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escolha do sistema de citação adotado.
Valverde, Monclar
S234m Merleau-Ponty em Salvador. Salvador: Arcádia, 2008.
250 p.; il.; 21 cm
ISBN: xxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxx
1. xxxx. 2. xxxxx. 3. xxxxxx. I.Título.
CDD 341.347
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Merleau-Ponty
em Salvador
Salvador
2008
Sumário
Apresentação
Monclar Valverde 6
3. Merleau-Ponty e as artes
Agradecimentos 245
Apresentação
Monclar Valverde
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teratura, as ciências e as artes de seu tempo. Não apenas para tomá-las como motivo ou
ilustração para suas idéias, mas para mostrar seu enraizamento nas condições estéticas,
práticas e históricas da existência.
Mas este não foi o único mérito do pensamento de Merleau-Ponty. Além de pro-
mover a aproximação entre a filosofia e as ciências humanas, de abrir uma nova pers-
pectiva para a história política, de favorecer o diálogo entre as ciências e as artes e de
conferir um novo vigor ao investimento filosófico, atribuindo um sentido existencial
ao pensamento transcendental, ele também formulou e desenvolveu o programa crí-
tico da filosofia e da cultura contemporâneas, através de sua luta contra o dualismo.
Num sentido mais especificamente filosófico, ele redimensionou a atitude fenome-
nológica, ampliando o seu campo de abrangência e deslocando o lugar da intenciona-
lidade: da consciência ao corpo, do comportamento à conduta e da carne do mundo
à carne da história. Da mesma forma, com sua compreensão da estrutura participati-
va do ser no mundo, ele introduziu nas ciências humanas o critério metodológico da
imersão, desenvolvido a seguir pelo interacionismo simbólico e pela etnometodologia.
Com sua crença na imaginação individual e histórica, ele preparou o terreno para
a reflexão de uma nova geração de intelectuais, que foram seus alunos e interlocutores
(como Dufrenne, Leffort, Clastres e Castoriadis). E, com sua valorização dos aspectos
históricos da experiência simbólica, antecipou, em grande medida, o pensamento de
autores que nem sempre souberam reconhecer sua inspiração (como Bourdieu, Fou-
cault, Deleuze e Maffesoli).
Além disso, do ponto de vista estilístico, Merleau-Ponty inaugurou uma maneira
serena e amistosa de exercer a crítica, tratando com reverência e respeito os autores que
mais critica (o que nos faz pensar que ele seria o modelo por trás da figura do “intelec-
tual tranquilo”, idealizada por Roland Barthes). Personificando um tipo de intelectu-
al reservado e discreto, oposto ao ativismo de Sartre, ele soube desenvolver um estilo
de expressão incisivo, embora fundamentalmente dialógico, que, ao abordar os temas
mais diversos, encanta o leitor, para submetê-lo, em seguida, à implacável serenidade
de sua maiêutica.
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cias pronunciadas por ocasião do Colóquio Merleau-Ponty, realizado na última sema-
na do mês de agosto de 2008, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA
e no Teatro Molière, na sede da Aliança Francesa de Salvador.
O evento pretendeu reunir pesquisadores que pudessem falar do maior número
de temas, dentre os abordados pelo filósofo, segundo perspectivas e situações as mais
diversas, apresentando ao público, ao mesmo tempo, as conexões que reuniram tais
temas numa obra tão coerente quanto singular. Aproximando estudiosos de várias
gerações, regiões e perfis, o evento teve, como principal objetivo, mostrar a impor-
tância do pensamento merleau-pontiano e a riqueza de sua herança intelectual, tanto
para um público universitário quanto para um público mais amplo. A ocasião serviu
também para homenagear alguns dos responsáveis pela difusão do pensamento de
Merleau-Ponty no Brasil e para estimular os pesquisadores mais jovens a desenvolver
este legado.
Neste sentido, todos os participantes foram convocados a deixar de lado seus te-
mas atuais de pesquisa, para aproveitar a oportunidade de fazer, com conhecimento de
causa, um balanço crítico das contribuições do autor, levando em conta, igualmente,
a história de sua repercussão nos mais diversos campos de atuação, como o intelectual,
o pedagógico, o político e o artístico.
Dessa forma, o evento proporcionou uma bela ocasião para rever as idéias deste
pensador genial e para agradecer por sua reflexão profunda e instigante. Por essa razão,
podemos dizer que este livro permitirá compartilhar com os leitores uma herança que
possui imensa significação intelectual, política e afetiva, para todos aqueles que, de al-
gum modo, se viram inspirados ou provocados por esse que foi um dos mais legítimos
exemplos de inquietação intelectual e existencial que o século XX nos legou.
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Introdução:
por que Merleau-Ponty?
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riência da obra de arte, mas igualmente face à experiência histórica da polis, sem ter
medo da opinião daquele que “troça-(se) do filósofo que pretende fazer passar o “pro-
cesso histórico” pela sua mesa de trabalho”10 , acreditando que ”a filosofia de sobrevôo
(seja) apenas um episódio, volvido já”. A tentação idealista e/ou intelectualista, toda-
via, ressurge sempre sob diferentes formas, através da construção de conceitos vazios
presos a uma lógica incapaz de operar a necessária passagem ou conversão do espírito
ou da razão na espessura do sensível.
Nosso tempo, sem dúvida, exige uma filosofia que se apresente não como serva,
nem senhora da história, de modo que a leitura das relações com o mundo se pro-
ceda como “uma ação à distância (...) exigindo em cada uma delas, do fundo da sua
diferença, a mistura e a promiscuidade”. Para tanto, é necessário que aprendamos
“o bom uso dessa imbricação”, praticando “uma filosofia tanto menos atada por res-
ponsabilidades políticas quanto mais sua própria possui, tanto mais livre de entrar
em toda parte quanto menos se substitui a alguém, quanto menos joga às paixões,
à política, à vida, quanto menos as recria no imaginário, e, pelo contrário, buscan-
do desvelar precisamente o Ser que habitamos”11. Aí se encontram, por outro viés,
não menores razões para freqüentar e percorrer os caminhos traçados por Merleau-
Ponty. Razões para freqüentar o “filósofo e sua sombra”, em resposta a pergunta “por
que Merleau-Ponty?”.
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cia. Que bom seria ter professores que animassem esta conjunção, esse vínculo da
experiência do sujeito aluno com a experiência do filósofo estudado. Não é preciso
dizer mais para dar-nos conta de que Merleau-Ponty é um mestre que conduz a re-
conhecer a filosofia como uma experiência pela experiência. Vale, pois, freqüentar
Merleau-Ponty, filósofo que “elevou a recusa obstinada do “sim ou não” à dignidade
do ato filosófico por excelência”19.
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1. Merleau-Ponty e a
filosofia de seu tempo
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Intencionalidade e existência:
Husserl e Merleau-Ponty
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fica não esgota o que é dado aqui e agora, se para além das relações estabelecidas pela
ciência existe aquilo que o próprio filósofo crítico chama de “incoordenável”, o “fundo
não relacional” sobre o qual as relações se estabelecem, então nesta rebarba que per-
manece fora da ciência há um mundo a ser investigado. Sendo assim, se por um lado
existe a “representação científica do mundo”, por outro existe também o mundo per-
cebido ou vivido, que deve ser o tema da filosofia e não pode ser considerado menos
real (Merleau-Ponty, 1997, p.66). Na formulação lapidar de Merleau-Ponty, se a obje-
tividade não esgota a existência, então a tarefa da filosofia é a de tentar um reconheci-
mento e uma descrição da existência sob todas as suas formas, sem o que ela deixaria
de lado a sua tarefa de elucidação universal (Merleau-Ponty, 1997, p. 33).
É no interior deste “mundo percebido” que começará a ganhar algum rosto este
cristal tão difícil e de tantas facetas, para o qual se quer apontar com a noção de “exis-
tência”. O existente merleau-pontyano é este sujeito que, contra o idealismo, deve ser
pensado como sempre encarnado (Merleau-Ponty, 2000, p.254). Enquanto esse exis-
tente tem um corpo, ele não é pura consciência. E se seu corpo o ancora e o engaja
no mundo e na “situação” física e social, este corpo será o seu ponto de vista sobre o
mundo (Merleau-Ponty, 2000, p.18). Essa situação corporal é aquilo que, ao mesmo
tempo, dá a este existente a sua perspectiva sobre o mundo, quer dizer, a sua finitude,
e o inicia na verdade e no mundo (Merleau-Ponty, 2000, p.21). O engajamento desse
existente na natureza e na história é, ao mesmo tempo, uma limitação de sua visão so-
bre o mundo e a única maneira que ele tem de ter acesso a esse mundo, de conhecê-lo
e de fazer qualquer coisa (Merleau-Ponty, 1966, p.125). Essa situação corporal é por-
tanto a junção da particularidade e da universalidade, do interior e do exterior.
Mas esse existente não será, primariamente, um sujeito teórico, epistemológico
ou contemplativo, como era o seu homônimo husserliano. Merleau-Ponty insistirá
nesse ponto. O existente não se limita à rubrica de um “conhecimento” que, aliás,
agora deve ser re-integrado ao interior da totalidade da praxis humana. Esse existente
não é um sujeito epistemológico, mas sim o sujeito humano “em situação”, que for-
ma suas categorias em contato com sua experiência e muda sua situação pelo sentido
que ali encontra (Merleau-Ponty, 1966, p.237). Esse existente não “conhece” apenas
o mundo. Como dizia Heidegger, ele “está no mundo”, e a tarefa da filosofia, garan-
te Merleau-Ponty, é “reencontrar esse elo com o mundo que precede o pensamento
propriamente dito ”(Merleau-Ponty, 1997, p.66). Por isso, ao invés da velha relação de
conhecimento entre sujeito e objeto, deveremos falar agora em uma relação de ser en-
tre esses termos, uma relação segundo a qual “paradoxalmente o sujeito é seu corpo,
seu mundo e sua situação, e, de alguma forma, se modifica” (Merleau-Ponty, 1966,
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e o que toma seu lugar no centro da cena é apenas uma certa antropologia. Em uma
conferência proferida em 1931, intitulada “Fenomenologia e Antropologia”, Husserl
indicará expressamente que não existe meio termo ou solução de compromisso: ou é
fenomenologia transcendental, ou é antropologia, quer dizer, esta doutrina equívoca
do Dasein humano, que não tem mais nada a ver com a verdadeira fenomenologia.
Como se não tivesse nem mesmo cabimento contrabandear os conceitos de uma dis-
ciplina para a outra, do “transcendental” para o “mundano”. O diagnóstico de Husserl
será severo: toda doutrina que se nomeia “fenomenológica”, sem poder alcançar a ver-
dadeira dimensão filosófica do transcendental, garante ele, é pura e simplesmente uma
“aberração” (Husserl, 1989, p.179).
Todavia, o próprio Husserl não admitia a existência, paralelamente à fenomeno-
logia transcendental, de uma psicologia fenomenológica? Nos anos 20 ele a apresen-
tava como uma disciplina “mundana”, mas reflexiva e eidética, e que faz pleno uso
de conceitos como o de intencionalidade, enquanto esta, justamente, circunscreve o
“caráter fundamental do psíquico” (Husserl, 1968, p. 306). Ora, o Husserl dos anos
30 dirá que uma psicologia fenomenológica, bem compreendida, simplesmente se
identifica à fenomenologia transcendental, deixando de ter, assim, o estatuto de mera
ciência positiva ao lado das demais (Husserl, 1989, p. 180). Será este, como se sabe, o
tema dos parágrafos finais da Krisis. Como existe vida “superficial” e vida “profunda”,
assegura Husserl, aos diferentes níveis da “redução” corresponderão diferentes níveis
da “psicologia fenomenológica”. E se é assim, a “redução psicológica” nos conduzirá
necessariamente à redução transcendental, a redução “completa e radical” nos encami-
nhará ao “ego absolutamente único”, que não é mais o “homem”, não é mais um ente
real “no mundo”. E será forçoso reconhecer então que, a bem considerar as coisas, a
psicologia pura “não existe” enquanto ciência positiva, existe apenas a filosofia trans-
cendental. Assim, tudo se passa como se o código “fenomenológico”, desde que bem
compreendido, nos encaminhasse inevitavelmente para o “transcendental”, quer dizer,
para uma “região” por princípio situada “fora do mundo”.
Mas, então, o que acontecerá com a “intencionalidade operante”, tal como esta foi
forjada por Husserl, quando ela for transposta para o território do “existente” merleau-
pontyano, este “ser no mundo” que, por seu corpo, está sempre enraizado neste mun-
do e posto “em situação”? Ou então, pode-se formular também a pergunta inversa e
simétrica, a saber, o que se tornará este “ser no mundo”, quando ele for gentilmente
convidado a desempenhar o papel de espectador privilegiado do trabalho da “inten-
cionalidade operante”?
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siológico, virá daí a solução que Merleau-Ponty dará para o problema, ali no final da
Fenomenologia da percepção. Ou antes, a dissolução do problema, que só persistiria no
interior de um código estritamente espacial. Se era uma tentativa vã conceber as rela-
ções entre a alma e o corpo ligando o para si a um objeto em si, o inextenso ao exten-
so, tudo muda com a idéia de subjetividade como temporalidade. Merleau-Ponty já
indicara que o mundo só comporta o momento temporal do presente, e que passado
e futuro, que não são, se retiram do mundo e passam para o lado da subjetividade, já
que ela é o não-ser que concorda com a natureza do passado e do futuro. Agora, se-
guindo Bergson, se associará o corpo ao momento temporal do presente. Se associará
o espírito ao passado e ao futuro. E, seguindo Husserl, se reconhecerá que as intencio-
nalidades da consciência do tempo estabelecem uma relação interna e necessária entre
os momentos temporais, uma relação de “fundação”. E, se é assim, o problema das
relações entre a alma e o corpo se traduz naquele de se saber como um ser que é por-
vir e passado, também tem um presente, quer dizer, o problema se suprime, garante
Merleau-Ponty, “visto que o porvir, o passado e o presente estão ligados no movimen-
to da temporalização” (Merleau-Ponty, 1945, p.493).
Eis aí a “unidade de nossa vida”... Ela é bem mais simples do que se poderia ima-
ginar no início. Mas por qual passe de mágica o “para si” e o “em si” cessaram de ser
contraditórios, e podem agora se dar as mãos, alegremente, na ciranda da “tempora-
lização”? Falta a essa dissolução do problema um passo que Bergson dava e que não
encontra nenhum equivalente na Fenomenologia da percepção. Para conceber a união
entre a alma e o corpo, Bergson começava por distinguir entre matéria e espaço. E esse
gesto era essencial para a afirmação de uma continuidade ou de uma diferença apenas
de graus entre matéria e espírito. Era essa diferença apenas de graus que excluía qual-
quer diferença de natureza ou qualquer contradição entre corpo e espírito (Bergson,
1970, p.354). Não dando um passo equivalente, a solução de Merleau-Ponty parece
ser apenas nominal. Mas esse não é, de forma alguma, o ponto mais importante. Aqui
ainda há uma outra dificuldade, que se tornará mais patente quando a intencionalida-
de operante for dar conta da “unidade de nosso mundo”.
III
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husserliano. O retorno à temporalidade será apresentado como sendo nada mais, nada
menos, do que o retorno “às condições últimas de nossa experiência” (Merleau-Ponty,
1945, p.381). A intencionaliddade operante será descrita como aquilo que torna a ex-
periência possível, no mesmo sentido em que Husserl afirmava que, sem as intencio-
nalidades de horizonte, nem haveria consciência de objeto.
A operação típica da Fenomenologia da percepção será compreender a intencionali-
dade de nossa vida perceptiva segundo o modelo exclusivo da intencionalidade ope-
rante. Serão as retenções e as protensão, situadas por Husserl na origem da consci-
ência do tempo, que, com o auxílio do esquema corporal, comentarão a totalidade do
funcionamento de nossa vida perceptiva. Por isso, quando Merleau-Ponty for tratar
da “unidade de nosso mundo”, a sua primeira preocupação será reportar a perspectiva
espacial à perspectiva temporal, fazendo com que o espaço perca qualquer especifici-
dade enquanto Abschattung original. Como o aspecto espacial é também um aspecto
temporal, este último roubará inteiramente a cena. Agora o tempo será apresentado
como sendo “tanto a ordem das coexistências quanto a ordem das sucessões” (Mer-
leau-Ponty, 1945, p.383). E esse passo - anti husserliano - será essencial para que as
intencionalidades da consciência do tempo possam ser vistas como a verdade da in-
tencionalidade em geral.
Desde então, todos os segredos e movimentos da “existência” encontrarão seu fun-
damento último na temporalidade, e na intencionalidade operante que está em sua
base, seja enquanto potência de expressão, no interior do mundo, seja enquanto po-
tência de unificação deste próprio mundo sensível – os dois lados conjugados na ex-
pressão “logos do mundo estético”. O roteiro trilhado por Merleau-Ponty é bem co-
nhecido. Se existe “sentido”, reenvio intencional do aspecto dado aos aspectos não da-
dos do objeto, é porque o presente reenvia ao passado e ao futuro, o presente reenvia
ao ausente.. Se é o objeto inteiro que se “exprime” em cada um de seus aspectos, é por-
que cada momento temporal exprime os demais. E se existe uma síntese unificando os
objetos e unificando o mundo, ela é aquela síntese temporal, passiva ou de transição,
que se confunde com o próprio movimento aberto da temporalização. E se este “exis-
tente” é movimento de transcendência, é porque ele se confunde com uma temporali-
dade em que, “por definição”, o presente não está encerrado nele mesmo mas se trans-
cende para um porvir e para um passado, ele é uma fuga generalizada para fora do Si.
Sem dúvida, uma das razões da elegância da Fenomenologia da percepção está na sua
arte de reportar uma diversidade imensa de problemas a um único campo de soluções,
este território do tempo identificado à própria subjetividade. E o capítulo sobre a tem-
poralidade, visto por alguns míopes como externo à Fenomenologia da percepção, é na
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verdade seu coração e sua chave. Mas é certo também que esse mesmo campo em que
se situam as soluções apresentará uma dificuldade específica, assinalada por Merleau-
Ponty. Mas uma dificuldade grave o suficiente para ser pouco compatível com o pro-
jeto de fazer do “existente” alguem sempre “em situação”, sempre ancorado, por seu
corpo, no mundo, uma dificuldade pouco compatível com o projeto de unir o trans-
cendental ao empírico. Essa dificuldade diz respeito à ipseidade, diz respeito àquele
Si, situado no interior ou no coração do tempo, e que será apresentado por Merleau-
Ponty como “um reduto de não-ser”, um “perpétuo ausente” (Merleau-Ponty, 1945,
p.458). Trata-se aqui de uma dificuldade que parece congênita às filosofias que repor-
tam o tempo a uma subjetividade constituinte do tempo.
