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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Amaranta Gasperotto Krepschi

Percursos entre ruas, escritas e modos de


subjetivação

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Psicologia Clínica, sob a orientação da
Profa. Doutora Suely B. Rolnik.

São Paulo/SP

2013

i
ii
!

Banca Examinadora

________________________________________
Prof. Dra. Suely B. Rolnik (Orientadora)

________________________________________

________________________________________

Suplentes:

_______________________________________

_______________________________________

iii
iv
Valdemar e Catarina, meus queridos pais, pela vida e apoio em tantos percursos,

Berba, por uma vida em tamanha intensidade,

Gisella Hiche, pelo lado-a-lado.

v
Agradeço

à orientadora Suely Rolnik pelo olhar clínico, pelas escritas e pela oportunidade,

a orientação da patotinha: André, Altieres e Gisella, cujas orientações feitas em tardes em


diversos espaços da PUC e fora dela me possibilitaram acompanhar e ser acompanhada,

ao Berba, por tantas vidas e nosso amor,

ao meu pai Valdemar, minha mãe Catarina e meus três irmãos, Victor, Arthur e Maria Clara,

ao professor Orlandi pelos abraços e alegria,

ao professor Peter pelo rigor de algumas orientações,

ao professor Amálio pela belezura no encontro com as palavras,

à Ana Godoy pelo acompanhamento amoroso nos dias finais dessa dissertação,

à Sofia Neuparth por todo o trabalho de corpo e vida,

à Daniela P. dos Santos por sua clínica intensamente poética,

ao Coletivo qualquer: Lu e Ibon, amigos dançarinos,

à Rê Roel, pelas gargalhadas e cumplicidade,

à Priscilla Carbone pelas rotas vila anglo,

à Alda Maria Abreu pela força de seu trabalho-vida,

ao Centro em Movimento (c.e.m) em suas presenças pessoais e a-pessoais,

à Analu e Juliana Bom-tempo, queridas amigas, pelas leituras e partilhas,

aos colegas de Núcleo de Estudos da Subjetividade que me propiciaram criar esse corpo de
escrita,

ao Condomínio Cultural Mundo Novo,

à Capes que viabilizou esta pesquisa.

vi
Nossa vida precisa ser mais perigosa.

Nietzsche

vii
KREPSCHI, Amaranta!Gasperotto. Percursos entre ruas, escritas e modos de subjetivação.
2013. f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Programa de Estudos Pós-graduados
em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.

RESUMO

Esta pesquisa se instiga pela possibilidade de criar com a escrita, o notar e anotar as afecções
do corpo vivo na relação com o escrever. Diz de experimentações a partir e com a escrita. É
também um convite para um percurso iniciado na cidade e pelas ruas de Lisboa em 2008 e
2009 (onde vivi uma residência artística no c.e.m), que continua pela travessia do Oceano
Atlântico e desemboca na cidade de São Paulo pelas ruas sinuosas da Vila-Anglo Brasileira.
Acompanha o “como” as políticas de subjetivação hegemônicas afetam este corpo que dança,
que escreve, que ama, que paralisa e que transita pelas cidades e em quais momentos e
agenciamentos se fez possível criar outros modos de estar com (a cidade, o medo, a escrita, a
rua, os fluxos, o desejo). No caso desta pesquisa, a escrita tem um lugar singular e importante,
por ser a acompanhante mais marcante em tais passagens, sendo às vezes ela própria, a
passagem.

Palavras-chave: Corpo, Escrita, Rua, Medo

viii
KREPSCHI, Amaranta Gasperotto. Pathways between streets, writings and modes of
subjectivation. 2013. f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Programa de Estudos
Pós-graduados em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2013.

ABSTRACT

This research is enlivened by the possibility of creating through writing, by the act of noticing
and noting the affections of the living body in its relationship with writing. It speaks of
experimentations with – and departing from – writing. It is also an invitation for the reader to
follow this route which begins with the streets of Lisbon in 2008 and 2009 (while I was in
artistic residency at c.e.m.); continues by crossing the Atlantic Ocean, and flows into the city
of São Paulo through the winding streets of Vila Anglo-Brasileira. This research accompanies
the mode "how" hegemonic politics of subjectivization affects the dancing, writing, loving
and paralyzing body that transits throughout different cities. It follows the moments when –
and the agencies with which – it was possible to create different modes of being with (the
city, the street, fear, writing, flows, desire). For this research, writing plays a singular and
important role, as it has been the most outstanding company for such passages. Sometimes
becoming the passage itself.

Keywords: Body, Writing, Street, Fear

ix
!

x
Sumário

! Introdução .................................................................................................. 19!

! PARTE I: RUAR .................................................................................... 21!

! Plataforma contínua do “dançar para nada”: presença e repetição ......... 25!

! Notas em torno da confiança ..................................................................... 29!

! PARTE II: Anticorpo(s) ....................................................................... 39!

! Repetição 2457 .......................................................................................... 49!

! A potência da conversa: quando falar é desejar ......................................... 51!

! Escutar com os ossos ................................................................................. 53!

! PARTE III: Corpo-escrita, Escrita-corpo ............................................ 57!

! Devolver à escrita sua potência de risco: no limiar, criar corpo e convocar !


uma escrita ................................................................................................. 63!

! PARTE IV: Aproximações Lisboa-SP: Vila Anglo Brasileira ......... 73!

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................... 105!

xi
!

xii
Lista!de!figuras!

Fig. 1 - Canteiro de ervas, 2011. Foto: Amaranta Krepschi ........................................ 35!

Fig. 2 - Risco de desabamento, 2011. Foto: Amaranta Krepschi ................................ 61!

Fig. 3 - Casa 4, 2012. Foto: Amaranta Krepschi ......................................................... 79!

Fig. 4 - Escadaria Rifaina I, 2012. Foto: Amaranta Krepschi ..................................... 91!

Fig. 5 - Pés, escada, homem, 2012. Foto: Amaranta Krepschi .................................... 93!

Fig. 6 - Crianças, 2012. Foto: Amaranta Krepschi ...................................................... 95!

Fig. 7 - Buraco, 2012. Foto: Amaranta Krepschi ........................................................ 97!

Fig. 8 - Escadaria Rifaina II, 2012. Foto: Amaranta Krepschi .................................... 103!

xiii
xiv
Introdução

Meu interesse pela escrita é desde infância. Dos modos que se fazem necessários à

alfabetização, escritas em tons de diário na adolescência, escrita acadêmica na graduação,

roteiros, contos, poesias e a experiência de escrita-corpo que se abre a partir da residência

artística no c.e.m1 em 2008. Considero que é neste último contexto, em laboratórios de corpo,

dança e escrita, que o escrever começa a se dar menos separado do corpo e dos afectos e que

inicio uma pesquisa que, na volta ao Brasil, encontra um lugar muito potente para continuar a

se pesquisar: o Núcleo de Estudos da Subjetividade. A possibilidade de deslocar, numa

Instituição de Ensino Acadêmica, o lugar hegemônico do que é uma pesquisa “válida” - que

se apóia numa suposta produção de verdade generalista e categorizante- para uma produção

de escrita que é produção de subjetividade é um foco importante neste trabalho. Poder realizar

diversas experimentações em escrita ao longo de dois anos e meio, me debruçar em escritas

produzidas noutros momentos de vida, avaliando o que acontece no corpo que escreve tais

textos e nos corpos que os lêem. Sendo asism, é parte do método desta pesquisa, fazer circular

os blocos de texto, por diferentes cidades, zonas e circuitos (acadêmicos e não acadêmicos) e

afinar a escuta para as sensações que advêm de cada leitor/leitora. No próprio Núcleo de

Estudos da Subjetividade a orientação das pesquisas se dá em grupo, de modo que todos lêem

os textos uns dos outros e os “feedbacks” acontecem entre orientadores, orientandos e

pesquisadores. Sobretudo, ao “avaliar” uma escrita, considero a direção vitalista e ética como

bússola, priorizando a expansão e potência de vida produzidas a partir e com a escrita.

O trabalho tem uma marcação de quatro partes. Na parte I: RUAR pode-se adentrar

textos produzidos nas ruas de Lisboa, tanto no processo de residência artística em propostas

do centro em movimento, como na documentação de dois festivais urbanos pedras dágua

(realização do c.e.m). Na parte II: Anti-corpo(s) estão os textos produzidos num estado

1
Centro de Investigação Artística e Estudos do Corpo situado em Lisboa.
19
corporal de passagem e a partir de um modo de subjetivação investido no medo de existir. A

parte III: Corpo-escrita, Escrita-corpo percorre a constituição de um outro corpo, uma outra

escrita. A parte IV: Aproximações Lisboa-SP: Vila Anglo Brasileira percorre as sinuosas ruas

da Vila Anglo na região Oeste de S.P e um trabalho que se aproxima das rotas vividas em

Lisboa, afirmando, no entanto, a singularidade do contexto em que se situa2.

2
Faz-se importante esclarecer que para o depósito da dissertação de mestrado foi necessário seguir as normas da
ABNT e enquadramentos que vão numa direção oposta à uma parte do trabalho da própria dissertação. Em se
tratando da formatação, a versão original desta pesquisa cuidou de escolher papel, fonte, espaços entre textos,
uso de papéis e texturas, caligrafias manuais, possibilitando outros relevos e paisagens. Quem desejar a versão
original do trabalho tem a possibilidade de solicitar através do email: amarantak@gmail.com

20
PARTE I:

RUAR
Esse agenciamento deve trabalhar para viver, processualizar-se
a partir das singularidades que o atingem. Tudo isso implica a
ideia de uma pragmática ontologica. São novas maneiras de ser
do ser que criam os ritmos, as formas, as cores, as intensidades
da dança. Nada está pronto. Tudo deve ser sempre tomado do
zero, do ponto de emergência caósmica. Potência do eterno
retorno do estado nascente.3

Pode-se adentrar a região do intendente por algumas vias: vindo da baixa-chiado, pela

rua do benformoso, passando pela lavanderia da rosa à direita; pela avenida almirante reis,

que lá pelas tantas, bifurca numa entrada de grande abertura e algumas árvores. A fonte

desativada situada no largo do intendente pine manique funciona como uma referência,

redonda e já sem água, cinzeiro de bitucas de cigarro. Faz vizinhança com o largo do

intendente o clube recreativo amigos do minho, uma antiga loja de porcelana toda revestida de

azulejos portugueses, mulheres que esperam possíveis clientes e os que nas escadinhas,

injentam heroína. Há uma primavera rosa encarnado 4 perto da casa da dona Beatriz,

portuguesa do norte que vive em lisboa há alguns anos.

