apreciava-a como ela era. Também se sabia um romântico. Se alguém lhe
perguntasse

- e perguntavam: que escritor é você?, se tivesse a

155

coragem de Marta, diria: um empedernido romântico que faz tudo para o não parecer.

André estava longas temporadas sem responder ao fluxo intermitente dessas cartas, chegando
por vezes a adiar quase uma semana o abrir dos sobrescritos - aquela letra destemperada
punha-o logo desarrumado. Havia um cansaço prévio, talvez um indefinido sentimento de
culpa ou frustração (ele deveria ter sustido, logo de começo, a turbulenta entrega de Marta,
uma entrega de todo o seu ser), que André tentava não aclarar demasiado. Não queria mexer
muito dentro de si.
Nesse dia, André Bernardes, que não esquecera a capitosa promessa do testemunho do jovem
combatente em Angola, sentou-se à sua secretária (as paredes do gabinete de trabalho
forradas de madeira, nem um quadro, nem um objeto decorativo, apenas uma dúzia de livros
nunca os dele) e respondeu assim às últimas cartas:

"Marta,

Desta vez, será mesmo uma 'carta' e não um 'bilhetezinho', mesmo que não venha a falar das
coisas que gostarias de ouvir. Tu compreenderás, porém, tu desculparás. É, de resto,'essa
certeza antecipada da tua compreensão que dá limpidez às nossas relações. Só por isso eu
nunca poderia dispensar-te, menos ainda esquecer-te. Contigo, posso sempre ser eu, um eu
surpreendente, frouxo e odioso, ainda que frequentemente duvides da minha veracidade - mas
quantas maneiras haverá de se ser verdadeiro?

Adiante. Disseste-me que os presentes acontecimentos eram muito proveitosos para ambos.
Se eu estivesse ocioso, ou menos excessivamente ocupado, concordaria contigo. Repara,
contudo, que o meu principal problema é o da incomunicação. Por isso, após qualquer vivência
que me sacuda, que me faça tomar consciência de mim próprio, segue-se um estado
igualmente estéril de marasmo. Falta-me o apelo inadiável do destinatário que em mim existe,
crestado que estou pelo desalento, falta-me talvez o 'outro' destinatário a quem me dirigir (um
destinatário solidário e, conseqúentemente, com direito à exigência). Tudo isso me faz sentir
duplamente inútil e injustificado.

Neste momento, entreguei-me a uma mandrieira premeditada (ou consentida?), decidi deixar-
me envolver,

156

um pouco empiricamente, por banalidades que andam pelos jornais - um homem


desaparecido, por exemplo, e a sua furtiva mulher, que visitei e me 'desafiou', em quem
(descobri-o agora) you encontrando, insinuada, ilícita, a outra metade de ti própria, tanto como
(também o descobri agora) me vai tentando sentir-me na pele do seu marido sem rastro. Pode
ser que tudo isto seja, afinal, uma angustiada necessidade de acontecimento, um pretexto para
analisar-me de fora e para excitar-me perante uma situação - ou, enfim, uma matreira
artimanha para incitar este mudo e surdo mecanismo da escrita. Uma insatisfação, sim, uma
urgência consciente de qualquer coisa. Se ao menos me fosse permitido escrever só por
escrever, se me fosse possível comunicar sem ter de procurar, quase obrigatoriamente, um
objetivo para a comunicação!... O que sinto agora, neste preciso instante, é um vazio abrupto
comparável à morte - o que acontece, com alguma frequência, em períodos de esterilidade,
àqueles que se têm exprimido e realizado através da literatura. (Que baralhada, esta carta. Só a
ti a poderia enviar - desconfia sempre das cartas dos escritores.)

A propósito: o Farias Gomes está muito doente, o seu final é uma corrupção indecorosa, causa-
me horror. Naquilo tudo, porém, uma sub-reptícia grandeza - a Bia. Creio que a viste uma vez.

Marta: comecei a escrever-te sem que houvesse um propósito imperioso de fazê-lo. Houve,
sim, circunstâncias: a sala mais vazia que habitualmente, um aspirador, a distância, que me
está a arranhar os nervos, um tipo que tocou à porta apenas porque se enganou no andar, a
tentação sobressaltada de aproveitar uma atmosfera íntima dificilmente repetível - conquanto
não das mais 'inspiradas', confesso. E também uma certa apatia a pedir que a justificassem.
Parece um paradoxo, mas não é. A apatia, contra tudo o que os outros pensam, continua a ser
dos meus estados mais constantes. Insatisfeito, expectante, adiado. Nenhuma destas palavras
me parece ter força suficiente para definir o que pretendo. Esta escrita é pouco menos que
automática, embora procure, apesar de tudo, tomar o peso aos vocábulos, sem que, todavia, a
vontade intervenha muito. Cortei temporariamente a possibilidade de comunicação com quem
reinventei o diálogo (entenderás o que quero dizer com isto? - já sei, já sei que me consideras
um jogador da meia verdade, um viciado no

157

subterfúgio, um faquir das camas de pregos) e isso gerou em mim um vácuo. O termo 'nunca
mais' sempre teve uma acentuação de pavor ou, numa linguagem menos exagerada, sempre
deu ênfase à inutilidade.

Falta de comunicação, falta de um motivo para escrever, falta de ouvir a nossa própria voz, falta
de uma cumplicidade que dispense as palavras - estarei a dizer coisas com nexo? Duvido. Se
também duvidares, o mal é todo para mim. E frustração por sentir que tudo acabou sem quase
ter começado. Tu, eu, todos. INFERNALMENTE TODOS. Estou sentado na vida à espera que o
comboio passe. Quando ele passar, se passar, levará um esquife. Disseste-me um dia que sou
prisioneiro das estruturas, que as respeito até ao absurdo e suicidário sacrifício pessoal.
Começo a suspeitar que tens razão. Todos os que me põem em dúvida sempre tiveram grossos
fundamentos para essas dúvidas. Não presto, acabou-se.
Olho-me desconfiado e impiedoso. Não me quero, detesto-me. Mas não é uma auto-antipatia
cenográfica e aliterada, para maior engrandecimento, como a do CastelBranco: a minha vara-
me as tripas, sai delas, com as narinas apertadas do mau cheiro, nelas reentra por uma
flageladora, e nunca redentora, inevitabilidade.

Soube desde sempre que estava a efabular um herói e um enredo (intrinsecamente reais)
apenas para assistir ao desmoronamento de uma outra realidade, que é como quem diz: para
assistir ao previsto, minucioso e gradual desmoronamento daqueloutro que anda lá por fora,
na vida. Nada de mais atraente para retomar direitos, para um reinvestimento numa situação
real. Quando qualquer imbecil ajuiza com malvada ou inocente leviandade do que sai das mãos
de um escritor, não sabe em que carne viva está sacrilegamente a mexer. Uma obra é, por
definição, sagrada. Mas todos a devassam com mãos impuras, a começar pelos que vivem no
templo. É como o amor, os amantes enxovalham-no - e escrever é o mais amoroso dos atos.

É no momento em que ponho isto no papel que todo eu começo a doer verdadeiramente. E o
pensamento seduz-se, com reverência, cautela e cobiça, nem tu imaginas por quem - tu,
absorvente Marta, que nunca atentaste em que queres o mundo inteiro para ti, tu, susceptível
como um cristal reparado, em que os dedos têm medo de tocar. Seduz-se pela tal Teresa do
homem desaparecido. Tenho

158

de voltar a estar com ela - e, estando com ela, é também estar com muitas outras mulheres, é
também estar contigo, é ir por um corredor sombrio sabendo que lhe encontrarei o fundo, um
fundo que sou eu mesmo. Esquisito, Marta, e talvez sobretudo embaraçoso de verter em
palavras. Complico tudo, enfim, é a minha sina. Complicando, estrago. Ela (essa Teresa) deu-me
a ler umas páginas do diário da filha. São triviais, embora a mãe pense o contrário, como é de
regra. Houve, contudo, uma passagem que muito me comoveu: a reconstituição de uma cena
entre Teresa e o marido. Este (chama-se Rodrigo) dizia que lhe seria fiel até ao fim dos tempos
- uma grande frase. Mas como eu, o tal homem das pequenas aventuras, o compreendi! As
grandes frases são mesmo grandes, digam o que disserem. Não há, de fato, pessoas levianas e
pessoas fiéis: há as outras, as que nos justificam a leviandade ou a fidelidade. A fidelidade não
o é por mérito ou demérito, preconceito ou despreconceito, nem sequer por amor ou
desamor: é uma maneira subtilíssima e privadíssima de expressarmos um sentimento, seja ele
qual for - de o expressarmos em relação a nós e não apenas em relação a quem ele se dirige.
Às vezes uma mulher é leviana apenas para se lavar num outro corpo daquilo que de sujo o
homem a quem ela pertence no seu corpo deixou. No homem as coisas são talvez um tanto
diferentes, mas não menos imbuídas de subtilidade. Calculo que estejas a urrar ao ler isto (e
como é que isto aqui apareceu?); no entanto, nem sequer pensei especificamente em ti ao
escrevê-lo. Como também, na última carta, ao dizer-te que considerava a chantagem
sentimental a mais torpe e cruel de todas as chantagens, nem por uma fração de segundo me
passou pela cabeça insinuar que alguma vez tentaste impor os teus sentimentos e me enredar
na sua fina teia. Serás imprevista, cheia de ti - mas límpida, generosa, leal. Onde ia eu, Marta,
onde íamos nós? Perdi-me, pronto. Falava do escrever, creio. Pois bem: sinto que estou prestes
a recomeçar, e recomeçar é repartir do abismo desesperadamente, rancorosamente, em
transe, é fazer a jornada como se fosse uma primeira vez, com todos os desalentos, chagas,
fracassos acumulados numa experiência secular e penitente. O preço da salvação, aquela que,
impiedosa, nos foi distribuída. Entretanto, giro por aí, observo, escuto - o caldo de cultura vai-
se espessando. Entretanto, leio, meu vício. Leio quase sempre os mesmos livros - dizem que é

159

mau sinal. Sei o Pavese e o Cario Levi de cor, talvez até, sem dar por isso, utilize coisa deles,
todo o escritor é banhado por uma certa atmosfera vocabular que pertence a uma época ou a
uma tribo intelectual. Leio certos escritores quase todos os serões. O Pavese, o Max Frisch, o
Ray Bradbury, vê lá tu. Uma espécie de missal em que renovo a catequese, com o qual celebro
a liturgia. Talvez esta vida secreta se extinguisse por si mesma se a minha outra vivência (?)
pudesse ter alguma verdade. Mas é ela justamente que mais me leva a buscar compensações -
e a pobre compensação é este remoer em pessoas, fatos, invenções, é este pobre segredo que
não se deixa perceber e faz de si próprio uma vingançazinha, também ela pobre. Sê paciente
para com o

André.

P.S. (para te copiar os hábitos) - Nunca te disse que te amava, pois, se o dissesse, mentiria. No
entanto, reconheço que alguma coisa tem estado implícita em cada linha que te escrevo - só
que não sei defini-la. A necessidade de que uma verdade se ilumine já exige, porém, um
esforço clarificador, e nem sempre estamos predispostos. Espero as páginas sobre a guerra de
África. Sou um vampiro, Marta, nunca o esqueças. Ferocíssimo e eles não o sabem.

André".

A esta carta, e já depois de fechado o tempo romanesco que limita os eventos que temos vindo
a relatar, Marta haveria de responder:

"André,
Estamos ambos numa fase de exasperação. Eu estou-o sempre, de resto, tu de vez em quando.
Mas foi tão bom e tão medonho ler-te! Eu sempre disse: não desafiem demasiado o meu
touro. Não julguem que podem espetar-lhe todas as farpas que quiserem.

Falas em contradições, e elas parecem nítidas. Ora bem, deixa-me transcrever o meu Saint-
Exupéry: Respeito aquele que, através das palavras e embora estas se contradigam, permanece
estável como a proa de um navio

160 " .

que, apesar do mar tempestuoso, se dirige inexoravelmente para a sua estrela'. E mais:
Precisamente quando somos obrigados a percorrer um caminho é que a liberdade se torna
maior'. E mais, e mais: Cada indivíduo é um milagre'. Tu, André, és um milagre. Tu és a proa do
tal navio inexorável.

Sabes, André: quem eu amo é o homem mais assustadora e fascinadoramente complexo que
eu poderia ter encontrado.

Sabes, André: quando eu desejo uma coisa com muita força consigo normalmente obtê-la.

Sabes, André: saborear a tua existência e, uma vez por outra, a tua presença, pensar que, de
quando em quando, um pouco dela me pertence, tudo isso me compensa do resto. Que pena
que os nossos encontros não dêem para nada! Só de UMA VEZ senti que estavas comigo
porque eu existia para ti.

Sabes, André: tenho tido a sorte de poder quase sempre agir com espontaneidade. Daí sentir
mais agudamente do que tu este equívoco das nossas vidas. Eu, a amar-te; tu, a consentires (e
nem sempre) que te ame. Mas uma coisa te prometo: you empenhar-me a fundo em adaptar-
me às circunstâncias. Talvez chegue lá.

Sabes, André: foi só depois de te conhecer (conhecer por dentro) que tive necessidade de
esmiuçar certos aspectos da minha maneira de ser que, dantes, nunca me tinham justificado
qualquer tentativa de reflexão.
Sabes, André: não te preocupes conosco - tudo correrá, pelo menos, razoavelmente.

Sabes, André: aquela semana seguida em que nos pudemos ver todos os dias (e tu me proibias
de falar de amor) foi para mim uma espantosa ilusão de normalidade. Representamos em
cheio no quotidiano o que nunca poderemos vir a ser. E o admirável é que não foi
'representação'.

Acabou-se. Não sei quantas vezes já te li.

Tenho saudades. E uns doidos ciúmes dessa Teresa.

Marta.

161

P.S. (o último, prometo) - Por aqui, as animosidades entre emigrantes portugueses são uma
tristeza. Deviam unir-se, mas não-, esfolam-se, intrujam-se, ferem-se e até se matam, como
deves saber pelos jornais. Alguns deles chegam a organizar-se em máfias de chularia - em todo
o sentido da palavra. Exploram o trabalho dos outros, montam gangs de pressão económica e
psicológica, as famílias às vezes servem-lhes como reféns. Tive ontem uma pega danada com
um casal de Chaves, a mulher pensa que eu lhe cobiço o emprego. Seremos irremediavelmente
mesquinhos?"

162

Até que chegou o dia 25 do mesmo mês de novembro, em que quase todos os evasivos
enredos que vimos descrevendo, em câmara lenta, tiveram praticamente o seu brusco epílogo.
Mas, antes de darmos conta desse remate, convirá decerto relatar alguns breves antecedentes
e, ainda, algumas ocorrências coincidentes.

Por exemplo: André Bernardes, tal como confessara na carta a Marta, crescia-lhe a tentação de
visitar Teresa pelo menos uma vez mais. Antes disso, porém, quis entender-se com Ferreirinha,
não fosse haver algum enciumado melindre - e ele estava farto de os ter com quase toda a
gente.
Estavam, pois, no café. André pusera o outro de testa perplexa, os joelhos numa dança
insofrida, ao dizer-lhe:

-Você já pensou que está a encurralar esse homem? Você e, obviamente, todos os seus colegas
da imprensa.

- Encurralar?

- É talvez a palavra certa, Ferreira. Quem é Rodrigo, o seu Rodrigo? Um desconhecido que, de
súbito, a imprensa põe na ribalta. Criou-lhe, dia a dia, uma imagem e, seja ela qual for, é a
imagem de um "herói". Esse homem, em cada hora que passa, sente-se forçado a enfiar-se
dentro de uma tal imagem, sente-se na obrigação de ser o herói que lhe foi proposto. Perante
ele próprio, a família, os amigos, perante um pequeno mas decisivo universo que, de chofre, se
ampliou desmesuradamente. Se ele tivesse regressado a casa, como seria de prever, por que
preço pagaria esse regresso? Não esqueça que mulher é a dele, que intensidade e
complexidade de sentimentos os acorrentam.

-Desculpe, André, mas como é que você, assim de repente, deduziu tudo isso e, para mais, com
esse discursivo ar de infalibilidade? Não estará a ser romancista em excesso?

O tom de Ferreirinha, ácida e corajosamente agastado, não lhe estava nos hábitos; André, no
entanto, não lhe levou a mal. Compreendia-o bem.

163

-Deduzi pondo-me a refletir, sem paixão, sobre as pessoas e as circunstâncias. Você, se tivesse
tido ensejo de se achar menos "comprometido" na evolução dos acontecimentos, pensaria
talvez como eu. Isto é, sentiria os mesmos receios.

- Receios?

- Nem mais.
- Há de explicar-me isso melhor. E a gabardina?

-Não dou a mínima importância a esse indício de cordel. Uma gabardina deixa-se em qualquer
lado. Isto mesmo, aliás, já foi dito por outros.

- E a luta no barco?

-Luta? Repare, Ferreira: se tivesse havido realmente qualquer espécie de zaragata, fortuita ou
premeditada, no próprio momento em que ela se deu não haveria quase ninguém, naquele
barco, que não tivesse tomado conhecimento do fato. E algumas pessoas teriam intervindo.

- Mas algumas pessoas relataram que...

- Relataram o que não viram mas desejariam ter visto. Um gesto, uma palavra, um nada podem
representar muito ou coisa nenhuma. Depende do que neles queremos ver.

- Estou a estranhá-lo.

-Estranhe à vontade. O que eu tento é alertá-lo para o fato de, com o chinfrim posto no caso,
cada utente habitual dos cacilheiros pretender o seu quinhão de celebridade. Todos eles têm
feito um desesperado esforço por se lembrar de ninharias que, de um momento para o outro,
passaram a ter uma suspeitosa valorização. As pessoas precisam de se projetar no que
acontece aos outros. É a sua oportunidade e também a sua desforra.

-Seja. Parecia-lhe então preferível ter ocultado este caso, deixar que esse homem fosse vítima
nem se sabe bem de quê?

-Não se tratava de "ocultar". Aliás, estou apenas a confessar dúvidas e, repito, a exprimir uma
instintiva apreensão.
Ferreirinha bateu o cigarro nas costas da mão. Tinha, desde o começo, uma pergunta a fazer.

-Diga-me lá, André Bernardes, por que é que você fala da mulher de Rodrigo nesses termos
quase familiares? Mal a conhece, pode mesmo dizer-se que nem a conhece.

- Essa pergunta tenho-a feito a mim próprio e a única resposta é que essa mulher me
impressionou. Para mim é uma mulher invulgar. Assustadora, em alguns aspectos.

164

Capaz da trivialidade sem clarões nem destemperanças, uma trivialidade emocionalmente


disciplinada, e também capaz de esmagar com o mais desapiedado dos desdéns o homem que
amava minutos antes. Sente-se-lhe isso em cada palavra, em cada silêncio. O marido conhecia-
a bem. Estou em crer que, na aparente chateza do seu dia-a-dia (você pesquisou-o), ele vivia
na iminência permanente de que esse desprezo poderia manifestar-se de uma hora para a
outra, e não o suportaria.

-E as outras zonas um tanto obscuras desse quotidiano?

-Não as esqueço. Até me interessam, e muito. Mas o que mais me atrai é aquela relação.
Ponho nela qualquer coisa de pessoal, Ferreira. Eles. Amavam-se, embora vivendo como dois
adversários que esperam o inevitável momento do embate. Ela em casa, reservada como viu,
ele algures - mas durante estes dias ambos se têm observado com a certeza de que o desfecho
está próximo. Vocês, os da imprensa, apenas lhes deram um pretexto e, ao darem-no,
precipitaram as coisas, enquanto, por outro lado, influenciaram inapelavelmente esse
desfecho.

-Chiça, André Bernardes. Você está a falar-me de algum romance que traz na cabeça ou está,
de fato, a falar-me do caso Abrantes?

-E se uma e outra coisa se confundissem? Sabe qual é o meu programa de hoje?

-Diga.
-Ir daqui ao Terreiro do Paço, comprar o bilhete para um cacilheiro, o que não faço há muito, e
voltar à casa da mulher de Rodrigo.

Afinal, esse programa acabaria por alterar-se substancialmente, pois deu-se uma precipitação
dos enredos em curso - em parte, aliás, preludiada pela vinda do Neves ao café.

O Neves, de pescoço cheio e pomposo (Castel-Branco associava-o sempre às fotos de um tio-


avô cirurgião, que, num empertigamento todo ele cervical, todo ele peitilhos de goma,
açambarcava o álbum familiar), tinha por hábito desabotoar o colarinho quando as novidades
o afogueavam. Foi assim que entrou no Martinho, bufando. Poisou numa cadeira a tralha de
livros e jornais de que nunca se aliviava e que o estojo do fonendoscópio, amparado na outra
mão, de modo nenhum poderia equilibrar, passou o

165

lenço impecável pela testa (outro pormenor significativo) e, encomendada a bica, disse:

-O Faria Gomes teve uma noite agitadíssima. Quando hoje o visitei havia merda por todos os
lados.

André Bernardes e Ferreirinha não ousaram antecipar perguntas. Nem sequer um sublinhado
exclamativo. Sabiam muito bem que o Neves não admitiria que alguém lhe disturbasse a
cronologia (sempre inesperada) e a cadência das suas revelações, onde o jocoso teria
infalivelmente de coexistir com a dramaticidade, mesmo que, para tal, tivesse de misturar fatos
sem nenhum parentesco entre si. A tática, de resto, era até simular alheamento e descaso. Por
isso, André pôs-se a enrolar distraidamente um dos vários papéis que trazia no bolso e onde, às
vezes, apontava frases que lhe vinham à ideia. Nessa altura, o Neves como que pulou da
cadeira:

- Exatamente assim.

- O quê?
- O Faria Gomes. Não me pareceu bom sinal.

André e Ferreirinha entreolharam-se, aquele decidiu-se:

- Que sinal, deixe-se de charadas.

Houve uma vermelhidão instantânea nas bochechas do Neves, que, porém, se sofreou.

-Encontrei-o a enrolar cigarros, na cama, delirante. A recitar poemas.

- Conte tudo de uma vez.

-Quando hoje o visitei, estava a recitar versos de Manuel Bandeira, à mistura com trechos dos
seus próprios contos. Sempre narcisista, é claro, como vocês todos. E, enquanto recitava, ia
desmanchando cigarro sobre cigarro, quase um maço inteiro de Três Vintes. Havia tabaco e
mortalhas dentro e fora dos lençóis. E merda nas paredes.

- Encarou-os desafiadoramente, repetiu: - Merda, sim. Ele borrara-se durante a noite e, no


delírio, foi espalhando as fezes por onde calhou, gritando que lhe dessem telas para pintar, que
toda vida fora um pintor falhado. Não sei como conseguiu forças para se ter de pé. Estava cheio
de hematomas, das muitas quedas que deu. A Bia, claro, não conseguiu dominá-lo. - A pausa,
os dedos trémulos. A inspeção habitual das mesas próximas, o Neves gostava de auditório. O
recobrar do fôlego. - Imaginem o pivete. Tive de ajudar a pobre Bia a repor um pouco de asseio
naquele estendal de sujeira. Mas o que eu ia a dizer era o

166

seguinte: quando entrei, ele tentava, laboriosa e desastradamente, reconstituir um dos


cigarros, mas os fios de tabaco escapavam-se da mortalha, quando ele o quis fumar era só
papel. Ficou então muito angustiado, a sorver o ar, como um peixe na areia, e a gemer: "Oh,
meu Deus, oh, meu Deus", e uma vez por outra chamava pela Bia: "A Bia, onde está a Bia?"
Quando um doente começa a perguntar pelas pessoas, está no fim.
André Bernardes recolheu o papel na algibeira. Não lhe apetecia fazer comentários. Ferreirinha
ainda menos. Esse silêncio talvez não estivesse nas previsões do Neves, que, de súbito grave e
sorumbático, iludiu o desamparo mudando de pontaria:

- E o Castel-Branco, têm-no visto?

-Pouco - disse Ferreirinha, ao certificar-se que André Bernardes persistia em fingir que a
pergunta não era com ele.

- Mas vai aparecer.

A frase levava água no bico, sabia-se, aquele sorriso não era inocente. O Neves foi rapando o
fundo da chávena com a colher e, voltando-se para André, picou-o:

- Que há sobre a eleição de novos académicos?

- Estou a leste de tudo isso.

-Não está, é claro, para que são essas fitas? Não me diga que não lhe interessa.

- Pense o que quiser.

Neves pigarreou, mais uma vez as coisas não lhe calhavam como seria legítimo prevê-las. Mais
uma vez o forçavam a abrir o jogo.

-Pois é, a casa tem mau nome. - Arqueou as sobrancelhas, numa mímica irónica. - bom, já que
não é candidato, põe-me à vontade para falar. Estávamos então no Castel-Branco. Ele, raposão
como sempre, tem convidado uns tipos para "um café" em sua casa (está agora muito na
moda, essa do "café"), insinuando que se disporá a calar os seus escrúpulos antiacadêmicos
desde que os camaradas entendam que a presença dele na Academia será útil.
- Útil? - admirou-se o Ferreirinha.

-Sim, para equilibrar os bispos e os ultras. O pior é que os cálculos do nosso Castel-Branco
estão a sair-lhe errados. Aqui entre nós, hem? Os amigalhaços levam a defesa dele tão a sério
que todos lhe dizem que ninguém o forçará a coisa nenhuma. Estão a lixá-lo, em suma. É
pândego. E, daí, talvez haja uma boa razão: o Faulkner

167

nunca foi académico, bem pelo contrário. Tem uma biografia de garagista ou lavador de pratos,
já não sei ao certo. E você, Bernardes, que pensa disso?

- Nada.

-Nada, claro, você põe-se sempre na retranca. Quem quiser aprender consigo tem muito que
aprender. Candidate-se, homem, entre si e a Academia não há um Faulkner.

O Bernardes tinha os lábios secos, as narinas a incharem.

-Ouça, Neves, não tenho culpa de você estar precisado de embirrar com alguém. É isso que
quer?

O Neves resfolegou, assentindo vagarosamente com a cabeça.

- É, desculpe lá.

Depois viram-no coçar as pálpebras com as costas da mão, até os olhos lhe ficarem
congestionados. No que pensava era no Faria Gomes e na Bia. O resto pertencia à sua maneira
de usar a farronquice como escape, como disfarce. André estava certo de que ele falaria ainda
de outras coisas antes de os associar de novo à preocupação pelo que se estaria a passar com o
Faria Gomes. E assim de fato sucedeu, naquela sua versatilidade, áspera e volúvel, de saltar de
um assunto para outro. Começava primeiro por vincar aquelas duas rugazinhas trocistas, olhos
em alvo, depois lá vinha uma referência ao seu fadário de médico, que tanto podia incidir
numa varina como num deputado.
-Calculem vocês que hoje, no hospital, um gajo que tem a figadeira podre se pôs a cobiçar-me
as conquistas de um dos matulões lá da confraria. Dizia-me ele: "Olhe, doutor, é amigo do
Paulo, não é? Pois o Paulo é um velhacote de primeira. Apareceu lá na rua um guarda-noturno,
que é cá uma beleza, e apanhou-o logo, o malandro. A partir daí fazem fins de semana de
sonho no Alentejo, numa coutada onde ele mandou restaurar o monte com lareiras, fumeiros,
garrafeiras, tudo o que é preciso para que uma pessoa se sinta no paraíso. Lindo, não é?" - O
Neves teve novo acesso de riso, que degenerou em acesso de tosse, e, acalmado, prosseguiu: -
O pior é que o meu cirrótico, aliás uma simpatia, como todos os maricas, tem um verdadeiro
pavor da bicharada e a enfermaria está cheia de percevejos, baratas e até osgas. Ele fica logo
histérico, a clamar pelo spray mata-bichos. - De súbito emudecido, o Neves, numa ênfase
estrídula, disparou: Não estou a ter piada nenhuma, pois não?

