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O Livro do Cortesão de Baldassare Castiglione – tradução e comentários de


passagens a respeito da música por Carin Zwilling

Article · November 2016

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Carin Zwilling
University of São Paulo
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Carin Zwilling 1 
 
 
O Livro do Cortesão de Baldassare Castiglione  
– tradução e comentários de passagens a respeito da música  
 
 
São Paulo, 2016 
 
                          
         
 
 
 
 

1
Carin  Zwilling  é  graduada  em  Música  e  em  Teologia.  Tornou‐se  Mestre  em  História  da 
Arte  pela  UNICAMP  (1996)  e  Doutora  em  Estudos  Linguísticos  e  Literários  em  Inglês  pela 
USP,  FFLCH,  Departamento  de  Letras  Modernas  (2003)  com  a  tese  As  Canções  de  Cena  de 
William  Shakespeare  –  resgate  das  canções  originais,  transcrição  e  indicações  para 
tradução  (tese  publicada  pela  Annablume  Editora,  sob  patrocínio  da  FAPESP,  2010  e  Corda 
Music, Inglaterra, 2015).  
Lecionou  Filosofia  da  Arte  na  Faculdade  de  Artes  Santa  Marcelina  por  8  anos,  e  alaúde  e 
música de câmara no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes – USP‐SP 
por 4 anos.  
Completou  seu  Pós‐Doutorado  em  Teologia  na  PUC‐SP,  sob  supervisão  de  Alex  Villas  Boas 
Mariano  em  2015,  com  o  estudo  e  a  publicação  da  Hierarquia  Celeste  de  Dionísio  Pseudo‐
Areopagita, pela Polar Editora, 2015. Atualmente segue sua pesquisa com um segundo Pós‐
Doutorado também em Teologia na PUC‐SP. 
RESUMO 
 
Il  Cortegiano  de  Baldassare  Castiglione,  publicado  em  1528,  é  um  dos  livros 
mais  conhecidos  e  mais  característicos  do  Renascimento  italiano.  Relata 
diálogos  que  o  autor  manteve  na  corte  de  Urbino,  sobretudo  aquilo  que 
convém  à  formação  do  perfeito  cortesão.  Pelo  tom  elegante,  pela  atmosfera 
serena  que  estabelece  o  refinamento  intelectual  do  diálogo,  O  Cortesão,  ao 
lado  do  Príncipe  de  Maquiavel  e  Orlando  Furioso  de  Ariosto,  é  um  dos  livros 
que  melhor  revelam o espírito e o gosto do Renascimento. É ao mesmo tempo 
um  manual  de  boas  maneiras  e  um  código:  o  código  da  elegância  do 
pensamento e do gosto que se tornam elegância e refinamento dos costumes. 
Visamos  neste  artigo,  assinalar  e  traduzir  alguns  dos  livros  do  Cortesão  que 
contém  passagens  a  respeito  da  música;  e  contemplá‐las  com  explicações, 
comentários e notas. 
 
ABSTRACT 
 
Il  Cortegiano  of  Baldassare  Castiglione,  published  in  1528,  is  one  of  the  best 
known  and  most  characteristic  books  of  the  Italian  Renaissance.  It  reports  the  
conversations  that  the  author  kept  in  the  court  of  Urbino,  especially  what 
befits  the  formation  of  the  perfect  courtier.  By  the  elegant  tone,  by  the 
serene  atmosphere  that  establishes  the  intellectual  refinement  of  the 
dialogue,  The  Courtier,  next  to  The  Prince  of  Machiavelli  and  Orlando  Furioso 
of  Ariosto,  is  one  of  the  books  that  best  reveal  the  spirit  and  the  taste  of  the 
Renaissance.  It  is  at  the  same  time  a  manual  of  manners  and  a  code:  the  code 
of  elegance  of  thought  and  taste  that  becomes  elegance  and  refinement  of 
manners.  
In  this  article  we  aimed  to  point  out  and  translate  some  of  the  books  of  The 
Courtier  that  contain  passages  about  music;  and  contemplate  them  with 
explanations, commentaries and notes. 
CONDE BALDASSARE CASTIGLIONE 
  ( n a s c i d o   e m  C a s á t i c o ,   p e r t o   d e   M â n t u a   e m  6   d e   d e z e m b r o   d e   1 4 7 8 ;    

f a l e c i d o   e m  T o l e d o ,   e m  2   d e   f e v e r e i r o   d e   1 5 2 9 )  
 

RAFAEL SANZIO, Retrato de Baldassare Castiglione (1514–1515).  
Ó l e o   s o b r e   t e l a ,   82 cm × 67 cm. M u s é e   d u   L o u v r e ,   P a r i s   
Nascido  em  uma  família  aristocrática,  o  Conde  Baldassare  Castiglione  foi 
enviado  à  Milão  para  receber  sua  educação  nos  moldes  da  corte  de  Ludovico 
Sforza.  Embora  os  detalhes  desse  período  sejam  insuficientes,  é  claro  que  foi 
em  Milão,  onde  estudou  na  Universidade  latim  e  grego  além  de  esgrima, 
combate  e  luta,  que  ele  adquiriu  seus  conhecimentos  militares  e  seu  tino 
para  relações  públicas  que  o  levaram  a  ser  contratado  por  vários  nobres  das 
cortes  de  Mântua  e  Urbino.  Cultivou  durante  toda  sua  vida,  embora 
amadoristicamente, um interesse pela literatura e pela Antigüidade Clássica. 

Em  1504,  após  um  infeliz  período  em  Mântua,  entrou  para  o  serviço  de 
Guidobaldo  de  Montefeltro,  Duque  de  Urbino.  Os  anos  seguintes  foram  de 
uma  vida  mais  plena  e  satisfatória.  Ele  obteve  a  confiança  do  Duque,  que 
frequentemente  encarregava‐o  de  importantes  missões;  e  nos  momentos  de 
lazer  participava  das  atividades  literárias  e  intelectuais  da  corte  –  uma  das 
mais  brilhantes  da  Itália.  Após  a  morte  de  Guidobaldo  em  1508,  Castiglione 
passou  a  servir  do  novo  Duque,  Francesco  Maria  della  Rovere  tornando‐se, 
em  1513,  embaixador  residente  em  Roma.  Em  1515,  com  a  expulsão  de 
Francesco  Maria  da  cidade  de  Urbino,  ficou  sem  trabalho,  e  nos  anos 
seguintes  (de  1516  a  1519)  viveu  sossegadamente  em  suas  terras  nas 
cercanias  de  Mântua.  Em  1519,  retornou  a  Roma  como  embaixador  de 
Mântua,  e  em  1524  entrou  para  o  serviço  do  Papa  Clemente  VII  que  enviou‐o 
à  Espanha,  como  Núncio  Apostólico.  Castiglione  veio  a  falecer  em  Toledo  em 
1529,  sendo  considerado  por  Carlos  V  como  “um  dos  mais  refinados 
cavalheiros do mundo.” 