No trabalho continuado com lugares e pessoas do centro em movimento5 passa-se o

3
GUATTARI, Felix. Caosmose. Um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p 119.
4
Um dos usos para a cor vermelho em português de portugal é da cor da carne.
5
Centro em movimento (c.e.m): Centro de Investigação Artística em Estudos do Corpo. Situa-se em Lisboa.
23
ano trabalhando em um lugar específico da cidade: uma zona, um bairro, tais ruas (delimita-se

um percurso). Em 2009 foi o intendente, em 2011 a mouraria, em 20126 região que se

estendeu da mouraria ao cais do sodré. Num primeiro momento, a proposta é estar no lugar

geográfico escolhido. Andar, andar, sentar, escrever, estar com o espaço, as pessoas, numa

pesquisa de estados de presença no encontro e na contramão de “grandes” ações humanas e

ideias muito criativas (como diria Sofia7). Tal trabalho de mapas e percursos pela cidade é

nomeado “rota” pelo c.e.m, começa na repetição de um trajeto e vai se desdobrando a partir

do processo diário de estar com espaços da cidade. Entre diversos desdobramentos, está o

festival urbano pedras d’agua8, momento mais visível de uma multiplicidade de danças,

pensamentos, ações e problematizações durante o ano. Se há uma vastidão de conceitos e

práticas existentes na contemporaneidade para o que chamamos “corpo”, o c.e.m constituí, de

um modo muito singular, uma direção nesse entendimento. Nesta dissertação não intenciono

dar conta de delinear esses critérios. O que me proponho é delinar os esbarrões deste corpo no

encontro com o c.e.m. através de um percurso que começa em Lisboa e continua na cidade de

São Paulo.

6
Acentuo os anos de 2009, 2011 e 2012, pois foram os anos em que estive presente. Em 2009 porque morava em
Lisboa e em 2011 e 2012 porque estive lá para documentar o Festival Urbano Pedras d’Água realizado pelo
c.e.m.
7
Artista, bailarina, pesquisadora e coordenadora do c.e.m (estrutura de investigação artística) na cidade de
Lisboa.
8
Festival urbano anual realizado pelo c.e.m e que acontece nas ruas e espaços da cidade de Lisboa.
24
Plataforma contínua do “dançar para nada”: presença e repetição

A repetição faz parte da constituição da rota. Na atenção às densidades e

adensamentos do espaço nas primeiras saídas à rua mapeia-se um primeiro trajeto, que pode

se alargar, encolher, alterar, mas tende a insistir no mesmo trajeto geográfico. Dia após dia,

durante meses, o processo se faz na insistência de múltiplas presenças na rua. Na contramão

da ideia imensamente difundida na contemporaneidade do “novo” (como o que muda o tempo

todo) testa-se:

“[...] Como explicar que haja o novo na ideia de que nada há de novo?”9

Praça do comércio, lisboa, 2008

Chão de pedras regulares tipo cimento. 38 graus sem árvores. Caminhada em ritmo
constante. Andam, quase correm, olha ali, anda, olha ela, estátua de um elefante, alta,
enorme. Vão entre o céu e o chão. Uma senhora pára, senta, pergunta em inglês. O tejo
alarga-se sobre a praça. O vão entre o ponto de autocarro10 blindado e a sarjeta. Auto
carros. Amarelo amarelo amarelo. 15 pessoas saem juntas a percorrer o espaço. Um, dois,
três, quatro, cinco (...) Sessenta segundos. Um dois, três, quatro, cinco, duas vezes sessenta
segundos. Um, dois, três, quatro, cinco, triplica-se sessenta segundos. E se elevássemos esse
estar a enésima potência?

Uma das primeiras práticas de corpo ao chegar no c.e.m. Consiste num estar na praça

do comércio, por manhãs caminhando horas em ritmo constante sob sol a pino. Também, no

studio branco, horas e horas de um caminhar “para nada” que se configura numa espécie de

atenção total para o corpo no espaço, notando o que no nele aparece como vontade de fazer. A

princípio, propõe-se refrear o impulso de fazer, deixar as ideias passarem e seguir seguindo

9
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 160.
10
Ônibus.
25
com uma presença a ser produzida neste caminhar. Sem outras proposições, enquanto

andamos, Sofia repete: estar no espaço e com o espaço. Se num primeiro momento não faço

ideia do que isso possa ser, já é um bom início: começar pelo não saber. Com algumas

práticas, a percepção de camadas se desenha, diferenciando o “no” e “com”. Há uma

passagem que é feita ao transpor o no espaço para o com o espaço, dois regimes de habitar.

Entendo, em primeiro lugar, que no primeiro modo de funcionamento a chegada e a ênfase é o

eu. Eu que quer fazer coisas, que avalia e julga o espaço, que mede, intervém. Já no segundo

modo (estar com), há uma abertura para a invenção de modos de estar, de deixar que a

atmosfera de cada espaço faça conexões com o corpo dançarino em estado de quase distração.

Digo quase, porque não é uma distração do qualquer coisa, ao contrário. Faz-se necessário

uma apuração que não pré existe, mas que se cria ao justamente no estar.

Neste caso, muitos laboratórios com bailarinos e pesquisadores da dança e do corpo

contribuíram para esse deslocamento. O “estar com” abre para outras possibilidades de habitar

um espaço, seja este uma rua, um beco, a sala de linóleo branca, os fluxos do corpo. Poder

estar com outras camadas que não as mais sustentadas pela forma, abrir-se para o que no

corpo é afetado a partir de cada encontro.

O que num primeiro momento pode ser vivido como muito simples e enfadonho, se

diferencia precipitando a questão: que estado é esse, que se instala a partir do repetir até quase

a exaustão? Abrem-se questionamentos em torno de um tipo de fazer-pensar-dançar que para

muitos de nós que chegamos de diferentes países para o c.e.m naquele ano é direção outra no

entendimento de dança contemporânea, de corpo e também de pensamento. Um estado que,

nomeado “dançar para nada”, diz do antes das definições e especializações, intento de

instaurar no corpo o ainda não se dança. Um vazio cheio de possibilidades outras que não as

já inscritas nas organizações e especializações que se atualizam no corpo e também no espaço

(de uma sala, de um bairro, de uma cidade, na arte, na dança contemporânea, no pensamento).

26
Cria-se um corpo provisório, numa certa posição de adjacência (usando os termos de

Nietzsche) na qual se é parte do acontecimento e não dono dele. Assim, um tipo de

funcionamento: um modo, uma dança. Não se trata de um zero de vontade, um tanto faz, um

qualquer coisa. É estado corpóreo outro que se propõe e há algumas pistas a serem seguidas.

Fragmentos de frases como: o corpo não tem que ser nada que não é, especialize-se em seres

tu!, o potencial que o movimento tem! Descola, às vezes de modo brutal, a ideia de um corpo

em dança.

É certo que o dançar para nada gera uma atmosfera de bastante estranhamento (e é

mesmo pela sensação que me recordo); estranha-se o não interesse em mostrar coisas que

“sei”, na corrida por um lugar seguro e, praticar na rua o dançar para nada é demasiado forte

pelo confronto com os clichês que atravessam a chegança num espaço: é bonito, é feio, está

abaixo da linha da pobreza, precisa ser salvo? Estar na rua, com as madames, as putas, os que

injetam, os que imigram, os que passeiam turisticamente, com as árvores, com a falta de

árvores, com o que desiste e faz desistir em nós. Estar com os nada próprios, o sentir que nos

acomete, dentro, fora, nos apartamentos, nas praças, nas zonas.

27
28
Notas em torno da confiança

Extasiada, fodo contigo


Ao invés de ganir diante do Nada.

Hilda Hilst

I- Confiar no que se cria ao acompanhar as repetições

II- Confiar no que não se sabe

III- Confiar no esvaziamento

IV- Confiar no que diz zaratustra: “os criadores são os mais odiados: com efeito, eles

são os destruidores mais radicais”.

A força que mata uma forma engendra novas possibilidades. Confiar no processo, e

principalmente no acompanhamento do processo. Se algo se repete e a expressão de tal

repetição se dá num movimento (dançado, falado, escrito), anoto. Almoço, janto, trepo, choro

e escrevo com a repetição. Então não faz sentido classificar se é boa ou má companhia,

interessa o estar com e o que o próprio estar precipita. Se no processo de criação a pergunta:

“como produzir diferenciações e sair de um padrão de movimento?” se faz insistente: é no

procedimento que está a diferença, o COMO se trata o deslocamento para onde aponta o

desejo. Acompanhar cada partícula, cada respiração, cada movimento, uma alteração de

temperatura, um afeto que atravessa, ir distrinchando estados de abertura e fechamento. Fazê-

lo horas distraidamente, horas com precisão absoluta, e sim, algo se precipita. Não é gratuito,

também não é exatamente uma finalidade. Algo que se passa entre e a partir de um

acompanhar.

29
Apreendo o “dançar para nada” nessa direção: é a criação de possibilidades um pouco

aquém das finalidades sem ser uma gratuidade. Ao mesmo tempo que se trata do corpo

ordinário; não se trata. Tal sobreposição, um corpo no outro e no outro diz das camadas que

acontecem ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo que faço o percurso de ontem e sou assaltada

por modos conhecidos de olhar, conversar, avaliar, habitar, abro espaço “para nada” que

destitui esse modo em mim. Pode-se afirmar que o “para nada” procede como um provocador

de pequenas quedas, seja nos movimentos da dança, na escrita e na vida. Se ativo esta zona,

algo acontece.

