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A violência

começa quando a

palavra perde o valor

Uma experiência de supervisão com


profissionais da saúde na abordagem
de situações de violência doméstica

APOIO:

NÚCLEO DE ATENÇÃO
À VIOLÊNCIA
SUPERINTENDÊNCIA DE SAÚDE COLETIVA
nav@nav.org.br COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE ATENDIMENTO INTEGRAL À SAÚDE
www.nav.org.br GERENCIA DO PROGRAMA DE SAUDE DA CRIANÇA
GERÊNCIA DO PROGAMA DE SAÚDE DO ADOLESCENTE
E X P E D I E N T E

PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO


Prefeito César Maia

SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE

Secretário Ronaldo Cezar Coelho


Subsecretário Mauro C. A. Marzochi

SUPERINTENDÊNCIA DE SAÚDE COLETIVA


Maria Cristina Boaretto

COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE


Kátia Maria Ratto

GERÊNCIA DE PROGRAMAS DE SAÚDE DO ADOLESCENTE


Viviane Manso Castello Branco
Luciana Barreto Phebo
Dilma Cupti de Medeiros
Maria de Fátima Goulart Coutinho
Sônia Barbosa Melges

GERÊNCIA DE PROGRAMAS DE SAÚDE DA CRIANÇA


Martha Andrade Vilela e Silva
Maria Helena Freitas da Silva Guimarães
Leila Regina Ferreira Marques
Lúcia Maria Lafayette Rodrigues Pereira
Rosane Valéria Viana Fonseca Rito

COORDENAÇÃO E EDIÇÃO
NAV
Flavia Franco
Paula Mancini C. M. Ribeiro
Simone Gryner

PROJETO GRÁFICO
Ampersand Comunicação Gráfica

REVISÃO
Elisa Sankuevitz
Maria Zilma

1ª edição – dez. 2004


A violência
começa quando a

palavra
perde o valor

Uma experiência de supervisão com


profissionais da saúde na abordagem
de situações de violência doméstica
Sumário

Apresentação
Viviane Manso Castello Branco
Luciana Barreto Phebo |7

Apresentação
Lidando com a violência doméstica
Uma experiência de trabalho com profissionais da Saúde
Paula Mancini C. M. Ribeiro | 11

Prevenção, assistência, assistencialismo:


os tempos da clínica
Raquel Corrêa de Oliveira | 17

Violência doméstica: os desafios para


o Setor Saúde
Rita Helena Gomes Lima | 29

Os desafios da saúde: prevenção,


assistência e assistencialismo no
atendimento à violência doméstica
Solange Rangel Ribeiro | 39
“Quem é o pai da criança?”
Edson Saggese | 45

Algumas observações a partir do trabalho


de supervisão continuada
Simone Gryner | 55

Contextualizando a relação com a lei –


avanços e dificuldades a partir do E. C. A.
Fernanda Costa-Moura | 65

Debatendo os avanços e dificuldades


a partir do Estatuto da Criança
e do Adolescente
Alessandro Molon | 75

Relato de alguns profissionais sobre o


trabalho de Supervisão Continuada | 85

Mapa | Unidades de Saúde Municipais


que participaram do Projeto | 92
6| A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR |7

Apresentação

Viviane Manso Castello Branco


Luciana Barreto Phebo

A SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE do Rio de Janeiro,


através das Gerências dos Programas da Criança e do Adolescen-
te, vem realizando diferentes iniciativas voltadas para o enfren-
tamento da violência doméstica. Em 1996 foi implantada a ficha
para notificação de maus-tratos/abuso sexual contra criança e
adolescente. Esse instrumento, que deve ser preenchido pelos
profissionais de saúde, tem como objetivo favorecer a integração
entre os serviços de saúde e os Conselhos Tutelares, visando aten-
der às obrigatoriedades legais preconizadas pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, bem como ampliar a rede de proteção

VIVIANE MANSO CASTELLO BRANCO | Pediatra, Mestre em Saúde Coletiva,


Gerente do Programa de Saúde do Adolescente da SMS-RJ.

LUCIANA BARRETO PHEBO | Pediatra, mestre em Saúde Pública, membro


da Gerência do Programa de Saúde do Adolescente da SMS-RJ.
8| A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

às crianças, adolescentes e suas famílias. De 37 casos notificados


em 1996 passamos a 1.270 em 2003. A implantação desse meca-
nismo de registro dos casos e a tabulação dos dados possibilitou
a identificação de necessidades e possibilidades de atuação, ge-
rando uma série de transformações nas famílias atendidas, no
setor saúde e em seus parceiros.
De forma a ampliar a atuação junto às famílias, foi elabora-
da a cartilha “Protegendo nossas crianças e adolescentes”, que
vem sendo utilizada por diferentes instituições. A participação
da SMS no Conselho Municipal de Saúde de Direitos da Criança
e do Adolescente – CMDCA – também levou à elaboração da
Política Municipal de Intervenção frente a Violência contra
Criança e Adolescente.
O entendimento da violência como uma questão de saúde
pública é relativamente recente em nosso contexto. Conceitos,
indicadores, estratégias e parcerias estão sendo construídos con-
forme a temática da violência vai sendo incorporada no âmbito
da saúde. A qualificação dos profissionais torna-se, portanto, uma
necessidade constante. Dessa forma, a SMS vem oferecendo aos
profissionais de saúde e seus parceiros atividades de sensibili-
zação, capacitação e troca de experiências. Além de treinamen-
tos específicos, a temática da violência está incorporada nas dife-
rentes atividades promovidas pelos Programas da Criança e do
Adolescente. Foi também instituído o grupo de trabalho – GT –
sobre violência, que se reúne mensalmente desde 2000.
O cuidado com quem cuida tem sido outra preocupação. Os
profissionais de saúde precisam ser ouvidos, precisam de um es-
paço para falar de seus medos e esperanças. Parcerias feitas com
o Centro do Teatro do Oprimido e com o Núcleo Rio Aberto Rio
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR |9

visam fortalecer o desenvolvimento pessoal dos profissionais. Para


lidar com violência não basta o conhecimento técnico, é preciso
saber lidar com as próprias emoções e com a dos outros.
Cientes da necessidade de qualificar o atendimento, foi es-
tabelecido um convênio com o Ministério da Saúde que possibi-
litou a realização de um projeto voltado para o atendimento de
crianças, adolescentes e famílias em situação de violência do-
méstica, desenvolvido através da parceria com o Núcleo de Aten-
ção à Violência – NAV. O projeto contemplou atividades de
capacitação, supervisão e produção de materiais visando qualifi-
car e fortalecer as ações já exercidas. Participaram equipes de
diferentes unidades de saúde, distribuídas nas 10 áreas de pla-
nejamento da Cidade do Rio de Janeiro que já exerciam uma aten-
ção diferenciada, seja devido ao compromisso das direções ou ao
engajamento dos profissionais.
A parceria com o NAV trouxe aprendizados e ganhos impor-
tantes. A supervisão ofereceu aos profissionais da rede da SMS,
que têm poucas oportunidades de intercâmbio no seu trabalho
cotidiano, um espaço de reflexão sobre os casos atendidos. Esse
espaço privilegiado de fala permitiu a expressão de sentimentos
e a troca de experiências, favorecendo a construção de novos sa-
beres e práticas. A presença de equipes multiprofissionais de
várias unidades possibilitou diferentes olhares e abordagens,
contribuindo para a integração entre os diversos serviços e am-
pliando as possibilidades de atuação.
A possibilidade de poder falar e ouvir opiniões sobre as si-
tuações vivenciadas ajudou os profissionais a organizarem seus
pensamentos e a lidarem com a ansiedade que muitas vezes difi-
culta a abordagem dos casos. Por outro lado, o incentivo da
10 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

coordenação do grupo e dos demais colegas fortaleceu sua auto-


estima e ajudou-os a perceberem que pequenas intervenções
muitas vezes trazem um impacto importante nas famílias.
Em resumo, o acompanhamento regular e sistemático das
situações vivenciadas pelos profissionais na rede, realizado pela
equipe sensível e competente do NAV, ajudou-os a enfrentar al-
gumas das barreiras que dificultam a abordagem das situações
de violência, como a sensação de isolamento, de frustração e de
impotência. A metodologia utilizada permitiu que os profissio-
nais também enfocassem mais os casos a partir da perspectiva
dos sujeitos envolvidos, valorizando sua fala e sua percepção.
Face ao nosso compromisso com o conjunto de unidades de
saúde da rede municipal, essa iniciativa contemplou também a
elaboração de cartazes, folders e deste livro, com o objetivo de
socializar os aprendizados desse projeto. Esperamos que estes
materiais contribuam para que cada vez mais profissionais se
motivem para assumir esse importante desafio de ajudar as fa-
mílias envolvidas em situações de violência doméstica.


A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 11

A P R E S E N T A Ç Ã O

Lidando com
a violência doméstica
Uma experiência de trabalho
com profissionais da Saúde

Paula Mancini C. M. Ribeiro

ESTE LIVRO É RESULTADO DO TRABALHO de um ano do


Núcleo de Atenção à Violência em parceria com a Secretaria
Municipal de Saúde, pelo Projeto de Supervisão Continuada, rea-
lizado com profissionais da saúde em relação ao manejo de casos
de crianças e adolescentes em situações de violência doméstica.
A idéia de um projeto de supervisão continuada surgiu da cons-
tatação de uma diferença fundamental entre receber informações
sobre violência doméstica e ter um espaço para falar e discutir os
impasses vividos na prática.

PAULA MANCINI C. M. RIBEIRO | Psicanalista, Presidente do NAV, doutoranda


em Psicologia Clínica na PUC-RJ.
12 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

Esse trabalho teve início com uma capacitação de três dias


ocorrida em dezembro de 2003. Nesse primeiro momento foi
priorizada uma abordagem geral da problemática da violência do-
méstica, com a participação do NAV, do Programa da Saúde da
Criança e do Adolescente da SMS, e dos seguintes profissionais
ligados a diversas instituições: Suely Deslandes, Simone de Assis,
Viviane Castello Branco, Mônica Corrêa Meyer, Marcy Maria Ferreira
Gomes, Alessandro Molon, Dilma Medeiros, Anna Tereza de Moura,
Tânia Moura de Azevedo, Martha Vilela e Silva e Michel Robin.
Essa capacitação serviu como uma introdução aos encon-
tros mensais que o NAV realizou ao longo de 2004 com três
grupos de profissionais, de diversas unidades, divididos por área
do Município do Rio.
A idéia desses encontros de supervisão foi abrir um espaço
de troca e de circulação da palavra para cada profissional no que
se refere aos impasses clínicos e às articulações interna e externa
dos serviços. Esse espaço funcionou como um suporte para que
os profissionais, nas suas diversas funções, pudessem contar com
um lugar para falar de suas dificuldades e refletir sobre o trabalho
que realizam com crianças, adolescentes e suas famílias em
situações de violência doméstica.
Cabe salientar, sobre a direção do trabalho do NAV com si-
tuações de violência, que consideramos violento o que é excessi-
vo para cada um, o que invade e desestrutura uma subjetividade
em constituição, considerando que é este o momento em que se
encontra uma criança ou um adolescente. E quando a violência é
doméstica, ela é vivida, na maior parte das vezes, com alguém
que ocupa um lugar de referência para eles. Isso faz com que
estejam intensamente presentes sentimentos contraditórios de
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 13

confiança e medo, de respeito e desprezo, de amor e ódio. Trata-


se de uma situação extremamente delicada, que não acontece
raramente, e que não coloca em cena, como superficialmente
poderia parecer, pessoas em pólos opostos de “vítima” ou “agres-
sor”. Consideramos muito importante não fixar as pessoas nesses
lugares, pois dessa forma é possível abrir a chance de um lugar
para a palavra de cada um, com os descolamentos e deslocamentos
que essa condução pode propiciar. Nessa direção, os pais ou res-
ponsáveis pelas crianças e adolescentes – que na maioria dos casos
são os autores de agressão – se possível, devem ser incluídos no
trabalho, pois o que a clínica nos mostra é que dificilmente te-
mos como intervir em uma situação de violência doméstica se
não levamos em conta a importância do lugar que eles ocupam,
ou deixam de ocupar, para seus filhos.
É freqüente que diante da complexidade dessa situação o
profissional idealize uma forma de intervenção que poderia so-
lucionar todas as dificuldades presentes. No entanto, acolher,
criar um vínculo e escutar aqueles que chegam procurando aten-
dimento, a partir da função específica de cada profissional, é o
que possibilita mudanças importantes. Como toda intervenção
só pode ser construída a cada vez, é fundamental que o profis-
sional tenha um lugar em que possa falar do seu trabalho e dividir
as questões que surgem no dia-a-dia de sua prática.
Nesse sentido, o convite feito aos profissionais, a cada en-
contro de supervisão, era de que eles levassem, falassem, for-
mulassem suas dificuldades e, partindo daí, no que aparecia de
impasse para cada um, tentávamos pensar e construir, em con-
junto, possibilidades e alternativas de intervenção. A indicação
de que as questões partissem do particular de cada situação
14 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

advinha também do fato de as realidades das unidades serem


muito diferentes em termos de inserção na rede, de sensibilização
dos profissionais e de composição das equipes. Por isso, falar no
modo de detectar, lidar, manejar e encaminhar cada situação de
violência não poderia estar desvinculado das possibilidades de
cada serviço e de cada profissional.
Foi muito importante ver surgir um novo olhar dos profissio-
nais para o seu próprio trabalho e os efeitos disso em suas dife-
rentes práticas. Muitos profissionais disseram que, após o início
deste projeto, passaram a perceber a importância de estruturar e
unir uma equipe, bem como a de organizar um horário para dis-
cussão e reflexão sobre a clínica.
Depois de nove meses de trabalho, foi organizado um Semi-
nário, no qual estiveram presentes não apenas os profissionais
das unidades contempladas, como também outros profissionais
da rede da saúde, além de profissionais das redes de educação,
de assistência social e de justiça. O objetivo foi trabalhar as prin-
cipais questões que se fizeram presentes nestes meses de super-
visão. Os palestrantes então convidados tiveram o desafio de
aprofundar questões propostas pelo NAV, surgidas do trabalho
de discussão clínica e relativas à situação da violência doméstica
nos tempos atuais.
Este livro traz essas intervenções no intuito de fazer circu-
lar pontos fundamentais deste trabalho tão delicado e difícil que
é o de escutar, orientar e tratar crianças e adolescentes em situa-
ções de violência doméstica.
Nos três primeiros artigos, de Raquel Oliveira, de Rita He-
lena Gomes Lima e de Solange Rangel Ribeiro, a interrogação
sobre a prevenção, a assistência e o assistencialismo introduz al-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 15

guns elementos para pensarmos sobre os desafios colocados não


apenas para os profissionais da saúde como também para os
profissionais da educação e do campo jurídico. Algumas questões
que se destacam são: O que seria prevenir? O que temos a fazer?
O que deixamos de fazer ou escutar quando lidamos com situações
de violência doméstica?
Em seguida, com os artigos de Edson Sagesse e de Simone
Gryner, temos elementos para refletir sobre o compromisso do
profissional, assim como sobre os limites do trabalho com a crian-
ça e o adolescente. Além dos limites, há especificidades nesse
trabalho, tanto para o profissional, quanto para um serviço como
um todo que, por sua vez, também se encontra inserido em uma
rede.
Por fim, a partir da proposta do NAV de pensar o contexto
atual da relação com a lei, e mais especificamente os avanços e as
dificuldades a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente,
temos a intervenção de Fernanda Costa-Moura, que é em seguida
comentada por Alessandro Molon. É trazida uma reflexão sobre
o que a situação atual coloca para cada um de nós, principalmente
em termos de responsabilidade com a função e o lugar que nos
cabe ocupar.
Nesse caminho de refletir sobre esse lugar é importante
pensar que qualquer intervenção hoje está inserida em um
contexto de busca impaciente por soluções rápidas, o que vai na
direção oposta da construção de uma relação de confiança, tão
importante para que tenham efeitos as mais variadas práticas
clínicas. Para que as condições mínimas para um atendimento
estejam colocadas exigem-se dos profissionais muito esforço,
muita seriedade, além de uma escuta cuidadosa e não tão con-
16 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

taminada pelos preconceitos que essas situações de violência


despertam em todos nós.
Na contramão da pressa em resolver ou da urgência de re-
sultados – mas sem perder de vista o fato de que, a seu tempo,
cada atuação deve propiciar mudanças – convidamos todos a pen-
sar em nossas dificuldades atuais, nesse tempo marcado por uma
tentativa de objetividade que prescinde do que é subjetivo, ou
seja, prescinde da aposta em um lugar para a palavra do sujeito e
dos efeitos que daí possam advir.
Nessas circunstâncias, o desafio de construir os laços neces-
sários para o trabalho com as famílias é ainda maior. Mas o que
pudemos experimentar nesse ano de discussão e troca com os
profissionais da saúde, nas suas mais variadas funções, é a dife-
rença que faz quando o profissional considera que, para cada in-
tervenção, o primeiro passo é escutar o que lhe é endereçado.


