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FACULDADES INTEGRADAS HÉLIO ALONSO

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO

Pedro Eduardo Motta

VALE TUDO VERSUS MMA: DO AMADORISMO AO PROFISSIONALISMO

Rio de Janeiro

2016
Pedro Eduardo Motta

VALE TUDO VERSUS MMA: DO AMADORISMO AO PROFISSIONALISMO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em


Comunicação Social das Faculdades Integradas Hélio
Alonso, como requisito parcial para a obtenção do
título em Bacharel em Jornalismo, sob a orientação
do prof. Me. Marcos Alexandre de Souza Gomes.

Rio de Janeiro

2016
VALE TUDO VERSUS MMA: DO AMADORISMO AO PROFISSIONALISMO

Pedro Eduardo Motta

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em


Comunicação Social das Faculdades Integradas Hélio
Alonso, como requisito parcial para a obtenção do
título em Bacharel em Jornalismo, submetida à
aprovação da seguinte Banca Examinadora:

_____________________________

Prof. Marcos Alexandre - Orientador

_____________________________

Membro 1

_____________________________

Membro 2

Data da Defesa: __________

Nota da Defesa: __________

Rio de Janeiro

2016
AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço a Deus pela oportunidade desse trabalho. Por estarem sempre ao
meu lado, agradeço aos meus pais e a minha irmã. Agradeço a Nathalia por todo amor e
compreensão. Agradeço as minhas avós pelo carinho interminável. Agradeço aos meus amigos
pela paciência em momentos difíceis e pelo companheirismo fiel. Um agradecimento especial
para Bruno e Melyna, amigos que conheci na faculdade e que levarei para vida inteira. Agradeço
a meu professor orientador, Marcos Alexandre, que não apenas acreditou nesse trabalho, mas me
deu todo suporte necessário. Foi paciente, solícito e de uma dedicação ímpar para me ajudar.
Agradeço ao Carlão Barreto, por ter sido tão solidário comigo, emprestando a esse trabalho seu
rico conhecimento e vasta experiência. Agradeço a todos que me ajudaram de alguma forma,
todos os meus familiares e todos que sempre torceram por mim.
A chance de vitória e de sucesso é bem maior
quando há dedicação. É uma lógica simples: quem
negligencia a disciplina e a organização vai para o
combate muito menos preparado. É assim no
octógono; é assim na vida.

Vitor Belfort
RESUMO

Neste trabalho, pesquisou-se o surgimento do Vale Tudo no Brasil e como foi a trajetória
do esporte, abordando a transição desse início amador até a nova era profissional – o MMA.
Procurou-se apresentar, com riqueza de detalhes, os principais responsáveis pelos feitos que
trouxeram o esporte para um novo patamar. Constatou-se a influência direta do UFC nesse
percurso, sendo o principal evento de lutas do mundo na atualidade. Estudou-se a evolução do
MMA, não só para constatar as diferenças entre o passado e o presente, mas também para dar
espaço ao futuro. Estudou-se temas como, a luta na televisão; os problemas que foram
enfrentados ao longo do tempo, em busca da consolidação do esporte; a profissionalização; a
violência; os novos caminhos para trilhar. Procurou-se especialistas que pudessem abordar o
assunto, analisando a história e projetando o amanhã.

Palavras chave: Vale Tudo, MMA, Profissionalização, Evolução.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 8

2 BERÇO ESPLÊNDIDO: ONDE TUDO COMEÇOU........................................... 10

3 UFC: A PORRADA VIRA UM GRANDE NEGÓCIO......................................... 21

4 CONSOLIDANDO O SUCESSO......................................................................... 33
4.1 A violência explode: tribos versus turma........................................................... 33
4.2 Batendo e apanhando para crescer.................................................................... 38

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 43

6 REFERÊNCIAS................................................................................................... 44

7 ANEXOS............................................................................................................. 46
7.1 Anexo A............................................................................................................ 46
7.2 Anexo B............................................................................................................ 50
7.3 Anexo C............................................................................................................ 54
8

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do trabalho é falar sobre a evolução de um dos esportes que mais cresce no
Brasil e no mundo. Apresentar como o Vale Tudo surgiu e quais foram as etapas concluídas até
se transformar no hoje conhecido Mixed Martial Arts (MMA). Em português, as artes marciais
mistas, indicam várias modalidades envolvidas nesse desporto. Cada arte por si tem uma história
própria e muito rica, com diversas versões sobre seu nascimento. A ideia é situar no contexto
histórico esse início e, principalmente, esmiuçar o começo do Vale Tudo e posteriormente, a
transição para o MMA.

Procurou-se responder os questionamentos acima e acrescentando: quem foram os


grandes responsáveis pela origem do Vale Tudo? Qual a importância da marca Ultimate Fighting
Championship (UFC) para o esporte? Quais as mudanças foram necessárias para a
profissionalização? Tecnicamente e estruturalmente, o que ainda poderia evoluir?

A metodologia apoiou-se em obras relevantes de autores que se dedicaram ao tema, como


Fellipe Awi (2012), Reila Gracie (2008), João Alberto Barreto (2013), Mickey Dimic (2011),
entre outros. Também foram feitas uma série de entrevistas com pessoas ligadas ao assunto,
como o próprio João Alberto Barreto, ex-lutador e mestre de Jiu-Jítsu, que também enriqueceu o
debate se utilizando da sua formação em Psicologia. O mestre de Luta Livre Roberto Leitão. O
ex-lutador e ídolo internacional, Antônio Rodrigo Nogueira, mais conhecido como “Minotauro” –
como será chamado daqui por diante. E por fim, Carlos Eduardo Barreto, que será chamado como
de “Carlão”. Este último, trazendo sua experiência de lutador, árbitro e comentarista do maior
canal de lutas do Brasil: O Combate. Carlão, junto com os outros entrevistados, indicou o livro
“Filho teu não foge à luta” do jornalista Fellipe Awi. A recomendação foi baseada na riqueza da
pesquisa, na coerência do texto e na descrição dos fatos como realmente ocorreram. Portanto,
essa obra foi utilizada como fonte primária do trabalho.

No primeiro capítulo abordou-se o histórico e a conceituação de arte marcial, desde as


primeiras formas de combate até a fundação da primeira escola de Judô, a Kodokan. Pesquisou-se
sobre a chegada de Mitsuyo Maeda – o Conde Koma – ao Brasil, que repassara seus
ensinamentos para Carlos Gracie, dando início a dinastia do Jiu-Jítsu. Buscou-se mostrar os
grandes desafios da época, onde as disputas aconteciam, e também, o que impulsionava esses
9

duelos. Nos desdobramentos do capítulo, pesquisou-se como foi a entrada da luta na TV, no final
da década de 1950.

No segundo capítulo buscou-se apresentar o UFC, o maior torneio de lutas do mundo e


principal responsável pela subida de patamar do esporte, outrora amador. Procurou-se mostrar
como foi o início do evento, identificando os nomes que foram importantes para o crescimento e
desenvolvimento do mesmo. Para isso, foram apontadas as principais dificuldades e barreiras
encontradas para que a marca pudesse se consolidar.

No terceiro capítulo pretendeu-se reafirmar a profissionalização do esporte, mas abrindo


uma lacuna para que os entrevistados pudessem debater sobre temas relevantes e até polêmicos,
para que a evolução que tanto prezam, não estacione no tempo. João Alberto Barreto (2016)
levantou a bandeira contra a violência exacerbada, sendo questionado pelo seu amigo de longa
data, Carlão Barreto (2016). Minotauro (2016) levantou um questionamento sobre a falta de
estrutura para a criação de uma categoria de base e foi endossado. Procurou-se com a discussão,
esclarecer dúvidas e dar oportunidade para o ponto de vista de cada especialista no assunto.
10

2. BERÇO ESPLÊNDIDO: ONDE TUDO COMEÇOU

“Desde os primórdios até hoje o homem utiliza-se da manifestação corporal para


diferentes objetivos. Seja para a autodefesa ou mesmo para condicionar-se fisicamente. Podemos
dizer que a luta sempre esteve presente na natureza.” (MAZZONI E OLIVEIRA JÚNIOR, 2011,
p.01). A origem das artes marciais segue por diversos caminhos e continua sendo uma incógnita
para os estudiosos. A luta e o combate, propriamente ditos, se confundem com a evolução
da civilização, quando, logo após o desenvolvimento da agricultura, alguns começaram a
acumular riqueza e poder e com isso o surgimento de cobiça. A necessidade abriu espaço para a
proteção pessoal. O homem primitivo já se utilizava de um pedaço de pau ou pedra para golpear
o seu semelhante, ou mesmo animais selvagens, em situações de combate. Para o mestre de Luta
Livre, Roberto Leitão, essa necessidade tornou a luta o primeiro esporte do homem.
Para ser um esporte, tem que ter um condicionamento mínimo. Primeiro, uma
atividade física, xadrez não é. Segundo, ter algo de lúdico, pois o homem sempre
lutou e os animais sempre lutaram, os caninos, os felinos, os símios. Todos eles
lutavam na infância para se desenvolver e na maturidade para defender a sua terra,
sua comida, a sua mulher, etc. Na faculdade sempre me questionam dizendo que
foi a corrida, porque antes de enfrentar, eles fugiam. Os alunos podem até ter
razão, só que precisa ter algo didático, alguém ensinar alguma coisa para o outro.
Pelo que consta, na pré-história, o pai não dizia para o filho dar uma corrida de
não sei quantos quilômetros para ser um grande corredor. Já na luta, sempre
existiu essa questão didática, novos movimentos, como se defender e atacar
melhor. Então a luta, indubitavelmente é o primeiro esporte. (Roberto Leitão.
Entrevista ao autor, 2016)

Segundo o mestre de Kung Fu Luiz Mello, a origem da expressão “arte marcial” vem da
cultura ocidental. O termo refere-se às habilidades de guerrear e de lutas instruídas ao homem por
Marte, deus greco-romano da guerra. “A palavra arte vem do latim ars, e significa técnica, sendo
compreendida também no mundo antigo como qualquer atividade humana ligada a manifestações
de estética e de comunicação”, explicou. Ao contrário do que muitos possam imaginar, o objetivo
das artes marciais não é propriamente o ataque, e sim a defesa. “Algumas das artes marciais
orientais são derivadas do termo ‘Wushu’. Os chineses quando diziam entrar em guerra
afirmavam ‘levantar armas contra’. Portanto, ‘Wu’ significa parar a guerra, e ‘Wushu’ a arte de
pará-la”. (MELLO, 2012, Online)
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As teorias são muitas e as histórias são tão ricas, que até hoje se torna difícil decretar o
seu gênesis, ou seja, o início de tudo. As origens da luta podem ser rastreadas através de
desenhos em cavernas, desenhos babilônicos e egípcios mostrando lutadores usando a maioria
das pegadas (tentativas de entrada do lutador, para agarrar o oponente) conhecidas no esporte
atual. “Muito antes da Grécia e do Império Romano, a luta já existia no Egito, só não conseguiu
prosperar, pois não teve a participação do povão, era só a nobreza e a guarda” aponta Roberto
Leitão. Na Grécia, por exemplo, a luta ocupou um lugar de destaque nas lendas e na literatura. Os
gregos tinham uma forma de luta conhecida como Pancrácio ou Pankration, modalidade presente
nos primeiros logos olímpicos da era antiga. Era uma antiga arte marcial de combate sem
qualquer tipo de armas, que segundo a mitologia grega teve início com os
heróis Hércules e Teseu. Uma mistura de Boxe e Luta Olímpica com golpes e técnicas de
combate que incluem socos, chutes, cotoveladas, joelhadas, cabeçadas, estrangulamentos,
agarramentos, quedas, arremessos, imobilizações, torções e travamento das articulações. Para
alguns estudiosos, a origem do Pancrácio o credencia como o “tataravô do MMA”,
principalmente também, pelos seus registros nos Jogos Olímpicos 648 a.C.. (DIMIC, 2011, p.16).

Uma versão muito conhecida e bastante sustentada para alguns estudiosos direciona o
início da arte marcial ao monge indiano Bodhidharma. Pelos estudos, o monge em viagem
à China, orientou os seus colegas chineses na prática do yoga e rudimentos da arte marcial
indiana, o que caracterizou posteriormente na criação de um estilo próprio pelos monges
de Shaolin. Os monges do Templo de Shaolin, segundo a tradição oral e
escavações arqueológicas, criaram o que hoje nos conhecemos como Kung Fu. Da China, estes
conhecimentos se expandiram por quase toda a Ásia e o Kung Fu se tornou o “pai” de diversas
artes marciais, como: Judô, Jiu-Jitsu, Caratê, Sumô, Muay Thai, Pencak Silat, Kali. (SATO,
2002, Online)

É muito difícil determinar com exatidão qual foi a primeira arte marcial criada pelo
homem, já que existem várias em todo o mundo. Os relatos mais antigos de formas organizadas
de combate remetem a Índia e a China, mas sem a exatidão necessária. Um dos problemas é o
fato que, por muitas vezes, os antigos mestres não repassavam seus conhecimentos facilmente.
Além disso, não existiam muitos registros documentados, pois as tradições eram passadas de
forma oral, de mestre para discípulo ou de pai para filho. Quando existiam ficavam nas mãos de
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poucos, e infelizmente, muitos desses registros acabaram se perdendo ao longo dos anos.
Segundo o mestre Roberto Leitão (Entrevista ao autor, 2016), um dos aspectos é evolução do
combate, para culminar no esporte que temos hoje.

As mudanças são claras. Por exemplo, no começo um matava o outro. Dado


algum tempo, o Imperador salvava um lutador levantando o seu polegar perante a
multidão. Então já não morria, pois o cara era tão bom que merecia ser salvo.
Depois passaram a não matar mais um ao outro, quando tinham ferimentos graves,
a luta parava. Olha o crescimento: morte, salvamento e até ferir. Depois começou
a existir a noção de responsabilidade, do direito civil, se chamava Lex Aquilia. Era
uma lei que dizia o seguinte: se você me machuca enquanto estivermos lutando,
você vai sustentar a minha família enquanto eu não estiver apto. Essa lei demorou
a ser aplicada porque o povão queria ver sangue mesmo, era o circo deles.
(Roberto Leitão. Entrevista ao autor, 2016)

Para chegarmos ao esporte que o mestre Roberto Leitão cita, temos que voltar a 1882, ano
da fundação da primeira escola de Judô do mundo, a Kodokan. O japonês Jigoro Kano,
responsável pela criação da escola, aprendera primeiro uma luta milenar chamada jujútsu (“ju”
significa “suave ou flexível”, e “jutsu”, “arte”), usada por monges e soldados orientais em
situação de combate. “Os galhos rígidos quebram diante do vento forte. Só os galhos flexíveis
resistem.”, professavam os mestres japoneses (AWI, 2012, p.27). Para diferenciar o jujútsu que
aprendeu na juventude do jujútsu modificado, Kano chamou este último de Judô. Quando
Mitsuyo Maeda, um dos discípulos de Kano, decidiu viajar pelo mundo no início do século XX,
ensinando o que aprendera na Kodokan, ele preferiu manter o termo original do Jiu-Jítsu, pois ele
defendia o ensino das técnicas de combate do jujútsu, e não apenas a visão esportiva
desenvolvida por Kano através do Judô.

Maeda passou pela Europa, Estados Unidos e outros países da América Latina
antes de desembarcar no Brasil, em 1914, via Porto Alegre, segundo o
pesquisador amazonense Rildo Heros. O japonês subiu o país até chegar a Belém,
a cidade mais desenvolvida da região amazônica, graças ao ciclo da borracha. A
essa altura, ele cobrava por suas exposições, contrariando as regras da Kondokan.
Na capital paraense, onde decidiu se estabelecer, Maeda fazia demonstrações de
Jiu-Jítsu nas praças, nos teatros e em pequenos circos, normalmente usando como
cobaia homens muito maiores que ele. O público ficava maravilhado ao ver aquele
japonês esmirrado prendendo o braço ou estrangulando os homens mais fortes da
cidade, em geral levantadores de peso ou conhecidos brigões de rua. Os shows de
Maeda, que o usava o nome artístico de Conde Koma, chamaram a atenção de um
negociante, Gastão Gracie, um carioca de origem escocesa. Ex-diplomata, ele
largara no meio uma viagem de navio do Rio de Janeiro rumo a alguns países da
América Central quando conheceu, em Belém, a cearense Cesalina Pessoa de
Queiroz, com quem se casou. Sempre atento a oportunidade de negócios, Gastão
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pensou em se associar a Maeda num circo que rodaria a Amazônia. Ao mesmo


tempo, viu na luta do japonês uma forma de domesticar a agressividade do
primogênito, Carlos, de 15 anos. Foi esse encontro entre Carlos e Conde Koma,
em 1917, que impediu que o Jiu-Jítsu originalmente japonês, fosse enterrado pela
Kodokan. Koma ainda voltaria ao Japão e receberia o perdão de Kano, que o
graduou com o 7º Dan para ajuda-lo a divulgar seu Judô, mas a semente do Jiu-
Jítsu já crescia do outro lado do mundo. (AWI, 2012. p. 28)

Em pouco tempo de aula, Carlos se dedicou tanto ao Jiu-Jítsu que se tornou professor dos
irmãos mais novos: Oswaldo, Gastão Filho, George e Hélio. Quando a família voltou ao Rio de
Janeiro em 1921, todos já tinham experimentado os benefícios da arte japonesa. “Carlos foi o
primeiro brasileiro a entender que o Jiu-Jítsu era a única luta que permitia ao menor vencer o
maior, ou, como os Gracie diziam, ao Davi vencer o Golias”. (Idem). Segundo a filha de Carlos
Gracie, Reila Gracie, seu pai foi o primeiro lutador a realizar um combate público de Vale Tudo
em plena rua, em 1924. Sem regras, já que essas eram bem diferenciadas, posto que o oponente
foi um conhecido capoeirista da época, chamado Samuel. Júri improvisado, ao final da luta,
opinou por empate, mas o público considerou Carlos Gracie vencedor. (GRACIE, 2008, p.71).
Mais tarde, encontrou em Hélio, o irmão mais novo, um discípulo ideal para continuar o trabalho
de “abrasileiramento” (AWI, 2012, p.29) da arte marcial. A essa altura, Carlos já tinha percebido
que Hélio possuía as características necessárias não só para ajudá-lo nas aulas, mas para se
transformar no principal garoto-propaganda do Jiu-Jítsu. Por ser pequeno, ao derrotar adversários
bem mais altos e pesados, ele estaria garantindo a supremacia do Jiu-Jítsu.