País: portugal
Cidade: lisboa
Bairro: mouraria e cais do sodré
Rota e festival urbano pedras d’agua 2012

Um ano depois do festival urbano pedras d’agua 2011, retorno à Lisboa. No primeiro

caminhar noto a região da mouraria11 imbricada em reformas com a bandeira “renovar

mouraria”. O caminho principal para adentrar o bairro é um tipo de portal com uma guitarra

portuguesa esculpida em pedra à esquerda. Mais adiante uma peixaria e seguindo reto por

caminhos tortuosos está o largo da severa (que têm sido co-habitado há pelo menos três anos

pelo c.e.m.). Um ano atrás estivemos nele com Valentina a dançar em sua janelita por meses a

fio, num predinho branco residencial, numa dança de pés, cabelos, pele, mãos e o estendal12.

Com nossos chapéus de chuva13, sentados no chão, em banquetas, no meio, nas laterais, nos

cantos, “assistimos” o solo de dança “IN”. Qual não é o susto ao deparar-me com o largo todo
11
A Mouraria é um dos mais tradicionais bairros da cidade de Lisboa, que deve o seu nome ao fato de D. Afonso
Henriques, após a conquista de Lisboa, ter confinado uma zona da cidade para os muçulmanos. Foi neste bairro
que permaneceram os mouros após a Reconquista Cristã e que hoje encontram-se muitos imigrantes
12
Varal.
13
Guarda-sol.
30
reformado, Lisboa está em obras, lugares singulares transformando-se em boulevares. O largo

avança sobre as coisas em chão liso sem as irregularidades de outrora; árvores plantadas

simetricamente em canteiros delimitados. Para sentar, designados quatro bancos de madeira

dispostos dois a dois, ao lado e em frente, sugerindo um centro. Nós continuamos sentados no

chão, também nos bancos, a frente que insistimos ainda é o prédio onde vive dona Piedade,

onde dançou Valentina ano passado, onde a garota estende suas roupas e Alex projetou um

vídeo numa noite dessas do festival. O que continua na atual espacialidade, inclusive em

meio a obras, britadeiras, poeira, caminhões e trabalhadores? Insistem um canteirinho com

ervas comestíveis num canto, dona Piedade com mais de 85 anos que nos chama para adentrar

sua casita.

Fato é que por toda Lisboa há placas gigantes com fotos computadorizadas e escritos:

“no largo das portas do sol existe um dos parques de estacionamento mais seguros da

Europa...e umas das melhores esplanadas de Lisboa”. Atuâncias de homogenização, imagem

única e dominante de cidade perfeita, segura, agradável, inexistente a ser construída, e que,

levada a cabo é assustadora pela impossibilidade de outras existências. Ao que acaba se

tornando “resto” não é dado espaço de existir.

(sensação no corpo: sufoco)

Em que medida então, existimos? Como nascem outros corpos? Outros espaços na

cidade? Se as conexões estão postas em série, em “formas de vida padronizadas pelas classes

pequeno-burguesas e burguesas, todas elas cerrando força no individualismo, nos interesses

familiares, na obsessão pela segurança patrimonial, médica, policial, educacional”14 como

agir? Vestido das melhores intenções, lá está o largo da severa ficando mais confortável,

14
CASTELO BRANCO, Guilherme. Anti-individualismo, vida artista: uma análise não-fascista de Michel
Foucault. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009, p. 144.
31
espantando todas as outras vidas que podiam se recostar nos cantos, nos becos, e também

passar.

Suzana dança em meio a obras da mouraria, ali onde os tratores passam levantando um

poeirão de quem arranca o chão existente para colocar escadas com degraus de alturas mais

calculadas. Torna-se plena região desértica e quem quer ver e estar? As obras já duram meses.

Meu corpo em tal espaço acumula partículas de Lisboa pelos fios de cabelo e carrega em si a

aridez de estar junto com casas invadidas e acessos dificultados sem que os moradores tenham

dito sim, não ou talvez. Na insistência do estar na rua, deste trabalho simples e complexo de

presença, abrem-se outras possibilidades de relação com o espaço. Imbrincar-se no buraco é

uma delas. O estar, repetidamente numa certa presença de corpo, altera uma atmosfera?

um agenciamento é isso. Não apenas a reunião ou o ajuntamento de corpos,


mas o que acontece aos corpos quando eles se reúnem ou se juntam, sempre
sob o ponto de vista de seu movimento e de seus mútuos afectos. Não se
15
trata apenas de uma questão de soma, mas de encontro ou de composição.

Se há uma necessidade que urge na rota é a da criação de atmosferas. Uma atmosfera

não é um fazer algo, não é revolução (embora possa ser revolucionária), não é espetáculo, não

pode se dar no cerco identitário. Para começar é preciso ir de encontro ao corpo, não um

corpo qualquer. Investir nas “boas” inscrições, que segundo José Gil, abre os corpos e

aumenta a potência de vida. Notar que “um passo a mais e o corpo já não é o mesmo”16 e que

há todo um trabalho que possibilita a passagem do estado de névoa para um estado de

acontecências. “inscrever-se significa, pois, produzir real”. 17

o encontro implica o movimento de todas as partículas envolvidas no


acontecimento. É logo neste momento que o encontro se pode impossibilitar.
Se a minha mão toca o chão estar com esse encontro abre minha percepção

15
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980, p. 321-322 [Mil platôs, v. 4. São Paulo:
Ed. 34, 1997, p. 50-51].
16
Frase insistente de Daniela Patrícia dos Santos.
17
Gil, José. Portugal hoje. O medo de existir. Lisboa: Relógio D’água, 2004, p. 83.
32
do movimento da mão em relação ao chão, do movimento do chão em
relação à mão, da trepidação do som, da vibração da luz, da oscilação da
temperatura, da circulação da respiração, do passeio dos sonhos, da
deformação da atmosfera. O encontro implica sempre em remanchar todo o
meu ser.18

Dançar, neste ponto de vista, é estar com um corpo real, os estados de hoje, este é o

exercício de presença; ao mesmo tempo implicado na produção de outros corpos nascentes,

essa é a pesquisa-criação. E talvez, ao substituir dança por performativo (com todos os riscos

de captura que esta palavra também comporta) pensar na criação como “liberação de

criatividade subjetiva que atravessa os povos”, “[…] formações de subjetividades inusitadas,

jamais vistas, jamais sentidas. […].”19

18
NEUPARTH, Sofia; GREINER, Cristine. (org.). Arte Agora, pensamentos enraizados na experiência. São
Paulo: AnnaBlume, 2011
19
GUATTARI, 1992, op.cit., p. 111.
33
34
Figura 1 - Canteiro de ervas, 2011. Foto: Amaranta Krepschi

35
36
País: portugal
Cidade: lisboa
Bairro: cais do sodré
Rota e festival urbano pedras d’agua 2012

É inverno chuvoso em lisboa

Num ponto da cidade de Lisboa Lu, Ibon e Mariana ensaiam a performance “walking and

talking: práticas similares para três lugares diferentes”. Em poucas palavras o trabalho

consiste em caminhar no espaço pelos três performers, de posse de três walkie talkies (os

outros w.t. Ficam com quem queira). Tal prática se dá em três lugares diferentes da cidade.

Um deles, Largo de São Paulo, igreja na lateral, fonte no centro, um quiosque que vende

cerveja e tremoços20 na lateral oposta a igreja, um senhor que chega de manhã e vai embora a

tarde, se encostando numa pequena mureta, a dona Ana que bebe e canta e passeia e grita e se

move pra lá e pra cá, transeuntes. Sol a pino. Alguns embriagados em volta da fonte, pombos.

O dançado acontece entre andar, pausar, falar no walkie talkie: enquanto um fala o outro

dança o dito, enquanto um estranho passa Lu descreve tal movimento, descreve a alteração no

corpo a partir da menina que chega, senta, olha, levanta. Na descrição das afecções misturam-

se o que se inventa, o que ali acontece e também o que já era previsto como marcação

coreográfica.

Numa das apresentações as muitas presenças de corpos sentados numa passividade

que assiste, dificulta a sustentação da criação que ali acontece. Notando o atravancamento em

que se encontra, me movo. Traço uma diagonal no espaço, cruzo olhar com a Lu, proponho

20
Petisco tradicional português que geralmente é oferecido de graça quando se senta a uma mesa de bar ou
restaurante.
37
outras possibilidades enquanto platéia. Não é pré combinado, não sei se é estratégico, é reação

de urgência ao notar a possibilidade de movimento e o esvaziamento de uma parte da

potência. Um risco que contempla equívocos, não há garantias na utilização de composições

corpóreas. Da certeza que qualquer movimento produz algo, estar parado também é um

movimento e o interesse pelas movimentações menores e quase imperceptíveis diz de uma

potência da dança dançada em walkie talkie que não está somente nos “performers”. Está no

que é praça, largo, canto e bebedeira. No que é passagem e que altera e é alterado por um

campo de forças que ali se instala e provoca alterações nos corpos.

[...]

38
PARTE II

Anticorpo(s)
Lá estava uma mulher sem ar no meio
do nada

41
42
País: entre portugal e brasil
Cidade: entre lisboa e são paulo
Oceano atlântico, travessia

Momentos nos quais a presença parece abandonar o corpo, a cidade em sua dimensão

macro engole qualquer impulso de seguir. As repetições que ditam o funcionamento são as

mais baixas e já não parece possível acompanhar. A força reativa é imensa e o que se segue

são avalanches de representação. “[…] por um lado o niilismo é sintoma de decadência e

aversão pela existência, por outro, e ao mesmo tempo, ele é expressão de um aumento de

força […]”21. Se no c.e.m a multiplicidade de corpos engendra força para atravessar cada

estado de esgotamento, aqui grita alto: dance! Dance! Dance! Na singularidade de seus fluxos

esta é a linha que se repete nos anos. És o que pode fazer por ti, ó pequenina!