A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 17

Prevenção, assistência,
assistencialismo:
os tempos da clínica

Raquel Corrêa de Oliveira

O TEMA DESSA MESA ME FEZ PENSAR sobre os tempos da


clínica. Sabemos pela nossa prática cotidiana que não é indife-
rente o momento e a forma como um profissional intervém em
determinada situação e essa questão se coloca também, e talvez
de modo especial, para as situações de violência doméstica. As
situações de violência doméstica, são aquelas que ocorrem entre
pessoas que têm algum grau de proximidade ou parentesco. Po-
dem ser episódios de violência isolados, ou atos de violência
recorrentes, sejam eles sexuais, físicos, psicológicos ou de negli-

RAQUEL CORRÊA DE OLIVEIRA | Psicanalista; Vice-presidente do NAV;


Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.
18 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

gências. Me parece que um dos grandes desafios da saúde, no


que diz respeito a abordagem e o manejo da situação de violência
doméstica é a dimensão do tempo, ou melhor: os tempos da clí-
nica. Tanto uma intervenção precipitada, no sentido de antecipa-
ção no tempo, como uma intervenção retardada, no sentido de
um atraso, podem dificultar uma intervenção e até comprometer
a possibilidade de um tratamento acontecer.
As situações de violência doméstica cometidas contra crian-
ças e adolescentes causam muita comoção, mas causam também
muita aversão. No que diz respeito a nós, profissionais do campo
da saúde, devemos escutar esses relatos e essas demandas de
tratamento tomando cuidado para não nos identificarmos com o
que escutamos, a fim de que possamos intervir no momento mais
propício, a partir de um lugar diferenciado, que é o nosso.
Minha proposta é trabalhar essa idéia da intervenção do pro-
fissional de saúde nos diferentes tempos da clínica, oferecendo
exemplos a partir do trabalho do NAV.
Talvez possamos pensar que a clínica que fazemos junto aos
nossos pacientes, cada situação, cada caso e cada intervenção
podem ser isoladas em três momentos, nos quais “a instância do
tempo se apresenta sob um modo diferente em cada um deles”.
Propomos pensar esses tempos, como: o instante do olhar, o
tempo para compreender e o momento de concluir.1
O fato de pensarmos a clínica a partir de uma temporalidade
que é diferente para cada caso, um tempo que não é cronológico

1
A partir das formulações de Jacques Lacan, no texto: “Tempo lógico e a
asserção da certeza antecipada – um novo sofisma. Ed. Perspectiva: São
Paulo, 1992.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 19

e nem pode ser predeterminado, marca a particularidade de um


trabalho que considera a clínica como uma intervenção que se
faz a cada vez.
O primeiro tempo é aquele no qual nos dedicamos a reco-
lher os elementos importantes da situação que nos chega para
que uma avaliação cuidadosa possa se dar num segundo tempo.
A partir de dados iniciais que podem ser trazidos na fala do pró-
prio paciente, de seus responsáveis ou da instituição que enca-
minhou, o profissional que está recebendo o caso tem a respon-
sabilidade de atentar para o quê, do que está sendo dito, pode
favorecer a elaboração de um diagnóstico da situação. Sabemos
como é comum os serviços de saúde, incluindo aí os serviços de
saúde mental, responderem a determinadas demandas com uma
frase do tipo: “esse caso não é perfil para este serviço ou para
este setor”. Isso é muito comum, por exemplo, em situações de
violência doméstica envolvendo crianças e adolescentes, pois há
uma complexidade de questões em jogo: as relações familiares, o
próprio ato violento e a necessidade de uma clínica articulada
com os parceiros.
Um profissional não deve receber um caso considerando se
ele tem ou não “perfil” para o serviço, pois quem olha “perfil”
está olhando a situação de lado, um olhar atravessado, que com
certeza não é o melhor ângulo para a visada de um caso. Assim,
esse primeiro tempo da clínica, o instante do olhar, do olhar para
a situação de frente, e assumir a responsabilidade em acompa-
nhá-la até onde for possível, seria um tempo de suspensão. Sus-
pensão da urgência em dar uma solução rápida para um proble-
ma objetivo. Isso não quer dizer que uma intervenção tenha que
necessariamente levar muito tempo para acontecer. A interven-
20 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

ção pode se dar num único encontro, o importante é que se te-


nha percorrido os três tempos da clínica: o do olhar, o de com-
preender e o de concluir. O tempo da decisão sobre o que fazer,
ou como abordar cada situação não está dado a priori. Em algu-
mas ocasiões o profissional se verá diante da necessidade de to-
mar uma decisão naquele momentos. Por exemplo, um pediatra
poderá constatar que uma criança está sofrendo abuso sexual.
Frente a uma circunstância com essa gravidade, o profissional
não poderá se eximir da responsabilidade de comunicar o fato
aos responsáveis e ao Conselho Tutelar. Um ato como esse tem
efeitos e desdobramentos imprevisíveis na vida dos envolvidos e
por isso é fundamental que o profissional discuta e avalie como
proceder na sua equipe de trabalho e/ou numa supervisão. A
questão sobre de que lugar parte nossa intervenção e o que ela
visa produzir deve sempre acompanhar o ato do profissional de
saúde.
O momento para compreender se coloca quando, a partir dos
elementos recolhidos, uma certa compreensão dos dados pode
acontecer e a partir daí fazer uma avaliação sobre quais as cir-
cunstâncias, com quais recursos se pode contar naquela situação
determinada. Esse tempo para compreender não significa que
está concluído o trabalho de recolhimento dos elementos do caso.
Esse na verdade é o trabalho que se tem a fazer. Favorecer que
aquele que nos procura fale, e se depare com o que ele próprio
diz é apostar que, se há algum saber em jogo nesse tempo preli-
minar a um tratamento, ele tem a ver com o que cada sujeito
pode dizer sobre as condições na qual está inserida sua demanda
por atendimento. Esse tempo de compreender que vem neces-
sariamente após o instante do olhar, é um tempo de avaliar o
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 21

material escutado, e antecede aquele que identificamos como o


último tempo da clínica, o momento de concluir.
O momento de concluir vem em seguida ao tempo de com-
preender e é aquele que a partir da evidência dos elementos re-
colhidos e avaliados, e também pelo fato de que “o tempo urge”,2
o profissional e/ou o serviço são chamados a responder por uma
decisão, a tomar posição frente a uma situação, a fazer um ato
que nesse caso diz respeito a uma intervenção na situação de
violência doméstica. Essa intervenção pode ser desde a decisão
de chamar pais e/ou responsáveis, a ocupar seu lugar diante de
uma criança ou de um adolescente, entrar em contato com a es-
cola, passando pela necessidade da notificação ao Conselho Tu-
telar, ou mesmo fazendo uma proposta de atendimento psicoló-
gico para os envolvidos. O importante é que o profissional de
saúde não recue diante das situações de violência doméstica, e
que possa tomar para si a responsabilidade no acompanhamento
de cada situação que lhe chega. Responsabilizar-se por acompa-
nhar uma situação não significa necessariamente, tomar um pa-
ciente em tratamento. Mas significa acompanhá-la até onde for
possível, ainda que seja um encaminhamento para um outro ser-
viço, ou para a instância jurídica.
A tensão temporal que anuncia um limite necessário a uma
tomada de decisão, não pode se apresentar ao profissional que lida
com situações de violência doméstica, seja do campo da saúde, da
educação ou da justiça, como uma pressão que visa precipitar o
tempo de concluir. Esse talvez seja o nosso maior desafio: intervir
num tempo que está entre o limite necessário e a precipitação.

2
Idem, p. 79.
22 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

Retomando o tema proposto para a mesa, vamos agora pen-


sar como esses tempos da clínica aparecem na prevenção, no
assistencialismo e na assistência.

Prevenção
Quando falamos em prevenção, a primeira idéia que se tem é
que prevenir seria prever o que está por vir. Se, no que diz respei-
to as situações de violência doméstica, tomássemos “preven-
ção” nesse sentido restrito, teríamos pouco a fazer. Mas se
pudéssemos considerar “prevenção” como uma intervenção que
se dá num momento precoce, então teremos muito o que fazer.
Intervir precocemente em uma situação, não quer dizer atropelar
a escuta, nem ceder a urgência em resolver objetivamente um
problema. Uma ação preventiva visa reconhecer que há algo a
fazer num tempo anterior a um momento crítico, num momento
no qual os elementos e fatos de uma situação ainda são sensíveis
a uma intervenção não tão dramática. Um trabalho preventivo
quanto a questão da violência doméstica, no campo da saúde,
pode ser a capacitação dos profissionais para que possam atuar
de maneira menos ingênua e mais avisada sobre as condições
nas quais um ato de violência acontece, imprimindo um certo
olhar, uma certa visada na abordagem dos envolvidos, que venha
a favorecer um desfecho melhor do que geralmente temos
notícias. A prevenção também se faz a partir da sensibilização
da comunidade e do social para essa temática. Na medida em
que o tema da violência doméstica deixa de ser tabu, pode-se
falar, trocar experiências, expor angústias e impasses sobre como
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 23

lidar com essas situações em que crianças e adolescentes estão


em situação de risco psicológico e social. O compartilhar esse
problema, ou seja, partilhar com alguns outros as dificuldades
que essas situações apresentam, favorecem para que a comu-
nidade e os profissionais que lidam com a violência doméstica
possam estabelecer parcerias e criar outras possibilidades para
intervir de uma maneira mais precisa e resolutiva na assistência
à infância e adolescência.
Vou dar dois exemplos sobre trabalhos clínicos que podem
ser pensados como prevenção no campo da saúde. O primeiro
é uma experiência realizada num serviço de saúde mental que
oferece um espaço de fala para que mães psicóticas, ou seja,
que têm um tipo de existência e conseqüentemente uma forma
de existência muito peculiar, possam falar da experiência da
maternidade. Assim, mulheres que tiveram, elas próprias, di-
ficuldades em responder as exigências que se impuseram ao
longo de sua vida, podem nesse espaço falar seja de suas
experiências como filhas, seja sobre as dificuldades em exercer
a maternagem. A aposta é que se possa criar melhores condi-
ções para que seus filhos se constituam e possam se posicionar
na vida, de uma maneira mais favorável. Outro exemplo de
uma ação preventiva no campo da saúde foi uma experiência
realizada pelo NAV aqui no Município do Rio Janeiro. Tratava-
se de um grupo de discussão com adolescentes grávidas numa
comunidade em que a questão da maternidade em mulheres
jovens e o apelo à prostituição eram muito evidentes. A pro-
posta não era impedi-las de engravidar, já que essa é uma
decisão que envolve o desejo de cada uma delas. A idéia era
oferecer um espaço no qual, a partir do contato com outras
24 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

adolescentes passando por dificuldades da mesma ordem, elas


próprias pudessem se prevenir no que diz respeito as questões
que a maternidade apresenta.

Assistencialismo
O assistencialismo, ao contrário do trabalho preventivo parece
antecipar o tempo da intervenção. Não ao tempo cronológico,
mas na precipitação da compreensão de determinada situação.
Quando achamos que estamos compreendendo muito bem uma
situação, quando achamos que estamos entendendo a fala de um
paciente sem nenhum mal-entendido, estamos correndo um gran-
de risco de, como profissionais da saúde, cair no assistencialismo.
Não estamos com isso dizendo que a assistência social não tem
lugar. Temos notícias de como as instituições filantrópicas, as
igrejas, as associações de moradores prestam grandes serviços
dessa ordem. Mas o lugar de onde um profissional intervém é
outro. O risco de cair no assistencialismo não tem nada a ver
com uma categoria profissional específica, como por exemplo a
do serviço social. Um psicólogo ou um nutricionista, todos estão
suscetíveis a se precipitar numa ação assistencialista que tem a
ver com um excesso de ofertas. Oferta de remédios, de vitaminas
e de espaços terapêuticos – quando nos damos conta até os trata-
mentos parecem estar sendo oferecidos como mais um produto
disponível no mercado de consumo. Essa antecipação na assis-
tência em saúde, essa precipitação em tentar ajudar com as me-
lhores intenções, poupa o sujeito de tentar identificar o que lhe
falta, de formular sua necessidade e propor uma forma de
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 25

encaminhá-la. Muitas vezes o nosso “furor terapêutico” reduz o


tempo de compreender e antecipa o momento de concluir, sem
reconhecer o tempo próprio que um sujeito precisa para lidar
com a situação difícil que lhe acomete e a partir daí demandar
ajuda. Aqui vale aquele ditado popular “mais vale ensinar aquele
que tem fome a pescar do que oferecer-lhe o peixe daquele dia”.
Apostar que o sujeito pode reconhecer sua dificuldade e construir
instrumentos para lidar com ela é dar tempo ao sujeito para se
exercer enquanto tal. O que não desobriga os profissionais de, a
partir de sua área de atuação, criarem as condições para que esse
sujeito possa aparecer. Acompanhamos recentemente uma si-
tuação no NAV que dá testemunho da facilidade com que pode-
mos nos deixar seduzir por essa posição assistencialista. A mãe
de um paciente que vinha sendo acompanhada em psicoterapia
faz várias solicitações para a psicóloga que atende seu filho. O
projeto no qual ele estava inserido no NAV incluía além do aten-
dimento psicoterápico, atividades de inserção social. Seu filho
havia sido matriculado na natação. Num primeiro tempo ela pedia
que o NAV também providenciasse a sunga para a natação do
filho, já que a que ele tinha estava velha. Num outro momento
pede para o NAV pagar um frete com material de construção
para terminar de construir sua casa. O que é interessante é que
numa das entrevistas com a psicóloga responsável pelo caso, ela
conta como teve que se organizar de um dia para o outro para
ocupar uma casa no morro, que lhe foi cedida pelo tráfico local.
Sob o risco de perder a casa se não tivesse “tomado posse” no dia
seguinte, conseguiu reunir vários vizinhos e fez sua mudança no
tempo que lhe havia sido determinado. Poderíamos dizer que essa
mãe é capaz de “se virar”, de encontrar saída para suas dificuldades.
26 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

Talvez o que ela precise seja de um profissional que aponte e aposte


junto com ela nessa direção.