Com esta expressão não se quer sugerir, de forma alguma, que a subjetividade
merleau-pontyana se confunda com qualquer versão mitológica de uma subjetivida-
de “produtora” ou “criadora”, leitura certamente fantasista do significado da noção de
“constituição” na fenomenologia, mas amplamente difundida pelos primeiros intér-
pretes de Husserl. A “subjetividade”, tal como Merleau-Ponty a concebe, sem dúvida
está bem longe desta ficção. “É visível – dirá ele – que eu não sou o autor do tempo,
não mais que dos batimentos de meu coração, não sou eu quem toma a iniciativa da
temporalização” (Merleau-Ponty, 1945, p.488). Também não se quer insinuar que
Merleau-Ponty flerte com o modelo kantiano de constituição do tempo, expressa-
mente criticado por destrui-lo, ao metamorfosea-lo em idealidade (Merleau-Ponty,
1945, p.474). Fala-se aqui em subjetividade constituinte do tempo no sentido ortodo-
xamente husserliano da expressão, a saber, a subjetividade enquanto instancia encarre-
gada de fazer aparecer o tempo a um sujeito. O tempo só é para o sujeito, este sujeito
é o próprio tempo, mas são as estruturas intencionais que fazem com que este tempo
apareça ao sujeito – o que é, aliás, exatamente aquilo que Merleau-Ponty entendia por
“subjetividade”, a saber, o negativo encarregado de “fazer aparecer” o positivo (Mer-
leau-Ponty, 1960, p.193).
Mas onde se situa o “sujeito” para o qual o tempo aparece ou se “auto-constitui”? Se
o tempo é a matriz do “sentido”, se cada uma de suas dimensões é visada como outra
coisa que ela mesma, é porque há um olhar situado no seu interior, aquele para quem
a palavra “como” diz alguma coisa, e que experimenta o tempo sem aplaina-lo ou
imobiliza-lo. Este olhar se situa naquele ôco formado pelo tempo como afecção de si
por si, na relação de si a si desenhada pelo jogo entre o tempo como transição, o tempo
constituinte, e o tempo constituído, enquanto série desdobrada dos presentes. É este
o lugar em que se germina um Si cuja essência, garante Merleau-Ponty, assim como
aquela da luz, é fazer ver (Merleau-Ponty, 1945, p.487). Mas se é assim, este olhar si-
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Referências Bibliográficas
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Interioridade, tempo e experiência:
Merleau-Ponty e os limites da durée bergsoniana
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finida como “tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela
é”(Merleau-Ponty, 2004, p.1)?
Trata-se assim, num primeiro momento, de compreender o sentido da descrição
da experiência nos dois autores, uma das pistas para, ao fim e ao cabo, atingirmos uma
visão mais justa sobre os respectivos projetos filosóficos. Desse modo, se essa passa-
gem da conferência A percepção da mudança é valorizada por Merleau-Ponty na lou-
vação a Bergson que abre seu Élogé de la philosophie, em contrapartida, à definição da
tarefa descritiva da fenomenologia segue-se uma restrição que imediatamente põe em
sursis a convergência aqui pontuada: a descrição fenomenológica, ao menos ao modo
husserliano, interdita o recurso “à gênese psicológica e às explicações causais”(id.).
A gênese psicológica é o caminho para a ontologia em Bergson, sua filosofia opera a
mesmo a passagem da compreensão do espírito funcionando para a prática, sua defi-
nição do objeto da psicologia, à metafísica enquanto esse “próprio espírito esforçando-
se para desembaraçar-se das condições da ação útil e assumir-se como pura energia
criadora”(Bergson,1999, 0.9). Resta saber até onde vai o papel atribuído por Merleau-
Ponty à psicologia na renovação filosófica. Em todo caso, no vínculo entre psicologia
e ontologia, podemos encontrar pistas sobre a relação tensa com a noção de duração
que se evidencia na obra capital do fenomenólogo.
O retorno à experiência como fundamento da reflexão devolve à sensibilidade seu
estatuto filosófico e esse retorno é efetivado pelos dois autores. Ocorre que a feno-
menologia merleau-pontiana articula-se em torno de uma rica definição da experi-
ência como lugar originário do sentido. A renovação do sentir e seu retorno à condi-
ção de questão filosófica vêm a reboque da constatação de que “a visão já é habitada
por um sentido que lhe dá uma função no espetáculo do mundo”(Merleau-Ponty,
2004, p.83). Desse modo, a tentativa de conjugar o “extremo objetivismo ao extremo
subjetivismo”(id., p.18) desemboca na circunscrição do reino ambíguo e indetermi-
nado do pré-reflexivo, momento ante-predicativo de nossa experiência concreta. O
mundo vivido, para o qual o ato filosófico inaugural deve se voltar (e que antecede e
sustenta o mundo objetivo), surge na investigação como campo fenomenal, a cama-
da da “experiência viva” em que um sistema eu-mundo-outrem se nos apresenta em
seu estado nascente. Assim, se a sensibilidade é o ponto de partida da fenomenolo-
gia, ela não se identifica à interioridade subjetiva ou à reverberação psíquica do sen-
tir: o campo fenomenal não é um mundo interior ou estado mental. Merleau-Ponty
faz questão de enfatizar, numa primeira de várias referências críticas ao bergsonismo
(que parecem, diga-se de passagem, apontar todas para um mesmo significado), que
a “experiência dos fenômenos não é uma introspecção ou um intuição no sentido de
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e em oposição aos estudos efetivados à luz da racionalidade moderna. E, eis o que nos
interessa, a despeito da insistência em se afastar da interioridade bergsoniana, o diálogo
crítico e positivo com os dados da psicologia descritiva constitui a base desse percurso,
sobretudo em seus passos iniciais. A crítica ao empirismo e ao intelectualismo está fun-
dada no reconhecimento de que a estrutura figura e fundo define a percepção, não há
perceber que não se dê como relação entre um algo e seu campo – uma tese demons-
trada e explorada nos trabalhos da escola da Gestalt. Mais que isso, as descrições que
atravessam a obra “firmam seus primeiros passos com os psicólogos”(Merleau-Ponty,
2004, p.99). As condições últimas da experiência possível, aquilo que se torna o trans-
cendental na filosofia de Merleau-Ponty – transcendental reformado “para que possa
abranger as diversas facetas do mundo da vida”(Sacrini, 2006, p.12) –, são delimita-
das como campo fenomenal. Se a obra capital do fenomenólogo se nos apresenta em
duas etapas bem marcadas, o retorno aos dados da experiência (primeiro momento) a
partir do qual se poderá determinar seu significado e de seus fundamentos (segundo
momento), tais etapas redimensionam a fenomenologia como filosofia transcenden-
tal. Em outros termos, a descrição direta dos processos relativos ao corpo e ao mundo
compõem o que se define como o trabalho descritivo da Fenomenologia da percepção e a
terceira parte, quando o cogito e o tempo serão trabalhados, constitui o momento em
que Merleau-Ponty efetiva sua “fenomenologia da fenomenologia”(Merleau-Ponty,
2004, p.99), reflexão de segundo grau em que as ambigüidades que marcaram a expe-
riência perceptiva são compreendidas em seu sentido filosófico, A temporalidade vem
então esclarecer esse sentido, oferecendo-nos o fundamento da ambigüidade e mos-
trando-a definitiva; ou seja, a generalidade e a particularidade articulam-se finalmente,
dissolvendo o paradoxo da atividade que é passividade, através do tempo, ou antes,
do “tempo sujeito que é todo e múltiplo, definitivamente ambíguo, porque só há to-
talidade na multiplicidade, generalidade na particularidade”(Moutinho, 2006, p.265)
É possível encontrarmos elementos já no percurso descritivo que expõem como
a ambigüidade dos processos da experiência está sustentada na temporalidade, indi-
cando a diferença de base entre o tempo merleau-pontiano e a duração bergsoniana.
Desde a delimitação do campo fenomenal, tal diferença é marcada por Merleau-Ponty,
como vimos acima, o que nos indica a coerência da relação crítica assim estabelecida,
bem como o seu ponto culminante, atingido no momento em que a “multiplicidade
qualitativa” de Bergson é recusada. Como a experiência tomada na interioridade psí-
quica traz à tona tal multiplicidade indistinta ou confusa, palco da indeterminação e
fundamento da liberdade, ou seja, uma zona da experiência consciente em que a durée
é de fato apreendida, não é pouco o que essa contraposição pode nos ensinar. Há ainda
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2 Retomamos aqui considerações apresentadas anteriormente, quando tocamos na relação entre essa necessidade de superar
a classificação exterior/interior e a postura crítica de Merleau-Ponty em relação a Bergson. Pretendemos estar desenvolvendo
aqui algum avanço sobre tal relação a que fizemos alusão, sobretudo pela relação intrínseca entre expressão, reforma ontológi-
ca e temporalidade estabelecida por ele no capítulo sobre o tempo. Ver: Pinto, D.C.M., “A meditação segundo a percepção”
in Marques, R.; Pinto, D. (org). A fenomenologia da experiência. Goiânia: Editora da UFG, 2006, pp.171-202.
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Vejamos então alguns momentos da análise do tempo à luz das considerações aci-
ma desenvolvidas. Se ela nos oferece o a priori das descrições, sua importância ainda se
intensifica quando consideramos, segundo Moutinho, que ele se revela o fundamento
último do conhecimento, já que todo pensamento tético tem sua origem e seu solo na
camada pré-reflexiva, ponto essencial para uma fenomenologia que interdita a “pas-
sagem à esfera constitutiva”. Assim, a fenomenologia da fenomenologia na terceira
parte do livro vem dar conta, retrospectivamente, “daquela mútua implicação, apenas
antecipada, entre a esfera objetiva da atitude natural e o campo fenomenal ao qual ela
remete”(Moutinho, 2004, p.11). As contradições serão absorvidas pelo tempo, ver-
dadeiro transcendental, e nesse sentido a convergência com Bergson se apresenta nas
intenções de ultrapassar o pensamento objetivo, que opera em “regime de ser”, só acei-
tando noções alternativas, exatamente como o entendimento espacializador diante da
heterogeneidade e da mudança.
O sentido da temporalidade no campo da experiência atravessa toda a parte des-
critiva da Fenomenologia da percepção, sendo anunciado de modo mais explícito na
introdução à análise do corpo. Se, espacialmente, o processo de delimitação de um
objeto deriva do movimento de fixação percorrido por meu olhar, então o ato de ver
tem duas faces: exige a estrutura “objeto-horizonte” para sua efetivação. Um objeto é
fixado pelo movimento do olhar que, ao se concentrar numa região do campo que a
ele se abre, acaba necessariamente por “adormecer a circunvizinhança”(Merleau-Ponty,
2004, p.104). A relação intrínseca entre mostrar e esconder, o jogo entre o objeto e o
horizonte que o envolve, a implicação mútua entre os objetos indicando um sistema
do mundo visual sugerem que a identidade de um objeto só se constitui na base da re-
lação figura e fundo na qual ele se dá ou existe para nós. Assim, a posição de um objeto
determinado, a delimitação da objetividade, se dá sobre esse fundo relacional sem o
qual nada se vê: “o horizonte é aquilo que assegura a identidade do objeto no decorrer
da exploração, é o correlativo da potência próxima que meu olhar conserva sobre os
3 O primeiro capítulo de Matéria e memória é apontado por muitos como momento privilegiado da obra de Bergson,
tomando-o inclusive como o texto em que se antecipam algumas discussões fundamentais à própria Fenomenologia da per-
cepção, como já bem mostraram Victor Goldschmidt e Bento Prado Júnior. Ver a esse respeito Annales Bergsoniennes I,
Paris:PUF,2002, p.73-90, e o terceiro capítulo de Presença e campo transcendental, São Paulo:Edusp, 1989.
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Merleau-Ponty em Salvador
objetos que acaba de percorrer e a potência próxima que já tem sobre os novos deta-
lhes que vai descobrir”(Merleau-Ponty, 2004, p.105). A estrutura objeto-horizonte é a
condição do mostrar-se, pois é a do esconder-se. Em outros termos, há uma identifica-
ção do objeto que não apela à memória e à consciência explícita do reconhecimento: o
objeto se identifica no movimento de fixação, na exploração do campo pelo jogo com
os horizontes. E essa relação entre mostrar e esconder explicita uma potência próxima
do olhar para o que se viu e o que se verá.
Constatamos assim que, desde as primeiras considerações sobre o ver, Merleau-
Ponty evidencia tal relação de potência próxima, que se torna mais explícita na descrição
da dimensão temporal. Um objeto estrito senso seria visto a partir de todos os tempos
e por meio da estrutura de horizontes. Mas sua condição primeira é o presente em que
ele se forma, e o que interessa é que “o momento presente é pleno”. Já aqui o fenome-
nólogo alude à espessura do presente, ao tempo como coração da experiência. A ple-
nitude do presente reside na conservação do passado imediato ainda presente, ainda
nas mãos do presente, ao seu alcance. Esse passado que já foi presente também retém
o passado imediato que o precedeu e, nesse sentido, todo o tempo já passado de algum
modo é retomado no presente, ainda que sob uma forma distinta daquela que os mo-
mentos revestiram quando foram presentes. Insinua-se uma totalidade nunca repre-
sentada, mas retomada num ato singular da consciência. O horizonte do passado acu-
mulado e a abertura ao futuro cujo estilo é pré-figurado acompanham o conjunto que
se fixa como um momento atual da minha vida, que jamais se apresenta como todo fe-
chado e determinado. A despeito dos objetos “existentes” em face do sujeito, a despeito
das recordações expressas e das sínteses de identificação, a experiência se efetiva como
um campo em que a consciência atual retoma uma história e incide sobre o mundo
sem evocar o passado representando-o e sem imaginar o futuro delimitando suas alter-
nativas, suas opções, seu conjunto de possibilidades explícitas e determinadas.
O enigma dessa forma de apresentar-se é o mistério do tempo e o núcleo de nossa
experiência. Trata-se de saber como o presente pode referir-se diretamente à totalidade
do tempo decorrido, o passado total. Ora, a diferença entre minha relação com meu
presente e a referência ao passado, imediato ou remoto, assim como ao futuro iminen-
te ou longínquo, é a que se estabelece entre ver e ver em intenção, de forma presunti-
va, entre aquilo que vivo atualmente e a espécie de “névoa” que o envolve, que pode-
mos explorar pela analogia com a diferença psicológica entre “sentir” e “pressentir”.
O presente se apresenta para mim, é aquilo que vivo e experimento, o campo direto
em que espetáculo do mundo se abre para uma subjetividade. O passado e o futuro,
entretanto, o espreitam, como “minha jornada transcorrida” e a tarde e a noite que es-
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tão no “horizonte”(id., p.557). Assim, passado e futuro estão e não estão presentes,
eles são na verdade “dimensões intencionais às quais a subjetividade se dirige e não
têm o mesmo peso da vivência atual”(Sacrini, 2006, p.195). Nesse âmbito, é ainda
mais amplo o campo temporal que o presente de algum modo contém: o passado
imediato tinha seu próprio futuro iminente, com meu passado imediato “tenho o
horizonte de futuro que o envolvia, tenho, portanto, o meu presente efetivo visto
como futuro desse passado”(Merleau-Ponty, 2004, p.106). O presente efetivo “vê” o
passado imediato e se vê como futuro desse passado. E com o futuro iminente tenho
o horizonte de passado que o envolverá, tenho, portanto, meu presente efetivo como
passado desse futuro. A objetivação, transformação do presente fático em presente
objetivo, isto é, instante do tempo objetivo, é então proporcionada por esse duplo
horizonte de protensão e retenção, de conservação não tética do horizonte do passado
e do horizonte do futuro e pela visão do próprio presente como futuro do passado
e passado do futuro. Graças a esse duplo horizonte, “meu presente pode deixar de
ser um presente de fato, logo arrastado e destruído pelo escoamento da duração, e
tornar-se um ponto fixo e identificável em um tempo objetivo”(id., p.108).
Mas o meu olhar só põe uma face do objeto e visa as outras; o presente só tem o
passado imediato em intenção. Assim, a síntese dos horizontes (união e conservação
perceptiva) é apenas presuntiva, e só opera “com certeza e com precisão na circunvi-
zinhança imediata do objeto”. E é por isso que o objeto visto se perde num horizon-
te anônimo, restando inacabado e aberto; por essa abertura, sua substancialidade se
escoa. Merleau-Ponty arrisca também determinar o que seria a densidade do objeto:
ela se sustentaria numa infinidade de perspectivas que seriam o “objeto absoluto”.
O processo de realização da densidade do objeto a revela como noção que remete
aos olhares infinitos que veriam tudo o que não posso ver, mas que pertenceria ao
objeto. Além de nunca vermos a totalidade dos elementos da casa, não podemos
reconhecer a casa mesma porque a duração lhes dá modificações; quando podemos
confrontar nossas recordações com os objetos aos quais se reportam somos surpre-
endidos com as mudanças que eles sofreram no tempo. Mesmo assim, acreditamos
que há uma verdade do passado, apoiamos nossa memória numa imensa Memória
do mundo, “na qual figura a casa tal como ela verdadeiramente era naquele dia e que
funda o seu ser no mundo”(id., p.108). Desse modo, quando formamos a noção de
objeto, que exige ser considerado em si mesmo, ele está inteiramente exposto, suas
partes coexistem quando nosso olhar as percorre alternadamente, “seu presente não
apaga seu passado, seu futuro não apagará seu presente”: a temporalidade é, pois, o
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ser vistas, viraram passado); se o rio simplesmente escoasse, seu passado seria a nascen-
te e seu futuro seria o mar em que ele desemboca. Pelo contrário, se há um espectador,
o que ele vê são as águas passando, elas passam e se tornam passado, as águas que con-
tinuam em direção ao mar são as águas que ele já viu; as águas que vêm da nascente
são as águas que ele verá, que aparecerão, são o futuro.