O primeiro Vale Tudo de que Hélio participou foi aos 18 anos em janeiro de 1932, entre
praticantes do Boxe e Jiu-Jítsu. “Coincidentemente, pela primeira vez que se teve notícia, o
programa foi chamado de ‘evento de lutas mistas’- mais de sessenta anos antes da criação do
termo ‘artes marciais mistas’”, aponta Fellipe Awi (2012, p.46). Na ocasião, Hélio lutou e
derrotou o pugilista Antônio Portugal com 40 segundos de luta, através de uma chave de braço.
Mas foi na terceira luta de sua carreira onde Hélio representou o que a família Gracie mais
gostava. Enfrentou o americano de raízes alemãs, Fred Ebert, que tinha 98 quilos – 35 a mais que
o brasileiro – e media quase dois metros de altura. O brasileiro soube aproveitar o pouco
conhecimento que o americano tinha sobre as lutas no chão. “Depois de uma hora e quarenta
minutos de um espetáculo sangrento, a Comissão de Pugilismo tentou interromper o combate,
temendo que o confronto terminasse em tragédia” (Idem). O resultado oficial do combate foi
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empate, mas todos os presentes no campo do clube São Cristóvão de Futebol e Regatas, sabiam o
pequenino Gracie era o verdadeiro vencedor.

Em 1951, quando a seleção japonesa de Judô estava visitando o Brasil, Carlos e Hélio
enxergaram uma oportunidade única de colocar em disputa o modelo original japonês com o que
por eles fora aperfeiçoado. “Carlos já havia enfrentado outro discípulo direto de Jigoro Kano anos
antes, em São Paulo. Empatou duas vezes com Geo Omori, e os combates tiveram pouca
cobertura da imprensa.” (AWI, 2012, p.29). A diferença agora estaria estampada na maneira com
que Carlos começou a construir a rivalidade, espalhando pelos jornais que os japoneses estavam
apresentando uma arte incompleta. “Pelo raciocínio dos Gracie, o Judô era apenas um pedaço do
Jiu-Jítsu, o pedaço que o Japão exportava porque queria manter o monopólio da luta mais
eficiente do mundo.” (Idem). O modelo japonês estaria apresentando um Judô com contagem de
pontos e limite de tempo, o que contrariava o sentido original, que era usado em situações de
combate. Ensinar Jiu-Jítsu para estrangeiros seria um crime de lesa-pátria. Por esse motivo,
Conde Koma fora retirado da história do Judô no Japão por quase dez anos. O que os japoneses
jamais iriam imaginar, era que pudesse existir alguém disposto a manter a arte original dos
samurais. Carlos conseguiu chamar a atenção da imprensa e, principalmente dos japoneses, que
não hesitaram em aceitar o desafio. (AWI, 2008, p.30)

O Diário da Noite destacava: “O Japão jogará no Brasil o prestígio de seu Jiu-Jítsu”. Três
dias depois, o Maracanã receberia a luta entre Hélio e Jukio Kato, considerado na época o
número três do Judô japonês.

Um tatame foi montado atrás de uma das balizas, e um terço das arquibancadas
ficou disponível para o público, o suficiente para abrigar cerca de quarenta mil
espectadores. A luta só terminaria antes do tempo regulamentar em caso de
desistência ou de perda de sentidos de um dos lutadores. Hélio começou sofrendo
uma queda espetacular, mas no chão pode equilibrar as ações e até mostrar-se
superior na maior parte da luta, que terminou empatada depois de três rounds de
dez minutos. ‘Kato só não foi derrotado graças ao recurso de levar o antagonista
para fora do tablado, o que lhe valeu ser vaiado pela assistência. De qualquer
maneira, Hélio Gracie foi o senhor do combate, recebendo uma verdadeira
consagração’, noticiou O Globo em sua primeira página, ao lado de uma foto em
que Hélio se protegia de um golpe do adversário. (AWI, 2012, p. 30)

Após o empate, uma revanche foi marcada para o estádio do Pacaembu, em São Paulo, no
mesmo mês. O duelo se encaminhava para mais um empate, quando Hélio aplicou um
estrangulamento perfeito. Kato, com o rosto avermelhado, não deu sinais de que iria desistir e
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acabou desacordado. “O corpo inerte do japonês caindo sobre o tatame foi a imagem mais
emblemática da uma vitória espetacular do Jiu-Jítsu brasileiro sobre o japonês.” (AWI, 2012,
p.30). Após a vitória triunfal do Jiu-Jístu brasileiro, Hélio ainda teria mais um desafio pela frente,
o maior da sua carreira: enfrentar o campeão mundial Masahiko Kimura, de 98 quilos, talvez o
mais cultuado judoca de todos os tempos. Quase trinta quilos mais pesado que o brasileiro,
Kimura estava invicto desde que começara a lutar, 16 anos antes. “Ali mesmo, no tatame
montado no Pacaembu, poucos minutos de derrotar Kato, Hélio selou o desafio com Kimura com
um cumprimento ocidental. A mão do brasileiro quase sumiu dentro daquela do gigante japonês”
(AWI, 2012, p.31).

O palco voltou a ser o Maracanã. O presidente da República na época, Getúlio Vargas,


enviou seu vice, João Fernandes Café Filho, para representar o Governo.

Não é exagero dizer que, nesse período Hélio Gracie foi tratado como um
verdadeiro herói nacional, o guerreiro solitário capaz de resgatar o orgulho verde e
amarelo no mesmo lugar onde, apenas 15 meses antes, ocorrera a maior tragédia
esportiva da nossa história: a derrota na final da Copa do Mundo de futebol. Atrás
da trave onde Gigghia marcou o gol da vitória uruguaia, montou-se um tatame,
que logo ficou cercado por dezenas de jornalistas. Nas arquibancadas, vinte mil
pessoas – o máximo permitido. (AWI, 2012, p.34)

Kimura foi recebido com um caixão de madeira presente na arquibancada, representando


o destino do japonês. Cena que ele jamais se esqueceu, ao citá-la em sua autobiografia, dizendo
que teve um acesso de riso quando viu o caixão. Para o japonês, vencer Hélio Gracie era apenas
uma questão de quanto tempo iria levar, mas para ele, não passaria de três minutos. O brasileiro
tinha o entendimento que um empate já seria uma grande vitória.

Com menos de dez segundos, Kimura derrubou Hélio Gracie, que bateu com as
costas no tatame. Mas para o brasileiro a luta só estava começando. No chão, ele
poderia mostrar as técnicas de defesa desenvolvidas com o irmão Carlos. Eles só
se levantaram quando o primeiro round, de dez minutos, chegou ao fim. O
brasileiro estava cansado e com a orelha sangrando, mas sorridente. Sabia que
deixara o japonês irritado, por ter conseguido se desvencilhar de todas as
investidas dele. No segundo round, Hélio sofreu outra queda, e, dessa vez, o peso
de Kimura sobre seus pulmões o levou a perder os sentidos por alguns segundos.
Por sorte, ninguém notou. Pouco depois, já consciente, sentiu a mão direita do
adversário puxando seu punho esquerdo. O japonês aplicou-lhe uma chave de
braço originalmente chamada ude-garami, mais tarde rebatizada como kimura —
e assim ela é conhecida hoje no MMA. Embora sentisse que o braço estava na
iminência de quebrar, Hélio não desistia. Em silêncio, o Maracanã acompanhava
os últimos instantes do combate. “O braço esquerdo dele estava inerte. De acordo
com as regras, eu não tinha nada a fazer além de torcer o braço dele de novo.
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Mesmo assim, ele não desistiu. Esse homem tem um coração de lutador”,
escreveu Kimura em sua autobiografia. Depois de 13 minutos, dez a mais que a
previsão de Kimura, Carlos desistiu pelo irmão, invadindo o tatame e dando três
tapas no chão. [...] Talvez já soubesse que o heroísmo de Hélio e a eficiência do
Jiu-Jítsu brasileiro estavam comprovados. Ficou claro que Kimura precisou se
impor na força. No alto da primeira página da edição do dia seguinte, o jornal O
Globo publicou a foto do momento em que Kimura encaixa a decisiva chave de
braço. A reportagem, no entanto, apresentava um tom quase ufanista: “(Hélio) não
fugiu ao combate e resistiu mais do que se acreditava diante da força e experiência
do nipônico”. “Creio que a minha luta com Kimura terá uma importância muito
maior do que a simples questão de ganhar ou perder. Porque poderá influir de
forma decisiva no futuro do Jiu-Jítsu brasileiro. Agora que estou vencido, posso
assegurar que a técnica do Jiu-Jítsu por mim praticado em nada é inferior ao do
grande campeão nipônico”, afirmou Hélio, no dia seguinte à luta, ainda com o
braço esquerdo dolorido. (AWI, 2012, p.34 e 35)

O pensamento de Hélio apontava para a capacidade de sua família em vender o Jiu-Jítsu


como a arte marcial mais eficiente que existia. Para Robson Gracie, filho de Carlos, a ideia do pai
era sempre encontrar “inimigos” dispostos a testarem o Jiu-Jítsu ante as suas modalidades. “O
papai ficava caçando um bom capoeirista ou pugilista para fazer desafios na rua ou a portas
fechadas. Bastava alguém dizer que havia um lutador muito bom para os Gracie correrem para
lá”, conta Robson. (AWI, 2012, p.41)

“A comoção que o desafio entre Ocidente e Oriente causou permite dizer que foi a mais
significativa para o desenvolvimento das artes marciais no Brasil”, afirma o repórter Fellipe Awi
(2012, p.33). Apesar dessa importância da família Gracie para o surgimento do Vale Tudo e
posteriormente, o MMA, alguns entendidos não remetem apenas ao clã a responsabilidade pela
criação do hoje reconhecido esporte, mas sim, a maneira com que trataram o seu
desenvolvimento.

A família Gracie não inventou nada. O Chacrinha falava de um jeito, “nada se


cria, tudo se copia”. Lavoisier falava diferente, “na natureza nada se cria, nada se
perde, tudo se transforma”. Na verdade o Vale Tudo sempre existiu, na base dos
desafios. Agora, os Gracie que usaram os desafios para desenvolver o negócio
deles, para mostrar a mercadoria deles, que era o Jiu-Jítsu. (Roberto Leitão.
Entrevista ao Autor, 2016.)

O ex-lutador e comentarista do canal Combate, Carlão Barreto, também tem uma visão
parecida com a do mestre Roberto Leitão.

Inventar o Vale Tudo não, não foi a família Gracie, a gente já sabe de histórias
que o Vale Tudo já acontecia anteriormente e também em outras partes do mundo.
Mas a primeira vez que criou-se uma expectativa, um marketing em cima disso e
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as pessoas ficaram sabendo, foi sim através do Hélio e Carlos Gracie com os seus
desafios. Acho que a partir desse ponto que houve realmente o interesse maior
pelo esporte. A família deu a visibilidade e elevou esses confrontos a outro
patamar, não podemos negar isso. Para defender e mostrar a eficiência do Jiu-Jítsu
eles acabaram transformando esses confrontos em algo maior, fazendo com que
tudo fosse desenvolvido para chegar aos dias atuais. (Carlão Barreto. Entrevista ao
Autor, 2016)

Carlão acrescenta: “Mesmo que você não goste da família Gracie ou tenha suas
reticências, o Carlos e o Hélio mudaram o rumo das coisas. Quem transformou isso em algo
vendável, foram eles”.

Após o duelo contra os japoneses, Hélio Gracie anunciou sua aposentadoria, mas ela não
durou muito. Um problema pessoal com um funcionário, Waldemar Santana, faria o mestre voltar
a lutar o Vale Tudo pela última vez. Waldemar começou como sparring (simulando uma luta
para auxiliar no preparo do lutador), mas logo depois se tornou um representante da academia nos
desafios. “Dois episódios provocaram seu desentendimento. Primeiro, quando deixou a torneira
da academia aberta, molhando todos os tatames. E depois quando aceitou lutar no Palácio do
Alumínio, no Centro, tradicional ponto de ‘combates de marmelada’, sem avisar aos Gracie”.
(AWI, 2012, p. 48). Hélio não admitia de forma alguma que qualquer discípulo seu participasse
de lutas combinadas, não importavam os motivos. “Mandou-o embora, com uma bronca tão
grande que resvalou na humilhação” (Idem). Hélio já tinha 42 anos e estava aposentado faziam
três, mas ao ler as provocações de Waldemar em uma carta ao Correio da Manhã, querendo
vingança, não conseguiu resistir.

Três dias antes do confronto, Hélio teve de tomar penicilina na veia, para suportar
as dores de uma infecção no ouvido. Alguns tentavam convencê-lo a adiar a luta,
treinar mais, mas Hélio foi categórico: “O cara me insulta pelos jornais, e vocês
querem que eu adie a luta? Que lição vou dar a meus alunos?”. Ele impôs duas
condições: a entrada seria franca, “para não saciar o espírito mercenário de
Waldemar”, e as regras seriam as dos primeiros embates de vale tudo. Só não
valiam os golpes baixos e o dedo no olho. Para Hélio, estava claro que era uma
coisa pessoal. “Isso vai ser uma briga de rua. Só vamos para cima do ringue para
não sermos presos”, explicou. (AWI, 2012, p.48)

Waldemar, bem mais forte que seu patrão, e depois de anos bebendo da fonte do Jiu-Jístu,
saiu vencedor do duelo após minar a resistência de Hélio, culminando com um chute no rosto do
mestre. O juiz confirmou a vitória do discípulo.

Com três horas e quarenta e cinco minutos, foi a luta de vale tudo mais longa que
se tem notícia. Mesmo ferido no corpo e na alma, Hélio reconheceu a legitimidade
18

da vitória de Waldemar. Pela reação da torcida, não havia dúvidas de que o povo
que tanto idolatrou a técnica e a coragem do Gracie dessa vez havia optado pelo
“mais fraco”. Foi uma derrota tão incontestável que os Gracie só não sucumbiram
porque sabiam que já havia alguém preparado para vingar Hélio. Carlson foi o
primeiro a subir no ringue depois que o árbitro deu a vitória a Waldemar. Ajudou
o tio a se levantar e depois se dirigiu ao vencedor. “Waldemar, gosto de você, mas
você acaba de me criar um problema. Agora vamos ter que lutar. Se cuida no
ringue, porque aqui a gente é inimigo, e a porrada vai comer”, disse o filho mais
velho de Carlos. Não era bem uma ameaça. Era apenas um aviso de que uma nova
era no vale tudo estava por começar. (AWI, 2012, p.49.)

Assim como em todo clã, a sucessão é inevitável. A fama de Carlson Gracie se espalhava
com velocidade, e o duelo contra Waldermar era o que o jovem precisava para se consagrar. O
primeiro embate entre os dois terminou empatado, no recém-inaugurado Maracanãzinho, que
recebeu 25 mil pessoas no dia 8 de outubro de 1955. A luta para desempatar essa história só iria
acontecer em julho do ano seguinte, novamente no Maracanãzinho. Entrou para a história o
público de 40 mil pessoas, mesmo com o ginásio não tendo estrutura para receber tanta gente.
Foi uma luta bem animada para o público, que vibrou com a sequência de quedas alternadas entre
os adversários. “Além de incansável, Carlson parecia provido de uma casca impermeável, imune
a socos e pontapés. Ágil e conhecedor do adversário com quem treinara tantas vezes, ele sabia
cozinhar Waldemar como ninguém”. (AWI, 2012, p.58). Perto do final do quarto round, os dois
caíram do ringue. Apenas Carlson teve forças para voltar e foi declarado vencedor. Uma nova
derrota para Waldemar representaria a desmoralização da família. Houve ainda mais 4 confrontos
entre os dois, com 3 vitórias de Carlson e 1 empate. As duas partes aproveitaram os dividendos
financeiros de uma rivalidade que foi chamada de “Fla-Flu do Jiu-Jítsu” (AWI, 2012, p.59). A
rivalidade sempre foi um dos principais fatores que alimentaram a fomentação do Vale Tudo e
crescimento do MMA, como consta no ANEXO B.

Com esse duelo, as façanhas de Carlson ficaram famosas e ele teve uma luta transmitida
ao vivo pela TV Rio, em 1958. Foi nesse momento que a parceria entre Vale Tudo e a televisão
entrou em cena. No programa Noite de Gala, comandado por Flávio Cavalcanti, o Garotão –
como Carlson era conhecido - venceu Guanair Vial, desafeto dos Gracie, de forma espetacular,
com um nocaute técnico em apenas quatro minutos. O patrocinador, Abraão Medina, dono da
rede de lojas “O Rei da Voz”, ficou muito empolgado com a reação do público. Medina foi um
dos primeiros grandes anunciantes da TV brasileira. Foi ele quem convenceu o dono da TV
Continental, o pernambucano Rubens Berardo, a exibir um programa semanal dedicado ao Vale
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Tudo (AWI, 2012, p.59). A TV teve uma grande parcela no crescimento do MMA no Brasil,
como consta no ANEXO C.