Assistência
Assistir significa acompanhar, observar de perto o desenrolar de
um acontecimento, testemunhar. Aquele que presta assistência
é alguém que acompanha de perto o desenrolar de um aconte-
cimento. O profissional que está numa boa posição no que diz
respeito a assistência de pessoas envolvidas em situações de
violência doméstica, seja ele um professor, um médico, um con-
selheiro tutelar, é aquele que pode oferecer sua escuta e intervir
de maneira prudente, porém firme, a partir da especificidade do
seu campo profissional. Assim, a intervenção de um médico não
é a mesma que a de um professor, nem, tampouco, que a de um
Conselheiro Tutelar. Cada profissional tem seu campo de atuação
e nesses campos profissionais diferentes, o tempo da intervenção
também não é o mesmo. A intervenção de um assistente social
pode levar menos tempo para ser posta em funcionamento, em
relação, por exemplo, ao tempo de uma intervenção do campo
jurídico, mas nem por isso ela é menos importante, nem pode
ser menos cautelosa.
A boa assistência é aquela que passa pelos três tempos clíni-
cos, que viemos discutindo ao longo deste texto: o instante do
olhar, o momento de compreender e o tempo de concluir. Um
trabalho de assistência sério e cuidadoso é aquele que não se
precipita, nem se atrasa. São muito raros os momento em que
podemos fazer uma boa assistência, uma intervenção no tempo
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 27

justo que determinada situação precisa. Essa não é uma tarefa


simples e nem deve ser idealizada. Essa tensão temporal é um
mal-estar que, nós profissionais da saúde, temos que sustentar
para não atropelar os acontecimentos e nem sermos atropelados
por eles.


28 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 29

Violência doméstica:
os desafios para
o Setor Saúde

Rita Helena Gomes Lima

AS CONTRIBUIÇÕES QUE ESPERO TRAZER para nossa refle-


xão resultam, em primeiro lugar, de minha experiência como en-
fermeira do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência e do
Ambulatório da Família do Instituto de Puericultura e Pediatria
Martagão Gesteira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no
qual sou parte de uma equipe multidisciplinar desde 1995, em
segundo lugar, da experiência com o atendimento de crianças víti-

RITA HELENA GOMES LIMA | Enfermeira do IPPMG/UFRJ e do Hospital


Municipal Nossa Senhora do Loreto.
30 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

mas de violência no Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto,


da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, desde o ano
de 2000.
A violência é um fenômeno social complexo e lidar com ela
é um grande desafio que mobiliza esforços em diferentes áreas
do conhecimento – como a da justiça, a da segurança pública, a
da educação e, certamente, a da saúde.
A violência que atinge nossas crianças e adolescentes, prati-
cadas por seus próprios pais ou responsáveis, no Brasil e no mun-
do, tem representado uma importante parcela dos atendimentos
que, cotidianamente, chegam ao setor saúde e este não pode dei-
xar de desempenhar o seu papel.
Embora algumas dificuldades se imponham à nossa atuação
é preciso aceitar o desafio de que as possibilidades são maiores
do que os limites. Podemos assinalar avanços como a promulga-
ção do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, quando a
sociedade passa a contar com novo instrumento para a análise e
compreensão dos atos de violência praticados contra crianças e
adolescentes, além de outros recursos criados com a finalidade
de atender às demandas de atenção integral à saúde de crianças e
adolescentes.
A Organização Mundial de Saúde define violência como o
uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si
próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade,
que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência no desenvolvimento ou privação. Para Aze-
vedo e Guerra, a violência doméstica contra a criança e o adoles-
cente ocorre quando esta ação ou omissão é praticada por pais,
parentes ou responsáveis e também é capaz de causar todos es-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 31

ses danos à criança ou adolescente. Pode-se observar que, tanto


a definição da OMS quanto o conceito adotado por Azevedo e
Guerra refletem a relevância do papel do profissional de saúde
que não deverá limitar-se à reparação de seqüelas físicas visíveis,
que possam resultar ou não em morte, mas ter uma compreen-
são ampliada desse fenômeno que é responsável por tantos sofri-
mentos, de modo a fazer uma intervenção que considere suas
diferentes dimensões.
Até 1960, a questão da violência era vista pelo profissional
da saúde principalmente como um problema a ser resolvido pela
área médica, considerava-se que as seqüelas resultantes da vio-
lência que chegavam às unidades estivessem vinculadas às
características tanto do responsável pela agressão, no caso pais
ou responsáveis, quanto às características próprias da criança,
sem valorizar, na verdade, outros fatores precipitantes ou desen-
cadeadores dessa violência, como os fatores socioeconômicos e
culturais.
Com esta visão voltada para o modelo médico e não para o
modelo ecológico, os aspectos mais centrados no visível, na ques-
tão física, na negligência, no abuso sexual – aqueles que deixas-
sem marcas mais evidentes – destacavam-se em detrimento às
questões mais sutis, de difícil identificação, como o abuso psi-
cológico, a grande maioria dos casos de abuso sexual e até mes-
mo aqueles abusos físicos trazidos como acidentes. As relações
de poder/autoridade que se estabelecem nesses cenários fami-
liares deixam encoberta a violência simbólica – muitas vezes mais
danosa que a própria violência manifesta – quando não só o
cuidador considera legítimos seus métodos disciplinares: de como
cuidar, de como proteger, de como educar, assim como a própria
32 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

criança e/ou o adolescente legitimam estas práticas, por considerá-


las corretas e aceitáveis, afirmando, em alguns momentos, terem
sido merecedores “daquele castigo, daquela bronca”.
Lidar com a violência que afeta a condição de saúde e de
vida da criança e do adolescente, requer do profissional uma ava-
liação mais cuidadosa quanto à intencionalidade daquele ato pra-
ticado pelos pais ou pelos responsáveis, quanto ao dano resul-
tante desse ato, quanto à percepção que o responsável tem do
resultado dessa violência, e se de fato, ele vê sua atitude como
violenta. E quanto à proteção dessa criança, o profissional deve
se perguntar: “Está assegurada?”, “Qual é minha postura enquan-
to profissional de responsabilização ou de culpabilização dessa
família? Qual o lugar que ela ocupa na minha proposta de aten-
dimento?” Sem dúvida, podemos considerar tais questões como
desafios a serem vencidos mas, nem de longe, devem configurar-
se como impedimento da nossa ação.
A família deverá ser o foco da nossa atenção já que esta
criança ou este adolescente, na grande maioria dos casos, conti-
nuará no seu próprio ambiente. É preciso ter clareza das novas
estruturas familiares, tentar compreender como as relações es-
tão se cristalizando nestes novos cenários. Não podemos ideali-
zar um modelo único de família, estruturada de acordo com con-
ceitos tradicionais como, por exemplo, a família nuclear tradi-
cional – pai, mãe e filho ou filhos. Nossa realidade tem eviden-
ciado famílias extensas, onde o espaço é compartilhado por avós,
tios, sobrinhos, filhos de pais diferentes, de outros relaciona-
mentos conjugais além de famílias monoparentais, que em algu-
mas situações necessitam de recursos de alguma rede de apoio,
seja formal ou informal.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 33

O profissional de saúde precisa ter em mente que embora o


ambiente familiar seja considerado um espaço privilegiado de
convivência, não podemos esquecer também que é o local em
que podemos identificar muitos conflitos, o que pode ser com-
provado com muitos estudos sobre a freqüência de casos de
violência doméstica contra a criança e o adolescente.
A atitude do profissional ao atender essa família deverá ser
de acolhimento inicial, de não culpabilização, mas terá de ser
sim de responsabilização, não podemos desconhecer que a famí-
lia tem um papel na sociedade e ela precisa exercê-lo. O próprio
artigo 19 do Estatuto diz que toda criança ou adolescente tem direito
a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em
família substituta, assegurando a convivência familiar e comunitária.
Outro importante desafio a ser vencido, ao meu ver, é a ques-
tão da interdisciplinaridade, da multidisciplinaridade e da inter-
setorialidade. A existência de uma equipe multidisciplinar não é
suficiente para a busca de soluções para o problema da violência
doméstica contra a criança. Não basta que cada um dê conta das
questões específicas relacionadas ao seu campo de conhecimen-
to, é necessário ousar mais, é necessário o exercício da interdisci-
plinaridade. De acordo com Gursdorf a exigência interdisciplinar
impõe a cada especialista que transcenda sua própria especialidade,
tomando consciência de seus próprios limites para colher as contribuições
das outras disciplinas.
Portanto, lidar com situações de violência doméstica contra
a criança e o adolescente requer uma atitude interdisciplinar, dada
a complexidade do fenômeno, os diferentes contextos de família,
onde ele ocorre e o fato desta família estar inserida em diferentes
realidades sociais. Requer também articulação intersetorial, que
34 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

não só configura-se como um desafio mas também como possi-


bilidade de intervenção. As parcerias são complicadas? São difí-
ceis? Exigem habilidades dos interlocutores? Com certeza. Mas
sem elas, torna-se praticamente inviável trabalhar a violência
doméstica contra a criança e o adolescente. É preciso reforçar
essas parcerias, estreitar os laços, compartilhar saberes, em vez
de criticar os recursos de troca existentes.
Outra situação que vejo como um desafio a ser enfrentado,
trata-se da deficiência no processo de formação do profissional
de saúde para saber lidar não só com a violência doméstica con-
tra a criança, mas também com qualquer problemática que ex-
trapole sua prática específica. Uma pesquisa recente feita em uma
unidade de internação pediátrica do Rio de Janeiro revelou que a
maioria dos profissionais enfermeiros, por exemplo, não teve na
sua graduação qualquer conteúdo que se referisse a como lidar
com a violência doméstica contra a criança, embora esta esteja
presente no cotidiano das internações hospitalares. E não só eles,
pois muitas foram as falas desses profissionais sinalizando para
as dificuldades de outros profissionais para lidar com o proble-
ma, como por exemplo: “eu conversei com o médico sobre aquela
criança que a tia revelou ter sido vítima de abuso sexual, mas ele
disse que não, que isso é um problema para o serviço social, a
criança já vai ter alta mesmo!”. Precisamos propor a inclusão
desses e de outros conteúdos nos currículos das escolas de enfer-
magem, de serviço social, de medicina e de outras áreas de modo
que o egresso tenha condições de exercer com responsabilidade
sua profissão. Para os que já estão no mercado de trabalho e não
se sentem preparados para atuar diante de situações dessa na-
tureza recomenda-se que se mobilizem no sentido de discutir
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 35

com os próprios colegas de serviço os casos que identificarem,


que cobrem da instituição sua responsabilidade com a questão,
que participem de treinamentos, capacitações nesta área, que
procurem serviços que tenham experiência com este tipo de
atendimento, buscando instrumentalizar-se para a intervenção.
O serviço de psicologia do IPPMG/UFRJ, por exemplo, rea-
liza grupos tanto com crianças quanto com os pais ou responsá-
veis destas crianças e, segundo a avaliação dos profissionais, a
realização de grupos com crianças vítimas de violência pode con-
tribuir muito com a diminuição desse sofrimento pela possibili-
dade de formar vínculos de sentimento; pela possibilidade que a
criança tem de perceber que os maus-tratos também ocorrem
em outras famílias, ou seja, de se identificar com outras situa-
ções que estão acontecendo; pela possibilidade de aprender a
lidar com as diferenças, com os preconceitos e, conseqüentemen-
te, pela possibilidade de contribuir com sua recuperação.
Outra possibilidade de atuação é a realização de grupos com
os pais que maltratam, mas, que na verdade, querem ser bons
pais, usam a punição como prática disciplinar. Nestes casos há
necessidade de orientação, de um suporte profissional no senti-
do de criar um canal de comunicação que facilite a conscientização
sobre a violência e sobre a necessidade de proteção dessa criança
ou desse adolescente.
Certamente, cada instituição, cada serviço precisará ajustar-
se à sua realidade, mas sempre haverá alguma possibilidade de
atenção às questões de violência que chegam às unidades e, para
isso, a família precisa ser incentivada ao cuidado, precisa sentir-
se valorizada, sentir-se cuidada, para preparar-se um pouco mais
para o cuidado de seus filhos. Para isso, o profissional de saúde
36 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

precisa também estar instrumentalizado para a ação e este apren-


dizado é contínuo e construído também com o trabalho inter-
disciplinar.
Um outro desafio ao acompanhamento dos casos de vio-
lência é a precariedade de redes de apoio, tanto as famílias têm
dificuldades para contar com sua rede de parentesco, muitas vezes
dificultando seu próprio comparecimento às consultas, quanto
os profissionais encontram dificuldades para o encaminhamento
dos casos para outros serviços especializados ou para a rede de
apoio social, o que reforça ainda mais a necessidade de construção
e/ou de estabelecimento de parcerias para o bom andamento dos
serviços.
A idealização do atendimento por parte dos pais ou do res-
ponsável pelo acompanhamento da criança ou do adolescente
também pode configurar-se como um desafio a ser vencido. Às
vezes eles têm a compreensão de que o profissional de saúde vai
dar conta de tudo, vai dar resposta para tudo. Nessas ocasiões, é
fundamental que o profissional se posicione, esclareça-o quanto
ao seu papel frente àquele atendimento, às possibilidades de
encaminhamentos etc. Muitas vezes a família apresenta-se an-
siosa com a lentidão das respostas do Conselho Tutelar, da área
jurídica e até mesmo com a demora na melhora da criança e,
quando isto acontece, precisamos avaliar nossa possibilidade de
apoio.
Também é um desafio para o profissional enfrentar suas pró-
prias expectativas em relação ao atendimento; a idealização de
como atender prontamente a todas as demandas da família e da
criança, poderá levar a frustrações tendo em vista as dificuldades
que são próprias da condução dos casos.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 37

A compreensão de que as possibilidades de atuação podem


ser maiores do que os limites impostos deverá nortear nosso
trabalho. Ao escrever o preâmbulo do Relatório Mundial sobre
Violência e Saúde, da Organização Mundial de Saúde, Nelson
Mandela afirma que a violência pode ser evitada, as culturas vio-
lentas podem ser modificadas e que nós devemos às nossas crian-
ças, que são os cidadãos mais vulneráveis em qualquer socieda-
de, uma vida livre de violência e medo. Com certeza há muito a
ser feito pela criança e pelo adolescente antes que se tornem
propriamente vítimas da violência. Medidas de prevenção primária
e secundária devem constituir o ponto de partida das ações, se
queremos uma infância e uma adolescência nos moldes idealiza-
dos por Mandela e, provavelmente, por todos nós.


38 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 39

Os desafios da saúde:
prevenção, assistência e
assistencialismo no
atendimento
à violência doméstica

Solange Rangel Ribeiro

NA QUALIDADE DE ASSISTENTE SOCIAL pretendo expor as


idéias construídas individual e coletivamente no trato com fa-
mílias que vivenciam histórias de violência intrafamiliar. No
decorrer desta exposição farei um esforço para não ater-me à in-
tervenção do Assistente Social na ótica da política social, so-
bretudo, no que remete aos mínimos direitos sociais, como o
padrão de inclusão social, preconizados pela Lei Orgânica da
Assistência.