A bem dizer, o espectador é já suposto quando dizemos que o rio se escoa: isso
significa conceber, ali “onde só existe uma coisa inteiramente exterior a si mesma,
uma individualidade e um interior do riacho que desdobra, no exterior, as suas
manifestações”(Merleau-Ponty, 2004, p.551). A metáfora é confusa, mas não total-
mente inadequada, o que a manteve desde sempre foi a pressuposição tácita do espec-
tador indicada pelo pronome “se”, já que supor o reflexivo indica ao menos a alusão
a um auto-desenvolvimento ou a uma auto-posição que se manifesta a si ao se des-
dobrar. A metáfora do rio não apenas não é totalmente inadequada, como encontra
sua justificativa em outra dimensão temporal, apresentada por Merleau-Ponty depois
de retomar o diagrama husserliano do tempo e de novamente explicitar a hesitação de
Bergson. O tempo pode ser comparado a um riacho se considerarmos a sua unidade,
o fato de que ele é um único ímpeto indiviso, tal como um jato d’água, em que suas
partes se modificam em relação umas às outras, ou melhor, se diferenciam umas das
outras. O tempo se temporaliza pelo movimento articulado de suas partes, numa certa
orquestração em que a mudança de uma delas está ligada à mudança das outras: o pre-
sente que se torna passado imediato “desce” à condição de perfil, mas ele era um futuro
pré-figurado que veio tomar sua posição como agora, tornando-se passado imediato na
mesma ação em que deixou de ser futuro. Assim, se o jato d’água permanece, é apenas
enquanto suas ondas continuam a mudar, a tomar e retomar o lugar das ondas prece-
dentes, sem estarem jamais separadas: há um único jato, um único ímpeto, e é aqui
que “aqui que se justifica a metáfora do rio: não enquanto ele se escoa, mas enquanto
permanece um e o mesmo”(Merleau-Ponty, 2004, p.565).
É certo que Bergson nos apresenta à intuição da duração, em primeiro lugar, no
mergulho interior que o Ensaio sobre os dados imediatos comenta. Assim, a durée é sen-
tida de dentro e retomada numa análise dissociativa da percepção de alguns eventos
ilustrativos – as oscilações de um pêndulo, as batidas de um martelo, etc., mas a multi-
plicidade de interpenetração é encontrada sempre no âmbito da interioridade, “dentro
de mim”. No caso da experiência tematizada na Fenomenologia da percepção, temos o
ser-no-mundo tomado em suas dimensões originárias. Mas, para ambos, trata-se de
descobrir uma articulação de eventos na experiência consciente que não pode ser en-
quadrada na representação partes extra partes. Mais que isso, se o campo fenomenal,
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Merleau-Ponty em Salvador
aberto pela crítica da tradição e explorado pela análise do corpo e do sentir, consiste
no solo mesmo da experiência, sua retomada como campo de presença nos dá as con-
dições originárias da temporalidade, isto é, uma apreensão fiel do ser do tempo. Com
efeito, Merleau-Ponty mostra que o contato com o tempo e a apreensão do seu sentido
se dão em meu campo de presença – só posso compreender o passado distante como
sendo da ordem temporal enquanto esse passado foi presente, “foi atravessado por mi-
nha vida”. O campo de presença é o momento atual, vivido por mim, e é rodeado do
que foi e do que virá: nele estão “pressentidos” o passado e o porvir, que a ele se mis-
turam e fazem dele um evento. Eles estão “presentes”, são presença não notada, sem
representação, tensionam o atual sem exatamente aparecerem. Rodeado de virtualida-
des, o momento que vivo, meu campo de presença é a experiência originária do tempo,
na qual “o tempo e suas dimensões aparecem em pessoa, sem distância interposta e
em uma evidência última” (Merleau-Ponty, 2004, p.557) – tal e qual uma intuição,
visão direta do espírito pelo espírito, que nos dá sempre uma continuidade indivisa e
esse dar-se não apresenta vazios, distância entre o que aparece e suas dimensões, como
também não apresenta distância entre o aparecer e o sujeito. O passado pesa sobre o
presente, o futuro desliza sobre ele, que então desliza para o passado – o deslizamento
se efetiva em nós e para nós, e ele significa um passagem em que esses diferentes mo-
mentos se misturam, “embaralham-se”. Em outros termos, o passado imediato não é
evocado, não vem à consciência, mas está ao alcance de poder ser evocado, eu o tenho
“ainda em mãos”. Na experiência primordial do tempo, ele é para nós como um am-
biente movente que se distancia de nós, modo pelo qual Merleau-Ponty descreve “a
fuga geral do Si”, a diferenciação ininterrupta dos momentos temporais que se efetiva
em totalidade como “um único fenômeno de escoamento”(id.). A convergência com a
descrição do dar-se por perfis é notável: a tarde que vai chegar não é elemento da per-
cepção, “não a vejo, mas ela está ali como o fundo de uma figura”, como a face oculta
do dado que percebo. O presente, assim como a face do dado, se prolonga em linhas
intencionais e traça o “estilo” do porvir. E o presente novo, a passagem a um novo
momento, ao porvir, não é um salto: o porvir vira presente, que vira passado, e é com
“um só movimento que, de um extremo a outro, o tempo se põe a mover”(Merleau-
Ponty, 2004, p.561).
O tempo tem uma unidade natural que é sua coesão e que só se efetiva pela diferen-
ciação de seus momentos, a qual Merleau-Ponty procura descrever reinterpretando o
gráfico de Husserl. Quando passo de A a B, A vira perfil, isto é, retenção de A como A’,
A se projeta ou se perfila em A’. Há uma transformação de A em A’ que é vivida, e nessa
experiência não há uma síntese que faz de A uma unidade ideal; A é o passado imedia-
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não teria percebido é que a unidade do tempo não pode ter como fundamento a sua
continuidade, pensada como indistinção entre passado, presente e porvir, numa no-
ção de tempo como confusão ou bloco homogêneo. Para Merleau-Ponty, com efeito,
a durée se define como conteúdo indiferenciado, tal como a expressão “multiplicida-
de indistinta” poderia sugerir, e torna-se impossível discernir na duração o passado, o
presente e o futuro.
Mas o que é a multiplicidade distinta? E como se explicita a multiplicidade qualita-
tiva no Ensaio? A descrição da fusão que impede a distinção entre passado, presente e
futuro é justa com Bergson? Ou ela teria desconsiderado o trabalho de “enformação”,
que revela uma articulação na duração, um organizar-se imanente à durée, ou mostra
o tempo como passagem de momentos interiores uns aos outros, como diferenças em
coesão? O Ensaio é o livro em que Bergson desenvolve sua distinção conceitual mais
importante, descobrindo e determinando a idéia de duração no esteio da descrição da
multiplicidade interna. Mesmo considerando que a durée se manifesta como relação
entre momentos interiores uns aos outros, desenrolar de diferenças internas e virtuais,
o estatuto da interioridade subjetiva em tal itinerário permaneceria problemático para
a fenomenologia. A questão que se coloca é saber como a reflexão do Ensaio não se
limita à descoberta de uma interioridade psicológica, mas de um absoluto que permi-
te fundar uma nova metafísica, desenvolver o método adequado a ela, apontando as
direções do seu “alargamento” sucessivo e concebendo assim “uma diversidade de du-
rações que correspondem aos diversos graus de ser”8. Tudo se joga na função da análise da
interioridade psicológica na constituição da filosofia de Bergson, isto é, de seu méto-
do e de sua doutrina. E tal análise nos dá indicações de que o fundamental na análise
psicológica se encontra na determinação da forma pela qual a interioridade se mani-
festa e é apreendida – em última instância, o essencial é a sua apreensão como criação
e diferença, restando saber como ambas exigem ou condicionam a interiorização. Em
suma, é a questão da verdadeira filosofia e de seu método que se recoloca a partir da
inspeção da interioridade da consciência: “a descoberta da duração psicológica con-
diciona a reposição da questão do método na filosofia, uma vez que é esta descoberta
que mostrará o caráter artificial do ‘problema da liberdade’”9. A crítica bergsoniana
8 Parte do verbete Durée no Le vocabulaire de Bergson, de Frédéric Worms. Este autor nos forneceu uma das chaves de leitura
do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, em sua Tese de Doutoramento – não publicada integralmente – quando nos
mostra, na construção dos dois primeiros capítulos do livro, uma reformulação do par sujeito empírico/sujeito transcenden-
tal, isto é, ao enfatizar a importância da análise da intensidade no primeiro capítulo bem como a forma como está encadeada
com a análise da multiplicidade do segundo – momento em que de fato se determina a idéia de duração.
9 Leopoldo e Silva, F. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo:Loyola, 1994. A discussão do método intuitivo é exa-
minada no detalhe pelo autor, e nos auxilia a pensar como se efetiva no texto do Ensaio a apreensão interna da própria inte-
rioridade, assim como a função do estudo da experiência interna metodicamente desenvolvida no método bergsoniano e seu
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ele toma parte ao organizar seus estados consigo, participando interiormente de uma
progressão da mesma ordem que a lembrança das “notas de uma melodia”(Bergson,
1991, p.67) , cujo principal aspecto a ser notado é a totalidade não totalizada que
lhes dá sentido: “a experiência estava ao alcance de todos; e aqueles que quiseram
fazê-la não tiveram dificuldade em se representar a substancialidade do eu como sua
duração mesma. É, dizíamos nós, a continuidade indivisível e indestrutível de uma
melodia em que o passado entra no presente e forma com ele um todo indiviso, o
qual permanece indiviso e mesmo indivisível a despeito daquilo que a ele se acres-
cente ou mesmo graças a isso”(id., p.1312,).
A atribuição de uma fenomenologia a Bergson, por mais discutível que seja, en-
contra apoio em seu procedimento teórico, já que, como ressalta Bento Prado Jr., o
exame da duração da consciência, que revela a consciência como duração, se dá pela
descrição do presente no qual “algo se produz para a consciência, que é a consciên-
cia da lei interna de sua produção”(Prado Jr., 1989, p.65). A multiplicidade inter-
na e qualitativa dos estados de consciência emerge como sucessão verdadeira, isto
é, prolongamento de momentos uns nos outros à luz de um sentido unificando-os
virtualmente e pelo qual eles se reportam uns aos outros, sentido que pode ser dito
sua essência. Assim, podemos retomar os termos de Marquet: a intuição centra do
Ensaio é a apreensão do tempo como um “plano em que o todo se re-encontra, se
re-presenta, se re-percute em cada parte”(Marquet, 2004, p.78). O eu faz parte des-
se todo que ele mesmo presencia, na configuração de um campo de presença em que
ele se vê como inserido e integrado ao movimento de totalização. Já no Ensaio essa
consciência em duração é conservação e diferenciação, indicando o acesso a um ser
não fixo, mutável, dinâmico – um ser que é consciência e que se dá à consciência
reflexivamente – um ser que é tempo, durée.
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Referências bibliográficas
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Existência e temporalidade:
o “diálogo” entre Merleau-Ponty e Heidegger
Acylene Maria Cabral Ferreira
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Acylene Maria Cabral Ferreira
3 AHO, Kevin A. The Missing Dialogue between Heidegger and Merleau-Ponty: on the Importance of the Zollikon Se-
minars. In: Body & Society. 2005 SAGE Publications (London, Thousand Oaks and New Delhi), Vol 11 (2): 1-23; p.
16, 18 e 19.
4 ASKAY, Richard R. Heidegger, the body, and the French philosophers. In: Continental Philosophy Review, 32: 29-
35, 1999.
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Merleau-Ponty em Salvador
ponto de partida que afasta Heidegger da investigação sobre o corpo e que leva Merle-
au-Ponty a destacá-lo como ponto nevrálgico de sua filosofia é o mesmo: o problema
da superação da metafísica, no que diz respeito à dualidade substancialidade-subjeti-
vidade. Para superá-la, Heidegger elaborou uma rede conceitual capaz de comportar a
concepção do homem como corpo, alma, razão, sensação, paixão, sujeito e do mun-
do como objeto, sem fundamentá-la em nenhuma destas instâncias. Em Ser e tempo,
a analítica existencial, através dos conceitos de existencialidade do ser-no-mundo, de
mundanidade do mundo, de temporalização do tempo e do ser, constitui o fundamen-
to ontológico do sentido do ser, do homem e do mundo. Destas estruturas ontológico-
existenciais derivam as instâncias de razão, sujeito, significação, objeto e outras. Parale-
lamente, podemos dizer que a superação da metafísica, na Fenomenologia da percepção,
fundamenta-se nos conceitos de percepção, mundo percebido, Cogito, temporalidade,
liberdade e corpo vivo, na acepção de pré-objetivo, pré-pessoal, pré-reflexivo e pré-
lógico. As considerações feitas por nós até este momento, nos permitem afirmar que a
questão da superação da metafísica é uma questão comum tanto a Heidegger quanto
a Merleau-Ponty. Mas elas também nos permitem estabelecer uma diferença radical
entre estes autores: esta do corpo como resposta para a superação da metafísica. É exa-
tamente a partir desta perspectiva de similitudes e diferenças que pretendemos resgatar
o “diálogo entre Merleau-Ponty e Heidegger”.
Mesmo sabendo que a questão do tempo foi tematizada na segunda e última
parte de Ser e tempo e na terceira e última parte da Fenomenologia da percepção,
esta questão será nosso esteio para mostrar o diálogo entre Merleau-Ponty e Hei-
degger, visto que tanto em Ser e tempo quanto na Fenomenologia da percepção o
tempo ocupa um lugar de destaque para a significação do ser e do mundo. A
questão da temporalidade será ainda ponto de partida deste diálogo porque nes-
te capítulo Merleau-Ponty faz uma epígrafe e pelo menos sete citações de Ser e
tempo, com o objetivo de fundamentar a sua estruturação do sujeito e do mundo.
Porém, não devemos esquecer que apesar da recorrência a Heidegger, as consi-
derações sobre o tempo na Fenomenologia da percepção estão fundamentadas em
Husserl. Devemos também lembrar que Heidegger foi aluno e assistente de Hus-
serl e responsável pela publicação em 1928 dos “Aditamentos e complementos
dos anos 1905-1910 à análise da consciência do tempo”, que compõem a obra
Lições para a fenomenologia da consciência interna do tempo de Husserl. Vale ressal-
tar a relevância e influência do pensamento de Husserl tanto para Merleau-Ponty
quanto para Heidegger. Este último, em reconhecimento à importância da obra
do mestre, dedicou a ele o seu livro Ser e tempo. Como nosso objetivo aqui é res-
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9 Ibidem, p. 438.
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É essencial ao tempo não ser apenas tempo efetivo ou que se escoa, mas ainda tempo
que se sabe, pois a explosão ou a deiscência do presente em relação ao porvir é o ar-
quétipo da relação de si a si e desenha uma interioridade ou uma ipseidade. Aqui brota
uma luz, aqui não tratamos mais com um ser que repousa em si, mas com um ser do
qual toda a essência, assim como a da luz, é fazer ver. É pela temporalidade que, sem
contradição, pode haver ipseidade, sentido e razão.12
Estas palavras de Merleau-Ponty nos ajudam a melhor entender a reciprocidade
10 MERLEAU-PONTY, Maurice .Fenomenologia da percepção, p. 567.
11 Cf. MERLEAU-PONTY Maurice. Fenomenologia da percepção, p. 549.
12 Ibidem, p. 571.
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13 Ibidem, p. 569.
14 Ibidem, p. 568.
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o que é último na subjetividade [...] é a consciência [...] que não tem nenhuma outra
consciência atrás dela.”15 Nesta conversibilidade do presente do tempo e da presença
da subjetividade, prepondera o vácuo do tempo e o vazio da subjetividade. “Nessas
condições pode-se dizer, se se quiser que nada existe absolutamente, e com efeito
seria mais exato dizer que nada existe e tudo se temporaliza.”16
III
15 BANNAN, John F. The Philosophy of Merleau-Ponty. Chicago: Brace, 1967; p. 126, 129.
16 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, p. 445.
17 Ibidem, p. 323.
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O tempo histórico de Heidegger, que flui do porvir e que, pela decisão resoluta, ante-
cipadamente tem seu porvir e salva-se de uma vez por todas da dispersão, é impossível
segundo o próprio pensamento de Heidegger: pois se o tempo é um ek-stase, se pre-
sente e passado são dois resultados desse êxtase, como deixaríamos totalmente de ver
o tempo do ponto de vista do presente, e como sairíamos definitivamente do tempo
inautêntico? 18
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dimensão que o porvir originário? Sendo assim não caberia a ele o estatuto de on-
tológico, de fundamentação do ser e, portanto do ser do mundo? Parece que sim,
tanto pelo fato que para Merleau-Ponty “é pelo tempo que pensamos o ser” quanto
porque para ele o tempo “é o sentido de nossa vida e, assim como o mundo, só é
acessível àquele que está situado nele e esposa sua direção.”22 Ora, esta concepção de
tempo parece similar àquela que considera o tempo como horizonte-ekstático, no
qual mundo e existência são iluminados e ganham sentido e consistência, fazendo-
se ver naquilo que eles são. Buscando ainda uma similaridade entre estas concepções
de tempo, retomaremos nossa consideração sobre o tempo como movimento, que
reúne retenção e projeção na unidade ekstática em Heidegger, ou que reúne pros-
pecção e retrospecção na “síntese do tempo” em Merleau-Ponty. Em ambos, este
movimento de temporalização requer uma abertura ou uma saída, um para fora de,
um direcionamento a outra temporalidade, propiciando assim a fundamentação e
constituição do sentido da existência e do mundo. Apesar de ambos considerarem
o tempo como movimento, há uma diferença constituinte nestes movimentos de
temporalização. Para Heidegger, este movimento mostra-se através da decisão ante-
cipadora da presença, ou seja, pelo caráter de antecipação da existencialidade, que
constitui a presença como possibilidade, projeto lançado e poder-ser. Enquanto que
para Merleau-Ponty, o movimento de temporalização coincide com o próprio mo-
vimento da consciência, por isto a temporalidade é subjetividade e reciprocamente.
Tanto a temporalidade quanto a subjetividade ganham sentido a partir do corpo fe-
nomenal ou corpo próprio / vivo, que traduz a ambigüidade do corpo (corpo sujeito
e corpo objeto), que por sua vez, nos remete para a ambigüidade do ser-no-mundo,
qual seja, a conversibilidade da consciência e do corpo.
