Professional Documents
Culture Documents
Segundo professor, ascensão do humor machista, homofóbico e racista foi preparo para
a situação atual
Marcos Natali
Como escreveu Theodor Adorno em sua “Minima Moralia”, o dilema daquele que se vê
diante da necessidade de determinar o alcance efetivo de ameaças é que não há exame
razoável e ponderado de proposições que, sendo capazes de produzir movimentos
paranoicos, serão necessariamente deslizantes e expansivas, gerando sempre novas
presunções causais e culpabilizações.
Não há, sobretudo, como ter confiança de que se sabe quais serão exatamente os
limites de uma manifestação paranoica qualquer, ou quais os limiares que não serão
ultrapassados. (Como no romance “Graça Infinita”, de David Foster Wallace, a pergunta
aqui também é: claro, sou paranoico, mas como saber se estou sendo suficientemente
paranoico?)
Entretanto, se é verdade que só poderá haver certeza da existência de uma base real
para um receio extremo num momento posterior, não há, ao mesmo tempo, a opção de
aguardar para descobrir se as bravatas eram apenas isso, ou se algumas sim e outras
não. (Mas quais?)
Mas há outro aspecto que caracteriza o discurso fascista que permite uma avaliação
mais segura a respeito do movimento em curso no país.
Nesses termos, por mais relevante que seja aquilo que Bolsonaro pode fazer caso seja
eleito à Presidência, não é necessário aguardar uma eventual posse para julgar se ele
pode ser definido como fascista.
Uma característica adicional desse discurso é que a atração que ele gera se deve
precisamente a seu excesso.
Em relação à ditadura, então, o que se ouve agora não é uma defesa ambivalente e
envergonhada que busca tergiversar, afirmando, de modo já familiar entre nós, que o
regime militar cometeu erros, mas também teve seus acertos, ou que era necessário
naquele contexto porque a ameaça era grave. Não, a forma do discurso é a celebração
do suplemento excessivo, do elemento mais brutal do regime: a tortura.
Da mesma forma, em vez da argumentação aparentemente razoável ressaltando o
suposto caráter brando da ditadura brasileira, se comparada às de países vizinhos, o
que se encontra é a asseveração infernal de que o erro da ditadura foi ter sido
insuficientemente violenta, isto é, o equívoco foi não ter matado mais.
Como tem escrito a respeito de Donald Trump o antropólogo William Mazzarella, não é,
então, que os eleitores estivessem enganados ao preferi-lo, votando contra os próprios
interesses (embora isso também ocorresse). É que seu desejo era pelo gozo do excesso,
algo que se revela na disposição para até mesmo botar fogo no circo todo.
É esse o ponto em que o vínculo criado nessas relações pode parecer imune à crítica
que aponta um erro no cálculo feito pelos envolvidos a respeito de seus verdadeiros
interesses. A oposição ao fascismo precisaria também buscar intervir nessa experiência
afetiva, substituindo-a por outra, contrária a ela, uma experiência baseada em outras
possibilidades afetivas, algo diferente das comunidades criadas a partir do exercício da
crueldade com os mais vulneráveis.
Como também ocorre com a lógica do humor, o discurso fascista busca se blindar com
seu caráter excessivo, com sua fachada caricaturesca, até com a figura do bufão, que,
convenhamos, certamente não poderia estar falando sério (ou, mesmo que estivesse,
não teria a competência necessária para a implementação das políticas destrutivas que
prega).
Nesse sentido acaba sendo útil que o líder fascista tenha algo de jocoso, até mesmo
algo de risível, aumentando ainda mais o prazer que gera entre seus seguidores,
sobretudo se esse mesmo elemento cômico (a cena de um tripé mimetizando uma
metralhadora) gerar não o riso, mas a ira de seus opositores.
A estudante sentada ao lado do homem que se debruçara para fora da janela do ônibus
para gritar seus vitupérios fecha o volume da “História da Sexualidade” que vinha lendo,
esconde-o discretamente na mochila. O que tinha que começar já começou.