SOLANGE RANGEL RIBEIRO | Assistente Social do Programa de Saúde da


Família, grupo de apoio técnico.
40 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

A tarefa solicitada pela comissão organizadora deste evento


é de trazer as implicações da assistência e do assistencialismo no
processo de intervenção em agravos de violência intrafamiliar.
Portanto, pretendo abordar como nós profissionais da área da
saúde lidamos com a diversidade e a complexidade deste evento,
por envolver a família e a rede de recursos disponíveis, conside-
rando as diferentes formatações da família brasileira.
É pertinente situar qual é o universo social, cultural, econô-
mico e de vínculos afetivos que integram a vida destas famílias
com que nos deparamos nos atendimentos de diferentes natu-
rezas, sejam eles de maus-tratos, de abuso sexual, de abuso
psicológico etc.
Como já é sabido a violência doméstica é transversal às
condições de vida e à inserção no mercado produtivo e de con-
sumo, não sendo a priori resultante da cultura da pobreza e de
ausência de recursos econômicos. Entretanto, as famílias usuárias
das políticas públicas assistenciais integram o segmento majori-
tário dos desprovidos de plena capacidade de sustentabilidade
social e sobrevivem basicamente de suplementos sociais ou de
renda de trabalho informal extremamente circulante e sazonal.
Dados recentes (ano 2002-IBGE) indicam a existência de 54
milhões de pobres no Brasil, dos quais 40% vivem em condições
de pobreza absoluta. A população infantil e adolescente (menores
de 15 anos) representa 30% do total de brasileiros, sendo que
50% destes sobrevivem com renda per capita familiar de meio
salário mínimo, demonstrando uma disparidade perversa na dis-
tribuição de renda.
A citação destes dados contribui para a análise das possíveis
interferências das condições de pobreza nas relações de convivência
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 41

familiar com comportamentos violentos. Esta possível interfe-


rência, associada às demais características do trato com a violên-
cia, tais como: a ameaça, o sigilo, o medo e a privacidade familiar,
constitui um desafio para os diferentes sujeitos e atores implicados,
seja a família, a comunidade, o profissional, a rede de recursos etc.
Como abordar ou provocar mudanças nas práticas familiares
marcadas pela violência numa realidade em que os sujeitos envol-
vidos têm sua cidadania limitada, sua subjetividade despercebida
e forte baixa estima? Apesar das múltiplas linguagens e formata-
ções técnicas estes ingredientes compõem nossas reflexões, com
relação à necessidade de “policiarmos” nossas intervenções para
que não se reduzam à mera transferência institucional dos casos
ou a medidas assistenciais de tutela e/ou compensatórias.
Devido à natureza e complexidade das situações, nós profis-
sionais temos a tendência a buscar alternativas rápidas e sinto-
máticas para maior resolutividade da situação, esteja ela revelada
ou em processo de revelação e ruptura do sigilo familiar, até
porque tais situações mobilizam toda a equipe, que corre o risco
de encaminhar o caso carregado por juízo de valor pessoal.
Entendo que trabalhar com indivíduos, famílias, vítimas,
agressores e demais envolvidos em eventos violentos não significa
ter um protocolo rígido de procedimentos, mas investir em longo
prazo, utilizando-se da rede disponível, dos vínculos socioafetivos,
comunitários e de vizinhança (rede informal). É interessante ressal-
tar que, por vezes, os maiores entraves encontram-se na rede de
recursos institucionais devido à burocratização, à ausência de ser-
viços e à falta de integração, que geram uma superposição de atendi-
mentos à mesma família, não otimizando os já escassos recursos.
Estes fatos favorecem uma postergação do atendimento e uma
42 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

conseqüente cronificação das experiências violentas na dinâmica


familiar.
Atender situações de violência intrafamiliar nas instituições
de saúde, de educação e de justiça está na ordem do dia. No
momento estou trabalhando no Programa de Saúde da Família e
uma de minhas atividades é o treinamento de Agentes Comuni-
tários de Saúde que vão atuar nos módulos das comunidades em
que vivem. Eles não possuem, na maioria das vezes, qualquer
experiência no atendimento e discussão sobre violência domés-
tica, porém quando trabalhamos a concepção de saúde e doença,
há imediatamente uma associação com a violência famíliar. Existe
uma percepção nítida de como a violência está impregnada e já
faz parte do ritual das relações familiares. Estes eventos estão
incorporados às vivências comunitárias que às vezes causam
impacto de forte envolvimento ou de indiferença, dependendo
da situação apresentada manifestando seus valores e costumes.
Gostaria de ressaltar que atender a essas famílias, seja no espa-
ço físico da instituição ou na comunidade, implica co-responsabilizá-
las em todas as decisões e ações, ajudando a identificar seu potencial
e seus limites para o enfrentamento e a superação, utilizando-se
de recursos individuais, sociais e dos serviços comunitários.
Até aqui discutimos as implicações nos atendimentos e suas
transversalidades, sejam de ordem familiar, institucional, profis-
sional, que podem provocar mudanças ou fortalecimento da
manutenção do estado violento. Gostaria de mostrar de que famí-
lias estamos falando – que buscam a rede de assistência – como
elas se configuram e quais as suas expectativas.
Alguns estudos teóricos quanto ao perfil social-econômico
e cultural das famílias apontam alguns “comportamentos e ex-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 43

pectativas” similares, as quais circulam em nossas unidades.


Existem as famílias periféricas cuja maioria vive no espaço urbano.
Lutam o tempo todo por sua inclusão social e às vezes apresentam
histórias de violência multigeracionais. Justificam os atos vio-
lentos cometidos com seus filhos como forma de protegê-los e
associam que castigando severamente podem livrá-los da violência
urbana, de uma gravidez precoce e talvez promover um grau de
escolaridade melhor do que o seu e a conseqüente ascensão social.
Tal expectativa é recorrente dentro das comunidades neste tipo
de família, que transfere a frustração do seu projeto de vida para
o sucesso de seus filhos.
Um outro perfil de família que transita pelas diferentes insti-
tuições são as que vivem na rua e que apresentam uma diversidade
de experiências violentas, sendo um grande desafio trabalhar com
elas devido a suas características de mutabilidade. Essas famílias
apresentam forte índice de cronicidade e vivências em abrigo,
sendo que por vezes sua única linguagem com seus filhos, compa-
nheiros e companheiras é a agressão. Como estabelecer um vín-
culo com base na construção da identidade, da subjetividade, do
apego, da escuta familiar onde tais possibilidades foram ou estão
mutiladas? Esse é um dos impasses, mas também um grande
desafio. Apenas uma cesta básica, um abrigamento, uma conten-
ção judicial não provocarão alterações nos quadros de violência.
Avalio que a forma como estabelecemos o acolhimento é
um passo inicial na tentativa de ensaiar novas possibilidades de
relação na vida familiar. O acolhimento pode acontecer de várias
formas, em que o profissional possa ter acesso mais prolongado
ou até mesmo emergencial. O exercício da escuta, da atenção, da
significação de cada história familiar, das possibilidades internas
44 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

e sociais é o básico para trabalhar situações de violência domés-


tica com as famílias e com a própria equipe, que precisa ouvir e
trocar suas experiências.
Entendo que nenhum instrumental é secundário ou exclu-
dente quando abordamos famílias em situação de violência do-
méstica, e se o trabalho não for pensado em rede ele tende a se
fragilizar. A concepção de rede aqui se baseia numa intersetoria-
lidade dinâmica, como ilustração desta idéia, posso dizer que
obtivemos um impacto positivo em relação aos atendimentos
conjuntos com o Conselho Tutelar, escolas, creches, Juizado etc.
Outra manifestação do trabalho compartilhado é o envolvimento
da rede informal e comunitária quando bem discutido com a
família e existindo disponibilidade destes agentes.
A rede sugere a formação de vínculos, relações e ações entre
indivíduos e organizações. Estão presentes na vida cotidiana, nas
relações de parentesco, de vizinhança, de comunidades, na vida
pública e entre as próprias redes. São necessidades humanas so-
ciais que buscam a interação e a formação de vínculos, ou seja, o
real trabalho em rede não deve servir como um parâmetro de
definição de competências e atribuição de cada serviço e sim como
elo que busque trabalhar as diferentes expectativas, demandas,
direitos e responsabilidades das equipes e da família.
Para concluir essas reflexões friso a importância de nos co-
locarmos abertos a este trabalho que a todo tempo nos exige
cuidado especial quanto às diferenças de idéias, percepções,
temporalização da equipe, família, instituições e a necessidade
de aliançar tais diferenças.


A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 45

“Quem é o pai
da criança?”

Edson Saggese

ESSA PERGUNTA, QUASE ANEDÓTICA, nos remete à questão


da responsabilidade sobre as crianças e os adolescentes, para além
de uma responsabilidade puramente profissional. Quem é o pai
da criança e do adolescente que vivem hoje em dia nas nossas
cidades, nessa época que foi denominada pós-moderna, que traz
uma série de mudanças aceleradas nas relações humanas e que
tem trazido dificuldades bastante sérias com relação a como se
conduzir com as crianças e adolescentes? Quais são as responsa-
bilidades das famílias, dos serviços de saúde, da justiça, das es-
colas? Eu vejo com um certo pesar, a troca de acusações entre
aqueles que teriam que se colocar no lugar de responsáveis. Com

EDSON SAGGESE | Psiquiatra, psicanalista, professor do Instituto de


Psiquiatria (IPUB) da UFRJ e ex-coordenador do Centro de Atenção e
Reabilitação da Infância e Mocidade (CARIM/IPUB/UFRJ).
46 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

freqüência aparecem na mídia casos em que garotos de 15, 16,


17 anos que quebraram estabelecimentos, bateram em alguém,
gerando uma troca de acusações sobre as responsabilidades. As-
sim também quando um adolescente é flagrado fumando maco-
nha na escola, sempre há uma troca de acusações: de quem é a
responsabilidade? Em geral, pode se ver na imprensa, entrevis-
tas com autoridades dizendo “a família que não toma conta, que
não se interessa por esse adolescente, por essa omissão é que se
deu isso, aconteceu aquilo”. “A escola que é muito permissiva,
não é exatamente o que devia ser e por isso aconteceu esse pro-
blema com esse adolescente”, ou então “os serviços de saúde
que são mal organizados, o governo não dá meios aos serviços de
saúde, se esse serviço de saúde tivesse uma organização melhor
o adolescente não teria passado por esse problema, seria mais
bem cuidado”. E fica-se, em geral, numa troca de acusações e eu
não tenho a intenção de fazer uma absolvição geral: esses proble-
mas acontecem, a família está certa, a escola certíssima, o gover-
no não tem falhas, o serviço de saúde muito menos... Não é bem
assim. Mas nós temos que considerar que existe algo muito mais
geral, que está além da responsabilidade das famílias, além da
responsabilidade de cada serviço que é, justamente, uma série
de transformações sociais que tem dificultado, em muito, o ado-
lescente encontrar o seu lugar e nós encontrarmos um lugar que
sirva para dar indicações para esse adolescente quanto a sua vida.
Nós temos visto, progressivamente, o esvaziamento de um lugar
simbólico que nós podemos chamar o lugar do Pai, que não preci-
sa ser, logicamente, uma figura masculina encarnada: é um lugar
simbólico para onde as pessoas possam se mirar e que sirva de
indicação para um percurso de um jovem que chega no momen-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 47

to de encontrar o seu lugar na sociedade. Isso está esvaziado e


não pode ser responsabilidade da família, nem da escola, nem do
profissional de saúde indicar esse lugar. Não podemos tomar isso
como uma falha exclusiva em algumas dessas instituições. É algo
que corresponde a uma grande transformação social, a uma grande
mudança, a uma grande instabilidade que não permite que nin-
guém possa tomar a responsabilidade de indicar um lugar, um
caminho para esses jovens. O que nós vemos, o que nós pode-
mos assistir é uma série de transformações, e eu não vou falar
delas no intuito de julgá-las, no intuito de criticá-las, no intuito
de ter um discurso moralista, que nós devemos corrigir isso ou
aquilo, mas apenas de dar indicações da dimensão do problema
mostrando que nós estamos vivendo uma fase de imensas trans-
formações, sem que ninguém, isoladamente, possa dar conta das
conseqüências.
A questão do consumo: hoje em dia, a cidadania virou a
capacidade de consumir, ou seja, é cidadão pleno aquele que tem
capacidade de consumir. A participação política, a sua posição
ética, isso tudo está esvaziado em favor da capacidade de consu-
mir. Só é um cidadão potente, só é um cidadão respeitado quem
tem capacidade de consumir, consumir em diversos níveis. A
questão de uma sexualização precoce aparece quando falamos de
problemas como a pedofilia na Internet, o abuso sexual, proble-
mas graves que, com certeza, vocês encontram no dia-a-dia no
serviço de saúde, na justiça ou na escola. Mas a sexualização pre-
coce ultrapassa a questão de alguns perversos que abusam dos
menores. A sexualização precoce serve ao consumo, as crianças
são precocemente exibidas como objeto de consumo, são apre-
sentadas como seres incluídos no mercado do sexo e assim apa-
48 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

recem na televisão, na mídia em geral, para vender produtos. No


Brasil sobretudo, mas em outros países também, isso é muito
presente, os programas infantis, as moças que conduzem os pro-
gramas infantis são símbolos sexuais, se vestem de maneira bas-
tante ousada e vendem essa sexualidade através das crianças.
Nós temos uma grande perda da dimensão do futuro, nós
estamos voltados nessa questão do consumo para um gozo ime-
diato, o adolescente não vê muitas razões para adiar esse gozo
imediato em função de uma formação de algo que vai ser obtido
no futuro. O que vai ser obtido no futuro? Nós temos uma ques-
tão estrutural do desemprego, temos uma questão estrutural da
mutabilidade das carreiras, dificilmente alguém faz uma carreira
no sentido de que a partir de uma formação está garantido o seu
futuro ou o seu emprego. As empresas apresentavam possibi-
lidades de uma carreira, de algo que o sujeito, se tivesse um bom
desempenho dentro de uma empresa, estava garantido o seu
futuro, e uma boa formação escolar dava acesso a esses empregos.
Isso tudo não é um problema só brasileiro, é um problema mun-
dial, é um problema estrutural. Os empregos são voláteis, de
acordo com o mercado, de acordo com o interesse dessas empre-
sas, os empregos migram daqui para Hong-Kong, de Hong-Kong
para a Índia, da Índia para a Dinamarca etc. Empregos, tipo de
função, de desempenho, desaparecem da noite para o dia e isso é
algo que dificulta aos jovens alguma contenção de um gozo ime-
diato e dificulta a quem vai lidar com esses jovens lhes fornecer
indicações: bom, estamos adiando alguma coisa agora em função
do proveito de algo no futuro. É muito difícil que alguém possa
fazer isso sem cair na hipocrisia e os jovens reagem à hipocrisia.
Então, esse estímulo e essa propensão ao gozo imediato, que
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 49

está ligado ao consumo, que está ligado a volatilidade da sociedade


contemporânea, faz com que seja muito difícil podermos lidar e
trazer à baila a questão da responsabilidade dos jovens e para
com os jovens.
Ligado a essa questão temos a fragilidade dos laços sociais,
a fragilidade dos laços afetivos intrafamiliares e extrafamiliares,
por exemplo, uma das garantias que a família tinha, uma das
garantias da posição da família na sociedade, um lugar privilegiado
da criação de filhos, era a história de uma transmissão trans-
geracional, ou seja, a experiência, o lugar ocupado pelos pais. A
experiência desses pais servia, era um indicador para o futuro
dos filhos. Não serve mais. O mundo que os pais viveram é muito
diferente do mundo que nós vivemos, a transmissão, a experiência
funciona, muitas vezes, muito mais como uma amarração, como
entrave, do que como pacificação para a vida futura desses filhos.
Eu tive uma experiência como adolescente que não corresponde
a experiência dos adolescentes de hoje, isso é uma das questões
que fragiliza a oportunidade de uma autoridade, de um
desempenho da família com relação aos adolescentes. Os vínculos
familiares são, sobretudo, vínculos também de consumo, a família
é um grupo de pessoas que consome junto, isso tem sido mais
forte do que diversos outros laços.
A fragilidade dos laços sociais também ultrapassa a questão
da família, a intensificação da ligação é vista muito mais como
aprisionamento, como um impedimento que visa novas expe-
riências e os adolescentes estão muito sensíveis a isso. Não é à
toa que se propaga – não é uma crítica moralista, é uma consta-
tação de mudança de padrões sociais – todos os tipos de relação
via Internet. Qualquer tipo de relação, amizade, namoro, sexo
50 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