Em 1959, esse projeto finalmente saiu do papel. O programa “Heróis do Ringue” era
exibido às segundas-feiras, às 20h30, direto do Clube de Regatas do Flamengo, na Gávea.
Ginásio quase sempre lotado. “Eu tive a sorte de participar disso. Era basicamente um Gracie
contra um de outra academia. Ali foi o primeiro programa realmente organizado”, recorda
Roberto Leitão. Além de Carlson Gracie, outros professores graduados da família Gracie
ganharam espaço. Eram eles: João Alberto, Hélio Vígio e Armando Wriedt. João Alberto Barreto
foi o primeiro lutador de fora da família a criar um grupo de fãs, pois viveu seu auge no
programa. “O mestre Hélio era o comentarista principal do programa, talvez a única função
profissional em que recebeu mais críticas do que elogios. Reclamavam das suas opiniões
tendenciosas a favor dos lutadores da sua academia” (AWI, 2012, p.60).

“Ao mesmo tempo em que alcançava boa audiência, Heróis do Ringue também sofria com
as críticas de outros canais e da imprensa escrita. O motivo, claro, era o alto grau de violência dos
combates” (AWI, 2012, p.60). O mestre João Alberto Barreto lembra com clareza do programa
que ostentava grande audiência na TV.

Não tinha regras, mas eram proibidas atitudes amorais. Dedo no olho, puxar o
cabelo, atingir as partes íntimas, morder, arranhar, tudo isso eram atitudes
antidesportivas. Três rounds de cinco minutos, o juiz central que decidia, nem
exista o lateral. As minhas lutas, eu não tive um empate sequer, venci todas.
Lutava uma média de duas vezes por mês, às vezes toda semana. As lutas
principais eram as minhas, eu fui o que mais lutei no programa. Uma coisa
interessante porque eu não era da família e não entrou um Gracie no programa.
Antes eu não pensava nisso, só queria lutar, mas hoje vejo que me transformaram
em um herói do ringue. Sempre soube que o Hélio acreditava em mim. Ele não
dizia, mas os fatos mostravam o quanto ele gostava de mim, e os outros tinham
ciúmes (risos). O Hélio era um cara formidável. (João Alberto Barreto. Entrevista
ao autor, 2016)

Em 1962, aconteceu algo que ninguém esperava e foi um golpe muito forte para os
lutadores. Uma luta do próprio João Alberto fez com que o programa chegasse ao fim. Ele
enfrentou um pernambucano chamado José Geraldo, era forte, mas não tinha muita técnica.
Rapidamente João Alberto encaixou uma chave de kimura e ficou esperando o adversário
desistir. Não aconteceu. “Eu falei com o juiz que poderia quebrar o braço dele, mas não deu
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tempo de parar a luta. O Geraldo quis tentar sair, aquela coisa toda, e de repente quebrou o
úmero”, lembra João Alberto. A cena da fratura ao vivo, foi pesada demais para os
telespectadores. O esporte não só parou de ser transmitido, como foi banido no estado da
Guanabara sob alegação de que poderia por em risco a integridade física dos atletas. João Alberto
não busca arrumar desculpas, mas tenta explicar o acontecido de forma mais clara.

Por oportuno valerá fazer duas considerações sobre esse episódio e sua
repercussão, pois pouco tempo atrás, algo semelhante ocorreu no combate entre o
bravo e competente campeão Minotauro e o norte-americano Frank Mir.
Minotauro teve, com a mesma kimura seu úmero fraturado; incluindo-se aí, em
lugar de destaque, o fã expectador, reagiu com naturalidade. Afinal, as estatísticas
mostram e demonstram, em vários outros esportes que a incidência de lesões
graves, às vezes até fatais, é infinitamente maior. A segunda consideração,
paradoxalmente, se afina com a reação negativa de parte da importância em
relação a minha luta, já mencionada, nos Heróis do Ringue. É que, aqui no Brasil,
contrariando a tendência do resto do mundo, algumas vozes ilustres – jornalistas,
intelectuais, cronistas, etc – começaram a ensaiar críticas aos eventos de MMA.
Na minha opinião, trata-se de polêmica que deve ser desenvolvida, com o devido
respeito de parte a parte e, tenho certeza, terminará com todos unidos em torno
dos eventos de Vale Tudo. (BARRETO, 2013. p. 49)
21

3. UFC: QUANDO A PORRADA VIROU NEGÓCIO

A luta entre Anderson Silva e Yushin Okami no UFC Rio (2011) - disputado na “Cidade
Maravilhosa” - foi transmitida pela Rede TV!, que acabara de adquirir os direitos de transmissão
do torneio. No exato momento em que a luta começou a emissora liderou a audiência da TV
aberta pela primeira vez na história. Na grande São Paulo, durante um minuto a emissora ficou à
frente da TV Globo, marcando 13 pontos, segundo o Ibope. Em cidades como Brasília e Rio de
Janeiro, conseguiu liderar por mais tempo.

Anderson estava US$1,05 milhão mais rico: US$350 mil pela luta, US$350 mil
pela vitória e US$350 mil pelo espetáculo, um bônus concedido por Dana White.
‘Faço eventos há mais de dez anos e nunca vi uma torcida tão barulhenta quanto
essa’, elogiou o presidente do UFC, prometendo uma sequência de eventos no
Brasil nos próximos anos. O sucesso do UFC Rio só foi dimensionado de verdade
dois meses depois. Maior emissora do país, a TV Globo venceu uma queda de
braço com a Rede TV! e a Record e anunciou a compra dos direitos de
transmissão do evento. (AWI, 2012, p.33)

Para entender o sucesso do UFC, que fez a maior emissora de TV do Brasil se interessar
por esse produto, temos que voltar quase trinta anos no tempo, quando Rorion Gracie, filho mais
velho de Hélio, começou a implantar nos Estados Unidos o Jiu-Jítsu que aprendera com o pai.
Um de seus alunos acabou se tornando um grande amigo. Art Davie o acompanhou das aulas em
sua garagem, até a academia em Torrance, na Califórnia. Entre os ensinamentos, os dois
conversavam muito sobre a possibilidade de ampliar o alcance do Jiu-Jítsu. Art Davie, envolvido
no ramo do entretenimento, não tinha a menor dúvida de que a única maneira de fazer isso era
com a ajuda da televisão. Rorion contou a história do programa Heróis do Ringue (1959), e
ambos concordaram que os desafios seriam uma maneira ainda melhor para atrair o público. O
problema era a falta de oportunidade na TV aberta.

“As lutas poderiam ser violentas demais para o público americano. O caminho seria um
sistema de transmissão ainda inexistente no Brasil na época, o pay-per-view”, segundo Felippe
Awi. Tentariam então, buscar uma alternativa para tal problema. “Davie conhecia uma empresa
nova-iorquina especializada na venda de musicais pela televisão, o Semaphore Entertainment
Group (SEG). Seu dono chamava-se Bob Meyrowitz”. Bob era conhecido por ter dirigido um
programa de rádio para calouros, chamado King Biscuit Flower Hour. Foi no programa que o
22

roqueiro Bruce Springsteen apareceu para o mundo da música. O modelo pay-per-view já era
utilizado por Meyrowitz para vender shows, como do cantor Ozzy Osbourne e as bandas New
Kids on the Block e The Who. “No esporte, sua iniciativa mais bem sucedida foi a promoção de
um jogo de tênis entre o americano Jimmy Connors e a tcheca Martina Navratilova, os melhores
tenistas do mundo da época”, aponta Felippe Awi (2012, p.93). O desafio disputado em Las
Vegas foi intitulado de “Batalha dos Sexos” e teve destaque na mídia. Connors venceu por 2 sets
a 0 (7-5 e 6-2).

A ideia era muito boa, mas a questão principal a ser respondida: onde fazer um espetáculo
como esse? Nos Estados Unidos, a regulamentação de esportes de luta é realizada por uma
comissão atlética independente e por leis estaduais. Rorion e Art Davie descobriram que apenas
seis dos cinquenta estados permitiam a realização desse tipo de combate. O mais liberal era o
estado do Colorado e essa seria a principal alternativa. O SEG já havia aceitado colocar o show
no ar, mas não iria investir um centavo sequer. A responsabilidade de arrumar dinheiro para o
evento seria dos dois sócios (AWI, 2012, p.93).

Sem obter êxito na busca, Rorion resolveu apelar para os seus alunos. A proposta era
expandir as lutas, produzir os duelos antes só vistos em fitas cassetes. Segundo o repórter Fellipe
Awi, Rorion conta que arrecadou quase US$200 mil dólares na época. Valor que era mais do que
suficiente para alugar a McNichols Sports Arena em Denver, no Colorado.

Só faltava agora definir os lutadores. A lógica e a história mandavam Rorion


escolher o melhor da família Gracie para representar o Jiu-Jítsu. Rickson estava
no auge da sua forma física e técnica. Mas Rorion, mais uma vez, provou ter
herdado o talento de Hélio e Carlos para o marketing. Em vez da opção mais
óbvia, escolheu o irmão mais franzino, Royce. Assim, seria mais fácil convencer
todos de que o vencedor do combate era o Jiu-Jítsu, e não o lutador, exatamente
como pregava seu pai. Seria também uma maneira de premiar o irmão que mais
acreditou em seu sonho. (AWI, 2012, p.94)

No dia 12 de novembro de 1993, o ginásio recebeu cerca de 3.500 pessoas. A primeira


luta da noite foi entre o holandês Gerard Gordeau, representante do Savate (Boxe francês) e o
sumori americano Teila Tuli. O árbitro do duelo, o primeiro na história do torneio, foi o mestre
João Alberto Barreto. A luta terminou em menos de trinta segundos, quando Gordeau acertou um
chute no rosto de Teila Tuli, e o gigante de quase duzentos quilos veio ao chão. Um de seus
dentes ficou cravado no pé do holandês, e o público vibrava.
23

Ficou muito ensanguentado e eu parei a luta, eu fiz porque achei que era uma
covardia. O Hélio me ensinou a ter essa leitura, ele sempre dizia que se eu
montasse em um cara em uma briga, não era pra quebrar a cara dele, não tinha
necessidade de fazer isso. No momento que o lutador perdeu o dente, eu paralisei.
Até o Rorion Gracie me criticou falando que eu deveria ter dado continuidade,
mas eu disse que via a luta por um prisma diferente. O Hélio veio falar comigo
depois e disse que eu fiz muito bem. O Hélio tinha uma visão fantástica,
principalmente de não se exceder para não ser covarde. (João Alberto Barreto.
Entrevista ao autor, 2016)

Royce Gracie fez a terceira luta da noite contra o americano Art Jimmerson, um promissor
pugilista. Não durou muito. Em menos de 12 segundos, Royce o derrubou e finalizou a luta,
fazendo o oponente desistir. “Jimmerson saiu sem um arranhão no rosto, mas não podia respirar”,
explicou Kathy Long, uma ex-campeã mundial de Kickboxing que, a convite do evento,
trabalhou como repórter na transmissão do UFC 1. Na semifinal, Royce derrotou rapidamente
Ken Shamrock. O lutador que saiu derrotado em apenas 57 segundos, viria a ser o principal rival
do brasileiro no UFC. A decisão do evento foi entre Royce e o holandês Gordeau. Ambos já
tinham conquistado a atenção do público. “Desta vez, o brasileiro teve mais dificuldades de jogar
o adversário no chão. Os dois ficaram agarrados quase um minuto, colados à grade” (AWI, 2012,
p. 94). O duelo só mudou de figura quando Royce enfim conseguiu derrubar o “grandalhão”. “No
auge do desespero, Gordeau descumpriu as regras e mordeu a orelha direita de Royce. Mesmo
assim, o Gracie encaixou um mata-leão, com menos de dois minutos de combate. Royce se
tornou o primeiro campeão do UFC sem tomar um único soco.”

Aquele primeiro UFC ficou marcado, principalmente porque os americanos não


sabiam nada (risos). Então o Royce mesmo magrinho, jogava pra baixo e
brilhantemente finalizava a luta contra adversários bem maiores que ele. Mas isso
mudou, hoje não temos mais isso. Até aquelas ideias de lutar três vezes em uma
única noite, algo que não tem cabimento. (João Alberto Barreto. Entrevista ao
autor, 2016)

Nota-se que o mestre João Alberto não concordava com aquele modelo do torneio inicial.
Alguns acontecimentos foram mudando o rumo dos conceitos praticados no evento. No UFC 4,
em Tulsa no estado de Oklahoma, uma história curiosa roubou a cena. “O combate entre Royce
Gracie e Dan Severn chegava a quase 16 minutos, um recorde no UFC até então. Quando o
brasileiro encaixou suas pernas ao redor do pescoço do adversário, num estrangulamento
perfeito” (AWI, 2012 , p.123). Dan Severn desistiu e a vitória era de Royce. A comemoração só
não foi completa, pois Rorion contou ao seu irmão que os últimos minutos da luta não foram
transmitidos. “A transmissão foi interrompida porque o SEG comprara duas horas de sinal de
24

satélite, e o evento todo durou duas horas e três minutos.” (Idem). Davie e Meyrowitz brigaram
com Rorion, pois queriam parar a luta antes para dar uma explicação ao público, mas não
adiantou.

Nos Estados Unidos, um episódio como esse, representa um crime grave contra o
consumidor. Além de devolver o dinheiro para os 260 mil lares que compraram o
UFC 4, o SEG mandou junto uma fita VHS com a íntegra de todas as lutas da
noite. Foi um imenso prejuízo. ‘Em compensação, criou-se um bochicho danado.
Muita gente ligou me parabenizando por ter criado um suspense para o fim da
luta, como se eu tivesse planejado tudo’, recorda Rorion, às gargalhadas. Mas, na
época, seus sócios não acharam graça. Eles finalmente tinham uma razão concreta
para exigir o que já defendiam desde o UFC 1. Era necessário estipular um tempo
para os rounds. (AWI, 2012, p.123)

Esse novo formato não agradava Rorion, que sentia ter seus princípios violados, e por
isso, foi brigar com seus sócios para darem continuidade ao modelo original. Na discussão ficou
decidido: o brasileiro acatava o novo modelo ou vendia a sua parte. Rorion escolheu a segunda
opção.

Desde o início, Royce permaneceu alheio aos atritos do irmão com os sócios.
Limitava-se a ouvir a versão de Rorion. Quando foi informado que a sociedade
estava desfeita, abandonou o octógono sem reclamar, junto com o irmão e
empresário. ‘Sou um soldado. O que falar para fazer, eu faço’, afirmou. O
primeiro campeão do UFC ficaria afastado do MMA até o ano de 2000, abrindo
espaço para novos astros do torneio, inclusive brasileiros. (AWI, 2012, p.125)

A posição de Rorion foi bastante criticada por alguns, pois entendiam que aquele era o
melhor para o evento e principalmente para o esporte.

O Rorion não deu certo lá, e os americanos fizeram o correto, três rounds de cinco
minutos. Aquelas lutas que duravam mais tempo, eram extras, aquilo não era algo
normal, como foi o duelo do Hélio com o Waldemar. Para o Hélio não deveria ter
round e até hoje os meninos da academia defendem isso, acreditando que sem
intervalo iriam vencer. O cara mais forte iria cansar e cair de produção e o mais
fraco iria conseguir fazer sobressair a sua técnica. O problema é que todos
cansam. Vai depender das resistências na luta, mas lutar com um cara 20 kg mais
pesado, como não vai cansar? A mesma coisa na luta do Hélio Gracie com o
Kimura, o japonês botou ele no chão e assim foi. A grande jogada do Hélio foi
resistir por 14 minutos a um lutador muito, mas muito mais pesado que ele. (João
Alberto Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

Carlão Barreto, que também viveu aquele momento inédito no esporte, destaca a
importância que Art Davie e Bob Meyrowitz tiveram para o evento.
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Quando o Art Davie descobriu a necessidade de transformar aquilo em um


entretenimento e mudar as regras, o Rorion vendeu a parte dele por discordar da
maneira como o evento teria que ser moldado para a televisão. Ele saiu devido as
regras que seriam colocadas para melhor administrar o produto que estava sendo
apresentado. O Art Davie é um cara de show, de entretenimento, um cara
visionário e queria mudança na formatação. Ele e o Bob Meyrowitz que iniciaram
a dinastia do UFC. Inclusive, eu mesmo lutei quando eles organizavam o evento,
o Art Davies era o match maker (quem casa as lutas). (Carlão Barreto. Entrevista
ao autor, 2016)

A sequência de inovações no torneio iria continuar. Quando o UFC 7 foi disputado em


Buffalo, em 8 de setembro de 1995, os nove mil espectadores no Memorial Auditorium, não
sabiam que iriam presenciar algo inédito no até então Vale Tudo. Marco Ruas era um lutador
dinâmico e sempre acreditou na tese de aprender a maior quantidade de artes marciais possíveis.
No evento ele se mostrou muito habilidoso na luta de chão e também em pé. “Ruas chegou à
decisão depois de vencer as duas primeiras lutas no chão – uma com chave de calcanhar e outra
por desistência. A vitória consagradora veio no melhor estilo Muay Thai, com uma sequência de
chutes e socos que derrubaram o americano Paul Varelans”. (AWI, 2012, p.130). Varelans era um
wrestler de 140 quilos conhecido como Polar Bear (Urso Polar). “Tão espetacular quanto o
nocaute, que ainda não era muito comum no início do UFC, foi o cartel variado de golpes
exibidos por Ruas.” (Idem). O lutador brasileiro demonstrava que não era necessário representar
apenas uma modalidade, base da criação dos desafios. Na prática era exatamente o contrário.
“Depois de Ruas, a discussão sobre qual seria a melhor luta cessou, passou a se discutir quem era
o melhor lutador. Sem querer, ele demonstrava o conceito de mixed martial arts (MMA), que
depois daria nome ao esporte.” (Idem).