Pelo fato de Merleau-Ponty procurar reavivar o corpo vivo, o vínculo pré-temático en-
tre o corpo-sujeito e o objeto mundano é que ele negligencia o fato ontológico de que
nossas percepções presentes tornam-se significativas não pela consciência encarnada,
mas pelo horizonte prévio da temporalidade. [...] Para Heidegger, o Dasein como a
clareira de inteligibilidade estruturada temporalmente, está sempre já aí, previamente
ao aparecimento do corpo-sujeito.”23
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Merleau-Ponty e Sartre:
notas sobre o conceito de liberdade
Pode parecer evidente que haja uma relação entre estes dois filósofos, mas será
que realmente se consegue avaliar o peso da influência exercida por Sartre sobre a
obra de Merleau-Ponty? Seria o caso de uma relação apenas circunstancial ou uma
presença maciça e surda da filosofia sartreana junto aos alicerces da filosofia merle-
au-pontiana? Do ponto de vista da filosofia de Merleau-Ponty, esta relação deve ser
rastreada do início ao fim de sua carreira. Em princípio, trata-se muito mais de um
diálogo consciente e resoluto do que alguma espécie de influência apenas lateral. O
leitor da obra merleau-pontiana sabe que este diálogo não é tão simples de ser circuns-
crito, e isto, porque nela encontramos uma proximidade e uma distância que na maioria
das vezes passa despercebido e que chega a ser desconcertante se nos atemos apenas nas
intenções expressas de filósofo. Merleau-Ponty e Sartre eram amigos; eles fundaram jun-
tos a revista Les Temps Modernes. Depois, durante o período que nosso filósofo esteve no
Collège de France, ele se afasta da direção da revista, momento em que a amizade com
Sartre se abala irremediavelmente devido a publicação, em 1955, de As aventuras da dia-
lética. Desta relação de caráter institucional, é importante passar, o quanto antes, para o
verdadeiro diálogo entre eles, o diálogo conceitual. A influência de Sartre sobre a obra
de Merleau-Ponty pode ver avaliada sob três aspectos: primeiramente, Merleau-Ponty
discute francamente com Sartre desde os seus primeiros artigos, mas principalmente,
em sua Fenomenologia da percepção, onde tece duras críticas à filosofia sartreana visando
ultrapassá-la assim como superar definitivamente as alternativas clássicas. Em segundo, é
possível detectar, sob a crítica merleau-pontiana a Sartre, uma espécie de presença mas-
siva e subterrânea do modelo da filosofia que ele pretende criticar. Por último, pode-se
dizer que o diálogo com Sartre permanece presente e determinante até mesmo em O visí-
vel e o invisível, só que neste livro, além de predominar o tom crítico, Merleau-Ponty pro-
cura neutralizar ao máximo os prejuízos filosóficos herdados via filosofia sartreana.
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Leandro Neves Cardim
1 Merleau-Ponty, M. Sens et non-sens. Paris : Nagel, 1966, p.125; obra será citada com a sigla SNS.
2 Idem. La nature. Notes. Cours du Collège de France. Paris : Seuil, 1994, p.101; esta obra será citada com a sigla N.
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Merleau-Ponty em Salvador
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Leandro Neves Cardim
é a reflexividade, ele está voltado para si, por outro, que o sujeito também é um pro-
cesso que constitui sua identidade através de projetos e escolhas. Sartre não pensa este
processo fora da situação. O existente está situado e é em relação a esta situação que a
liberdade se apresenta. Assim, somente em relação à situação é possível compreender
que não há nada antes da liberdade que o agente possa se valer para agir, a liberdade
se remete apenas a si mesma, ela é a própria realidade humana. O sujeito pode, en-
tão, escolher qual significado ele atribuirá tanto aos fatos quanto às outras pessoas que
compõe sua situação. Do lado dos fatos, o existente atribui a eles uma significação que
deve variar de acordo com sua liberdade, do lado das outras pessoas, ele deve ser livre
para atribuir uma significação para aquilo que os outros fazem dele. É neste sentido
que, na filosofia sartreana, liberdade e situação devem se relacionar.
Dito isto, é possível compreender o elogio feito a Descartes por parte de Sartre:
“em uma época autoritária, ter lançado as bases da democracia, de ter perseguido até o
fim as exigências da idéia de autonomia e de ter compreendido [...] que o único fun-
damento do ser era a liberdade”. 3 Mas, uma vez que Sartre propõe atribuir ao próprio
homem esta “liberdade criadora que Descartes havia colocado em Deus”, 4 resta que
permanecemos em uma doutrina da liberdade absoluta sem Deus. Assim, a liberdade
não pode comportar degraus, pois ou ela é total ou é nula: “a liberdade não é um ser:
ela é o ser do homem, ou melhor, seu nada de ser. [...] O homem não pode ser ora
livre ora escravo: ele é inteiramente e sempre livre ou não é”. 5 Em As aventuras da dia-
lética, Merleau-Ponty nos lembra que “Sartre sempre pensou que nada pode ser causa
de um ato de consciência”. 6 Mesmo os obstáculos à liberdade são “desdobrados por
ela”. Em Sartre, liberdade e situação devem se relacionar, mas é preciso reconhecer na
consciência a possibilidade de tomar uma “posição de recuo em relação ao mundo”, 7
logo, reconhecer a possibilidade de escapar do mundo, de libertar-se dela, o que é, pre-
cisamente, reconhecer a liberdade da consciência. Vimos que a filosofia sartreana não
nega a condição humana, mas também isso não quer dizer que o sujeito seja passivo
em relação ao mundo. Como diz Merleau-Ponty se referindo a Sartre: “sou eu quem
fabrica com todas as peças minha liberdade” (AD, 196). Aqui, o sujeito é detentor
de um poder que o afasta da passividade; ele ultrapassa a passividade em vista de fins
escolhidos de maneira livre. É verdade que Sartre pretenda ligar, do interior, a condi-
3 Sartre, J.-P. “La liberté cartésienne”, in Situations I. Paris : Gallimard, 1947, p.308.
4 Idem, Ibidem, p.407.
5 Idem. L’être et lê néant. Essai d’ontologie phénoménnologique. Paris : Gallimard, 1943, p.516.
6 Merleau-Ponty, M. Les aventures de la dialectique. Paris : Gallimard, 1955, p.150; obra doravante citada com
a sigla AD.
7 Sartre, J.-P. L’imaginaire. Psychologie phénoménologique de l’imagination. Paris : Gallimard, 1986, p.353.
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Merleau-Ponty em Salvador
ção humana e aquilo que especifica o homem. Ele afasta simultaneamente as análises
deterministas (o homem não é livre já que é determinado a agir por causas que fogem
ao seu domínio) e intelectualistas (o homem é agente porque tem poder de escolha). 8
O primeiro não percebe que existe uma relação interna entre situação e liberdade, e o
segundo, erra ao excluir da escolha o lastro do mundo.
Na famosa conferência O existencialismo é um humanismo, Sartre parte de uma má-
xima que fez história: “a existência precede a essência”. Ora, em princípio, isto quer di-
zer que é preciso partir da subjetividade e que a liberdade de que aqui se trata é aquela
do existente definido como consciência, a qual é definida como intencional. 9 O que
se trata de recusar com esta hipótese é a tese de que “a essência precede a existência”,
donde a recusa da idéia de que exista um fim a priori, um modelo, um padrão, em di-
reção ao qual os homens caminham. Trata-se, enfim, da recusa da idéia de “natureza
humana” em prol da existência concreta. Isto significa que, em princípio, o homem
existe e só depois ele se define. 10 Sartre não está incorrendo em nenhuma espécie de
individualismo, já que o ser-no-mundo se opõe aos objetos que fazem parte do mun-
do e estão submetidos às leis de seu determinismo. Vimos que a consciência é sempre
capaz de escapar do mundo, o que atesta, justamente, o poder da imaginação. Assim,
o homem para Sartre “não é nada além do que aquilo que ele faz de si mesmo. Tal é o
primeiro princípio do existencialismo”. 11 O que significa dizer que para o homem não
existe modelo prévio. Mas se o homem “é responsável por aquilo que ele é”, o que se
torna a liberdade? O que é uma ação? A ação livre não é aquela que alcança fins pre-
viamente estabelecidos ou que não tem obstáculos para a ação. A ação livre determina
seus fins a partir de si mesma. 12 O existente sartreano escolhe de maneira autônoma
8 Moutinho nos diz que, para Sartre, o “erro comum”, ou seja, a ilusão compartilhada entre o determinista (que pensa que
o motivo é a causa do ato) e o partidário da liberdade (que pensa que o ato livre é fruto apenas dos atos voluntários) é que
“a atitude, em ambos os casos, nasce a posteriori. [...] Significa que, introduzindo ou não o fim, o motivo age por si mesmo,
ignorando o fato de ele só ser motivo à luz do fim projetado”. Em suma, os “pretensos rivais”, “irmãos de doutrina”, fazem
abstração ao isolar o motivo. Moutinho insiste na idéia de que para compreender a “estrutura fim/motivo” em Sartre é preci-
so inseri-la na “estrutura futuro/passado”. Afinal, uma vez estabelecido que a “consciência é temporalidade, que para ela ser e
passar são um e o mesmo”, “futuro e passado se implicam como fim e motivo”. “Na verdade, os termos são intercambiáveis:
fim, possível ou futuro designam a mesma coisa, dependendo apenas do ponto de vista em que me coloque, se descrevo a
ação, a consciência ou a temporalidade. Do mesmo modo, motivo ou passado, ação ou presente” (Moutinho, L.D.S. Sartre.
Existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995, p.62-63, 70).
9 “A consciência é intencional, isto quer dizer que ela chega a fazer existir um fora, um além da consciência ao se colocar,
em princípio, ela mesma fora do ser. Ela implica a cada instante uma ruptura com o ser, um surgimento fora do ser: mas é o
surgimento de um nada” (Varet, G. L’ontologie de Sartre. Paris: PUF, 1948, p.58).
10 Cf. Sartre, J.-P. L’existentialisme est un humanisme. Paris : Nagel, 1970, p.21.
11 Idem, Ibidem, p.22.
12 “Não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. [...] Assim, nós não temos nem atrás de nós, nem à
nossa frente, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. É o que eu exprimiria dizendo que o homem está
condenado a ser livre. Condenado, porque ele não é criado por si mesmo, e, aliás, todavia, livre, porque uma vez lançado no
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os seus fins. É o próprio homem que constitui a essência daquilo que ele é, mas isto a
partir de sua existência concreta. 13 Agora, essa liberdade é caracterizada como criado-
ra, já que o motivo só é motivo para um sujeito que lhe dá sentido, antes disto, tal mo-
tivo não é para o sujeito, ou seja, não tem significado. Não há modelo ou fundamento
para ação do homem, é a liberdade que especifica ação, ela é o seu próprio fundamen-
to. Se o fim vem ao mundo através do homem e não de maneira exterior, é porque
ele é escolhido livremente, portanto, a liberdade é plena. A liberdade se apóia, sim, na
ação ou no engajamento, é aí que devemos, segundo Sartre, encontrar o critério da
ação – o engajamento faz da liberdade o critério da existência. 14 Agora, a estrutura da
consciência intencional é transferida para a perspectiva da ação, a qual “é sempre um
ultrapassamento do dado em direção a um fim”. 15 A liberdade tem, assim, um fundo
de gratuidade, ela é imotivada ou se “automotiva”, como uma automotivação do nada.
Como a liberdade está fora da ordem do em si, compreende-se que o homem é livre e
que a própria liberdade se identifica com o modo de constituição da consciência. Não
cabe ao homem escolher ser livre, o homem escolhe “a partir da liberdade”. 16 Este é o
dado imediato fundamental, o qual tem por base a situação concreta.
Se o dado imediatamente fundamental, espontâneo e natural é a escolha que o
homem faz de si mesmo a partir da liberdade, é porque o “para si” não encontra ne-
mundo ele é responsável por tudo o que ele faz. [...] [O existencialismo] pensa então que o homem, sem nenhum apoio e sem
nenhuma segurança, está condenado a cada instante a inventar o homem” (Idem, Ibidem, p.37-38).
13 Varet nos diz que se trata de uma “auto-motivação, exigência para cada consciência de que nada, salvo a consciência, não
a determina ou a limita, ‘existência em círculo’. Todavia, se deve haver aí uma ‘realidade efetiva’ dessa liberdade, é preciso
também que esta condição lhe seja definida como uma situação de fato” (Varet, G. L’ontologie de Sartre. Op. cit., p.32).
14 Sartre concebe o engajamento como “engajamento continuado”, “estado de vigília permanente”, ou seja, “como Deus
de Descartes, envolvido na tarefa cotidiana da criação continuada do mundo, dando-lhe o suporte infinito de realidade
ou substancialidade às coisas”. “Espectador absoluto, soberano e transcendente, o filósofo, empoleirado em Sírius, julga
ter a chave do tempo, da história e do mundo” (Chaui, M. “Filosofia e engajamento: em torno das cartas de ruptura entre
Merleau-Ponty e Sartre”, in Experiência do pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p.279).
15 Moutinho, L.D.S. Sartre: Existencialismo e liberdade. Op. cit., p.71. E Moutinho continua dizendo que “se o motivo
não produz o fim, tal como a causa o seu efeito, é porque o fim vem ao mundo pelo homem, isto é, pela intenção da cons-
ciência. Um dado, uma coisa, não produzem fim, não tem finalidade. Mais que isso: se o dado presente só se torna motivo
para uma ação à luz do fim, é porque a intenção implica uma permanente ruptura com o dado; ruptura porque é o fim que
colore o dado e o torna motivo. Isto não é feito em momentos distintos, mas de uma única vez: a intenção visa a um fim e
faz do dado um motivo a partir desse fim. Nisso estará a verdadeira liberdade humana” (p.71).
16 “A precedência da existência”, diz Silva, “é a precedência da negatividade porque é a precedência do vazio essencial. Po-
deríamos ver aí algo como uma indeterminação vivida, porque é um nada que, a princípio, é tudo o que o homem tem. Por
isso, ele pode ser definido pela ausência de determinação positiva, isto é, pela liberdade. [...] A liberdade, portanto, o ser da
consciência, está aí, nesse vazio de determinação, e no ato livre a consciência não é seu passado, porque a liberdade surge a
partir da negação, e não da reiteração do que já foi ou do que tem sido. Essa negação do passado é uma forma de situar-se
perante ele, precisamente a forma da nadificação” (Silva, F.L. Ética e literatura em Sartre. Ensaios introdutórios. São Pau-
lo: Unesp, 2004, p.70-73).
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Merleau-Ponty em Salvador
nhum apoio no que ele era, sua herança é reduzida a zero, donde o passado não poder
produzir um ato, pois só um fim pode iluminar o passado. A liberdade consiste no
fato de que a escolha é incondicionada. Vem daí que a liberdade seja criadora, e isto,
no mesmo sentido que os clássicos atribuíam esta palavra a Deus, mas se aqui Deus
desaparece, é porque se trata de atribuir ao homem o pleno exercício da liberdade. Se
o atualismo radical de Sartre entra em confronto com o Deus de Descartes é porque
ele pretende retomar esta liberdade plena e criadora que Descartes havia reconhecido.
O que significa dizer que, no limite, ele reedita as clivagens cartesianas da res extensa e
da res cogitans nas clivagens radicais do “em si” e do “para si”, do pleno e do vazio, do
ser e do nada; com isto, ele atribui um poder ilimitado ao sujeito e deixa o objeto to-
talmente desprovido de produtividade. Vem daí a recusa, por parte de Merleau-Ponty,
em descrever a liberdade “como um jorrar ex nihilo”; importa, ao contrário, interpretar
a liberdade “como a outra face [da inserção do sujeito] no mundo”. 17 O problema está
em que, para a filosofia sartreana, mesmo que a consciência esteja situada no mundo,
ela não é condicionada por nada, nem pelos fatos, nem pelas outras pessoas. Ao con-
trário, a consciência tem o poder ilimitado de nadificar o mundo. Ora, esta negação é
precisamente sua forma de se situar em relação ao mundo, donde a característica par-
ticular da consciência imaginante, isto é, seu poder nadificador. O que Merleau-Ponty
não pode aceitar nesta descrição da liberdade é a soberania da consciência e a ausência
de sentido imanente ao mundo. Considerar a consciência como doadora de sentido e
fundadora de toda significação é uma maneira de tratar a subjetividade como “plena”,
“soterrada no mundo”, “idéia do nada que ‘vem do mundo’, bebe o mundo, precisa
do mundo para ser seja lá o que for, mesmo nada, e que, no seu auto-sacrifício ao ser,
permanece estranha ao mundo” (S, 194).
Da parte de Merleau-Ponty há o esforço de inscrever o sentido no mundo, pois
aquilo que motiva o sujeito a agir é da ordem prática. Aqui, é indispensável ressaltar
o duplo sentido da intencionalidade, ao contrário da filosofia sartreana onde há so-
mente um movimento centrífugo, ou seja, do centro para fora. Para o nosso filósofo
é preciso reencontrar a ambigüidade fecunda que nos dá os dois lados do problema, a
saber: o duplo movimento ao mesmo tempo centrífugo e centrípeto. Donde a recusa
da via de mão única, mas também a insistência na via de mão dupla precisamente no
sentido do a priori da correlação: existe um movimento do sujeito para o mundo e um
movimento do mundo para o sujeito. É no interior deste campo que há liberdade, é
ele que faz com que haja, para o sujeito, possíveis privilegiados e um sentido autócto-
ne no mundo. Ora, para esta filosofia, é o mundo que motiva a ação; o mundo não
17 Lebrun, G. “A esperança, hoje...”, in Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.118.
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dimensões temporais para que elas brotem para ele. Passado e futuro “só existem quan-
do uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma pers-
pectiva, ali introduzir o não-ser” (PhP, 564). O campo que a liberdade deve ter se ela
quiser pronunciar-se como liberdade é aquela região no interior da qual algo a separa
de seus fins (cf. PhP, 587). Esta é a verdadeira situação do ser-no-mundo, o qual habi-
ta o mundo e faz como que espaço e tempo sejam o ambiente de sua vida. A ação só
será eficaz e verdadeira se desdobrada no interior deste campo que preexiste ao sujeito.