A  idéia  de  escrever  O  Livro  do  Cortesão  surgiu  quando  Castiglione 


trabalhava  na  corte  de  Urbino.  Um  primeiro  esboço  foi  feito  entre  1508  e 
1516,  especialmente  em  Roma,  enquanto  cuidava  dos  interesses  de  Francesco 
Maria  della  Rovere  e  usufruía  da  companhia  de  velhos  amigos  de  Urbino,  que 
agora  eram  oficiais  do Papa. Após sua conclusão, o manuscrito foi mostrado a 
vários  amigos,  incluindo  Pietro  Bembo  [conforme  uma  carta  enviada  a  ele  em 
1518].  Pouco  foi  feito  até  1526,  mas  as  notícias  da  morte  de  Elisabetta, 
esposa  de  Guidobaldo,  alcançaram  a  Espanha  e  reavivaram    suas  memórias  de 
Urbino. 

No  início  de  1527  ele  enviou  o  manuscrito  com  cuidadosas  correções  e 
instruções  para  o  editor  Aldine  em  Veneza,  e  finalmente  em  1528  o  livro  foi 
publicado.  Imediatamente  atingiu  enorme  sucesso  exercendo  profunda 
influência,  e  logo  foi  reeditado  e  traduzido  para  vários  idiomas. 1

Ao  escrever  O  Cortesão,  Castiglione  tinha  dois  objetivos,  como  explica 


J.R. Hale: 2 

“ f a z e r   u m  r e t r a t o   d a   c o r t e   d e   U r b i n o ,   n o   m o m e n t o   e m  q u e   e l e   s e n t i a  
u m a   p r o f u n d a   n o s t a l g i a ,   e   d e s c r e v e r  a   f o r m a ç ã o   d o   c o r t e s ã o   t ã o  
a m p l a m e n t e ,   d e   m o d o   q u e   s e u s  c o n s e l h o s   p u d e s s e m  s e r  a c e i t o s  p e l o  
p r í n c i p e ,   a l é m  d e   c o n t r i b u i r   p a r a   a   s e g u r a n ç a   e   b e m  e s t a r  d e   u m a   I t á l i a ,  
e n t ã o   m a l   g o v e r n a d a .   E s c r e v e n d o  e m  u m  i t a l i a n o   e c l é t i c o  e   a c e s s í v e l ,  
Castiglione  empregou  mudanças  de  caracterização  e  descrição,  para 
t r a z e r  à   l u z   p e s s o a s   e   l u g a r e s ,   e   p a r a   e x e m p l i f i c a r   o s   i m p e r a t i v o s   m o r a i s  
d e   n u n c a   s e r  e n t e d i a n t e . ”  
 

Il  Cortegiano  tornou‐se  a  base  das  maneiras  do  cortesão  que  influenciou 
a  nobreza  e  os  escritores  renascentistas  de  toda  Europa.  À  parte  da 
importância  como  um  livro  de  etiqueta,  O  Cortesão  é  uma  fonte  histórica 
social  e  intelectual  primordial  do  século  XVI,  sendo  hoje  considerado  como  o 
livro  mais  representativo  do  Renascimento.  Não  somente  um  livro  de 
cortesania,  mas  também  um  livro  político,  justificando  o  lugar  do  cortesão, 
sucessor do cavaleiro medieval na sociedade, tratando de estabelecer o papel 
e o status do novo tipo de cortesão.  

Neste  aspecto  os  diálogos  a  respeito  da  música  são  fundamentais,  não 
somente  para  entendermos  a  função  desta  na  sociedade  moderna,  mas 
também  para  conhecermos  os  instrumentos  então  usados,  as  características 
de sua execução e os momentos adequados para a realização musical.   

Castiglione  também  escreveu  poesia  pastoral  e  cortesã  em  italiano  e 


latim, incluindo o drama em verso Tirsi (1506). 
Morreu  aos  50  anos,  em 1529,  de  febres  provocadas  por  uma  peste,  em 
Toledo,  Espanha.  Em  1530,  seu  corpo  foi  transportado  para  o  santuário 
mantovino  de Nostra  Signora  delle  Grazie,  onde  Baldassare  mandara, 
conforme  vontade  expressa  em  seu  testamento  em  1523,  construir  um 
monumento fúnebre. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

A Sala delle Veglie no Palazzo Ducale di Urbino 
P r o v a v e l m e n t e  o   l o c a l   o n d e   se   d e r a m  a s   r e u n i õ e s   q u e  
i n s p i r a r a m  I l   C o r t e g i a n o   d o   C o n d e   C a s t i g l i o n e .
Baldassare Castiglione, O Cortesão, livro I 
 
Após  todos  terem  se  rido  disso,  o  Conde  assim  continuou:  –  Cavalheiros, 
eu  devo  dizer‐lhes  que  eu  não  estou  satisfeito  com  nosso  cortesão  a  não  ser 
que  ele  seja  também  um  músico  além  de  um  conhecedor,  e  que  possa  ler  e 
tocar  vários  instrumentos.  Pois,  quando  pensamos  nisto  durante  nosso  lazer, 
não  podemos  achar  nada  mais  recomendado  para  ajudar  nossos  corpos  a 
relaxar  e  nossos  espíritos  a  se  recuperar;  especialmente  na  Corte,  pois  a 
música  ajuda  a  esquecer  os  problemas,  e  onde  muitas  coisas  são  feitas  para 
agradar  as  damas,  cujas  almas  gentis  e  suaves  são  muito  susceptíveis  à 
harmonia  e  à  doçura.  Assim,  não  é  um  prodígio  que  tanto  nos  tempos 
passados  quanto  nos  atuais,  todos  foram  extremamente  afeiçoados  aos 
músicos e saudaram a música como um verdadeiro revigoramento do espírito. 

O  Senhor  Gaspare  então  comentou:–  Eu  penso  que  a  música,  como 


outras  futilidades,  é  mais  adequada  às  mulheres,  e  talvez  àqueles  que  têm  a 
aparência  de  homens,  mas  não  são  homens  de  fato,  pois  estes  não  devem  ser 
induzidos  aos  prazeres  que  deixam  suas  mentes  efeminadas,  causando‐lhes  o 
medo da morte 3. 