O Marco Ruas foi um cara especial. Você precisava ver meu caderno, muito
estudo sobre ele, eu acompanhei cada detalhe dele e ele foi muito bem. Participou
da revolução do esporte. Ele foi um cara fora de série, muito bom. Presto todas as
minhas homenagens a ele. (Roberto Leitão. Entrevista ao autor, 2016)

Mais tarde, observou-se que mesmo com as melhorias e as novas formatações, o evento
ainda sofria para ter continuidade. Superada a questão do tempo de luta, outro problema iria
surgir. Grande parte da imprensa americana ainda tratava o evento com desconfiança. O material
promocional dos eventos sempre apelava, dizendo que era um duelo “sem limites”, proibido em
vários estados e pra completar: “o show mais bárbaro da história”. Essa estratégia de marketing
se mostrou errônea, e os jornalistas começaram a classificar o evento como um freak show.
(AWI, 2012, p.126)
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Junto com as críticas da imprensa, vieram outros personagens. O senador republicano


John McCain, do Arizona, conseguiu conquistar seu espaço político graças ao perfil de herói
americano, com a bandeira de veterano da Guerra do Vietnã. Em terras inimigas, ficou
prisioneiro do exército vietnamita por quase 5 anos. Algo que sem dúvida, chamava a atenção do
povo norte-americano. O ápice de sua carreira foi em 2008, quando concorreu a presidência dos
Estados Unidos com Barack Obama, hoje atual presidente do país (2009-). Na década de 1990,
McCain, foi um dos mais – senão o maior – nome contra o UFC. “O torneio era um inimigo fácil
para quem se elegeu sob a bandeira da moral e da decência na televisão americana”, aponta
Fellipe Awi (Idem). Em 1994, o senador escreveu uma carta aos 50 estados do país, na busca de
convencer seus governadores de que receber um UFC “seria um atentado contra o bom senso e
uma ameaça às crianças e jovens”. Ele usava o termo human cockfighting (“rinha de galo
humana”) para definir o evento. Trinta e seis governadores seguiram a cartilha de McCain e se
declaram contra o empreendimento.

O senador se munia de pareceres de associações médicas que condenavam o


MMA, acusando-o de causar lesões na cabeça que poderiam levar o lutador à
morte. Uma das críticas mais contundentes dizia respeito à ausência de luvas, o
que dava, segundo os críticos, a impressão de se tratar de uma briga de rua. (AWI,
2012, p.160)

Carlão Barreto também se lembra da dificuldade de lutar contra a imagem de um senador


norte-americano.

Esse foi o maior exemplo de como não foi fácil vencer os obstáculos impostos
naquela época. É preciso relembrar a figura do John McCain. Viria a ser um
presidenciável e senador do estado de Arizona, ele era extremamente contra o
UFC. Foi um dos maiores inimigos do evento, hoje ele já entende as mudanças do
esporte e o apoia, mas antes era mais um dentro da politicagem que atrapalhou e
muito o início da consolidação do UFC nos Estados Unidos. (Carlão Barreto.
Entrevista ao autor, 2016)

Outro exemplo mais específico sobre a dificuldade que o UFC encontrou nos Estados
Unidos, foi o evento realizado em fevereiro de 1997. O UFC 12 estava marcado para acontecer
perto de Nova Iorque, e mesmo com os boatos de uma possível proibição, nada tinha sido
oficializado. A cidade influenciava todo o restante do estado. “O prefeito de Nova Iorque era
então Rudolph Giuliani, que implementava na época, uma política contra a criminalidade
chamada Tolerância Zero” (AWI, 2012, p.163). A ideia era criar um ambiente de ordem, e para
os aliados políticos de Giuliani, o UFC poderia servir de influência contrária. “Diante da pressão
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deles e da imprensa, a Assembleia Estadual pos o tema novamente em votação no início da


semana do evento. Dessa vez, ocorreu uma derrota avassaladora, com 134 votos contra e apenas
1 a favor.” (Idem).

Como a decisão saiu na véspera do UFC 12, a comissão atlética liberou sua
realização desde que fossem cumpridas ‘novas regras’. Meyrowitz recebeu um
documento de 114 páginas com recomendações que, se postas em prática,
descaracterizariam o torneio.” (Idem). Com a decisão tomada e as seguintes
derrotas na Corte Federal, o evento seria transferido para Dotham, no Alabama, a
1.100 quilômetros dali. “Foi necessário então, fretar um Boeing 737-300 para
levar mais de 200 pessoas, entre lutadores, organizadores, treinadores, jornalistas
e até alguns fãs.” (Idem). Bob Meyrowitz ainda tinha a preocupação do
equipamento, pois o octógono tinha que caber no bagageiro. “Quando a aeronave
decolou, cinco minutos antes de o aeroporto fechar, faltavam 36 horas para o
início do evento. Para montar o octógono eram necessárias 20 horas. ‘Passamos a
madrugada viajando, uma correria danada’, lembra Vitor Belfort. (AWI, 2012,
p.164)

Viajando junto com sua equipe, Carlão na época, não enxergava muitas possibilidades
para o UFC nos Estados Unidos. O cerco para o esporte estava cada vez mais se fechando.

A gente teve que sair de uma cidade para a outra em cima da hora. Tudo pronto
para o evento, mas tiveram que fretar um avião naquele momento para acontecer
em um local permitido. Sem descanso, uma correria, vai para um lugar, corre para
o outro, foi difícil. Devido a essas dificuldades encontradas, não se via mais
oportunidade de crescimento, havia uma estagnação. Eu não acreditava mais na
prosperidade do torneio. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

As complicações enfrentadas mostravam que sem uma reviravolta, o UFC não teria vida
longa.

A saga dos sócios na tentativa de popularizar o UFC foi cercada de diversas


barreiras. As comissões atléticas que eram regidas pelo Boxe, tentavam impedir o
crescimento do UFC, se tratando de uma suposta concorrência. Creditavam que o
Vale Tudo era muito violento, era uma rinha e não poderia ser considerado um
esporte. Era uma fase de formatação e de amadurecimento para o esporte crescer.
Durante esse processo, Meyrowitz e Davie encontraram muita dificuldade para
conseguir as chancelas das comissões e realmente não conseguiram realizar os
eventos em vários estados. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

Após a derrota na Comissão Atlética de Nevada – a mais importante dos Estados Unidos
– a derrocada do torneio parecia ser inevitável. “Foi nesse momento que o Dana White entrou em
cena”, lembra Carlão. “Ele era empresário dos lutadores Chuck Liddell e Tito Ortiz e conseguiu
convencer os irmãos Fertitta, de quem era amigo, a investir no projeto”. Sufocado pelos
problemas, os sócios sucumbiram a proposta dos irmãos. “Frank e Lorenzo compraram o UFC
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pelo valor declarado de US$2 milhões. Pagaram por uma empresa com a imagem desgastada e
dona do contrato de poucos lutadores” (AWI, 2012, p.198). “Era uma aposta. Compramos uma
companhia que estava morrendo”, disse Lorenzo, na época.

Com sede em Las Vegas, a nova empresa se chamaria Zuffa, uma gíria em
italiano que significa algo como ‘briga de rua’. Ficou acertado que Dana White
ficaria com 10% da sociedade e 90% seriam divididos meio a meio entre os
irmãos. Depois da edição 29, disputada no Japão, seria deles a responsabilidade de
construir o UFC do terceiro milênio. (AWI, 2012, p.198)

Um dos membros da Comissão Atlética de Nevada que retirou o apoio a Meyrowitz na


reta final foi o próprio Lorenzo Fertitta, mais tarde comprador do evento. Um “prato cheio” para
Bob apontar que Lorenzo voltara atrás na decisão de sancionar o UFC com a intenção de
desvalorizar a marca e baixar o preço do negócio. Frank, Lorenzo e principalmente Dana, sempre
rejeitaram tal acusação. “O Lorenzo Fertitta era dono de cassino, tinha muita influência por lá, ele
apoiou a ideia no início, mas depois ficou com medo de envolver o nome dele na história”,
lembra Carlão Barreto. O ex-lutador e comentarista do canal Combate prefere não se envolver na
polêmica, pois não sabe ao certo o que aconteceu entre eles. “Dana tinha muita abertura com os
irmãos e conseguiu convencê-los depois. Isso que se sabe, eu seria leviano em apontar o
contrário”, afirma.

Quando compraram o UFC, os Fertitta achavam que seria diferente com eles, mas
encontraram muitas dificuldades para tirar o evento do vermelho. O plano de recuperação era
praticamente a mesma dos antigos donos: conseguir a regulamentação em estados importantes
como Nova Iorque e Nevada. A grande diferença entre as lideranças, era a forma como isso era
feito. Os irmãos “adotaram um discurso bem mais conciliador que os antigos donos. ‘Queremos
ser um esporte seguro’ era a frase favorita de Dana White.” (AWI, 2012, p.228). O momento era
outro, e não podiam correr mais nenhum risco, muito dinheiro estava em jogo naquele momento.
“Nada de supervalorizar a brutalidade do esporte, o sangue, o passado de poucas regras. Ele
(Dana) até elogiava publicamente o senador John McCain, por sua preocupação com a segurança
dos atletas.” (Idem).

A Zuffa assumiu o UFC oficialmente duas semanas antes da edição 30, em


fevereiro de 2001. Já com a sanção garantida em Nova Jersey, o próximo alvo foi
Nevada, cuja comissão atlética era presidida por um grande amigo de Lorenzo
Fertitta. Marc Ratner era o dirigente que havia participado do Larry King Live, da
CNN, ao lado de McCain, condenando o Vale Tudo. Mais flexível, dessa vez
29

Ratner propôs mudanças nas regras que não descaracterizariam tanto o esporte.
Foi proibido o uso de calçados e quimonos. O atleta também não poderia lutar
mais de uma vez por noite. Houve ainda uma redivisão das categorias, com
mudanças na nomenclatura e nas pesagens mínima e máxima. A Zuffa aceitou, e o
UFC foi, enfim, liberado em Nevada. Em 2006, Ratner assumiria o cargo de vice-
presidente da Zuffa para assuntos regulatórios e, desde então, viaja pelos Estados
Unidos defendendo a bandeira do MMA. (AWI, 2012, p.229)

A Spike TV, empresa que acertou com a Zuffa os direitos de transmissão dos eventos,
analisava que apenas esse modelo de disputa não iria “criar a intimidade necessária entre os
telespectadores e os lutadores” (AWI, 2012, p.234). Pensaram em uma alternativa já consolidada
nos Estados Unidos: o reality-show. A primeira ideia foi um programa totalmente voltado para a
figura do presidente, Dana White. Nele, o público ajudaria a tomar decisões sobre a
administração do UFC. “Não foi difícil perceber que seria mais emocionante se os
telespectadores pudessem decidir sobre as lutas, ou pelo menos, a escolha dos lutadores” (Idem).
O programa iria selecionar alguns atletas para uma temporada (13 semanas) em uma casa isolada
em Las Vegas, onde disputariam entre si a permanência na casa. Uma espécie de “Big Brother da
luta”. O “paredão” seria decidido, obviamente, dentro do octógono. “O vencedor da final seria
um contrato de seis lutas com o UFC. O campeão seria The Ultimate Fighter (algo como “o
lutador definitivo”), como foi batizado o programa” (Idem). Abreviando o nome, passou a ser
popularmente chamado de “TUF”.

Com o conceito e o modelo do programa definidos, agora eles precisavam encontrar os


participantes certos. Os lutadores precisavam ser talentosos, mas não apenas isso, pois o
comportamento deles dentro da casa também iria influenciar o público. “Desde o início, Dana
White acreditava que a convivência entre os participantes – alguns agressivos por natureza –
atrairia tanto a atenção do público quanto as lutas.” (AWI, 2012, p.235). A ideia era humanizá-
los, mostrando para o público que eram pessoas comuns, que queriam ganhar a vida lutando.
“Eram, na verdade, atletas com famílias, sonhos e inseguranças, como qualquer um.” (Idem).
Dana escolheu os dois atletas mais populares do UFC na época, Randy Couture e Chuck Liddell
para treinarem as equipes. Foram divididos em duas equipes com 8 lutadores cada, e duas
categorias de peso também. A Zuffa investiu muito dinheiro na produção do programa, mais de
US$10 milhões de motivos para não errarem mais. “Se o TUF não desse certo, os Fertitta
venderiam o UFC”, diz o jornalista Neil Davidson, editor da agência de notícias Canadian Press
e especialista em MMA (Idem).
30

A edição inicial do programa foi ao ar em janeiro de 2005, sete meses depois do


UFC 48. O primeiro episódio atraiu 1,7 milhão de telespectadores, uma ótima
audiência, ainda mais levando em conta que o programa era exibido depois das
23h. Os lutadores eram abastecidos diariamente com cerveja, um combustível
muito útil para deixar as relações na casa mais sinceras e explosivas. A edição e a
narração ajudavam a moldar os personagens, vilões e mocinhos. [...] Alguns
daqueles lutadores se tornaram grandes nomes do UFC, como Forrest Griffin,
Stephen Bonnar, Chris Leben, John Koscheck, Kenny Florian e Diego Sanchez.
Na decisão dos meio pesados, os dois primeiros se enfrentariam. O clima criado
nas 13 semanas de convivência foi tão pesado que Griffin e Bonnar nem se
cumprimentaram antes da luta. Os dois passaram três rounds de cinco minutos
trocando socos, pontapés e joelhadas sem parar. Mesmo quando o cansaço ficou
evidente, eles continuaram a se castigar. Em vários momentos, a câmera mostrou
a namorada de Bonnar, que chorava compulsivamente, assustada. Ao fim da luta,
Bonnar tinha um corte profundo no supercílio, e Griffin sangrava no nariz e
abaixo do olho esquerdo. Ninguém poderia apontar com certeza o vencedor. Fora
do octógono já havia um. A câmera flagrou toda a satisfação de Dana White com
a qualidade do combate. Quando o árbitro levantou a mão de Griffin, revelando a
decisão dos juízes, Bonnar despencou com a cara no chão, não se sabe se mais por
cansaço ou desapontamento. Na mesma hora, o vencedor esqueceu os
desentendimentos, se abaixou e foi consolar o desafeto. O público que assistira o
combate extasiado veio abaixo em aplausos. (AWI, 2012, p.236 e 237)

O TUF foi um sucesso, muito além do que Dana poderia imaginar. Cada episódio do
programa foi visto por 407 mil telespectadores homens, na faixa dos 18 a 34 anos, justamente o
público alvo para o UFC. Mesmo assim as transmissões atingiram mulheres e crianças, e a final
foi vista por uma média de 2,6 milhões de americanos, com pico de 3,3 milhões. “Em várias
oportunidades, Dana White disse que Griffin x Bonnar – ironicamente dois meros coadjuvantes
até então – foi a luta mais importante da história do MMA, porque consagrou o TUF e, por
consequência, turbinou o UFC.” (AWI, 2012, p.238.). “As pessoas passaram a entender o dia a
dia do lutador, o que ele pensa, os medos e a sensação de glória ou decepção depois da luta.
Ajudou quebrar um pouco o preconceito contra a gente”, diz Minotauro (Idem). O UFC 52,
primeiro evento após o programa, bateu recorde de vendas de pay-per-view, 280 mil. Os jornais
americanos passaram a produzir matérias positivas sobre o esporte, e principalmente sobre o
evento.

De repente, as pessoas assistiam a lutas pela primeira vez apenas porque elas
faziam parte do enredo construído pelo programa. Foi o que Dana chamou de
‘cavalo de Tróia’. A Zuffa estava oferecendo um produto, que trazia outro
escondido, um esporte. É como se o programa tivesse legitimado o MMA como
esporte convencional. (AWI, 2012, p.238)
31

Legitimar o esporte era o alvo de todos que se envolveram de alguma forma nesse
empreendimento. O UFC desde o seu início buscava se adaptar as exigências para consolidar o
esporte e consequentemente torná-lo mais seguro e profissional. A partir do UFC Brazil, por
exemplo, acabou o formato de torneio eliminatório, com cada lutador enfrentando vários
adversários por noite.

Nunca foram permitidos golpes como dedo no olho e mordidas, por exemplo. No
UFC 3, o juiz ganhou o poder de interromper a luta. A divisão por categoria de
pesos começou no UFC 12. As luvas tornaram-se obrigatórias no UFC 14. Na
edição seguinte, a lista de golpes ilegais cresceu: cotoveladas na nuca e na cabeça,
puxão de cabelo, manipulação de pequenas articulações (quebrar um dedo), chute
ou soco na região genital, cabeçadas e “tiros de meta” (chute na cabeça quando o
atleta está no chão). A partir do UFC 21 os rounds foram limitados a 5 minutos e
começou um sistema de pontuação similar ao Boxe. Essas mudanças demonstram
que o SEG estava interessado em regulamentar o torneio. Quando assumiu o UFC,
a Zuffa aceitou as mudanças propostas pela Comissão Atlética de Nevada e
incrementou o departamento médico e o controle de doping. (AWI, 2012, p.246.)