Se assim for, a escolha que fazemos de nós mesmos deve supor uma aquisição pré-
via. Para que a liberdade seja “concreta e efetiva”, deve haver “troca” entre a situação
de fato e a escolha livre, a qual retoma um projeto prévio que é proposto pela relação
do sujeito com o mundo e com outrem. A liberdade se torna, então, um “fazer”, uma
“práxis”. As condições de possibilidade às quais o filósofo opõe as condições de reali-
dade devem nos reenviar, então, ao sentido imanente ao mundo sensível; tal sentido é
dado desde sempre, ele habita o mundo, ele é dado antes da atividade do eu pensante
e é sobre ele que a ação livre opera. Não é nem fora do sujeito, nem dentro dele que
encontramos os limites à liberdade. Para compreender isto, Merleau-Ponty estabelece
uma distinção entre as intenções expressas que o sujeito tem de transpor um obstáculo
e suas intenções gerais que valorizam virtualmente sua circunvizinhança. Os obstácu-
los, como, por exemplo, um rochedo intransponível, parece grande ao sujeito que pre-
tende escalá-lo porque ele ultrapassa o poder de seu corpo (cf. PhP, 589). Mesmo que
nos situássemos em um lugar fora da terra encontraríamos abaixo de nós, enquanto
seres pensantes, a existência de um “eu natural que não abandona sua situação terrestre
e que sem cessar esboça valorizações absolutas” (PhP, 580). Assim, há intenções gerais
em um duplo sentido: “em primeiro lugar no sentido em que [as intenções gerais]
constituem um sistema em que todos os objetos possíveis estão de um só golpe en-
cerrados”; estas intenções gerais são passíveis de ser encontradas “em todos os sujeitos
psicofísicos cuja organização é semelhante à [do sujeito perceptivo]” (PhP, 589-90).
Em segundo lugar, há intenções gerais se elas não dizem respeito a mim enquanto su-
jeito pensante, mas se elas dizem respeito ao “eu natural” que sustenta outros sujeitos
que tem um corpo como o do sujeito da percepção. Os obstáculos à liberdade são, no
limite, valorizações do sujeito perceptivo, o qual não é “acósmico”, mas, ao contrário,
um sujeito natural e anônimo “que se precede a si mesmo junto às coisas para dar-lhes
figura de coisas”. “Existe um sentido autóctone do mundo, que se constitui no co-
mércio de nossa existência encarnada com ele, e que forma o solo de toda Sinngebung
decisória” (PhP, 591). É este sentido autóctone a condição de realidade de todo pensa-
mento racional e de toda ação.
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ção privilegiados e que por si mesma ela é impotente para causar algum” (PhP, 593).
20 “Escolhemos nosso mundo e o mundo nos escolhe. [...] Nós aprendemos a reconhecer a ordem dos fatos. Estamos mis-
turados ao mundo e aos outros em uma confusão inextrincável. A idéia de situação exclui a liberdade absoluta na origem de
nossos envolvimentos. Aliás, ela a exclui igualmente em seu termo” (PhP, 609-10).
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de que ele chama de “Deus em nós”, 21 ou melhor, a liberdade não pode ser separada
de alguma “potência”, ela é o “poder de ir além”, é a “potência de nos fazer ir além”.
Em suma, a liberdade deve ser situada, mas, além disto, ela guarda alguma potência: a
liberdade é ambígua. O existente está situado no mundo e guarda um poder de negá-
lo. Por isto, não há como não enfatizarmos os dois lados do problema: a passividade
e a atividade. Do lado da passividade, “não existe liberdade efetiva aquém do mundo,
mas em contato com ele” (SNS, 261). Do lado da atividade, a liberdade só chega a
manifestar-se plenamente quanto exerce um ato transfigurador.
Merleau-Ponty chama a atenção para a existência de duas espécies de engajamento:
o “engajamento de fato” e o “engajamento no sentido ativo”. O primeiro é aquele que
surge “quando o [sujeito] desperta na vida, [quando ele se] descobre responsável por
inumeráveis coisas que, todavia, [ele] não fez, mas que [ele] retoma por [sua] conta
ao viver” (AD, 269). Já o segundo, é aquele engajamento que é a resposta dada pelo
sujeito à armadilha original, e que consiste, então, na sua própria construção, na esco-
lha de si mesmo; que consiste, enfim, em “apagar [seus] comprometimentos natais, a
escolhê-los, e a [se] resgatar pela seqüência que [ele] lhes dá ao inventar, ao [se] reco-
meçar e recomeçar a história também” (AD, 269). Compreende-se, então, que ao lado
destes dois tipos de engajamento encontremos dois tipos de liberdade. A primeira é a
de Sartre, a qual deve ser compreendida como um “puro poder” e que nunca se iden-
tifica a um fazer. A ação do lado sartreano não passa de um “fiat mágico” e a liberdade
se fragmenta em instantes, restando uma espécie de criação continuada reconduzida a
uma “série indefinida de atos de posição”. “Esta liberdade que não se faz jamais carne,
nunca tem um adquirido e não se compromete jamais com a potência, é, na realidade,
a liberdade de julgar” (AD, 273). A segunda concepção de liberdade que Merleau-
Ponty aponta é aquela de sua própria filosofia. 22
Como, então, pensar a engrenagem entre o sujeito e a sedimentação, entre o uni-
versal e o particular que é precisamente o núcleo da questão? Ora, o enigma consiste
em saber como a vida articula estes dois aspectos em uma só aventura ou trama. É
o que o filósofo nos ensina ao interpretar a relação do artista com sua obra. A partir
21 Trata-se de uma expressão do próprio Merleau-Ponty citada a partir artigo de Shoichi Matsuba “L’ambiguïté de la li-
berté. La liberté, en particulier chez Leibiniz, de Merleau-Ponty”, in S. Heidsiek (dir.) Le philosophe et son langage, Re-
cherches sur la philosophie et le langage. Grenoble, 1993, p.249.
22 O sujeito precisa reconhecer que ele está sempre instalado “em certa posição em relação aos outros e aos acontecimentos
no momento em que [ele] procura vê-los claramente. [...] E seguramente, estas infra-estruturas não são um destino, a vida
[do sujeito] as transformará. Mas se [ele] tem a oportunidade de ultrapassá-los e de [se] tornar uma outra coisa que este pa-
cote de acasos, não é decidindo dar a [sua] vida este ou aquele sentido, é tratando de viver ingenuamente o que se oferece a
[ele], sem usar de astúcia com a lógica da empreitada, sem fechá-la de antemão nos limites de uma significação premeditada”
(AD, 273-74).
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como apoio empírico de seu próprio não-ser. A fala é o excesso de nossa existência por sobre o ser natural” (PhP, 267).
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2. Merleau-Ponty e
as ciências do homem
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A razão encarnada:
pensamento e sensibilidade em Merleau-Ponty
Pascal Dupond
1 Os textos de Merleau-Ponty citados aqui serão referidos às edições francesas, segundo as abreviaturas habituais para
os títulos dessas obras, com o número da página indicado em seguida. Os títulos das obras e suas respectivas abreviaturas
encontram-se nas referências bibliográficas, no final do artigo. No caso dos manuscritos inéditos depositados na Biblioteca
Nacional da França (MBN), as referências trazem o número do microfilme em algarismos romanos e o número da página
em algarismos arábicos [Nota do Tradutor].
2 PP, XV.
3 O “primado da percepção” não é tão estranho quanto se poderia pensar, em uma tradição que chamaríamos tranqüilamen-
te de intelectualista. Quando Kant constrói sua dedução transcendental, ele age como se o pensamento pudesse se retirar do
mundo e “dá-lo” para si, por suas operações construtivas; mas esta não é sua última palavra: “Na realidade, como o próprio
Kant disse profundamente, só podemos pensar o mundo porque de início temos experiência dele; é por essa experiência que
temos a idéia do ser e é por ela que as palavras ‘ racional’ e ‘real’ recebem simultaneamente um sentido” (P, 50). E Brunschvi-
cg retoma Kant nesse ponto: “o acontecimento percebido nunca pode ser reabsorvido no conjunto das relações transparentes
que a inteligência constrói por ocasião do acontecimento” (P, 57).
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I – O retorno à percepção
4 P, 58.
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A primeira é aquela que foi iniciada pela filosofia moderna com Descartes à frente,
e coincide com a ratio moderna.
Descartes não pode abstrair uma “ontologia do existente”, mas todo seu esforço
filosófico tende a edificar uma “ontologia do entendimento”, fundamento do conhe-
cimento da natureza, da racionalidade científica e técnica.
Ora, a ontologia do entendimento – e isto é, por assim dizer, seu ato de nascença
– estabelece uma cisão ontológica entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido.
O entendimento cartesiano é, como afirmam os inéditos, “um pensamento que recua
até o nada para ver (luz natural)”5, é “um pensamento que pratica o método de purificação,
que desfaz a comunhão”6, quer dizer a comunhão sensível entre nós e o mundo.
A filosofia moderna separa, assim, “o pensamento que recua até o nada para ver”
– puro pensamento, ato de um sujeito que é pura interioridade ou pura liberdade – e
o que este pensamento ou sujeito vê, ao recuar desta forma até o nada, quer dizer um
puro objeto, um objeto que é pura exterioridade e pura necessidade.
A filosofia moderna é, pois, um pensamento que estabelece “bifurcações”, que afir-
ma que não se pode compreender a si próprio nem compreender as coisas sem sepa-
rar espírito e natureza, espírito e matéria, liberdade e necessidade, para si e em si etc.
Ora, atualmente, essas bifurcações tornaram-se, para nós, problemáticas.
Em primeiro lugar, porque elas separam o homem dele mesmo: elas o dividem em
uma natureza naturante denominada razão, espírito, luz natural ou pensamento cons-
tituinte, e uma natureza naturada que reúne o corpo, a sensibilidade, a percepção ou
tudo aquilo que depende da facticidade da existência. A unidade do homem é perdida.
E se for restabelecida, isto acontece com violência: a violência que um dos dois ter-
mos exerce sobre o outro.
O naturalismo ou objetivismo ignora a natureza naturante; ele conhece as coisas e
o próprio homem apenas na qualidade de natureza naturada; naturaliza o pensamento
e a existência humana, reduzindo-as a um acontecimento do universo que podemos,
assim como os outros, estudar de forma objetiva; mas o pensamento e a existência são,
então, privados de liberdade, eles não se fazem, mas são feitos pelo jogo da casualidade
natural, são subtraídos de sua efetuação, e o fenômeno da verdade é incompreensível.
5 MBN VI, 71; ver também MBN VI, 82 : “O espírito puro e atento, que recua até o nada para ver, que define o ser por
seu ser-posto”.
6 MBN XVI, 6. Daí o mecanismo: “o mecanismo é um esforço para ruduzir o mundo a um objeto puro, para designar
isto que é em si, para livrar-nos das comunhões que os sentidos e a imaginação organizam entre ele e nós” (MBN VI, 40). O
entendimento cartesiano é um pensamento que “apreende as essências, apreende os « objetos de pensamento » e só se detém
diante do ojeto puramente objeto” (Id.). O entendimento constrói assim uma “filosofia da significação”, que se propõe a
esclarecer o sentido disto que denominamos natureza, e que identifica nosso conceito claro e distinto da natureza ao em si :
“sentido e em si [são] sinônimos” (MBN VI, 99).
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7 Termo grego que equivale aqui a um “observador imparcial”, o “pensamento de sobrevôo” de que fala Merleau-Ponty (NT).
8 MBN VI, 54.
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da qual o outro e as coisas nos são dados inicialmente [...], despertar a percepção e des-
vendar a astúcia pela qual ela se deixa esquecer enquanto fato e enquanto percepção em
benefício do objeto que nos entrega e da tradição racional que funda”9.
Merleau-Ponty nos coloca, assim, numa situação paradoxal. Os modernos pensavam
ter de abandonar a percepção para edificar um conhecimento racional. Este conheci-
mento racional produziu um irracional em segundo grau, tornando o homem ininteligí-
vel a si mesmo em seu ser e em seu agir. Acaso vamos remediar esta situação voltando às
antinomias da fé perspectiva? Vamos chamar o irracional para socorrer a razão?
Sim, eis o paradoxo: talvez exista mais sentido e razão em nos misturarmos ao mundo
do que na purificação exigida pelo entendimento.
O que nos ensina finalmente a doação originária?
Por causa de sua natureza intencional, a percepção pode ser abordada sob um ângulo
noemático (o objeto percebido) e sob um ângulo noético (o sujeito perceptivo). A estru-
tura do comportamento aborda a percepção sob o ângulo noemático, a Fenomenologia da
percepção, sob o ângulo noético. As duas orientações são complementares: A estrutura do
comportamento nos ensina que não há objeto científico que não esteja fundado em uma
estrutura percebida; a Fenomenologia da percepção nos ensina que o sujeito perceptivo é
uma existência carnal e temporal.
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12 SC, 172 : “O conhecimento científico encontra [no organismo] relações físico-químicas e o investe delas pouco a pou-
co. Uma contra-força que interviesse para romper essas correlações é inconcebível. Mas nada nos obriga a pensar que o ciclo
das relações físico-químicas possa se encerrar pelo fenômeno do organismo, que a explicação possa se juntar aos dados da
descrição, o corpo fenomenal ser convertido em sistema físico e integradoà ordem física. A totalidade não é uma aparência,
mas um fenômeno”.
13 SC, 169.
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1) Esta “vista na coisa percebida” não é uma “visão”, nem a nossa, nem a dela (no
sentido em que se atribuiria à coisa ou ao animal inferior uma consciência surda em
relação a si e ao mundo).
2) Ela não é produzida, constituída por nossa visão (da qual ela seria o contraponto
do lado do objeto).
3) Ela não é tampouco livre de toda visão (pois uma “vista” sem “visão” seria
ininteligível).
Vista e visão estão numa relação de envolvimento: Ineinander.
O que Merleau-Ponty denomina “vista” equivale, no plano sensível, ao que deno-
minamos “sentido” no plano do inteligível. Vista e visão estão na mesma relação que
sentido e compreensão: o sentido envolve a compreensão – da qual ele é a Urstif-
tung (a fundação originária) ou a antecipação – assim como a compreensão envolve
o sentido (do qual ela é a realização ou a Nachstiftung); da mesma maneira, a vista
da coisa envolve, antecipa e convoca nossa visão como nossa visão envolve a vista da
coisa, efetivando o sentido visual incoativo; a “vista na coisa percebida” é como um
sentido adormecido, a espera de que nossa percepção o desperte.
Em seu curso sobre a natureza, no Collège de France, Merleau-Ponty afirma: “O
que habita a natureza não é o espírito, mas o começo de sentido, em vias de se organizar,
mas não totalmente definido [...]. É preciso que o sujeito intervenha para extrair este
sentido, mas essa atribuição de sentido não é constituinte”19.
O sentido adormecido, o prenúncio de sentido é o ser natural; e esta possibilidade
de liberar um sentido, que o desperta mas não o constitui, é precisamente a percepção.
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24 PP, 439.
25 PP, 441.
26 PP, 431.
27 Esta análise da natureza do pensamento permite fazer uma justa leitura do cogito cartesiano. No cogito, precisa Merleau-
Ponty, “não é minha existência que é restituída na consciência que tenho dela, mas, inversamente, é o eu penso que é reinte-
grado ao movimento de transcendência do eu sou e a consciência à existência” (PP, 439). Para alcançar o solo da evidência,
trata-se, não de reter nossa existência na imanência, a pura presença a si do pensamento (o que seria, aliás, impossível, pois
em contradição com a essência do pensamento), mas, ao contrário, de empenhar a vontade (quer dizer, este modo do pen-
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Pascal Dupond
samento que é aquele do agir ou da efetuação) no movimento de transcendência (ou de abertura) do ser no mundo, e de
empenhá-la de tal modo que a vontade efetue o acontecimento da existência, seja a sua retomada ativa. Essa efetuação passa,
em Descartes, pela dúvida metódica, que não é a impossível recusa da transcendência, o impossível retorno à imanência, mas
a retomada do acontecimento da existência no pensamento, o agir ou a liberdade. Através da dúvida metódica, o cogito eleva
o movimento de transcendência (a abertura ao mundo) à condição de um verdadeiro agir, colocando a reflexão como cons-
ciência de si, enquanto agente do movimento de transcendência. É no momento em que a vontade se compreende como
transcendência e a transcendência como vontade, no momento em que a transcendência se torna pensante, reflexiva, atuante,
que se estabelece a certeza do cogito, ou que a luz do mundo vem a ser verdade propriamente dita. Mas que a transcendência
torne-se um agir, que a luz do mundo torne-se uma verdade não quer dizer que o pensamento possa ser pura coincidência e
posse de si mesmo: “Não é verdadeiro que minha existência se possua a si mesma e menos ainda que seja estranha a si mesma,
porque ela é um ato ou um fazer, e um ato, por definição, é a passagem violenta do que eu tenho àquilo que viso, do que eu
sou àquilo que tenho a intenção de ser” (PP, 438). O ato não é posse de si mesmo (e permanece assim na ordem do aconte-
cimento), à medida que é “levado” no movimento de transcendência do qual, contudo, ele é também efetuação, “tomado”
na trama do tempo e não seu senhor.
28 PP, 456.
29 PP, 53.
30 PP, 454.
31 “A certeza é dúvida”, no sentido em que toda evidência “me aparece como evidência para uma certa natureza pensante da
qual usufruo e que prolongo, mas que permanece contingente e dada a si mesma”.
32 PP, 454.
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33 PP, 456.
34 PP, 225.
35 PP, 197.
36 PP, 68.
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Pascal Dupond
As formas ou as estruturas que são estudadas nesta obra parecem neutralizar a bi-
furcação natureza/espírito, pois são, ao mesmo tempo, formas naturais (sistema solar,
organismo) e formas percebidas, reconciliando assim a exterioridade em relação a si, da
natureza, e a interioridade em relação a si, do espírito.
Na realidade, a bifurcação não desapareceu: ela reaparece no momento em que,
após ter distinguido a ordem física, a ordem vital e a ordem humana, Merleau-Ponty
se pergunta segundo que ordem elas devem estar articuladas.
A teoria da forma (ao menos para seus fundadores alemães: Koffka, Koeller) é de
orientação realista, naturalista, redutora: o mundo físico funda o biológico, que funda
o psíquico; “a integração da matéria, da vida e do espírito se obtém pela redução ao
denominador comum das formas físicas”37.