168

André anuiu:

- Não está, de fato.

-Eu sei. E tanto mais que, para ser franco, os maricas me agudizam um sentimento de culpa.
Eles são tremendamente sensíveis, horrivelmente solitários. Bem mais trágicos e corajosos do
que nós, os déspotas da norma, os ridículos machões. bom, será melhor calar-me.

Seguiu-se um silêncio penoso. O Neves folheou um dos livros do naipe, depois outro, corrigiu
os ponteiros do seu Omega pelas horas garantidas no relógio da Estação dos Restauradores, e,
já desafogado, voltou-se uma vez mais para André, numa curiosidade estranhamente sem
malícia:

-Agora a sério, Bernardes: que sabes dessa história da Academia? Anda-me cá a roer, por certas
coisas. É verdade que mandaram um convite formal ao CastelBranco?

- Por que é que mo pergunta a mim?


-Porque, apesar das vossas questiúnculas, você é a única pessoa desta terra com quem o
Castel-Branco seria franco.

André Bernardes empalideceu. Alguma coisa dentro de si se rasgava, doendo e aliviando. Não
poderia afirmar qual das duas sensações prevalecia, mas, de qualquer modo, a observação do
Neves, e dita naquele desprendimento, resultara num intenso abalo. Sim, era isso. Era isso - e o
Neves sabia-o. O Neves e quem mais? Talvez o Faria Gomes. Ele e o Castel-Branco poderiam
esgadanhar-se, de agravo em agravo poderiam destruir-se, lá na ribalta do vale-tudo para onde
os outros, os espectadores, os haviam atirado, e, no entanto, contra todas as evidências, nada
daquilo conseguiria contaminar o que neles persistia de incorruptível: a adolescência, os
sonhos comuns, o passado. André Bernardes fitou melancólica e passivamente o Neves;
porém, o seu olhar não estava ali. Vinha-lhe de novo à ideia, como uma referência que ele
recorria sempre que lhe faziam falta velhos apoios afetivos, aquele dia, há uns bons anos atrás,
em que o Castel-Branco correra ao hospital ao sabê-lo internado no serviço de reanimação.
Uma crise de asma, que dera em síncope - "o meu fanico", depreciara ele. O Neves, todavia,
insistira nessa precaução ("com letrados nunca fiando") e, naturalmente, o Castel-Branco fora o
primeiro a alarmar-se, saltando por cima do horário das visitas. Mas não se tratara de mais um
que vai à romaria, nada disso, de certeza que não. O

169

Castel-Branco entrara no quarto do hospital transtornado, o esforço de se conter mais ainda


lhe encrespara a expressão. Havia uma identidade visceral, feita de avisos, geminilidades,
tropismos, entre aquele que adoecera e o outro que lhe vinha trazer mais do que solicitude: a
sua parte num destino ameaçado. O sorriso inesperadamente claro e lavado de Castel-Branco
(era ele ou alguém por ele?), a mão um tanto afeminada, de sacristã, que se lhe estendera,
primeiro tímida e depois confiada, e se apoiara no seu braço, a frase dita numa modulação
benévola e cúmplice:

- Põe-te bom depressa, André. Tens feito falta.

Estava sem dúvida emocionado. A sua solidariedade, sustida naquele contrariado arrepanhar
da boca, valia por todos os antagonismos e míseras emulações: era um apelo a ele próprio e a
uma verdade traída.

Õ Neves esperava uma resposta. Mas não aquela que ouviu:

-Há uma fauna que particularmente me enoja. A que parasita a vida alheia.
- Que quer dizer com isso?

- O que disse.

O outro bateu com o punho fechado na mesa e levantou-se, olhos num pasmo de sapo. Mas
nesse momento deu-se um imprevisto, do balcão do café uma voz bradou:

- O doutor Luís Neves ao telefone!

E o criado daquela correnteza de mesas a confirmar:

- É para si, senhor doutor.

Quando ele voltou ao lugar, de expressão meio absorta, logo se deduziu que fosse o que fosse
de muito grave havia acontecido. Tão grave que o incidente verbal, a pedir um urgente ajuste
de contas, fora num ápice posto de lado. Levando a mão insegura ao ombro de André, disse:

- O Faria Gomes acabou. Ele era seu amigo.

Quem telefonara fora a mulher do Neves, que, por sua vez, recebera um recado telefónico da
porteira do prédio do Faria Gomes. Um recado muito emaranhado, soluços e choros de
permeio, mas, de qualquer modo, intercalando frases que, embora desconexas, permitiam
recear que, para lá da esperada morte de Faria Gomes, alguma coisa se passara de chocante.

Aquele agoirento mulherio à entrada do prédio pareceu aos três excessivo - o Neves foi o
primeiro a descer do táxi, nem uma palavra pelo caminho. Estava um

170 )

polícia fardado no desvão das sombrias escadas, ia a impedir-lhes a passagem quando um


locatário, reconhecendo o visitante, elucidou numa entonação peremptória: "Deixa passar,
senhor guarda, são os médicos". Outro polícia à porta do apartamento do Faria Gomes, o
Neves a repetir autoritariamente o santo-e-senha: "Somos médicos", e a forçar o caminho com
o seu cariz severo e a sua corpulência, enquanto a porteira choramingava: "Que desgraça, que
desgraça".

A porta do quarto de Faria Gomes meio aberta, avivado o cheirete sentido desde o patamar
inferior. O cheirete a fezes, descrito pelo Neves. Este, num gesto vagaroso, um tanto cénico,
abriu a porta de par em par. A cama alta, dois corpos nela, lado a lado. Pela primeira vez, lado a
lado. O de Faria Gomes e o de Bia. Rostos serenos, como num dormir sem remorsos. E sangue.
Regueiros de sangue pelas pregas da roupa da cama, sangue que escorrera desta para a esteira
onde Bia, a gueixa, sempre se deitara, que escorrera para as velhas tábuas do chão,
ensopando-as de uma alacridade que acabara por escurecer.

Quando Ferreirinha se refez do espanto (André sentara-se numa cadeira, seco, fulminado, o
Neves tinha as mãos ferradas na barra metálica da cama, o seu peito era um fole convulso mas
silente) e pôde coligir elementos para a notícia que nunca chegaria a escrever tal como lho
mandava o coração, achou que aquela cena brutal se explicaria deste modo: logo que Bia ficara
certa da morte de Faria Gomes, lavara-o, vestira-o, amortalhara-o, e, por fim, deitara-se a seu
lado, bem junto dele, abrindo então as veias dos pulsos com uma navalha de barba,
mordendo-as e sugando-as para que a vida se escoasse mais depressa. Lá estavam os sinais dos
dentes, a boca ensanguentada. Depois, ao sentir-se esvaída e exangue, acomodara-se naquela
postura tranquila, definitiva. Fora a porteira a encontrá-los assim.

Aquele bárbaro epílogo do drama Faria Gomes-Bia (não seria antes uma apoteose?) teria, só
por si, bastado para que André Bernardes alterasse radicalmente o programa do dia. Mas
outras coisas sucederam, tão decisivas como essa, no sentido de ele pôr de lado a ideia de se
avistar com Teresa (a filha também o interessava, muito) e, como

171

hipótese mais remota, de procurar os pais de Rodrigo lá no retiro aonde lhes chegavam
longínquos e tardios ecos da cidade. Já falaremos de tudo isso.

Entretanto, eis André Bernardes, em casa. Tinha-se despedido bruscamente do Neves e do


Ferreira - a brusquidão, aliás, fora de todos eles, cada um, quase em simultaneidade, precisara
de fugir do quarto de Faria Gomes, já não um quarto mas uma câmara ardente, com um
esquife montado como num cenário, enquanto as autoridades tomavam decisões sobre o
destino a dar aos corpos. André, porém, ficara desconfiado de que o Neves voltaria a subir as
escadas, que apenas simulara esperar um táxi, já que não quisera aproveitar-se daquele em
que, numa direção oposta, seguira juntamente com o Ferreira, largado na rua mais próxima do
jornal. O Neves sentira-os intrusos, Faria Gomes pertencia-lhe. Era a sós com o companheiro
morto, antes que começassem a aparecer ramos de flores macabras e figuras fellinianas
vestidas de preto, que ele precisava de se medir com o desgosto.

Entretanto, pois, eis André Bernardes, cabeça apoiada em duas almofadas do sofá-cama, olhos
vagos nas traves da mansarda falsamente picotadas de caruncho. O copo de uísque na mesinha
volante, o pote com tabaco de cachimbo, as Líricas de Camões, ilustradas por um pintor tcheco,
a servirem de suporte ao cinzeiro de cerâmica finlandesa. Tudo longe e difuso, como num filme
do deserto mexicano, a poeira levantada pelos cascos da montada de algum foragido. Um filme
antigo e gasto. Tudo longe: vozes, movimentos, rumores. Nítidos, os cheiros, esses sim. O
cheiro das traves, do verniz ainda recente, das plantas no parapeito da janela (não, das flores
postas na véspera na infusa alentejana que um leitor lhe havia oferecido), o cheiro das fezes no
quarto de Faria Gomes. Mais, talvez, que o cheiro das fezes, nas paredes que tinham sido
brancas e eram agora murais abstratos, o odor viscoso a sangue. O sangue também tem cheiro.

O seu "Príncipe" acabara assim. Amanhã o funeral, urubus de negro, a prosa eclesiástica do
Alcindo n'A Tribuna (ainda mesmo que a notícia fosse do Ferreirinha, o outro não dispensaria
os responsos do seu missal), logo repercutida nos matutinos e vespertinos do dia seguinte,
cada articulista a bater no peito a sua fervorosa devoção ao Faria Gomes e estrategicamente a
insinuar, de passagem, silêncios maquinadores da parte não se sabia de quem, os

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confrades, bem-comportados, adequadamente macilentos, a deixarem o cartão na bandeja de


praxe (o que garantia o nome no jornal e um atestado de presença), abraços reavivados com
discrição - "Há quanto tempo não nos encontramos, foi preciso que..." -, o Castel-Branco
impaciente a olhar para as horas, todo o tempo dedicado a formalidades, sobretudo tratando-
se de colegas, lhe parecia um insuportável desperdício, ele, André Bernardes, a pôr os
contactos em dia e, de súbito, ensimesmado no mais escondido dos recantos, de quando em
quando o resignado erguer de sobrancelhas, pesaroso e reprovativo, de mais um profissional
dos velórios acabado de chegar, como a pedir-se contas a uma cara desconhecida de se atrever
a penetrar naquela reserva intelectual, a pergunta cochichada: "Este tipo, quem é?", embora,
afinal, todos juntos, conhecidos e anónimos, não bastassem para compor um ramo decente, o
repórter do Notícias até ia ver-se e desejar-se para bater um "boneco" que sugerisse uma boa
afluência dos prosélitos do escritor falecido, depois o cortejo a desfazer-se durante o caminho
para o cemitério
- "Calhou-me mal, logo havia de ser a esta hora" -, quando o Heitor Queirós, presidente da
Associação de Escritores, começasse a leitura do elogio fúnebre, já o auditório estaria reduzido
a meia dúzia de curiosos adventícios ou de sacrificados com a saborosa vocação para o
sacrifício. Talvez a última frase fosse do Castel-Branco, qualquer coisa como: "Afinal, quem vai
pagar o enterro?", porque, desde casa, receara que alguém lhe pedisse uma contribuição, isto
de vadios como o Faria Gomes até depois de mortos andam no cravanço.

Amanhã, dias, semanas depois tudo se repetiria sem sequer a lembrança do Faria Gomes
interferir nesse ritmo monocórdico. Os frequentadores de livrarias, templos restritos, teriam a
curiosidade de o ler até ao último artigo laudatório publicado nas gazetas, a maioria deles
sentindose defraudados e jurando nunca mais confiarem nesse blá-blá da imprensa, as edições
iriam esgotar-se mas, prudentemente, já não seriam reimpressas, fartos de livros a saldo e de
palpites gorados estavam os editores, o nome de Faria Gomes ainda apareceria representado
nas antologias durante os dois anos de luto protocolar, talvez também num ou noutro
compêndio escolar (dependeria das afinidades ideológicas do compendiador), por certo
chamariam André Bernardes ou o Castel-Branco para uma

173

evocação na rádio aquando do primeiro aniversário do passamento - e, depois, paz à sua alma.
As pessoas, sem excluir as mais íntimas, concluiriam, mesmo que não o dissessem ou
pudessem dizer, mesmo que nem o pensassem, que nada se altera com a morte seja de quem
for. A vida não se deixa impressionar com os mortos, dispensa-os, digere-os, envolve-os num
cerimonial que não consente que o pesar se interiorize.

Mas André Bernardas, que o sabia, não podia admitir naquele momento, pelo menos naquele
momento, que as coisas se passassem assim. Ele estava também em causa. O soberbo orgulho
interior de Faria Gomes, a sua imagem insolente e mítica, eram a outra face fascinada, ainda
que irreal, de si próprio. Sentia que muito de si mesmo morrera ou ia morrer com o
desaparecimento de Faria Gomes - e nisso não havia apenas a trama dos hábitos. Que era ele,
Bernardes? Uma misturada de personagens, de lios emboscados ou ocultos. Nessa mistura
uma parte fora o Faria Gomes ("Ele era seu amigo" - tanto que a frase do Neves, dita naquela
altura, o comovera!), como outra poderia ser o Castel-Branco, ou o Neves, ou o Ferreirinha,
qualquer dos comparsas dos seus insípidos e arrastados dias - esses dias que haviam sido os
mesmos de Rodrigo, o tal marido (imaginário) de Teresa. Todavia, a mutilação sentia-a agora
muito agudamente, embora fosse o que fosse do seu íntimo tivesse começado já a insurgir-se
contra ela, expulsando-a como um corpo estranho. Tudo complexo e, sobretudo,
estupidamente precário. Sem sentido. Ou tê-lo-ia? Ou tê-lo-ia, André Bernardes? Porque a
verdade é que Faria Gomes tivera uma vida e uma morte à sua medida. Aparatosas, insólitas. E
nesse alarde impudente uma coisa sobressaía: ele fora amado. Alguém o tinha amado a ponto
de esse amor se afirmar na tal apoteose que o resgataria de todas as miragens e mais ainda de
todos os fracassos.

Bebeu outro gole de uísque, a lembrança do quarto de Faria Gomes foi-se apaziguando. Achou-
se então a pensar em Teresa, em Marta, em Rodrigo, nele próprio. Estaria inapelavelmente
num beco sem saída, suspenso no tempo, à espera nem sabia de quê? Se tentasse fazer reviver
Faria Gomes nas páginas de um romance (e o "reviver" dos outros seria a sua pessoalíssima
"vivência"), se tivesse unhas para isso, quem sabe, talvez essa sensação de vazio, de inutilidade
corroída, ao menos se atenuasse. Mas

174

que lucraria com isso? Cada livro o ia marginalizando e iludindo. Uma chama breve que,
quando se apaga, deixa tudo bem mais escuro. No entanto, não lhe poderia resistir

- nem ele nem nenhum dos outros: pior que a ilusão seria a fuga a essa ilusão, pior que o
estoiro desmitificador seria a recusa a expor-se a essa prova. Quem os poderia libertar - a
própria vida?

O príncipe? Estranho, mas o herói e o tema haviam deixado de o atrair. Entre o Faria Gomes
dos crepúsculos em brasa e das vadiagens noturnas, das quimeras exibidas, da mórbida teia
das tertúlias, e aquele Faria Gomes das angústias delirantes, versos recitados com ais de pavor,
o Faria Gomes da Bia suicida, havia a distância que separa o trivial do sagrado. Um deles já não
poderia existir sem o outro, mas tocar nestoutro seria como que uma heresia repugnante.
Teresa, Rodrigo. Por aí, sim. Teresa, Marta - e o que estaria dentro do tempo em que elas
tinham tido de ser aquela Teresa, e não outra, aquela Marta e não outra Mana.

Como as coisas se impregnavam de odores, céus. As traves do teto, as plantas, o copo de


uísque (só agora reparara que, por distração, o poisara sobre a belíssima edição das Líricas - se
a Dorita lhe surpreendesse o descuido, o que lhe ouviria! Para ela, a casa era para se ver, para
se mostrar, de modo nenhum para ser usada, "Ai a cinza na alcatifa, André", "terias limpo os
sapatos lá fora?", e aí vinham as chinelas da ordem), o tabaco do cachimbo, excêntrico ópio, as
encadernações nas estantes. O quarto do Faria Gomes - provavelmente nunca mais se lhe
poderia apagar o cheiro das fezes, ou poderia, sim, daí a poucas semanas outra pessoa
habitaria o apartamento, logo as coisas se deixariam tomar pelo seu novo possuidor, tal qual
nas livrarias o espaçozinho destinado às delgadas brochuras que publicara teriam depressa
substituto, ninguém mais retiraria da prateleira um dos seus voluminhos graficamente
refinados e o folhearia numa tímida unção ou num fastio de volúvel passatempo.

Teresa. Adiaria, porém, para o dia seguinte, ou talvez para o fim da semana, a visita que
pensava fazer-lhe. Antes disso, em cima da morte do amigo, seria obsceno. Como iria ela
recebê-lo? O sorriso doce-amargo do hábito, o olhar que se fixava, lento, e depois se recolhia
num lugar só dela. Aquela amargura que era também desprendimento e, se fosse preciso, se
revestia de desdém. Um estar

175

presente e estar ausente. "O senhor, outra vez?" Uma interrogação apenas, sem censura nem
vibração, um modo de dizer. Teria dito o mesmo ao Ferreirinha. E, passados tantos dias, como
se referiria ela ao marido? O seu estado de espírito, ali fechada com a filha agressiva (seria
ainda agreste?), o tempo insondável e expectante correndo, teria evoluído para o desespero ou
para a resignação? Ao evocar de novo os dias com Rodrigo ("Tenho-te medo, Teresa" "Já de
outras vezes me disseste isso. Por quê?" - "Sei que um dia me farás sofrer", os primeiros
tempos de casamento, a marcha perceptível mas inelutável para o insulamento de duas vidas
que se vão desconhecendo, talvez usasse já o pretérito imperfeito em vez do presente do
indicativo, como se falasse de alguém que não volta. Parecia-lhe ouvir frases assim: "Dantes
tínhamos coisas a dizer. Agora, não. Faz falta". Ou então o oposto, como diria Marta: "Ele
esteve sempre dentro de mim, eu sabia de todas as vezes o que ele iria dizer, o que ele iria
pensar". Esteve, reparem, eis à mudança do tempo verbal. Parecialhe ouvir aquele súbito
ressalto da voz, a expressão clareando-se a um sol que se abrira dentro dela: "Sabe, a Cecília
tem-me feito muita companhia. Quase não sai de casa. Ficamos a conversar, ou em silêncio, e
já por duas ocasiões ela me chamou Teresa em vez de mãe. Foi mesmo bom, sensibilizou-me
tanto. Quando pego no diário dela, já o releio doutra maneira. Quer ver?" - "Ver o quê?" "Mais
umas páginas, se não for maçada." Os passos expeditos mas ritmados, a ir ao quarto dos
esconderijos. "Quer ver?" E André a correr as folhas em diagonal, até uma frase o prender.

"Hoje não se deu palavra nesta casa ontem foi um sermão e pêras que eu era conhecida em
todo o liceu que a empregada da turma até me chamara 'prenda' e quando na aula de história
me vieram dizer que andavam a caçar informações e a Catarina tinha dito o pior possível é
mesmo uma cabra eu fiquei aparentemente nas calmas mas pus-me à espreita no recreio para
lhe arrancar os cabelos se a apanhasse a jeito. Desisti disso porque me apercebi que estava
com mau hálito. Em que a minha mãe se mete a culpa é toda dela, o pai fica trombudo é
mesmo de a gente sair pela porta fora. É engraçado quando me ponho mal disposta logo me
aparece o mau hálito não é das gengivas não acredito e estou sempre a pensar nisso quando
estou
176 - - )

com os rapazes e nem sei se o João deu por isso à tarde na ida para Monsanto eu levava os
sapatos amarelos e chamei-lhe Dostoiévski. Saí do carro a chuva apanhou-me quando me pus a
correr por entre as acácias e corremos corremos a terra vermelha pôs-me os sapatos da
mesma cor as pessoas surgiam dos silvados como se fugissem à polícia oh que piada faziam dó.
Mais chuva vem para trás Ceei és mesmo doida e eu não vinha até que acabei por regressar e
me aninchei nos braços dele. Resolvemos jantar juntos telefonei para casa a dizer que a
Deolinda precisava de estudar comigo que os pais dela me tinham convidado para jantar ai se
eles desconfiam. Fizemos nós o jantar bem bom alheiras de Chaves vinho branco compota
parecia um banquete. Ele tem um certo jeito para a cozinha mas eu não estive à vontade estou
sempre com medo de não me portar bem. Voltamos para a sala ele acendeu o cachimbo destes
revirados como dos marinheiros holandeses fica-lhe mesmo bem, eu o cigarro. Os discos. Às
tantas fechei os olhos e ele veio-me buscar e dançamos e perguntou-me por que nunca me
beijas? Beijo sim às vezes. Não beijas não. Fugi-lhe sempre com a cara sei que não tenho nada
a esperar dele ele casará com a outra por que estou então com ele onde irei buscar coragem
para não o ver? Estás sempre na defensiva Ceei. E estou é uma vergonha estrago a vida toda
estragamos tudo ficamos todos tão zangados uns com os outros tão tristes como o pai e a mãe
ficam às vezes tão tristes para que há de ser assim?"

Tudo na cabeça dele, dia a dia confundindo a realidade com a invenção. Talvez Cecília não
tivesse escrito nada de parecido embora fosse de crer que sim. Talvez Tereza nem lhe falasse da
filha, muito provavelmente o assunto ficara arrumado na vez anterior, talvez lhe falasse antes
dos pais de Rodrigo, das alamedas de gerânios, do canteiro de dálias em redor da casa que os
pinheiros cerrados escondiam de quem passasse no caminho, a mãe a ressuscitar um Rodrigo
da infância, bisonho, dócil, decerto meigo, o seu Rodrigo, o pai no banco de pedra ao fundo da
cerca, onde havia uma arrecadação para os toros de madeira a queimar no inverno, o pai
isolado, a juba branca a destoar da mirada baça, o pai talvez saudoso da cidade, de qualquer
modo saudoso das pessoas, "Este verão os malditos derreteram as matas, o fogo quase nos
chegou à porta" (a mãe a queixar-se, sempre num jeito de

177

acusação), "Não param, estes raios" (a motoreta a estrepitar ao longe, na estrada), "Rodrigo é
um bom filho, para que quer o senhor saber?", tudo inútil, Rodrigo entre uma mãe voraz e um
curso de vida cinzento, é inútil perguntar aos outros o que, dentro de nós, já tem uma
expressão, um nexo, uma biografia. E de todas as vezes que ele insistisse, Teresa diria: "Para
que lhe serve o que estou a contar ou para que me serve a mim?" - "Para nada, isto é, serve
para ouvi-la" - "E para que serve o senhor ouvir-me?", réplica para um lado, réplica para o
outro, tudo assim desoladoramente supérfluo e idiota, até que, por último, ela o despediria
com uma frase que era uma porta que se fechava: "Estou cansada". Quando as pessoas estão
fartas, nada mais há a dizer e por vezes nada mais há a viver. Teresa estava cansada. Ele, André,
estava cansado também.
178

Quem ainda se lembrar, poderá dizer que o dia 25 de novembro de 1965 foi uma data bem
recheada de acontecimentos, o mais falado dos quais terá sido, sem dúvida, o novo confronto
dos operários na margem sul do Tejo com polícia e a guarda, os tiros, os mortos (corriam as
mais discordes versões sobre o seu número) e tudo o que se seguiu. Mortos, aliás, já houvera
anteriormente e, quanto a tiros, constava que, mesmo no coração de Lisboa, na área do
Chiado, tinham perseguido manifestantes oposicionistas pelas ruas que desciam até ao Rossio
e que pelo menos dois deles estavam hospitalizados.

Os jornais, porém-, tinham de optar entre o silêncio, que era, afinal, uma forma inequívoca e
convencionada de protesto, e a notícia manipulada, com referências a "arruaceiros",
"provocadores da via pública", coisas assim

- sendo o silêncio, ou o comentário sinuoso, para ler nas entrelinhas e comentar de café em
café, que a quase totalidade da imprensa preferia.

Por tudo isso, o que os jornais realçavam era o aparente epílogo do "mistério Abrantes" (as
designações já sabemos que variavam, embora todas apontando à ambiguidade, até porque
também nesse particular a censura punha recato e prudência), com o aparecimento do
cadáver.

Do cadáver, não - de dois cadáveres. É que, por malas-artes, no mesmo dia outro homem fora
retirado das ludras águas do Tejo, o que, desde logo, se prestava a conjecturas e confusões,
pois os leitores às vezes bastam-se com um título, um subtítulo ou pouco mais, julgando poder
concluir o que um vizinho de tertúlia desmentirá, dizendo que se trata precisamente do
contrário. Quando se armam estas discussões, o tira-teimas de uma leitura integral dá com
frequência grandes surpresas, até porque o título pode não ter uma relação muito ajustada ao

179

recheio, pelo simples mas decisivo motivo de que a lida jornalística decorre sob um clima de
catástrofe crónica, tudo sobre a hora, tudo género mão estendida ao desvariado que se vai
atirar para o asfalto.

Quanto ao "segundo" cadáver (digamos assim, por comodidade de narrativa), o Correio da


Tarde, por exemplo, que desde o início se alheara um tanto do folhetim Rodrigo Abrantes,
talvez por não lhe ser fácil competir com os dinamismos d'A Tribuna, titulava-o deste modo:
"Caiu ao Tejo no Cais das Colunas", e por debaixo-. "Homens-rãs recuperam cadáver de jovem
sem identificação". Depois a notícia: "Ao fim da manhã de hoje ainda não tinha sido
identificado o corpo do pescador que, ontem à tarde, se afogou no Tejo, junto ao Cais das
Colunas, no Terreiro do Paço.