virtual. Por quê? Porque a Internet é justamente um espaço que


condensa, ao mesmo tempo, proximidade e distância, deixando
ao alcance do dedo deletar aquela ligação, nunca mais retomar
um contato e passar para outro imediatamente, e para outro, e
para outro. Os contatos pessoais são muito mais difíceis. Esse
contato/Internet se casa muito bem com a nossa sociedade con-
temporânea rápida e volátil.
Dentro desse contexto – e aí eu falo um pouco da minha
experiência profissional – nós ainda temos os adolescentes estra-
nhos. Os adolescentes estranhos são os adolescentes que têm al-
gum tipo de problema mais grave, um sofrimento psíquico mais
intenso e comprometimento dos seus laços sociais a partir de
algo que os manuais médicos chamam de “transtorno mental”.
E esses são estranhos no sentido em que nós temos dificuldade de
encaixá-los nos nossos mapas mentais, nossos mapas cognitivos,
permitindo que a linguagem deles possa ressoar com a nossa
linguagem, entender o que eles falam. Ou não se encaixam nos
nossos mapas estéticos, pois esses estranhos, às vezes, não man-
têm os hábitos de higiene que nós esperávamos, se vestem de
forma estranha. Ou não os encaixamos no nosso mapa moral:
eles não têm limites, mesmo o limite já precário dos adolescen-
tes, eles não têm esses limites, são capazes de atos que nós não
esperávamos que eles fossem capazes, de auto-agressão, de
hetero-agressão, de não respeitar certas regras que esperávamos
encontrar no colégio ou no centro de saúde. Então, esses adoles-
centes estranhos, na verdade, não há como só o profissional de
saúde mental cuidar deles, eles têm que ser cuidados por toda a
sociedade. Por que não podem ser cuidados só pelo profissional?
Porque, justamente, a questão dessa estranheza é algo que pode
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 51

ser tratado de diferentes maneiras, mas que pressupõe uma ques-


tão básica que é que eles tenham um lugar, e esse lugar só pode
ser garantido pelo conjunto social. Não basta a presença do psi-
quiatra, do psicólogo, do assistente social, de alguém dedicado a
esses adolescentes, ou a essas crianças, para se ter um lugar so-
cial, esse lugar tem que ser aberto e ele é aberto constantemente
com a colaboração de todos e com a idéia de uma luta constante
contra a exclusão, ou seja, não é possível transformar aqueles
que têm um certo déficit, uma certa precariedade, uma certa di-
ferença que seja, não é possível igualar, não é possível transfor-
mar todos os fracos nos fortes, é preciso que a gente reserve um
lugar social para aqueles mais fracos, que têm as suas limitações.
Isso não é tarefa exclusiva de um profissional, só do profissional
da saúde mental, é uma tarefa de todos nós e essa é uma questão
que eu enfrento no meu dia-a-dia: como não renunciar a minha
responsabilidade de cuidar desses adolescentes ou dessas crian-
ças mais frágeis, desse ponto de vista, sabendo que todas as mi-
nhas ações são incompletas ou só parcialmente eficazes?
Se nós não pudermos encontrar um lugar, não um lugar de
exclusão, não o hospício, que esse nós queremos fechado, pois é
um lugar de exclusão mesmo, no sentido que não é um lugar
terapêutico, é um lugar apenas para se esconder esses estranhos,
isolá-los. Se nós pudermos encontrar um lugar para esses es-
tranhos, tem que ser um lugar de tolerância. Então, dentro desse
mundo de transformação, dentro desse mundo de frágeis laços,
nós atendemos esses sujeitos adolescentes que são mais frágeis
ainda para estabelecer laços sociais. Não quer dizer que não seja
possível de estabelecer laços com eles. Uma experiência que eu
tive e que não é uma experiência absolutamente ímpar, e sim
52 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

algo que acontece no dia-a-dia: eu recebi, como psiquiatria, uma


mãe com um adolescente psicótico, bastante perturbado, ele está
magro, abatido, ele está triste apesar de que não faz um discurso
consistente sobre isso, ele só fala algumas palavras. Faz um dis-
curso com frases sem nexos perceptíveis, ou seja, frases sem su-
jeito, verbo e objeto. As coisas são expressas meio que em forma
de salada de palavras, mas dá para perceber as mudanças nele. E a
mãe procura uma explicação, uma causa orgânica, traz uma série
de exames e aquilo não me convence muito. É uma família que
tem razoáveis condições econômicas, uma família de classe mé-
dia baixa, mas não faltam alimentos, nem cuidados médicos. Uma
bateria de exames que eu não pedi, foi pedida por outros médi-
cos que a mãe procurou e nada se constatou nesses exames. Eu
começo a perguntar sobre o que poderia estar acontecendo, o
que leva esse garoto a estar tão abatido. O pai do garoto não vive
com a mãe e acabo percebendo que aconteceram coisas que esse
garoto é capaz de captar. Brigas entre os pais, um certo abandono
por parte desse pai, não o abandono no sentido de uma assistên-
cia financeira, mas abandono em termos de presença, a partir de
desentendimentos entre o pai e essa mãe. Faço a hipótese de que
esse garoto, por não ser capaz de articular um discurso coerente
sobre os conflitos, ele reclama pelo corpo. Os conflitos aparecem
em seu corpo, os vômitos que ele passa a ter, a perda de apetite,
o abatimento, parece refletir essas questões. Mas é preciso ter
olhos para ver, ter ouvidos para escutar essas pessoas, mesmo
com toda sua estranheza, elas podem e merecem ter a possibili-
dade de ocupar um lugar. Naquele momento conseguimos abrir
uma pequena clareira de entendimento, de percepção e isso foi
passado para mãe, foi falado com ele, não importando se ele não
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 53

pode dar uma resposta coerente sobre aquilo que foi falado para
ele. O reconhecimento da sua posição de sujeito e o reconheci-
mento que, afinal, as coisas não tinham que passar só num plano
do corpo material, que existe uma vida subjetiva ali que merece
ser considerada. Isso é também abrir um lugar, um lugar não é só
um lugar concreto, é um reconhecimento de que ali está um su-
jeito e por mais que seja estranha a sua maneira de comunicar,
ele pode, de alguma forma, responder, entender, perceber aquilo
que ocorre a sua volta. Trata-se de uma maneira de falar, de en-
contrar um lugar de abrir um lugar para esse adolescente. Duas
semanas depois, pude constatar que seus sintomas corporais ti-
nham desaparecido.
Eu farei agora uma referência, por contraste a esse tipo de
exemplo que apresentei, vou fazer referência a “soluções” – e eu
coloco soluções aí entre aspas – que estão muitíssimo em voga
hoje em dia para se lidar com diversos tipos de problemas da
criança e do adolescente. Os problemas podem ser vários – ina-
daptação escolar, conflitos na família, comportamento fora da
expectativa que os pais tinham sobre aquela criança, o fracasso
escolar, um ato anti-social. O que se vê, como uma ação que vai
se tornando cada dia mais freqüente, é o uso de uma medicação,
a proliferação extrema das soluções psicofarmacológicas. Para
todas essas questões que eu toquei as soluções que se apresen-
tam são soluções fáceis, são soluções rápidas, são soluções ligei-
ras. São rápidas e fáceis só na aparência, porque elas não são
produtivas. Recebemos cada vez mais diagnósticos feitos nos colé-
gios que o garoto tem um transtorno, um déficit de atenção e
hiperatividade. Diagnósticos feitos pelo professor, feitos pela
própria família que viu na televisão, no Fantástico, casos que corres-
54 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

ponderiam exatamente aos problemas do filho. A cada duas pes-


soas que recebemos uma está deprimida e já pede tal ou qual
medicação, já tem mais ou menos as suas escolhas de medica-
ção, Prozac para uma, Ritalina para outra... Essas são soluções
fáceis para problemas muito complexos e isso tem recaído bas-
tante sobre crianças e adolescentes. Eu fico muito impressiona-
do com o número de crianças e adolescentes que estão sendo
medicados – é claro que isso não é uma condenação à medicação
em si, eu sou médico psiquiatra, uso, prescrevo medicações, elas
têm uma enorme utilidade em alguns casos e são extremamente
ineficientes em outros. Fico cada vez mais impressionado não só
com a quantidade, mas com a dificuldade que você tem de barrar
esse uso indiscriminado de medicação. A família já sabe o que
quer, pois já viu na televisão ou nos cadernos de saúde dos jor-
nais, o professor já sabe o que quer para o aluno em termos de
tratamento. Na Justiça também há, às vezes, esse tipo de deman-
da, diagnósticos prontos, remédios pré-receitados e ai do profis-
sional que não seguir essas demandas: “está desatualizado”, ou
então tem pouco interesse – “é da rede pública mesmo”, “não
medicou, não passou nem um remedinho para aliviar o sofri-
mento”. Eu vou finalizar aqui, na expectativa de que as minhas
palavras ajudem a refletir a discussão sobre esses temas.


A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 55

Algumas observações
a partir do trabalho
de supervisão
continuada

Simone Gryner

COMO SABEMOS, HÁ AQUI DIFERENTES profissionais do


campo da saúde – psicólogos, médicos, assistentes sociais, en-
fermeiros, auxiliares de enfermagens, dentistas, entre outros. Sei
também que estão aqui presentes profissionais ligados aos campos
da Educação e do Jurídico. Com tantas diferenças, o que pode-
ríamos todos nós ter em comum? O que eu poderia dizer que
une e implica essas práticas tão distintas? Tentarei responder a
isso falando de algo que é sem dúvida muito caro, e se coloca
para todos: a responsabilidade, os limites e a ética do profissional
diante do seu ofício.

SIMONE GRYNER | Coordenadora executiva do NAV e psicanalista.


56 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

Este Seminário faz parte do trabalho de Supervisão continuada


que surgiu a partir das capacitações que o NAV realizava sobre o
tema da violência doméstica, organizadas pela SMS. Nesse tra-
balho, percebíamos a enorme defasagem entre dar as informações
sobre a temática e as possibilidades reais do profissional de
adaptar essas informações à sua rotina de trabalho, tendo em
vista suas dificuldades pessoais e aquelas encontradas na unidade
em que atua.
O ponto de partida do trabalho de supervisão foi a seguinte
convocação:
“Tragam uma situação de impasse, uma situação em que
você se sentiu convocado a trabalhar, mas em que, de alguma
forma, você questionou o seu papel e sua intervenção no caso,
em que você não sabia exatamente o que estava fazendo, e em
que você teve dúvidas.” E qual foi a resposta dada?
Os profissionais responderam de forma bastante positiva a
essa convocação, aceitando a oferta de expor e questionar sua
prática, trazendo tanto situações que aconteceram naquela semana
quanto situações que tinham acontecido há 5 anos. Situações
que tiveram resultados positivos e situações que tiveram resul-
tados negativos. Isso parece revelar que quando lhes é dado espa-
ço, os profissionais se põem a formular em palavras seu trabalho
e a fazer circular para outros aquilo que encontram como impasse
nas situações de seu cotidiano. Não é de se desprezar, muito
pelo contrário, o compromisso com o trabalho que realiza quando
um profissional traz um caso que foi atendido 5 anos antes ou
quando apesar de o resultado de sua intervenção ter sido positivo,
ele ainda assim tem vontade de falar sobre o impasse que viveu
devido ao grau de dificuldade pelo qual passou.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 57

Podemos, então, após esta pequena introdução, sinalizar o


primeiro ponto que gostaríamos de abordar com vocês: A expe-
riência de que não possuímos um saber que possa dar conta de
todos os casos que nos chegam. O profissional, no seu ofício,
sempre acaba se deparando com um momento de suspensão no
qual não sabe o que fazer: o professor com um aluno que não
aprende, o médico com um paciente do qual não consegue tratar,
e a lista continua com cada profissional, cada um com o seu oficio
e com os impasses que nele surgem.
E o que fazemos com o impasse? Há duas formas de reagir a
ele: ou ignorá-lo ou sustentá-lo, no sentido de possibilitar que
ele seja operativo, que faça o sujeito trabalhar.
Vivemos em um mundo em que impera um modelo científico,
em que acreditamos que a ciência é capaz de validar uma determinada
posição de forma incondicional. Muito embora nossa experiência
cotidiana nos mostre algo diferente: as descobertas supostamente
incontestáveis da ciência se tornam contestáveis no dia seguinte.
Basta ler os jornais para ver que a cada dia a grande descoberta de
ontem tornou-se completamente obsoleta no dia seguinte. Se
sabemos que não se trata de ir contra os avanços da ciência – primeiro,
porque de nada adiantaria, segundo, porque a ciência traz avanços
para nossas vidas – também não devemos perder de vista que ela
traz implícita uma lógica de completude, de exatidão, que
dispensaria o sujeito de qualquer responsabilidade em relação ao
sentido do que lhe acontece. Isso pode ser exemplificado com a
oferta no mercado de medicamentos que se apresentam como
“soluções mágicas” para as dificuldades do sujeito.
Nesse sentido, podemos deixar aqui a seguinte questão: será
que quando nos fixamos unicamente em estabelecer critérios
58 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

científicos para nortear um trabalho no qual estão incluídas ques-


tões subjetivas, não estaríamos, de alguma maneira, tentando
driblar as dificuldades que se impõem no trabalho e que só pode-
riam ser enfrentadas caso a caso?

ATUALMENTE HÁ UMA GRANDE POLÊMICA em torno da


questão de os pais terem ou não direito de dar palmadas em seus
filhos. Essa polêmica não é privilégio dos brasileiros, ao contrário,
ela tem dado a volta ao mundo, como é o caso do que está aconte-
cendo na Inglaterra, onde acaba de ser sancionada uma lei, a Lei
da Criança, que responsabiliza criminalmente os responsáveis que
punem seus filhos com mais do que um leve toque.
Segundo artigo de Furedi1, publicado em julho de 2004 na
Folha de São Paulo, os ativistas a favor dessa lei “reconhecem que
sua principal tarefa é forçar os pais à defensiva” (...), e o castigo
físico é associado a uma posição autoritária – no mau sentido –
dos pais. Furedi continua: “Um argumento usado para sola-
par a autoridade paterna é a alegação de que aquilo que é ina-
ceitável entre os adultos não deveria ser usado contra as crianças.
O que os ativistas estão dizendo, na verdade, é que deveríamos
renunciar a toda tentativa de impor a vontade paterna às crianças,
e em lugar disso negociar com elas como se fossem adultos
razoáveis.”
Se fizéssemos uma enquête aqui, poderíamos ter vários
voluntários para defender ou atacar a proibição à palmada. A
posição de cada um de nós tem a ver com um conjunto de valores

1
FUREDI, Frank. Artigo publicado na folha de São Paulo, dia 11 /7/2004.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 59

subjetivos, o que está na contramão do que se pretende científico.


Pois a ciência aspira justamente excluir o sujeito, na medida em
que só considera como válidos resultados que possam ser
reproduzidos independentemente de seu autor.