Então ela escreve e dança, não necessariamente nessa ordem. E quando se esquece,

entra em pânico. Eis o que, num primeiro momento chega como cartola vazia.

A rapidez dos fluxos da nova cidade avança sobre ela, são paulo é gigantesca, estar na

rua é de uma desproporcionalidade abissal. O corpo de outrora já se desfez há tempos, lá doía

menos, talvez pela solidão acompanhada. Enfim, a mulher sem ar no meio do nada. E no alto

dos arranha céus, pelas janelas sobrepostas, uma em cima, do lado e em baixo da outra, a

perdição. E pasmem: no não acontecimento um acontecimento subterrâneo, não intencional,

nada bem vindo, desconhecido. Quando tem nome, é enquadrado em sintomatologia

grosseira, palpitação, sensação de morte, sufoco, tontura, e claro, medo. Medo de ficar em

casa, medo de estar só, medo de sair de casa, medo do corpo. Ainda nem se deu conta de que

já não dança mais, que comer não é tão prazeroso, que há uma paralisia junto à sensação de

21
PELBART, Peter Pál. Travessias do niilismo. In: FEITOSA, Charles; BARRANECHEA, Miguel Angel de;
PINHEIRO, Paulo (org.). Nietzsche e os gregos: arte memória e educação. Rio de Janeiro: DP&A, Faperj,
Unirio / Brasília, DF: Capes, 2006.
43
múltiplas invasões. Das nuances não se fala. Da relação entre corpo cidade, a cidade como um

mundo de afecções, corações sentindo, temendo, querendo, batendo. Das questões que se

estilhaçam nas festas, se estatelam no chão por não terem reverberação, se desmancham na

primeira banca de revistas com seus tóxicos ambulantes colocando a culpa no sujeito,

insistindo nas doenças psíquicas e físicas como produção individual. A finalidade que grita o

tempo todo: vamos erradicar o que é desvio e não ouve como o que é de fato: forças gritando

“um pouco de possível senão eu sufoco”22. Se assim sigo, o medo fala de quê? De uma

infância? De um descuido? Da falta de recursos para a vida que pulsa no corpo?

Uma pista: de um lugar onde a imagem de si não alcança. O medo também diz de um

modo dominante de subjetividade dos sujeitos que investem numa única forma de vida: seres

humanos autônomos, com um desenvolvimento psicológico, que tentam conservar essa

unicidade. E que sorte talvez sejam os que atravessados pelas moléstias do corpo e dos

afectos, vêem-se rompidos. E que falta de sorte, que justamente o cuidado dominante os

considere estragados, fudidos, anormais. Se gritam: dessa saúde não compactuo, o que resta?

E como grita alto e forte ele, andante descalço com uma sacola plástica na mão direita, pela

rua doutor homem de mello, numa manhã em SP:

Matamos todos!

Matamos todos!

Matamos todos!

Matamos todos!

E no instante em que passo por ele pela calçada de perdizes, grita ainda mais alto e

repetidamente:

22
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 131.
44
Ela está morta!

Ela morreu!

Ela está cega!

Ela está morta!

Ela está morta!

Ela está morta!

E por fim:

O mundo está morto!

45
Em seu livro Bios, Biopolítica e Filosofia, Roberto Esposito insere, a partir dos

estudos da biopolítica em Foucault, o conceito de imunidade e de um novo paradigma que

passa a operar no Ocidente depois da década de 30: o paradigma imunitário.

o termo latino immunitas consiste numa negação ou privação do termo


munus, o qual pode ser traduzido tanto por ‘cargo’ ou ‘ofício’ como por
‘dom’, ‘graça’ ou ‘dádiva’. Esposito atribui à communitas o sentido de uma
associação humana baseada na ideia de uma mútua pertença, através da
partilha, pelos homens que a compõem, de uma dádiva recíproca a partir da
qual se cimentasse a sua concórdia e relação. É como negação ou privação
desta relação, ou do cum da communitas, que o conceito de immunitas
emerge.23

Marca-se assim o desenvolvimento da política moderna.

A imunologia, ao inventar técnicas de prevenção e prolongamento da vida biológica o

faz como norma; incide no cotidiano através de uma série de procedimentos para viver mais

que são tomados como verdade. Exames preventivos, vacinas, vitaminas, alimentos que

garantem o não adoecimento, exercícios, comportamentos que tem como finalidade o quanto

se vive e não o “como se vive”. O fundamental, nessa produção de subjetividade, é imunizar-

se, proteger-se, repelindo o que é diferente, seja este um vírus ou um muçulmano. Tal

estratégia do biopoder investe em todos os campos, da saúde às relações amorosas, no campo

social e político e é, ao mesmo tempo, motor e produto dos movimentos fascistas- dos

regimes totalitários aos fascismos cotidianos.

Do ponto de vista do pensamento, este é um forte e perigoso atravessamento, viver

imune a outras ideias, o oposto de comunizar, de increver (José Gil), de estar com (c.e.m). O

corpo mirra. À série de homens frágeis fisicamente, psicologicamente e socialmente faltam

recursos e uma atmosfera de insegurança se instala. Nesse modo de vida, o individualismo é

investido e pânico, depressão, dependência química, doenças do século, são creditadas a um

23
SÁ, Alexandre Franco de. Prefácio. In: ESPOSITO, Roberto. Bios, Biopolítica e Filosofia. Portugal: Edições
70, 2004, p. IX.
46
“eu” interior e universal que ou está descolado do seu contexto ou culpabilizando o contexto

(a culpa é do Estado, da Política, do outro). Florescem terapeuticas com soluções que

investem na mesma lógica que produz o medo da fragilidade: a negação do corpo, ou seja, do

desejo. Os poderes incidiem justamente sobre a capacidade de desejar, de afetar e ser afetado,

produzindo seres humanos em gradações cada vez menos intensas e enfraquecidos na

capacidade de desejar. O lema é medir, controlar e administrar. Gerir, como numa empresa, o

que nada tem que ver com o “cuidado de si” dos gregos, do viver ético em Espinosa, esses nos

quais o trabalho é a partir da carne, com a condição de vida que envolve cada situação,

inclusive o medo da vida e a fragilidade.

Se é no corpo que residem todas as possibilidades e se força é a “virtude do corpo de

ser afetado e poder afetar outros corpos de inúmeras maneiras simultâneas [...]”24. Na relação

com as impermanências da vida é vital a proposição de um método no qual não é a

consciência que dirige mas sim o trabalho com os afetos, num processo que se dá com eles e

não contra eles. Se no biopoder o auge do prazer é a sensação de vencer as impermanências,

contrariar tal forma de poder está também na possibilidade de comunizar-se. Se o mecanismo

do biopoder tira a confiança na vida, o método de trabalho com o corpo (afectos) a restitui,

ainda que aos poucos. Numa definição Espinosista:

“Por afeto entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir do próprio corpo é

aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as ideias dessas

afecções.”25

24
Ibidem, p. 96.
25
CHAUI, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 85.
47
48
Repetição 2457

Então é de repente... De repente o que estava ausente: aquela pergunta, essa pessoa,
sintomas novos em um corpo que não entende. Talvez fosse ela na calma, sangue correria
tranqüilo, dias passariam mais lentos, não desmaiarias, não colapsará. Mas é osso.
Intensidades não cessam nunca de gerar perguntas ao encontrar. Diante das aberturas todas,
ímpeto e medo, ímpeto e medo, ímpeto e medo. Quando dança os medos se vão? Quando
grita? Quando trepa? Quando vive em frente ao mar. Algo de si precisa deixá-la. E
insiste.coração acelera, corpo todo pulsa, tremedeira se instala. O mundo torna-se mais
caótico e frio e assustador que de costume. Não há solo firme possível, não há terra, só mar,
rios, água. Uma espécie de frio, vertigens e náuseas. Não se pode remediar. É o que é, o que
vai sendo, abre e tenta fechar mas não fecha. Naqueles minutos que seguem é a certeza de
uma morte que não vêm, que um dia virá, mas não se sabe. O suor escorre, o tempo lentifica-
se, pois bem, passou, respiro, respiro? Era uma vez tudo isso que se repete. Era uma vez um
momento esfuziante. Era uma vez por que ela não toma remédios e vive, vive, vive. Era uma
vez seis meses depois. Coração acelera, corpo todo pulsa, tremedeira se instala. O mundo
torna-se mais caótico e frio e assustador que de costume. Não há solo firme possível, não há
terra, só mar, rios, água (e um deck). Uma espécie de frio, vertigens e náuseas. Não se pode
remediar. Respiro? Era uma vez tudo isso que se repete. Era uma vez por que ela não toma
remédios e vive, vive, vive.

, corpo todo pulsa. Há terra, mar, rios, água e um deck. Respiro? Vive, vive, vive.

49
50
A potência da conversa: quando falar é desejar

O medo é uma estratégia para nada inscrever. Constitui-se,


antes de mais, como medo de inscrever, quer dizer, de existir,
de afrontar as forças do mundo desencadeando as suas próprias
forças de vida. Medo de agir, de tomar decisões diferentes da
norma vigente, medo de amar, de criar, de viver. Medo de
26
arriscar.

Sala comprida, linóleo branco no chão, oito corpos, que multiplicados, são muitos

mais. A prática é correr em alta velocidade e arremessar-se contra a parede. Alguns truques

para que cabeça e joelhos não saiam tão machucados. De novo, de novo, de novo. Sem mãos a

frente, sem diminuir velocidade antes da colisão; horas depois, além de alguns hematomas,

um outro corpo. Menos psicológico, mais forte talvez. Já dizia Nietzsche “a consciência nos

oculta tudo”. Nessas aulas de Peter Michael Dietz27, a atmosfera do “sem o risco nada

acontece” se dá numa força absurda.