Merleau-Ponty pensa que essa postura redutora trai o conceito de forma38: sendo
assim, ele vai inverter a ordem de fundação e dar a primazia à ordem humana; ele es-
creve: “a ordem humana da consciência não aparece como uma terceira ordem sobre-
posta às outras duas, mas como sua condição de possibilidade e seu fundamento”39.
Merleau-Ponty se inscreve, assim, na tradição do idealismo transcendental, que
confere ao espírito (constituinte) uma primazia transcendental sobre a matéria e a vida
(a natureza constituída).
É verdade que ele encarna a subjetividade transcendental na facticidade da existên-
cia, modificando profundamente o conceito; porém, mediante esta modificação, ele
lhe confere também uma validação40. Nisto reside todo o equívoco de A estrutura do
comportamento.
Este equívoco se reencontra na Fenomenologia da percepção. Merleau-Ponty nos diz
que a percepção é naturante e naturada, verdade e facticidade; ele nos diz que o pen-
samento, todo pensamento, inclusive o cogito, é, de maneira inseparável, ato e acon-
tecimento. Reencontramos, portanto, em todo pensamento a estrutura da percepção,
assim como reencontramos, na percepção, a estrutura de todo pensamento. Mas, en-
tão, é a percepção que fornece sua estrutura ao pensamento, ou é o pensamento que
37 SC, 146.
38 “Em vez de perguntar que tipo de ser pode pertencer à forma […], nós a colocamos entre os acontecimetos da natureza,
servimo-nos dela como uma causa ou uma coisa real e, por isso mesmo, não pensamos mais segundo a ‘forma’” (SC, 147).
Contra os postulados naturalistas da Gestalttheorie, trata-se de “pedir à própria forma a solução da antinomia de que ela é a
ocasião, a síntese da natureza e da idéia” (Id.).
39 SC, 218.
40 O transcendental kantiano é sem gênese ou sem história (pois só há gênese ou história na qualidade de objeto construído
pelo sujeito transcendental); em compensação, o transcendental de A estrutura do comportamento está imerso na existência,
no mundo e no tempo. A consciência só conhece sua gênese pondo-a livremente no modo da objetividade, mas esta gênese
permanece, do ponto de vista da existência, na “profundidade presente” do espírito, não diante do espírito, mas às suas costas,
de tal sorte que “para a vida, como para o espírito, não há passado absolutamente passado…” (SC, 224).
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meter-se à ambigüidade, ela se chama equívoco. Para os filósofos maiores, ela se torna
tema, contribuindo para fundar as certezas em vez de ameaçá-las. Seria preciso,
portanto, distinguir uma má e uma boa ambigüidade’’44.
Na Fenomenologia da percepção, ele procura, de duas maneiras, elevar este
equívoco último à condição de tema.
Uma consiste em “pluralizar” o cogito. O cogito é ao mesmo tempo o que Mer-
leau-Ponty denomina “verdadeiro cogito” (“há consciência de algo, algo se mostra,
há um fenômeno”45) e o que ele denomina “cogito tácito”, quer dizer, “uma pre-
sença de si para si, que é a própria existência e que é anterior a toda filosofia”46;
e também o “cogito falado”, posto em palavras, que expressa o ideal de uma posse
de si ou de uma coincidência do pensamento consigo mesmo.
A outra consiste em mostrar que a percepção e o pensamento, as verdades de
fato e verdades de razão, distinguem-se, em última instância, apenas como duas
maneiras que a consciência tem de ser temporal, uma inclinando-se para o acon-
tecimento (ou para o tempo que se dispersa), a outra em direção ao ato (ou ao
tempo que se reintegra); e os dois modos de temporalidade são inseparáveis: o
tempo se dispersa e se unifica em um mesmo e único movimento; não há acon-
tecimento de pensamento que não seja também ato, assim como não há ato de
pensamento que não seja também acontecimento; o tempo natural funda o tem-
po histórico, assim como o tempo histórico funda o tempo natural. O equívoco
da Fundierung se resolve então em ultimo caso naquilo que Merleau-Ponty chama
de “dialética do tempo constituído e do tempo constituinte”47.
Essa maneira de resolver o equívoco conduz a uma ambigüidade boa ou má?
Nos trabalhos dos anos 50, Merleau-Ponty verá aí uma “ambigüidade má”. Apesar
dos esforços para compreender o pensamento como uma visão, foi antes a visão que
foi compreendida como um pensamento.
Ele vai, pois, tentar se explicar mais radicalmente com a ambigüidade da Fundie-
rung, e isto vai produzir a inflexão em direção à ontologia do Ser vertical.
44 EP, 10.
45 PP, 342.
46 PP, 462.
47 PP, 278.
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48 PP, 171.
49 PP, 194: “É preciso, sem dúvida alguma, reconhecer que o pudor, o desejo, o amor em geral têm uma significação me-
tafísica, quer dizer, que eles são imcompreensíveis se se trata o homem como uma máquina governada por leis naturais, ou
mesmo um « feixe de instintos » e que concernem ao homem como consciência e como liberdade”; e, mais adiante, Merleau-
Ponty fala da “estrutura metafísica do meu corpo” (PP, 195).
50 PP, 221.
51 “A fala instala em nós a idéia de verdade como limite presuntivo de seu esforço” (Id.).
52 “Tudo é natural e tudo é fabricado”: eu me pergunto se não há aqui uma manifestação daquela “má ambiguidade” da
qual falará posteriormente Merleau-Ponty.
53 PP, 226. A passagem citada continua assim: “Isto não é mais nem menos miraculoso que a emergência do amor no de-
sejo ou do gesto nos movimento descoordenados do começo da vida […] É preciso então reconhecer como um fato último
esta potência aberta e indefinida de significar – quer dizer, ao mesmo tempo, de apreender e comunicar um sentido –, pela
qual o homem se transcende em direção a um comportamento novo ou em direção a outrem ou em direção a seu próprio
pensamento, através de seu corpo e sua fala”.
54 PP, 225: “A vida mental ou cultural toma de empréstimo da natureza suas estruturas e […] o sujeito pensante deve ser
fundado sobre o sujeito encarnado”.
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55 RC, 59.
56 A constituição da intersubjetividade é a cruz da fenomenologia: “A posição do outro como um eu mesmo […] não é
possível, se é a consciência que deve efetuá-lo: ter consciência é constituir, não posso então ter consciência de outrem, pois
isto seria constituí-lo como constituinte e como constituinte em relação ao ato mesmo pelo qual o constituo” (S, 117). Em
compensação, se sou instituinte, a alternativa desaparece: “um sujeito instituinte pode coexistir com outro, porque o institu-
ído não é o reflexo imediato de suas próprias ações, pode ser retomado em seguida, por si mesmo ou pelos outros, sem que
se trate de uma recriação total…” (RC, 60).
57 Id.
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da, torna-se um universo “sem fissuras e sem lacunas”; não estamos mais lançados
no mundo, simultaneamente nascidos do mundo e para o mundo, tornamo-nos um
kosmotheoros.
Se a consciência é constituinte, o tempo está concluído e o sujeito se encontra fora
do tempo; nossa situação temporal fica imcompreensível.
A idéia de constituição deve, pois, ser abandonada: a relação entre o sujeito e o
mundo, o tempo e o outro é uma relação de Fudierung, quer dizer, uma relação rever-
sível; o outro, o mundo e o tempo nascem das operações do sujeito, como o sujeito
nasce do outro, do mundo e do tempo.
Mas Merleau-Ponty, no início dos anos 50, quer ir mais longe; ele se dá conta de
que a idéia de Fundierung, segundo o modo como ele a utiliza no livro de 1945, é ain-
da prisioneiro da filosofia da consciência. Esta situação aparece na questão do tempo:
a subjetividade não constitui o tempo, ela não é autora do tempo; mas ela tem o poder
de sublimar o tempo em eternidade e, neste sentido, de libertar-se do tempo. A falsa
idéia de constituição do tempo comporta um núcleo de verdade: ela anuncia o tempo
da razão ou da verdade, “o tempo verdadeiro”, que mantém tudo, no qual cada acon-
tecimento recebe um lugar inalienável58. Há, portanto, no livro de 1945, uma impor-
tante referência à eternidade, uma nostalgia da eternidade, que substitui a impossível
constituição do tempo.
Quando Merleau-Ponty aborda a problemática da instituição, isto desaparece; ele
escreve em A prosa do mundo: “Husserl empregou a bela palavra Stiftung para designar
de início a fecundidade infinita de cada momento do tempo – que, justamente, por ser
singular e passar, jamais poderá cessar de ter sido ou de ser universalmente – e mais ain-
da a fecundidade, dela derivada, das operações da cultura, que criam uma tradição, con-
tinuam valendo após suas aparições históricas e exigem além delas mesmas, operações
distintas e próprias”59. Como podemos observar não se trata mais de eternidade, mas de
“fecundidade do tempo” e a problemática da história se amplia.
Eis o primeiro ponto: o abandono da Fundierung em favor da Stiftung.
Segundo ponto: nos trabalhos dos anos 50, Merleau-Ponty abandona o “principio
dos princípios” de uma filosofia transcendental, que o livro de 1945 havia nuançado
sem, contudo, rejeitar, e segundo o qual “eu sou a fonte absoluta”60.
Se eu sou a fonte absoluta, a percepção permanece, com todas as nuanças que se
queira, como pensamento de ver, uma modalidade do cogito, um cogito tácito.
58 “Aquilo que vivemos é e permanece perpetuamente para nós, o velho mantém contato com sua infância. Cada presente
que se produz se crava no tempo e aspira à eternidade” (PP, 450).
59 PM, 95-96.
60 PP, III.
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61 VI, 191: “Tanto é patente que o sentir está disperso em meu corpo, que minha mão apalpa, por exemplo, e que, por conse-
guinte, não nos cabe reportar de antemão o sentir a um pensamento de que ele apenas seria um modo – quanto seria absurdo
concerbermos o tato como uma uma colônia de experiências táteis reunidas [Merleau-Ponty lembra-se,aqui, do Teeteto]. Não
propomos, aqui, nenhuma gênese empirista do pensamento: perguntamo-nos, precisamente, qual é esta visão central que re-
úne as visões esparsas, este tato único que governa globalmente toda a vida tátil do meu corpo, este eu penso, que deve poder
acompanhar todas as nossas experiências”. RC, 115: “A percepção que eu tenho de meu corpo como morada de uma ‘visão’,
de um ‘tato’ e (posto que os sentidos geram nele até mesmo a consciência impalpável de que dependem) de um eu penso, e a
percepção que eu tenho de um outro corpo excitável, sensível e (posto que tudo isso não se dá sem um eu penso) portador de
um outro eu penso – essas duas percepções se iluminam uma à outra e se realizam em conjunto”.
62 Id.
63 VI, 190. Nota inédita de 58-59: “É preciso descrever um Eu penso, que não seja existência como consciência, mas que seja
emergência de um pré-objeto por um pré-indivíduo: desenho [?] de uma perspectiva e não instauração de uma esfera de ima-
nência, escalonamento de planos em torno de um foco virtual que não é definido [?] senão por esta repartição dos planos em
torno dele, que, portanto, não pode ser, em caso algum, descrito como origem absoluta, dobra no ser e não buraco no ser”.
64 VI, 224.
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derradeira [...]. Como começar, então? Não pode ser com Eu penso algo, mas com Há
ser, há algo, uma figura sobre um fundo, isto é, não um objeto sobrevoado, mas algo
que se destaca sobre... [...] E a passagem de minha inexistência a minha existência,
bem como a passagem inversa, é compreensível como acentuação ou dissolução da
minha relação precisa e articulada com este objeto perceptivo. O nada da percepção
está no limite de uma percepção cujo relevo diminui”68.
Uma vez que o cogito tácito desapareceu, Merleau-Ponty pode apresentar uma
articulação entre percepção e linguagem de maneira mais precisa que na Fenomeno-
logia da percepção69. Podemos apresentar esta articulação em três ou quatro propo-
sições.
1) Há um mundo do silêncio, um mundo anterior à linguagem; as coisas per-
cebidas não estão desde sempre presentes na linguagem nem são, elas mesmas, lin-
guagem70. Mas a linguagem não disfarça o mundo do silêncio, pelo contrário: “se
soubermos retomá-la com todas as suas raízes e todos os seus frutos”, a linguagem
será “a mais válida testemunha do Ser”, ela “realiza, ao quebrar o silêncio, aquilo
que o silêncio pretendia sem consegui-lo71”, ela transforma as coisas em si mesmas,
transformando-as em coisas ditas.
2) O mundo do silêncio é visível e invisível: o visível, o sensível está ordenado, es-
truturado por formas, membruras, armaduras, essências carnais, que a percepção re-
conhece cegamente (como reconhecemos um rosto sem conseguir descreve-lo), mas
que, na percepção, estão mergulhadas no visível, confundem-se com sua manifestação
e, neste sentido, são invisíveis. A obra de cultura em geral consiste em expressar as ar-
maduras e as membruras invisíveis do visível, dando-lhes uma figuração, plástica, mu-
sical ou lingüística. Quando Cézanne, tendo “germinado com a paisagem”, declara “eu
tenho meu motivo”, ele exprime o fato de que a membrura invisível da paisagem, seu
logos estético, é composto o bastante, graças ao trabalho do olhar, para que a tela rece-
ba o traço visível; o “motivo” é o invisível, a essência carnal da paisagem de Cézanne.
A criação consiste então em transportar o invisível do mundo ou do Ser para uma
carne mais sutil, que nos ofereça uma compreensão mais aguda.
Esta passagem da carne do mundo, em que o invisível está escondido, à carne sutil
do ser de cultura, na qual o invisível é acolhido e figurado, é, por excelência, o trabalho
68 MBN, VIII-2, 204.
69 Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty dá sobre estas articulações três indicações: 1) a vida perceptiva não é, em
sentido algum, anterior à vida falante, uma vida perceptiva só é humana enquanto vida falante: “… não há experiência sem
fala, o puro vivido não está presente na vida falante do homem…”; 2) o sentido primeiro da fala está no ‘texto da experiência’
(PP, 388) que nos dá a percepção; 3) o essencial do gesto linguístico está prefigurado no gesto pré-linguístico.
70 “É o erro das filosofias semânticas, fechar a linguagem, como se só falasse de si” (VI, 167).
71 VI, 230.
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uma retomada do passado em sua verdade e fornece uma segura captação do sentido, uma
aquisição para sempre.
A outra, mais próxima da Stiftung husserliana, estabelece que a cultura é menos uma to-
talização do passado que uma retomada, uma metamorfose, um recomeço perpétuo.
Ou o olho é a arqueologia do espírito, e o espírito a teleologia do olho que se sublima em
espírito; a cultura é uma liberação do sentido: o sentido está aprisionado na figura sensível
e não encontra a sua liberdade senão no conceito; as vozes do silêncio preparam as artes da
linguagem, que anunciam a racionalidade científica e filosófica.
Ou o olho é o fundo permanente e inesgotável do espírito; toda e qualquer obra de cul-
tura participa da “lógica alusiva” das vozes do silêncio, e o sensível não é a prisão do sentido,
mas, ao contrário, sua origem permanente.
O ser de cultura não é nada mais que a tensão permanente entre essas duas polaridades.
Como conclusão, lembrarei o artigo que Merleau-Ponty escreveu, com o título “Einstein
e a crise da razão”.
A leitura feita por Merleau-Ponty do diálogo – do falso diálogo – entre Einstein e Berg-
son ilustra de maneira exemplar a postura filosófica de nosso autor.
Quando Einstein desqualifica a experiência pré-científica – e a duração bergsoniana, que
para ele é uma modalidade desta experiência, Merleau-Ponty responde: o racional é fundado
na evidência pré-racional de que há um único mundo e a duração bergsoniana, que é uma
expressão desta unicidade do mundo, desta razão antes da razão, é uma visão “profunda”,
que não deve ser abandonada como falsa, ilusória, em função do tempo do físico, que seria
o único verdadeiro.
Quando Bergson recusa à ciência o poder de emitir um testemunho sobre o ser, Mer-
leau-Ponty responde: a obra racional faz parte de nosso campo de experiência ontológica,
mesmo se a ciência nos dá apenas ensinamentos negativos.
O Ser exige de nós criação para que dele tenhamos experiência: o logos do ser de cul-
tura ou “proferido” (prophorikos) é o caminho obrigatório para que tenhamos experiência
dos seres e do ser. Mas o logos proferido não é vivo senão por ser sempre contestado, sempre
retomado pelo Ser bruto e pelo logos interior (endiathetos), que é a sua armadura. E é por
isso que nossas obras de cultura jamais poderão se fechar nelas mesmas ou constituir uma
totalidade concluída e separada. Elas serão sempre testemunhas de um mundo inesgotável.
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Merleau-Ponty e as ciências sociais:
corpo, sentido e existência
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1 Enquanto as idéias de Husserl inspiram diretamente o programa sociológico de Schutz e, através deste, exercem
forte influência sobre a etnometodologia; é a sociologia de Pierre Bourdieu que articula mais diretamente elementos
da filosofia de Heidegger e Merleau-Ponty em uma teoria de prática formulada para superar os impasses do subjeti-
vismo e do intelectualismo.
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é neutra com relação à ação que nela se desenrola: é simplesmente o palco onde são exe-
cutadas diretrizes normativas.
Queria examinar cada um destes termos e sua articulação, a luz do pensamento de
Merleau-Ponty. Na Fenomenologia da percepção nosso filósofo volta-se contra as teorias
que igualam o sujeito da experiência à consciência e relegam o corpo a condição de sim-
ples instrumento a seu serviço. Parsons é um claro exemplo desta orientação: no seu mo-
delo analítico o corpo não pertence ao pólo do ator; funciona antes como instrumento
ou meio do qual ele se serve. “A unidade de referência que estamos considerando como
ator não é o organismo, mas um ‘ego’ ou ‘self’. Para o ator seu corpo é tão parte da situ-
ação da ação quanto o ‘ambiente externo’” (Parsons, 1968: 47).