“Inquestionavelmente foi naquela luta espetacular do Forrest Griffin com o Stephan


Bonnar, que mudou todo o panorama da luta e o interesse do público”, afirma Carlão Barreto em
entrevista ao autor. “Hoje vemos essa empresa que ajudou muito no crescimento do esporte.
Muitos não conhecem ou distorcem esse início confuso e conturbado da venda do UFC, desde o
Rorion até os Fertitta, e claro, o Dana White. Mas todos trabalharam muito para que se tornasse
um sucesso”, finaliza.

“Foi de Dana White a percepção acertada de que o UFC precisava valorizar o espetáculo,
mas os protagonistas deveriam ser mais parecidos com atletas do que com personagens”, aponta
Fellipe Awi (2012, p.246). “Ninguém encarava isso como esporte. Nós percebemos que era um
esporte e trabalhamos em cima disso”, diz Dana. Muitas pessoas, leigos no assunto, chegam a
pensar que o esporte se chama UFC, e não MMA, assim como fita adesiva virou Durex e os
curativos adesivos, Ban-Aid. O MMA é um esporte, sim, mas é igualmente entretenimento de
primeira linha. A proporção é tão grande, que até a pesagem dos lutadores na véspera das lutas,
virou um atrativo. A entrada é de graça, não dura mais de trinta minutos, mas os ginásios estão
sempre cheios para o público acompanhar a “encarada” entre os atletas. Dana e seus sócios
compraram um torneio decadente por US$2 milhões e hoje não vendem por menos de US$1,65
bilhão, valor estimado da marca em 2014, segundo a revista de negócios Forbes. Um exemplo de
32

sucesso que ajudou a construir a profissionalização do esporte. A lenda do MMA, Minotauro,


rasga elogios quando o assunto é UFC.

A maior evolução do esporte foi o UFC, ele deu um salto maior que os outros
eventos. Na parte de organização, estrutura, uma empresa que emprega muita
gente e em vários países. Existem outros grandes torneios, mas em termos de
organização e marketing não tem como comparar, o UFC foi embora e cresceu
muito. Isso se deve ao investimento que eles fizeram em um evento falido e
desacreditado. Hoje já temos outros programas na TV, mostram os treinos, a
verdadeira vida dos atletas. UFC deu toda essa popularidade ao esporte, sou fã
desse grupo pelo que eles fizeram pelo MMA. (Minotauro. Entrevista ao autor,
2016)

O UFC não é o único evento de MMA no mundo, mas certamente é o maior e mais
importante. Só existiu um torneio capaz de destroná-lo e de reter para si toda a atenção do mundo
da luta: o extinto PRIDE. Consta no ANEXO A um resumo sobre a marca japonesa que
conquistou uma legião de fãs e, até hoje desperta saudade nos amantes do esporte.
33

4. CONSOLIDANDO O SUCESSO

O sucesso do MMA é algo tangível e notável para todos. Mas como foi apresentado,
existiram muitos problemas ao longo do caminho e diversos obstáculos tiveram que ser superados
para o esporte se consolidar. Um dos maiores percalços sempre foi o tema da violência. E quando
ela não está sendo discutida nos ringues e octógonos, se prolifera fora dele. Mais uma barreira
precisou ser vencida. Os acontecimentos se tornaram ensinamentos, e esses, apontam para um
crescimento contínuo.

4.1. A violência explode: tribos versus turma

Em maio de 1995, a Federação de Jiu-Jítsu do Rio de Janeiro, presidida por Robson


Gracie, apontava que o estado possuía cerca de quatrocentas academias e quase 20 mil
praticantes. “Eram números que sustentavam a tese dos Gracie para justificar a quantidade de
lutadores da modalidade envolvidos em confusões nas ruas da cidade” (AWI, 2012, p.143). A
família Gracie afirmava que eles continuavam a ensinar a arte que prezava pela defesa pessoal,
mas não havia a menor condição de controlar todos os alunos do estado, quanto mais de outras
academias, das quais eles não tinham relações.

No dia 2 de julho de 1995, sob o título ‘Lutadores de Jiu-Jítsu aterrorizam a noite


carioca’, o jornal O Globo noticiou o drama dos empresários. Dez dias antes,
havia ocorrido uma briga na boate Sweet Home que começou na pista de dança e
foi parar na calçada em frente. Os protagonistas, novamente, praticantes da
modalidade. O Globo completava a reportagem afirmando que, nos seis meses
anteriores, cinco confusões envolvendo lutadores de Jiu-Jítsu haviam sido
registradas na 14ª DP, no Leblon. Nessa época, a imprensa carioca já noticiava as
rixas envolvendo lutadores com mais rigor do que no passado. No dia 9 de janeiro
de 1994, O Globo publicou reportagem de uma página intitulada: “A geração que
a violência engoliu”, abordando as gangues de classe média que se portavam
como marginais. As gangues foram chamadas pelo jornal de “Tribo do Jiu-Jítsu” e
“Turma do Boxe Tailandês”. (AWI, Fellipe. 2012, p.144)

A questão ganhava status de problema social, principalmente quando os acontecimentos


rondavam os bares e boates da Barra da Tijuca e da Zona Sul. “Em pouco tempo, surgiria nos
jornais a expressão jiu-jiboys ou pit-boys (atribuída aos jornalistas Tom Leão e Carlos
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Albuquerque), como passaram a ser chamados os lutadores que brigavam na noite”, aponta
Fellipe Awi (Idem).

As brigas e confusões fizeram com que os empresários e a Secretaria de Segurança se


unissem para pressionar a Confederação Brasileira de Jiu-Jítsu. Então, Carlos Gracie Jr.,
presidente da entidade, anunciou o cadastramento obrigatório para os praticantes da arte. “Pela
primeira vez seria criada uma lista negra com todos os brigões para ser colada na porta das
boates. Eles não poderiam mais entrar. ‘Para nós, lutador é quem participa de competições. Se o
sujeito anda em noitadas, não pode ser um atleta’, disse na época Carlos Gracie Jr”, relembra
Fellipe Awi (Idem).

Jorge Pereira, que foi um dos professores de Renzo Gracie (filho de Robson), esteve
envolvido em algumas confusões. Embora reconheça algum exagero nas atitudes, ele é nostálgico
quando lembra a época em que atuavam como xerifes da Barra da Tijuca.

“Quando você via um bunda-mole, um cara que fumava bagulho o dia inteiro,
surfava, cheirava, não queria porra nenhuma com a vida, e esse malandro vinha
tirar onda comigo, a porrada rolava”, lembra Jorge. Ele reconhece que quando
começou a dar aulas no condomínio Nova Ipanema, muitas vezes estimulou seus
alunos a resolver as desavenças no braço, em nome do Jiu-Jítsu. “Eu fui garoto
problema e fui visto como professor violento durante muito tempo. Hoje em dia,
sou bem mais calmo, mas continuo um general de guerra do Jiu-Jítsu”. (AWI,
Fellipe. 2012, p.147)

Alguns acontecimentos reforçavam a narrativa da violência das lutas. Em 1996, o


programa SBT Repórter, na época apresentado pela jornalista Marília Gabriela, acompanhou os
bastidores do Campeonato Brasileiro de Vale Tudo, realizado no Ibirapuera, em São Paulo. Na
abertura do programa Marília já classificava o evento como um espetáculo de selvageria. “O que
será que atrai tanta gente a essas demonstrações de pura violência? A impressão que fica nas
competições é de uma violência desmedida e sem justificativas. Uma disputa na qual não há
adversários e sim inimigos mortais”, afirmou. (AWI, 2012, p.149). O também repórter, Antonio
Pétrin, seguiu a mesma linha de Marília e apelidou os lutadores de “máquinas programadas para
matar”. Durante a reportagem, uma situação causou estranheza: a quantidade de crianças
assistindo a luta. O campeonato, inicialmente, era proibido para menores de 16 anos, mas uma
liminar de última hora liberou a entrada. O duelo principal da noite foi entre um representante do
Muay Thai, José “Pelé” Landy, e um representante do Jiu-Jítsu, Jorge “Macaco” Patino. Pelé
35

derrotou seu adversário com uma sequência de golpes violentos, incluindo joelhadas na cabeça e
um chute no rosto quando o adversário já estava caído. Aquela cena era exatamente o que o
programa esperava para confirmar a sua tese sobre as lutas de Vale Tudo.

“Pelo o que sei, historicamente, sempre houve uma parte da sociedade que tinha um
preconceito e olhava com o nariz torto. Mas também havia uma camada da sociedade, geralmente
socialmente mais abastada, que gostava e frequentava as academias”, lembra Carlão Barreto. A
linha entre a violência e o esporte sempre foi tênue para alguns, mas o ex-lutador viveu entre os
mestres e atletas, e segundo ele, o lado positivo sempre falou mais forte.

Quando chegaram a passar na televisão o Heróis do Ringue e alguns eventos de


Vale Tudo, os lutadores passaram a ter uma visibilidade maior, eles apareciam
para o grande público, eles eram atletas respeitados. Obviamente que naquela
época não existiam regras e o tempo era diferente, era algo mais aberto, mais vale
tudo mesmo. Isso não favorecia por completo, mas já tinha um juiz, já tinha uma
busca em torno do esporte, eram confrontos de artes marciais que mesmo não
sendo profissionais, já existia algo que depois viria a moldar o que vemos nos dias
de hoje. Então existia sim, uma camada da sociedade que torcia o nariz, como tem
até hoje, onde algumas pessoas ainda acham que não pode ser considerado
esporte. Mas eles tinham sim um público e por serem diferenciados, eles tinham
uma grande visibilidade. O Carlson era um cara muito famoso, o João Alberto
Barreto também. Tem um caso clássico do Carlson; ele estava em um restaurante
e o ex-presidente da República João Figueiredo estava no mesmo local e ao
avistá-lo, foi ao seu encontro e disse que para poucos homens ele levantava e
estendia a mão, mas o Carlson merecia toda a admiração, pelo grande guerreiro
que foi em suas lutas. Só para ter uma ideia de como eles eram populares e tinham
o respeito. Preconceito existia e existe até hoje, mesmo sendo bem menor. A
questão é que o ponto a ser destacado é outro, o lado negativo era supervalorizado
e distorcido. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

Em 1997, o Pentagon Combat - evento de Vale Tudo realizado no Tijuca Tênis Clube –
ficaria marcado na história das artes marciais. O SporTV fez um acordo com os representantes do
evento, para gravá-lo e exibi-lo uma semana depois. “Pela primeira vez, num confronto oficial,
um membro da família Gracie contra um dos líderes da Luta Livre: Renzo versus Eugênio
Tadeu” lembra Fellipe Awi. A troca de provocações, que era intensa, fez com que o combate
começasse quente desde o início. O duelo era equilibrado, Renzo começou melhor, mas talvez
por cansaço, viu Eugênio tomar controle da luta no segundo round. Do lado de fora, os
representantes de ambas as artes, se penduravam na grade, orientando os lutadores e claro,
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discutindo entre si. “Por volta de 20h30, com quase 15 minutos de luta, enquanto Renzo estava
deitado e Eugênio em pé, a luz do ginásio foi se apagando lentamente. A luta foi interrompida, e
cada lutador foi para o seu lado descansar” (AWI, 2012, p.152). Nesse exato momento de
interrupção, um integrante da Luta Livre aproveitou para desferir um soco em Renzo, por cima da
grade que os separavam. A ação foi o ponto de partida para uma guerra anunciada. A confusão
estava instaurada, cadeiras de plástico começaram a voar, muita pancadaria, e a Polícia Militar
teve muito trabalho para conter o tumulto.

As imagens da pancadaria rodaram o mundo. O canal americano de notícias CNN


fez uma reportagem sobre a confusão, destacando que ela foi consequência da
rivalidade entre as gangues de lutadores. No Brasil, os jornais e as TV´s
questionaram a legalidade do Pentagon Combat e trataram o caso como o
desfecho natural de décadas de impunidade contra os brigões. Deputados e
vereadores se manifestaram. Lutadores foram comparados a criminosos. Dois dias
depois do evento, o então prefeito do Rio de Janeiro Luiz Paulo Conde anunciou o
fim de torneios de Vale Tudo na cidade, 35 anos depois da proibição provocada
pelo programa Heróis do Ringue. O governador, Marcello Alencar, por sua vez,
baixou um decreto tornando obrigatória a autorização prévia da Secretaria de
Segurança Pública para eventos de luta, mas disse que não poderia proibi-los.
‘Esses eventos são disputados em ambientes fechados, e não podemos intervir
como na ditadura’, afirmou ao jornal O Globo do dia 30 de setembro. A Secretaria
de Segurança Pública prometeu reforçar a fiscalização nas academias. (AWI,
Fellipe. 2012, p.152)

A proibição do Vale Tudo não virou lei, mas na prática, tudo indicava que sim. Uma vez
envolvido em uma confusão, o lutador poderia ficar proibido de treinar em sua academia por até
180 dias e, se fosse reincidente, poderia ser banido do esporte. O vexame que acontecera no
Pentagon Combat fez com que os patrocinadores relutassem em apoiar esse tipo de evento,
ninguém queria relacionar sua marca ao - que os meios de comunicação classificavam -
vandalismo. Só os eventos profissionais poderiam trazer de volta a paz que o esporte tanto
precisava. Mas naquele momento, com a interrupção dos torneios e uma aparente involução, os
lutadores brasileiros teriam que sair do país para adentrarem na era do profissionalismo.

As confusões não eram poucas e sempre existiam ressalvas contra o esporte. A saúde dos
atletas também sempre foi tema de debate. Hoje, o Boxe e o MMA se assemelham em questão de
segurança. O maior risco nos dois esportes são os traumas no cérebro e crânio. O MMA é
considerado menos lesivo nesse aspecto, pois sua luva é bem mais leve. Mesmo com os
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ferimentos mais sangrentos provenientes do MMA, com a luva de Boxe sendo bem mais pesada e
o tempo de luta durando, em média, três vezes mais, o impacto tende a ser muito maior. Um
exemplo é o boxeador Muhammad Ali, para muitos o maior da história do esporte, que conviveu
por anos com o mal de Parkinson, devido aos inúmeros golpes proferidos em sua cabeça.
Infelizmente o ídolo acabou falecendo devido a problemas respiratórios (2016). “Frente ao que já
vi, o MMA hoje está uma Disneylândia, mas ainda é um esporte que comporta um risco
calculado. As maiores ameaças são os traumas de crânio e de coluna cervical”, afirma o médico
da Confederação Brasileira de Lutas Associadas, José Alfredo Padilha (AWI, 2012, p.302). O
risco do MMA é semelhante ao de outros esportes, como Rúgbi e Futebol Americano. A grande
diferença talvez seja que os rostos de seus atletas não saem tão desfigurados.

Roberto Leitão, em entrevista ao autor, configura o esporte como qualquer um, apontando
a falta de compreensão dos demais. “No começo existia uma grande resistência, achavam muito
violento, principalmente pela quantidade de sangue. Como existia pouco conhecimento técnico,
essa tese seguia adiante”, lembra o mestre. Para ele, isso se trata de um exagero. “Tem que
entender que o sangue é um vetor de espanto que as pessoas tem, mas na verdade aquilo não é
nada. É normal. Até sem querer nos machucamos, não tem nada demais nisso”, afirma.

4.2. Batendo e apanhando para crescer

Hoje o MMA vive a era do profissionalismo, que indica a certeza da evolução do esporte.
“A organização que temos hoje impressiona. Antigamente era tudo improviso, hoje em dia é tudo
planejado”, afirma Roberto Leitão em entrevista ao autor. Carlão Barreto (Entrevista ao autor,
2016) concorda com o mestre e acrescenta: “Também evoluiu a questão atlética. Os lutadores são
mais atletas, o conhecimento do corpo e da preparação física é essencial para o esporte
profissional”. Para Roberto Leitão, isso exemplifica o termo profissão. “Você tem os melhores
preparadores, fisioterapeutas, técnicos de cada modalidade, nutrição. Antigamente não tínhamos
nem lugar pra treinar direito. Hoje o lutador pode se preparar melhor e, consequentemente, viver
do esporte”, afirma (Idem).

O entendimento da luta por parte do atleta é fundamental, inclui-se nessa questão partes
técnicas, físicas e psicológicas. Desse princípio, começa a existir uma nova geração de lutadores,
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segundo Carlão Barreto: os estudiosos. “Sabem que não é só chegar à academia e treinar, eles
estudam os adversário para saber como lutam. Conversam com os treinadores para aprimorarem
todos os aspectos do seu jogo”. Na hora da luta, o atleta é orientado pela sua comissão, mas quem
está dentro do combate é ele. Pode receber instruções, mas é ele quem vai executá-las. Para isso,
deve estar preparado. “O lutador precisa saber as fraquezas do oponente, ele precisa estudar. A
equipe monta o plano A, mas o plano B é com ele, que necessita ter a percepção do que está
acontecendo dentro do octógono. O cara que não entender isso vai ficar para trás”, afirma Carlão.

A nova era do esporte está consolidada, mas isso não retira a possibilidade de melhorias
em alguns aspectos. A evolução também se ampara na correção de alguns pontos que serão
questionados pelos ex-lutadores e mestres. Para João Alberto, as mudanças sempre são
necessárias, tanto nos aspectos da luta, quanto nas regras e conceitos que regem o esporte.