Resistir ao “eu sinto, eu quero, eu gosto ou não gosto, dói”. Ultrapassar. Inúmeras

vezes, em tais laboratórios Dietz insiste: o trabalho não é terapêutico! Entendo de um modo: o

trabalho não é sobre o “eu” mas sobre a invenção de composições subjetivas.

Ainda relacionando aos mecanismos da biopolítica, José Gil afirma o falar e o

escrever como importantes possibilidades de inscrição. Penso-os como um antídoto para o

medo que reduz o contato. Se no medo reduzo minhas kinesferas28 corporais, retiro-me do

mundo, mantenho os poros cerrados, conversar, da perspectiva de Gil, diz do exercício de

26
GIL, 2004, op. cit., p. 69.
27
Bailarino dinamarquês que reside em Portugal e ministra laboratórios e aulas no c.e.m
28
Kinesfera é a esfera que delimita o limite natural do espaço pessoal, no entorno do corpo do ser movente. Esta
esfera cerca o corpo esteja ele em movimento ou em imobilidade, e se mantém constante em relação ao corpo,
sendo 'carregada' pelo corpo quando este se move. É um conceito que pertence ao Método Laban de Análise do
Movimento.
51
encontrar um tom comum que faz da fala e da escuta um acontecimento, e portanto, maior

que os sujeitos, que inscreve uma memória, cria uma atmosfera.

“sem paciência para escutar, para esperar resposta, para não estar com uma beleza estonteante

na sua frente”29 está o homem contemporâneo.

Ora, deixar-se inscrever na vida requer tempo. Tempo de outras produções, que não de

dinheiro e de um milhão de finalidades. Dialogar para que algo, talvez, se passe. Ou não. E

aqui um retorno ao “dançar para nada” do início deste texto. Ter a coragem de sustentar o

processo e tudo que o compõe, inclusive os inomináveis e o trato com o medo.

“ a fala apaixonada o diz de mil maneiras [...] Ao dizer-se no espaço público, aberto, o desejo

expande-se e conecta-se com outros desejos, para além mesmo da linguagem.”30 E novamente

atentar ao uso de “público”, aqui pensado com José Gil e Espinoza : corpo como potência de

afetar e ser afetado.

29
Anotação de fala de Denise B. Santanna na aula do Núcleo de Estudos da Subjetividade.
30
GIL, 2004, op. cit., p. 48.
52
Escutar com os ossos

Enfim, uma certa mágica pode se dar com a palavra. Quando uma ativa algo, instala

uma atmosfera, tratando-se portanto, de um gesto: palavra-corpo. Se com faro aguçado nota-

se que algo se deu, o dito descolou-se de sua proposição inicial, o não dito ganha algum

espaço de se dizer de alguma maneira. O contrário também produz. Quando o espaço entre

palavra e afecção é imenso, o dito não anda junto com o que se instala enquanto sensação:

campo da representação.

Manoel de Barros, em sua obra “Memórias Inventadas” narra o encontro com dois

homens que passavam os dias escovando ossos. Eram arqueólogos. Pois daí, ele inventa o

escovar palavras porque “as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e

muitas significâncias remontadas”31. Então ela escuta os movimentos pequeninos, os povoa de

minúsculas atenções. Põe-se atenta aos movimentos subterrâneos, às palavras nas palavras,

essas que quase saem mas silenciam, as que ao sair tem um peso diferente. Nota quando algo

“falha”, lança aos lugares que usualmente não se vai. Desconhecido, não se trata de agarrar,

mas sim de contemplar a passagem da dança de pequenos ruídos. Com a pele pode haver

conexão, como uma porta de múltiplas entradas, algo me arrasta, estou atenta e desatenta ao

mesmo tempo, acompanho e escrevo. Lugar não linear, no qual escolho me posicionar:

intensifico a relação com os pequenos movimentos, os invisíveis a olho nu.

Nalgum momento, o “dançar para nada” passa a acompanhar-me mais e mais das

palavras, folhas em branco e do silêncio. Camadas que não se escutam com ouvidos apenas,

precisam dos ossos que tintilam. Com o estetoscópio, passeio pela ossatura do corpo de uma

outra. Tamborilar no pé, coração, expiração, som dos cabelos ao serem mexidos. No

aprendizado do menor, possibilidade de ter com na palavra a constituição de um território

31
BARROS, Manoel. Memórias Inventadas. São Paulo: Planeta, 2003, p. 1.
53
menos sufocante e fixado; que rompe com significantes, um tipo de atuação que racha seu

usual, força capaz de inaugurar um outro universo. Do trabalho de estar com as forças que

pulsam e vivificam meu corpo, escrevo:

54
Destempera

O mergulho do mindinho na areia

Gordura ilocalizada

Sêmem que escorre

Ovos quebrados por isso inteiros

Nada precisa de nós,

Somente nossos corpos (…)

55
56
PARTE III:

CORPO-escrita
ESCRITA-corpo
Faz-se um corpo enquanto escrevo

País: brasil
Cidade: são paulo
Bairro: entre a sé, a liberdade e o bexiga32

Há uma chegança. No espaço, com aquela pessoa. Preciso passar por muitas avenidas

e ruas barulhentas da cidade de São Paulo, atravessar medos e todos os ruídos máximos e

atordoantes. Ela é pequenina. Miúda e forte. Fala bastante, numa rapidez que atordoa.

Sinalizo: você é bastante rápida pra mim. Ela surpreende: ao invés de pinçar a projeção como

única possibilidade, atenta ao tempo que podemos criar juntas. Atenta para um corpo

chegando em alta velocidade, e que no encontro, produz outras velocidades infinitas.

Devagar! Algo grita. Um leve cheiro de cigarro no consultório-casa, janela em avenidas que

não sei o nome. Em algum momento antes de ir, ela mostra o teatro oficina do alto. Estamos

no Bexiga.

Saio deste primeiro encontro pela Brigadeiro Luis Antônio, adentro um comércio para

comprar um fusível, é uma loja de materiais para construção. Meu pai têm uma loja de

material para construção a vida toda. A antiga, de tons labirínticos, bagunçada, marrom, com

pregos, parafusos, canos, empoeirada, da época em que não precisava ser bonita e podia ser só

uma loja de tampas de privada, pisos e azulejos e que dá lugar a essa outra, mega

empreendimento em tempos neoliberais. Naquela de antes, dos sobes, desces, escadinhas e

sala do cofre, uma mesa de madeira com um tampo de vidro e embaixo um feltro azul anil.

Ali, uma foto em preto e branco da amaranta criança sentada numa balança de parquinho e ao

32
Bairros da região central de São Paulo.
59
lado um dizer sobre o cigarro e a imagem de uma caveira, incentivando os fumantes a

pararem de fumar. Detalhe: meu pai nunca foi fumante.

Lágrimas nos olhos, subo a Brigadeiro sem blusa de frio (esqueci no sofá dela) numa

tristeza prazerosa. Por um instante, saudade da terapeuta anterior, a que me recebeu sem chão,

que engravidou no caminho e me indicou esta: da casa-consultório no meio de três avenidas.

Compor um ritmo juntas requer bastante disposição, pesquisa de como criar presença. Por

hora, escapa à interpretações e diagnósticos. Ainda que eu nomeie pânico, ela inventa outras

palavras para falar do mesmo. E a partir daí, o tal mesmo torna-se outro.

60
Figura 2 - Risco de desabamento, 2011. Foto: Amaranta Krepschi

61
62
Devolver à escrita sua potência de risco: no limiar, criar corpo e convocar uma escrita

Ao aprender a escrever, lá na infância, escrita torna-se instrumento. Linguagem que

comunica, retrata, chão de um modo de pensar, ouvir, falar e sentir. As regras gramaticais, as

conjugações, aprender a partir de um “certo” que nos faz repetir e repetir e repetir até poder

ser considerado alfabetizado. De quantos tremores cada corpo necessita para destituir, o

quanto se possa a cada momento, a escrita desse instituído? Que trabalho é vital no trato com

a palavra para que algo se passe entre e com as palavras? Para que possa criar outras

conexões, possibilidades e subjetividades? Para proporcionar outras durações?

Se no ocidente, pensamento é dado como separado do corpo, eis uma questão a ser

trabalhada (exercício vital), de mãos dadas com pensadores-fazedores de corpo. Escrever, não

a partir de uma ideia (abstração), mas de uma relação física com a palavra. O “roçar do corpo

no mundo”, como disse o professor amálio pinheiro33. Engendrar outros corpos, que não o da

experiência sensorial, do eu, da memória, do pessoal, para com eles escrever. Claro que

também se escreve a partir de outras paisagens, mais neuróticas, ensimesmadas, no eu penso,

eu sinto, eu quero, isso me falta. Mas de fato, aqui, o desejo se atrela à experimentação de

uma escrita esburacada e seus balbucios.

Eis então uma figura recorrente que escreve comigo (embora não só). A porção

fascista, a pequena burguesa, a juíza em mim; atravessamentos do que tantas vezes considero

o mais baixo e que têm transito neste corpo, social, psicológico, institucional, organizado. É

sobretudo no exercício de embate com tais capturadores do desejo que existe a possibilidade

de esburacar a escrita. Se na subjetivação burguesa a forma é priorizada em relação aos afetos

e há modos naturalizados de viver, amar, escrever, que escrita é produzida deste lugar?

Escreve-se em tons explicativos, numa tentativa de controle das afetações que caotizam a

representação e os lugares de verdade. Se a escrita não vêm pra explicar e dizer o que sei

33
Pesquisador e professor da PUC-SP. Integrou minha banca de qualificação de mestrado.
63
(produção de verdade sobre si e sobre o mundo), o que resta?