–  Não  diga  isto,  retrucou  o  Conde.  –  Lançar‐me‐ei  agora  em  profundo 


louvor  à  música,  relembrando‐lhe  quão  grandemente  ela  foi  honrada  no 
mundo  antigo,  onde  foi  tida  como  sagrada,  de  modo  que  os  mais  sábios 
filósofos  sustentaram  a  opinião  que  o  Universo  foi  feito  de  música,  que  os 
céus,  ao  moverem‐se,  produziam  harmonia,  e  que  nossas  próprias  almas 
foram  formadas  pelo  mesmo  princípio  (...)  e  trazidas  à  vida  através  da 
música 4.  E  devido  a  isto  recordamos  que  Alexandre  ficou  tão  agitado  com  a 
música,  que  quase  contra  sua  vontade,  sob  sua  influência,  foi  compelido  a 
levantar‐se  da  mesa  do  banquete  e  empunhar  as  armas;  então  os  músicos 
tocaram  algo  completamente  diferente,  e  crescendo  sua  calma,  depôs  as 
armas  e  retornou  ao  banquete. 5  E  deixem‐me  contar‐lhes  sobre  o  grave 
Sócrates,  que  já  em  avançada  idade  aprendeu  a  tocar  a  cítara 6.  Além  disso, 
lembro‐me  ter  ouvido  que  Platão  e  Aristóteles 7  insistiram  que  um  homem 
educado  devia  também  ser  um  músico;  e  com  inumeráveis  argumentos 
mostraram  que  a  música  exerce  uma  influência  poderosa  sobre  nós  e,  por 
muitas  razões  que  tomariam  tempo  para  explicar,  eles  disseram  que  ela  devia 
ser  aprendida  desde  a  infância,  não  tanto  por  suas  belas  melodias,  mas 
devido  à  sua  capacidade  de  gerar  bons  hábitos  e  uma  disposição  virtuosa, 
tornando  a alma mais receptiva à felicidade, assim como os exercícios tornam 
o  corpo  mais  robusto.  E  mais,  disseram  que  a  música,  longe  de  ser  prejudicial 
à  perseguição  da  paz  ou  da  guerra,  é  grandiosa  em  seus  benefícios.  Então,  de 
novo,  nas  duras  leis  por  eles  estabelecidas,  Licurgo 8  deu  sua  aprovação  à 
música.  E  lemos  que  na  batalha  os  belicosos  espartanos  e  cretenses  usaram 
as  cítaras  e  outros  instrumentos  de  som  suave,  e  que  muitos  comandantes  do 
mundo  antigo,  como  Epaminondas, 9  praticaram  a  música;  e  aqueles  que  eram 
ignorantes,  como  Temístocles, 10  eram  pouco  respeitados.  E  acaso  o  Senhor 
não  ouviu    que  entre  os  primeiros  assuntos  ensinados  pelo  bom  Chiron  ao 
jovem  Aquiles, 11  estava  a  música,  e  que  este  sábio  e  venerando  professor 
desejava  as  mãos  que  iriam  verter  tanto  sangue  troiano,  para  empregar  na 
execução  da  cítara.  Que  tipo  de  guerreiro,  então,  se  envergonharia  de  seguir 
o  exemplo  de  Aquiles,  deixando  de  lado  todos  os  comandantes  famosos  por 
mim citados?  

–  Portanto  o  Senhor  não  deve  desejar  que  privemos  o  cortesão  da 


música  que  não  só  acalma  o  espírito  dos  homens,  como  também  domina  as 
mais  selvagens  feras. 12  De  fato,  o  homem  que  não  aprecia  a  música  pode 
estar  certo  de  não  ter  harmonia  em  sua  alma.  E  lembre‐se  que  ela  tem  tal 
poder  que  certa  vez  um  golfinho  se  deixou  ser  montado  por  um  homem  no 
mais  tempestuoso  mar. 13    Vemos  ela  ser  usada  em  lugares  sagrados  para 
render  homenagem  e  graças  a  Deus;  e  devemos  também  crer  que  ela    é 
agradável  a  Deus;  e  que  Ele  nos  a  deu  como  um  suave  bálsamo  para  acalmar‐
nos  em  nossos  trabalhos  e  atribulações.  Desta  maneira,  os  camponeses,  ao 
lavrar  a  terra  sob  o  sol  calcinante,  comumente  aliviam  seu  tédio  com  simples 
canções  campestres.  E  a  camponesa,  ao  acordar,  antes  do  amanhecer,  para 
fiar  ou  tecer,  usa  a  música  para  desviá‐la  do  sono  e  tornar  seu  trabalho  mais 
prazeiroso;  marinheiros  aflitos,  após  as  chuvas,  ventos  e  tempestades, 
gostam  de  relaxar  com  a  ajuda  da  música;  peregrinos  cansados  encontram 
consolo  na  música  em  suas  longas  e  exaustivas  jornadas,  bem  como  os 
prisioneiros  algemados  e  acorrentados  em  sua  miséria.  E  mesmo  na  mais 
forte  evidência,  a  que  até  as  melodias  menos  sofisticadas  aliviam  o  peso  de 
nossos  trabalhos  e  atribulações  deste  mundo,  encontramos  que  a  Natureza 
ensinou  música  às  amas‐secas  como  o  caminho  mais  seguro  para  cessar  o 
choro  dos  pequenos  bebês,  para  niná‐los  dando‐lhes  um  descanso  e  um  sono 
tranqüilo através do canto para eles produzido, esquecendo assim as lágrimas 
que são nesta idade presságios corretos e próprios de nossa vida futura. 

Após  o  Conde  ter  permanecido  em  silêncio  por  um  momento,  o 


Magnífico  Giuliano  falou:  –  Eu  não  sou  da  mesma  opinião  do  Senhor  Gaspare, 
pelo  contrário.  Dadas  as  razões  expostas  e  por  muitas  outras,  creio  ser  a 
música  não  só  um  ornamento,  mas  uma  necessidade  para  o  cortesão.  No 
entanto,  eu  gostaria  de  explicar  como  ele  deve  praticá‐la  e  de  que  outras 
realizações  devemos  incumbi‐lo,  e  em  que  ocasiões  e  de  que  maneira; pois há 
muitas  coisas  em  si  recomendáveis  mas  impróprias  quando  praticadas  na 
hora  errada;  e  por  outro  lado,  há  muitas  coisas  que  parecem  inconseqüentes 
mas que são muito estimadas quando executadas na ocasião adequada. 

 livro II 

Então  redargüiu  o  Senhor  Pallavicino:  –  Existem  diferentes  tipos  de 


música,  tanto  vocal  quanto  instrumental.  Deste  modo  eu  ficaria  grato  em 
saber qual é o melhor de todos e em que ocasião o cortesão deve executá‐la. 