Você tem que olhar pra frente e buscar novas coisas para inovar. O diferente é que
causa consequências. O conhecimento ele perdura dentro de uma cultura, até
determinado ponto, depois ele tem necessidade de mudança. Mas as pessoas
resistem às mudanças, não conseguem ver o óbvio. O Steve Jobs, por exemplo,
era a favor da entropia. Mas você tem que saber criar essa desordem, precisa ter
uma visão ampla. Eu tinha uma ordem, representante do Jiu-Jitsu, representante
do Hélio. Mas precisamos sair da ordem para enxergar uma coisa que não
enxergávamos antes. (João Alberto Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

“No aspecto da luta, se todo mundo souber tudo e ninguém criar nada, fica previsível.
Precisa sempre inovar, mas é um processo natural, não se pode forçar”, afirma Roberto Leitão
(Entrevista ao autor, 2016). O mestre João Alberto vai além e cita um exemplo para sua tese.

Se você não desenvolve um comportamento reflexivo sobre o que faz, você cai na
mesmice, não consegue sair da ordem. O Hélio (Gracie) chegou a um momento
que ele parou. Os filhos que deveriam desenvolver reflexões continuaram na
mesmice, na ordem que o Hélio deixou. Isso não é saudável. (João Alberto
Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

“Cresce o sucesso, cresce a demanda de eventos, naturalmente, crescem também os


treinamentos massificados, improvisados, nem sempre com sólida fundamentação técnica.”
(BARRETO, 2013, p.73). A crítica de João Alberto Barreto levanta um lado negativo de o
esporte estar em evidência. “É flagrante, até para o expectador leigo, a quantidade de erros
primários na execução de ‘fundamentos’ básicos”, reprime (Idem). A falta de uma técnica mais
apurada, segundo o próprio, está levando o MMA para um caminho de violência exacerbada, que
39

já deveria ter ficado para trás. Como mestre e um dos principais nomes da história do Jiu-Jítsu, as
observações são exatamente na luta que acontece quando os atletas estão no chão. Segundo ele, o
ground and pound (processo de acertar golpes ao chão) fere os princípios da moral esportiva.

Em pé eu acho que vale tudo, mas vamos conceituar as coisas em termos


esportivos. Por que em pé vale tudo? Nessa condição você está em movimento,
existe uma dinâmica. Se você estiver em movimento, você tem condições de
juntar e recuar, na dinâmica das distâncias. Você pode bloquear o processo
traumático. Agora a luta de chão é uma luta parada. Um lutador em cima do outro,
proferindo socos sem parar, punindo o adversário. O que acontece dentro de uma
visão educativa? Você leva para a juventude que tudo isso é normal, mas não é. A
minha defesa é que o lutador esteja ali pra lutar tecnicamente e não para machucar
um ao outro. Já estou falando como psicólogo também, mas é a realidade, eu sou
contra a “machucação”. O americano quer o extravagante, uma espécie de
expressionismo esportivo, realmente chocar. O ser humano é levado por isso, ele
quer ver isso também. O homem tem que ser humanizado e o esporte é uma forma
de humanizar o homem.

“Eu não discordo plenamente da ideia do mestre, mas também não concordo plenamente”,
afirma Carlão. O comentarista entende que a ferramenta do ground and pound é necessária, mas
reconhece que possam ser feito alguns ajustes.

Você usar a violência pela violência, não é bom para o esporte. O objetivo é
nocautear ou finalizar. A técnica superando a força física. Só que hoje em dia as
regras fazem com que os artifícios da “machucação”, como diz o mestre João
Alberto, sejam utilizados para terminar com a luta. Quando você coloca muitas
regras em um esporte, você o faz mais aceitável, só que mais voltado para a
competição. O ground and pound não deve ser usado como fim e sim como como
meio. Abrir espaços para você finalizar, isso eu concordo. Ele deve ser usado
como um processo para atingir o ápice, que é a finalização. Por exemplo, no
Boxe, você usa o jab (soco direto, estendendo o braço por completo) para
encontrar a distância. Existem golpes preparatórios que vão minando o adversário,
como aqueles acertados no corpo, que vão destruindo a resistência, para que você
consiga nocauteá-lo. Eu entendo que uma visão mais purista, vai achar que o
ground and pound agride um pouco, mas faz parte do esporte. (Carlão Barreto.
Entrevista ao autor, 2016)

Para Carlão Barreto, as regras também asseguram esse tipo de atuação, tão criticada por
João Alberto.

É uma maneira que o atleta encontra para vencer seu oponente também. No MMA
especificamente, você conseguir derrubar o seu oponente vale pontos. Mas no
chão, se você não conseguir êxito na finalização, não vale pontuação ficar “apenas
40

tentando”. Então, o ground and pound, também é uma forma para que o lutador
possa pontuar. Cada golpe certeiro que ele der, vai valer alguma coisa na
contagem dos árbitros. Faltam em alguns lutadores o recurso técnico para
finalizar, isso eu concordo. Mas golpear o adversário marca pontos e isso também
garante a vitória. Finalizo reafirmando que esse instrumento deve ser usado como
meio para finalização, para você buscar o caminho, esse é o conceito real. Mas
isso é uma questão de ajuste, o esporte é jovem, principalmente na formação do
atleta. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

Carlão Barreto acena para outro ponto que também envolve a tal machucação, e que
poderia evitar maiores problemas citado por João Alberto. Para ele, o árbitro do combate precisa
estar mais preparado. Mas não só ele, os lutadores também precisam entender qual o seu papel
nessa relação entre as funções exercidas na hora do combate.

Eu acho que faltam mais fóruns sobre arbitragem para os atletas entenderem que o
comportamento corporal deles na luta é fundamental. Eu trabalhei como árbitro
durante anos e quando via que um lutador estava apanhando, eu falava para ele se
proteger. Repetia por mais duas vezes o comando, se ele não respondesse a isso,
eu finalizava o combate. Eu até fui criticado algumas vezes, por deixar o lutador
apanhar demais, mas eu sempre deixava um pouco mais para ver se o lutador
apresentava poder de reação. Então o lutador também pode se poupar, indicando
isso para o árbitro, que por sua vez, deve evitar o prolongamento do processo
traumático, preservando a integridade física do atleta. É uma linha tênue que
requer maior atenção de ambas as partes. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor,
2016)
A questão de esticar um pouco mais a luta, esperando por uma reação do atleta, também
faz parte dos questionamentos de João Alberto Barreto, pois reforçariam a violência exacerbada.
Carlão Barreto, que admitiu ter sido alvo de críticas por atuar dessa forma em algumas vezes,
explicou que sempre esperava mais dos atletas por ter sido um lutador muito resistente. O
pensamento de que os lutadores deveriam querer sempre mais, segundo ele, está se perdendo e
fazendo com que a essência da luta comece a se esvair. “No passado, os lutadores eram mais
primitivos, mais instintivos, a preparação era mais rudimentar, mas em compensação eles tinham
mais alma e paixão”, aponta. A principal análise do comentarista sobre o atual momento do
MMA reflete no brio, que outrora a razão de tudo, pode perder o seu significado.

Antigamente era defesa da honra acima de tudo, defendendo o seu nome, sua
Academia e a sua Arte. Você ia até o final, tinha esse gás. Hoje por ser mais
profissional, às vezes com uma grana garantida, os caras param antes, desistem
mesmo. A situação está ruim e param, às vezes não tem aquela vontade adicional,
ou mesmo por não serem lutadores de alma. É polêmico o que vou dizer, mas
41

muitos migraram para o MMA pelo status e não pela paixão. (Carlão Barreto.
Entrevista ao autor, 2016.)

Para Carlão Barreto – que rechaça a alcunha de saudosista – o passado tem muito a
ensinar o presente. Principalmente quando o dinheiro é o principal alvo. Segundo ele, é aí que as
coisas começam a se perder.

Se eu fosse treinador, eu iria querer saber do meu aluno qual era a motivação dele
para lutar. Se fosse dinheiro, ele teria que procurar outra academia. Se ele falasse
que era marcar o nome dele na história, esse cara teria a minha atenção especial.
Ele sabe que se no final da jornada ele não conseguir o cinturão - poucos vão
conquistar - o nome dele vai estar escrito, pois ele deu o seu máximo sempre. Se
ele não chegou lá, é porque não era pra acontecer, existia um cara mais preparado
ou mais talentoso que ele. Mas no final do dia ele vai ter a missão cumprida, o
mais importante é você entrar e sair do octógono de cabeça erguida. Perdi? Vou
treinar mais. Ganhei? Vou melhorar. Tem que ser assim. Tem que ser algo acima
do cinturão de campeão. É o legado. O atleta tem que amar o que ele faz e buscar
marcar o nome dele na história, não só um título, mas alguém que mostrou ser
diferente. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

Rodrigo “Minotauro” concorda que o os lutadores do presente precisam espelhar-se no


passado, principalmente os mais jovens. Segundo ele, tem uma “garotada imediatista” que pensa
saber tudo, e muitas vezes refutam os ensinamentos dos mais experientes, que construíram a
história do esporte.

Muitos lutadores pensam mais em si, que o mérito é todo dele. Os jovens então,
nem se fala. Você vai ensinar um golpe e eles já cortam dizendo que sabem fazer
aquilo. Eles querem fazer tudo, já ser bom em tudo e estar logo no UFC, mas não
funciona assim. Em minha opinião, ele tem que ir com calma, aprendendo as
modalidades, ir crescendo, sem pressa de ser “O cara”. Essa geração já acha que
sabe tudo, você para, investe o seu tempo para ensiná-los e quando vai ver, em
cinco minutos eles já estão olhando para o outro lado. (Antônio Rodrigo
Nogueira. Entrevista ao autor, 2016)

Para esse tipo de lutador mais jovem e com essa postura, Minotauro sabe o que vai
acontecer. “Eles só vão aprender no octógono, vão aprender na marra. Só chegando lá para
entender que não funciona assim. Não pode achar que vai logo encarar os melhores, precisa
começar com os caras mais fracos, senão vai apanhar muito da vida”, completa. Rodrigo acredita
que uma transformação na estrutura do MMA, poderia ajudar na formação desses atletas.

O esporte precisa de uma série amadora organizada. O lutador precisa ser


preparado para não entrar no profissional de qualquer jeito. Talvez no amador a
42

gente consiga resgatar as pessoas habilidosas, mas que por alguma dificuldade,
foram perdidas. O evento profissional custa muito, o amador dá pra envolver mais
pessoas com pouco dinheiro, iriamos revelar muito mais talentos. Muita gente se
perde pelo caminho por falta de oportunidade. Muitos moram longe das
academias, é outro grande problema. Às vezes o cara “mais ou menos” foi para a
equipe certa e soube se direcionar. Nós precisamos direcionar todos. Feito isso, é
com cada um deles escrever o próprio destino. (Antônio Rodrigo Nogueira.
Entrevista ao autor, 2016)

Carlão Barreto concorda com o ex-lutador, também acreditando que no MMA todo mundo quer
começar no auge. Sendo assim, acabam pulando algumas etapas de preparação e conhecimento
sobre o esporte e seus negócios. Para ele, o esporte começou de forma inversa.

É curioso, mas no MMA, o profissional desenvolveu antes e o amador depois. O


futuro do esporte é preparar o atleta desde novo, mas nunca se esquecendo do
principal: o seu talento. Mas isso ainda é um processo, ainda não temos uma
formação ideal dos atletas. Temos caras bons em outras modalidades que migram
para o MMA e precisam adquirir conhecimento muito rápido. É preciso fazer uma
transição mais saudável e mais tranquila, começando mais cedo. A séria amadora
é essencial, temos que trabalhar as divisões de base. Você trabalhar com os
lutadores para que eles formem uma geração que daqui a dez anos, seja muito
melhor da que essa atual. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

“A vida nos ensina que nós temos que renovar tudo que está parado”, diz João Alberto
Barreto (Entrevista ao autor, 2016). Sempre buscando um novo expoente no esporte que ajudou a
criar, o mestre espera por um futuro mais belo que o presente, por mais atraente que esse seja.
“Enquanto eu estiver aqui pode ser que não aconteça, mas seria lindo lá de cima eu observar as
melhorias feitas pelos mais jovens. Quero olhar o nosso sistema se desenvolver, protegendo os
nossos lutadores. Vamos fazer discussões, vamos debater”, finaliza.
43

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observou-se nesse estudo que as modalidades de combate existem há milhares de anos, e


cada estilo tem vertentes diferentes sobre a sua origem, o que impossibilita um detalhamento
completamente confiável sobre o surgimento de cada arte marcial, que posteriormente iriam
integrar o MMA. Pode-se compreender a importância da família Gracie na história do esporte.
Mesmo quando especialistas discordam do clã ter criado tal movimento, concordam sobre a
estima que tiveram na formação do Jiu-Jítsu brasileiro. A partir do aprendizado passado entre
irmãos – e depois de pai para filho – a família foi responsável por se utilizar dos desafios e fazer
disso uma competição rendável. Sabendo trabalhar de forma ímpar o seu produto e construindo
uma grande rivalidade com outras modalidades, assim, destacando-se dos demais.

Dos nomes que não pertenciam à família, nota-se a importância do lutador Marco Ruas,
que por sua vez, conseguiu demonstrar a integração entre as lutas em um evento do UFC. Após
Ruas, o debate sobre qual seria a melhor luta cessou e passou-se a discutir quem era o melhor
lutador. O nome artes marciais mistas viria depois. Pode-se dizer também que a marca hoje
administrada por Dana White e os irmãos Fertitta, foi diretamente responsável pelo crescimento
do esporte. Observam-se as mudanças nas regras, o pagamento aos atletas, as equipes médicas, os
patrocinadores, a organização exemplar e as transmissões – que fazem das lutas um espetáculo
além do esporte.

Mesmo com o desenvolvimento alcançado, percebeu-se no diálogo entre os especialistas,


que o MMA ainda tem pontos a serem melhorados. Quando João Alberto Barreto busca reprimir
alguns golpes pelo bem da moral esportiva, Carlão Barreto lhe questiona, apontando a
necessidade do estilo para a luta. Mas destacando a obrigação de uma melhora técnica dos atletas,
bem como uma preparação mais apurada para os árbitros do combate. Observou-se a necessidade
de uma classe amadora mais organizada, que possa buscar novos talentos e lapidá-los sem pular
etapa alguma. Entendeu-se que apesar do progresso do atleta em termos de preparação física,
pode lhe faltar a paixão – que era característica certa antigamente. Assim como o Vale Tudo se
tornou MMA para não se perder na adaptação que um esporte requer, o presente também pode
olhar para o passado, a fim de abrilhantar o futuro.
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6 REFERÊNCIAS

AWI, Fellipe. Filho teu não foge à luta: Como os lutadores brasileiros transformaram o MMA
em um fenômeno mundial. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.
BARRETO, Carlos Eduardo. Entrevista ao autor, 20 de jan. 2016.
BARRETO, João Alberto. Do Valetudo brasileiro ao “Mixed Martial Arts”. Rio de Janeiro:
Tatame, 2013.
BARRETO, João Alberto. Entrevista ao autor, 5 de fev. 2016.
BELFORT, Vitor. Vitor Belfort: Lições de garra, fé e sucesso. Rio de Janeiro: Thomas Nelson
Brasil, 2012.
DIMIC, Mickey e MILLER, Cristopher. Artes Marciais Mistas: Os segredos do MMA. São
Paulo: Madras, 2011.
GRACIE, Reila. Carlos Gracie: O criador de uma dinastia. Rio de Janeiro: Record, 2008.
LEITÃO, Roberto. Entrevista ao autor, 3 de fev. 2016.

LUTA LIVRE SUBMISSION. A luta livre moderna veio do Pankration. Disponível em:
<http://lutalivresubmission.com.br/pankration.htm> Acesso em 15 de maio. 2016.

MAZZONI, A. V. e OLIVEIRA JUNIOR, J. L. Lutas: da pré-história à pós-modernidade. São


Paulo: GEPEF – USP , 2011.

NOGUEIRA, Antônio Rodrigo. Entrevista ao autor, 29 de jan. 2016.

REDE GLOBO. Criadas para a autodefesa, as artes marciais têm origem na pré-história.
Disponível em: <http://redeglobo.globo.com/globociencia/noticia/2012/09/criadas-para-
autodefesa-artes-marciais-tem-origem-na-pre-historia.html> Acesso em 15 de maio. 2016.

SATO, Edson. Bodhidharma e o Templo Shaolin. Disponível em:


<http://www.budokan.com.br/historia/bodhidharma.htm> Acesso em 15 de maio. 2016.

SPORTV. 'Rivais': Wallid e Eugênio Tadeu recordam 'guerra' entre eles em 1991. Disponível em:
<http://sportv.globo.com/site/programas/sensei-sportv/noticia/2014/04/rivais-wallid-e-eugenio-
tadeu-recordam-guerra-entre-eles-em-1991.html> Acesso em 15 de maio. 2016.

SUPERESPORTES. UFC entra no ranking do top 10 das marcas esportivas mais valiosas,
segundo a Forbes. Disponível em:
<http://www.superesportes.com.br/app/1,733/2014/10/09/noticia_mma,294947/ufc-entra-no-
45

ranking-do-top-10-das-marcas-esportivas-mais-valiosas-segundo-a-forbes.shtml> Acesso em 15
de maio. 2016.