O que tudo isso tem a ver com esse


trabalho de supervisão continuada?
Todos os casos que são discutidos trazem uma situação de
violência. E como vemos a mídia tratar da questão da violência?
Confesso minha preocupação quando leio nos jornais os depoi-
mentos de especialistas que dizem que crianças que sofreram
abusos sexuais reagem de “tal maneira” ou fazem um determinado
tipo de desenho. O que significa ser especialista em violência?
Especialista é uma pessoa que, por se dedicar a um determinado
ramo de sua profissão, poderá ter uma maior habilidade para
determinada coisa. Isso significa que uma pessoa que tem inte-
resse pela temática da violência acaba se debruçando sobre o tema,
o que pode possibilitar, mas não garantir, um encaminhamento
mais pertinente da situação. No NAV, por exemplo, acho que só
é possível receber e sustentar os atendimentos porque trabalha-
mos com uma equipe e temos espaços de discussão sobre cada
caso. Digo sobre cada caso porque não temos a percepção de que
em um determinado tipo de situação, abuso sexual por exemplo,
a criança reage de uma determinada maneira. O que verificamos
é que existem crianças que se deprimem e outras que não, há
aquelas que conseguem pedir ajuda e outras que não, há pais
que são acusados de terem cometido uma violência e que efe-
60 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

tivamente cometeram e outros que são acusados sem que isso


tenha acontecido.
O que podemos verificar é que uma situação de violência
doméstica não necessariamente exige conduções difíceis. No
entanto, a dificuldade que sempre está presente é que não temos,
a princípio, como garantir que será possível um determinado tipo
de desdobramento da situação. Podemos dizer que se trata de
uma aposta que inclui um risco. Lembro-me de uma assistente
social, no trabalho de supervisão, contando sobre o trabalho
realizado com uma mulher, vamos chamá-la de Ana, que vivia
com vários filhos e com um companheiro alcoólatra numa situação
de pobreza, de miséria. A situação era muito séria, as crianças
negligenciadas, sem cuidados básicos e com dificuldades de fre-
qüentar a escola. Quando Ana não retorna à consulta marcada, a
assistente social decide realizar uma visita domiciliar, na qual a
mulher acaba contando que o companheiro abusava sexualmente
das crianças. Naquela mesma tarde, Ana decide ir para um abrigo
com seus filhos e, desde então, passa a se responsabilizar por
eles de uma forma diferente. Ana relatou ter ficado muito surpresa
com a visita da assistente social e pôde dizer como se sentiu
cuidada. Tudo isso, com certeza, só foi possível por causa da
posição da assistente social. Foi a posição de acolhê-la, de dar-
lhe um lugar que criou para Ana a possibilidade de falar tão aber-
tamente de suas dificuldades, de estabelecer um vínculo de con-
fiança. No entanto, podemos ver claramente que houve uma
aposta dessa profissional no sentido de que era possível uma
mudança de posição de Ana, provavelmente a partir do que ela
pôde ouvir, talvez algo da ordem de um incômodo com a situação,
com um certo desejo de Ana, mesmo que não explícito, de mudar
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 61

alguma coisa em relação ao que lhe vinha acontecendo. Quem


aqui poderia dizer que teria sido melhor que a assistente social
tivesse feito uma notificação na primeira vez em que esteve com
Ana?
Vocês estão percebendo a complicação dessa situação? Por
um lado, a percepção de que as crianças estão passando por uma
situação de violência e de que há a necessidade de protegê-las,
mas sabendo que um provável desdobramento de uma notificação
seria o encaminhamento das crianças para um abrigo, ou seja,
um afastamento e um possível processo contra a mãe. Por outro
lado, a percepção de uma preocupação por parte dessa mãe, a
verificação de uma posição defensiva e de impotência, a consta-
tação do amor por seus filhos, o que não significa dizer que estava
sendo possível para esta mulher protegê-los. A profissional
resolveu apostar na possibilidade de um trabalho com essa mãe
e, só no momento seguinte, encaminhar o caso para o Conselho
Tutelar. Como já informei, deu certo. O problema é que só depois
podemos dizer que “deu certo”, no momento em que devemos
decidir, só é possível fazer uma aposta.
Isso tudo me faz pensar na difícil relação do profissional de
saúde – ou de educação – com o Conselho Tutelar. Digo difícil
porque, na maior parte das vezes, é nesses termos que ouço essa
relação aparecer nos relatos. Teremos uma Mesa a seguir que
discutirá esta questão, mas gostaria de pontuar alguma coisa. O
profissional de saúde não é detetive, ele não tem que ter certeza
de que uma situação de violência efetivamente está acontecendo.
Mas uma vez que ele recebe e escuta uma situação que o faz
suspeitar de que se trata de um caso de violência, não há como
deixar de considerar sua resposta, qualquer que seja ela, como
62 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

uma atitude: se ele faz uma notificação, está tomando uma


decisão, se não faz uma notificação, também está tomando uma
decisão.
Talvez para deixar como ponto de debate para a próxima
Mesa, parece-me que o importante é que no ato realizado pelo
profissional haja o seu compromisso com o que ouve, com o que
percebe e com aquilo em que aposta. E que é muito importante
que existam espaços onde o profissional possa falar das dificul-
dades que se colocam para ele, como, por exemplo, qual o melhor
momento de fazer a notificação. Sabemos que uma atitude preci-
pitada pode provocar desdobramentos tão desastrosos quanto
uma atitude de omissão.
No exemplo da palmada, quando se diz “qualquer coisa além
de um leve toque de um responsável é um ato violento”, podemos
nos sentir confortáveis, como se pudéssemos saber que então,
diante de qualquer situação em que “há mais do que um simples
toque”, temos de fazer uma notificação. Mas como determinar
que é efetivamente o caso de o profissional fazer uma notificação?
Sabemos que faz diferença se um pai dá uma palmada tentando
estabelecer uma autoridade necessária para seus filhos, ou se ele
bate gratuitamente, só para exteriorizar sua raiva. Então, é so-
mente escutando os envolvidos em cada caso que poderemos
tomar alguma decisão, e para essa decisão os critérios predeter-
minados não vão nos ajudar suficientemente.
Quando se encontra fixado em normas preestabelecidas que
determinam o que pode e o que não pode fazer, o profissional
pode até mesmo se sentir mais seguro e mais confortável, mas
isso não deve implicar que ele se esquive da sua responsabilidade
na situação.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 63

Nesse sentido, gostaria de trazer um caso que foi trabalhado


nos nossos encontros de supervisão. Uma dentista recebeu uma
criança com problemas dentários graves, e ficou claro para ela de
que se tratava de uma situação de negligência. No entanto, durante
os atendimentos da menina, a mãe se pôs a falar de dificuldades
pessoais. Ela, que até aquele momento nunca tinha conseguido
levar um tratamento adiante com a filha, passou a levá-la semanal-
mente ao tratamento dentário. Esse espaço de fala proporcionou-
lhe algo novo e, passado algum tempo, a dentista pôde então
encaminhá-la para outros profissionais.
Parece que esse é um bom exemplo de uma escuta cuidadosa.
Sabemos que muitas vezes ocorre uma situação em que o paciente
começa a falar sobre sua vida. Uma vez que isso acontece, é preciso
assumir o compromisso de ter aberto um lugar de fala para o
paciente, mesmo que a situação não tenha passado por uma de-
cisão racional do profissional. No caso da dentista, um vínculo
foi sendo constituído a partir da realização de seu trabalho; ela
não passou a ser a psicóloga, a clínica ou a assistente social do
caso mas pôde, a partir de seu trabalho, acolher as dificuldades
que para ela ficaram evidentes. A partir de um vínculo transfe-
rencial ela pôde então pensar na possibilidade de encaminhá-la
para outros profissionais, abrindo a possibilidade de diferentes
intervenções.
Muitos são os casos em que o paciente começa a falar e o
profissional tem a ilusão de que um outro saberia fazer melhor e
estaria mais habilitado do que ele. Independentemente de isso
ser verdade, o que um paciente pode falar e dirigir a um profis-
sional é relativo a um momento sempre único. No caso acima, a
dentista percebeu, logo nas primeiras consultas, que além do
64 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

seu trabalho como dentista seria necessária a intervenção de


profissionais de diferentes campos mas isso não significou uma
confusão de seu papel naquele caso.

UM ÚLTIMO PONTO IMPORTANTE que não poderia deixar


de ser mencionado diz respeito à solidão e ao isolamento no qual
se encontram alguns profissionais. São significativas as
perspectivas de trabalho que se abrem quando se conta com uma
equipe para refletir sobre os encaminhamentos de uma situação
ou com um lugar de referência para o qual o trabalho possa ser
endereçado.
Nesse sentido, é muito importante a aproximação que, a
partir deste trabalho de Supervisão Continuada, tem acontecido,
tanto entre as unidades quanto no interior das próprias unidades.


A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 65

Contextualizando a
relação com a lei –
avanços e dificuldades a
partir do E.C.A.

Fernanda Costa-Moura

QUERO AGRADECER O CONVITE DO NAV e da Secretaria


Municipal de Saúde por esta oportunidade preciosa de entrar em
contato com os diferentes universos e práticas presentes neste
seminário bem como a chance de compartilhar e discutir com
vocês algumas reflexões suscitadas pela prática que é a minha –
acompanhar crianças e adolescentes e seus pais ou responsáveis
em tratamento psicanalítico, bem como profissionais que a vários

FERNANDA COSTA-MOURA | Psicanalista, Membro do Tempo Freudiano


Associação Psicanalítica, Pesquisadora docente em programa de Fixação
apoiado pela FAPERJ no Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica
- IP/UFRJ.
66 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

títulos e em diferentes circunstâncias se ocupam da criança e do


adolescente – a respeito de algumas incidências subjetivas do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Refiro-me ao E.C.A. porque ele é representativo do laço que
fazemos com a criança e com o adolescente em nosso funciona-
mento social contemporâneo. Minha perspectiva, entretanto, é
bastante específica e limitada à experiência clínica, experiência
que tem por matéria justamente o que não corre bem, o que
apresenta problemas no campo subjetivo. Por isso não pretendo
julgar os avanços ou a eficácia do E.C.A. como instrumento
jurídico de avanço social, mas apenas observar quais são os lugares
simbólicos que aí se instituem para a criança e seus pais e as
perspectivas que, neste contexto, se abrem para o advento do
sujeito como sujeito responsável por seus atos e por sua vida.
Então, a esse propósito eu gostaria de levantar alguns pontos.
A primeira consideração diz respeito ao fato de que o E.C.A.
dá corpo à Doutrina de Proteção Integral, abrangendo todas as
crianças e adolescentes do Brasil e conferindo-lhes o estatuto de
sujeitos de direitos. Sabemos que se trata de uma lei federal e
que, como em toda lei positiva, seu texto é afirmativo e universal.
Especificamente, no caso do E.C.A. o texto da lei assume a forma
de salvaguarda dos direitos presumidos da criança e do
adolescente. E é sobre esse ponto que incide, para mim, uma
primeira questão: Que implicações traz o fato de ser necessário,
em nosso País, elaborarmos uma lei de defesa das crianças e dos
adolescentes com esta preocupação central de salvaguarda de
direitos?
O texto do Estatuto arrola uma quantidade infindável de
direitos das crianças e adolescentes. Direitos que vão dos mais
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 67

básicos, como direito à saúde, alimentação, educação etc, até


outros como direito ao esporte, ao lazer, ou direito à liberdade, à
autonomia ou ainda à liberdade de crença, de opinião, de culto
religioso. Então, além dos direitos presumidos, inerentes, o texto
do E.C.A., outorgando-lhes por lei os mais variados direitos, toma
a criança ou adolescente não apenas como sujeito de direito, mas
de fato: um sujeito já plenamente razoável, com quem se poderia
negociar em termos de consenso e acordo. Em nome de proteger
a criança, retirou-se do texto da lei do Estatuto tudo que pudesse
introduzir uma dissimetria de lugares. Dirigimo-nos aos jovens
como adultos (se não, por que lhes atribuiríamos o direito de
contestar as avaliações da escola, ou a liberdade de crença reli-
giosa, entre outras inúmeras prerrogativas?). Como se não qui-
séssemos, não ousássemos impor a eles nada por meio da au-
toridade. Com receio de que uma autoridade possa ser excessiva,
corremos o risco de supor que a única forma de proteger a criança
desses abusos é através de uma horizontalidade nas relações com
ela. Porém, não é justamente essa horizontalidade o que está em
jogo nas situações de violência doméstica? Não é justamente esse
apagamento relativo dos lugares e papéis que está implicado
quando um adulto resolve ignorar ou distorcer suas responsa-
bilidades frente à criança? No entanto, situados numa perspectiva
que procura garantir para a criança um bem-estar assegurado
como direito, não raramente elimina-se a dissimetria de lugares
que é essencial para o sujeito e que não é redutível à simetria,
evocada na lei, entre o direito da criança ou do adolescente e o
que disso resulta como dever para seus pais e responsáveis.
Garante-se, por exemplo, o direito à palavra da criança, mas não
se dá tanta importância à ouvir os pais. (Não são poucos os casos
68 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

conhecidos de intervenções suscitadas pelo E.C.A. que seguem


seu curso – seja ele qual for, inclusive envolvendo a perda, pro-
visória ou não, da guarda e a possibilidade de destituição do pátrio
poder – baseadas em suspeitas e acusações e sem que um dos
pais tenha sido ouvido.) E com isso privamos a criança e seus
pais do reconhecimento de seus lugares simbólicos respectivos,
diferentes e não intercambiáveis. Reconhecimento imprescindível
para constituir o lugar singular a partir do qual o sujeito pode
advir e equacionar suas relações com o Outro através da palavra
e não da violência.
Em suma, ao reduzirmos o lugar do pai ou da mãe a lugares
quaisquer, privando os sujeitos da legitimidade a partir da qual
poderiam exercer essas funções, não estaremos, no mesmo golpe,
recrudescendo um contexto que contribui para o incremento das
situações de violência? Se o lugar do pai, por exemplo, perde sua
especificidade – se não consideramos que há aí uma função que
deve ser preservada em nossos atos (nas posições que tomamos
como sociedade civil), independentemente dos equívocos que
aquele pai possa ter perpetrado – não fica cada vez mais próximo
o horizonte no qual é possível a um pai negar suas responsabi-
lidades e passar ao ato, tomando seus filhos como objetos sexuais
ou de negligência?
Um outro ponto diz respeito ao fato, já mencionado, de que
o E.C.A. pretende conferir à criança e ao adolescente o estatuto
de sujeito (sujeito de direitos), revogando o velho paradigma que
contemplava apenas o menor em “situação irregular” e o colocava
como objeto de proteção e de controle do Estado.
Entretanto, no próprio texto da lei identifica-se fatalmente
um paradoxo quanto a isso, na medida em que a lei positiva tende
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 69