–  Em  minha  opinião  a  música  escrita  é  encantadora  –  respondeu  o 


Senhor  Federico  –  assim  sendo,  deverá  ser  executada  em  bom  estilo  e  com 
precisão.  Mas  cantar  com  o  acompanhamento  do  alaúde 14  é  ainda  melhor, 
pois  toda  doçura  harmoniza‐se  num  todo...  Todavia,  cantar    um  poema 
acompanhado  pelo  alaúde  parece‐me  especialmente  aprazível,  pois  este 
instrumento acrescenta às palavras tal encanto e efetividade que é realmente 
maravilhoso.  Também  todos  os  instrumentos  de  traste  são  harmoniosos 
porque  seus  sons  são  perfeitos  e  com  facilidade  pode‐se  fazer  coisas  que 
preenchem  a  alma  com  a  doçura  da  música.  E  a  música  para  o  conjunto  de 
violas 15  não  é  menos  encantadora,  pois  é  muito  doce  e  artificiosa.  A  voz 
humana  acrescenta  graça  e  ornamento  a  estes  instrumentos,  dos  quais  eu 
penso  ser  suficiente    se    nosso  Cortesão  tiver  algum  conhecimento  (porém 
quanto  mais  maestria  melhor),  sem  referir‐me  longamente  àqueles  que 
Minerva 16  e  Alcibíades 17  rejeitaram,  pois  me  parece  que  tinham  alguma 
repulsa a eles. 
–  Em  seguida,  quanto  às  ocasiões  em  que  os  vários  tipos  de  música 
devem  ser  tocados,  darei  o  exemplo  do  homem,  quando  acompanhado  de 
seus  familiares  e  amigos,  e  sem  nenhum  negócio  urgente  a  tratar.  Mas  acima 
de  tudo,  o  momento  adequado  é  aquele  em  que  as  damas  se  encontram 
presentes,  pois  a  visão  delas  suaviza  o  coração  de  quem  está  ouvindo, 
tornando‐o  mais  susceptível  à  delicadeza  da  música,  e  também  estimulando  o 
espírito  dos  próprios  músicos.  Como  anteriormente  disse,  deve‐se  evitar 
tocar  na  presença  de  um  grande  número  de  pessoas,  especialmente  se  for 
gente  do  povo.  E  de  qualquer  modo,  tudo  deve  ser  moderado  pela  discrição, 
pois  é  quase  impossível  imaginar‐se  todo  tipo  de  circunstância,  e  se  o 
cortesão  for  um  bom  juiz  de  si  mesmo,  ele  adaptar‐se‐á  à  ocasião  e  saberá 
quando  sua  audiência  está  pronta  a  ouvi‐lo,  e  quando  não.  E  ele  agirá  de 
acordo  com  sua  idade,  pois  é seguramente inconveniente e desagradável para 
um  velho  senhor  grisalho,  já  desdentado  e enrugado, tomar a viola para tocar 
e  cantar  diante  de  um  grupo  de  damas,  mesmo  se  sua  execução  for  realmente 
boa.  Isto  porque  as  palavras  das  canções  são  quase  sempre  amorosas,  e 
vindas  da  boca  de  um  velho  elas  soariam  ridículas;  embora  por  vezes,  parece 
que  Cupido,  junto  a  outros  milagres,  possa  deleitar‐se  em  derreter  até  os 
gelados corações dos velhos. 

 
 

 
“O Amor”. Gravura de Raphael Sadeler, O Velho, baseada em Maarten de Voos, 1591. 
Técnica: buril. 26,4 x 32,6 cm. Da série As Quatro Idades do Homem.  
Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional do Brasil. 
 
U m  j o v e m  t r a j a n d o   r o u p a s   c l á s s i c a s   e   c o r o a   d e   l o u r o s   n a   c a b e ç a   t o c a   a l a ú d e  
e n c o s t a d o   n u m a   á r v o r e ,   c o m  C u p i d o   a c i m a   a p o n t a n d o   u m a   f l e c h a   p a r a   e l e ,  
s i m b o l i z a n d o   o   A m o r .   M a i s   a l é m ,   à   d i r e i t a ,   s e n t a d o s   n a   r e l v a   c o r t e s ã o s  se   e n t r e t é m 
t o c a n d o   i n s t r u m e n t o s   m u s i c a i s ,   d e s t a c a n d o ‐ se   a   v i o l a   d a   g a m b a .   À   e s q u e r d a   e s t á   a  
f o n t e   d e   D i a n a ,   u m  t o r s o   f e m i n i n o   j o r r a n d o   á g u a   d e   s e u s  s e i o s   s o b r e   u m a   t a r t a r u g a  
[ t e s t u d o   –   e m  l a t i m   t a r t a r u g a   o u   c a r a p a ç a   d a   t a r t a r u g a ;   m a s  t a m b é m  “ a l a ú d e ” ,   d e  
a c o r d o   c o m  J .   T i n c t o r i s ,   D i f f i n i t o r u m   m u s i c e s ,   c .   1 4 7 5 ; d e v i d o   a o   c o r p o   d o  
i n s t r u m e n t o   s e r  a b o b a d a d o   c o m o   a   c a r a p a ç a   d a   t a r t a r u g a ] .  A o s   p é s  d o   a d o l e s c e n t e  
h á   v á r i o s  i n s t r u m e n t o s   m u s i c a i s   d e s t a c a n d o ‐ se   a   v i o l a   e   u m a   c h a r a m e l h a   s e m 
p a l h e t a ;   p a r t i t u r a s   m u s i c a i s ,   a l é m  d e   u m a   r a q u e t e ,   u m a   e s p a d a ,   l u v a s   e   u m a   b o l s a  
d e   m o e d a s  [ t o d o s   e l e m e n t o s  q u e   f a z e m  p a r t e   d a   e d u c a ç ã o   e   e s m e r o   d e   u m  r e a l 
c o r t e s ã o   r e n a s c e n t i s t a ,   d e   a c o r d o   c o m  o s   p r e c e i t o s   d e   C a s t i g l i o n e ] .  
NOTAS 

1
  I l   L i b r o   d e l  C o r t e g i a n o   f o i   u m  d o s   l i v r o s  m a i s   l i d o s   d u r a n t e   o   s é c u l o   X V I .   R e c e b e u  
t r a d u ç õ e s  e   e d i ç õ e s  i m e d i a t a s   p a r a   s e i s   i d i o m a s ,   d e s t a c a n d o :   p a r a   o   i n g l ê s   p o r   S i r  
Thomas  Hoby,  1561;  espanhol,  pelo  poeta  Juan  Boscán;  português,  pelo  célebre 
v i h u e l i s t a   L u í s   M i l a n ,   d u r a n t e   s u a   p e r m a n ê n c i a   n a   c o r t e   d e   D .   J o ã o   I V   e m  P o r t u g a l ;  
p a r a   o   f r a n c ê s  e m  1 6 3 7 ;   e   p a r a   o   p o l o n ê s   p o r   L u k a s z   G ó r n i c k i  e m  1 5 6 6 .  