TARDIN, Marcel. Lenda do Pride, Ricardo Arona se recupera de lesão e alfineta astros do
UFC. Disponível em: <http://blogs.odia.ig.com.br/mma/2013/11/04/lenda-do-pride-ricardo-
arona-se-recupera-de-lesao-e-alfineta-astros-do-ufc/> Acesso em 15 de maio. 2016.
UOL ESPORTE. UFC Rio faz Rede TV! bater a Globo em audiência na noite de sábado.
Disponível em: <http://uolesportevetv.blogosfera.uol.com.br/2011/08/28/ufc-rio-faz-rede-tv-
bater-a-globo-em-audiencia-na-noite-de-sabado/> Acesso em 15 de maio. 2016.
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7 ANEXOS

7.1 Anexo A

“Disputado no Japão a partir de 1997 e organizado por japoneses, o Pride Fighting


Championship foi o primeiro evento de MMA a encontrar o equilibro certo entre entretenimento,
negócio e esporte de alta performance.” (AWI, 2012, p.180). O PRIDE fazia um show de tirar o
fôlego, não só pelas lutas empolgantes, mas também com o ambiente, que era um espetáculo à
parte. Muitas luzes diferentes, apresentações teatrais e musicais, além de espetáculos com fogo.
“Era uma demonstração de que talvez nenhum outro povo soubesse tão bem explorar o que havia
de mais moderno sem menosprezar a tradição milenar. Uma ode ao Japão antigo e
contemporâneo.” (Idem). O sucesso do evento passa pela compreensão do papel do lutador na
sociedade japonesa. Em entrevista ao blog MMA na Rede (http://blogs.odia.ig.com.br/mma/), o
ex-lutador Ricardo Arona se lembra da essência do país, que dava sentido ao torneio. “Era algo
mais espiritual, as mulheres tocavam na gente e se emocionavam, os homens entravam em frenesi
[...] o povo se identificava muito com os lutadores por enxergar neles a reencarnação dos
samurais”. Os samurais no Japão antigo eram guerreiros nobres, respeitados pelos plebeus e
também por reis. “O país foi construído em cima disso, então existe um respeito imenso”, lembra
Arona (TARDIN, 2013, online). O lutador acredita que essa talvez fosse uma das maiores
diferenças para o UFC. “Era uma outra visão do esporte. Ganhando ou perdendo, mas dando tudo
de si, você também era um campeão, então nunca ouvi vaias no PRIDE.”, lembra o atleta. “O
UFC tem esse lado comercial muito forte, modificou algumas regras para tentar aperfeiçoar o
esporte, mas as pessoas veem aquilo como uma festa.”, afirma (Idem).

Ao citar o espírito dos samurais japoneses, ninguém melhor para personificá-lo que
Antônio Rodrigo Nogueira, o Minotauro. Um dos maiores nomes do MMA e claro, do PRIDE,
onde foi campeão. Na sua terceira luta pelo evento – após vencer Gary Goodridge e Mark
Coleman – disputou o recém criado cinturão dos pesos pesados, contra o norte-americano Heath
Herring. O brasileiro saiu vitorioso e se tornou o primeiro campeão da categoria. No entanto, o
título não seria o seu momento mais marcante no PRIDE. Os organizadores não faziam contrato
de exclusividade com os lutadores, mas dificilmente alguém participava de outro torneio, pois já
recebiam um bom dinheiro por suas lutas. Para a surpresa de muitos, Minotauro participou de um
evento estreante no mercado, UFO Legend, que conseguira dinheiro para bancá-lo. A insatisfação
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dos donos do PRIDE era visível, e uma punição deveria ser imposta. Bob Sapp era o nome da
punição. Um homem que pesava 171 quilos, além de 1,96m de altura. “Bob Sapp tinha uma força
tão absurda que merecia uma categoria acima dos pesos pesados. Uma revista japonesa comparou
suas medidas às de um gorila, e o animal saiu perdendo” (AWI, 2012, p.181). A luta tinha que
acontecer sob pena de perda do cinturão, então não houve alternativas para Minotauro. Quando o
duelo começou, Sapp pegou o brasileiro e o virou de cabeça para baixo, para arremessá-lo em
seguida ao chão, em um golpe hoje proibido, conhecido como “bate estaca”. O brasileiro seguiu
firme, como se nada tivesse acontecido.

Quando o americano caía sobre ele, a diferença de tamanho ficava ainda mais
evidente. Sapp cobria todo o seu corpo. Era como um martelo socando a cabeça
de um prego. Minotauro mostrava pela primeira vez uma capacidade sobre
humana de apanhar com a serenidade de um monge. A cada vez que ele se
levantava, os japoneses iam à loucura, num reconhecimento da resistência
singular daquele brasileiro. (AWI, 2012, p.182)

Com cinco minutos passados do segundo round, Bob Sapp se distraiu, e Minotauro
conseguiu agarrar seu braço, para finalizar com a técnica perfeita. Foi um desfecho magnífico. O
brasileiro estava exausto e muito machucado, mal conseguia abrir o olho, tamanha foi a potência
dos golpes do gigante norte-americano. Mas isso tudo só aumentou o caráter épico do combate.
“O pessoal do PRIDE tinha certeza de que Minotauro iria perder. Era uma forma de puni-lo por
ter lutado em outro evento e, ao mesmo tempo, baixar um pouco a bolsa dele. Mas o tiro saiu pela
culatra”, conta Bebeo Duarte, integrante da equipe Brazilian Top Team, mesma de Minotauro
(AWI, 2012, p.182). Em entrevista ao autor, o “héroi do PRIDE” se lembra do seu grande feito.
“O Japão é um país de superação. Tiveram terremotos, guerras, e sempre se reergueram. Então
eles se identificaram muito, além do menor ganhar do maior, a questão da virada foi muito
impactante”.

Além de Minotauro, o evento tinha outros ídolos, cada um por um motivo peculiar. Um
deles era o japonês Kazushi Sakuraba. Lutando sempre em casa, o lutador nipônico ganhou fama
por derrotar brasileiros especializados no Jiu-Jítsu, mais especificamente da família Gracie. Ele
recebeu o apelido de The Gracie Hunter (O caçador de Gracie).

Kazushi Sakuraba empatou com Allan Góes, da Carlson Team, e nas duas edições
seguintes, venceu Vitor Belfort e Ebenezer Fontes. O primeiro da família Gracie
mesmo que cruzou seu caminho foi Royler, considerado um dos mais técnicos da
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família. Sakuraba encaixou uma chave de Kimura e venceu a luta. O japonês


ainda venceu Royce, Renzo e Ryan, todos da família Gracie. Seria necessário
outro brasileiro, para dar fim ao seu reinado. (AWI, 2012, p.191)

O escolhido para destronar Sakuraba foi o brasileiro Wanderlei Silva. Esse por sua vez,
ídolo pela intensidade como lutava. Não à toa, tinha o apelido de “Cachorro Louco”. No PRIDE
de número 13, o japonês enfrentou Wanderlei imaginando que seria mais uma vitória contra
brasileiros para por em seu cartel, mas o membro da Chute Boxe não era um Gracie, e muito
menos seria caçado por um oriental.

Em menos de dois minutos, o brasileiro massacrou com uma variação de chutes,


socos e joelhadas que fizeram o adversário sair do ringue direto para o hospital,
com suspeita de fratura no crânio. Sakuraba ainda lutaria mais dez vezes contra
brasileiros, com oito derrotas. Nessas que perdeu, se incluem mais dois massacres
de Wanderlei Silva e uma revanche contra Royce Gracie. (AWI, 2012, p.194)

O PRIDE era adorado por todos, um evento em alta que acabava derrotando o UFC – que
sofria com os problemas de regulamentação nos Estados Unidos. No início dos anos 2000, o
evento japonês já era transmitido para quarenta países. O problema foi que o evento
relativamente não durou muito. No início de 2006, os rumores que ligavam o PRIDE a máfia
japonesa Yakuza ganhariam status de denúncia.

Agora havia um delator que ousava se expor (Kawamata). E o mais grave: nas
palavras dele, o presidente do PRIDE era apenas um testa de ferro da máfia.
Sakakiraba era um dos rostos mais conhecidos do MMA japonês. A cabeça do
PRIDE foi atingida. Para fazer o mesmo com as pernas e derrubá-lo de vez, só
faltava acertar a TV Fuji, peça fundamental na sua popularização. Ao contrário do
UFC, o evento japonês era exibido na TV aberta pela maior emissora do país.
Depois da entrevista de Kawamata, uma pergunta ficou: será que uma emissora
com a credibilidade da Fuji deveria continuar apoiando um evento cujo verdadeiro
dono era a Yakuza? A pressão de políticos e da imprensa tornou-se insuportável.
Até que em junho de 2006 a TV Fuji anunciou formalmente que estava fora do
negócio. Sem a exposição em horário nobre, desencadeou-se uma reação de
cadeia fatal para o PRIDE. Todos os principais patrocinadores romperam seus
contratos. Os hotéis onde os lutadores e as equipes se hospedavam começaram a
se recusar a recebê-los. Fornecedores só aceitavam negociar com pagamento
adiantado. (AWI, 2012, p.221)

Dana tirou o brasileiro Royce Gracie dos japoneses um mês antes da explosão do
escândalo. Outra perda emblemática do evento foi o ídolo de casa, Sakuraba. O japonês
abandonou o barco e assinou um contrato com um evento concorrente, o Heroes. Sakakiraba
negava até o fim o seu envolvimento com a máfia, mas sabia que naquele momento de
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fragilidade, a saída da TV Fuji significava o fim do evento. O UFC, mais organizado com os
novos donos, tomavam o espaço do PRIDE e o desfecho não poderia ser outro.

Depois de 11 meses de negociação sigilosa, em 27 de março de 2007, Sakakiraba


anunciou a venda do evento. Como já se esperava, os irmãos Fertitta compraram,
pelo valor anunciado de US$70 milhões. “Pouco antes disso, o Sakakiraba foi até
Curitiba apenas para avisar que estava vendendo o PRIDE para os americanos”,
lembra Rudimar Fedrigo, da Chute Boxe. “Foi como se eu tivesse dado a minha
filha em casamento”, comparou o empresário japonês na época. (AWI, 2012,
p.248)

No início, Dana queria esperar o PRIDE falir por completo para apenas negociar com os
lutadores que estariam desempregados. Era uma teoria bem simples e estava prestes a acontecer.
A compra do evento só aconteceu de fato, pois um dos sócios, Lorenzo, queria fazer um desafio
com os campeões do UFC lutando contra os campeões do PRIDE. Certamente iria chamar a
atenção do mundo inteiro, colocando os melhores lutadores dos dois eventos para se enfrentarem.
O imbróglio ficou por conta das TVs japonesas, que não queriam ser comandadas por uma
empresa norte-americana.

A Zuffa, por sua vez, não via sentido em levar o PRIDE para os Estados Unidos.
Foi decidido, então, o congelamento do PRIDE. A marca continua a existir, mas
não houve mais eventos desde então. Em 4 de outubro de 2007, por telefone, a
direção da Zuffa fechou o escritório do PRIDE no Japão e demitiu todos os
funcionários. Sobraram apenas os lutadores. À exceção de Fedor, todos os atletas
de primeira linha assinaram com o UFC. A unificação oficial dos títulos nunca
aconteceu, mas houve extraordinários tira-teimas entre lendas do UFC e do
PRIDE. Maurício Shogun x Forrest Griffin, Chuck Lidell x Wanderlei Silva,
Rodrigo Minotauro x Tim Sylvia. Anderson Silva x Dan Henderson. Minotauro o
primeiro a ser campeão nos dois eventos. (AWI, 2012, p.249)

Os brasileiros continuaram a lutar e ganharam cada vez mais espaço nos Estados Unidos.
Hoje, são bem mais conhecidos do que na época do PRIDE. Talvez o grande baque tenha sido em
relação às academias. O modelo antigo do evento japonês permitia que a BTT e a Chute Boxe
comandassem a escolha das lutas. Algo que seria impossível com Dana White. “De certa forma, a
equipe nos dava certo controle na formação dos cards. Se você tem dois, três campeões, imagine
a sua força a negociar. Mas, quando está sozinho, é um cara contra uma instituição. Eles preferem
assim”, opina Bebeo Duarte (Idem). Hoje no UFC, existem inúmeras academias, mas nada
comparado à rivalidade que existiu entre os brasileiros no extinto PRIDE.
50

7.2. Anexo B

A rixa entre as modalidades sempre existiu no Vale Tudo. As mais acirradas eram do Jiu-
Jítsu x Luta Livre ou Muay Thai. “Sempre que as galeras das academias se encontravam, o clima
ficava pesado. Se houvesse qualquer faísca, uma explosão acontecia. Flamengo, Botafogo, Largo
do Machado e Catete eram áreas da Luta Livre, enquanto o Jiu-Jítsu imperava no Humaitá,
Leblon e em Ipanema” (AWI, 2012, p.77). O ex-lutador Minotauro, não gostava da postura de
alguns companheiros do esporte. “Aquela rivalidade começou a denegrir nossa imagem. Os caras
tinham uma atitude errada em brigar na rua. Cada um queria provar que era mais macho que o
outro. Isso não é postura de atleta. Até hoje o esporte paga por isso”, disse ele (AWI, 2012,
p.184). Vitor Belfort segue a mesma linha do compatriota. “Aquilo foi um erro muito grande.
Alguns indivíduos invadiam academia e brigavam na rua para provar que a arte dele era a
melhor”, relembra (AWI, 2012, p.167).

Mas foi exatamente um episódio regado com muita rivalidade que conduziu Carlão
Barreto definitivamente ao mundo da luta. Em 1995 o Maracanãzinho recebeu o Desafio
Internacional de Vale-Tudo Brasil Open. O evento tinha como objetivo encontrar um desafiante
para enfrentar Rickson Gracie, um dos nomes com mais destaque na família. “Coordenado por
João Alberto Barreto, o evento tinha pinta de superprodução. O grande favorito, naturalmente, era
o Jiu-jítsu, representado pelo faixa preta de Carlson, Amaury Bitetti” (AWI, 2012, p.130).
Amaury enfrentou o mestre Hulk na final, um guarda municipal especialista em capoeira. Com
17 segundos de luta, Bitetti foi nocauteado com um soco muito potente, o que deixou Carlão
muito abalado.

Foi o momento que eu decidi ser lutador de Vale Tudo. Eu nunca falei isso, mas
na verdade, foi em um momento ruim. Eu comecei os meus treinamentos com o
mestre João Alberto Barreto, era faixa marrom de Jiu-Jítsu e tinha acabado de ser
campeão mundial da modalidade. Então comecei a treinar com o Murilo
Bustamante, Zé Mário Sperry, Wallid Ismail e o próprio Amauri Bitetti, pois
começava um novo momento no Vale Tudo. O representante brasileiro no Jiu-
Jítsu naquele evento era o Amaury, ele lutou e era favorito, pegou uma luta
duríssima contra o forte James Adler e dominou o cara a luta inteira.
Teoricamente a luta mais fácil seria contra um capoeirista sem experiência em
confrontos, mas ele perdeu sendo nocauteado. Brincou e foi nocauteado pelo
mestre Hulk. Ali eu tirei várias lições, vi muitos lutadores rindo, principalmente
da Luta Livre, onde havia uma grande rivalidade naquela época. Hoje em dia não
51

existe mais essa animosidade, todo mundo se respeita e alguns até viraram
amigos, mas naquele momento eles riram muito. Aquilo me doeu muito, fiquei
com vontade de chorar e queria brigar com eles, só que eu ainda não tinha
condições técnicas para enfrentá-los. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor, 2016)

Aquele sentimento de dor e revolta fez com que Carlão focasse completamente no
esporte, para poder vingar seu grande amigo. A rivalidade estava muito acesa dentro de si.

Fiquei com um ódio muito grande. Aquilo me deu muita motivação para treinar,
me dedicar, nunca menosprezar meu adversário e lutar sempre de forma séria.
Aquele momento realmente me motivou a ser um lutador. Eu ainda estava
indeciso sobre o que queria, se iria para o jornalismo ou me dedicaria full-time ao
esporte. Aquela luta foi um divisor de águas para mim, vi um companheiro de
treino perder, senti demais aquela derrota. Vi um ginásio inteiro se calar, o que
também me marcou muito. Eu pude observar que o Jiu-Jítsu era uma coisa
diferente, a questão não era se a arte era melhor ou pior que outra luta, mas
simplesmente não era uma luta qualquer, era um estilo de vida. Foi um momento
de clareza na minha cabeça em relação ao meu futuro. (Carlão Barreto. Entrevista
ao autor, 2016)

O evento em questão, também ficou destacado pela falta de organização. Alguns lutadores
que vieram de fora nem receberam suas bolsas antecipadas como fora prometido, então não
queriam aparecer no ginásio. Algumas disputas foram canceladas e o público exigia o dinheiro de
volta, causando grande confusão. “O promotor do evento era um megalomaníaco. Botou os
lutadores no melhor hotel do Rio, mas não tinha como pagar ninguém. Quando eu vi aquela
loucura, já estava envolvido”, conta João Alberto (AWI, 2012, p.130). O problema só não foi
pior, pois um amigo de João Alberto se comprometeu em pagar as bolsas e alguns outros gastos
que já estavam previstos. Mas mesmo assim, o vexame não foi evitado por completo. A fim de
limpar o seu nome no mercado, que segundo o próprio, estava injustamente estava sujo, João
Alberto organizou com sócios japoneses outro evento. O Universal Vale-Tudo Fight
Championship foi disputado com etapas no Brasil e no Japão. “Pela primeira vez, os expoentes
nascidos da rivalidade entre Jiu-jítsu e Luta Livre poderiam mostrar sua força no exterior. Só que
agora, eles estariam do mesmo lado, representando o Brasil contra adversários estrangeiros”
(AWI, 2012, p.132).