Central na crítica merleau-pontiana é a noção de corpo vivido (claramente ausen-
te do esquema de Parsons). Antes de constituir um objeto para reflexão - nosso corpo
que miramos no espelho, o corpo do outro cuja figura avaliamos ou o “organismo” ao
qual se voltam as ciências biomédicas, dotado de propriedades universais e passíveis de
análise - o corpo é o fundamento de nossa experiência no mundo, dimensão mesma do
nosso ser. No domínio da experiência constitui o ponto de vista pelo qual nos inserimos
no mundo. É partir da perspectiva que o corpo fornece que nos orientamos no espaço
(ou melhor, que somos no espaço) e apreendemos e manipulamos os objetos. Enquanto
centro de instrumentalidade, o corpo não tem o mesmo status que os demais objetos
que percebemos e empregamos na lida cotidiana; ele se confunde com nosso próprio ser.
Postular a imbricação necessária entre corpo e consciência não é para Merleau-Ponty
retirar o corpo de seu lugar consagrado na natureza, para jogá-lo no terreno da subjeti-
vidade. Trata-se antes de redefinir os dois termos a partir desta sua “imbricação”. Per-
passado pelo subjetivo (“todo ele psíquico”), o corpo não é mais matéria inerte ante o
espetáculo da cultura, é “corpo vivido”. Ancorada no corpo, por sua vez, a subjetivi-
dade já não pode mais ser tomada como interioridade, locus de onde emanam e onde
são armazenadas representações acerca do mundo. O corpo nos enraíza no mundo da
cultura e da história (mas também dos sensíveis), nos enreda nas ações de outros e faz
os outros inevitavelmente participarem de nossas ações. Imiscuída no corpo, a subje-
tividade já não pode mais ser entendida como espaço bem demarcado de existência
pessoal (caracterizado por atributos como racionalidade, autonomia e controle). No
corpo encontramos uma dimensão de existência anônima, pré-pessoal que diz respeito
tanto ao ritmo de nossa vida natural, quanto à generalidade dos papéis sociais, que nos
remete tanto para a esfera das funções e processos orgânicos, quanto a ação do hábi-
to arraigado, das aspirações não articuladas e disposições sedimentadas, dificilmente
acessíveis à reflexão. Essa existência anônima, escreve Merleau-Ponty, traça um halo de
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Merleau-Ponty em Salvador
ação e sua efetivação. O hábito não solda respostas individuais a estímulos individuais;
modo de compreensão prática, é antes o poder de responder por um tipo de solução
a um certo tipo de situação.
Embutido nessa reflexão está uma crítica importante a duas noções dominantes
nas ciências sociais, ambas com repercussões notáveis na definição de sujeito e subje-
tividade: a noção de sujeito racional presente na teoria da ação, e a idéia de que a re-
lação do indivíduo com o mundo é mediada por representações acerca do mundo (a
subjetividade correspondendo, assim, a um espaço interior onde são produzidas e/ou
armazenadas essas representações). Conforme observa Taylor: “a noção de que nossa
compreensão do mundo se acha fundada em nossas relações com ele equivale à tese
de que essa compreensão não se baseia em última análise em quaisquer representações
no sentido de descrições identificáveis independentemente daquilo que descrevem”
(Taylor, 2000: 24). Essa crítica tem marcado a teoria social contemporânea e está
presente nas abordagens à ação de diversos autores influenciados pela fenomenologia.
Pierre Bourdieu é certamente um deles, talvez o mais conhecido - embora ele mes-
mo evite alardear seu débito para com a fenomenologia. Inspirado em Merleau-Ponty,
Bourdieu desloca o sujeito racional da teoria parsoniana para o habitus – um corpo
socializado, resultado de uma história coletiva que se inscreve nas posturas, nos movi-
mentos, nos gostos, que educa os sentidos e marca distinções que são tão mais eficazes
quanto menos passíveis de se tornarem objeto de reflexão. As experiências adquiridas
no jogo social, bem como os esforços acumulados para intervir no jogo são integrados,
via uma síntese espontânea, em um esquema corporal: mais que agregado de compor-
tamentos sociais, o habitus é uma potência virtual para agir e responder às situações
que solicitam formas características de mobilização do corpo, segundo um esquema
socialmente constituído. Enquanto senso corporificado do jogo social, o habitus opera
sem a necessidade de atos de escolha e reflexão de um agente racional. A introdução do
conceito de habitus na teoria da prática faz parte de um projeto mais amplo de análise
social. Trata-se para Bourdieu de:
... construir uma teoria materialista capaz de recuperar no idealismo... o lado ativo do
conhecimento prático... Eis precisamente a função da noção de habitus que restitui ao
agente um poder gerador e unificador, construtor e classificador, lembrando ainda que
essa capacidade de construir a realidade social, ela mesma socialmente construída, não é
a de um sujeito transcendental, mas de um corpo socializado... (Bourdieu, 2001: 167).
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matismo clássico, o sociólogo alemão Hans Joas (1996) também recorre a uma noção
de compreensão prática, habitual, para colocar em questão o modelo de sujeito racio-
nal. A corporeidade, argumenta o autor, chama atenção para disposições e aspirações
operantes em um nível pré-reflexivo, e que dificilmente e sempre apenas parcialmente
ganham o status de idéias articuladas, tornando-se objeto possível de reflexão. Capa-
cidade definidora do sujeito racional, a reflexão é sempre relativa a essa compreensão
corporal, pré-reflexiva; depende dela e se ergue a partir dela.
Nem o conhecimento claro dos fins nem a obediência a regras podem servir para
explicar o curso da ação. Nas teorias da ação inspiradas na fenomenologia, a crítica a
“representação” como mediadora da nossa relação com as situações, os outros e as coisas
aparece como crítica a idéia de que o sujeito age a partir de regras ou normas interiori-
zadas. Conforme argumentam seus adeptos, a ação não é causada por regras – funda-se
antes em um senso não articulado de contexto (para os etnometodólogos um contexto
presumido), que orienta o ator e do qual depende a sua capacidade mesma de recorrer
a regras2.
A reflexão sobre o corpo também embasa uma revisão importante do conceito de si-
tuação, ou melhor, do lugar ocupado por esta categoria na teoria da ação. No esquema
parsoniano a situação é neutra com relação à ação que nela se desenrola; é simplesmen-
te o palco onde são executadas diretrizes normativas. Conforme argumenta Garkinkel,
ao colocar peso explicativo na orientação normativa, Parsons não elabora uma teoria da
ação, mas uma teoria do que antecede a ação. No seu modelo analítico o valor da situa-
ção lhe é aderido de fora – são os fins previamente colocados que fazem com que alguns
objetos adquiram status de meios, e outros apareçam como condições que impõem li-
mite à capacidade realizadora do sujeito. Não é a toa que o espaço seja considerado pelo
próprio Parsons uma categoria irrelevante no esquema analítico da ação (diferente do
tempo que é categoria básica).
Na Fenomenologia da percepção a temática do espaço ocupa papel de destaque. Não
me parece exagerado dizer que a fenomenologia do corpo é também uma fenomenologia
do espaço no sentido em que corpo e espaço formam um sistema integrado. Assim como
Heidegger nos conduz à espacialidade originária do dasein ao descrever seu engajamento
prático com as coisas-instrumentos em contextos de ocupação, Merleau-Ponty desvela
o espaço como arena da práxis. Diferente de Heidegger, entretanto, para nosso autor,
pensar o espaço nestes termos, como terreno da práxis, implica já no reconhecimento do
papel do corpo na constituição da espacialidade. Os lugares circunscrevem contextos ou
2 Em uma versão bastante particular do círculo hermenêutico os etnometodólogos propõem que ao invés de serem causas
da ação, as regras funcionam como recursos interpretativos através do qual os atores articulam, relatam e justificam suas ações.
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horizontes que nos conectam significativamente a outros, que permitem que pessoas e
objetos se destaquem e possam vir ao encontro na dinâmica da ocupação. Mas o corpo é
também horizonte, o terceiro termo sempre subentendido desta estrutura figura-fundo,
“toda figura se perfila sobre o duplo horizonte do espaço exterior e do espaço corporal”
(Merleau-Ponty, 1994: 147): afinal é ele que oferece a perspectiva a partir da qual outros
corpos e objetos estão posicionados. Corpo e lugar estão em estreita dependência e rela-
ção. Como unidade dos sentidos o corpo está sempre mobilizado pelos múltiplos apelos
do lugar. Os lugares, por sua vez, não só dependem da intencionalidade corporal como
também freqüentemente se mostram em termos de diferenciações que estão fundadas na
própria estrutura diferenciada do corpo: acima/embaixo; direita/esquerda; frente/costas
(Casey, 1996).
A abordagem fenomenológica ao espaço serve sem dúvida de contraponto interessan-
te ao modelo parsoniano e os críticos mais contundentes deste modelo têm, de maneiras
diferenciadas (muitas vezes através de aproximações entre a fenomenologia e outras ver-
tentes filosóficas, como o pragmatismo), se apoiado nela para resgatar o papel importan-
te da situação na configuração da ação3. A idéia de uma sintonia ou sincronização entre
corpo e lugar no processo de ação tem rendido bons frutos na teoria social. Nesta direção
Joas (1996) fala de fins ou quase fins operantes na ação tal modo amarrados a certos tipos
de situação que usualmente não se destacam delas enquanto planos ou projetos “cons-
cientes”, que são despertados pelas situações, a partir de nosso envolvimento com elas.
Bourdieu (1977) por sua vez defende que estabilidade da vida social repousa sobre
uma sintonia fina entre habitus e mundo, corpo e lugar. A configuração dos lugares que
habitamos demanda certos modos de ajustamento corporal, reforçando e naturalizando
padrões de ação e interação (com base em diferenças de classe, gênero, geração, etc); as-
sim como as disposições e técnicas corporais socialmente constituídas revelam os lugares
como contextos adaptados a essas mesmas habilidades corporais e às classificações ou
idéias estereotipadas que elas corporificam.
Inspirado por esta idéia, o antropólogo Michael Jackson procura identificar, em sua
etnografia dos Kuranko da Serra Leoa, os contextos de sociabilidade Kuranko que sus-
citam uma quebra no habitus, abrindo caminho para uma exploração criativa de novas
imagens e idéias. Conforme procurar mostrar os rituais de iniciação constituem instân-
cias desse tipo, em que formas alteradas de uso do corpo funcionam como gatilhos para
a produção de novas imagens e confronto com distintas possibilidades de organiza-
3 É preciso fazer a ressalva de que muitos dos desdobramentos mais radicais da reflexão de Merleau-Ponty sobre o espaço,
suas ramificações na discussão acerca do sentido e da existência, têm sido relativamente ignorados pelas ciências sociais mains-
tream. Trataremos de alguns destes desdobramentos na seção seguinte.
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ção do mundo social. Vale notar que as mudanças sinalizadas por Jackson (conforme
mostra a citação abaixo) referem-se a processos de orientação espacial (movimento x
repouso; agachado x ereto; dentro de casa x fora de casa):
Meu argumento é que esta disrupção do habitus, em que as mulheres gozam de mobili-
dade irrestrita na vila e em que os homens devem prover para si (cozinhando mesmo suas
próprias refeições) ou ficar em casa como mulheres agachadas (quando se faz o cortejo
do objeto de culto das mulheres pela vila), coloca as pessoas abertas para possibilidades
de comportamento que elas incorporam, mas não estão ordinariamente inclinadas a ex-
pressar. Além do mais acredito que é com base na força dessas possibilidades extraordi-
nárias que as pessoas controlam e recriam seu mundo, seu habitus (Jackson, 1989: 129).
Para resumir este primeiro tópico podemos dizer que a retomada crítica do corpo na teo-
ria social a partir de uma reflexão oriunda da fenomenologia está ligada a um descentramen-
to do sujeito, definido como interioridade auto-contida que se relaciona com o mundo por
meio de representações e que desenvolve e exercita, no meio social, capacidade de controle
sobre os objetos, sobre o próprio corpo e sobre os outros. Este descentramento, também já
vimos, tem como contrapartida uma ênfase na sociabilidade: o resgate do corpo, argumenta
Taylor, é também resgate do outro (Taylor, 2000: 187).
Novas questões
A reflexão merleau-pontiana sobre a corporeidade não tardou a ser absorvida nas ciên-
cias sociais. A Fenomenologia da percepção inspirou uma revisão significativa das abor-
dagens dominantes à ação social e embasou uma crítica ao dualismo corpo e mente
fortemente arraigado no pensamento sociológico tradicional. Sua leitura pelos cientis-
tas sociais tem sido, no entanto, seletiva. Neste momento gostaria de me voltar para
duas questões bastante caras a Merleau-Ponty – presentes não só na Fenomenologia da
Percepção, mas em algumas de suas obras mais tardias – que, embora potencialmente
relevantes às ciências sociais, têm recebido pouca atenção dos estudiosos dessas disci-
plinas. A primeira é aparentemente uma questão mais restrita, embora tenha ramifica-
ções bastante importantes no pensamento de Merleau-Ponty: diz respeito às relações
entre materialidade e idealidade no advento do sentido. A segunda toca diretamente a
proposta merleau-pontiana de compreender o humano a partir da ótica da existência.
É precisamente este viés que conduz Merleau-Ponty a uma recusa explícita do pensa-
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A literatura, a música, as paixões, mas também a experiência do mundo visível são, tan-
to quanto a ciência de Lavoisier e de Ampère – a exploração de um invisível, consistin-
do ambas no desvendamento de um universo de idéias. Simplesmente aquele invisível,
aquelas idéias não se deixam separar, como as dos cientistas, das aparências sensíveis (…)
essas verdades não estão apenas escondidas como uma realidade física que não soubemos
descobrir, invisível de fato, que poderemos um dia chegar a ver face a face, e que outros,
melhor colocados, poderiam ver já agora, desde que se retire o anteparo que o dissimu-
la. Aqui, pelo contrário, não há visão sem anteparo: as idéias de que falamos não seriam
por nós mais conhecidas se não possuíssemos corpo e sensibilidade, mas então é que se-
riam inacessíveis … só nos poderiam ser dadas como idéias através de uma experiência
carnal. Não se trata apenas do fato de que aí encontremos ocasião para pensá-las; é que
sua autoridade, seu poder fascinante e indestrutível advém precisamente de estarem elas
em transparência, através do sensível ou em seu âmago (Merleau-Ponty, 1992: 144-5).
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aderido aos corpos e coisas, formando com eles um contexto total de experiência. Esta-
mos aqui próximos da noção foucaultiana de poder como difuso e concreto, presente
nas micro-articulações entre pessoas e coisas.
Mais interessante – e proveitoso do ponto de vista teórico – do que mostrar o que
as coisas representam é procurar entender o que elas “fazem fazer”5: como apelam à
nossa atenção e convidam à ação, como estão ligadas a outras coisas e pessoas em cir-
cuitos de interação que ajudam, em virtude de sua própria materialidade, a enquadrar e
manter. Recorrendo ao meu último exemplo no início desta seção – a análise dos rituais
– é preciso reconhecer que do ponto de vista da experiência encarnada de seus partici-
pantes, os objetos que compõem e se sucedem em uma cena ritual não se apresentam
primeiro e fundamentalmente como símbolos, que condensam e evocam pensamentos
inconscientes ou normas e valores abstratos (duplicando assim idéias que existem inde-
pendentes delas). Emergem primeiro como estilo, como um apelo à percepção e ação.
Como tal seu sentido não é separável de sua materialidade, de sua inerência no lugar e de
sua existência prática para aqueles que são tocados ou movidos por eles. Para descrever o
tipo de compreensão que se produz nos rituais, ou no que ordinariamente classificamos
como eventos “carregados de simbolismo” é preciso antes de mais nada considerar como
o evento abre um campo de sentido ao propor certos modos de engajamento sensível, ou
ao colocar em comunicação pessoas e coisas.
Procurando resumir a orientação que passa a caracterizar a antropologia a partir de
seu encontro com a fenomenologia, Jackson fala de uma atenção ao corpo enquanto ló-
cus de agência social e aos contextos vividos de sociabilidade – “nossa ênfase deslocou-se,
portanto, daquilo que as crenças significam intrinsecamente para o que elas são feitas sig-
nificar, e o que elas realizam para aqueles que as invocam e as usam” (Jackson, 1996: 6).
Para o antropólogo inglês Tim Ingold a reorientação requerida é bem mais radical.
Trata-se de mudança mesma do ponto de partida da disciplina, um questionamento de
algumas das premissas que para muitos definem o lugar da antropologia em relação às
outras ciências. Embora não se considere representante de uma vertente fenomenológica
na antropologia, Ingold é influenciado por Merleau-Ponty e em certo sentido é o an-
tropólogo que de forma mais consistente tem questionado a cisão entre materialidade e
sentido, natureza e cultura presente em muitas abordagens das ciências sociais.
Conforme Ingold (2000) a noção de cultura dominante na antropologia é perfeita-
mente compatível com a concepção de natureza das ciências naturais e não faz mais que
contribuir para assentar essa divisão de campos em uma distinção entre esferas ontológi-
5 Esta é expressão utilizada por Bruno Latour em sua proposta de uma sociologia das associações. Há importantes conver-
gências entre as abordagens de Latour e Merleau-Ponty que não poderei abordar no espaço deste texto.
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cas: de um lado a unidade da natureza, do outro a diversidade das culturas ou dos mun-
dos construídos culturalmente – um mesmo mundo natural processado segundo signi-
ficados ou esquemas culturais distintos. Embora antropólogos tenham mostrado que a
divisão natureza e cultura é estranha a alguns povos nativos (constituindo, de fato, no
grande baluarte da cultura ocidental moderna), o esquema analítico que cinde natureza
e cultura permanece inalterado: ainda se está falando de diferenças entre culturas (ou da
maneira como cada cultura concebe a relação cultura/natureza); a natureza “verdadeira-
mente real” permanece como suposto não questionado.
Esta concepção de cultura como mundo de significados discursivos opera um duplo
desengajamento: o primeiro corta o vínculo do mundo humano com o mundo natural,
supõe que os humanos deram um passo para fora do mundo habitado por todas as ou-
tras criaturas viventes; o segundo estabelece uma distância (impossível de superar) entre
o antropólogo e os povos que pesquisa, distância necessária para que aquele possa ver
uma cosmologia naquilo que para as pessoas é antes de mais seu mundo da vida.