A vítima, que aparenta cerca de vinte e cinco anos, encontrava-se a pescar quando,
inadvertidamente, caiu à água. Um pescador que se encontrava numa pequena embarcação,
ali próximo, ainda tentou salvá-lo, mas o corpo desapareceu, vindo a ser recuperado uma hora
depois por mergulhadores dos Sapadores Bombeiros.

O cadáver foi remetido para o Instituto de Medicina Legal, não tendo até o momento aparecido
quem quer que fosse que o identificasse. Levanta-se entretanto a hipótese de as autoridades
recorrerem às impressões digitais para posterior identificação, medida essa ainda não
tomada".

A notícia sobre Rodrigo Abrantes era bem diferente, conquanto a diferença não obstasse a uma
primeira dedução: há muita gente que aparece e desaparece no Tejo, mais do que a maioria
das pessoas poderá imaginar. Olhando-o assim, majestoso, espraiado, volúvel, no ir e vir dos
barcos ladinos ou na imobilidade indiferente dos transatlânticos, associamo-lo às terras donde
vem, aos mares que lhe encresparão as águas de súbito empinadas de receios, tudo isso
frémito da distância ou presságio de odisseias, associamo-lo ao instável bulício das suas
margens, vidas quase em pânico, mas raramente aos corpos que ele recolhe ou despeja
durante os doze meses do ano.

Um pescador descuidado caiu ao Tejo, morreu. Uma banalidade sem lances por aclarar. Mas
Rodrigo? O seu cadáver, finalmente, fora localizado. Porém, um cadáver, tanto mais se o estado
em que o encontraram dá que pensar, não explica coisa nenhuma, pois não é pondo os olhos
nele que se fica a saber as razões que levam um

180

homem de vida arrumada, emprego invejável, a ser devolvido dias depois pelas águas, pronto a
ser enterrado numa cova. Para mais (repare-se bem), quando a sua identificação não é de todo
peremptória, ao vermo-lo desfigurado por dragas, hélices ou outras engrenagens das
embarcações do rio.
No entanto, um cadáver, esteja ele bem ou mal parecido, tenha sido golfado pelo mar ou
descoberto numas estevas, é uma coisa concreta, que, de qualquer modo, impõe um remate às
nossas desmandadas lucubrações. O homem morreu, acabou-se. Os motivos, se os houve fora
dos cursos naturais, ficam com a família, é dever desta tentar averiguá-los. Quanto à
curiosidade pública, que tem os seus fisiológicos limites, logo se mostra impaciente por voltar a
página. Sobretudo se, em simultaneidade, é solicitada por outras atrações. Como pela tal
confrontação dos operários com as forças policiais, o que não é de todos os dias, nem sequer
de todos os anos - já que há medidas preventivas que justificam a raridade, pelo menos
daquela maneira tão declarada, quase em termos do morrer ou do viver. Ajuntamentos perto
das fábricas, brados propagando-se como semente à solta, o medo e a ira no espanto da
coragem - depois o silêncio, apenas o soturno ressoar dos passos no empedrado, e de novo o
clamor, mais pressentido que ouvido, os tiros, os mortos. Quantos? Em cada boca um balanço
diverso. Três, trinta, trezentos? O cálculo, assim tão diferenciado, tinha que ver com o
desespero, com a fúria desoprimida ou ainda com o desencanto. Seja como for, três, trinta,
trezentos, o cadáver de Rodrigo estava a mais em tudo isso, o seu estranho caso já abusara da
expectativa alheia. Rodrigo, esse tal Rodrigo, apagava-se do interesse dos vivos.

De resto, o relatório da Polícia Marítima, distribuído à imprensa no mesmo dia, contribuía para
que o assunto fosse arquivado à face da lei e com o aplauso de quem, ainda na véspera,
pudesse ter manifestado preocupações sobre o destino de Rodrigo dos Santos Abrantes. Havia,
entretanto, outras coisas. Não apenas a greve, os tumultos, o mal-estar social. Havia o
quotidiano. O café, as miudezas domésticas, o Sporting com uma crise de goleadores. Havia o
emprego precário, a conta do merceeiro, o par de sapatos a precisar de reforma, aquela
velhota das vizinhanças que fora assaltada, em pleno dia, por um gatuno que se apresentara
como agente de seguros. Havia o

181

automóvel que, pela madrugada, se estampara contra os semáforos - todo o bairro ouvira o
estrondo. Havia, enfim, aquele horrível caso de um homem que fora visto, com ares furtivos,
no patamar de um edifício de escritórios e que, perseguido pelo porteiro (um cão de guarda
dado a ferocidades, por isso bem gratificado), acabara por desatar aos tiros, o medo e só o
medo a puxar pelo gatilho, ferindo uma criança que ia a passar na rua correndo no seu triciclo.
Logo se soube que o homem, ainda um rapazelho, viera das Áfricas, estava sem trabalho havia
uns meses, que a pistola era mesmo uma pistola de guerra e a sua ronda pelo prédio tivera o
objetivo de deitar mão ao que estivesse a jeito.

Eis a transcrição fiel do relatório:


"1. No dia 17 de novembro de 1965, pelas dezoito horas e trinta minutos, navegava do Barreiro
para Lisboa o barco Alentejo da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Ao aproximar-
se da Estação do Sul e Sueste, rio Terreiro do Paço, o passageiro Sr. Artur Dias avisou o revisor
Sr. José Araújo Beloto de que lhe parecera ter visto, momentos antes, um homem a debater-se
com as ondas.

2. O referido revisor comunicou o caso ao marinheiro António Vieira Reis, o qual, ao contrário
do que devia, não participou prontamente a ocorrência ao mestre do barco, o que só fez
quando o Alentejo estava prestes a atracar.

3. Como, entretanto, havia decorrido algum tempo, não se procedeu às pesquisas para
encontrar o homem, tendo-se considerado inúteis quaisquer tentativas nesse sentido, até
pelo fato de a visibilidade ser precária.

4. Numa busca passada ao barco foram encontrados objetos vários: uma malinha de senhora,
sem nada dentro, talvez por ter sido roubada e esvaziada do seu conteúdo; uma gabardina de
homem, de cor bege, com um bilhete de ida e volta para o Barreiro num dos bolsos;
um porta-moedas com uma pequena quantia, e um chapéu de homem, já muito usado, tendo
na dobra interior duas iniciais pouco nítidas, sobretudo a segunda delas, mas que se admitem
ser um R ou um B, a primeira, e um M ou um N a outra.

5. A dita gabardina fora entregue ao mestre do barco por um passageiro que a achara, antes
mesmo de se ter piocedido às referidas buscas.

182

6. Pelas averiguações a que a Polícia Marítima procedeu foram reconstituídos os


seguintes fatos:

a) O marinheiro António Vieira Reis, ao ser prevenido pelo revisor do que sucedera, dirigiu-se à
popa da embarcação e, não observando vestígios do náufrago, resolveu não comunicar
o caso ao mestre do barco, por julgar tratar-se de um falso alarme, como é frequente
acontecer.
b) No dia 22 do mesmo mês de novembro apareceu na praia da Cruz Quebrada o cadáver de
um indivíduo cuja identificação, por apresentar extensas contusões e lacerações em várias
partes do corpo, inclusive no rosto e nas mãos, se tornou difícil e até duvidosa.

c) A Polícia Judiciária, chamada a inteirar-se do caso, presumiu tratar-se de um certo indivíduo


que, dias antes, desaparecera de casa. Tal presunção veio a ser apoiada pelos familiares e
amigos do desaparecido, que julgaram tratar-se do Sr. Rodrigo dos Santos Abrantes, de
quarenta e três anos de idade, empregado de escritório numa empresa de eletrodomésticos,
filho de Joaquim dos Santos Reis Abrantes e de Cândida Pereira dos Santos, natural de Lisboa
e residente na Avenida Tristão da Cunha, 28, 6.° distrito.

7. Entretanto, apresentaram-se algumas pessoas a afirmar terem visto o Rodrigo dos


Santos Abrantes, sempre em condições que haviam dificultado a aproximação com o suposto
indivíduo, em vias de entrar para o metropolitano e em estações de caminho de ferro,
já depois do aparecimento do dito cadáver. Igualmente, após a mesma data, os familiares
de Rodrigo dos Santos Abrantes continuaram a receber telefonemas suspeitos, que, pelo
seu teor, admitem representarem um fato perturbante.

8. A Polícia Marítima, em coordenação com a Polícia Judiciária, interrogou os indivíduos que


supõem ter visto o Rodrigo dos Santos Abrantes, e desses houve dois que mantiveram as suas
declarações, enquanto os restantes acabaram por confessar dúvidas relativamente aos
seus anteriores depoimentos.

9. Os elementos médico-legais da autópsia levam a concluir que o cadáver encontrado, apesar


das mutilações verificadas, é do indivíduo em questão e que a morte se deu por afogamento."
<

183

Após algumas hesitações do diretor da Polícia Judiciária, que não concordara com a
circunstanciada mas insegura redação do documento (havia dúvidas a mais, gaita, seria bem
melhor não as badalar), o relatório acabou por ser integralmente distribuído à imprensa, que o
publicou na totalidade ou em apenas breves extratos. Pouco havia a acrescentar, o assunto
chegara ao termo.

N'A Tribuna, porém, as coisas passaram-se de um modo menos rotineiro. O chefe chamou o
repórter, estendeu-lhe o relatório num misto de descaso e ironia, dizendo:
-Aí tens o teu cadáver. O do tipo da gabardina.

-Já sabia.

- Como soubeste?

-Andei por lá. - O repórter enfrentou a agastada perplexidade do outro, enquanto passava o
indicador direito pela asa do nariz, e depois a cabeça pôs-se a oscilar, que era mais um sinal de
desafio temeroso de exceder-se.

- Publico?

- Publicas o quê?

- O relatório.

A resposta não poderia tardar, embora o chefe sentisse confusamente que na curta frase do
Ferreirinha houvera qualquer espécie de artimanha. Foi ganhando tempo:

- Tanto se me dá.

- O senhor é quem manda.

Também aquele já se armava em esperto. Teria de fazer de conta que não lhe percebera a
insolência:

-Aproveita daí o mais importante. Espremido, não chega a ser grande coisa. Mas não te ponhas
com fantasias. Um nariz-de-cera de meia dúzia de linhas, e basta. Sem boneco. O teu acabou. -
Emaranhou-se na selva de papéis que era a sua secretária, azedando a expressão de instante
para instante. Estava-se mesmo a ver que moía numa ideia. com efeito, sondando o repórter
por de cima dos óculos de meia-lua, interpelou-o com rispidez: - Que querias dizer com essa de
que "andaste por lá"?

- Nada de especial. Continuei a ouvir pessoas. A polícia, a família, empregados da Novilectra.


Todos já sabiam que aparecera um cadáver. Tal e qual como diz aí, não é verdade?

- E depois? Estás a gozar-me.

- O senhor é que falou no meu "gozo".

- E depois, vá, não me chateies. Desembucha.

184

- Não há "depois". Vão enterrar o homem, acabou-se.

O chefe, porém, não estava ainda de contas saldadas com a conversa.

-E és tu próprio que concordas em que o assunto está arrumado?

-Não é também o que o senhor pensa? Já me deu ordens nesse sentido.

- Eu não dou ordens, Ferreira. Ordens, não, fica sabendo, fiquem todos sabendo. Procuro
confrontar o que eu penso com as opiniões dos outros. Deixa-te tu de fitas e diz-me se os
outros jornais vão largar o caso ou dar-lhe guita.

O repórter levou uma pastilha à boca, o olhar acuado inventariou a redação, fingiu que não deu
pela maliciosa expectativa do Alcindo.
- Não sei o que se passa na casa dos outros.

-E na tua? . • • .

- Que quer dizer com isso?

- Na tua, pois; aqui, no jornal.

- O senhor já me deu as suas instruções.

Na redação havia gente deveras surpresa. O diálogo não era vulgar, sobretudo tratando-se do
Ferreirinha e mais ainda sendo o chefe o opositor. Talvez o chefe precisasse de ser coerente
com o atestado de democraticidade convivencial passado a si próprio, talvez aquela furtiva
referência à Novilectra (que fora esquecida) de súbito reivindicasse o seu peso real.

-Está bem, mas nada se perde em ouvires de novo as pessoas. Notícia sem alarde, percebes?,
conquanto deixando uma porta aberta. O relatório fala dos tais tipos que julgaram ver esse
Abrantes à entrada do metro.

- O costume nestes casos.

- Ouve lá: já reparaste que estás a fazer o meu papel? Ferreirinha procurou logo a reação do
Alcindo, que

não devia apreciar de modo nenhum aquela benignidade do chefe (ainda ambos não previam
quanto iriam assanharse na disputa jornalística dos despojos do Faria Gomes), e reforçou a
ousadia:

- Por acaso reparei.


-Vai-te lixar. Publica o relatório a seco, não quero mais fitas.

-OK.

E foi talvez por isso que A Tribuna foi o jornal mais parcimonioso nos comentários ao relatório
da Polícia

185

Marítima. No entanto, muitas pessoas o leram como quem lê o episódio final de uma série
folhetinesca que, mesmo de interesse afrouxado de lance para lance, já não se resiste a
conhecer-lhe o desfecho.

Entre essas pessoas, André Bernardes. A notícia, porém, lida primeiro com desatenção e depois
aplicadamente, não o fizera vibrar. Como se já dela tivesse conhecimento ou como se, de
súbito, aquele fato não lhe justificasse qualquer emoção - quem era, afinal, Rodrigo? Um
estranho. Talvez a sua receptividade estivesse já fatigada, pelo menos por algum tempo (essas
oscilações eram nele vulgares e até por vezes correspondiam ao recuo que precede o salto, isto
é, o empenhamento decisivo), ou talvez reagisse visceralmente à ideia de que outro assunto,
fosse ele qual fosse, viesse competir com a morte de Faria Gomes - não, não podia aceitar a
evidência de um Faria Gomes morto, tudo bruscamente se fazia precário e restrito, trivial e
absurdo. O que de terrível ele fora encontrar no quarto de Faria Gomes passara-se apenas na
sua cabeça. Um melodrama desmedido, uma alucinação, uma alegoria decadente. Não podia
ser. (É verdade, André: terás de preparar-te para os infalíveis depoimentos fúnebres,
despejados num falso ou verdadeiro improviso - atenção ao que irás dizer, terás de aceitar
numa sensata "medida" -, até admira que o telefone não tenha começado já a chinfrinar. E
oxalá não te misturem na também infalível refrega entre o Alcindo e o Ferreirinha, ambos
amigos do Faria Gomes, ambos, pois, igualmente com direito à parte de leão nas exéquias
literárias d'A Tribuna - não tardarás a saber que o melindre se saldou por um inesperado
triunfo do Ferreirinha, cuja reportagem impressiva das últimas horas do Faria Gomes - "Isto até
parece cinema, ó Ferreira", palavras do chefe, de extasiado apreço - pôs a um canto a prosa
reflexiva e solene do Alcindo, exilada para o caderno cultural, leprosário dos chatos.)

Voltando ao relatório. Parecia evidente que a polícia, atiçada pelo aranzel da imprensa sobre o
homem desaparecido, precisara de se desunhar em justificações, mas exprimira-se tão
desastradamente que as nebulosidades se tinham carregado. E um pormenor havia que, entre
tudo, mais se desajustava ao que André Bernardes sabia dos protagonistas: Rodrigo fizera a
travessia do Tejo num barco das carreiras do Barreiro e não das carreiras de Cacilhas,
186

que são trajetos e direções bem distintos. Não batia certo. Esse Abrantes (isto é, o marido de
Teresa) teria atravessado o rio dezenas de vezes durante os dias de deambulação fora de casa
(que espécie de deambulação? e por quê?), mas sempre num barco cacilheiro e nunca para
qualquer outro destino. O que entre eles perdurava de fascínio e metáfora (não deveria ter
desleixado a segunda visita a Teresa e agora já seria tarde para a fazer) sempre se havia
passado nas viagens Lisboa-Cacilhas-Lisboa. Se, como tudo levava a crer, Rodrigo atravessara o
rio em obediência ao rito para ambos tão significativo, não iria tomar um barco ao acaso e
sobretudo um barco da Estação Sul e Sueste. A não ser que. A não ser que, de uma dessas
vezes, ele tivesse sentido a necessidade de alterar os seus hábitos (como presumivelmente os
alterara em tudo o que fora até aí rotina - de outro modo não seria fácil explicar a ausência no
emprego, a ruptura com a família), ou de se confrontar com essa alteração. Ou, enfim, que se
tivesse dado um acontecimento fortuito, quem sabe se dramático, a desviá-lo da viagem usual,
atraindo-o a uma cilada. Cilada? Lá estava ele com as suas efabulações. Um "desvio", sim, teria
havido e nele deveria buscar-se a chave do que viera a suceder. Mas que sucedera, afinal? De
concreto, um afogamento. Esse era o dado incontestável. Porém, talvez não tanto como
poderia parecer, se o tivéssemos de relacionar apenas com Rodrigo. O cadáver, aliás, estava
mutilado, o relatório, quanto a isso, era um modelo de embaraçada superficialidade. Houvera
fatos concomitantes

- os tumultos na margem sul. No Barreiro, atenção. Rodrigo fizera a travessia do Tejo, pelo
menos uma delas, no tal barco chamado Alentejo, das carreiras do Barreiro. Um tiro, depois
outro ou outros, fugas e perseguições à beira do rio - falara-se de tudo isso, o Alcindo recolhera
testemunhos diretos; um tiro, um corpo que cai às águas, uma hélice que o estropia
justamente no sítio onde a bala penetrara, o esforço inútil de se manter à superfície, o
afogamento. Todavia, o relatório referia-se a um homem a "debater-se nas ondas" momentos
antes de o barco atracar no Terreiro do Paço, o que desde logo desmentia aquela hipótese. O
Barreiro ficava a milhas do Terreiro do Paço. Suicídio, então? Crime? Aparentemente nada
justificava o suicídio, a vida normalíssima de Rodrigo Abrantes, sem tormentas nem
inseguranças, não permitia que se progredisse nessa direção. Mas os gestos extremos
precisarão que

187

lhes encontremos fundamentos? O fracasso e o desespero têm uma aferição pessoalíssima,


recusam lógicas e pautas convencionadas - André sabia-o. Cada homem é único, uma
singularidade irrepetível. Sabia-o André, sabia-o Marta. De uma carta de Marta:

"Quando nos conhecemos, já falavas em Volúpia do martírio, negrume de culpa' e coisas assim.
Tudo sombras, invenções, que são o pão da tua vida, e por isso os respeito. E falavas também
em 'renúncia repousante'. Punhas os olhos ao alto, havia em ti uma pueril beatitude. (Em vez
de 'pueril', poderia dizer 'caricata', mas não te quero aborrecer - estou a ser mazinha, não
estou?) No entanto, mesmo sabendo-te um fingidor de dramas, prefiro-te como és. Seja como
for, valeu a pena este sofrimento que é amar-te. Cada vez penso mais quanto seria maravilhoso
vivermos juntos, mesmo com todos esses 'martírios' que farias desabar sobre mim enquanto
irias à procura de novos pretextos para te sentires saborosamente infeliz.

Pronto, acabei o meu sermão. E não te zangues, não vale a pena. Castiga-me, antes, com uma
palavra ilusória. Pequenina, mas onde caiba uma grande mentira. Quando vais para me dizer
certas coisas (não chegas a dizê-las, patife, tartufo!), ainda que o dia esteja cinza logo o sol se
abre dentro de mim. Quero-te".

O fracasso e o desespero recusam - etc. Então, André, que resta, além da dúvida,
perfeitamente admissível, de o homem da gabardina não ser Rodrigo? Lembra-te que tu
próprio insinuaste a Ferreirinha que o arruído público posto no caso poderia ter
consequências. A sociedade nunca descura as oportunidades, mesmo fortuitas, de estampar-
nos uma imagem e não tolera que a neguemos. Rodrigo foi sujeito, dia a dia, quase hora a
hora, a .devassas e coações perante as quais lhe teria sido impossível a indiferença. Desde a
primeira notícia que. Primeiro, a surpresa, aquilo não poderia ser com ele; depois, a gradual,
atordoadora e também deleitada assunção de uma figura que, por incómoda que fosse, o
resgatava da baça mediocridade. Tinham feito dele o "herói" que, a partir de certa altura, já
não pode desmascarar-se. E lembra-te de Teresa. Imagina-te na pele de Rodrigo ao ler as
reportagens em que o apregoavam (ou celebravam?) como uma

188

personagem secreta, aventurosa, incomum. Esse homem secreto, aventuroso, incomum, é-lhe
vedado regressar à trivialidade de obscuro funcionário da Novilectra. É-lhe vedado regressar a
uma Teresa que, porventura, sempre o desejou com as ousadias que defendem um homem de
se sentir sepultado em vida.

Não, estava a exceder-se. Tudo isso eram dramas de quem precisava de transferir para os
outros os seus malogros e as suas abortadas rebeldias. Rodrigo valia apenas como personagem
e, sendo assim, recriava-o de um modo que o excitasse - a ele, recriador. Tal como procedera
relativamente a Faria Gomes. E com tantos mais. A verdade é que ele, André Bernardes, há
anos que não publicava nada que se visse. Peçazinhas sem fôlego, risco doseado com a astúcia
do ofício, recolhas de textos soltos

- "vigarices", como ele dizia, galhofando de si próprio entre duas alentadas doses de uísque,
mas com um verruminoso sentimento de frustração. E mesmo se não o dissesse, diziam-no os
outros, sempre de faro nos sinais de decadência alheios, sob a batuta do mundano Jesus
Amaral, cônsul encartado dos modismos Rive Gaúche, donde a maioria das vezes partia a
palavra de ordem para a execução de qualquer pobre a quem, episodicamente, se quebrasse o
fôlego. André tinha uma ideia (que no seu vocabulário era uma "referência"), entusiasmava-se
com aquilo, durante semanas magicava num plano minucioso de trabalho, o livro parecia
tomar corpo na sua cabeça (enredo, figurantes, situações - e até achados estilísticos), mas, ao
chegar o momento, sempre adiado, de enfrentar o deserto branco do papel, não saía uma
linha. Pior ainda, às vezes: o papel maculava-se de uma prosa aguada, sem tortura, metida ali à
força, com a artificialidade dos fazedores de estórias. E ele fora sempre um escritor que punha
as entranhas nas palavras, não escrevia só por escrever - Faria Gomes, aliás, bem o
reconhecera, desde o primeiro dia. (Teria sido Faria Gomes o tal "amigo" que o Neves, na hora
da verdade, não deixara de lhe realçar? Morto Faria Gomes, quem lhe restava? Onde estavam
os seus amigos, os autênticos? Que raio de vida era a sua?) Agora, já não havia entranhas. Só
palavras. Ocas, chatas, de puro fabrico. Mais uns tempos de ruminação, mais umas tantas
noites maldormidas, e o projeto surgia-lhe, de súbito, frouxo e mirrado. Em suma, estava
acabado. Não, Mana, termina de vez com essa mitologia. Eu não presto,

189

tenho de to repetir. Tu é que me vês como eu desejaria ser, não como sou. A tua carta, uma
delas, ao acaso:

"Dois dias que nunca mais esquecerei, e tampouco me deste, afinal. Estão inteiramente vivos
dentro de mim. Tentar descrevê-los seria desfigurá-los. Tu, sim, André, tu és um feiticeiro da
comunicabilidade, em tudo pões a mágoa funda e a emoção, tu, sim, poderias 'contar-me' o
que realmente se passou entre nós. Parece-me que não estou contigo já há meses e apenas
decorreram curtos dias. Fico com uma vontade louca de galgar quilómetros e te ver. Faz hoje
oito dias (ou oito meses? ou oito anos?), estava uma noite como esta, havia o mar e os
pinheiros agachados ao vento. Noite fria, mas nenhum de nós deu por isso. Sabes, André: foste
o que de melhor me aconteceu na vida. E em cada palavra dos teus livros me sinto justificada
por te amar".

(queria iludi-lo? Mas ele não era para ilusões. Nos últimos tempos, até o irritava olhar para a
lombada vermelha dos seus velhos livros, com letras a oiro, para decorar as estantes dos patos-
bravos. Eram como um álbum de retratos da juventude que se mostra quando a decrepitude
bate à porta. Custava-lhe ainda mais folheá-los

- relê-los, então, nem pensar. Porém, sabia, ou julgava saber, que não estava no fim. Tinha calo,
argúcia, instinto e, sobretudo, aquela necessidade bem sofrida de pôr cá fora o que sobrara ou
reverdecera no seu filão. Só lhe faltava um assunto que o empolgasse de um modo irresistível.
As vezes, julgava que a chama ia daí a nada reavivar-se, dentro dele levantava-se uma alterosa
e faminta vaga, uma vontade bravia, ei-lo a aprontar-se para receber esse mágico visitante das
horas insuspeitadas - as folhas de papel à sua frente, a lapiseira preferida, a máquina de
escrever à espera de entrar em cena, que correspondia sempre à fase do apuro, a do texto
polido vírgula a vírgula, embora, quando clarificado naquela letra mecânica, de súbito lhe
parecesse todo ele a pedir reformulação. Chegado a meia página, a chama delia-se, a vaga
desfalecia. Aquelas poucas linhas apareciam-lhe, num repente, sob a sua cruel pequenez uma
lástima de prosa, e sem nada dentro. No entanto, tudo seria, ou poderia ser, uma questão de
ímpeto, de reencontro irresistível com o que nele persistia ávido de se exprimir. E eis que se
renovava a impaciência, o apelo sem

voz e sem objeto, a irritabilidade. Repetiam-se as vadiagens pelas ruas e pelos cafés, aquelas
ausências ("Nem é bom pensar onde tu ias" - a Dorita a comentar a sua expressão absorta) de
quem traz o pensamento algures, num lugar que só ele poderia identificar mas cuja
identificação, sendo escondida ou ludibriada. As pessoas não poderiam calcular que dor era
aquela. Às vezes, ah, quão perto lhe parecia estar do alvo. Quão perto do instante do combate.
E então, curiosamente, sentia-se, ou julgava sentir-se, como os pugilistas. Era assim: os dedos
das mãos pediam exercício, pediam uso, até pediam violência. E punha-se a esticá-los e a flecti-
los, ou a bater com a mão fechada na concavidade da outra mão, como se estivesse nas
vésperas de subir ao ring para uma disputa decisiva, contra um último e impiedoso adversário.
Corria à mesa de trabalho, afastava os papéis intrusos - perante si apenas a tal dúzia de folhas
impecáveis que queriam ser violadas. Vamos a isto, André. Insiste, André. Chora de raiva, se for
preciso. Escreve uma vez, outra, mais outra, emenda, rasga, destrói, recomeça - não te deixes
vencer. Isto é um combate, André, o teu combate. Sobe ao ring para te medires com o mais
duro dos adversários - tu próprio, desencantado e incrédulo. Aguenta os murros que te cegam
os olhos, aguenta os urros da multidão, bebe o sangue que te espirrar do rosto, mas não
desistas. Estás vivo, Rodrigo, e não morto. (Rodrigo? Mas era de mim, André, de quem falava -
que estará a passar-se comigo? Terei inventado Rodrigo de uma ponta a outra da nebulosa que
ferve na minha cabeça?)