Com ana godoy:

[…] há sempre o resto que não encontra lugar nos lugares que nos cabe
preencher, porque o resto é, de resto, aquilo que resiste às categorias, que
trabalha as formas, que excede o presente da necessidade e que põe o lugar
sob suspeita. Um resto que desdenha a norma e que, indo de um lugar para
outro, não reconhece fronteiras, se junta a isso e aquilo, teimosamente
insistindo.34

Assim, há todo um exercício de escrita nesta pesquisa que é também de uma vida

podendo ou não atravessar o texto, toda uma problemática da expressão de uma vitalidade.

Entendo a experiência limite do medo como uma possibilidade para o desejo de expansão e

conexão, que dali um pouco já pode constituir outros territórios a partir da desterritorialização

ocorrida e que, quando o faz, diminui o medo enquanto efeito, e dá sentido aos restos e cacos

depois do terremoto.

Suely rolnik, no capítulo quatro do livro “cartografia sentimental”, percorre três

movimentos do desejo (linhas de vida). A primeira, linha dos afetos “faz um traçado contínuo

e ilimitado, que emerge da atração e repulsa dos corpos, em seu poder de afetar e serem

afetados.” 35 E aqui, mais uma vez retomo, corpos não como corpos humanos. Linha

incontrolável, a vida acontecendo. A segunda linha,

A da simulação, faz um vaivém, um duplo traçado inconsciente e ilimitado.


Um primeiro que vai da invisível e inconsciente produção de afetos, para a
visível e consciente produção de territórios. É o percurso do movimento de
territorialização. E um outro traçado, inverso: ele vem do visível, consciente,
dos territórios para o invisivel, inconsciente, dos afetos escapando. É o
36
percurso do movimento de desterritorialização.

E a terceira linha,

finita, visível e consciente da organização dos territórios. Ela cria roteiros de

34
GODOY, Ana. A menor das ecologia [apenas um esboço, nada senão o esboço de um esboço]. Cadernos de
Subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Clínica, PUC, São Paulo, ano 8, n. 134, 2011, p. 144.
35
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina,
Ed. da UFRG, 2006, p. 49.
36
Ibidem.
64
circulação no mundo, diretrizes de operacionalização para a consciência
pilotar os afetos. Ela é finita porque finita é a duração dos territórios e a
funcionalidade de suas cartografias. Sempre escaparão afetos aos territórios
e isso, mais cedo ou mais tarde, decreta o seu fim.37

A separação em três linhas é didática porque “por fim, pode-se até dizer que se trata de

uma só linha, a linha fluxo de simulação, pois ela é a própria passagem, a própria oscilação

entre as outras duas.” E: “os homens estão expostos a viver essas três linhas, em todas as suas

dimensões. […] é em seu exercício que se compõe e decompõem seus territórios, com seus

modos de subjetivação, seus objetos e saberes.”38

No percurso desta pesquisa, em meio a fluxos desterritorializantes e territorializantes,

noto a alternância e concomitância entre a vontade de nada e um nada de vontade. Investigo, o

que difere, neste corpo, o “para nada” do niilismo negativo em nietzsche e o nada que é força?

Quando e onde o “dançar para nada” se estatela numa produção que fica entre o vazio e o

medo e quando é um nada constituidor de chão para criação de uma paisagem arejada?

Vem o tempo em que teremos de pagar por termos sido cristãos durante dois
milênios: perderemos o centro de gravidade que nos permitia viver, durante
algum tempo não saberemos mais como sair disso nem para onde voltar. Nós
nos precipitaremos com a cabeça abaixada em direção aos valores opostos
com a mesma energia com a qual fomos cristãos.39

O texto está no artigo “travessias do niilismo”, de peter pál pelbart, que desdobra o

niilismo em nietzsche e como na modernidade, com a perda de valores centrados na religião, a

ciência, a consciência e outras instâncias passam a ocupar o lugar da verdade e da crença.

“dado um valor, que modo de existência, que estilo de vida ele implica, pergunta nietzsche?

Pesado, leve, baixo, alto, escravo, nobre? Um valor tem sempre uma genealogia da qual

dependem a nobreza e abaixeza daquilo que ele nos convida a acreditar, a sentir e a pensar,

37
Ibidem
38
Ibidem, p. 53.
39
NIETZSCHE, Friedrich, Fragmento póstumo novembro de 1887/março de 1888, 11[148], v. 13 apud
PELBART, 2006, op. cit., p. 209.
65
esclarece deleuze.” 40

Para que outros valores possam acontecer, quanto precisa morrer? Com quantos nadas

se faz uma vitalidade? E aqui, a aparente contradição do niilismo: ao mesmo tempo que é

perda de valores, descrença, esgotamento, é em tal nada, que sustentado, torna possível uma

criação. Volto então à pergunta insistente delineada acima e uma possível pista: quando o

corpo paralisa, não é sobretudo um cansaço diante do que está instituído em mim? Do que não

encontra passagem, a não ser através do coração acelerado, da falta de ar, da sensação de

excesso e falta de chão? A presença de uma porcentagem do que nietzsche chama niilismo

passivo, no qual, o sentido se esvai ao perceber que o mundo não é como se imaginava, que os

transcendentes não servem mais, que definitivamente não se sabe mais o que fazer e para

onde ir.

Uma rota que se esgota, um percurso que não produz mais sentido, uma paisagem

fosca e de pouca reverberação vital junto da falta de força para empreender um outro

território. “[...] Uma vida superabundante, ao contrário, suporta e até necessita desse

esvaziamento para dar vazão à sua força de interpretação, aquela que não busca o sentido nas

coisas, pois o impõe a elas.”41 Fazer-se então, um criador radical, produtor de sentido e de

vida. Praticar o desejo no âmbito que é: inventor de possíveis. Diante da paralisia e do medo,

recomeçar de novo, tecendo um corpo que pode. Efetuar a passagem (ainda que com alguns

retornos) do “tu deves” para o “eu quero”.

“tal passagem, porém, não está dada, ela é uma travessia e tem seu preço e vertigem

própria.”42

40
PELBART, 2006, op. cit., p. 211
41
PELBART, Peter P. Niilismo e terrorismo: ensaio sobre a vida besta. In: PASSETTI, Edson (org).
Terrorismos. São Paulo: Educ, 2006.
42
PELBART, 2006, op. cit., p. 214.
66
Nesse limiar, travessia. Quando a escrita se faz menos como produção de verdade e

mais como território de embate ao plano da representação, constituindo algo outro com os

restos do que se desmancha e remancha ...

67
68
às vezes o algo novo...

é logo ali.

no mais distante de um modo dominante de ser das coisas.

se na poesia torno-me pedra,

e à pedra cabe

ser vento

com quais criadores,

outras formatações?

69
70
Uma segunda questão insistente e cartografada nesta pesquisa, que se dá junto ao tal

movimento concomitante e alternado entre o nada esvaziado e o nada que produz outros, é a

da problemática em torno do eu. Um equívoco que atropela a escrita: o “eu” escrevo, nós

escrevemos e ainda o “escreve-se”. Um problema de pessoalidade, não somente de

conjugação de um tempo verbal, mas de onde a escrita parte, para onde se lança e o para

onde nos lança.

por vezes é num rasgo, uma morte que acontece e não mata. Performa(t)ivo?

Performa(v)ivo! Um bocado de coragem para esbarrar os limites e por vezes, quando se

pode, ultrapassar. No artigo de kuniich uno, “ corpo gênese ou tempo-catástrofe: em torno

de tanaka min, de hijikata e de artaud”, testemunha a escreve de uma conversa entre hijikata

e tanaka min em torno da improvisação.

Hijikata pergunta a min em tom provocativo:

- o fato de ter nascido já é uma improvisação, por que você improvisa na dança?

Hijikata responde rindo:

- Eu nasci já destruído, fui quebrado desde meu nascimento, nasci com um fissura (…)

poderia, diante da fissura, atadura. Mas ao escolher performatizar, rasgar, não nomear,

conviver com um choque de 220volts no seio do texto, então pronto! Cá está, corpo-escrita,

escrita-corpo, se fazendo, se fazendo, se fazendo.

A vida e o corpo são no fundo a mesma coisa, mas para que eles sejam
efetivamente a mesma coisa, é preciso descobrir o corpo em sua própria
força de gênese. […] campo de batalha em que se entrecruzam as forças
visíveis, invisíveis, a vida e a morte, em que se encadeiam as redes, os

71
poderes, as porcarias.43

a rota e o dançar para nada do c.e.m marcam um procedimento, ao qual retorno muitas

vezes no trato com as porcarias que obstruem a vitalidade do texto e da vida. Um fazer que

é clínico, justamente pela opção e atenção no estar com: as porcarias, o medo, com o que

despotencializa. Poder extrair potência ao acompanhar tais avessos, fazer uma volta que

vivifica o que se vê amordaçado. No limiar, poder cuidar e produzir escritas “menores”.

Entender que corpo, do modo aqui pensado, não fala de um eu. E que todo o problema da

morte do autor não está garantido sob nenhuma forma (excluir o eu, usar o plural ou uma

terceira pessoa indefinida). Escrita como exercício de composição, sendo o eu uma das

linhas que a compõe.

e tudo isso é um jogo entre aparecer e desaparecer,

quando desapareço

verte,

um tipo de texto (...)