Carlson Gracie surpreendeu muita gente quando selecionou Carlão Barreto para lutar. Na
época, ainda pouco conhecido e só tinha começado a treinar Jiu-Jítsu aos 18 anos. Servia mais
como auxílio para os lutadores mais experientes treinarem. Chegando ao hotel em Tóquio, no
local da luta, a turma do Jiu-Jítsu teve um encontro inesperado com o pessoal da Luta Livre. O
52

momento de tensão não durou muito, já que Carlson foi um cavalheiro quando avistou os rivais.
“Ele se antecipou e foi logo abraçando o Hugo Duarte. A partir daí, todo mundo se
cumprimentou cordialmente. Pela primeira vez o pessoal do Jiu-Jítsu e da Luta Livre se
encontrava como companheiros, e, por ironia, isso aconteceu do outro lado do mundo”, lembra
Carlão (AWI, 2012, p.132).

O Brasil venceu seis das oito lutas, mas a vitória mais emocionante e
surpreendente de todas foi a de Carlão. A imagem daquele negro gigantesco
entrando no ringue com uma tatuagem de Jesus Cristo no bíceps esquerdo, já tinha
deixado a torcida japonesa de boca aberta. Eles ficaram ainda mais
impressionados com o mata-leão no segundo round que fez Mikhail Ilyukhin bater
três vezes, desistindo. Cada lutador recebeu uma bolsa de US$5 mil, a melhor que
eles tinham recebido até então. Na saída do vestiário, Carlão ainda ganhou de um
apostador japonês um envelope fechado. Havia mais mil dólares lá dentro. Com o
bolso cheio, os lutadores voltaram para o hotel satisfeitos. Por algumas horas, eles
se sentiram mais brasileiros do que representantes de uma arte marcial. Era um
sopro do profissionalismo que chegaria mais cedo ou mais tarde. (AWI, 2012,
p.132)

Essa rivalidade entre o Jiu-Jítsu e a Luta Livre realmente foi gigantesca, mas talvez não
tão conhecida como a do Muay Thai. Até 2002, a Brazilian Top Team e a Chute Boxe só haviam
se confrontado apenas três vezes, e todas elas em território brasileiro. Só que um problema
causado no final de 2001, no PRIDE 15, mudaria completamente o rumo da concorrência entre as
duas equipes.

Misto de técnico e lutador, Zé Mário Sperry, da Brazilian Top Team, escolheu a


hora do café da manhã para contar a Rudimar Fedrigo, que treinaria naquela noite
o japonês Norihisa Yamamoto, adversário de Assuério Silva, da Chute Boxe, a
pedido da empresária da BBT no Japão, Motoko Ushida. Zé Mário não via
problema porque se tratava de uma sessão despretensiosa, apenas para fotos de
uma revista japonesa. Mesmo assim, não queria que o dono da Chute Boxe
soubesse por outros. De nada adiantou a precaução. Rudimar considerou uma
traição ver um brasileiro “treinando o inimigo” e, de tão transtornado, deu a
impressão de que voaria no pescoço do técnico da BTT. “O Zé daquele tamanho
poderia ter dado uns tapas no Rudimar, mas ele era um gentleman”, lembra
Minotauro. Rudimar voltou para a mesa e dividiu sua indignação com os lutadores
da equipe. Começou, então, uma troca de ofensas e palavrões em voz alta que
assustou os outros hóspedes. A maior animosidade era entre Wanderlei Silva e
Ricardo Arona, afastados por Anderson Silva e Minotauro respectivamente.
(AWI, 2012, p.204)

Não tinha mais como voltar atrás, o problema estava ali e não iria embora facilmente,
muito pelo contrário. Estava começando ali a história da maior rivalidade do MMA. Os líderes
das duas academias autorizaram os promotores do PRIDE a casarem as lutas entre os dois grupos.
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Houve troca de farpas e bastante provocação. Rudimar dizia que a BTT tinha inveja da projeção
que a Chute Boxe alcançou no PRIDE. Do outro lado, uma carta aberta criticava os rivais e
diziam que a equipe (BTT) provou ser capaz de lutar contra qualquer um.

Para a sorte do MMA, a rivalidade entre as duas equipes serviu para apimentar o
PRIDE. “Olhando para trás, é claro que a minha reação foi exagerada naquele
momento, mas ela foi muito boa para o esporte. Os japoneses nos agradecem até
hoje”, diz Rudimar. “Eram as duas maiores equipes do Brasil. Era como
Flamengo x Vasco. Uma vez ou outra a coisa extrapolou, mas em geral foi uma
rivalidade saudável”, lembra Anderson. (AWI, 2012, p.205)

Carlão Barreto lembra com detalhes dessa época, que segundo o próprio, marcou demais a
sua vida.

Claro que eu nunca vou esquecer a rivalidade que mexeu com o Rio de Janeiro,
entre a arte suave e a Luta Livre, mas ali eram modalidades disputando espaço. A
disputa entre academias e equipes foi muito importante para o esporte,
principalmente no PRIDE, tudo girava em torno da rivalidade entre a Brazilian
Top Team e a Chute Boxe. As duas tinham grandes lutadores, a BTT tinha
Ricardo Arona, Paulo Filho, Murilo Bustamante, Minotauro, Minotouro. Do outro
lado tinha Pele Landy, Murilo Ninja, Shogun, Wanderlei Silva, Anderson Silva.
Então eram dois times recheados de atletas de nível e talento, tanto que todos eles
fizeram muito sucesso. Hoje em dia as coisas são muito mais amenas, existe um
respeito mútuo muito grande, não existe mais essa rivalidade tão acirrada. Mas eu
acho que é um fator motivacional sim, um exemplo hoje em dia é a Nova União e
a Team Alpha Male, é legal ver essa disputa saudável. Está se criando uma
rivalidade entre a Kings MMA e a AKA do Cain Velasquez, do outro lado tem a
American Top Team contra a Blackzilians. (Carlão Barreto. Entrevista ao autor,
2016)

“As rivalidades são importantes, não tenho dúvidas. Do ponto de vista de torcida, mídia,
vende o evento de outra forma”, afirma Roberto Leitão em entrevista ao autor. Carlão Barreto,
que vivenciou todo aquele momento, também concorda com o mestre, mas faz uma ressalva. “As
rivalidades são motivacionais sim, desde que fiquem sempre dentro do octógono. O esporte tem
que ser sempre maior que qualquer tipo de rivalidade, o cara não pode apenas se basear em
rivalidades para buscar motivação, isso tem que estar dentro dele”, afirmou em entrevista ao
autor.
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7.3. Anexo C

Em 1991, a TV Globo iria transmitir “O Grande Desafio”. Nome dado ao torneio de Vale
Tudo realizado no Grajaú Country Club. A disputa seria entre praticantes de Jiu-Jítsu e da Luta
Livre, como na maioria das vezes era. “A Luta Livre aceitava porque era a única chance que eles
tinham de lutar. O Jiu-Jítsu naquela época tinha muita força social, comercial. Sem a gente, nunca
teria havido Vale Tudo”, explica João Alberto Barreto (AWI, 2012, p.116).

Wallid Ismail e Eugênio Tadeu fariam o duelo principal, respectivamente representante de


cada arte marcial. Wallid teria chance de vingar a única derrota sofrida pelo Jiu-Jítsu até o
momento, a derrota de Renan Pitanguy em 1984 – para o próprio Eugênio. Talvez Wallid fosse o
escolhido pelo jeito irreverente como tratava os seus adversários, era exatamente daquilo que seu
grupo precisava ao enfrentar um lutador que já havia derrotado um de seus companheiros. A luta
parecia ter começado antes do previsto, tamanha eram as provocações. Quando o duelo se
iniciou, a luta foi bastante equilibrada até um momento específico do segundo round: os dois
caíram fora do ringue e a luta continuou do lado de fora. Revoltados, o comentarista Álvaro
Barreto e o narrador Oliveira Andrade, questionavam o que estavam vendo.

-“Vai para fora do ringue novamente Eugênio Tadeu! A interferência do arbitro é


mínima, vai cair o Eugênio Tadeu... E ele caiu! Caem os dois, são envolvidos pelo
público, os rapazes da segurança tem um pouco de trabalho ali, e a luta continua
fora do ringue! Isso não é permitido!”. - “Lógico que não é! Isso é um absurdo!”
(AWI, 2012, p. 104)

Wallid voltou ao ringue, mas no meio da confusão, Eugênio não retornou. O derrotado,
diz até hoje que foi golpeado por simpatizantes do Jiu-Jítsu, que impediram a sua volta.
Discussão que segue viva até hoje, mesmo com os ânimos mais acalmados.

A segurança era toda da Federação de Jiu-Jítsu. Só tinha jiu-jítsu lá. Marcelo Behring,
Ryan (Gracie), (Ricardo) Libório, Robson Gracie, todos ali. Tentaram me chutar. [...]
Já me viu amarelar para alguma luta? Tinha um segurança da luta livre e o restante do
jiu-jítsu. Me chutaram lá. Quem passou o perrengue lá fora foi eu. Eu que sei. Botaram
joelho na minha barrida e falaram: "Fica aí, não levanta". Aconteceu isso. (SporTV,
Online, 2014)
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Wallid obviamente discorda, do hoje, amigo.

Ninguém te chutou. Olha o Brunocilla te segurando. Você que não queria voltar.
Ninguém te chutou. A gente é parceiro. Isso é uma lenda que você não pode alimentar
porque você é sujeito homem. A história que você tem na luta, não tem igual. Não te
bateram. (SporTV, Online, 2014)

A TV Globo gravou as lutas para transmiti-las mais tarde em um compacto. Mesmo com a
edição feita pela produção, as cenas de confusão do lado de fora do ringue antes do término da
luta, permaneceram. Foi um grande susto para os telespectadores mais conservadores, com
certeza seria um grande prejuízo para o esporte. O Vale Tudo ficou um bom tempo sem receber
destaque na TV aberta.

Quase onze anos depois, em 2002, o esporte teria mais uma oportunidade de aparecer na
TV. Vitor Belfort, o menino prodígio e fenômeno do UFC, conquistara uma visibilidade que
nenhum outro lutador havia conseguido. Chegou a fazer uma participação na novela O Clone da
TV Globo. Logo em seguida, uma oportunidade única surgiu para Vitor, e ele não pensou duas
vezes.

Foi chamado pelo SBT para participar da segunda edição do reality show Casa
dos Artistas. Foi o sexto eliminado do jogo, mas teve tempo de conhecer a sua
futura esposa, a modelo Joana Prado, que ficou famosa como a dançarina
Feiticeira do Programa H, apresentado por Luciano Huck na TV Bandeirantes.
Ganhou, ainda, do dono da emissora, Silvio Santos, a promessa de que uma de
suas lutas seria transmitida ao vivo. Vitor dizia que estava fazendo isso para
popularizar seu esporte. “Sempre tive a visão de que marketing é tudo. Mas um
marketing verdadeiro, que mostrasse quem eu sou de fato”, diz. (AWI, 2012, p.
211)

Silvio cumpriu sua promessa. Foi a primeira vez que uma luta do UFC – e também de
MMA – foi transmitida ao vivo para os brasileiros via TV aberta. Na madrugada de 22 de junho
de 2002, o SBT alcançou 12 pontos no Ibope com o duelo entre Vitor e Chuck Liddell. O
brasileiro saiu derrotado, mas naquele momento, nem ele e nem Silvio Santos tinham do que
reclamar.

Foi de madrugada, ao vivo, mas teve ótima audiência. Uma pena que o Silvio não
tenha usado seu faro para negócios para manter o SBT como canal oficial de
exibição do UFC no Brasil. Ele perdeu a oportunidade. Entendi que o forte da
emissora dele são os programas de auditório. Em 2011 a Rede Globo pagou
dezoito milhões para tomar para si os direitos de exibição do UFC. (BELFORT,
2012, p. 61)
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Nesse mesmo ano estava acontecendo a Copa do Mundo de Futebol, que foi disputada no
Japão. A então repórter da Globo, Glória Maria, tentava convencer o diretor do Fantástico –
Luizinho Nascimento – que não era apenas a bola que estava em destaque no Oriente. O Vale
Tudo ainda era um tabu na emissora, por causa do incidente no evento que aconteceu no Grajaú
Country Club, mas Glória insistia com o chefe: “O Fantástico não é fantástico? Então, a gente
tem que mostrar uma coisa fantástica: brasileiros heróis do outro lado do mundo e desconhecidos
em seu próprio país”, argumentava (AWI, 2012, p.216). Luizinho aceitou a premissa da repórter,
mas não garantiu que a matéria seria exibida. Mesmo ressabiada, Glória aceitou o desafio e foi
em frente. “Eu estava muito insegura porque tinha a mesma imagem de todo mundo: é uma coisa
violenta, bárbara, de primatas”, conta (AWI, 2012, p.215).

No ano seguinte, chegando ao Japão, no primeiro dia de trabalho em Tóquio, Glória


Maria se encontrou com os comandantes das duas principais academias do mundo naquele
momento: a Brazilian Top Team (BTT) e a Chute Boxe. Os dois grupos representavam a maior
rivalidade, não só do PRIDE, mas do mundo. Zé Mario Sperry e Rudimar Fedrigo tratavam
Glória como uma rainha, mas o desconforto entre as duas equipes era visível.

Os dois treinadores se esforçavam para manter o clima amistoso, mas não queriam
que o outro passasse muito tempo a sós com a jornalista. “Eu também não podia
ficar com o Minotauro ou com o Wanderlei por muito tempo. Tinha que mostrar
os dois lados da moeda sempre”, conta Glória. […] Como era leiga no assunto,
achava que todos estavam do mesmo lado. Se parecia impossível fingir que eram
grandes amigos, pelo menos manteriam uma convivência cordial diante de Glória
Maria. (AWI, 2012, p.215)

Glória Maria foi se enturmando com os lutadores, conhecendo mais da vida pessoal e de
suas carreiras. A repórter se encantou com os atletas, percebeu o “afeto com que Wanderlei
(Chute Boxe) tratava a filha pequena e ficou comovida com a história de Minotauro (BTT), desde
o atropelamento do caminhão até o incidente que limitou sua visão” (AWI, 2012, p.215). Para
contextualizar a matéria, foi feito um teste de popularidade com Wanderlei e Minotauro pelas
ruas de Tóquio. Glória ficou surpresa ao perceber que os lutadores não conseguiam dar mais de
dez passos sem serem parados pelos fãs. Eram ídolos incontestáveis, com bonecos e personagens
eletrônicos à venda.

Para ela, estava tudo perfeito até o momento, mas o que realmente importava, era a vitória
dos dois no evento PRIDE Final Conflict 2003.
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Derrotas seriam um anticlímax fatal para a reportagem no Fantástico. “Eu me


perguntava: será que estou no lugar errado? Porque eu tinha aquela imagem de
barbárie e encontrei um espetáculo maravilhoso”, lembra. Minotauro venceu de
forma fantástica, assim como no duelo com Bob Sapp, uma reviravolta incrível
contra o croata Mirko Cro Cop. “O público que vai lá e que transformou o
Minotauro num ídolo, não sabe das limitações que ele tem. Curte o campeão sem
saber que por trás talvez exista a pessoa mais frágil do mundo. Acho que ele, mais
do que ninguém, me fez ver o esporte de outra maneira”, explica. Wanderlei
também venceu sua luta. E apesar de os dois lutadores terem deixado o ringue
sangrando, Glória Maria estava convicta de que havia assistido a um evento
esportivo, e não a um espetáculo de selvageria. (AWI, 2012, p.215)

Glória Maria mudou completamente a sua visão sobre o esporte, percebendo que não era
uma barbárie que valia tudo, mas sim um esporte com regras e dominado por brasileiros. “Não
era uma violência pela violência. Havia um conteúdo de emoção, de paixão muito forte. Antes, eu
achava que eles batiam pra matar, e ali eu vi que eles batiam com todo um conhecimento, toda
uma técnica”, afirmou (AWI, 2012, p.218). Nesse momento, a repórter sabia muito bem o que
iria fazer para transmitir o mesmo sentimento para os telespectadores. “Eu falei: ‘Meu Deus do
céu, que grande equívoco está se cometendo até agora.’ E a minha reportagem foi em cima
disso”, conta (Idem).

Assim como Vitor Belfort citou em seu livro, anos depois a Globo iria abrir de vez as
portas do canal para a luta. “Em 2011, o UFC multiplicou o seu alcance sobre os telespectadores
brasileiros e americanos com uma velocidade inédita nos seus quase 20 anos de existência”
(AWI, 2012, p.305). A empresa fechou a compra dos direitos de transmissão do torneio, com data
de estreia prevista para 12 de novembro daquele ano. A emissora demonstrou o tamanho do
investimento que estava fazendo, quando colocou Galvão Bueno – maior narrador do grupo –
para narrar o duelo entre Cain Velasquez e Junior Cigano, disputando o cinturão dos pesos
pesados. “Eu vi as primeiras conquistas do Royce, naquele tempo em que lutavam três, quatro
vezes na mesma noite. Quando me perguntaram o que eu achava de narrar o UFC, topei na hora”,
disse Galvão ao canal SporTV (Idem). O evento foi um sucesso tão grande, que o chefão Dana
White admitiu jamais ter visto um efeito contundente no público como a parceria com a Rede
Globo. “Para os fãs brasileiros a festa foi completa. Além da vitória de Cigano, a resposta do
público foi espetacular. Nos 31 minutos de transmissão no início da madrugada, a TV Globo
atingiu 22 milhões de telespectadores” (Idem).

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