André Bernardes tinha uma das mãos sobre a testa viscosa de suor, a outra fazia rodar o copo
de uísque - de súbito lembrou-se que muitas vezes os fotógrafos o tinham apanhado nessa
postura, acabariam por julgá-lo um bebedor. Apetecia-lhe sair. Desanuviar, deambular.
Deambular - não fora essa a palavra que lhe acudira ao imaginar-se um Rodrigo fruindo por
essa cidade, sem horários nem programas, um sentimento de inesperada libertação? Ir por aí,
sem rumo. Nada se sabia do funeral do Faria Gomes, ao que constava havia problemas com as
autoridades, mas o Ferreirinha prometera avisá-lo com tempo e ele, por sua vez, alertaria o
Castel-Branco. (Este, ao telefone: "Ouve lá, a que horas é essa chatice do enterro? Podíamos ir
juntos" - "Está bem, dar-te-ei uma apitadela quando souber". Em se tratando dos

191

tudo era "chatice". E, se calhar, o Castel-Branco tinha razão.)

Ir por aí, reconstituir os passos de Rodrigo. No entanto, ainda o elevador não chegara ao rés-
do-chão e já '.-André Bernardes mudara de ideias. Pôs-se no passeio" da rua olhando
impaciente carros que subiam e desciam. Quando passou o primeiro táxi livre, fez-lhe sinal,
um sinal impetuoso. Disse para o condutor:

- Avenida Tristão da Cunha, número 28.

O endereço de Teresa.

192

you dispondo as pedras no tabuleiro do meu xadrez. Mas deveria fazê-lo desapaixonadamente
(a paixão viria depois, quando a teia se fosse cerrando) e reconheço que estou ainda longe de o
conseguir. Sinto-me baralhado e, pior do que isso, imbuído de preconceitos. Tudo o que penso
dos meus heróis e dos sucessos em que presumivelmente participaram deixou-se viciar pelos
meus instáveis humores.

Teresa, por exemplo. Aos poucos a vi crescer entre as minhas personagens preferidas,
obscurecendo ou minimizando hora a hora, sem quase eu dar por tal, o meu investimento
emotivo (e não apenas emotivo) nesse perturbador Faria Gomes - e já nem quero falar dos
outros. Não foi o fato de ele ter morrido que fez esfriar o meu interesse, de modo nenhum. O
contrário é que seria de esperar, tendo em conta a brutalidade melodramática do desfecho. A
competição em progressivo favor de Teresa já vinha de trás. (A propósito: no café, o Alcindo
referiu-se ao espólio literário de Faria Gomes, que podia ser importante, tão renitente fora
sempre em divulgar o que escrevia, e estávamos nos alvitres sobre a pessoa indicada para
salvar os originais dispersos, antes que o senhorio da casa procedesse a uma barreia, quando o
Castel-Branco, regressado das suas altas abulias, para onde se escapava de todas as vezes que a
conversa lhe parecia rasteira, perguntou: "De que espólio estão vocês a falar?" O Alcindo,
pressuroso e grave: "Do do Faria Gomes. Deve ter deixado muita papelada inédita". Castel-
Branco desfrisou a boquinha ríspida: "Desse? Só se forem contas do merceeiro".)

Teresa era, pois, a mais esquiva e ao mesmo tempo a mais excitante das minhas personagens.
Ela estava presente mesmo quando não tinha que estar. Por quê? Não o saberia dizer, embora
várias hipóteses me tentem: por um lado, insisto em supor que tudo o que aconteceu com
Rodrigo

193

dificilmente se poderá dissociar da personalidade daquela mulher; por outro, talvez a minha
atração (de peito aberto a confesso) derive do fato de o nosso primeiro encontro se ter
realizado em circunstâncias e sob um clima quase inverossímeis - conquanto todos saibamos
que a inverossimilhança é uma invenção literária, ou, mais especificamente, dos críticos
literários. Estou a lembrar-me que um deles (destes que arrotam grosso e usam cintas de
mulher para se rejuvenescerem nos salões elegantes), certa vez, disparou toda a sua artilharia
sobre este terrível pormenor de um dos meus desgraçados livros: a discutível verossimilhança
de uma mulher se ter servido do telefone para, cruamente, se denunciar a outra como amante
do marido. Nada mais lhe interessou analisar nas trezentas e muitas páginas da história. Aquilo
chegava. Aquilo permitia uma condenação generalizada. Isto é: anos e anos de suplício na
fogueira da inquietude, que é a mais abrasadora das inquisições, e de mortificada briga com a
dura rocha das palavras resolviam-se numa sentença breve: um telefone não é comunicante
verossímil para se confessar um adultério. Pronto, seja. Livro ao lixo.

Falava de Teresa. Esta minha segunda visita foi um malogro completo, vexatório. Malogro meu,
bem entendido. De começo, a sua surpresa por tê-la procurado foi acolhedora, quase a senti
reanimada e mesmo lisonjeada com a minha solicitude. (Não era solicitude, claro, mas ambos
podíamos fazer de conta que o era.) Depois, de instante para instante (ou a viragem teria sido
brusca?), vi-a transfigurada. Irónica e fria. Irónica e distante. Mais: desdenhosa. Nada disso
destoava do que eu poderia esperar de Teresa, ou antes, confirmava-o, mas, de qualquer
modo, era desconfortável, fazia apetecer estar a léguas daquela sala. Os olhos de Teresa
desviaram-se para um lugar que não existia, havia rugazinhas de desagrado aos cantos desses
olhos terrivelmente belos e líquidos (um aquário sem fundo), o polegar e o indicador de uma
das mãos foram desenhando o recorte da unha do anelar da outra mão - tudo nela se tornara
ausência, tudo nela me despedia.

Não sei que diabo teria provocado essa reação, passei cada palavra a pente fino, ainda agora
me pus a soletrar, ao retardador, o filme do nosso lamentável encontro. Sou, aos poucos,
tentado a deduzir que não houve um "motivo", que, para Teresa, os "motivos" não contam.
Naquela quase

194

desafiadora placidez, em que tudo, por dentro, parece arrumado, há uma temível necessidade
de abalo, de recusa ao viver medíocre, Rodrigo sabia-o. Por isso não regressou a casa.

Vamos projetar o filme mais uma vez ou, pelo menos, algumas sequências. Foi Cecília quem me
abriu a porta e logo chamou, como a querer desembaraçar-se do intruso:

-Mãe.
Teresa não vestia de luto. Nem sequer exibiu, ou fez por exibir a expressão adequada de viúva
recente. E, todavia, quanto emagrecera, na face terrosa havia marca súbita de anos de
amargura. Muito nela tinha mudado, embora não se pudesse dizer o quê. Sorria, porém,
aquele seu sorriso regrado, sem júbilo nem afabilidade convencional, talvez mais um hábito do
que um estado de espírito.

- Não o esperava.

-Calculo bem que sim, apesar de a senhora me ter encorajado a voltar. Lembra-se? -Lembro.

- Desculpe se de novo a importuno. -Já sabe que não me agradam desculpas.

- Mais um deslize meu, pois nada esqueci do que me disse na visita anterior.

-Não creio que tenha tido deslizes. Pelo menos, comigo. - E numa mudança de tom repentina:

- Vá entrando, por favor, dê-me um momento. Quando voltou à sala, trazia sapatos calçados,
de tacão

alto. Apercebera-lhe, aliás, uma pontinha de contrariedade por tê-la surpreendido de chinelos.

Cada um de nós foi ocupar o mesmo lugar que havia escolhido da primeira vez e essa
coincidência logo se nos evidenciou, sem que, porém, a tivéssemos comentado. Bastou uma
acentuação do sorriso. Cecília não viera para junto de nós, conquanto me tivesse parecido que
a mãe estivera tentada a chamá-la.

Eis Teresa na postura que lhe conhecia: dorso inclinado, mãos cruzadas, mas inquietas, sobre
os joelhos, o rosto suavemente expectante. Sentindo o meu embaraço, foi ela a começar:

- Tem trabalhado?
- Nem por isso, ando na fase das magicações.

-Ainda não pude comprar o seu último livro, o tal do título bonito. Não tenho tido cabeça
para...

195

-Eu sei. Deixe-me oferecer-lho um destes dias. Mas não quero que o leia por enquanto.

- Por quê? - não era uma pergunta: era um desafio.

- Suponho que não é boa altura.

Teresa ia para repontar, mas sofreou-se, os olhos no chão. E foi talvez a partir daí que tudo
mudou. De cabeça muito direita, como para enfrentar um opositor, disse:

-Veio falar-me do relatório da polícia, não é verdade?

-Não vim falar-lhe especialmente de nada. Muito menos disso. Vim visitá-la, vê-la. Saber como
estava.

-Devo então agradecer-lhe a amabilidade - a ironia vibrara-lhe nas narinas.

- Nunca fui amável, pelo menos é o que dizem.

- Mas, se veio aqui, decerto esperava que um de nós tocasse no assunto.

- Talvez.
- Então por que evita tomar a iniciativa?

-Não estou a evitar, creia. Desejava apenas que surgisse naturalmente. Isso ou qualquer outra
coisa que tivéssemos a dizer um ao outro.

Teresa pôs-se pensativa, a expressão por fim amarrotada, os dedos entrelaçaram-se.

-Tem sido tudo tão desagradável, tão chocante. E sem ninguém com quem me abrir.

-A sua filha.

-Sabe bem que não seria fácil com ela. No entanto, reconheço que Cecília tem-se esforçado,
acho até que amadureceu nestes dias. Procura de todos os modos reconfortar-me, mas está
tão traumatizada como eu, ou mais ainda, talvez. E depois tudo isto à nossa volta, as pessoas
são medonhas.

- Poderei ajudá-la?

Varou-me até ao mais fundo de mim, uma sondagem temerária, resoluta, crua.

-Quer mesmo? Duvido. Preferia que fosse franco, já sabe que aceito o género de curiosidade
que o traz aqui. Diga-me, por favor, que lhe interessa em nós?

-Está a colocar-me num pelourinho. Pedi-lhe naturalidade.

-Tem razão. - Uma pausa, o retomar daquela estranha e difusa segurança. - Aceita um café?

- Hoje não, obrigado.


- Pergunte, então.

196

-Isto não é um interrogatório, ficou assente desde o princípio.

- Está bem. Mas pergunte.

-Logo que o deseja... Por exemplo: supõe que o seu marido, durante os dias de ausência, fez,
de fato, a travessia do rio? E por que essa ausência?

- O senhor leu o relatório. Tem lá a resposta.

- O relatório não foi a senhora quem o redigiu.

- Pois não. E o relatório é uma palhaçada.

- O qualificativo não será muito pesado?

-É o que é. .

-O quê? '

- O relatório. Uma palhaçada.

- Tem razões concretas para o definir assim?

-Que entende o senhor por "razões concretas"? E por que fala em "ausências"? Quem está
ausente está vivo. -E o seu marido...
- O senhor leu os jornais. O meu marido morreu.

Uma terrível dureza na última frase. Dirigida a quem? A Rodrigo. Foi o que senti. Mas,
estranhamente, a um Rodrigo que teria de estar vivo para ser o alvo dessa ínvia recriminação.

Fico por aqui - ponho o filme de lado. Até ver. Ainda é cedo para deslocar no tabuleiro a peça
que corresponde a Teresa, tanto mais que o fascínio persiste. Tenho tempo de refletir na
sequência dos fatos, receio que as minhas ponderações (o Ferreirinha diz que sou um
"rebuscado", escolheu mal a palavra) estejam a ser influenciadas pelo que senti nesta segunda
visita. Uma coisa, porém, em nada se alterou: Rodrigo amava essa mulher, seria capaz de
morrer por ela, embora, no dia-a-dia erosivo, até se pudesse julgar que, entre eles, o amor
tivesse degenerado numa memória acusadora.

bom, voltaremos ao assunto - ou não, sabe-se lá. Recebi a prometida carta de Marta, ou
melhor, recebi uma cana de Marta acompanhando o prometido "diário" (uma designação
como qualquer outra) do namorado da irmã, o que está em Angola. É evidente que a sua
leitura me alvoroçou, sobretudo por passar ao lado do crivo da censura, mas não me deu o
safanão que esperava. Estou agora impacientemente curioso de a confrontar com algumas
crónicas saídas na imprensa (o Ferreirinha, um

197

li

tipo sem dúvida fixe, já me prometeu uma coleção de recortes) e talvez desse confronto se
dispare uma ideia mais uma de vida curta, mais uma peça do emperrado xadrez.

Comecemos pela carta, bem no estilo a que Marta não consegue fugir.

"André,

f)
Restam-me três horas de trégua e aproveito-as para te enviar as cartas do Henrique - espero
que encontres nelas um 'bom material'. Três horas de liberdade condicionada, durante as quais
talvez possa ter a ilusão de ser dona dos meus atos. Quando o comboio chegar à gare, o
comboio em que ele virá, nada mais poderei fazer, salvo suportar resignadamente a minha
sorte. É sempre assim, desde que vim para França, nesta leva de errantes há não sei quantos
séculos descrentes da sua pátria, mas a ela presos por um cordão umbilical de tirânicas
flagelações. Vejo uma locomotiva, olho-a friamente, sem o mínimo de emoção; mas se ela me
transporta para França ou me traz alguém para aqui, perco a frieza, detesto-a como nunca
detestei ninguém. Só de encará-la me vêm as lágrimas aos olhos.

Criancices, dirás tu, e assim é. Em mim habitam a criança, a mulher e creio que a velha que
virei a ser. Qual delas predomina, qual delas se faz exprimir? Estou aprendendo a fazer
perguntas sem me preocupar demasiado com as respostas. La sagesse, tu sais?

Tenho trinta e três anos, a idade de Cristo. Também em mim algo havia de acontecer. Era
preciso que a antiga Marta morresse para que outra fosse nascida, uma Marta menos insegura,
mais adulta. Assumir-me completamente é difícil, mas lá chegarei, mesmo que leve tempo.

Tudo isto, afinal, para te dizer que pressinto que não nos voltaremos a ver. E sei também que
não levantarás um dedo para contrariar esse presságio. As circunstâncias, ainda por cima, estão
do teu lado. Pensas que não foste talhado para a felicidade, gostas de sofrer. Ó sofrimento,
para ti, é uma droga voluptuosa, e a renúncia um bem desejado. Desconfio que tiveste uma
educação religiosa. Ainda se tu percebesses que o privilégio não é viver, mas amar - li isto a
propósito de um filme. A tua coragem, contudo, não chega aí, sabemo-lo ambos muito bem.

198

Digo-te isto serenamente, André. Sem a mínima ênfase recriminativa. E sabes quem me
convenceu desta evidência que nunca mais te verei? Não foi a razão, foi o meu subconsciente.
É que sonho muito contigo e, nos meus sonhos, acabas sempre por partir, como a água na
areia. À força de assistir ao mesmo desfecho, comecei a habituar-me à ideia. Chegará o dia em
que" pensarei em ti como se olha uma estrela, lá no alto, bem longe. Brilhante e solitária.
Como tu. E rire"i de mim própria, o riso que tive daquela vez em que estendi a mão para tocá-
la. Era então criança, uma espécie de potro alado nas dunas de Armona. As crianças são
ingénuas e ambiciosas, não conhecem ainda as regras do jogo dos adultos. O sentimento de
frustração que me doía desapareceu. Agora penso em ti com uma ternura apaziguada, que,
embora faminta, já não me tortura. Tenho a impressão de que saí do tempo: o passado, o
presente e o futuro são um todo homogéneo, sem compartimentações. Foram os humanos,
pobres seres limitados, que inventaram as horas, os relógios e as datas, visto que o passado, o
presente e o futuro não existem. O que existe é o tempo, na sua irreparável infinitude. Por
exemplo: quando sonho contigo, tens a idade que tens e eu trinta e três anos. E ambos nos
encontramos numa praia, talvez a praia que bordeje uma ilha, talvez uma ilha solitária, talvez
Armona. Nas ilhas solitárias o tempo não passa. Por isso deixei de me preocupar se a distância
e os fatos nos separam. Gosto de ti e basta-me, já o mesmo não acontecerá contigo, mas não

Estou a ser enfadonha, o que também perdeu importância. Pode, aliás, dar-se o caso de que
nem sequer esta carta seja lida, que caias logo sobre o diário do Henrique e não penses em
mais nada. Deixá-lo. Há mensagens que nunca chegaram ao seu destino. Quando panes para
Israel?

Marta.

P.S. - Quantas vezes se deu já esta coincidência? Eu a fechar esta carta, dois dias depois de
escrita, e a receber a tua, que me encontrou engripada, nariz pingão, olhos de bêbeda. Agora é
noite, estou sentada perto da lareira, o calor do carvão aquece-me o corpo e tinge-me o papel
de ondas vermelhas. É agradáve

199

Tudo se vai repetindo, André: sol, nuvens, calor, frio, chuva. Flores que se põem nas jarras e se
deitam fora depois de murchas. Pessoas que entram _. _agitam, por momentos, esta
ambiência

, que é bem interessante que tudo que nos rodeia, seria de uma aridez insuportável, É
dentro dele que tu moras. Dia a dia,

"recordação a recordação. Tu foste o que de melhor e mais destrutivo me aconteceu na vida -


quantas vezes to disse já? quantas vezes to repetirei? Queria ver-te sempre com o sorriso
aberto dos instantes (tão raros, tão fugazes) em que reconheceste que eu também te poderia
dar alguma coisa de perdurável. Não devia escrever-te, eu sei, sobretudo estas coisas, mas não
tenho emenda, diabos me levem. As palavras com que encheste (linhas muito espaçadas) folha
e meia de carta dizem-me muito pouco de ti, e a sensação de ser uma estranha no teu
quotidiano vai-se acentuando. Devo resignar-me, embora não se trate de uma resignação
passiva. Às vezes pergunto-me se aqueles dias (os nossos dias de tempos idos) se poderão
localizar nos calendários. Claro que não. O que importa é que eles me preencheram os sonhos.
Queria dizer-te isto de outra maneira, mas estou mesmo com a cabeça numa lástima, maldita
constipação. Passe adiante.

Ontem estive numa livraria (também vende outras coisas), pois inaugurava-se uma exposição
de bonecas de trapos, na verdade muito giras. Estiveram velhinhas, damas prendadas, alguns
artistas. Tive uma conversa muito interessante com um deles. Falou-me de um artigo sobre a
nouvelle bombe, o romance de espionagem publicado por um universitário de Los Angeles - já
te soou alguma coisa sobre isso?

Espero que a tua hibernação esteja a chegar ao fim, as páginas do Henrique talvez te
espevitem as veias. Dá-me

notícias, nem que seja uma simples frase. .....

Quero que saibas que, apesar de todas as minhas limitações, o meu maior desejo é
contribuir para que te sintas bem. - ---______-

-""" Penso em ti.

Da incurabilíssima

Marta."

200

Tenho um indecifrável pudor em comentar as cartas de Marta. Ou talvez inibição. Tenho o


mesmo pudor, ou inibição, em dissecar o que se vem passando entre nós ambos - que foi bem
pouco, já o disse, e que para ela parece ser tanto. Sê-lo-á, afinal, também para mim? Não sei. E
o esquisito é que em nada me esforço por sabê-lo - eu, que na boca do Ferreirinha sou o tal
"rebuscador", ou "rebuscado", já não me lembro bem.

Eis então as páginas do Henrique:

"3 6 65 - 23 horas (das de cá)


Como tantas vezes desde que me mandaram para aqui, refugio-me neste 'covil', o caderno de
capa verde sobre os joelhos, um Impala entalado nos beiços. As recordações excitam-me e uma
pessoa excitada não pode dormir. Então, escrevo.

Se eu dissesse 'estou chateado', tu dirias 'por quê'?, e começaríamos num toma lá, dá cá, de
chatices e tristezas, a ver qual dos dois estaria mais ruim. Vamos pôr isso de lado. Palavras são
apenas palavras, com elas ninguém se mata, conquanto possam arranhar. Mas com palavras
também ninguém se livra de morrer. E o que aqui me trouxe foram palavras. Entendes? Atos,
sim. O mundo bem grita por eles, em vez de palavras. Ninguém o ouve.

Ia para te lembrar a história do gigante (devo-te uma história e tenho de resgatar essa dívida),
mas disse para mim: merda, que interessa isso agora? E resolvi atirar-me aos fatos (fatos =
atos). Para começar: quase perdi o barco, iriam julgar que eu era mais um daqueles que 'faltam
ao embarque', desertores na hora H, já que as pessoas entraram a dizer que isto é a guerra da
tropa, com as suas graúdas negociatas, e de modo nenhum a guerra do país, embora no
princípio a tropa fosse recebida em África como anjos salvadores (vingadores?), na altura em
que os guerrilheiros violaram mulheres, estriparam crianças, cortaram às fatias os senhores das
fazendas, e os nossos responderam com uma limpeza geral de senzalas inteiras, sem que nada
de vivo restasse, decepando cabeças e espetando-as em paus que, de um lado e de outro das
picadas, balizavam o caminho para os aquartelamentos. O barbarismo não tem cor de pele,
nem a justiça tem raça. O horror é dos homens, todas as causas se atascaram em sangue e em
merda. Adiante. Mas dizia eu que depois os civis se tornaram indiferentes e acabaram hostis.
Havia

201

itinerários com escolta militar para as colunas de civis, por último até os camionistas, que
dantes a reclamavam, acabaram por dispensá-la. Estes, que o exército teve por apoiantes, são
agora apenas comerciantes, que o seguem com uma quinquinharia de vendilhões. Se calhar,
isto passou-se em todas as guerras.

Ia, pois, perdendo o barco. Dirás: a desorientaçãozinha crónica do Henrique. E foi. Mas os
colegas portaram-se bestialmente, fizeram-me descobrir que eu vestia uma farda. Pensava eu
que o navio largaria à noite, para não dar nas vistas, e por isso vá de arrozada de marisco em
Carcavelos, até que me chamaram a atenção para a hora da largada. Começava a corrida contra
o tempo, com a tralha a ser enfiada no saco de qualquer maneira, livros e roupa, a caça a um
táxi, um trânsito de má morte. Ralado, eu? Nem por isso. Recostei-me no banco do velho
Mercedes, a pensar que estava a despedir-me de Lisboa, que iria ficar só como sempre estive.
Para onde fores, Henrique, o que te espera é um deserto. Somos para os outros um pretexto,
um instrumento, uma caixa de ressonância. A ti fizeram-te soldado sem te perguntarem se
estavas de acordo. E, pra mais, um soldado que tem mesmo uma guerra à sua frente.

O que me valeu é que os barcos saem sempre atrasados. Há ordens, contra-ordens, apitos,
marchas, fanfarras. O Tejo tinha ondas capciosas, parecia *o dorso de um verme a mover-se, a
noite escurecia-o, numa surda cumplicidade. Que sentido tem tudo isto, que faço eu aqui?
Combater, matar, morrer, quando nem sequer aprendi ainda o que é estar vivo. A viagem.
Uísques no bar, cigarros americanos, a cadeira de lona, à popa, onde leio Platão, Camus e
Sebastião da Gama. Dormitar, esquecer. Desejar viver, desejar morrer, outra vez o bar.
Apetecia-me um disco do Carlos Paredes. Ou o fado de Coimbra - bem gostaria de ter passado
por lá. Depois Luanda, no Grafanil, uma semana de arame farpado. Depois o Sétor D ou o Setor
Q, não estavam bem certos para que zona de intervenção me iriam despachar. Mas seja
Nabuangongo ou Quibaxe, Zala ou Santa Eulália, lá se vão dois ou quatro anos, numa operação
aritmética muito engraçada: tu viverás setenta anos menos dois ou quatro e durante estes até
te poderão fazer o desconto por inteiro. Belo negócio. Vamos lá ao que importa. Antes era fácil:
a preguiça, a inércia e uma coisa que chamam fatalismo - tudo junto, igual a

202

mioleira em descanso. Agora isso acabou, meteram-me numa guerra e ainda não entendi as
razões por que lá estou, tenho de as descobrir por mim próprio. Se tivesses sido tu a dizer-me:
vai para a tropa, apanhas um tiro, morre em beleza - eu percebia. Assim, não percebo. E, tal
como tu, preciso de espreitar para o que está dentro das coisas. Tal como tu, tal como tu. Estou
a ver-te, Beatriz: boquinha de mimo, olhar oblíquo amalandrado, perguntas de algibeira que
nunca mais acabam. No entanto, andas debaixo da asa da tua mãe e chamas a essa
dependência serem duas bestiais companheiras. É como eu: digo que ninguém me põe o
cabresto e estou aqui a cumprir regulamentos. Desculpa lá. Vamos fazer de conta que estamos
ao telefone e que, amuados, resolvemos desligar. Um clique irritadiço - já está. Palavra de
honra que não bebi, Beatriz. É do cansaço, do sono, da chatice. Não sei se estou no ontem ou
se no amanhã. O que agora me apetecia era uma sopinha alentejana, com coentros e tudo.
Estou chateado e a chatice dá-me pra fome. Olá, Beatriz. É vulgar as pessoas dizerem 'olá',
mesmo que julguem e sintam que são as únicas a dizê-lo. Não tenho culpa nenhuma de tudo
ser vulgar, até os sonhos piramidais.

Há um rio chamado Dange. Bonito nome, hem? para um poeta. Pois aqui isso significa
prosaicamente a divisória entre duas zonas: a que permite que um tipo entre mato dentro sem
pensar que leva uma G3 e aquela em que um tipo desata aos tiros ao mais inocente ruído.
Fiquei na banda de cá, a do perigo. Quibaxe. Que é praticamente igual a centenas de Quibaxes.
Uma colina, uma bifurcação de estradas, a casa do administrador em estilo colonial, casas
comerciais de ventas para a rua, onde os indígenas vendiam os seus produtos agrícolas (café ou
amendoim) e onde compravam sal, peixe seco, açúcar, panos, bagaços. E, mais afastadas, as
senzalas. Choças de 'pau-a-pique', que é um esqueleto de troncos de árvores, depois ramaria
entrelaçada nas estacas (gaioleiros), tudo preenchido com adobe - argila e palha enrijados ao
sol, aquilo a que no Alentejo chamam 'taipas'. E cobertas de colmo. O exército ocupou as casas
de alvenaria dos brancos que fugiram, a moradia onde durmo ainda tem pastas de sangue da
chacina, mas como não chegaram para os aquartelamentos ergueram umas tantas construções
de material pré-fabricado tipo JC, com guaritas, camaratas, depósitos, ventiladores e redes
mosquiteiras para que a, malta não sufoque.

203

Estamos bestialmente municiados com G3, Bredas, Unimogs, jipões, lança-granadas-foguetes,


morteiros, obuses e mais não sei quê. Há um café, é verdade. Tem o nome da senhora que o
herdou de um colono que perdeu o tino por lhe terem esquartejado o filho. Houve disso, de
parte a parte. A minha posição, Beatriz, é de quem não seria capaz de esquartejar ninguém. A
causa, entendes, é outra coisa. Jogamos lá os dados, a sueca, o king, quando há parceiros, e a
chatice é que nem sempre os há. Mas não vás pensar que isto é uma colónia de férias. Num
repente, uma pessoa vê-se a matar e a morrer, sai uma patrulha para o mato, como quem vai
desmoer o almoço e regressa aos pedaços. Podes imaginar o que um tipo sente."