43
UNO, Kuniichi. Corpo–gênese ou tempo–catástrofe: em torno de Tanaka Min, de Hijikata e de Artaud.
Cadernos de Subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Psicologia Clínica, PUC, São Paulo, 2010, p. 44.
72
PARTE IV:

Aproximações

Lisboa-SP: percursos Vila Anglo Brasileira


País: brasil
Cidade: são paulo
Bairro: vila anglo brasileira
Rotas vila anglo

E como a cidade poderia ser sem homem ou antes dele, o


espelho, sem a velha que nele se reflete, mesmo se ela não
se mira nele? É o enigma (frequentemente comentado) de
Cézanne: “o homem ausente, mas inteiro na paisagem”.44

O trabalho de corpo-escrita pelas ruas da Vila Anglo Brasileira aconteceu durante seis

meses, em parceria ao Condomínio Cultural Mundo Novo com seis participantes fixos e

alguns flutuantes. O Condomínio Cultural existe num prédio que foi a primeira casa do

bairro, que tornou-se a principal escola e posteriormente um hospital. Os moradores do bairro

têm uma forte relação com o local. Estudaram ali, acompanharam nascimentos (na

maternidade) e mortes neste hospital. Correm algumas lendas fantasmagóricas, sobretudo

durante os 15 anos nos quais o prédio ficou abandonado e fechado. Em 2009 O espaço passa a

abrigar o embrião nomeado Condomínio Cultural Mundo Novo, que não é um centro cultural,

mas um coletivo de artistas e não artistas que realizam processos de criação neste espaço

basicamente em dois regimes de utilização. Alguns alugam o espaço para ensaio, ateliê, aulas.

Outros fazem da relação com o prédio o entremeio de suas criações site specific, imbrincadas

no espaço do prédio (como o coletivo das meninas sem nome). O trabalho da rota,

inicialmente proposto por mim, vinha no cruzamento do meu desejo de estar na rua com

outros artistas pesquisando e delineando práticas que vinham desde o c.e.m (mas agora num

44
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219.
75
contexto outro) e da vontade dos coordenadores do Condomínio (Géssica e Kako) de abrir

mais a relação do condomínio com o bairro. A mim, as rotas vila anglo possibilitaram entrar

em buracos nesse tête-à-tête com a geografia de são Paulo, talvez, fazendo a passagem de

Lisboa para a megalópole paulista na qual fui tão estrangeira. O fiz com bueiros, escadas e

zigue zagues do bairro.

Não tínhamos uma finalidade para essas saídas, no aspecto de ter um “resultado” em

comum ou um produto final. Não éramos um grupo, nem um coletivo, mas pessoas que se

encontravam uma ou duas vezes na semana para estar de três a quatro horas na rua. Haviam

algumas propostas delineadas antes das saídas, uma direção de pesquisa: corpo na rua

destituindo-se o quanto possível da ideia de fazer coisas e ampliando a porosidade para ser

afetado pelos relevos, sons, temperaturas, durações de cada encontro. Como cada um utilizou

(ou não) em seus trabalhos artísticos e nas próprias vidas tais excursões, não sei. Digo de

mim, de que fuligens grudadas no corpo, na descoberta dos incalculáveis lençóis freáticos

sobre os quais a Vila Anglo se ergue. O que ouvidos atentos escutam em bueiros do bairro é

água correndo em alta velocidade, os rios encobertos da cidade de São Paulo.

Como alguém que incialmente propunha as saídas, propus pesquisar a direção

animista na rota, inventar no corpo espaços menos atrelados ao sujeito que sente, pensa,

percebe e observa. Já nas primeiras saídas o movimento que parece insistir enquanto força é o

da comparação, da contemplação, da crítica. Há algo que julga a rua. Uma vez percebido, a

segunda saída a rua vêm com o trabalho de pesquisar outras possibilidade de olhar, deslocar o

modo como se tecem as conexões com o espaço. Não somos nós quem propomos, as coisas

existem, acontecem, e nossa presença compõe. Como estar com o espaço?

Trazer para a dissertação o COMO isso se dá, em alguns momentos, parece-me um

pouco inviável, a não ser pelos enxertos de textos produzidos durante a rota. Com tais textos

talvez seja possível acontecer. Ter as micro partículas do corpo sofrerem alguma alteração: de

76
temperatura, no ritmo da respiração, na conexão com outros possíveis, com um espaço por

vir. Se nada passa no corpo do texto, essa também é uma possibilidade. Escolho enxertar

alguns fragmentos de textos produzidos nas saídas. Gosto de quando fala Deleuze do efeito de

um livro no corpo, no que nos interessa ou não, na leitura de um livro como uma ligação

elétrica. Se conectou siga em frente, senão feche o livro e vá fazer outra coisa.

77
78
Figura 3 - Casa 4, 2012. Foto: Amaranta Krepschi

79
80
Saída 01 , pela rua mundo novo

Percorrida toda a rua bica de pedra, é em caracol que acontece. De baixo ao alto ela vai em

curvas, ziquezagueando pelo morro. Hoje fomos eu, gessica e vicente e o sol de duas da tarde

de verão e asfalto. Silêncio de gente na rua. Pássaros e moscas. Então, uma certa aridez e a

pergunta: qual a necessidade desse estar? E se necessidade é mais uma palavra pra se

desconfiar que seguir, que tipo de encontro é possível diante de uma certa organização

“funcional” deste bairro e da cidade? Como ir notando os espaços nos espaços? Qual a

diferença entre estar no espaço e com o espaço? Neste exercício, o que se altera? E mais: é

preciso que se altere? O espaço, que pode querer de nós? A rua, as escadelas? O senhor que

passa com sua carriola de embalagens e papelões?

Na prática se evidencia: a insistência de uma presença altera conjunturas. Instaura outras

atmosferas.

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Saída 02

Das camadas que se fazem, as vezes mais finas, outras mais largas, entre a pele e uma outra, o

timbre da voz e os olhos da menina, o trepidar de alguma coisa que reverbera (...) Assim meio

sem nexo, já subindo a rua bica de pedra, um portão aberto. Quase encostado na rua, um

brechó. Crianças, uma adolescente e a mulher. Do andar de cima da casa uma garota grita:

pega essa bola pra mim? Do outro, na beirinha da rua, bola colorida. Agacho, pego, atravesso

a rua e ao atravessar, recebem-me. Arremesso, obrigada, de nada, já estou. Quase na rua,

quase na calçada, quase no brechó. Entre o primeiro e o segundo andar da casa-garagem-

brechó da vera. Papeamos das curvas do bairro, dos 30 anos que vivem ali. Dos filhos, de

dança, das 3 igrejas da vila anglo, do condomínio cultural. Sapatinhos coloridos, uma mulher

entra, experimenta, aguarda. As meninas ensoneadas acabam de acordar. Abre-se algo em

meu peito e há uma certa alegria no ar.

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Saída 03

Dessa vez as ruas não se deram em curvas. Mais retas, talvez por reverberação à esquina

noventa graus da pri pela qual iniciamos a terceira rota. Os redondos apareceram mais em

bolsões de ruas sem saída. Em bando saímos, em bando retornamos. Instaura-se um certo

brincar, casa na árvore no meio da praça (!), crianças de bicicleta na rua bica de pedra,

“gelinho” de tuti-fruti do seu zé ao fim do percurso. A memória da rota recoloca seus pontos:

o tal muro de proporções infinitas, alto, cinza, grosso, intransponível. O achado fantástico da

casinha na árvore na lateral da praça e já lá na frente a gritaria de todas as crianças que falam

e fazem coisas ao mesmo tempo. A força de movermo-nos juntos na segunda pareceu falar de

territórios. E também de quando e como vão se dando momentos onde a espessura entre a pele

e alguma coisa se torna mais fina...momento no qual alguma comunicação acontece, não

delimitando-se a objetividade do bom dia, boa tarde, como vai? Uma outra, que fala de outras

coisas, ouve outras vozes, vê o que não se vê.

83
Saída 04

Amplia-se a superfície. Esticar a pele, desdobrá-la em mil. As zonas de contato agora são

outras. Não se trata de uma chave, um ligo/desligo. Há uma opção pelo estado de trabalho, em

como alargar os micro poros, permitir a passagem em constante trânsito. Neste primeiro mês,

a rota vila-anglo se fez com os que têm estado continuamente e os “visitantes”. Eis que então,

na última rota, duas espécies de tempo se instauraram: o tempo de quem já estava; o tempo de

quem chegou. O primeiro fazia-se evidentemente mais rápido, o outro mais lento. Como se

fôssemos dois corpos, duas matérias, pergunto: conectamo-nos? Tais corpos, em suas

diferenças, relacionaram-se? Dançaram junto? Formou-se um terceiro corpo, que já não é

esse, nem aquele, mas um terceiro que se cria no encontro? Das perguntas que não calam, essa

é vital. Vou seguindo e pensando que o estado de “presença” de um corpo se faz por inúmeras

vias, inclusive a sustentação de uma abertura ao que vêm. Parece-me que o estado de

“passeio” proposto pelas duas visitantes dessa semana colidiram com o que já ganhava forma

em três encontros. Como se existisse previamente uma maneira de estar já estipulada, que não

pudesse ser aquela, do encontro de agora. Há critérios a serem respeitados?

Algo atenta às reações que se dão a partir do embate de corpos propondo diferentes. Sendo

esta rota um corpo comum, feito de milhares de outros, quando se sustenta de fato o espaço da

alteridade?

84
Saída 05

(nessa rota eu não estava). Abaixo escritas da pri45:

A proposta foi de fazermos a rota com uma alteração no percurso, ao invés da praça da casa

na arvore seguirmos direto para o brechó, subimos por outras ruas até sariguama e daí

desceríamos para o brechó. Nas pausas, todos deveriam escrever por 5 minutos sem parar. Eu

contava o tempo.

As águas que sustentam a vila anglo foram observadas novamente. Vimos o riacho pela fresta

da rua perto da praça do rio dos campos. Por isso a outra rua chama bica da pedra. Talvez. A

parte do túnel na rota é tão árida, seca, ausente de vida, com concreto por todo lado, não

traços do rio que certamente passa por debaixo dele.

Alteramos o percurso da rota, um novo estado de observação se abriu para gente. O percurso

se encheu de casas, uma do lado da outra, sem pausas, casas com teto no chão, casas edifícios,

moradas, contraste da casa rica ao lado da casa abandonada. Ana perguntou o que a faz

lembrar que está em são paulo. As casas me levaram para outro lugar que não sp, me levam a

casa da minha avó, as brincadeiras de infância. Me levaram a um outro tempo. Acho que a

energia do grupo mudou quando seguimos nesse novo caminho.