2
  H A L E ,   J .   R . ,   A   C o n c i s e   E n c y c l o p e d i a   o f   t h e   I t a l i a n   R e n a i s s a n c e .   L o n d o n :   T h a m e s 
and Hudson, 1981 (pp.73–74). 

3
  P a s s a g e m  i n t e r e s s a n t e   t e c i d a   p e l o   S e n h o r   G a s p a r e   q u e ,   n a   v e r d a d e   e n t r e l a ç a   d o i s  
c o n c e i t o s   c a r o s  a   P l a t ã o   e   a   A r i s t ó t e l e s .      
P l a t ã o   n a   A   R e p ú b l i c a ,   livro   I I I ,   c o m e n t a   o   s e g u i n t e   n o   d i á l o g o   e n t r e   G l á u c o n   e  
Sócrates: 
‐ Quais são, pois, dentre as harmonias, as moles e as dos banquetes? 
‐   H á   u m a s  v a r i e d a d e s   d a   j ô n i a   e   d a   l í d i a ,   a   q u e   c h a m a m  d e   e f e m i n a d a s .  
‐   E   e s s a s ,   p o d e r á s  u t i l i z á ‐ l a s   n a   f o r m a ç ã o   d e   g u e r r e i r o s ,   m e u   a m i g o ?  
‐ De modo algum, respondeu.  
‐   M a s  a r r i s c a s‐ t e   a   q u e   f i q u e m   a p e n a s   a   d ó r i c a   e   a   f r í g i a .    
[ O B S :   N o   L a q u e s   1 8 8 d ,   só   é   a c e i t o   o   m o d o   d ó r i c o ] .  
E   A r i s t ó t e l e s   n a   P o l í t i c a   r e c o m e n d a  a   i n s t r u ç ã o   m u s i c a l   a o s   j o v e n s ,   i n c l u i n d o   a u l a s  
e   a p r e n d i z a g e m  d e   i n s t r u m e n t o s   m u s i c a i s ,   p a r a   g u a r d á ‐ l o s   c o n t r a   o   o t i u m .   E l e  
c o n s i d e r a v a   a   m ú s i c a   n ã o   a p e n a s   u m  p a s s a t e m p o   h o n e s t o ,   m a s  u m  m e i o   d e  
e d u c a ç ã o   é t i c a ,   e   o s   l e i t o r e s  d e   P l a t ã o   s a b e m  q u e   e l e   l e v a v a   a   m ú s i c a   a   s é r i o   o  
suficiente  a  ponto  de  banir  todas,  exceto  as  harmoniai  dórica  e  frigia  de  sua 
R e p ú b l i c a   p o r q u e   e r a m  o s   ú n i c o s   m o d o s   q u e   i m i t a v a m  c o n v e n i e n t e m e n t e   “ a   v o z   e  
a s   i n f l e x õ e s   d e   u m  h o m e m  v a l e n t e   n a   g u e r r a   e   e m  t o d a   a ç ã o   v i o l e n t a ” ,   b e m  c o m o  
n a q u e l e   q u e   se   e n c o n t r a   e m  a t o s   p a c í f i c o s   m o s t r a   “ s e u   b o m  s e n s o   e   m o d e r a ç ã o   e m 
t o d a s   a s   c i r c u n s t â n c i a s ”   e m  q u e   se   e n c o n t r a   ( R e p ú b l i c a   I I I :   3 9 9   a ‐ c ) .  
A s s i m ,   a t r a v é s  d a   m ú s i c a ,   o s   a l u n o s   p o d e r i a m   a p r e n d e r   o s   a t r i b u t o s   d a q u i l o   q u e  
d e v e r i a   s e r  s e g u i d o ,   a p r e n d e n d o   d e s s a   m a n e i r a   a   d i s c e r n i r   a   v i r t u d e  d o   v í c i o .  

4
  C a s t i g l i o n e   r e f e r e‐ se   a o   m i t o   d a   “ H a r m o n i a   d a s   E s f e r a s ”   n a r r a d o   p o r   P l a t ã o ,   A  
R e p ú b l i c a ,   l i vro   X ,   6 1 4   b .  

5
  E  aqui  Castiglione  menciona  a  famosa  história  de  Alexandre,  o  Grande,  cuja 
l e n d á r i a   s e n s i b i l i d a d e   à   m ú s i c a   f e z   c o m  q u e   e l e   e m p u n h a s s e   a   e s p a d a   q u a n d o   s e u  
músico,  Timóteo,  tocou‐lhe  uma  melodia  no  modo  frígio  [o  modo  da  catarse  –  que 
induz os ouvintes ao entusiasmo cf. A Política, VIII, 5]. E Timóteo consegue acalmar 
a   f ú r i a   d o   g r a n d e   r e i  a p e n a s   m u d a n d o   s u a   m e l o d i a   p a r a   o   m o d o   h y p o f r í g i o .    
A   a l m a   d e   A l e x a n d r e   e s t a v a   t ã o   b e m  s i n t o n i z a d a   c o m  a s   h a r m o n i a s   m u s i c a i s   q u e  
c a u s a r a m  r e a ç õ e s  v i o l e n t a s   n a s   p a i x õ e s   q u e   a n i m a v a m  s e u   c o r p o ,   d e s t a   m a n e i r a   a  
m ú s i c a   f o i   c a p a z   d e   s u p e r a r   a   r a z ã o   d o   R e i ,   m a s  t a m b é m  t r a z ê ‐ lo   d e   v o l t a   à   s u a  
razão e juízo. Aristóteles afirma que a música pode imitar não os signos da emoção, 
m a s  a   e m o ç ã o   e m  si   m e s m a ,   e   e s t a b e l e c e r  u m a   c o m u n h ã o   d i r e t a   e n t r e   a   a l m a   d o  
ouvinte e a emoção imitada. 
N a   P o é t i c a   I ,   1 4 4 7   A r i s t ó t e l e s   s i t u a   a   p o e s i a   e n t r e   a s   a r t e s  i m i t a t i v a s  q u e  
r e p r o d u z e m  “ c a r a c t e r e s ,   p a i x õ e s   e   a ç õ e s . ”   E s t a   d i v i s ã o   se   a p l i c a   t a m b é m  à   m ú s i c a  
( o   e n t h o u s i a s m o s   é   u m a   “ p a i x ã o ” ) .   A s  m e l o d i a s   “ m o r a i s ”   i n c i t a m   à   v i r t u d e ,   a s  
m e l o d i a s   “ p r á t i c a s   o u   a t i v a s ”   i n d u z e m   a t i t u d e s   e n é r g i c a s  e   d e   a ç ã o .   A   c a d a   u m a  
d e s t a s  m e l o d i a s   c o r r e s p o n d e  u m  m o d o   m u s i c a l :   o   d ó r i c o   –   m e l o d i a   m o r a l ;   o   f r í g i o   –  
melodia passional; ao hypofrígio – melodia ativo–prática. 
 