"9 6 65

Abafa-se em Luanda, dizem. E eu sei-o pelos dias que passei no Grafanil, arredores. Foi ali que
aprendi que uma cama-tenda se chama 'burro' e que os caloiros nesta coisa de guerrear se
designam por 'maçaricos'. Tive um mau começo, obrigaram-me a rapar a barba e a aparar a
trunfa, como em Mafra. Rapei-a numa fúria lúcida, para que não parecesse um ato de
submissão. Não me deixarei vencer. Enquanto comer, falar, rir e mijar, não deixarei que se
apossem de mim. Mas não impede que me despreze. Há uma dor de ser eu, e essa não a
rejeito.

Pois cá estou, Beatriz. Levantar às oito e meia, depois formatura na parada. Seguem-se revistas
de toda a ordem, viva a burocracia, é para isso que estão cá os senhores tenentes. A hora que
vai do almoço até às duas é que dá para se ir ao bar e pairar um pedaço, embora as palavras já
estejam danadas de gastas. É verdade: o correio distribuemno à tarde. É a hora solene e
emocionante do dia, esperada com um nervosismo de miúdos que roem as unhas. Há gajos
que choram por não ter carta. Mandam-nos formar em parada, para que o primeiro-sargento
vá chamando pelos nomes e entregando o correio. Quando pára de chamar, há sempre pelo
menos um que quer comê-lo vivo; Então eu não tenho carta? Não pode ser'. E o sargento
aparece como responsável, já se têm armado sarilhos por causa disso. Outros querem pressa
na distribuição, exigem logo a 'sua' carta. Calminha, tem de ser tudo na ordem.' Mas ninguém
está pelos ajustes com essa disciplina. Já ficas, pois, a saber: também eu preciso de cartas,
também eu olho para as mãos do sargento até ficarem vazias. O

204

Movimento Nacional Feminino não esquece que é assim, enfrasca-nos com cabazadas de
aerogramas, a que chamam 'bate-estradas', pois não há sítio onde não cheguem.

O tempo, aqui, não passa, os relógios pararam. E todo este infindável bocejo das coisas nos dá
uma ansiedade danada. Fui logo prevenido disso, às vezes até o que apetece é que nos
mandem para uma 'operação'. E também me preveniram de que as pessoas podem ficar com
uma cachola dos diabos, capazes de uma briga, só porque nem sempre se consegue número de
parceiros suficiente para uma partida de king. Estás a ver como é. O tempo, quatro anos, na
melhor das hipóteses dois. Um destes dias um furriel mecânico pôs-se desenfreado a
desempanar um jipe e um outro comentou: Nada de pressas, pá. Tens dois anos para arranjar
essa merda".

Não cheguei a dizer-te que, em Luanda, estive três noites no Hotel Império, cama de casal que
nunca mais acabava, banho privativo, disto não volto eu a gozar até voltar para aí. Já viste
quantas coisas em Lisboa têm a crisma de império? Até a cerveja - uma 'imperial'. Quando se
fala muito em império é sinal de que se está a perdê-lo.

Aí vai uma patrulha para uma 'operação de desbaste', levam Bredas e obuses que chegam para
uma família. Depois te direi o que é um 'desbaste'. Um dia destes toca-me a mim. Por
enquanto, ainda me consideram um 'maçarico', a precisar de recapitular a matéria. Mas já me
bastam as paradas e as vistorias. Oh da guarda, Beatriz, roubaram-me a solidão. Preciso dela, a
autêntica. Foi para ela que nascemos, o resto são tretas. Cada homem está no mundo perante
si próprio, os outros pertencem a um cenário irreal, cuja aparente realidade é a nossa ficção."

"13 6 65 (you deixar de datar estas cartas, que nem canas são. É a última vez que o faço.)

23 horas. (As horas, sim, é mais importante.) Os dias seguem-se, embora apenas se dê por eles
quando acontece seja o que for de diferente do que aconteceu na véspera. Um convívio feito
de berrarias e sobretudo de mutismos, silêncios. Há ordens para todos os lados, na minha
cabeça o estrídulo, insistente ressoar das botas na parada, e de súbito tudo emudece, como
nos minutos que se seguem a uma execução. Esse ruído e esse silêncio estarão apenas na
minha cabeça? Dantes fazia o possível por encontrar-me, dava voltas em torno de mim
205

próprio, como alguém perdido na floresta. Agora, que é agora? Os aquartelamentos, as


camaratas, os refeitórios, as colunas que chegam, param, passam. Lá se foi a intimidade.
Precisava de escrever um palavrão neste momento. Dita-mo tu, Beatriz. Vá, estás aí calada e eu
nesta conversa. Anda, di-lo tu por mim: filhos da puta. Por favor, Beatriz, fala-me. Preciso de
saber se sou eu. Ao menos, mostra-te tu viva. Quando me belisco com as unhas, até magoar, a
dor será mesmo minha? Não fiques aí espectadora. Às vezes irritam-me esses teus olhos
irónicos, olhos amendoados, olhos de mel. Depois, aos poucos, eles enternecem e a tua boca
de mimo parece que vai chorar. Tão amarga, a tua boca. Lembras-te do dia em que te disse
'tanta amargura lúcida'? E tu gostaste. Apesar de ser mesmo amargura e de a amargura custar
tanto, gostaste.

Boa noite. Será que renunciar é vencer? Será que vencer é perder? Mas se não existem vitórias
sem derrotas, para que nos preocupamos? Estou a milhares de léguas da tua presença, etc, etc.
- estou onde nada me afirma que continuo a ser eu. Vamos lá reduzir isto a uma única frase:
tramaram-me.

Claro que não sou eu o único a sentir estas coisas e a exprimir-me com esta confusão. Temos
aqui um médico porreiríssimo que veio do sul de Angola e passa o diabo com uma doença de
pele - um dos inúmeros sintomas daquilo a que podemos chamar a tal crise de 'identidade':
quem sou eu, que estou aqui a fazer, etc., etc. Ele, porém, diz que a sua neurodermite é
simplesmente medo. MEDO. As pernas e os braços desfazem-se-lhe em coceira e aguadilha,
parece uma múmia quando despe a farda, todo ele compressas e ligaduras. Pois no dia em que
os convenceu a uns meses na metrópole, bastou entrar no avião para se sentir aliviado e dias
depois já não havia doença. com o regresso, tudo se reavivou. Medo - eu também? Hei de
falar-te disso.

Voltemos a esse médico, que veio substituir um outro despachado para Lisboa porque se
drogava com soníferos. É um tanto neura, de acordo, mas inteligente, um conversador
fantástico, quando lhe dá na bolha. Conta ele que, lá no sul, nas Pedras Negras (de longe,
parece uma cidade de arranha-céus) encontraram um pelotão cafralizado. Os tipos tinham
desaparecido há uma data de meses, julgavam-nos mortos. Encontraram-nos todos nus, a
tomar banho no rio, barbudos, um jeito de indígenas. Receberam

206

os camaradas como a marcianos, disseram-lhes que se fossem de volta senão a coisa daria para
o torto.
Mais um exemplo. Noutro dia, fui a Carmona, entrei num restaurante e não sei que raio me
alertou para esta sensação de que toda aquela malta reagia como autómatos. Levantavam
sucessivamente o copo para serem reabastecidos, sem saberem o que estavam a fazer. A partir
dessa noite, comecei a reparar no que se passa conosco, aqui, e olha que não difere muito do
que observei em Carmona. Somos o Chaplin dos Tempos modernos, só que o condicionamento
é outro.

Por falar em Carmona. Um gajão qualquer, deputado ou coisa parecida, circulou durante
quinze dias por algumas regiões de Angola, visitou uma empresa agrícola de que, aliás, é sócio,
e ao entrar num hospital novinho em folha, tudo calmo, tudo puxado ao lustro, disse: Aqui
houve bernarda? Que não, nada por enquanto. Como explicar isso? E um cicerone explicou: Foi
simples. Quando as coisas se puseram feias, fizemos uma lista de setecentos pretos de menos,
confiança, a lista foi aprovada em Luanda, e depois limpamos a área. As velhas Mausers que
tínhamos portaram-se lindamente'. O deputado até sentiu o peito a inchar de patriotismo.
Quando regressou à metrópole, logo se propôs chefiar um Conselho Técnico Ultramarino: os
quinze dias em Angola eram um atestado de especialista em assuntos africanos.

Tenho de te falar dos crepúsculos de Quibaxe, um espanto. Ou um paroxismo. Os amarelos


inflamam-se em laranjas, os laranjas rebentam em vermelhos, todo o céu num moroso,
espreguiçado braseiro. O mundo vai acabar. Para o sul, não, o pôr-do-sol é brusco e parece que
há trovoadas de partir os astros ao meio."

"12 horas.

Tem-me esquecido de te dizer: recebi uma carta da esparvoada da Auzenda, de Málaga. Está
em apuros e, desta vez, nem é, como costuma ser, problema de massas. Conta-me ela que a
engataram por pertencer a um 'perigoso gang de passadores de droga'. Estava ela e uns
compinchas no apartamento quando entraram dois chuis a pedirem-lhes os passaportes.
Controle de estrangeiros', foi o que disseram. Passaportes na mão dos chuis, tudo okay, e agora
desandem para o posto da polícia. Aí queriam saber se ela e os amigos fumavam droga. Que
não, é claro, a

207

Auzenda era lá capaz disso (!). (A exclamação é minha.) Então, que passassem por lá na manhã
seguinte, a reaver os passaportes. Assim fizeram, as horas foram correndo na sala de espera,
feitos parvos nem uma sande tinham trazido, minha Nossa Senhora que a larica é das valentes.
Depois, de repente, como nos filmes, vai disto: algemas nos rapazes. Em Espanha não estão
com finezas. Revista a pente fino no apartamento, cadeia com eles, refeições seguidas de grão-
de-bico (tomara-o eu cá) e um ovo cozido. Mais dois dias de espera e toca a desandar para
Torremolinos, onde é o Centro Penitenciário da província de Málaga. Nomes no jornal e tudo,
gang de agentes da droga, estás a ver os pais da Auzenda, ele senhor diretor-geral a rebentar
de importância por todas as costuras, a mãe não sei que na Caritas. No Centro Penitenciário,
mais grão, mais ovo cozido. A pobre Auzenda até começou a ter alucinações com bifes e
batatas fritas. Alguns amigos levaram-lhes roupa e comidinha, bem precisados estavam. Contas
feitas: a Auzenda não se atrevia a escrever à mãe, que a julgava a passar férias em casa da tia
de uma amiga, em Málaga, a quem ela escreveu foi ao consulado, o cônsul fingiu que as cartas
se extraviaram, ninguém lhe apareceu até agora. Claro que, entretanto, com o cagaçal dos
jornais, os pais de Auzenda já devem estar mais que sabedores da desgraça familiar.

Se te falo nisto é porque não seria mau que desses uma telefonadela lá para casa, a sondar os
ares. É uma tipa fixe, vai precisar de uma boa 'escolta' que a proteja da borrasca."

"16:30 horas.

Deixei a roupa da cama toda dobradinha em cima do colchão e, quando voltei, que é dela?
Palmaram-ma. Mas quem é que ma palmou? E esquisito, não é? Lembras-te daqueles filmes
em que as pessoas levam um soco ou uma facada sem que o espectador se aperceba de quem
agrediu? Não sei o que se passa por aqui, mas às vezes há uma atmosfera de quem se prepara
para ser apunhalado na primeira esquina. Digamos que o chamado 'inimigo' está e não está,
vê-se e não se vê, existe e não existe. Um tipo pode bazofiar Merda, que nem tiros há' e no
quarto de hora seguinte vemo-lo com um braço a menos, a gritar que não se importa nada de
morrer desde que o levem para a terra e o enterrem ao lado da campa da mãe. Estou a dar-te

208

um exemplo concreto. Podem passar-se dias e dias a jogar o poker e a beber cerveja, que porra
de guerra que está toda nos relatórios imaginários dos burocratas ou dosgenerais do ar-
condicionado, e logo depois, numa emboscada, fica metade de um pelotão. Pode um tipo
trepar pelas paredes porque o animalzinho de um tenente lhe berrou: leia primeiro isto, seu
cavalo' (sendo o 'isto' um cartaz com frases bestiais sobre o glorioso Exército português) e uma
hora depois esse mesmo tenente atravessar uma picada sob o fogo direto de flagelação para
socorrer um sargento em pânico que grita que não o deixem só.
Que se lixem. E bom de dizer 'que se lixem' e eu até digo. Mas o resto? Apanharam-me, essa é
que é a verdade. Apanharam-me e estou tramado. A engrenagem, a história, não sei quantos
séculos de não sei quê, as sacanas das ideologias, hoje estou mesmo bera. Um oceano de
signos a desabar sobre uma merdinha de nada - nós. E agora? Agora estou dentro dos rodízios,
vão olear-me bem. E agora? Tu, que gostas de bichos, ouve-me lá esta: os 'turras' levam à
frente das colunas os cães das lavras e, se há armadilha no trilho, eles ficam em postas. Morre
um cão, não morre um homem. Certo. Mas para que há de forçosamente morrer um deles?
Não aceito, Beatriz. Eu queria o homem vivo, fosse ele preto ou branco, e também o cão,
percebes? E os cães também servem para alertarem sobre a nossa presença, às vezes é um latir
dos diabos e atrás do latir é um cantar das Bredas que só visto. Como é que eu irei reagir no dia
em que tiver mesmo de puxar o gatilho e escolher entre matar e ser morto? Já me viste a
matar alguém?

De duas, uma - ou habituo-me a esta merda ou deserto. Mas desertar como? Parece-me bem
mais difícil do que um tipo escapar-se de Peniche. O aquartelamento, as tendas, as armas, as
cervejas, as continências. O que se ouve, que às vezes é pior do que aquilo que se vê. Um
senhor alferes, algures, a juntar os pretos das senzalas para uma fotografia, como se fazia
dantes, e depois de os ter todos reunidos para a dita, vai disto. Barreia geral com as
metralhadoras. Agora diz-me se um tipo tem estômago para continuar aqui, depois de saber
que acontecem destas. Ou piores. O braço de um preto puxado por um jipe, o outro braço
puxado por outro jipe, até arrancamento dos dois membros, braços ou pernas, tanto faz. Não
vi, ouvi. Será mais terrível ouvir do que ver? Não sei, não sei, não quero

209

saber. Os pretos fazem o mesmo aos 'nossos'? Não sei, não sei, não quero saber, o que quero é
sair daqui, a guerra é deles, não é minha, não quero que eles consigam que ela acabe por ser
minha também. Lá fora, estão a formar. A formar, a formar, e eu não tenho nada com isso. Que
mal fiz eu a estes tipos?"

"15 horas.

Um sistema opõe sempre resistência a qualquer mudança. Esta é, a bem dizer, uma verdade
universal. É vê-la aplicada aqui, na tropa. E tentam que sejamos todos coniventes dessa
resistência. Que sejamos os seus instrumentos. Que ela se nos entranhe. Ter um ataque de
histerismo, na mata cerrada, onde tudo à volta são olhos que nos espreitam e bafos de
milhares de respirações, ter um ataque de histerismo chorando diante dos soldados e pedindo-
lhes lastimosamente que o protejam do 'inimigo'; perder um jipe que consta do rol sagrado dos
nossos 'haveres' e andar à procura dos restos de uma porção de jipes para reconstituir aquele
que se perdeu; comprar um candeeiro de petróleo por trezentos escudos para se poder ler
depois das dez, hora em que se fecham as goelas ao gerador, ou vender pelos mesmos
trezentos escudos a preta da cubata que nos espera à noite, no dia em que outro 'maçarico'
nos venha render; ouvir aquele major tremendo como se tivesse maleitas e a misturar lágrimas
com súplicas: Tenho medo, doutor, tenho um medo que me paralisa, preciso do raio de um
remédio que volte a pôr-nos no sítio ou então dou um tiro nos cornos'; saber que aquele
administrador simpatiquíssimo, que o é de verdade, quando tem convidados para jantar
repete-lhes invariavelmente o seguinte número, sob o sorriso adorabilíssimo da sua adorável
mulher: Agora tenho uma surpresa para todos', e a surpresa é uma coleção de narizes e
orelhas de negros guardados em frascos de álcool, ao passo que um intendente de setor se
curva de todas as vezes que vê uma negra e diz para quem o ouve: São senhoras como as
outras, cumprimentem-nas, cumprimentem-nas por favor' - tudo isso, esterco, comédia, fedor,
realidade ou surrealidade, pesadelo ou farsada, tudo isso é o sistema, o sistema e os seus
disfarces, as suas mentiras organizadas. E eu estou nele. Estou nele e recuso-o. No meu caso,
existe mais que um protesto involuntário, tu conheces-me. Reajo refletidamente. A minha
presença aqui, Angola, ano 65,

210

nada tem que ver com a minha vontade. Mas de que me serve essa inocência? É indispensável
atingir a coerência como regra de vida. Mas como chegar lá? Que pode um homem metido
numa estrutura, mesmo com toda a coragem do seu lado? E, afinal, a única coisa que vejo em
mim é a apatia.

No entanto, pensando bem, tenho tantas possibilidades de morrer na tropa como fora dela.
Aqui, por exemplo, morre-se mais em acidentes de viatura ou de helicóptero do que pelas
balas dos guerrilheiros. Basta às vezes um rumor de nada para que saltem à doida dos Unimogs
ou das GMC, que ainda são do tempo da Grande Guerra, e, na confusão ou nos estilhaços do
fogo direto, partem os ossos ou derretem a vida. É assim, pronto. Fui dado como apto para
fazer guerras, estou, pois, okay para qualquer forma de arriscar a pele. Portanto, se há guerra,
que a faça como deve ser, mesmo que não veja qualquer razão para isso. De resto, eles dizem
que não me mandam morrer, o que querem é que eu mate - eles é que sabem a diferença. E,
para isso, para que tudo fique certo, utilizam os tais signos, metem os ódios, os interesses e as
cobiças nas palavras. As palavras suportam tudo e inflamam-se com facilidade. Matar sem
morrer - eis toda uma regra existencial. Lindo. Estou a raciocinar como um peru (quem dizia
assim, sempre que se dirigia ao Xavier - Tu és um alho para raciocínios de peru' - era o meu
professor de física, tu lembras-te bem do Xavier, aquele que parecia um penedo com dois
olhos), não há de tardar que eu seja um Xavier qualquer, um penedo com dois olhos.
Divagações. Subjetivamente, o que importa é a minha importância perante ti."
"12 horas.

O aquartelamento ficou meio vazio. Eu poderia ter pedido também dispensa, mas não
encontro nada que me entusiasme a ir à cidade. Nem sequer os bares, onde todos os dias
descarregam mais uma encomenda de putas importadas, como se não bastassem as de cá.
Sem exercícios, esquerdo, direito, áp, ois, áp, ois, e com uma pausa nas patrulhas, isto até seria
suportável. Há silêncio, há sossego, e sem dúvida que a natureza nos enche por dentro. A
África é uma magia, a frase não é um simples slogan. Há colonos que, suceda o que suceder,
ninguém os arrancará vivos da sua casa ou da sua fazenda. Esta terra é a sua raiz, sentem-na.
Para eles não há um problema de

211

império, mas sim de uma terra que, sendo dos nativos, também lhes pertence não como posse
mas como dádiva. Aqui perto, numa roça isolada, vive um sapateiro com a mulher e o filho. Ele
teve notícia de outros roceiros que foram esquartejados à catanada ou à machadada, teve
notícia de pretos torturados por nós até à morte e de aldeias incendiadas nas nossas operações
de 'retaliação', não ignora que o ódio acabou por ser uma sementeira maldita - mas
permanece, permanecerá. Há meses, passou por lá uma patrulha e o capitão disse-lhe: Então
ainda por cá? Olhe que é tempo de.. E ele cortou-lhe a palavra: Não sairei daqui, é a minha
terra. Todos sabem disso, ninguém me fará mal. Como se alguém, em tempo de guerra,
pudesse saber, pudesse escolher! É uma gente danada, a nossa. Tontos os que pretendam
explicar o que é um português. O português vai de um extremo ao outro. Heróico e cobarde,
generoso e mesquinho, reles e grandioso, emotivo e de uma frieza de arrepiar. No centro de
tudo isso, um miscigenador nato, no mais largo sentido da expressão. Um homem que faz do
mais estranho habitat o seu habitat natural. Esta guerra de África é uma radiografia em que
poucos conseguirão ver as imagens mais reveladoras. Terrível é que nessa radiografia
sobressaia, de caras, um corpo estranho: a guerra, arma da sujeição. A propósito (será mesmo
a propósito?): o poder de adaptação deste bisonhos 'maçaricos' (sou um deles) é
extraordinário. Não precisam de muitas semanas para se sentirem em casa. Lêem no livro da
natureza com a facilidade de um indígena, pressentem os seres pelo cheiro como os negros nos
pressentem, estabelece-se entre o homem e o meio uma corrente de avisos medulares. Os
profissionais da guerra sabem disso, claro. Inventaram, por exemplo, as pontuadas, que são
piquetes de quatro, cinco soldados preparados para as surtidas de surpresa e aprisionamento
de negros para os serviços de informação

- estás a ver o que isso quer dizer. Rastejam como serpentes, diluem-se no farfalhar dos
arbustos, fazem do vento cúmplice, quase que tomam a cor da floresta, caçam homens como
se caçam bichos. São meia dúzia e não querem ser mais. Até recusam proteção. O gozo que
aquilo lhes dá. Conseguem chegar ao pé dos negros que vigiam, escondidos, no cimo das
árvores, é espantoso como lhes iludem os sentidos ultra-apurados. A guerra, para eles, é esta
aventura lúdica e não uma página feia da história.
212

Eu não deveria condescender com isto e, para todos os efeitos, estou dia a dia a condescender.
Até o sinto naquilo que te escrevo. Tem de existir um limite a partir do qual é preciso tomar
partido, em termos de ação - de que estou eu à espera? Só se tem uma vida, portanto há que
vivê-la de uma forma digna. Sem nos desprezarmos. E tendo em conta que a felicidade é um
dever. Eu desprezo-me pela minha passividade e até por esta comiseração por mim próprio,
que é ainda o que mais me chateia. Tu és bem melhor do que eu. Naquele dia em que me
puxaste para ti e disseste: Apetece-me ser tua', fiquei a saber que nada havia no mundo mais
forte do que tu, porque tinhas a coragem de seres como és. Eu não. Eu nem sei o que sou. A
única coisa que não ignoro é que quase sempre me comporto com crueza para comigo,
justamente para me vingar de nunca ter sabido reconhecer-me.

O ponto é este: se eu baixasse à enfermaria com uma doençazinha a prazo, bem preparada,
bem encenada, o enfermeiro a ajudar... Estás a perceber? Mas isso custará bom dinheiro,
dizem, e eu não posso contar muito com o âmen do meu pai. Entretanto, essa ideia não me sai
da cabeça. Quando às vezes entrava na tua casa e te via naquele recanto ao pé da televisão,
uma perna encavalitada num dos braços do maple, triste e pensativa, os olhos de mel absortos,
o que me apetecia era que no mundo só existisses tu. Mas agora já não tenho ilusões, o mundo
é feito de uma data de gente que nos é enfiada pela alma dentro. E se me surgisse uma boa
oportunidade de desertar? Criancices. Desertar daqui é um bico-de-obra. Desertar de Portugal
para a Europa, quanto a facilidades, nem se compara. Não sei, francamente. Escolher entre
duas fugas é também uma opção que tem que ver com a nossa coerência. Fuga até pode ser
acomodação."

"8 horas.

Estou constipado, bolas. Não tussas, ó animal aí do lado. Jornal da manhã, toma atenção: o cão
que quis ser homem cortou o rabo. bom, eu não afirmo, mas parece-me que não basta cortar o
rabo para se ser homem. É que me destacaram para comandar uma operação de 'desbaste':
arrasar as lavras e os depósitos de alimentos dos 'turras'. Vai tudo à frente dos bulldozers e as
catanas dos indígenas que nos acompanham cortarão a vegetação rasteira pela

213
raiz. Depois empilha-se tudo e faz-se uma linda fogueira. Há variantes, estou a descrever-te o
essencial. Sem alimentos, não há combatentes. Sem combatentes (do outro lado), teremos a
ilusão de ganhar a guerra. Justo. Vamos, portanto, 'neutralizar fontes de abastecimento' -
linguagem técnica. Foi, pelo menos, aquela que empregaram para me dar a notícia de que irei
amanhã dar o grande passo para me sentir herói. Estás a ver. O cão cortou o rabo, etc. Estás a
ver. Isto agora vai deixar de ser apenas com os outros e, afinal, só os atos representam alguma
coisa.

Cá está um gajo a chatear-me, quer saber que raio estou a fazer. Sempre detestei viver com
outras pessoas. Sinto como se algo de mim fosse violado, fosse oprimido, como se invadissem
o meu espaço, o meu, aquele que é a minha identidade desafogada. Mas que importa isso se
amanhã darei o passo decisivo na minha carreira de herói? Ah, grande Henrique, longilíneo
Henrique, vamos organizar uma festa de arromba nas velhas salas do Liceu Pedro Dias, o Mane
vai voltar a escavacar duas ou três carteiras, os professores de física vão raspar-se para o
Jardim, cagados de medo,

e para esta coisa constar

vá tudo pra o inferno

viva a falta de disciplina.

Edmundo, lembras-te do castigo que apanhei pelos dois? Claro, eu nada lucrava em que te
acusasses também, mas é sempre bonito ouvir dizer: Não foi só ele, senhora doutora'. E deu
como resultado aquele amuo entre nós, o que não foi justo.

Vá tudo para o inferno

por um bilhete escrever, :

carago, carago, carago, .•',,--•;••. •

vá tudo para o inferno.


mais as faltas disciplinares.

Escrever é selecionar e eu sou totalmente incapaz de o fazer. Por isso, Beatriz (espero que
estejas sentada no teu canto, a correr os dedos pelas pregas da saia de xadrez, aquela mais
rodada), para não me aturares muito, you juntando estas páginas semanas e semanas e depois
enfio-te a dose toda pela goela abaixo - valeu? Só há uma coisa, nisto de escrever, que me faz
pensar: a escrita é uma irrealidade, só artifícios. Na nossa mioleira não há pontos, parágrafos,
vírgulas, e eu não tenho feito outra coisa que pontuar, virgular, paragrafar, isto é, estou a atingir
a

214

culminância dos irrealismos. Ponto final, fechar parêntesis, direito, esquerdo, já, já, formar,
formar.