– por sua própria formulação universalista – a substancializar o


sujeito, reduzindo-o a seus atributos como idade, direitos e
outros. A incidência da lei positiva tem esse efeito de mapear o
campo. Fixando, de um lado a vítima, do outro o agressor como
figuras que se destacam do fundo composto por uma suposta
harmonia original, entre o sujeito e seu meio, que a situação de
violência teria rompido.
Ora, não podemos ignorar que se há sujeito, se falamos de
um sujeito soberano, é justamente na medida em que não há
continuidade necessária entre ele e o Outro, ou entre uma reali-
dade supostamente objetiva e suas respostas a essa realidade.
Todo sujeito humano está marcado desde sempre por alguma
medida de incompletude, de disparidade entre ele e o objeto que
não é passível de reparação e que ao mesmo tempo é aquilo que
lhe assegura alguma margem de escolha com relação a seus
objetos e confere, conseqüentemente, uma dimensão ética a seus
atos. Se ignoramos isso, ignoramos o sujeito e o aprisionamos
como vítima ou agressor, num domínio de fatos, no qual haveria
apenas uma realidade objetiva a ser desvendada, uma realidade
que independe de um sujeito – daquele sujeito em particular –
que tome lugar nela de maneira singular e seja singularmente
afetado por aquilo e aqueles que o cercam.
A realidade dos atendimentos em várias instâncias a essas
famílias demonstra toda a dificuldade que a criança e seus pais
enfrentam por se debaterem com esse lugar onde estão fixados.
Sabemos das dificuldades que os profissionais enfrentam para
que cada um dos envolvidos possa tomar lugar e lidar com a
situação que levou ao atendimento, construindo novas possibi-
lidades de interpretação para ela. Dificuldades que sem dúvida
70 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

estão ligadas ao fato de que é preciso que o sujeito experimente,


a partir do exercício e do reconhecimento de sua palavra, que
ninguém é senhor absoluto do que faz, pensa ou deseja. (Não
são raros os casos em que um sujeito pode, a partir de um trabalho
analítico e às vezes depois de anos, vir a ressignificar inteiramente
sua própria participação em determinada situação ou ato, com
inúmeras conseqüências.)
Então estamos diante do paradoxo de uma lei que representa
esse avanço inegável de dar a palavra à criança, de dar-lhe um
lugar para dirigir a sua queixa, mas que ao mesmo tempo, pode
dar margem a que se desvalorize a palavra dos pais. Ou o paradoxo
de um lugar ao qual a criança pode recorrer mas que, automa-
ticamente, fornece para ela um lugar de vítima, porque é como
vítima que é chamada a falar.
Um último ponto trata da questão do lugar da intervenção
jurídica para nós. Promulgamos essa lei tão avançada, considerada
uma das melhores do mundo, exemplo para vários outros países.
E nunca se recorreu tanto à justiça (ao menos nos extratos e
lugares onde as instâncias jurídicas estão à mão). Buscamos hoje
intervenção jurídica para um sem número de assuntos
relacionados às crianças e jovens. Casais abdicam do acordo e
resolvem na justiça a menor questão sobre os filhos, as escolas
quase não podem mais tomar medidas restritivas (uma suspensão,
por exemplo) sem o encargo de ter que responder judicialmente
por suas decisões. E, no entanto, toda essa inflação jurídica não
parece estar levando a muito bom termo a nossa relação com as
crianças e jovens.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 71

A INTERVENÇÃO JURÍDICA OFERECE sempre uma resolução


contratual para os conflitos. Observa-se que, em alguns casos, o
E.C.A., por exemplo, cria um campo que pode ser o oposto do
que se passa nas situações de violência doméstica – dando um
limite e um lugar de referência para a criança. No entanto, essa
lei só poderá operar dessa forma se ela não se reduzir a uma
solução-padrão. A universalização que é própria do texto da lei
positiva conduz à idéia de que é possível, a priori, saber o que
fazer, ou nos assegura de que em todos os casos é possível saber
exatamente o que a criança precisa, prescrevendo uma série de
medidas de caráter geral – como é o caso da exigência de no-
tificação aos Conselhos Tutelares das situações suspeitas ou
confirmadas de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E
muitas vezes o que se constata é que a notificação pode não ser o
melhor procedimento em um determinado momento; que há
muitas situações em que é mais profícuo e mais eficaz para a
própria proteção da criança buscar alguma solução que passe pela
tomada da palavra e pelo reposicionamento subjetivo, o que, às
vezes, o processo que é desencadeado por uma notificação
prematura vem impedir.
A cada vez que apelamos à justiça para resolver um conflito
buscamos que a lei nos diga o que fazer, como proceder, o que
esperar, quais são as regras que devem reger nossos atos. Não é
difícil perceber que desse modo é mais econômico, menos in-
certo. A solução judicial justamente, dispensa o sujeito, im-
pondo-se a ele como intervenção exterior, real. É claro que isso
não é simplesmente inevitável – que desde que exista lei, cai-
remos fatalmente nesse tipo de simplificação. Não. Justamente,
o que isso demonstra é que a lei sozinha não dá lugar e nem
72 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

pode substituir o ato do sujeito. A lei não pode, não deve, a


meu ver, tomar o lugar da decisão clínica, da decisão tomada
caso a caso, que fica a cargo das equipes encarregadas (no caso
da saúde) do atendimento daquelas famílias. O que vai fazer
diferença em cada caso é a posição dos profissionais envolvidos
em todas as instâncias em que isso possa ocorrer. Se
modernamente é uma característica da nossa sociedade, cada
vez mais, substituir as situações de impasse, de incerteza, que
exigem um posicionamento singular, uma condução diferenciada
para cada caso, por um pedido de intervenção judicial, por uma
decisão que possa se dar num nível contratual, o que temos que
pensar é em que medida essa nossa tentativa de erradicação de
qualquer conflito através da lei positiva não desaloja a dimensão
discursiva, a dimensão da palavra como mediação que o sujeito
dispõe para fazer face à questão da violência. E, na contramão
disso, devemos pesar a possibilidade ou a responsabilidade que
temos, de fazer na clínica, caso a caso, uma intervenção que
possa dar, à eventual e às vezes inevitável intervenção da lei,
um valor simbólico, um lugar simbólico que inclua o sujeito – e
não tratá-la simplesmente como uma medida real, no sentido
de uma medida exterior, genérica, que não diz respeito a nenhum
sujeito em particular.
Enfim, não cabe a nós, profissionais de saúde ou educação,
criticar ou corrigir o E.C.A. mas sim trabalhar a partir deste
lugar que é o nosso – e que é diferente do lugar do legislador –
para que a intervenção jurídica possa servir para a criança, para
os seus pais, como oportunidade, para que os envolvidos naquela
situação de violência venham a se recolocar em função da sua
relação à palavra. Em função de sua relação àquilo a partir do
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 73

que eles podem, de alguma maneira, vir a (re)constituir seu


lugar no mundo.


74 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 75

Debatendo os avanços e
dificuldades a partir do
Estatuto da Criança
e do Adolescente

Alessandro Molon

ANTES DE INICIAR, quero dizer que é um prazer estar aqui, e


quero, por isso, agradecer ao NAV e à Secretaria Municipal de
Saúde pelo convite. O meu papel aqui é de procurar debater
algumas questões que foram apresentadas pela Fernanda e
gostaria de começar pelo processo legislativo. Fiquei pensando
qual seria a contribuição mais efetiva para vocês. Claro que eu
não seria ingênuo de procurar discutir com vocês o atendimento
à saúde de crianças e de adolescentes, porque não poderia trazer

ALESSANDRO MOLON | Deputado Estadual, presidente da Comissão do


Trabalho.
76 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

nenhuma contribuição de valor aqui, já que não trabalho na área


e não conheço na prática do dia-a-dia esses atendimentos como
vocês. Gostaria de dizer, em primeiro lugar, antes de falar da lei e
do avanço que ela pode ter representado, que o processo legis-
lativo é uma das coisas mais confusas que existem. Todas, ou
praticamente todas as leis que temos e que somos obrigados a
respeitar, não são promulgadas com o texto que era intenção do
legislador original. Elas passam por diversas comissões nas ca-
sas legislativas, seja pela Câmara de Vereadores, seja pela Assem-
bléia Legislativa, seja pelo Congresso Nacional, e nessas comis-
sões vão recebendo emendas e sendo mudadas por pessoas que
conhecem a área e por outras que não têm a menor idéia dos
problemas daquela área. Pessoas até bem intencionadas, mas que
tomam medidas e que apresentam emendas sem ter tido a expe-
riência, ou sem ter tido a preocupação de consultar um especia-
lista, de conversar com alguém que conheça bem aquele assunto;
pessoas que, na sua ânsia de contribuir, na melhor das hipóteses,
com o processo legislativo, apresentam emendas em qualquer
projeto de lei. Imaginem em que medida isso não aconteceu no
processo legislativo de uma lei da amplitude do ECA, do tamanho,
da extensão, com a quantidade e complexidade de direitos ali
positivados. É claro que, no caso do ECA, como ele foi fruto de
uma intensa mobilização da sociedade civil organizada e bastante
discutido, havia um acúmulo de informações e de posições to-
madas que colocavam certos limites nos efeitos do voluntarismo
dos congressistas. Quando a sociedade civil organizada participa
de um processo como esse, leva demandas e questões, normal-
mente fica mais difícil que o processo vá todo por água a baixo,
quer dizer, que alguma coisa na lei se afaste completamente da
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 77

intenção original, embora não seja impossível. Há um outro


aspecto no processo legislativo que vocês devem conhecer. Devi-
do à enorme quantidade de projetos que vão à votação, de um
lado, e à falta de compromisso de muitos parlamentares, de outro,
é comum ouvir no meio de uma votação no plenário ‘nós estamos
votando o quê, hein?’, ‘qual é o assunto que está sendo votado
aqui?’, ‘ah, eu ouvi falar que é um projeto sobre criança, sobre
proteção à criança’, ‘ah, isso é muito bom’. Enfim, há diversas
leis que foram aprovadas desse jeito. Infelizmente essa ainda é a
realidade do nosso país. Feitas essas ressalvas ao processo
legislativo, passemos à lei que debateremos aqui. A meu ver, o
ECA representa um avanço enorme para a nossa luta pela defesa
dos direitos das crianças e dos adolescentes, o que não quer dizer
que não possa e não deva ser aperfeiçoado. Isso é algo que pode
e deve surgir a partir da experiência daqueles que trabalham e
militam especificamente nesse campo. A partir da entrada de uma
lei em vigor, os cidadãos podem se dar conta de algo que precisa
ser alterado nela. No caso de uma lei federal, como o Estatuto da
Criança e do Adolescente, podem surgir propostas de mudanças
de alterações legislativas que devem ser encaminhadas ao Con-
gresso Nacional para algum representante, o representante de
vocês, a pessoa em quem vocês votaram ou alguém em quem
vocês acreditem. Isso pode ser feito até através de um e-mail,
para um parlamentar. Já apresentei um projeto de lei a partir de
sugestão que recebi por e-mail de um cidadão que trabalha em
certa área. Apresenta-se uma proposta, o parlamentar estuda e
vê qual projeto pode ser elaborado, se vale a pena lutar por aquilo.
O ECA, como disse a Fernanda, serviu de exemplo e provocou
reações em mais de 15 países aqui na América Latina, que pro-
78 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

curaram copiar as preocupações traduzidas pelo ECA, suas mo-


tivações, e a necessidade de políticas públicas de saúde e de edu-
cação voltadas especificamente para crianças e para adolescentes.
A positivação dessas preocupações como direitos da infância e
da adolescência são outros avanços importantes. A preocupação
com a participação da família na escola foi outro passo funda-
mental. A assunção da responsabilidade no tratamento e no aten-
dimento de crianças e adolescentes por parte de estados, muni-
cípios e União também merecem destaque. Os indicadores de
saúde e de educação, apesar das dificuldades persistentes, tiveram
uma melhora expressiva. No campo da educação, esta melhora
está mais no quesito quantidade do que no item qualidade. Em
outras palavras, aumentou o percentual de crianças e adolescen-
tes matriculados, embora a qualidade da educação a eles ofertada
ainda deixe a desejar. Mas há também alguns problemas, dentre
os quais o fato de que muitos conselhos tutelares não estão fun-
cionando, seja na formulação de políticas públicas, seja no próprio
atendimento. Conselhos Tutelares, ainda não dispõem da estru-
tura mínima necessária para funcionar, como um carro, um com-
putador ou um telefone. Isso mesmo em municípios ricos e gran-
des como o Rio de Janeiro. Coisas como estas fazem com que o
ECA, muitas vezes, ainda fique no papel e não se torne realida-
de. As defensorias públicas continuam desaparelhadas. Há o pro-
blema das unidades da FEBEM, substituídas por unidades de
internação, muitas vezes com características que deveriam estar
superadas, o que faz com que as medidas socioeducativas con-
tinuem sendo penas, muito mais do que medidas socioeducativas,
quer dizer, continua não havendo um projeto educativo de rein-
serção, de ressocialização ou de socialização daqueles que nunca
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 79

foram plenamente socializados. Muitas dessas unidades conti-


nuam destinadas apenas a tirar do convívio social as crianças e
os adolescentes vistos como problemáticos. Estes continuam
sendo desafios a serem enfrentados e a serem superados. Em re-
lação às observações da Fernanda, sobre a judicialização da vida,
sobre os recursos cada vez mais freqüentes ao judiciário, de fato
esta é uma tendência que se observa nas sociedades contempo-
râneas. Os EUA são o paradigma disso: tudo se torna processo.
Esse paradigma da sociedade norte-americana, de certa maneira,
é um fantasma para nós. Porém, aqui no Brasil, garantir o acesso
ao judiciário é ainda uma meta. Dar à população a certeza de que
o Poder Judiciário é um poder ao qual pode recorrer é um avanço,
mas, um avanço ainda distante para a maioria da população bra-
sileira – é importante que isso também seja dito – para a popula-
ção que vive nos grotões, para as famílias que não sabem, por
exemplo, que exploração do trabalho infantil é crime. Temos ainda
gente no Brasil submetida ao trabalho escravo, isso ainda existe
no Brasil, no sudeste e no Estado do Rio de Janeiro. Então o que
nos faz desejar uma lei tão ampla como essa é esta realidade tão
desigual do Brasil. Não é possível imaginar uma lei que não seja
universal, ela deve procurar disciplinar todos os casos submeti-
dos a ela. É claro que, ao se generalizar, cometem-se injustiças,
porque a lei vai igualar quem é desigual, vai tratar como igual
quem não é igual, esse é um problema de fato da universalização
das leis. Mas essa universalização, por outro lado, ainda é um
desafio. Por quê? Porque nós temos também, nos recantos desse
país e aqui no nosso estado, lugares onde o ECA ainda não chegou.
No Município e no Estado do Rio de Janeiro, o ECA não chegou
ainda às unidades de internação, o Padre Severino ainda não
80 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

conhece o ECA. No DEGASE do Estado do Rio de Janeiro, o


ECA ainda não é aplicado integralmente. E já querem diminuir a
maioridade penal. Então os direitos dessas crianças mesmo depois
do ECA, ainda não são observados, porque o Estado não cumpre
a lei. E mesmo sem o Estado fazer a sua parte, o que se discute é
a redução da maioridade penal, como se isso fosse resolver o
problema da violência urbana, aqui, sobretudo, no Rio, que é o
estado onde mais se matam jovens no Brasil. Temos uma taxa de
119 assassinatos para cada grupo de 100 mil jovens no Estado do
Rio de Janeiro, quando a média nacional é 52 para 100 mil, logo
é o estado mais violento para a juventude e também o mais
violento em termos gerais, já que nossa taxa geral de homicídios
também é a mais alta do país. Então, esse problema de substituir
o diálogo por processos judiciários, como disse a Fernanda, de
fato pode ser uma ameaça para nós. Porém esses processos ligados
ao ECA são resultado, a meu ver, da adaptação da sociedade a
uma nova lei, especialmente porque o ECA é mais do que uma
lei, é um plano de ação. O ECA é, sim, uma lei que garante direitos,
mas ele, além disso, é uma meta, ele aponta para onde a gente
tem que caminhar, isto é, para garantir essa proteção integral às
crianças e aos adolescentes. Atingir esta meta ainda é difícil num
país como o nosso, onde se diz que ‘tem lei que pega e lei que
não pega’. Parece-me que em poucos países existe essa expressão
‘a lei não pegou’. Então, num país como o nosso, isso é um desafio,
mas é com perseverança que vamos superar os obstáculos, quer
dizer, sobretudo com o trabalho de profissionais como vocês,
que podem calibrar a aplicação da lei. Se as leis fossem óbvias, se
fossem auto-aplicáveis, nós não precisaríamos de um judiciário
para interpretá-las. Isso é para vocês se sentirem também à
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 81