6
 A respeito da cítara e outros instrumentos musicais da Grécia Antiga vide: 
Z W I L L I N G ,   C .   O s   I n s t r u m e n t o s   M u s i c a i s   n a   R e p ú b l i c a   d e   P l a t ã o .   A r t i g o  u p l o a d e d   n a  
academia.edu. 
<https://www.academia.edu/10799170/OS_INSTRUMENTOS_MUSICAIS_NA_REP%C3%9ABLIC
A_DE_PLAT%C3%83O> 
 
7
 Menção a Platão, A República, livro III e a Aristóteles, A Política, livro VII. 

8
  L i c u r g o   ( p r o v a v e l m e n t e  s é c u l o   I X   a . C . ) ,   g r a n d e   l e g i s l a d o r   d e   E s p a r t a ,   r e p u t a d o  
c o m o   r e s p o n s á v e l  p o r   t o d a s   a s   l e i s   e   p o r   s u a   c o n s t i t u i ç ã o .  

9
  Ep a m i n o n d a s   ( s é c u l o   I V   a . C . ) ,   f a m o s o   g e n e r a l  t e b a n o   q u e   d e s t r u i u   a   s u p r e m a c i a  
e s p a r t a n a   a t r a v é s  d a   v i t ó r i a   e m  L e u c t r a ,   3 7 1   a . C .  

10
  T e m í s t o c l e s   ( c . 5 1 4 – 4 4 9   a . C . ) ,   u m  d o s   m a i o r e s  g e n e r a i s   e   h o m e n s  d o   e s t a d o  
a t e n i e n s e ,   r e s p o n s á v e l  p e l a   q u e d a   d o s   p e r s a s  e m  S a l a m i n a ,   e m  4 8 0   a . C .  

11
  A q u i l e s ,   f i l h o   d a   n e r e i d a   T é t i s   e   d e   P e l e u ,   r e i  d o s   m i r m i d õ e s ;   h e r ó i   d a   I l í a d a   d e  
Homero, cuja educação foi dada por Quíron, o centauro. 
P e l e u   c o n f i o u   A q u i l e s   a   Q u í r o n ,   o   c e n t a u r o ,   n o   m o n t e   P é l i o n ,   p a r a   lá   s e r  c r i a d o   [ c f .  
Hesíodo, Catálogo  de  Mulheres,  fr.  204.87‐89  MW;  e  Homero, Ilíada 11.830‐32].  O 
c e n t a u r o   e n c a r r e g o u ‐ se   d a   e d u c a ç ã o   d o   j o v e m ,   a l i m e n t o u ‐ o   c o m  m e l  d e   a b e l h a s ,  
m e d u l a   d e   u r s o s   e   d e   j a v a l i s ,   e   v í s c e r a s  d e   l e õ e s .   A o   me s mo   t e m p o ,   i n i c i o u ‐ o   n a  
v i d a   r u d e ,   e m  c o n t a t o   c o m  a   n a t u r e z a ;   e x e r c i t o u ‐ o   n a   c a ç a ,   n o   a d e s t r a m e n t o   d o s  
cavalos,  na  medicina,  na  música  e,  sobretudo,  obrigou‐o  a  praticar  a  virtude. 
A q u i l e s   t o r n o u ‐ se   u m  a d o l e s c e n t e   m u i t o   b e l o ,   l o i r o ,   d e   o l h o s   vivos,   i n t r é p i d o ,  
simultaneamente capaz da maior ternura e da maior violência. 

12
  M e n ç ã o   a   O r f e u   ( e m  g r e g o   O ρ φ ε ύ ς ,   t r a n s l .   O r p h é u s ) ,   n a   m i t o l o g i a   g r e g a ,   f i l h o   d a  
m u s a   C a l í o p e   e   d e   A p o l o .   E r a   o   p o e t a   e   m ú s i c o   m a i s   t a l e n t o s o   q u e   j á   v i v e u .  D i z ‐ se  
q u e   q u a n d o   O r f e u   c a n t a v a   a c o m p a n h a n d o ‐ se   d a   l i r a   q u e   s e u   p a i   l h e   d e u ,   t o d a   a  
n a t u r e z a   p a r a v a   p a r a   o u v i ‐ lo   e   t o d a s   a s   c r i a t u r a s  s e g u i a m‐ n o ,   t e n d o   s u a   a r t e  o  
p o d e r   d e   d o m i n a r   e   a c a l m a r   a s   m a i s   f e r o z e s  f e r a s .   O s   p á s s a r o s   p a r a v a m  d e   v o a r 
p a r a   e s c u t a r   e   o s   a n i m a i s   s e l v a g e n s  p e r d i a m  o   m e d o  e   a s   á r v o r e s  se   c u r v a v a m  p a r a  
p e g a r  o s   s o n s  n o   v e n t o .  
Canção 
C o m  s e u   a l a ú d e ,   O r f e u   f o r ç a v a   a s   á r v o r e s 
E os congelados cimos das montanhas 
A   se   i n c l i n a r e m   q u a n d o   e l e   c a n t a v a .  
Plantas e flores seu acorde ouvindo 
B r o t a v a m  s e m  p a r a r ,   c o m  se   s o l   e   c h u v a s  
A l i   t i v e s s e m  f e i t o   e t e r n a  p r i m a v e r a .  
Todos aqueles que cantar o ouviam, 
A s  o n d a s   m e s m a s  d o   i n q u i e t o   m a r ,  
A   c a b e ç a   p e n d i a m ,   s e m  m o v e r‐ s e .  
T a l   é   a   a r t e  d a   m ú s i c a   s u a v e :  
A   d o r   d o   c o r a ç ã o ,   o s   c u i d a d o s   m o r t a i s 
A d o r m e c e m  o u v i n d o ‐ a   o u   m o r r e m  p o r   o u v i ‐ l a .  
 