Repara: o cadete de serviço ficou atrapalhado com a presença inesperada do capitão. Um nojo.
Estou ao sol, ouço asas à minha volta. Não são pássaros, o que se vê por aqui são insetos, põe-
se um inseticida vermelho em cima de uma mesa e, passado um quarto de hora, o tampo da
mesa é um cemitério deles, lembra um relvado vermelho. Venha mais uma cerveja. Dentro da
pasta tenho este bloco (comprei-o contigo, numa papelaria de Campo de Ourique, ao pé do
Canas), um livrinho magrinho, Cartas de Stalingradeum maço de Impala. Amanhã...

Que sou eu no meio de tudo isto? Areia, folhas secas, um cacto que parece uma lagarta, uma
haste ao vento eu. Confusão. Bichinho amarelo-dourado, mil patas de frenesi, o pulsar intenso
do verde de uma folha, you dar-vos a todos uma finalidade: you oferecer-vos à Beatriz.

Era uma vez um dia de sol, árvores gigantes, imóveis ao ciclone que nunca por aqui passou.
Tens a cabeça encostada à janela, a luz está em metade, sorris, toda a carícia é um sorriso
acabado. Comprei O estrangeiro de Camus para te dar, esqueci-o em Lisboa, no quarto. Beatriz
e Henrique - a que te sabe a mistura? Disseste desejo? Disseste saudade? Disseste ternura?

Que trapalhada - ou estarei com os nervos em franja? Quanto tempo falta para ser amanhã?
Os heróis atacam sempre ao amanhecer, é sabido. Se eu voltar... Merda, não há sés. Não sei se
já te esqueceste daquela história que nos divertiu no Vá-Vá. Aquela da miúda que tinha dez
tostões para comprar uma pastilha elástica e, às tantas, dividiu-se em duas e começaram a
discutir. Uma delas dizia: os dez tostões só servem para as pastilhas elásticas, não servem para
mais nada, pois foi para isso que os palmaste à tua mãe. E a outra repontava: mas ficas sem os
dez tostões e, logo depois, também ficarás sem as pastilhas. E a primeira insistia: não
comprando as pastilhas sentir-te-ás frustrada e os dez tostões não te darão qualquer prazer.
Eles apenas têm valor transformados em pastilhas. Estavam naquilo até que ambas resolveram
voltar a ser uma só e disseram: só tu, inteira, poderás decidir. Vais perguntar-me o que
sucedeu. Não sei. A miúda pegou nos dez tostões e fez uma chamada telefónica. Talvez a pedir
mais uma opinião. E, com a chamada feita, lá se foram os dez tostões.

215

O nosso velho grupo. Por onde andaremos? As vezes, tudo me parecia redutível a uma fórmula
simples: hímen-sêmen-relva verde. Extirpados os tabus do romantismo retrógrado. Mas outras
vezes também me parecia que o hímen-sêmen ia baixando a cotação, em favor de outras
coisas: gestos, palavras, isto, por exemplo, de estar aqui a escrever-te. À espera dos atos. Atos -
para que as coisas deixem de se passar apenas cá dentro, como tu dizias, tu, menina mimada
dos olhos de mel que nunca viu uma sereia. Afinal, já viste, sim. Ao longe. De cabelos alargados
como uma rede de pescador que quer prender seres vivos na sua teia.

Estou a abusar, perdoa. E não vás pensar que tudo isto é chatice. Não é - e pela simplicíssima
razão de que não vale a pena chatear-me. Pela simplicíssima razão de que hoje é a véspera de
amanhã. O assalto. Tenho na ideia o assalto a um banco. Plano nebuloso, claro, apenas mais
uma."

Basta, Henrique. Por mim, basta. Também eu tenho medo desse teu amanhã, igualzinho ao de
milhares de jovens como tu, muito provavelmente perdidos para a esperança. Medo do que vai
acontecer. Tudo se prepara para que a engrenagem faça dessa tua rebeldia céptica, ingénua e
anárquica a pasta inerte que outros manipularão quando e como melhor lhes parecer. Como
poderás recuperar-te? Como poderemos todos, em África e aqui, recuperarmo-nos? Tenho
medo do que dirás nas páginas finais do teu testemunho, que, sem dares por isso, se foi
contaminando de uma espécie de enervada exaltação, à medida que ia progredindo e que a
rotina dos dias te moldava a uma realidade envolvente. Julgas que lhe escapas, mas estou cada
vez menos certo disso. Prefiro ser eu a escrever (imaginar) essas páginas finais. Ou então, se
decidir lê-las, fá-lo-ei mais tarde. Preciso de um uísque. Brando, um dedo do líquido e as
pedras de gelo. No gira-discos, talvez o Adagio de Albinoni. Preciso de dar uns passos lentos
pela casa - todo o espaço me pertence, a Dorita foi à Baixa, tem muita gente com quem pôr a
conversa em dia, a empregada engendrou mais uma ida ao dentista. Todo o espaço me
pertence, átrio, corredor, sala, quartos - é delicioso. Preciso de certificar-me que é assim, para
que a delícia aumente, e encher-me dessa inebriante sensação. Estar em silêncio, sem rumores
domésticos, estar
216

sozinho durante horas ou mesmo, às vezes, durante dias. Habitar-me por inteiro e sem me
repartir. Mas poder sair desse isolamento no próprio instante em que me apetecer. Quantas
mulheres, porém, entenderão o valor da presença e da ausência? Entendê-lo-á Dorita? Marta?
Teresa? Talvez Teresa, não sei. Talvez nenhuma. É verdade: creio que não cheguei a perguntar a
Teresa se o marido prestou serviço militar. E será esse um dado importante? Outra coisa: os
telefonemas lá para casa teriam terminado?

O uísque. Exagerei na "brandura", you carregá-lo mais. O Adagio. Ouvirei uma, três, dez vezes.
É a música que este saboroso silêncio pede. O Adagio lembra-me Marta. Ou antes: lembra-me
a sua ilha. Não, não é isso. Pensando bem, o Adagio o que deve lembrar-me é Teresa, o nosso
primeiro encontro, a atmosfera em que decorreu. Mas volto a hesitar relativamente a Marta e
Armona, a ilha da sua infância.

Mana. Marta sabia muito bem o que me punha nas mãos ao enviar-me os cadernos do
Henrique. Por isso mais me interessa decifrar não apenas o que ela procurou subtilmente
transmitir-me mas, sobretudo, os seus propósitos. Há nela uma intenção, ia jurar. A
impulsividade de Mana em nada compromete o seu dom de ir dentro das coisas e de as
desvelar com a sua inocência fogosa e sagaz, que, por assim dizer, as apanha desprevenidas. A
ela devo, creio, ter-se-me salientado, dia a dia, esta verdade: as convicções têm como base as
emoções. Não há que fugir disto, e é preciso sabê-lo. Para nos acautelarmos. Ou, então, estou
a ver em tudo desígnios que só existem na minha cabeça, de tanto que me tenho viciado em
desmontar a complexa relojoaria das pessoas. A começar pela minha. Mas não: Marta quer
empurrar-me para um projeto literário que me empolgue, e daí estabelecer uma espécie de
assédio à minha vibratilidade, até lhe encontrar o ponto quente, ao mesmo tempo que me põe
à prova. No entanto, ela nunca me deixaria cair em fáceis armadilhas. A guerra colonial,
estúpida e absurda, que vai traumatizar por várias gerações este povo esfarelado, e ainda por
cima céptico, tem, porém, como todas as guerras, mesmo as estúpidas e absurdas, a sua
mitologia. Cada uma das suas tragédias nos responsabiliza e mobiliza, cegando-nos a
emocionalidade. Cuidado. Cuidado, Henrique - por isso não te quero ler até o fim.

Estou a lembrar-me das reações de um moço a quem, há tempos, pedi que me contasse
episódios da sua experiência africana. O rosto fechou-se-lhe, não gostou. Aquilo era uma ferida
em que os outros não tinham o direito de tocar. Chama-se Mariano Reis - todos o tratamos por
Mariano. Anticolonialista, anti-salazarista, ativista de esquerda, todo o currículo da praxe. Tem
vindo as reuniões aqui em minha casa (os artigos da agenda são vagos, terminando
invariavelmente por um peditório recebido com frieza, que permita uma viagem do Cristiano a
Paris para aí espalhar aos ventos do mundo o nosso protesto contra a sufocação e a violência -
seremos nós os únicos a lê-lo?), reuniões capitaneadas, como não podia deixar de suceder,
pelo venerando Atalaia, agricultor em Santarém (onde anualmente vamos em romagem
festejar mais um aniversário da Seara Nova) e chefe hierárquico dos republicanos históricos,
que, sob pena de heresia, ninguém se atreve a dispensar destas masturbadoras conspiratas.
Isso seria o menos. O que me aborrece é ele só aparecer quando a discussão já entrou pela
madrugada, obrigando-nos a retroceder ensonadamente ao princípio, para que saboreie, passo
a passo, e enquanto me esvazia a garrafa de anis, o nosso tirocínio na vía-sacra da oposição ao
regime. Toma sempre notas como um mestre-escola exigente, cofiando com aplicação os seus
bigodes de hussardo. E vai prevenindo de que se trata de material para as suas memórias.
Previne-nos ainda das suas futurações, declaradas num empolamento salivado - perdigoto que
ferve, não sei se da dentadura mal ajustada: o regime cairá (troveja), tão certo quanto o
destino, o país estremecido e balburdiado de aleluias a povoar-se subitamente, de lês a lês, de
revolucionários messiânicos, coléricos ou ansiosos, seguindo-se o lento cansaço dos ardores
desperdiçados, a vigia astuta dos lobos que espreitam o passar da tormenta, e ele, enfim livre
para publicar a crónica dos tempos do silêncio, receberá, quase um por um, a furtiva visita dos
conspiradores de agora, rogando-lhe tato e discrição: "Meu caro Atalaia: para que falar do que
lá vai? Esqueça-se do meu nome, que eu também já esqueci".

O Mariano é afável, prestimoso (traz sempre uma lembrança de tabaco holandês para o
cachimbo do Atalaia), coração de oiro. Não insisti, deixá-lo cicatrizar a ferida. No entanto, não
tardei a verificar que o que ele queria, afinal,

218

era que eu insistisse e tomasse a responsabilidade dessa insistência. Ou do que dela poderia
resultar.

Da vez seguinte em que nos encontramos disse-me: -Ainda está interessado nas minhas
bravuras de guerreiro?

Não relacionei logo as coisas, retorqui meio distraído:

- Que bravuras?

-Então não sabia que tive louvores, que me medalharam?

Ah, a guerra, a tal guerra em que um homem pode assistir, transido, às suas próprias e
inimagináveis metamorfoses. Ficamos por • ali, embaraçados, retraídos. Mas não tardou que
me fosse visitar com um pretexto pueril. Levava um saco grande de plástico, em que mexia e
remexia nervosamente, julguei que nele arrumara um daqueles folares de bebidas e comidas,
mimos com que fazia gosto em presentear os amigos. Por último, enquanto prevenia com uma
ladainha "Já vai ver, já vai ver", foi retirando do saco álbuns de fotografias, objetos indígenas,
recortes de jornais e até mapas do exército - o espólio da sua "aventura" africana. Um espólio
reverenciado, era tão estranho tudo aquilo - um tipo de reverência bem difícil de descrever. De
qualquer modo, • sem aqueles testemunhos, sem a "memória" deles, o Mariano sentir-se-ia
mutilado.

Revejo-lhe os dedos a passarem, numa meticulosidade cariciosa, cada página do álbum - "aqui
sou eu em Forte Bragança, aqui um grupo em Malange, outro na ilha de Luanda, o altarrão, em
calções, é o tenente Baptista, repare nas Bredas, nos obuses de oito e meio, metralhadoras
ligeiras tipo FBP, olhe a tenda em que, no mato, dormi durante cinco meses, até já comia com
as mãos, repare, tal como os pretos, olhe como instalamos este chuveiro ao ar livre, até o crivo
de um regador nos serviu, imaginoso, hem?", e sorria, sorria manifestamente embevecido -
ele, Mariano, que ainda na semana anterior se oferecera para uma missão temerária que, pelo
menos, faria desmantelar um carregamento de armas para a guerra colonial.

- E a medalha?

Julguei que sentiria a interrupção brutal. Nada disso. Provavelmente, esperava-a, desejara-a. E
contou o que se segue - tenho o registro, ele fez questão disso, é só ligar ogravador.
,;>;WWM ?.*>•>•,?..->..•••

219

"Chamou-se à operação..., ah, espera aí, é melhor não dizer. (A voz na gravação, agora mais
surda.) As pessoas estão vivas, é desagradável. Se não se importa, vamos chamar-lhe operação
Formiga Branca', um nome que me veio à ideia. A finalidade era a de arrasar fontes de
abastecimento do inimigo, isto é, da guerrilha, sobretudo as culturas de milho e mandioca, e,
paralelamente, destruir prováveis aquartelamentos. Deles, claro. A coluna foi reforçada com
obuses e bulldozers, para abrirem caminho, na mata, aos Unimogs, e às GMC. Tudo isso era
trabalhoso e feito com o credo na boca, às vezes até perdíamos um veículo se, distanciado dos
outros, o apanhavam numa emboscada. Quando o terreno nos pareceu mais propício para
erguer um acampamento, que seria a nossa base de incursões, dispusemos o material segundo
um plano estudado. Eu faço um desenho, se quiser. Não, não me custa nada. Assim. (O
restolhar dos papéis nas mãos enervadas do Mariano, e sua respiração ansiada - o traço de um
azul violeta, repentino e grosso.) Aqui a picada aberta pelos bulldozers, os trilhos, repare, as
lavras dos negros, a Mata Sanga, era o nome que lhe davam, o monte, capim de dois metros de
altura, um perigo, sim. Aproveitamos esta clareira a uma dúzia de quilómetros das lavras. Não
valia a pena fingirmos que nos escondíamos, para quê? As tendas todas deste lado, protegidas
por sacos de areia, aqui as Bredas com o escudo protetor, percebeu o desenho?, mais sacos de
terra, a tenda maior para as guarnições dos obuses oitenta, os Unimogs, as camionetas. Todo o
material camuflado com ramaria de árvores e capim segado. A esta chamamos a Clareira das
Flores.

bom, o desbaste levou-nos quase uma semana, a partir daí é que não valia mesmo a pena
tentarmos passar desapercebidos. A queima fora grande. Tudo dependeria da força deles, se é
que havia aquartelamento na zona, aquilo nunca será uma guerra de batalhas, como se vê no
cinema, percebe? Algumas colunas foram despachadas a explorar em terreno mais fechado,
mas nenhuma trouxe novidades. Decidiu-se então o regresso na manhã seguinte, tudo
combinado pela rádio com o comando, e pensamos todos, sem o dizer, que nos tínhamos
safado da melhor maneira, nem um tiro para amostra. Só que... A flagelação deu-se ao toque
de alvorada, e minha Nossa Senhora, que parecia o mundo a desabar. Só se ouvia o
matraquear das FPB, o rebentamento dos morteiros, a chuva de balas e estilhaços,

220

pragas, ordens, gritos, o inferno. O pessoal agarrado às armas, atirando à toa, onde raio estava
o inimigo?, outros a correr ao desvario ou a rastejar para sítios mais abrigados, clarões e
clarões sobre o acampamento, granadas sem parança, o Dia de Juízo. Havia duas grandes
árvores mesmo ao meio do acampamento, davam-nos a sombra nas horas de caloraça, e, de
súbito, um estrondo medonho, outro clarão - que é das árvores? Feridos, muitos, alguns com
um membro esfacelado, e três mortos, um deles com as tripas de fora. Foi então que dei uma
corrida em campo aberto até ao obus de artilharia, fogo neles na direção em que o tiroteio era
mais cerrado, em mim só havia a fúria de vingar e matar - tudo somado, aquilo durou dez
minutos. Ao que pareceu, eu acertara em cheio, por isso me condecoraram. Restava o que
talvez fosse mais arriscado: desfazer o acampamento, transportar os feridos em maca até ao
ponto em que pudessem aterrar helicópteros, sujeitarmo-nos às minas e às balas dos que, com
toda a certeza, nos vigiariam a retirada através dos esconderijos da mata. Pela rádio soubemos
que os helicópteros já vinham a caminho, o que não era grande consolo, pois a coluna estava
reduzida a uma procissão de macas. Enfim, lá chegamos. Chegamos como, quer saber?
Levando o caminho aos tiros, em parte por medo e também para dar a ilusão de que éramos
fortes. Mas talvez as razões de não nos terem atacado hajam sido outras - quem poderá, ao
certo, sabê-lo? E foi quase no termo da jornada que caçamos um guerrilheiro. Um rumor de
nada na mata, mas suspeito, um dos soldados colado ao chão, a cortar a fuga a alguém que
quisesse escapar-se - o ardil resultou. O negro capturado iria dizer-nos que perigos nos
esperavam. Não disse. Não disse mesmo quando o tenente o atou a uma árvore e o fustigou
durante um interminável quarto de hora. A tortura foi indo de raiva em raiva, de ferocidade em
ferocidade, era como se aquele homem tivesse sido o responsável de todos os nossos feridos e
mortos. E depois, quer então saber? Assisti a tudo, confesso. Assisti de olhos quase sempre
fechados, mais por náusea do que talvez por piedade, uma sensação permanente de desmaio,
de irrealidade, e ainda hoje não consigo explicar como participei do sorteio que decidiu qual de
nós teria de dar-lhe o tiro final, quando aquele corpo nada mais era do que um amontoado de
carne e ossos, já sem qualquer reação. Não, não pergunte, peço-lhe. Participar foi um

221

modo de dizer. Eu tinha de estar presente. Fique apenas certo de que o sorteio caprichou em
me poupar."

Assim o relato do Mariano, é o que está na gravação. Voz surda, uma vez por outra acelerada,
nem sempre se ouve bem. Não fiz o mais breve comentário - que lhe poderia dizer? Desliguei,
devagar, o gravador, tirei a cassette, servi-lhe um uísque, acompanhei-o na bebida, reuni os
seus pobres trofeus no grande saco de plástico, só concordei em guardar para mim alguns dos
extratos dos jornais.

Dias depois, o Mariano ao telefone:

- Quero pedir-lhe desculpa de um equívoco.

-Equívoco? Não entendo - e logo me arrepiei de palpites.

-As bocas de fogo eram de oito vírgula oito e não de oito e meio, como eu lhe disse.

-Agradecido, Mariano, irei tomar nota.

-E naquela fotografia, na ilha de Luanda, quem está ao meu lado é o Vieira Santos e não o
Baptista.

-Isso não tem importância, os nomes não me interessam.


-Ah, é que julguei que tivesse.

Foi esse o relato do Mariano, porventura qualquer coisa de idêntico ao que eu poderia
encontrar nas últimas páginas do Henrique. Vamos até supor que o Mariano nada tem a ver
com isto, que tudo me foi sugerido pela leitura do diário do Henrique.

222

Uma noite de balbúrdia. Acordou com papos nos olhos, as têmporas latejantes, todo ele numa
turbidez agoniada. Automaticamente, dirigiu-se à casa de banho, ia pôr a cabeça debaixo da
torneira da água fria (receita de uma amiga búlgara), no corredor cruzou-se com Dorita, que se
levantara havia um bom pedaço, antes de tomar o pequeno almoço voltou ao quarto, talvez
descobrisse uma aspirina na gaveta da mesa-de-cabeceira, não seria a chávena de café, mesmo
forte, que lhe desanuviaria as ideias. Naquela casa, porém, os remédios só apareciam quando
não se precisava deles.

- Onde puseste a aspirina?

-Tu é que guardaste a caixa, não culpes agora os outros.

-Tens a certeza? - mas foi continuando a busca, sem se preocupar com a provável resposta;
Dorita tinha sempre todas as certezas.

A manhã lá fora, um pouco mais aberta do que nos dias anteriores. As vagas de ruído, umas
sobre outras, a assanharem-se até uma delas atingir a exasperação, absorvendo todas as
demais. O ronco de um motor a esforçar-se, num estertor de pulmão cansado, devia ser um
dos velhos autocarros da carreira 28, logo depois um apito, outros ruídos baralhados, o
estrépito abelhudo de uma destas carripanas que transportam hortaliças, mais uma
buzinadela, ó pressa das pressas - aquilo nunca tinha uma trégua antes do começo da noite.
Ah, eis que se ouvia também, e de que maneira, a passagem de um avião, quase rente aos
telhados. Isto é: a rua servia-se dessa imposição sonora para devassar a vida de cada um, por
mais que uma pessoa se murasse em casa.

Não lhe apeteceu a torrada, bebeu o café em dois tragos - "Queres antes uma bolacha?",
acenou negativamente com a cabeça, a pergunta, aliás, nem era habitual.
223

Teria de telefonar ao Ferreirinha. Não percebia aquele silêncio, embora já se soubesse que o
projeto de que os funerais da Bia e do Faria Gomes fossem um só acabara (ou acabaria) por se
verificar irrealizável. Ouvira o parecer de um advogado que, avançando e recuando nas
afirmações, deixara supor que a autópsia apenas se impunha se restassem dúvidas sobre a
causa da morte, mas o Neves logo vozeara: "Quem lhe disse uma dessas? Um suicídio nunca foi
morte natural". Suicídio - uma evidência que punha em alarme as fibras mais íntimas. Que
subtil distinção haveria na ressonância de cada uma dessas1 palavras - morte, suicídio? Bia,
Rodrigo, ambos se tinham recusado a viver (a incerteza quanto a Rodrigo teria deixado de ser
legítima?), ambos numa mesa de autópsias. Essa, sim, é que era a evidência.

E, no entanto, poucos dias antes, Rodrigo ainda se preparava para cumprir o seu horário
rotineiro, casa-emprego-casa, a manhã desse dia de novembro começara exatamente como as
manhãs anteriores, decerto bem semelhante àquela que ele, André Bernardes, estava em vias
de preencher, talvez com a prévia ressaca da sensaboria desse preenchimento - quanto tempo
levaria o comprimido a atuar? Seria a trivialidade uma irremediável meta, o abismo onde iam
amansar todas as insurreições? Mas viver não poderia ser o mesmo que ocupar as horas como
uma fastidiosa obrigação, as pessoas, cedo ou tarde, teriam de sabê-lo por si próprias.

Pensando nisso, achou-se a fixar, absorto, o rosto enevoado de Dorita, sem tomar consciência
de que o fazia.

- Que tens?

A pergunta provocou nele um estremecimento. Como se o tivessem apanhado em falta.

- Não percebo aonde queres chegar.

- Andas estranho.

Aquilo, a maioria das vezes, bastava. Conheciam-se bem. Os diálogos, entre eles, não
precisavam de ser muito explicitados, a intenção a servir-se mais da ênfase com que as
palavras eram ditas do que do seu significado. Foi, pois, com alguma surpresa da mulher que
André a instigou:
-A estranheza é apenas de hoje?

- Não, não é. Andas diferente desde há semanas.

- Diferente em quê?

- Caladão, irritadiço.

224

-Mas, segundo a tua versão oficiosa, esse é o meu estado normal.

-Tinha de vir a ferroada - e as mãos dela sacudiram os cabelos ruivos, em carapinha, que lhe
davam um ar agarotado, desmentido pelo ricto da boca, dia a dia mais amarga.

-Não é ferroada, Dorita. Gostaria que ficasses certa de que eu próprio estou interessado em
saber.

- Saber o quê?

-O que achas em mim de diferente. O que disseste não é uma "diferença".

-De verdade que desejas? - as mãos aquietaram-se, procurando um cigarro no bolso do


roupão.

- De verdade.
-born. - A chama demasiado alta do isqueiro, regulou-a num gesto contrariado. - Entre mais
coisas, vê-se que não suportas a presença dos outros. Mas por mim, como sabes, já estou
habituada.

- Habituada a quê?

-Às tuas ausências. Às tuas "distâncias".

André Bernardas afastou a chávena, partiu e esfarelou distraidamente um dos cantos da


torrada. Depois disse, sem encarar a mulher:

- Nunca me falaste assim.

- Falei-te sempre pior, não?

Aquele diálogo não podia ter sido entre ele e Dorita. Um e outro, antes de lançarem as
palavras, apalpavam-lhes os contornos, poliam-lhes as arestas, e de tanto acautelar, de tanto
polir, acabavam por carregá-las de surdos agravos. Ambos sentiam que era preciso que não
fosse assim - mas qual deles arremessaria a primeira pedra ao espesso vidro dos silêncios? E,
todavia, fora um diálogo banalíssimo entre marido e mulher - a banalidade salutar. A
banalidade que digere os azedumes, não deixando que estes se incorporem na memória dos
dias. No caso de Teresa e Rodrigo haveria também, entre eles, uma aliviadora banalidade?
Mais concretamente: como teria decorrido aquele mesmo diálogo se as personagens fossem
Teresa e Rodrigo?

André Bernardes voltou a colocar a chávena no sítio donde a arredara e repetiu para si próprio
a pergunta de Dorita:

- Falei-te sempre pior, não?

A isso responderia, de um modo entre risonho e trocista, como a provocá-la a um divertimento


verbal:
225

- Talvez.

- Insinuas que costumo ser desagradável, não é isso?

- É. Desagradável comigo, pelo menos.

Nesse ponto, o cigarro poderia apagar-se, ela voltaria a aborrecer-se com a chama do isqueiro
mal regulada Teresa fumava? Não se lembrava de a ter visto fumar.

- Detesto esse teu cinismo. -Já sabia que me detestavas.

-Eu não disse que te detestava, mas sim que detestava os teus cinismos.

-Vem a dar no mesmo.

-Deduzes sempre o que te convém. Mas, afinal, como sabias que eu te detestava?

-Pelas tuas amigas. Pelas queixas que lhes fazes. Pintas-me sempre como o mau da fita.

- Mentira. Qual delas pôde dizer-te tal coisa? -Ah, apanhei-te.

-És uma peste. Desta vez, sim, posso confessar que te detesto.

Mas o diálogo também podia ser outro, um pouco menos retórico ou teatral, e sem pedir um
remate galhofeiro, improvável quer em André-Dorita, quer em Rodrigo-Teresa. De novo a
réplica de Dorita:

- Falei-te sempre pior, não?


- Talvez.

Ela hesitara antes de reagir e, durante a hesitação, procuraria o maço de cigarros no bolso, a
chama do isqueiro não estaria alta nem baixa, ele é que lho tiraria das mãos, apenas para ter
entre os dedos um objeto que pudesse afagar. Entretanto, achara a resposta:

-Hoje, desculpo-te, porque tens dor de cabeça. Amanhã, porém, ajustaremos contas desse
"talvez".

-Amanhã, já não direi talvez. Porei as coisas no terreno das certezas.

- Estás mesmo a falar a sério? -Estou.

- Não acredito.

-Pois seria bom que acreditasses. Repete lá em que me achas diferente.

-Em tudo. Lembras alguém que traz uma ideia no choco. Andas por longe e não toleras que os
outros te façam regressar à realidade. Ainda ontem, nem sei como o Castel-Branco engoliu o
que lhe disseste ao telefone.

- Que foi que lhe disse de especial?

226

-Não foi o quê, mas o como, a maneira. Nunca dás pela tua agressividade.