"o bairro está movimentado hoje. Nas costas o barulho do freezer, na testa o de pássaros, do

lado esquerdo o de serra. Quais movimentos se repetem nesta esquina? Costas no bar, pés na

rua. Corpo cheio de coisas, como se os órgãos pesassem muito mais hoje como de costume.

Lá dentro pesa, a pele flutua, está sobre ela mesma. A escrita escorrega, escapa, as vezes

acontece, a qualidade da presença na observação escorrega, escapa, as vezes acontece."

45
Priscilla Carbone, atriz e performer residente na cidade de São Paulo que conheci em Lisboa no c.e.m.
85
Saída 06

(...) De um lugar mais perigoso, uma maneira freqüente de encontrar os lugares. Um estado de

presença que arrasta ao campo da identidade. Que pula de um espaço a outro como se

fossemos nós, humanos, sempre a ver e encontrar as coisas.

Dia desses numa aula alguém deambulava as características do mar em sua profundidade.

Então, perguntou-se: quando dizes profundo, é tomando a ti como referência? ...que para um

peixe o mar pode ser outra coisa. Perceber o apelo identitário ao qual funcionamos, também

neste processo. Uma necessidade de entender o que é a rota, o bairro, como se organiza. De

criar relações com o que já faço.

– mas de certa maneira já faço algo similar a rota todos os dias quando passeio com meu cão

perto de casa, disse ela. Se por um aspecto essa frase indica o quão a criação de algo pode se

dar no limiar da cotidianidade, há também uma problemática, principalmente se não há espaço

para arrastamentos e estranhisses. Costumo usar como ferramenta de combate nessas horas a

palavra limpeza. Quando farejo a “flutuante”, essa apaixonada, que passa os olhos com sua

leveza e rapidez e já quer dizer coisas; volto à limpeza. Tem sujeira aí!? Quando noto que as

conexões todas passam por mim como centro (me usando demais como referência pra pensar

uma esquina, um quintal e o diferente);volto à limpeza! Descentralizo, lembro que do que sei,

pouco importa. E que em um trabalho de criação com a cidade, vale mais criar outras visões

que fortalecer as existentes. Vale muito mais não saber que ter alguma espécie de razão.

E tudo isso é sobretudo muito principiante, coisas que já não são de hoje neste trabalho, em

outros, vêm desde lá o c.e.m e lisboa e...com sofia:

Não estamos sempre a começar?

86
Saída 6.2

Acho que prefiro as intervenções efêmeras do que as que ficam. Não as casas todas pintadas

por tempo indeterminado, mas lanternas de papel que ao cair da noite se acendem enquanto

durar o papel, enquanto não vier a chuva. Sons instalados nos becos, movimentos que alteram

o espaço, o fazer de maneira efêmera é duradoura, é um outro tempo, talvez o tempo de uma

intensidade. Então um dia tornam-se o tempo de uma lembrança, o beco das árvores, o beco

do lyncoln, o beco das árvores, o beco das crianças, o beco do cão de duas cabeças, das

graminhas que nascem no vão entre as pedras, das nádegas na beira das portas que se

levantam quando alguém quer entrar. Camadas todas do mesmo espaço nomeado beco do

jasmim. Diante dessa praça da vila anglo brasileira sofia poderia bem dizer: ai que fixe essa

casita na árvore!!! E digo eu: ter-te aí, teto de copa de árvore, chão de madeira, ausência de

paredes, escadita de paus, senhorinhas passando com seus cães, e essas raízes! Coisa incrível

mesmo do outro lado da rua descobrirmos um rio escondido, coberto pelo asfalto, abaixo de

um bueiro. O som é alto, vivo, corrente. Entre o rio submerso e a praça da casa na árvore, um

muro a dizer: soldado da paz.

Hoje venta muito nas minhas orelhas, mas na árvore o vento parece chegar devagar. (mais

tarde géssica conta que o chão da casinha balançou com o vento e o corpo todo zonzeou). Ter-

te aí casa na árvore, tronco torcido, copa alargada. Algo do viver é mesmo pulsante e escrever

continua sendo possibilitar a existência.

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escadarias entre a rifaina e mundo novo

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Figura 4 - Escadaria Rifaina I, 2012. Foto: Amaranta Krepschi

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Figura 5 - Pés, escada, homem, 2012. Foto: Amaranta Krepschi

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Figura 6 - Crianças, 2012. Foto: Amaranta Krepschi

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Foto 7 - Buraco, 2012. Foto: Amaranta Krepschi

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A partir da oitava rota, a escadaria entre a rua rifaina e a rua mundo novo entra com

tamanha força no percurso que cria um desvio. Passamos a habitá-la, estar horas neste espaço,

eu, priscilla carbone e ana dias.

Ao seguir pela rua rifaina, lá depois da segunda curva, uma abertura que não é portão, nem
casa: é escada. Longa; acinzentada, no cimento chapiscado. Lá embaixo, a rua novo mundo.
Entre o em cima e o em baixo, portão 66, pintado de preto. Ao lado, casa de gradio branco e
baixo, uma laje, senhor e crianças nos observam perambular, pausar, olhar a avenida
pompéia do alto, e de rabo de olho, o quintal alheio.

Esfrego os cabelos, a palma das mãos e os pés descalços no chão, e ao andar no beirio da
escadaria, caminho no limite do que é rua e do que é casa. Há muitos passantes hoje, mães
com seus bebês e crianças, com e sem sacolas, homens, moradores com as seis da tarde
chegam escada adentro até suas moradias. Nós três continuamos ali. Há uma pausa que abre
outro tempo.

Meu corpo numa vertical de muita sustentação, quase todos os degraus sobre minhas costas,
há um ponto que a escada é abismo, uma inclinação interessante. Um passo a mais, não
se sabe o que vêm, acontece um corte abrupto no espaço. Neste ponto “cego” de abismo,
quem chega de baixo também não percebe a continuação da escada para o alto.

Sobe uma menina de uns 8 anos, pele morena, cabelos presos, sobe rapidamente, num pique
corre, outras crianças vêm atrás, ao longe. Sobe olhando pro chão, pra trás, a vejo, a vejo
até que ponto cego, some do campo de visão e! Se dá num tremendo susto o encontro de
nossos olhares, de nossos corpos, da atmosfera em pausa daqui e subindo correndo de lá. Ela
pausa, arregalados olhos. Sustentado o silêncio, a pausa, o não saber, abre-se um tempo
gigantesco, gigantesco, gigantesco. Então ela retoma o subir, correndo, esperando os que
atrás a seguem. Passa por mim, todo corpo reconfigura-se a partir de tal encontro, já não é
silêncio, nem pausa, uma reverberação que ganha contorno na procura, outra figura-corpo
se contorna, não mais verticalidade, mas a conexão mãos no chão, coluna toda curvada,
como num círculo, pés e crânio colados. Dois moleques passam, olham meu quadril para o
alto virado pra avenida pompéia.

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Saída 11

Quando me coloco em pé na escada que desemboca na rua mundo novo, quando me coloco

numa presença mais ativa, não me refiro a fazer coisas. É antes uma presença que deixa

inúmeros espaços “vazios” e silenciosos e desprovidos de intenção. Mas esta lá. Micro poros

em diálogo, cada ínfima parte acordada e em relação. Nos lugares que emperro, forço a

passagem, movo um bocadinho a mais ou menos para que vá, continue e insista. Algo pede

passagem. Possibilito? Ao fechar os olhos, dois homens nos notam, quase me perco, finco os

olhos nos olhos, na terra, finco as costas na respiração dela, a escada está ficando

infinitamente maior nesse instante e acompanho tal movimento, (...)

Saída 12

De um encontro matinal entre lisboa e são paulo, de afetos outrora nascidos e continuados:

escadas.

Sem início ou fim, o subir e descer se fazem na direção escolhida no presente momento. Em

sua dimensão física e num uso funcional, leva de um lugar a outro. Ele passa, diz boa tarde.

Ela passa, pede licença, outro, uma respiração ofegante. A escadaria entre a rua rifaina e a

novo mundo é comprida, um bocado infinita e por agora, há um ponto na qual certa confusão

acontece. Uma ruptura, uma espécie de abismo, espaço de descontinuidade (dos degraus que

seguem um após o outro quase que numa certeza). Não se sabe ao que vêm. E instiga.

Ouvir os que passam ao lado, acima, abaixo, por todo lado. As laterais da escadaria contam

com portas e portões das casas que ali existem. Entradas e saídas, porta preta, uma azul de

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madeira descamada, de cimento, portãozinho baixo que dá em dois degraus e uma porta. Entre

tantas, a casa 66 avança e nos encontra.

A lateral está bem viva e expande, desloca a estreiteza física à largura intensiva.

Fragmento de escrita:

Hoje a escada tem cheiro de nada. Bitucas, musgos e este corpo equilibram-se na beiradinha.

Essa beira das coisas exige muita raiz nos pés. As solicito: venham enraizar-se junto ao chão

da escada. Pois, quero ouvi-las passando e contando algo de hoje. Respiração ofegante de

alguém que passa, pausa, peso do corpo descendo. Invade (ou compõe o fluxo?) Uma

vontade: quero poder continuar ser afetada por algumas coisas do mundo.

Saída 12 a

Hoje meu ciático convoca as pernas até o dedinho do pé. Chove. Há duas semanas chove

muito em são paulo. Há um quê de pausa em rotas que começaram lá pra março com muitas

pessoas e...

A rota hoje parece desembocar das escadas daqui diretamente a uma escadaria imensa que

parte do largo da mouraria, de um telefone público, de uma linha de árvores, da casa que ano

passado abrigou o lugar das pessoas no festival pedras d’água. Essa possibilidade de

espalhar-se, de estar aqui e lá e aqui e lá, ao mesmo tempo... É mesmo intrigante ...

(...)

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Figura 8 - Escadaria Rifaina II, 2012. Foto: Amaranta Krepschi

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