W. SHAKESPEARE. Henrique VIII, ato III, cena 1. 
 
SHAKESPEARE,  W.,  Obra  Completa.  Tradução  de  F.  Carlos  de  Almeida  Cunha 
M e d e i r o s   e   O s c a r  M e n d e s .   R i o   d e   J a n e i r o :   E d i t o r a   N o v a   A g u i l a r ,   1 9 8 8 ,   v o l .   I I I ,  
p.694. 
 
13
  Á r i o n   t e r i a   n a s c i d o   e m  M e t i m n a   ( n a   I l h a   d e   L e s b o s ) ,   m a s  viveu   p r i n c i p a l m e n t e  
e m  C o r i n t o ,   n a   é p o c a   d o   t i r a n o   P e r i a n d r o ,   s e n d o   c i t a d o   c o m o   o   p r i m e i r o   e s c r i t o r  
d e   d i t i r a m b o s   d o   m u n d o   g r e g o .   N o   S u d a   a t r i b u i u ‐ se   t a m b é m  a   e l a   a   i n v e n ç ã o   d o s  
c o r o s  s a t í r i c o s   e   a   a u t o r i a   d e   d o i s   l i v r o s  d e   p r o ê m i o s .   S e   e x i s t i r a m ,   e s s a s  o b r a s   se  
p e r d e r a m  n o   t e m p o .  
Lenda de Árion 
D e   a c o r d o   c o m  H e r ó d o t o   ( H i s t ó r i a s ,   livro   I ,   C l i o ,   2 3 ) ,   Á r i o n   d e c i d i r a   p a r t i c i p a r   d e  
u m a   c o m p e t i ç ã o   m u s i c a l   ( o n d e   h o j e   é   a   I t á l i a ) ,   e   c o n t r a t o u   u m  n a v i o   c o r í n t i o   p a r a  
t r a n s p o r t á ‐ l o .   T e n d o   v e n c i d o   a   c o m p e t i ç ã o ,   r e c e b e u   r i c o s   p r ê m i o s .   N a   v i a g e m  d e  
v o l t a ,   o s   m a r i n h e i r o s   d o   n a v i o   d e c i d i r a m  m a t á ‐ lo   p a r a   se   a p o s s a r e m  d e   s e u s  b e n s .  
C i e n t e   d i s s o ,   Á r i o n   p e d i u ‐ l h e s   q u e   o   d e i x a s s e m  e n t o a r   s e u   d e r r a d e i r o   c a n t o ,  
v e s t i d o   c o m  s e u s  t r a j e s  d e   c a n t o r   e ,   a p ó s   i s s o ,   e l e   p r ó p r i o   se   m a t a r i a   l a n ç a n d o ‐ se  
à s   d o   m a r .   M a r a v i l h a d o s ,   o s   m a r i n h e i r o s   c o n c o r d a r a m  p o i s ,   a l é m  d e   c o n s e g u i r   o  
q u e   q u e r i a m ,   a i n d a   s e r i a m  b r i n d a d o s   c o m  a   v o z   d e   t ã o   e x c e l e n t e   c a n t o r .  
E m p u n h a n d o   s u a   c í t a r a ,   Á r i o n   e n t o o u   u m a   o d e   a   A p o l o ,   o   d e u s  d o s   p o e t a s ,   e   à  
m e d i d a   q u e   c a n t a v a ,   u m a   c r e s c e n t e  q u a n t i d a d e   d e   g o l f i n h o s   se   a c e r c a r a m  d o  
n a v i o .   F i n d a   o d e ,   l a n ç a ‐ se   Á r i o n   a o   m a r ,   c o m o   p r o m e t e r a .   O s   m a r i n h e i r o s   j u l g a n d o ‐
o   m o r t o ,   p r o s s e g u i r a m  s u a   v i a g e m .   E n t r e t a n t o   o   c i t a r i s t a   c a í r a   s o b r e   u m  g o l f i n h o  
q u e   o   c o n d u z i u   a t é   a s   c o s t a s   d o   c a b o   T a i n a r o n ,   o n d e   h a v i a   u m  s a n t u á r i o   d e  
P o s e i d o n ,   d e u s  d o s   m a r e s .  

Seguindo  por  terra,  Árion  chegou  a  Corinto  antes  dos  marinheiros,  e  contou  sua 
s a g a  a o   t i r a n o   P e r i a n d r o ,   q u e   n ã o   a c r e d i t o u   n e l a   p o r   j u l g á ‐ la   f a n t á s t i c a .   P o r é m 
q u a n d o   o s   m a r i n h e i r o s   a p o r t a r a m ,   e   s e m  s a b e r   q u e   Á r i o n   e s t a v a   vivo,   n a r r a r a m  a o  
t i r a n o   q u e   e l e   h a v i a   d e c i d i d o   p e r m a n e c e r  n a   I t á l i a .   P e r i a n d r o   c o m p r e e n d e u   q u e   o  
p o e t a   f a l a r a   a   v e r d a d e   e   m a n d o u   e x e c u t a r  o s   m a r i n h e i r o s .  

 
Albrecht Dürer, Arion, 1514. 
Pena com tinta e aquarela sobre papel. 14 x 23 cm. 
Kunsthistorisches Museum, Viena 
 
 
 
 
14
  O  alaúde  [ingl.  lute;  fr.  luthe;  it.  liuto;  al.  laute;  esp.  laud]  é  um  instrumento  musical  de  cordas 
dedilhadas duplas feito de madeira, com tampo plano, caixa em forma de meia pêra ou gota, feita em 
gomos de madeira colados, braço dotado de trastes móveis, além de cravelhame em ângulo em relação 
ao braço onde as cordas são inseridas em afinadores de madeira. 