-Já te ouvi isso não sei quantas vezes. E fico sempre na dúvida sobre de que lado está a
agressividade. Mas adiante. Fala-me mais dessa minha "diferença".
- Tu é que deves explicar-ma.

Agora a hesitação é dele. E, enquanto hesita, estende os dedos para o maço de cigarros
deixado sobre a mesa.

-Há entre nós uma desgraçada inibição, Dorita. Isso estraga tudo. Não dizemos um ao outro o
que seria preciso. É uma inibição de que não sei qual de nós é o culpado. Mas creio que és tu a
principal responsável.

-Já calculava. Só me vês sob uma óptica odiosa.

-Por favor, pelo menos hoje dispensa os apartes. Deixa-me ir até ao fundo deste momento,
receio que ele não se repita. Deixa-me dizer-te...

-Vá, acusa-me.

- És incorrigível, desisto.

- Não, agora sou eu que quero ouvir.

- Desde que te decidas a saber ouvir.

- Vá, não recues, acusa-me.

Nova hesitação, ele (André? Rodrigo?) sorve o cigarro até sentir um pigarro na garganta.

-A mudança que observas em mim será tudo o que nela vês ou interpretas, mas,
fundamentalmente, corresponde a uma recusa ao dia-a-dia em que nos deixamos atolar. Ou
melhor: à necessidade de uma recusa. Tenho de dar um safanão à minha vida.
- Sem mim, portanto.

- Não se trata de ser contigo ou sem ti. É mais importante do que isso. Ou mais
conclusivo.

-Tu é que disseste tenho, em vez de temos. E que significa esse mais "importante"?

-Por Deus, entende-me. É o viver em si mesmo que está em causa.

- Seja. E a que conclusão chegaste?

- Estou a chocá-la, tu própria o disseste.

A imaginar tudo isso, e insatisfeito com qualquer das versões, André continuou a fixar, absorto,
o rosto enevoado de Dorita, sem tomar consciência do que fazia. Nos seus ouvidos ressoou,
então, uma frase longínqua:

- Em que pensas?

-Em que penso? Espera aí, nem eu sei bem. Talvez nisso de achares que ando meio estranho.

227

- E andas.

Nesse momento, ela correu-lhe os dedos pelo pescoço

- "Devias agasalhar-te, tens a pele fria" -, foi descendo até encontrar a mão de André, ambas se
enlaçaram. O mesmíssimo gesto que teria nessa tarde, no cemitério, quando André, o corpo
percorrido por uma gelada tremura, viu o caixão de Faria Gomes desaparecer na terra
enegrecida pelas últimas chuvas. Que imagem vinha, da infância, associar-se-lhe? A do plantio
dos velhos troncos de oliveira, decepados para o efeito, nos quais, na primavera seguinte,
rebentariam galhos de um viço faminto. Os homens que lhes abriam a cova também punham,
sobre os ombros, um casaco assim puído.

228

14 de novembro de 1965.

Estou a ver-te, Rodrigo.

Esvaziaste a chávena do pequeno almoço em dois tempos, mesmo com o líquido a escaldar,
enquanto a mão esquerda apalpava, no bolso do mesmo lado, a barafunda de memorandos,
porta-chaves, tíquetes dos transportes públicos, tudo parece em ordem (nem deste conta que
Teresa, ao reparar na torrada intacta, ainda tentou que levasses uma bolacha à boca), um
pouco mais de demora e lá se vai o autocarro, se tiveres de esperar pelo próximo isso traduzir-
se-á, na menos inquietante das hipóteses, num atraso de dez minutos sobre a hora da entrada
na Novilectra, o teu cartão de ponto já acumulou este mês para cima de quatro atrasos, em
chegando o Natal a tua ficha fará as delícias do diretor, o nome dele escapou-me

- ou nunca o soube? ("Bem vê, senhor Abrantes, a sua pontualidade não é famosa - como
justificar a gratificação que eu trazia na ideia?"), tem sido mesmo azar, Rodrigo, na maioria dos
casos o perder ou não perder o autocarro que te convém começa nessa chávena que foi
esvaziada até ao fim em vez de a teres deixado a meio, Teresa obstina-se em misturar o leite
bem quente ("dissolve melhor o café") e quando ela se obstina, naquele seu modo suave mas
determinado, é mesmo para levar a sua avante, ou tudo começa em Cecília, que procura
arrancar-te no último segundo um consentimento para os seus caprichos, é a tática dela,
responsabilizar os outros pelo que se concede ou recusa

"Já não falo da Lecas que toda a gente julga conhecer a Lecas tem o papo cheio para ela a vida
é um regabofe agora apetece-me mais observar a camaradona que ultimamente a tem
acompanhado que cabelos giros era assim que eu gostaria de ter lembra-me a Joana d'Arc que
eu vi no

229

teatro as unhas não são bonitas são unhas de mãos que têm frio mas os olhos parecem dois
carvões e quanto a pernas que jeitosas valem ainda mais quando ela se põe numa posição
esquisita o salto de um dos sapatos sobre a biqueira do outro, chama-se Armandina até o
nome é invulgar o meu não presta não sei onde mo foram arranjar a Armandina pede um
cigarro à malta com a maior naturalidade e vai beber o seu café a qualquer sítio onde se vejam
matulões. É professora de natação e diz coisas desaparafusadas mas belas e quando é chata
sabe que está a ser chata eu também sou chata mas não tenho a coragem de dizer às pessoas
agora resolvam se lhes apetece aturar a minha chatice, bem mas sou além disso outras coisas
uma mulherzinha (mulherzinha ou mulher?) que se emociona como uma criança ou como uma
parva se calhar é como uma parva e sente felicidade numa flor num carinho num olhar, penso
que já não gostaria de ser beijada ou de ser possuída à bruta beijar por exemplo só o canto da
boca ao de leve como passamos os lábios por uma flor se um dia escolher uma divisa como os
cavaleiros medievais será esta quando não se deu tudo nada se deu, quero pôr os pontos nos is
isto que disse não é para me chamarem heroína não gosto de heróis parecem-me generais
medalhados a posar para o fotógrafo é o que às vezes a minha mãe me lembra uma padeira de
Aljubarrota que se perfila muito séria à espera das aclamações, o Eurico tem razão quando me
diz que a fachada não interessa e quando me chama bichinho esfolado de tanta pisadela à coca
de morder também"

ou tudo começa, ainda, numa lembrança tardia de Teresa para que tragas uns frascos de
compota da cantina da fábrica, poupa nisso três escudos e oitenta, mas sentir-se-ia justificada
se a diferença se quedasse pelos centavos (não foi o Carlos Murta que, meio a brincar, meio a
sério, um dia lhe chamou sovina?), ou, enfim, tudo começa num botão que saltou do colarinho
quando já ias com um pé na porta - na tua cabeça, Rodrigo, há um relógio, há o bater
cadenciado e imparável de um relógio que não descansa, que não se desleixa, que não perdoa,
mesmo quando tens a ilusão de o poder dispensar a partir da saída do emprego até o
reavivado frenesi da manhã seguinte. Estou a ver-te. Tal como te veria ontem, ou anteontem,
mas não já como te verei amanhã. Tudo se vem repetindo, dia a dia, e ninguém, muito menos
tu, poderá imaginar que se

230

aproxima a ruptura brutal. Novilectra? Nunca mais. É a cidade que te espera, não o relógio do
ponto, a cidade onde descobrirás muito do que desconhecias e julgavas conhecer, de hora a
hora inebriado por esta disponibilidade súbita, conquistada primeiro às mãos do acaso, depois
a ti próprio, cada resistência vencida a instigar-te a novas surpresas, a novos arrojos - qual o
lugar de Teresa nessa metamorfose? É certo que farás a viagem Lisboa-Cacilhas pensando nela
(os barcos já não são os mesmos, deram-lhes outros nomes, pintaram-nos de outras cores),
reconstituindo mais uma vez o vosso primeiro encontro, mas com a perturbadora sensação de
que tudo se perdeu no tempo, nem recordarás como se vestia ela nesse dia (saia aos
quadrados, em vários tons de castanho, que tão bem acertam com os seus olhos marinhos - e
quando, mais tarde, lhe fizeste a pergunta: "Nunca te tinha visto essa saia, que bonita", Teresa,
passando os dedos ociosos pela cintura, tanto que lhe aprecias o gesto, censurou-te
veladamente: "E a saia que eu vestia quando nos conhecemos, pu-la hoje porque quis que este
dia fosse diferente", e então fizeste uma expressão birrenta, Teresa iria tirar um silencioso mas
ressentido partido da tua falha da memória - há, entre vós, uma intrincada emulação
sentimental quanto ao valor das coisas, quanto ao registo dos fatos, uma vigilância competitiva
em que se ganha e se perde mas em que ambos nunca querem perder). Não, Rodrigo, a
liberdade de hoje não a deverás a outros - é tua. A de hoje, e talvez ainda a de amanhã, até ao
momento em que, abrindo um jornal da tarde, nele lerás a inacreditável notícia do teu
desaparecimento - tu, um desconhecido. Como reagirás? Atónito, confuso, irritado, logo depois
possuído de um pérfido deleite. És alguém, existes. Existes sem precisar de Teresa, sem
precisar da Novilectra ou da tertúlia de amigos - eis uma revelação que espremerás até à
última gota. Entretanto,

- Em que pensas?

-Em que penso? Espera aí, nem eu sei bem. Talvez nisso de achares que ando meio estranho
atravessas a rua obliquamente, sem respeito pela passagem dos peões, fintando os automóveis
que se acirraram com o teu abuso, só porque te parece que o atrevimento te fez ganhar dois
lugares na bicha do autocarro, quando chegas ao passeio oposto é que verificas que terias
podido atravessar a rua no sítio devido, e até sem estugar o passo,

231

sem que em nada se tivesse alterado a tua rígida pauta horária, a bicha está como estava talvez
desde há minutos, curiosamente as pessoas lançam-se sobre as paragens por vagas sucessivas,
depois tudo se passa como se precisassem de recobrar fôlego, tomando volume e altura, antes
de nova arremetida sobre o rochedo impávido, repara, Rodrigo, a esta hora a vida da cidade
parece suspensa de um autocarro, a gente dos automóveis pertence a outra tribo, embora o
tráfego, aqui e ali, lhes azede a arrogância de privilegiados, inútil olhares para o relógio, não
vais precisar dele até ao fim da tua aventura, o tempo pertence-te, não o sabes mas pertence-
te, os poetas não se cansam de falar disso - lembras-te de um poema do Marketing,

o nosso companheiro

já não é rodízio

já não é um luxo

já não é pretexto .
já não é baraço

já não é balão . .

já não é trampa

que se põe no lixo

não poderias lembrar-te, o poema será escrito daqui a uns anos, o que importa, porém, é que
poderia ter sido escrito muito antes, ontem, por exemplo, e por certo a pensar em ti, nos
milhões de Rodrigos que obedecem a um livro do ponto, inútil olhares o relógio, dentro de dois
dias acabaram-se as impaciências, só serás condicionado pela saída dos jornais, começarás a
habituar-te a veres neles o teu nome, o teu retrato, um sem-número de ousadias e
minudências que te aparecerão referidas a um outro e em que, aos poucos, começas a
reconhecer-te, com a euforizante sensação de que nasceu em ti alguém que andava oculto ou
oprimido, um outro de quem já te será difícil escapar, um outro que talvez Teresa preferisse -
como te aceitará ela se regressares a casa na tua pele de Rodrigo dos Santos Abrantes, agora
que deixaste de o ser?, inútil olhares o relógio, os autocarros, de zona para zona, têm de
enfrentar o imprevisto, os horários são apenas uma ilusória referência, no entanto olhas e o
olhar desvia-se do mostrador do Timex para o edifício fronteiro, a montra da charcutaria
engalanou-se de presuntos e garrafas de Martini

232

dispostas em pirâmide, há um cartaz chamando a atenção para o novo preço, não interessa, o
Martini cai-te mal no estômago e nenhum dos teus amigos jamais te pediu esse aperitivo, toda
a malta tomou o gosto dos uísques, até nas aldeias já não há emigrante que não ofereça um
scotch, isto num país que tem vinhos para todos os paladares e todas as circunstâncias,
ultimamente é que alguém te falou de sherry, quem foi?, ah, é verdade, a Rosinda, para o que
lhe devia de dar, nos restaurantes ela tem sempre de escolher o que não vem referido na lista,
talvez seja uma maneira de se afirmar, de se sentir, por um instante, compensada de uma vida
sem acontecimento (foi ela que te contou o episódio da porteira a relatar-lhe uma conversa de
soalheiro: "Se a senhora tivesse escutado o gabanço que hoje ouvi a seu respeito! Que é
simpática, que é jeitosa, que é prestadiça e mais uma data de coisas. Já não vai ter frio este
inverno" - só o povo sabe exprimir-se assim, carregado de analogias, subtilezas, metáforas),
não vais ter frio este inverno, Rodrigo, é toda uma cidade a interessarse por ti - mas a que
preço, que espécie de curiosidade a excita?, o teu olhar sobe da montra para o telhado do
mesmo prédio, poderá julgar-se que cada morador apostou em içar mais alto a antena privada
de televisão, tão esquisitas, as pessoas, a Rosinda, todas as Rosindas (se o Carlos Murta
chamou sovina a Teresa foi por tê-la surpreendido, naquele serão, a distribuir o dinheiro do
mês por quatro montinhos, como um caixa bancário, este monte para aqui, o outro para acolá,
cada um deles com o seu rigoroso destino - e que .mal teve?, talvez Teresa precise destas
trivialíssimas domesticações para domar o que dentro dela ferve), no telhado há também as
chaminés, apenas duas para todo o prédio, nunca tinhas dado por isso, no Alentejo seria uma
floresta delas, corre agora uma aragem fria, a luz da manhã tem já a palidez transida de
dezembro, corre a aragem na tua rua desabrigada, os aviões, repara, neste tempo voam mais
baixo, quem projetou o aeroporto nunca previu o assédio da cidade que foge do rio como se o
temesse, uma cidade com a tentação das colinas, das vertentes, dos planaltos, e, todavia, o rio,
sua estrada, sua viagem, seu remorso, nasceu também para miradouro instável e fascinado, a
cidade despreza o rio, foge-lhe, tal os homens que partem do país se voltaram para a Europa
depois de terem descoberto o mundo, mas voltaram-se para ela como servos, são os tais
emigrantes do

233

scotch com sabor a lágrimas, suor, exílios, não há dia em que os jornais, com maior ou menor
tempero anedótico, não falem deles, mais uma odisseia que não estava prevista

- que é isso de ser português?, eis a resposta que subitamente me ocorre: uma imensa
capacidade de ilusão, uma imensa capacidade de perdão. Palavras, palavras, eu sei, passa
adiante. Veio-te às mãos, não há muito, um jornal de província, não cuides do tosco da prosa,
por detrás do dizer ingénuo há o coração de um povo que sangra, sangra na Europa, em África,
por mil desabridos espaços,

"Recebemos uma carta de um português radicado em França, da qual transcrevemos os


seguintes passos: Eu muito gostava de falar destes infelizes que se metem a caminho da
fronteira sem papéis, contando, ponto por ponto, o que eles passam, que foi também o que eu
passei. Ainda há tempos encontraram, numas serras de Espanha, o casaco e o chapéu de um
português comido pelos lobos. Comido pelos lobos e sem a família saber dele, é triste, e tem
sido assim com muitos, quando não morrem gelados ou com um tiro das guardas. A este
encontraram gilette, lâminas e uma caneta, coisas que os lobos desprezaram.

Há tempo apareceram-me mais quatro a baterem-me à porta para lhes arranjar trabalho,
aceitam seja o que for, os patrões aproveitam-se disso, até a gente se envergonha, e agora os
quatro andam comigo, dormem na mesma tarimba, de dia comem um pedaço de pão e
chouriço, à noite é que cozinham umas batatas com o que calhar. Contam eles que passaram os
infernos. Eram quarenta e oito que se meteram mar dentro num barco de pesca, depois
acabou-se o gazoil, não tinham luz, vieram tempestades. Não tinham abrigos, porque o barco
era pequeno e com muita gente dentro. Um deles ainda caiu ao mar, mas lá conseguiram salvá-
lo, por fim acabou-se a água de beber e perderam-se no alto-mar. Só visto e contado com
vagar.

Há dias apareceu-me outro que veio a 'salto' dirigido a Paris, acabaram por metê-lo num táxi
para aqui. Depois de dar doze contos ao passador para o pôr cá, ainda lhe levaram mais sete
mil e quinhentos escudos do táxi de Paris até aqui e o motorista ainda lhe ficou com mais mil e
quinhentos escudos em dinheiro português que trazia no bolso. É tudo a roubar. É tudo a tirar
a pele a estes infelizes, as Franças são um engano para muita gente. Eu é

234 .'j

que tive de lhe emprestar o dinheiro para pagar o táxi, mas só no fim de ele partir é que soube
da ladroeira, houve um transmontano que chegou a agarrar-se ao trem de aterragem de um
avião para poder sair do país. Muitas mais coisas havia a contar da vida que fazemos por cá, é
só trabalhar, cada tostão que para aí mandamos é mais amargo que fel"

mil desabridos espaços, um momento, Rodrigo, deixa ouvir ali o Castel-Branco, ele enfiou o
polegar eclesiástico na cava do colete, a boca rebenta-lhe de gozo mal-sofreado,

-E ainda te irritas que eu fale da tua vocação miserabilista!

pronto, já o ouvimos, a aragem pôs em alvoroço a banca dos jornais, esta rua parece um funil
de vento - 'lá está Teresa à janela, só agora te veio a dúvida sobre se, com as pressas, te terias
despedido.

Mas há talvez melhor - estou a referir-me a "material" relativo à emigração. Marcelino


Fernandes gravou uma narrativa do emigrante José de Moura, poderemos conhecê-la, daqui a
anos, inserida numa monografia de Manuel Viegas Guerreiro sobre Pifões das juntas - leiam-na
por favor, se querem saber, mais do que sabem, do que é este povo singular. you debicar aqui e
ali, só para que lhe tomem o gosto. Foram assim algumas das falas do José de Moura:

"Os passadores levaram-nos diretos à estrada. Meteram-nos a quarenta e quatro homens


dentro daquele camião fechado. Andamos doze horas não sabemos por onde. Comer, nada.
Chegamos a um certo sítio, lá na Espanha, apareceu-nos um carro ligeiro de frente. Esse carro
que nos apareceu falou para o chofer do carro em que íamos e disse:
- Tudo para fora, mas é depressa.

Entraram dois homens dentro do camião, botaram-nos a todos pró meio da rua. Dali subimos
por umas escadas de uma igreja acima, seguimos sempre a fugir. Entramos num túnel, devia
ter sido de uma linha de caminho de ferro. Quando estávamos todos os homens dentro da
linha do comboio, começaram aos tiros a nós, uns de frente, outros da retaguarda. O passador
mandou-nos deitar todos pró chão. Estivemos para aí uma hora deitados até que o passador
veio lá de fazer o contrato com a polícia ou lá não

235

sei com quem, até que nos mandou pôr de pé. Seguimos, seguimos, fomos ter a uma estrada,
apareceu uma carrinha de passadores, uma Peugeot pequena, éramos quarenta e quatro
homens, mandaram-nos subir todos para cima. Tínhamos que ir a cacha pernas dos taipais da
carrinha, outros deitados, outros de pé. Era lá numa estrada a subir, a carrinha não podia com
nós, começamos a gritar. O chofer mandou-nos descer, fugiu com a carrinha, ficamos sem
ninguém. Não sabíamos onde estávamos. Descemos num lameiro, muito a descer, fomo-nos
espetar todos num ribeiro onde havia silvas, escalheiros, toda a porcaria. Rasgamo-nos todos,
aleijamo-nos, foi para ali uma miséria.

Dali procuramos um carreiro qualquer das ovelhas, fomos ter a uma quinta. O dono da quinta
teve medo, veio com uma espingarda, perguntou quem nós éramos. Dissemos-lhe que íamos
para França e o passador nos abandonara, se nos podia dar arrumo ali numa corte ou um
palheiro.

- Sim dou, venham pra cá.

Entramos para uma corte onde lá estavam para aí duzentas ovelhas, deitamo-nos nas
manjedouras onde as ovelhas comiam, no sítio onde se deitavam as ovelhas estava tudo
molhado. Pró outro dia de manhã aquele próprio homem, também devia ser passador ou tinha
negócios com eles, trouxe-nos à estrada, meteu-nos num silvaredo, numa floresta medosa
mesmo. Estávamos nessa floresta e bateram quatro homens carregados de chouriço, pão e
vinho. Ali comemos e ali bebemos pouquinho e ruim. A polícia andou todo o dia à procura de
nós, tínhamos sido denunciados. À noute, quando o sol se pôs, levaram-nos para outra corte
de ovelhas e depois pegaram em nós e toca a andar a pé. Só por montanhas, só por Pireneus,
foram onze horas certinhas. Chegamos a descer aos trinta e aos quarenta metros de costas,
deitados pelo chão. Caíamos, gritávamos, uns cansavam, outros já não aguentavam a viagem.
Quando eram três da manhã, chegamos a um dito rio que media alguns quarenta metros de
largura, onde a água dava pelo pescoço aos homens que lá passavam. Nesse dito rio houve um
rapaz com dezoito anos, novo e baixote, que consoante a água tomou posse dele o rapaz jogou
água abaixo. Esse rapaz que foi pela água abaixo para aí a uns cirtqúenta metros, foi um colega
apanhá-lo, onde lhe fugiram as botas dele e onde fugiram as do rapazito que

236

fugira também pela água abaixo, onde ele o salvou. Sorte do rapazito, o outro sabia nadar.
Passamos o rio, eram uns lameiros e quisemos vestir-nos e os passadores não nos deixaram
vestir. Quatro horas a pé todos despidos, quarenta e quatro homens nos Pireneus. Passou lá
um pastor e disse-nos que íamos mal, que a polícia estava à nossa espera. Cortamos para um
sítio que nem os bichos lá podiam subir. Era muito encosta, nós caíamos, escorregávamos. Não
tínhamos outra coisa nas mãos, nos joelhos e no nosso corpo senão ouriços espetados. Até que
subimos a um alto do Pireneus e estava uma cerca de arame farpado e os passadores
mandaram-nos avançar para dentro daquela cerca, onde lá estavam para aí oitenta porcos
bravos. Esses porcos bravos, conforme nos viram entrar dentro da cerca, filaram todos em nós.
O nosso remédio foi fugir até que nos pudemos salvar desses bichos. Saímos fora, os
passadores não davam de comer, nós tínhamos fome, nós já não podíamos andar, nós não
podíamos aguentar a sede. Nós todos molhados, nós cheios de frio, nós cheios de miséria.
Fomos andando, chegamos a um ponto e houve colegas que disseram assim:

-O passador ou vai dar de comer, ou o matamos aqui. Foi sorte não o matarmos, senão
matavam-nos a nós"

mil desabridos espaços, um momento, Rodrigo, o CastelBranco tem mais qualquer coisa a dizer,

-É ridículo, André, não vês que estes dramalhões já não se usam?

pronto, já o ouvimos, lá está Teresa à janela, ela anda tristonha, esforça-se por sorrir, alguma
coisa a preocupa. E o pior é que não te dirá a razão dessa melancolia, o que ela espera é que a
descubras por ti, bem sabes quanto Teresa te lança ínvios desafios, que só raramente te dás ao
cuidado de decifrar - uma mulher talvez incómoda, será que essa incomodidade te foi
saturando de dia para dia? Esta tarde, se te lembrares (é preciso que te lembres), deverias
trazer-lhe uma bugiganga, o valor é o menos, "o que importa é a oportunidade" - ouviste-lhe
essa frase a propósito das ninharias entre casais, não foi por acaso que ela o disse sabendo
muito bem que estavas atento às suas palavras. Reparaste na sua reação ao ramo de dálias que
lhe mandou o Adalberto no dia de anos? Nem uma exclamação
- mas quantas vezes as compôs na jarra? Uma bugiganga, talvez aquela caixinha laçada que
viste na montra da

237

perfumaria, e por que não um perfume?, tão prático, tão óbvio ("os perfumes fazem sempre
jeito", a frase também é dela), não conheces as marcas, mas há um perfume qualquer que vem
sendo muito badalado na televisão - pede esse à empregada.

A impaciência deste rapazola ainda é maior que a tua. Nem consegue acender o cigarro,
debalde tentou abrigar a chama do isqueiro de várias maneiras, a brisa corta-lhe as voltas, ou
então é da desordem dos gestos, por fim deu resultado agachar-se sob a proteção das costas
largonas do sujeito de má catadura que tinha à frente, os óculos professorais reforçam-lhe o ar
embirrento, deve rondar os sessenta, vê-se, porém, que cuida do físico, o que mais chama a
atenção é o modo de agarrar a pega da pasta com as mãos sobrepostas, até parece que lhe
puseram algemas, pode inferir-se que ele não aprecia estar na bicha entre o rapazola
esgrouviado e uma moça desmanchadona, camisola de gola alta com a malha delida em dois
sítios, saia folhuda a rojar o chão, toda a vestimenta, para mais, a expelir um cheiro enjoativo a
essências orientais, o homem da pasta funga de segundo a segundo, não há dúvida de que
desaprova o desmazelo e os incenses.

Eis o autocarro - vá, faz um adeus a Teresa, mesmo que, a esta distância, não seja garantido
que ela dê por isso. A bicha comprime-se e, ao mover-se assim, todos se julgam mais perto ou
mais seguros de um lugar, ouve-se o ganido dos freios, descem dois passageiros, podia ser pior,
entram dois, quatro - alto, parou. O cobrador tinha a contagem na ponta da língua, nem mais
um utente para a plataforma, "Afaste-se, minha senhora, que ainda fica debaixo de uma roda",
dá o toque convencionado para o condutor - siga.

Estou a ver-te, na tua cabeça há uma calculadora que soma e subtrai com uma instantaneidade
de assustar. Se o próximo autocarro não tardar mais que três minutos e se, no Chile, o
transbordo para o 38 se fizer, digamos, em dois minutos, poderás chegar à Novilectra no exato
momento em que o relógio do ponto saltará para a zona de infração. Três minutos. Passou um
minuto, passaram dois ganhaste. Aí vem outro carro e, desta vez, a bicha está reduzida a um
terço. Uf, poderás creditar um minuto à tua contabilidade horária. Velha carripana, já é
enguiço. Não há gonzo que não chie, cremalheira que não estremeça, nos ressaltos do
empedrado receia-se que vá partir-se por qualquer das juntas. Levará o dobro do tempo para o

238
mesmo caminho, não contavas com este atraso de vida. Terás reparado no papo-seco que se
pôs ao lado da moça dos incenses? Sapatos castanhos e brancos, como foi uso nos anos 40, de
mais a mais num outono invernoso o ridículo só existe em quem o vê. Que fumaças, as dele, o
pescoço até lhe dói de tanto aprumo. Aquele ganapo quis subir com o autocarro em
andamento, pela porta da saída, mas o cobrador não se deixa enrolar, conhece de sobra todo o
rosário de truques - toca a descer na primeira paragem. Tudo, porém, numa cumplicidade
bonacheira, dizem que é do nosso modo de ser. Mas também fazemos guerras, longínquas
guerras que alheias nos parecem, cujos sinais a imprensa é forçada a espelhar com viciadoras
branduras, ainda ontem leste

"respira-se em Quitexe (Angola) uma atmosfera de tranquilidade. Nos últimos seis meses,
dezasseis casas comerciais reabriram. Vejo outras em preparativos para as imitar. E vai ser
construído um hotel, caso inédito na vila - o terreno está a ser demarcado.