vontade para ler a lei com os olhos de quem conhece essa área
melhor do que o juiz, por exemplo. Vocês têm que se dar o direito
de ler essa lei com essa tranqüilidade. A lei deve ser interpretada.
Se não precisasse ser interpretada, as sentenças seriam emitidas
por computadores, as pessoas levariam a denúncia, levariam seus
casos e a lei seria imediatamente aplicada, mas ela não pode ser
aplicada sem ser interpretada. Não é objetivo, é subjetivo, tem
muita interpretação de quem lê, de quem está vivendo a situação.
Por isso, essa lei vai precisar ser calibrada – com esses 14 anos de
tentativa de vivência do ECA – entre os profissionais que traba-
lham com ela. Esse desafio que a Fernanda me parece apresentar,
de não procurar fazer com que a justiça substitua o diálogo, o
pacto, é muito interessante. Se, de um lado o ECA garante a
oitiva das crianças e dos adolescentes, o que é fundamental, isto
não quer dizer que ele veio para proibir que os pais sejam ouvidos
ou falem. Ele veio para garantir que as crianças sejam ouvidas.
Essa é a interpretação histórica que a gente também precisa ter
do processo legislativo, das mudanças das leis na sociedade. A
gente deve procurar entender por que uma lei surgiu. O ECA
veio no momento em que a criança era vista como alguém que
não tinha o que dizer. Ainda hoje há juizados que não sabem
ouvir as crianças. Nós não temos delegacias especializadas em
receber casos de crianças e de adolescentes vitimados. Temos
Varas de Infância e de Juventude, mas não temos uma delegacia
verdadeiramente de proteção à criança e ao adolescente. Na de-
legacia que tem este nome (DPCA), sabem quantos por cento
dos casos são crianças ou adolescentes vítimas de violência? Cerca
de 15% dos casos, isto é, em 85% dos casos que lá chegam a
criança ou o adolescente está em conflito com a lei. É uma dele-
82 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

gacia muito mais especializada em descobrir qual foi a


transgressão praticada pela criança ou pelo adolescente para
depois encaminhá-los à justiça para a aplicação de alguma medida,
do que em ouvir uma criança que foi vítima de um abuso ou de
uma violência. A justiça não está preparada ainda para ouvir essas
crianças e esses adolescentes; logo este é também um desafio.
Eu queria falar ainda de um dos focos do ECA, que é essa proibição
de práticas prejudiciais ao pleno desenvolvimento de pessoas em
formação, quer dizer, o princípio da proteção integral no fundo
inclui a proibição de práticas que prejudiquem o pleno desenvol-
vimento da criança e do adolescente. Ora, faz parte do pleno de-
senvolvimento da criança e do adolescente aprender a lidar com
autoridades, não é? Faz parte, porque quando essa criança ou
esse adolescente atingirem a idade adulta, eles vão ser obrigados
a lidar com autoridade. Ou não? Eles não vão trabalhar em algum
lugar? Não vão ter algum superior hierárquico? Não vão ter que
respeitar a lei? Não vão ter que respeitar o juiz e assim por diante?
Então faz parte desse pleno desenvolvimento, desse amadureci-
mento aprender a lidar com autoridades. Acho que esse é um
desafio para vocês poderem interpretar a Lei. A meu ver, as leis
precisam ser interpretadas da seguinte forma: o que o legislador
quis aqui? Será que, no ECA, o legislador quis negar o lugar da
autoridade? Negar o lugar do pai, o lugar da mãe? Será que é
intenção do legislador negar a oitiva do pai e da mãe e apenas dar
a palavra para o adolescente? Não, isso é um exagero, é um
desequilíbrio que foi gerado, talvez, por aquele intenso movi-
mento, mas que agora precisa ser corrigido. O processo histórico
é um pouco assim, ele não é circular, mas às vezes parece um
pouco pendular. Sai de um exemplo para outro, depois retroce-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 83

de, e a própria sociedade que vai corrigindo isso. Para concluir,


gostaria de convidá-los a, quando pensarem no ECA, não
pensarem necessariamente nesse adolescente que está numa
escola aqui no Rio de Janeiro, mas lembrarem que essa lei está
procurando atingir crianças de todos os recantos deste país. Há
crianças que estão trabalhando nesse país sem saber que têm
direito a estar na escola, é um número incrível, é altíssimo: crian-
ças entre 10 e 14 anos trabalhando, temos 2 milhões e 100 mil,
aqui no Brasil. São 12% do total de 16 milhões; 40% de adoles-
centes entre 15 e 17 anos estão trabalhando. Devemos nos per-
guntar, diante destes números, quantas dessas crianças e quantos
desses adolescentes estão conseguindo estudar, mesmo traba-
lhando. Os números de trabalho doméstico: são 500 mil crianças
e adolescentes entre 10 e 17 anos trabalhando em casas. Isto
sem contar os que trabalham, muitas vezes, em mercado informal
e alguns dos quais submetidos à violência também sexual. Enfim,
são números assustadores e é para esses adolescentes e para essas
crianças que o ECA foi também feito. Fiquei pensando, nesses
últimos casos acontecidos aqui no Rio, em que no prazo de uma
semana seis crianças morreram em incêndios. Vocês viram? Dois
casos aqui em nosso Estado: um na capital, outro em Niterói.
Num caso a mãe está desaparecida, no outro caso a mãe voltou e
disse que tinha ido comprar cigarro na padaria à meia-noite,
embora seu pai, quer dizer, o avô das crianças, tenha dito, chocado,
que ela tinha ido a um “pagode”. E o caso das outras duas mães
também, que tinham ido a um pagode: os dois incêndios, foram
causados por curtos-circuitos, um de um ventilador e outro de
um aparelho de ar-condicionado. Não podemos ter certeza, mas
parece que em ambos os casos as mães saíram para se divertir e,
84 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

para ficar tranqüilas, deixaram o ventilador e o ar-condicionado


ligados. Por uma fatalidade, as casas pegaram fogo e morreram
essas seis crianças, a menor de quatro meses. O ECA também
veio para tentar coibir situações como essas, quer dizer, a proteção
integral supõe também o combate à negligência, com a responsa-
bilização dos pais que não assumem sua responsabilidade e sua
obrigação de proteger essas crianças. Bom, foi o que pensei em
falar para vocês, e o que refleti a partir do relato da Fernanda.


A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 85

D E P O I M E N T O S

Relato de alguns
profissionais sobre
o trabalho de
Supervisão Continuada

PS Dr. Alvimar Carvalho


Tânia Moraes Azevedo

ALGO SE CUMPRIU: a instalação de um espaço precioso.


Não tem como se medir o tamanho desse espaço, certamen-
te ele é diferente para cada um de nós que esteve lá presente. Ter
participado desse momento é poder entender que as causas que
nos movem têm lugar de escuta, não são enfrentadas de forma
idealizadas e podem ser construídas em conjunto.
As questões que a violência doméstica nos trazem mobili-
zam demais, precisam ter um espaço de interlocução garantido e
a suspensão dessa construção.

TÂNIA MORAES AZEVEDO | Psicóloga


86 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

O ponto mais importante desses encontros foi a possibili-


dade de estar estudando casos junto a profissionais envolvidos
num mesmo compromisso, mas com a visualização e abordagem
tão especialmente particulares, que nos fazem ampliar e incluir
aspectos delicados que não puderam ser vistos em outro lugar
mas só nesse, situação muitas vezes impossível de ser discutida
dentro da própria unidade.
Mais uma vez a SMS deve contornar essa questão, a super-
visão é indispensável.

PAM Antônio Ribeiro Neto


Maria Priscila M. de A. Figueira

Haverá luz no fim do túnel?

Universo,
Diverso,
Imerso...
Complexo...
Retomada do início,
Universo comum,
Diverso em setores,
Imerso em busca,
Para enfrentar o complexo.

MARIA PRISCILA M. DE A. FIGUEIRA | Pediatra


A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 87

Caminhada solitária?
Luz no universo,
União do diverso,
Visão do imerso,
Complexa supervisão,
Acreditar na construção.

UM RELATO SOBRE A SUPERVISÃO | Nós, profissionais de


saúde da rede municipal, enfrentamos diariamente uma
importante questão que é o atendimento dos casos de violência
doméstica. Este complexo fenômeno faz várias vítimas a cada
ano e, dentre estas, preferencialmente as crianças e adolescentes.
A rede de saúde é, muitas vezes, o primeiro contato que poderá
minimizar estas estatísticas. A sensibilização do profissional
de saúde com uma escuta mais adequada permitindo a
identificação desta situação é um importante trabalho neste
combate. Contudo, têm sido apontados como fatores funda-
mentais na qualidade do atendimento, o intercâmbio entre vá-
rios setores e a supervisão por profissionais gabaritados e atu-
antes. Portanto, foi com grande alegria que a capacitação de
violência doméstica em dezembro de 2003, oferecida pela SMS
em parceria com o NAV, resultou em encontros mensais de su-
pervisão dos casos de violência doméstica no nosso dia-a-dia.
Esses encontros proporcionaram orientação na condução de
casos, intercâmbio dos profissionais de outras unidades,
informação de parcerias existentes, entre outras coisas. É de
suma importância ressaltar que esse espaço nos ofereceu a
oportunidade de relatar nossa angústia diante de nossa impo-
88 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

tência frente alguns casos e nos ajudou a fortalecer nossa


persistência nessa luta. Enfim, uma corrente se fez nos movendo
estes meses e, a cada reunião, se renovando.
Do caminho proposto, a unidade PAM Antônio Ribeiro Neto
vem conquistando lentamente a sensibilização de seus profissio-
nais para a questão da violência doméstica. As profissionais que
participaram deste projeto estão empenhadas em continuar esse
processo, que se tornou mais visível com a implantação da sala
de espera na pediatria, onde a sensibilização da comunidade é
feita com informação sobre violência doméstica, onde se cria um
caminho para quebrar o silêncio que envolve essa temática e onde
se aborda a prevenção. A direção tem partilhado dessas etapas
com apoio, porém a falta de recursos humanos ainda é limitante
de alguns vôos que se possam fazer.

PAM Rodolpho Rocco


Mariluce Carvalho
Maria Del Pilar
Fátima Moura
Aline Coelho

ESSE TEXTO FOI ELABORADO com a intenção de agradecer a


supervisão do NAV, a gerência do Programa de Saúde do Adoles-

MARILUCE CARVALHO | Assistente Social; MARIA DEL PILAR | Enfermeira;


FÁTIMA MOURA | Médica; ALINE COELHO | Psicóloga
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 89

cente – SMS – a Paula, Flávia, Simone e aos profissionais que resistem.


A partir da supervisão para atendimento de crianças e ado-
lescentes vítimas de violência doméstica, nós no Pam Rodolpho
Rocco, começamos a nos organizar.
Usando a sensibilidade individual de cada membro da equi-
pe formada (uma assistente social, uma enfermeira, uma médica
e uma psicóloga) fomos construindo a nossa sensibilidade cole-
tiva e construindo, também, não só o momento de olhar cada
caso, de ouvir cada caso, mas também o momento de compreen-
der. Esse momento de compreender, na maioria das vezes, tinha
o olhar junto de cada um dos profissionais. O olhar junto, não
quer dizer, que é o mesmo olhar. É o olhar de cada um, que cria
um olhar coletivo que transforma o momento de compreender e
o momento de concluir.
Essa sabedoria de cada profissional, unindo-se, transforman-
do-se em uma sabedoria coletiva, mas que tem a intenção clara de
acolher, de minimizar no que for possível o sofrimento dessas
crianças, adolescentes e suas famílias. Em muitos momentos fo-
mos “pegas de surpresa” com o desnudamento do caso, onde as
não virtudes humanas, o desafeto, não tem mais onde se escon-
der, em situações em que não há nada a fazer, onde ficamos per-
plexas sabendo que a vida flui como um rio que continua seguin-
do seu caminho.
Com a supervisão, fomos nos adequando ao tempo do
paciente, que na maioria das vezes, não é o nosso tempo.
Perceber o tempo do outro, deixá-lo livre para seu próprio
caminho, seu próprio encontro, na construção da realidade
possível para cada um, para cada família. Esse foi um ganho
importantíssimo!
90 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

A ansiedade na resolutividade dos casos não diminuiu, mas


pode parecer incrível, há quietude nessa ansiedade. O tempo da
espera – onde a urgência é o desejo da possibilidade dessas cri-
anças e adolescentes, unidas ou não a seus familiares –, prosse-
guirem sua vida possível, ancoradas no suporte, às vezes mínimo,
que lhe oferecemos.
O sofrimento que enxergamos com nosso olhar, nessas pes-
soas, sentido com todos os sentidos possíveis na consulta (ouvir/
falar, olhar/ser olhado) é amparado em nossos gestos de
acolhimento, de respeito pelo ser humano, pela vida humana
que está conosco a nossa frente, em permanente troca, às vezes
em campo completamente estéril, no qual parece que nada será
germinado, mas isso só o tempo dirá!
O respeito que permeia esses encontros é também o res-
peito que temos uma pela outra na equipe. Nossos olhares são
de compreensão mútua, cada uma parece enxergar uma parte, e
nessa parte, vamos enxergando o todo, assim buscando a me-
lhor solução para o sofrimento tão grande dessas crianças e
adolescentes. Além de darmos voz, a quem parece que foi tira-
do o direito da palavra, lhe damos acolhimento, colo, que pare-
ce que nunca usufruíram. O afeto precisa ser construído, o afeto
inclusive por si mesmo.
É também muito bom um espaço no trabalho em serviço
público, em que há sensibilidade mesmo com problemas es-
truturais e dificuldades enormes, nós resistimos. Nossa sensibi-
lidade, intuição, sentimento, vontade, resistiu. Não nos tornamos
“robôs” em um serviço que muitas vezes, parece só exigir produ-
tividade, nossa humanidade prevaleceu.
Com certeza, esperamos que essas crianças, adolescentes
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 91

e suas famílias que sofrem por diferentes causas, alcancem


pelo menos, um espaço confortável em suas vidas, em seus
corações.


92 |
Mapa | Unidades de Saúde Municipais que participaram do Projeto
AP 1.0
H. M. Salles Neto
H. M. Marcolino Candal AP 3.1
PAM Antônio Ribeiro Neto

AP 2.1 AP 3.3
Adolecentro paulo freire”

AP 5.1 AP 3.2
AP 1.0
AP 5.3 AP 5.2
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR

AP 2.2
AP 4.0 AP 2.1

AP 2.2
H. M. Jesus
C. M. S. Maria Augusta Estrela

AP 3.1
P. S. Madre Teresa de Calcutá AP 4.0 AP 5.2
H. M. Raphael de P. Souza P. S. Dr. Alvimar Carvalho
AP 3.2 Maternidade Leila Diniz C. M. S. Belizário Penna
H. M. Piedade
P. S. Eduardo V. Leite AP 3.3 AP 5.1 AP 5.3
PAM Rodolpho Rocco H. M. Francisco da Silva Telles (PAM Irajá) PAM Guilherme da Silveira (PAM Bangú) C. M. S. Lincoln de Freitas

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