De origem árabe, aportou na Europa durante a Invasão Moura à Península Ibérica. Dos primórdios até a 
Idade  Média  foi  tocado  com  palheta;  a  partir  do  Renascimento  torna‐se  o  principal  instrumento  de 
cordas  dedilhadas  dentre  as  cortes  europeias,  recebendo  inúmeras  composições  solo,  bem  como 
canções escritas para serem acompanhadas pelo alaúde – as famosas “air‐lutes”. 
 
   

 
 
PARTES DO ALAÚDE: 
1. Ponte onde são atadas as cordas 
2. Roseta esculpida no próprio tampo do instrumento 
3. Tampo  harmônico  plano  colado  na  caixa.  Caixa  de  ressonância  feita  de  tiras 
ou gomos de madeira  
4. Cordas ordenadas em pares também chamadas de ordens 
5. Braço do instrumento  
6. Trastes  móveis  feitos  de  tripa  animal  atados  com  um  nó  no  braço  do  alaúde 
/  Trastes  fixos  feitos  de  madeira  colados  sobre  o  tampo  harmônico.  [Os 
trastes servem para separar as cordas em semitons] 
7. Cravelhas ou afinadores das cordas 
8. Cravelhame ou caixa de cravelhas 
 

  A F I N A Ç Ã O   D O   A L A Ú D E   R E N A S C E N T I S T A   P A D R Ã O :   g'  d'd'  aa  ff  Cc  Gg  Ff  Dd 

 
 
 
 
 
 
 
 
15
  V i o l a  d a  G a m b a  [ d o   i n g l . ,   v i o l  d e   g a m b a ] 15.   I n s t r u m e n t o   d e   a r c o  d o   i n í c i o   d o  
s é c u l o   X V I   e m  d i a n t e .   A   f a m í l i a   d a   v i o l a   a b r a n g i a   d e s d e   a   v i o l a   s o p r a n i n o  
(pardessus  de  viole)  até  o  violone  (ou  contrabasso  da  gamba).  Existiam 
b a s i c a m e n t e   t r ê s  t a m a n h o s   d e   v i o l a   b a i x o :   c o n s o r t   b a s s   v i o l  ( g r a n d e ) ;   d i v i s i o n   v i o l 
( m e n o r ;   i n g l e s a )   e   v i o l a   b a s t a r d a   o u   l y r a   v i o l  ( a   m e n o r   d e   t o d a s ) .      
U s a d a   t a n t o   p a r a   s o l o   c o m o   p a r a   b a i x o ‐ c o n t í n u o ,   o   t i p o   m a i s   c o m u m  d e   v i o l a   f o i   a  
b a i x o   b a r r o c a ,   f r a n c e s a   o u   a l e m ã ,   d e   s e t e  c o r d a s .    
A f i n a ç ã o   d a   v i o l a   b a i x o :   D   G  c   e   a   d ’   ( 4 a s   j u s t a s   e   u m a   3 a   c e n t r a l  e n t r e   a   t e r c e i r a   e  
quarta cordas).  
A   f a m í l i a   d a   v i o l a   “ d a   g a m b a ”   d i f e r e n c i o u ‐ se   d a   f a m í l i a   d a   v i o l a   “ d a   b r a c i o ” ,   t e n d o  
a s   s e g u i n t e s   c a r a c t e r í s t i c a s :   c a i x a   h a r m ô n i c a   c o m  f u n d o   p l a n o ;   f a i x a s   a l t a s   e  
profundas  (na  região  dos  ombros  inclinada  à  82o  graus);  furos  de  ressonância  na 
f o r m a   d e   C   o u   d e   f l a m a ;   e s t a n d a r t e   l o n g o ;   b r a ç o   l a r g o   c o m  e s p e l h o   d o t a d o   d e  
t r a s t e s  m ó v e i s   a m a r r a d o s ;   c a i x a   d e   c r a v e l h a s  f r o n t a l ,   t e r m i n a n d o   c o m  u m a   c a b e ç a  
esculpida  na  forma  humana,  animal  ou  caracol;  e,  por  fim,  5  a  7  cordas 
(comprimento  da  corda  vibrante  69  a  70cm).  O  tampo  harmônico,  como  o  do 
violoncelo,  é  dotado  de  barra  harmônica  e  alma;  porém,  ao  contrário  deste,  a  viola 
d a   g a m b a   é   s e g u r a d a   e n t r e   a s   p e r n a s ,   p o r t a n t o   s e m  e s p i g ã o .  
 

 
 
M.PRAETORIUS, Syntagma Musicum, De Organographia (vol.II).  
Wolfenbüttel, 1619, prancha XX. 
 
 
16
  D i z ‐ se   q u e   M i n e r v a   ( o   n o m e   r o m a n o  d e   A t h e n a )   j o g o u   f o r a   o   a u l o s   q u a n d o   viu  
n u m a   f o n t e   o   t e r r í v e l  e f e i t o   q u e   e l a   f a z i a   e m  s u a   f a c e ,   d e f o r m a n d o ‐ a   e   i n f l a n d o ‐ a  
a o   s o p r á ‐ l o .   D e   a c o r d o   c o m  A r i s t ó t e l e s ,   A   P o l í t i c a   V I I I ,   6 :    

“ H á   a l g o   d e   i n t e r e s s a n t e   n e s t a   l e n d a ,   o   f a t o   d e   q u e   a   d e u s a   a s s i m  a g i u   d e v i d o  
à s   d e f o r m a ç õ e s   q u e   o   a u l o s   c a u s a v a   e m  s e u   r o s t o .   E n t r e t a n t o ,   é   m a i s  
p r o v á v e l  q u e   f i z e s s e   isso   p o r q u e   o   v a l o r   e d u c a t i v o   d a   a r t e  d o   a u l o s   n ã o   t i n h a  
e f e i t o   a l g u m  s o b r e   a   i n t e l i g ê n c i a   e   A t e n a s   é   a   q u e m  a t r i b u í m o s   a   o r i g e m  d a  
ciência e da arte”. 
 
17
  A l c i b í a d e s   r e c u s o u ‐ se   a   a p r e n d e r   a   t o c a r   o   a u l o s ,   t e n d o   c o m o   v e r g o n h o s a   s u a  
e x e c u ç ã o   e   n ã o   a d e q u a d a   a   u m  c i d a d ã o   l i v r e .   A r g u m e n t o u   d i z e n d o   q u e   . . .   “ a s s i m  
q u e   o   h o m e m  c o m e ç a  a   s o p r a r  o   a u l o s ,   s e u s  a m i g o s   d i f i c i l m e n t e   r e c o n h e c e m  s u a s  
feições.” 
 
 
 

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