Em 30 de julho foram apresentar-se, na Fazenda Manuela, os primeiros nativos. Vinham da


serra, onde haviam estado sujeitos à opressão dos terroristas. Doentes, depauperados, feridos,
outros lhe seguiram o exemplo. Mostram-me (e cedem-me) fotografia dupla de Domingas
Babiana, tirada com intervalo de sete meses. De um lado, esquelética, verdadeiro farrapo
humano, ao ser evacuada, de helicóptero, pelas nossas tropas. De outro, bem alimentada,
fornida de carnes, vendendo saúde. A foto foi largamente distribuída, e deve ter feito pensar
muito terrorista.

Sete sanzalas, de apresentados, na região. Antigos terroristas. Vejo-os na delegação de saúde,


doentes, feridos, cobertos de mazelas. Diariamente vêm à consulta. Esperam, tranquilos,
sorridentes, a sua vez.

E vejo-os no Quitoque, onde estão já duzentos e cinquenta e sete, recuperados desde agosto.
O primeiro, Simão Domingos, é agora soba. Está a construir casa, a maior da sanzala. Mas,
antigo carpinteiro, luta com dificuldades. A caixa de ferramenta levou-a a maka. Mostra-me a
sanzala. Aqui, trata-se a mandioca, posta a secar. Acolá prepara-se o infunde.

- Por que não vêm mais? - pergunto.

Aponta a serra do Quitoque:

239
- Lá em cima continuam cinco homens armados.

Eles dizem que o branco mata quem vier.

-Qualquer dia vais lá e trazes a tua gente - observa alguém a meu lado.

O soba ri, pouco convencido.

O problema resume-se nisto: os terroristas têm gente sujeita. População que trabalha para
eles, planta para eles, os serve e respeita o poder que a força lhes dá. Na serra, o chefe sabe
que é ele quem manda. Sem súbditos, acaba o seu reino efémero de terror. Há que conservá-
los, portanto. Quanto a entregar-se ele próprio, o caso é ainda mais difícil. Por bem acolhido
que seja (os nossos soldados nunca perguntam aos capturados ou apresentados quantos
brancos mataram) reconhece que se inverterão os papéis, e terá ele de ser mandado, em vez
de mandar.

À partida de Quitexe, o comandante do batalhão oferece-me o Facho - a publicação mensal da


unidade".

Como é que tudo isto, mentira e verdade, ilusão e desengano, cupidez e galhardia, quimera e
horror, irá acabar? E como seremos nós depois de termos podido dizer: "isto acabou"?

A praceta do Chile, finalmente. (A propósito, Rodrigo: a nossa cidade dará nome de ruas lá
onde vivem outros povos e se falam outras línguas? Aqui é o que vês: não há país que, em
Portugal, não se passeie por becos e alamedas

- somos, cuido eu, os eternos subservientes, o orgulho gastou-se todo nas caravelas e vai ficar
de rastos depois desta miragem africana.) O Chile, portanto. Uma corrida para o 38, pelo
tamanho da bicha é de prever que esteja aí a rebentar. Três autocarros seguidos no sinal
vermelho, o mais certo é um deles ser o 38. É, vem em segundo lugar. Nem precisarás de
correrias na ponta final do teu horário, uma folga provável de minuto e meio, mais do que tem
sido habitual. E, no entanto, bastaria que te levantasses um quarto de hora mais cedo (Teresa
já desistiu de discutir essa teima) para que ficasses ao abrigo de aflições - um quarto de hora
será assim tão indispensável à tua dose de sono? Não é, mas o certo é que, nos últimos
tempos, há em ti birras difíceis de entender. Parece que estás a competir com um adversário
do qual tens mesmo de sair vencedor, esse adversário quem é - tu?
O 38 nem parou. Cheio como um ovo. Perguntarás inutilmente à mulher que te precede na
bicha: "Já esperam

240

há muito?", aí tens a resposta, com a mesma inutilidade: "Para cima de um quarto de hora e,
pelos vistos, vamos esperar outro tanto". A mulher tem o rosto seco, talhado à podoa, lembra
as pioneiras dos westems americanos a porem ao largo os bandoleiros com um bacamarte nas
mãos - que há nela de insólito? Observa-a de alto a baixo, deixa de pensar nos horários, daqui
a um ano, por exemplo, que restará deste percalço na tua memória? Coisa nenhuma. Sendo
assim, para que te enervas de tal modo? Apenas mais um atraso na tua ficha de funcionário da
Novilectra, que se lixe. Que se lixe a Novilectra - bravo, Rodrigo. Ah, a pulseira. A mulher tem
uma pulseira de varina próspera, usa-a em cerimónias a puxar às grandezas, talvez nos
casamentos. Daqui a um ano, esta irritada espera na paragem dos autocarros tê-la-ás
efetivamente varrido da lembrança? Talvez não. Teresa receia a tua memória, ou antes, o que
ela recolhe como pecúlio de ressentimentos. De tanto que a amas, queres o seu presente e o
seu passado. Tu lho disseste naquela noite em que, instada, porventura coagida (e por que não
apenas confiada'?), te falou dos seus "dois casos" (ou foram mais?), dos homens que
conhecera antes de ti. Recusaste ouvir pormenores, quando todo o teu desejo seria que nem
um fosse esquecido,

-Prefiro que não me contes, quisera apagar de ti tudo o que viveste sem mim.

- Mas está apagado, Rodrigo.

-Duvido, sinto que esses homens deixaram cicatrizes no teu corpo.

- Que tonto, Rodrigo, para uma tolice assim não há resposta possível.

e; meses mais tarde, estavam ambos na praia deserta, à hora em que Teresa se seduz pelo mar,
e soltou-se aquela frase:

-Tinha eu dezasseis anos e, vê lá tu, conheci um Rodrigo, um nome que nem é vulgar, um
namoro de termas, durou apenas esse verão, era alto e esquivo como tu, uma coincidência
engraçada.
- E depois?

-Depois o quê? : . -.-v

- Os outros.

-Não houve outros, ou melhor, namorisquei um cadete da Escola Naval, encontramo-nos num
baile, só quis dançar comigo, passou a ir esperar-me à saída do liceu.

241

Teresa fugira à verdade, isto é, mentira sem que tivesse mentido. Para se defender (e te
defender) da tua azeda e insegura susceptibilidade? Não lho perguntaste, não lho disseste. A
Teresa que, inadvertidamente, dera duas versões do passado, deixara de ser a mesma. No
entanto, alguns dias mais tarde, repetiste a pergunta, dessa vez de um modo acusador:

-Por que não me falaste dos outros, dos tais "dois casos?" O diálogo que tivemos na altura está
registrado, palavra a palavra, na minha cabeça.

-Oh, Rodrigo, que pessoa difícil és. Eu referia-me ao "meu tempo de rapariguinha e não ao que
sucedeu quando já era mulher.

De novo o silêncio, de novo uma frase longínqua.

- Em que pensas?

-Em que penso? Espera aí, nem eu sei bem. Talvez nisso de achares que ando meio estranho.

De novo o silêncio, teu refúgio, teu martírio, nele se calou o que angustiosamente te apetecia
replicar. Para que se esquivara Teresa ao que já fora confessado?
De tudo isso te lembrarás, amanhã, durante a travessia do rio. Como pudeste, anos e anos, ser
tão dependente dos humores de Teresa? Ela o eixo, tu a roda. Por isso, saboreada a fortuita
libertação, adiarás, de hora para hora, o regresso a casa e, por fim, quando te vires
personagem de quantos jornais há por esta cidade de indiferenças (e no Martinho, que dirão os
amigos? Já te apeteceu ir lá espreitar), tal regresso acabará por parecer-te uma insuportável
rendição. Mas terás de telefonar a alguém, precisas de sentir as reações de Teresa, de Cecília e
até do Carlos Murta, mesmo que a imprensa te diga tudo o que pretendes saber - nem
imaginas, Rodrigo, como te irão fechando as portas de saída. Amanhã, no rio - o vosso rio. Uma
largueza de mar, golpeado de feridas brancas do rasto' agudo dos navios, numa das margens o
alto, escuro perfil do Castelo, na outra a flotilha de chaminés do Barreiro, de lume ou de
fumo?, a cidade alastra-se à medida que dela nos afastamos, o casco vermelho de um
cargueiro de longo curso, parece um corpo esfolado vivo, lindos os barcos amarelos, também
os há verdes, como répteis arrastando-se pelas águas, era talvez aquele o banco onde viste
Teresa sentada, a criança deixara fugir o balão, ambos correram a ajudá-la, o entardecer viera
súbito e desmaiado, as primeiras sombras deitaram-se sobre o Terreiro do

242

Paço, onde os pescadores à linha, junto ao Cais das Colunas, tinham esquecido o tempo, não se
calam, as bielas, o seu estremecer enfia-se-nos nas tripas, "ai a sorte", lá vem o Vouga em
marcha de quem tem pressa, "Graxa, freguês", o homem do boné passa os dedos uns pelos
outros como se tivesse um rosário nas mãos, "Pois é, palpita-me", nem um cliente para a graxa,
ele acabará por mudar de sítio, que varizes, as da estrangeira de blusa clara, "perderam aí
qualquer coisa", "oh, c'est joli", clique

- a fotografia, "ou estão a ajudar os gajos", o vestido dela não é vestido, é fralda, nem frio tem
e o tempo já não está para graças, "quem quer a taluda?", o homem da Canon empina, na
sandália, o dedo grande do pé, "il faut tenir", um barco, com o feitio de jangada, vai no encalço
da corveta que passa rente ao Vouga, o rio agita-se, "venez, une petite photo là-bas", a
rapariga de óculos esfíngicos colhe pinhões da cova das mãos num gesto de galinha a debicar o
lixo, uma chapada de sol tardio incendiou-lhe a blusa - passam-se coisas do outro lado desse
rio, e tu sabe-lo. Greves, rondas, confrontos. Fala-se de feridos, fala-se de mortos. Que
pensarás disso? As escadas no portaló, alguns passageiros saltam antes que a manobra
termine. Os cartazes do cinema no prédio a seguir à marisqueira: HÉRCULES, O
CONQUISTADOR, uma montra a anunciar GRANDES BAILES NO CLUBE RECREATIVO PIEDENSE,
ABRILHANTADOS PELO CONJUNTO BULIMUNDO. E agora, que emocionado espanto o teu?
Mais um cartaz, este grande, colorido, colado na parede: a vistosa reprodução fotográfica de
uma janela aberta sobre o recorte costeiro da margem sul; e, por debaixo, a toda a largura do
papel, as letras gritadas de um tempo futuro: ALMADA, UM CONSELHO PARA O POVO DE
ABRIL. Abril, povo - que quer isto dizer?

Estou a ver-te, sim, mas ainda na Praceta do Chile. bom, se o 38, aquele por que esperas,
tardar o previsto quarto de hora, é preferível nem invocar milagres. O relógio do ponto foi-te
devorando as hipóteses mais benignas, nem de táxi chegarias a horas. Nada remediarás,
porém, com esse moedouro de mais minuto, menos minuto, que se lixe. A Novilectra para o
diabo que a carregue. Estranho: o quiosque de jornais, ali defronte, ainda está fechado. O dono
descuidou-se na cama, ou adoeceu, ou... Um autocarro a abeirar-se da paragem, só que não é
o 38, este segue para Xabregas, dá a volta pelo

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Areeiro. O motor também é dos asmáticos, vê-se logo, cada arrancada lhe pede um estertor de
agonia adiada. Como parou uns metros além, a bicha desmanda-se para que três candidatos
acorram à porta da plataforma. Um deles, peitaça esbodegada, tem uns modos rufiões de
quem subiu ao ring e de lá desafia os parceiros. Perto, os camartelos do município, buracos
bem à vista, replicam aos de um prédio quase tapado por andaimes, a remodelação da fachada
será de estalo, e, se se atentar no ruído, uma pessoa sente que terá de fugir de tal vizinhança; é
por isso que alguém se azeda: "Agora é tudo a fazer obras; que não há dinheiro, mas obras não
faltam, até chateia", e o azedume logo repercute bicha adiante: "Não param, estes raios",
embora o aparte possa relacionar-se com novo autocarro de lotação esgotada (ainda não é o
38), nem sequer se chegando à paragem. E se o 38, o próximo, aquele por que esperas, vier
também cheio, ou, o que resultará no mesmo, a sua demora exceder o quarto de hora? A
resposta já a deste, Rodrigo, em cada segundo que passa estás mais longe da Novilectra.
Porém, sendo assim por que não te distancias ainda mais de tudo o que te esperava neste 14
de novembro de 1965? Estou a ver-te, mas não já aí. Penso em Teresa, penso no rio, quantos
sangues por ele correram, onde te vejo há uma travessia do Tejo. Qual delas, porém? Como foi
possível que te tivessem encontrado numa carreira para o Barreiro? Que razões te chamaram a
esses lados? Mas, antes disso, onde te vejo é por essa cidade além. Conhecerás tu a cidade ou
apenas julgas conhecê-la? Neste momento, o teu atraso é de - importa saber quanto
exatamente?, o que importa é estendê-lo pela manhã inteira, uma manhã tua, bem tua, nem
Teresa, que precisa de ter sempre todos os fios na mão, de saber em cada instante o que fazem
aqueles que ama (uma posse discreta, sem amuos nem imposições, mas terrivelmente
aleitada), nem Teresa poderá imaginar onde e como a irás preencher. Descontando os
domingos, os feriados, que não têm o mesmo sabor dos outros dias, há quantos meses não
passas uma manhã fora da Novilectra? Nos primeiros tempos após o encontro com Teresa
(como entardeceu de repente, nesse dia), ainda conseguias umas justificações para iludires o
horário, isso acabou, e, paradoxalmente, quando o gerente te promoveu. Um chefe de secção
não pode andar por aí em fretes de moço de recados. Como te parecerá a cidade, no auge do
bulício que lhe dá vida,
244

durante os dias da semana? Afinal, na verdade só a conheces ao fim da tarde, no regresso do


emprego e, a partir dessa hora, talvez seja uma outra cidade - será? De resto, a tua cidade, a
bem dizer, é a tertúlia do Martinho, o autocarro (mais um) que te leva a casa, depois do outro
que te pôs na Baixa, metade da tua vida gasta em transportes públicos, secretárias da
Novilectra, mesas de café. Voltando ao quiosque dos jornais: talvez o dono não tenha
adoecido, talvez, sem mais coações, tenha muito simplesmente decidido não o abrir hoje, 14
de novembro. Tu, Rodrigo, não irás à Novilectra, também tu o decidiste, neste mesmo 14 de
novembro.

Acabas de sair da bicha, quem quiser que aproveite. A Caneca, que raio de nome, mas para
cervejaria até lhe assenta, o novo BMW é uma bomba, a isso nunca chegarás, que trânsito, de
súbito os passeios, as ruas, os cruzamentos semelham enxurradas, para onde se dirige toda
esta gente?, afinal a manhã clareou, lá mais para o meio-dia até haverá uma amostra de sol,
não falta muito para que a pobre da Manuela tenha de justificar a tua ausência ao gerente da
Novilectra (diretor, é o que ele quer que lhe chamem), este dormiu a noite toda no banco do
Jardim dos Anjos, ao léu, expande-se agora num primeiro bocejo de disponibilidade
recomeçada, avenida fora, uma avenida que parece não ter fim, as árvores reverdeceram com
as chuvas de outubro, um operário vem ao teu encontro com a lancheira na mão, mas quem
ele saúda é um outro que desce de uma das ruas laterais: "Tudo porreirinho, não?", claro,
porreiro, sentimo-nos sempre catastróficos e, no minuto seguinte, tudo é porreirinho, os
elétricos, um chocalhar de ferros, o velho que cuspiu um escarro grosso não te apanhou as
calças por uma unha negra, que tráfego, aí vai finalmente o 38, adeus, adeus, lá pela tarde,
quando o poente

-Em que pensas?

-Espera aí, nem eu sei bem. Penso em ti, em Teresa e, agora que se falou em poente, penso em
Marta, sobretudo em Marta.

- Mas nenhum de nós falou em poente. ,,

- Não? Quis-me parecer. . , ',..-. -Andas, de fato, estranho. Quem é Marta?;,,- ;


- Não a conheces.

- Por isso te pergunto.

245

-Nenhuma resposta te esclareceria. É preciso conhecê-la bem para se saber que pessoa é.

-Quem te ouvisse, diria que há entre vós uma intimidade que não é lá muito normal.

- Aonde queres chegar, Dorita? quando o poente

"Que escuridões, as tuas canas. Cada palavra é um relâmpago negro. Até procuras
amesquinhar-te, tu, o homem que eu amo - e nunca poderia amar um homem qualquer. Devia
ser proibido alguém dizer de si próprio tais coisas. Vemo-nos demasiado subjetivamente, só os
outros podem revelar-nos a nossa dimensão.

Mas de uma palavra gostei: 'sol poente'. you dizer-te por quê. Correm nas minhas veias muitos
sangues: indianos, irlandeses, berberes. Talvez isso explique que, na minha infância (na minha
tribo familiar), houvesse um rito, celebrado quase todos os dias num silêncio feito de
assombração e de espantos. Do alpendre da nossa casa, no dorso das dunas, contemplava-se o
sumptuoso pôr-do-sol. É impossível descrever-lhe a beleza, a solenidade, a dor. Seria preciso
tê-lo sentido alguma vez para se avaliar como se fixa na retina. O sol deita-se sobre o mar
numa orgia de cores. Se lhes voltares as costas, olhando, ao longe, as serranias do continente,
verás a noite a despontar furtiva, as estrelas a subirem timidamente no horizonte, receosas de
que o seu esplendor seja ofuscado por esta soberba agonia. E o rito era assim: eu dançava pela
areia dourada, enquanto meu pai, sentado numa cadeira de balouço, ia saboreando um cálice
de vinho do Porto e o poente se afogava no mar. Dançar é como fazer amor. A dança, a música,
o ritmo são em nós uma segunda natureza. Dançar é libertar o corpo, deixando-o exprimir a
paixão que tem dentro. Quando o sol desaparecia, recolhíamos todos a casa, o dia acabara,
meu pai tinha uma expressão de gravidade.

São dezasseis horas menos vinte minutos, estou sozinha, apática, indolente, paralisada por
ideias tão negras como as tuas. E és tu a causa. Desta vez, terei a ousadia de ir até o fim. Disse-
te em tempos, e por motivos que não repetirei, que desejava que fosses o meu homem, o
único, sem peso, conta e medida. Nada respondeste, ou antes, fingiste responder, escondendo-
te num nevoeiro emocional de tormentos, que usas quando te convém, embora nele ponhas
uma evidente sinceridade. Ora bem: agora quero

246

uma resposta nítida, ou me aceitas ou me recusas. Sou muito diferente de ti. Quando um
problema me angustia, tento de começo afastá-lo, ignorá-lo, mas não consigo manter essa
defesa por muito tempo. Chega uma hora em que, saturada dessa duplicidade (como já te
disse, não gosto de sofrer inutilmente), atiro-me à corrente e, se me afogar, paciência, se me
salvar, tanto melhor. Por isso chego a ter medo de mim, pois, quando me 'lanço', nada mais me
detém.

Quero, portanto, que me digas claramente o que sentes, o que decides. Não aguento mais.
Continuando a escrever-te, não conseguiria desprender-me de ti, não conseguiria dominar a
ilusão. É preferível espezinhá-la de vez.

Je t'aime, je t'aime, je t'aime,

et toi, et toi,

tu es libre de choisir.

Penso em ti.

Marta."

quando o poente amacia as colinas da cidade, as muralhas do Castelo crescendo na fatigada


palidez do céu, para onde te diriges, Rodrigo - que barco escolheste entre tantos que o rio deita
no seu regaço ondulado? Dizem os jornais que foi o Alentejo, que parte da Estação Marítima
do Sul e Sueste, o Barreiro é o seu destino. E que nele encontraram uma gabardina. ,
247

Estou a ver-me.

Daqui a não sei quantos anos.

Num dos primeiros dias de maio.

Subo a ladeira do Chiado, pausadamente, como nos tempos das vadiagens com o Faria Gomes -
a falta que ele me faz. Ali me juntarei a mais três pessoas do mundo das letras. O Castel-Branco
bufou de não ter sido convidado, julgava-se com candeia acesa no todo-poderoso MFA.
Querem que visitemos as instalações da Pide; último reduto do salazarismo, donde os secretas
fugiram por galerias subterrâneas, tocas de ratos em pânico, ainda se vêem, no empedrado da
rua, nódoas do sangue dos que morreram durante o assédio da multidão.

Espera-nos, à entrada, um fuzileiro naval, apoiado à arma displicentemente, boina descaída,


farda ao desdém, acabaram-se os cerimoniais - é proibido proibir, é proibido disciplinar. Anda o
coração nas ruas, deixem-no sem espartilhos.

Franqueamos a porta num mutismo solene, uma garra nas vísceras. Os meus olhos negam-se a
observar, tenho de insistir com eles - que se passa comigo? Precisava de ter à mão as ímpias
ironias do Neves, creio que me doseariam esta frouxa emocionalidade. Um longo corredor.
Aqui foram as salas de espera, revolta, ansiedade, ali as de interrogatório e tortura. Escadas
interiores de ferro, pátios, claustros, celas, que marcas são estas nas paredes?, gabinetes de
obscuras burocracias, uma colmeia labiríntica, no primeiro andar (ou no segundo?) esquisitas
aparelhagens, lembram-me estúdios de gravação e emissão, coisas que nunca entendi e me
põem em guarda, estantes metálicas até ao teto, arquivos, ficheiros, os meus olhos rejeitam, o
estômago agonia-se, tudo isto o sinto como uma herética incursão num universo terrificante,
tudo isto é em mim um pesadelo, ouvem-se gritos que não gritam, passos

249

que ficaram imóveis, papelada espavorida pelo chão, cestos a abarrotar de estraçalhados
documentos, no tampo das secretárias folhas arrancadas a revistas eróticas, cigarros que não
se fumaram até ao fim, o cheiro, ainda acre, a queimadas aflitas, lá estão as cinzas no tapete,
retratos de Salazar com o enfurecido rasgão de navalhas, andou por aqui uma razia de cóleras,
objetos mutilados, "levem, levem, é uma lembrança, os senhores são visitas de cinco estrelas",
nem sei que me fez recusar, pior, nem sei que me fez recuar, cada um de nós ("cinco estrelas")
se reparte pelas salas contíguas consoante o que mais o atrai (qual teria sido a atração do
Castel-Branco, tão vocacionado para secreta?), ninguém nos vigia, é proibido vigiar, e eis que
me vejo preso a uma lista de "personalidades" que deveriam ser "imediatamente alertadas"
em caso de grave doença de Salazar, o papel arde-me nas mãos, fixo-me, esgazeado, num dos
nomes, como é que, num limbo de duplicidade, podemos ter confiado tanto, ide lá fora e
perguntai às gentes iradas se esta "personalidade" não merece respeito, e todavia ela aí está à
cabeça da lista, há na ambiência um silente peso de história, de ferocidades, cinismos, guias,
dores, meio século - um nada e um muito, e o tenente dos fuzileiros, nosso cicerone, persiste
em que nos sintamos em casa: "Levem, levem, este não é um dia como os outros", até que um
dos visitantes pergunta:

- Mesmo os dossiers?

-Pois, mesmo os dossiers, escolham o que mais vos interessar.

O Luís Moreira dirige-se, então, à estante que tem um gordo M por cima, pesquisa com
nervosismo, finalmente anuncia-nos:

- Cá está ele, o meu.

Folheia-o com acrescida impaciência, depois mais devagar, galhofa, indigna-se, enquanto lhe
apreciamos as reações. Nessa altura o tenente interpela-me quase numa entonação de
censura:

- Não quererá o seu, André Bernardes?

Para quê - recuso-me uma vez mais. Tudo aquilo me dá náusea e horror. Até a nossa presença
ali. Vou-me deixando ficar para trás, volto à lista dos que a Pide deveria prevenir, espanto-me
de novo de ali ver certas pessoas, sobretudo aquela, André, quantas vezes lhe apertaste a

250
l

mão, num regime de desconfiança teremos que suspeitar de todos?, e, numa inflexão
repentina, digo ao fuzileiro:

-Desculpe, afinal estou interessado num certo dossier. Se ele existir, claro.

- O nome, eu procuro.

- Rodrigo dos Santos Abrantes.

Lisboa, 11 de novembro de 1981

251

NOTA

com algumas alterações que o seu aproveitamento impunha, neste livro incluem-se trechos de
notícias, crónicas e reportagens publicadas na imprensa, designadamente no Diário Popular, A
Capital, Portugal Hoje e O Século, no intento de documentar o ambiente ou a época com maior
sugestão de veracidade.

253

O AUTOR E SUA OBRA

Entre os poucos escritores portugueses contemporâneos divulgados no Brasil, situa-se


Fernando Namora, o autor mais lido em seu país, além de ser o mais conhecido além-
fronteiras, com obras traduzidas para o japonês, o finlandês e outros idiomas, e ganhador de
muitos prémios literários. Uma exceção à regra do lamentável desconhecimento mútuo das
culturas brasileira e portuguesa.
Tanto Fernando Namora é um nome conhecido no Brasil, que a primeira edição do romance "O
rio triste" aconteceu aqui, seguindo-se depois a edição portuguesa. É muito, mas não é tudo.
"Os meus leitores brasileiros não são assim tão numerosos. Infelizmente. Mas os que tenho
representam para mim um precioso estímulo, pois o ato literário é o conjunto do escrever e do
ler. Uma obra sem leitores não se cumpre. Obra é comunicação. Toda ela convida a uma
participação, que será tanto mais fecunda quanto mais vasta e matizada."

Obra vasta e matizada como a que vem construindo desde 1937, quando publicou "Relevo",
seguindo-se "As sete partidas do mundo" (1938), "Fogo na noite escura" (1943), "Casa da
malta" (1945), "Minas de San Francisco" (1946), "A noite e a madrugada" (1950), "O trigo e o
joio" (1954, já publicada pelo Círculo), "O homem disfarçado" (1957), "Domingo à tarde"
(1961), "Diálogo em setembro" (1966), "Os clandestinos" (1972) e "O rio triste" (1982),
romances e novelas.

Mas Namora é também poeta, memorialista, com vários títulos nesses géneros, como "As frias
madrugadas" (1959) e "Marketing" (1969) - poesia -, e "Retalhos da vida de um médico",
primeira e segunda séries (1949 e

1963). "Penso que sou um escritor que se desafia, sem cuidar do preço.

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