Desfazer este duplo desengajamento, argumenta Ingold, requer “substituir a impro-
dutiva dicotomia entre natureza e cultura pela sinergia dinâmica entre organismo e am-
biente6” (ibid: 16). Ao assumir como ponto de partida a unidade organismo-ambiente a
atenção do antropólogo se desloca dos padrões culturais pelos quais as pessoas constro-
em seus mundos, para os modos de envolvimento e engajamento pelos quais habitam
um mundo junto com seres diversos; do estudo das crenças que medeiam suas relações
com espaço e com os outros, para o estudo das sensibilidades e habilidades pelas quais
percebem e participam deste mundo comum, se fazendo junto com ele. É apenas a par-
tir deste ponto de vista que podemos de fato superar a idéia de que os significados são
atribuídos às coisas e ao mundo, sobrepondo-se a eles como uma segunda pele de cren-
ças que encobre o real. Ao descobrir que seres animados diversos habitam o mundo da
vida dos povos que estuda e mesmo o seu próprio mundo da vida, o antropólogo deve
lembrar que:
6 Da mesma forma que rejeita a visão de cultura como representação, Ingold também rejeita a visão do ambiente como re-
alidade física imutável, existindo independente daqueles que o habitam.
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O movimento da existência
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As estereotipias não são uma fatalidade, e assim como a vestimenta, o adorno, o amor
transfiguram as necessidades biológicas por ocasião das quais eles nasceram, da mesma for-
ma no interior do mundo cultural o a priori histórico só é constante para uma dada fase...
Assim, a história não é nem uma novidade perpétua, nem uma repetição perpétua, mas o
movimento único que cria formas estáveis e as dissolve (ibid: 130).
O pensamento causal é incapaz de dar conta desta dialética da existência: opera pon-
do em relação fatos ou conteúdos diversos que assume de antemão como sendo exterio-
res uns aos outros. É apenas nestes termos que pode tomar a classe, a nação ou a cultura
como causas do comportamento, ou como fatalidades que se impõem sobre nós de fora,
deixando escapar o fato de que, ao invés de causas ou fatores externos, estes são funda-
mentalmente modos de coexistência que nos solicitam.
Merleau-Ponty ilustra bem as limitações da análise causal ao discutir a relação entre
sexualidade e existência na Fenomenologia da Percepção. O que queremos dizer, per-
gunta, quando afirmamos que estes termos estão em uma relação de expressão? Aqui há
dois erros a se evitar. O primeiro consiste em pensar a relação de expressão segundo a
lógica causal. A sexualidade, argumenta o filósofo, não pode ser causa da existência, por-
que efetivamente participa dela – e o grande achado da psicanálise não foi ter finalmente
localizado a causa de nossos dramas existenciais na pulsão sexual, mas justamente de ter
integrado a sexualidade à dinâmica do existir. O segundo erro é aquele que, procurando
escapar ao pensamento causal, toma a vida sexual como simples reflexo da existência,
reduzindo-a a essa última. Na sexualidade, escreve nosso autor, se encena uma corrente
particular da vida, que embora retomada e reintegrada ao movimento mais geral do exis-
tir, não se apaga ou se dissolve neste movimento.
Nesta discussão se delineia um novo modo de pensar a relação entre forma e con-
teúdo. O movimento da existência – e também da história – não é a pura sucessão de
conteúdos diversos que se relacionam de fora segundo uma cadeia de causalidade. Mas
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também não se deixa captar como imposição de uma forma que, em última instância,
dissolve a multiplicidade dos conteúdos e anula a contingência da história.
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tante em voga uma visão do passado como fabricado ou inventado: narrativa construí-
da por determinados grupos ou seus representantes para legitimar identidades no jogo
político. Assim o passado redescoberto é tomado como seleção e fabricação tendenciosa
realizada do ponto de vista do presente. Seu papel é criar um foco de identificação e mo-
bilização social: forjando um passado comum e apresentando o futuro como seu resul-
tado necessário, esta narrativa confere credibilidade a um estado desejável de coisas. Em
outras palavras, e parafraseando Bourdieu, transforma estratégia em destino.
Curiosamente esta visão do passado – construção simbólica que serve para fortalecer
lideranças e seguidores em um campo político – é frequentemente articulada à outra,
bastante diferente, que visa responder à questão de por que certas pessoas ou grupos
precisam recorrer estes tipos de construção, ou melhor, que visa identificar as condições
– exploração de classe, de gênero ou étnico-racial, por exemplo – que explicam o recur-
so a certas formas de mobilização. Aqui a análise dá uma guinada e apresenta o passado
como uma cadeia objetiva de eventos transcorridos, de forças sociais e econômicas que
determinam presente e futuro. Uma linha demarcatória é desenhada entre passado real
e passado fabricado: ligado a este há o sujeito como agência, uma imagem de constru-
ção ativa do mundo; ligado àquele, um contexto de condições objetivas e uma imagem
de submissão passiva. Interessante observar que em ambas as soluções a conexão que as
pessoas mantêm com seu passado só pode ser externa: quer como criação ativa ou como
conservação passiva, o passado é privado de seus elos vitais com a experiência. Em um
dos cursos que proferiu no Collège de France, Merleau-Ponty observou:
O problema da memória não tem saída enquanto se hesita entre a memória como conser-
vação e a memória como construção. […] [a] imanência e a transcendência do passado, a
atividade e a passividade da memória não podem ser reconciliados enquanto não renun-
ciarmos a colocar o problema em termos de representação. Se, para começar, o presente
não é mais “representação” (Vorstellung), mas uma certa posição única do índice do ser no
mundo, se nossas relações com ele, quando ele desliza para o passado, como nossas relações
com o entorno, são atribuídas a um esquema corporal que detém e designa uma série de
posições e possibilidades temporais, se o corpo é quem a cada vez responde [à] questão:
“Onde estou e que horas são”, então não haverá mais alternativa entre conservação e cons-
trução. (Merleau-Ponty 1968b:72)8.
8 Tradução de M. Rabelo. No original em francês: “Le problème de la memoire est au point mort tant on hésite entre la mé-
moire comme conservation et la mémoire comme construction. (...) L’immanence et la transcendence du passé, l’activité et
la passivité de la mémoire ne peuvent être réconciliées que si l’on renounce à poser le problème en termes de representation.
Si, pour commencer, le présent n’était pas ‘representation’ (Vorstellung), mais une certaine position unique de l’index de l’être
au monde, si nos rapports avec lui, quand il glisse au passé, comme nos rapports avec l’entourage spatial, étaient attribués à
une schema postural qui détient et désigne une série de positions et possibilités temporelles, si le corps est qui répond chaque
fois a la question: ‘Où suis-je et quelle heure est-il’, alors il n’y aurait pas d’alternative entre conservation et construction…”
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Merleau-Ponty em Salvador
Conclusão
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Comportamento, expressão e subjetividade:
Merleau-Ponty e a psicanálise1
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Marcos José Muller-Granzotto
II
apresenta uma dualidade essencial. Ela anuncia, pelos problemas que se coloca e pela
maneira pela qual orienta suas investigações, uma psicologia concreta, mas ela a des-
mente em seguida pelo caráter abstrato das noções que emprega, ou que cria, e pelos
esquemas de que se serve. E podemos dizer sem paradoxo que Freud é tão espantosa-
mente abstrato em suas teorias quanto concreto em suas descobertas.
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(o) que gostaríamos de perguntar, sem colocar em questão o papel assinalado por
Freud à infra-estrutura erótica e às regulações sociais, é se os próprios conflitos de que
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ele fala, os mecanismos psicológicos que ele descreveu, a formação dos complexos, o
recalque, a regressão, a resistência, a transferência, a compensação, a sublimação exigiu
verdadeiramente o sistema de noções causais pelo qual Freud as interpreta, e que trans-
forma em uma teoria metafísica da existência humana as descobertas da psicanálise.
a idéia de uma consciência que seria transparente para si mesma, e cuja existência se
tornaria então, a consciência que ela tem de existir não é tão diferente da noção de in-
consciente: é, de ambos os lados, a mesma ilusão retrospectiva: introduz-se em mim, a
título de objeto explícito, tudo o que poderia, a seguir, aprender de mim (1945: 436).
Por conta disso, Merleau-Ponty acredita que seja com razão que se censure Freud:
ele introduziu com o nome de inconsciente “um segundo sujeito pensante cujas pro-
duções seriam simplesmente recebidas pelo primeiro, e Freud mesmo admitiu que essa
“demonologia” não era mais que uma concepção psicológica frustrada” (1968 :69).
Mas essa avaliação não nos deveria levar a crer que Merleau-Ponty tivesse
aderido ao programa de consecução de uma psicologia concreta, que recusasse toda
sorte de recurso ao “profundo” em proveito daquilo que efetivamente se formulasse
na “atualidade” de nossos atos, fosse isso uma intenção significativa ou uma intenção
prática. Para Merleau-Ponty, do fato de não se poder aceitar que o inconsciente fosse
um conjunto de representações de primeira ordem em oposição dialética às nossas re-
presentações conscientes, não se segue que nossa singularidade se limitaria às intenções
significativas e às intenções práticas reveladas, respectivamente, na estrutura dramática
de nossos relatos e na teleologia de nossas ações individuais em situação social, como
acreditava Politzer. Tão problemático quanto dizer que minha individualidade já es-
taria determinada no passado, seria dizer que ela se reduziria àquilo que eu haveria de
desempenhar no presente, como um conteúdo manifesto. Para Merleau-Ponty, se é
verdade que a dramaticidade revelada por nossos relatos na atualidade da situação clí-
nica exprime nossa existência subjetiva, se é verdade, ademais, que o sentido dessa exis-
tência nós o vivemos em cada ação desempenhada no convívio social, daí não se segue
que nossa subjetividade esteja toda aí. Ela comporta mais do que nossa atualidade. O
que não quer dizer que, para Merleau-Ponty e conforme a censura politzeriana dirigida
a Freud, esse “a maior” seja determinado como um em-si independente de nossa inser-
ção pragmática e discursiva no presente. Eis por que Merleau-Ponty refere-se à subje-
tividade como a “unidade expressiva” (1945: 239) de um corpo que, tanto quanto aos
gestos atuais que desempenha no mundo e frente ao outro, dispõe de um sistema de
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Merleau-Ponty em Salvador
possibilidades assegurado não por uma lei, mas por um hábito, por um corpo habitual
que não se confunde com o primeiro, mas se oferece a ele como uma camada segunda,
inatual. No dizer de Merleau-Ponty, o corpo parece comportar “como que duas cama-
das distintas, a do corpo habitual e a do corpo atual. Na primeira, figuram os gestos de
manuseio que desaparecem na segunda” (1945: 97).
Merleau-Ponty evoca aqui o fenômeno do “membro fantasma” para mostrar que o
corpo habitual de que se trata não diz respeito a uma estimulação recalcitrante – afinal
o doente acometido desse fenômeno não dispõe das terminações nervosas (do braço
amputado) a partir das quais tal estimulação poderia ser localizada -, tampouco diz
respeito a uma representação mental inadequada (seja ela um juízo ou uma “sensação
renascente”) – uma vez que a suspensão dessa representação não faz cessar a coceira
que o doente “sente” na extremidade de “braço ausente”. Se continua a visar o mundo
por meio de um aparelho que, todavia, deixou de figurar no espaço, é porque a per-
da do braço não elidiu a “espessura histórica”, o “saber latente” que, tal qual “ciência
implícita ou sedimentada”, faz o doente transcender as estimulações e representações
que ele pode viver no presente (1945: 275). De onde se segue, conclui Merleau-Ponty,
que a percepção sempre retoma “algo de anônimo”, o que impede que possamos nos
apreender como transparências absolutas (1945: 275). Quando muito, posso ter de
mim um cogito tácito, que não se confunde com a “imanência psicológica, a inerên-
cia de todos os fenômenos a ‘estados privados’, o contato cego da sensação consigo
mesma”. Tampouco se confunde com a imanência transcendental, “a pertença de to-
dos os fenômenos a uma consciência constituinte, a posse do pensamento claro por si
mesmo”. A vivência de mim mesmo como generalidade temporal, o “cogito tácito” de
minha própria solidão é, antes, “o movimento profundo de transcendência que é meu
próprio ser, o contato simultâneo com meu ser e com o ser do mundo” (1945:432), os
quais, por só se revelarem na atualidade como “fenômenos”, exprimem uma evidência
que vem de outro momento, de outro lugar, como “um passado que permanece nos-
so verdadeiro presente” porque “não se distancia de nós e esconde-se sempre atrás de
nosso olhar em lugar de dispor-se diante dele” (1945: 124). O fenômeno do “membro
fantasma”, por fim, ensina que “é preciso que meu corpo seja apreendido não apenas
em uma experiência instantânea, singular, plena, mas ainda sob um aspecto de gene-
ralidade e como um ser impessoal” (1945: 97).
Aliás, para Merleau-Ponty, tal impessoalidade é a mesma que podemos encontrar
no “recalque de que fala a psicanálise” (1945: 98). Pois o recalque
(...) consiste em que o sujeito se empenha em uma certa via – relação amorosa, carrei-
ra, obra -, encontra uma barreira nessa via e, não tendo força nem para transpor o obs-
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III
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Merleau-Ponty em Salvador
(o) tratamento psicanalítico não cura provocando uma tomada de consciência do passa-
do, mas em primeiro lugar ligando o paciente ao seu médico por novas relações de exis-
tência. Não se trata de dar um assentimento científico à interpretação psicanalítica e de
descobrir um sentido nocional do passado, trata-se de revivê-lo como significando isto
ou aquilo, e o doente só chega a isso vendo seu passado na perspectiva de sua coexistência
com o médico (1945: 519).
Reafirmando sua intuição de que a subjetividade é mais que sua própria atualida-
de – o que o opõe a Politzer -, mas sem ceder à tentação de reduzir a “opacidade” de
nossa existência passada a um sistema de representações de primeira ordem – o que
o distingue de Freud -, Merleau-Ponty pode admitir o êxito da experiência analítica,
por reconhecer nela a retomada do fundo habitual de coexistência que acompanha a
subjetividade de cada qual.
IV
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Marcos José Muller-Granzotto
das cidades, das igrejas, das estradas, enfim, desses objetos que, diferentemente das
“coisas enraizadas em um fundo de natureza inumana”, aparecem para mim como que
“postos” sobre o mundo, edificados a partir de uma história composta de ações huma-
nas (1945: 374). O que permite a Merleau-Ponty falar da existência de um mundo
humano, paralelo à tradição pré-pessoal de um mundo já sempre ali, natural. E é desse
mundo humano, fundo histórico de meus atos sociais, que adviria não o cogito tácito
de mim como alguém jogado à própria sorte, mas a consciência de ser eu uma cons-
ciência entre outras consciências, ser pessoal num universo de outras pessoas. O que,
enfim, viabiliza para Merleau-Ponty a apresentação da relação intersubjetiva, tal como
aquela que se dá na experiência analítica, menos como emancipação de subjetivida-
des solitárias e mais como reedição atual de uma mesma comunidade, de um mundo
comum, que é o mundo humano. Tal significa dizer que a experiência analítica, além
de solitária e temporal, é intersubjetiva, no que ela justamente se distingue da gene-
ralidade mundana. Merleau-Ponty evoca aqui a originalidade do mundo humano ou
cultural, que assim como o mundo da percepção, traz sua evidência de um lugar mais
antigo. E a coexistência entre o analista e o analisando não os fecha em seus cogitos
privados, mas os faz reconhecer o mundo comum ao qual pertencem desde o passado.
Mas, que noção de subjetividade é essa que acomoda, numa só unidade expressiva,
uma pré-pessoalidade solitária e uma pessoalidade comunitária? Que noção de subje-
tividade é essa que articula, como um só movimento de transcendência em direção ao
futuro, um passado singular paralelo a um passado universal? Ora, decretará Merleau-
Ponty no texto de candidatura ao Collège de France, “ o estudo da percepção não pôde
responder essas questões. Ele só podia nos ensinar uma ‘má ambigüidade’, a mistura da
finitude e da universalidade, da interioridade e da exterioridade” (1962: 409).
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Merleau-Ponty em Salvador
entendida para além do corpo. Ela não pode se limitar a descrever a dinâmica corpo-
ral, o funcionamento deste campo ambíguo, ao mesmo tempo particular e universal.
É preciso reconhecer, no fenômeno de expressão, a dinâmica da própria generalidade,
da própria relação de coexistência, que tão bem a Phénoménologie de la perception pôde
marcar. Talvez, assim, se possa ultrapassar as dificuldades internas da Phénoménologie
de la perception, que consistem, precisamente, em se compreender como se pode reu-
nir, em um só tecido, a pluralidade de sujeitos, as várias dimensões do tempo, a sin-
gularidade das percepções e a universalidade do saber que as retoma. E eis então que,
em textos como La doute de Cézanne, Le roman et la métaphysique (publicados na obra
Signes, de 1960), Humanisme et terreur (1947), todos eles publicados depois de 1945,
Merleau-Ponty se propõe não mais restituir o mundo da percepção (estabelecer sua to-
pologia), mas mostrar “como a comunicação com outrem e o pensamento retomam e
ultrapassam a percepção que nos iniciou na verdade” (1962: 402). Não que Merleau-
Ponty estivesse abandonando o motivo de outrora. Apenas retomando-o desde um
ponto de vista dinâmico, como descrição da expressividade inerente à coexistência
intersubjetiva e à generalidade perceptiva, única forma de se esclarecer o que lá havia
permanecido obscuro.
Tal exigiu de Merleau-Ponty o aprofundamento das discussões sobre o sentido da
noção de práxis, as quais, nas duas primeiras obras, levaram-no a refletir sobre como
se articulariam a vida perceptiva, a ordem do trabalho, linguagem e a história. Mas,
diferentemente do modo como essas temáticas apareceram nas duas primeiras obras,
depois de 1945, elas não têm mais em vista dizer quem é a subjetividade que se revela
diante do outro, ou quem é esse outro que me põe em contato com o que eu não sabia
de mim, mas descrever como se relacionam, como eles se comunicam. O acento ago-
ra está no “como” e não no “quê”. O que se pode ver no modo como Merleau-Ponty
passa a considerar, por exemplo, a experiência da comunicação. Ele deixa de lado a
discussão com a psicologia da linguagem para polemizar com as análises lingüísti-
cas de Saussure. Evidentemente, o que interessa a Merleau-Ponty não é a lingüística
em si, mas como aí se articulam os temas da expressão e da intersubjetividade (1962:
405). Se é verdade que a diferenciação dos signos entre si é o segredo da sistematici-
dade da linguagem; se é por meio dela que um significado se exprime como todo, tal
diferenciação não se explica por si. Por que e de que maneira os signos se diferenciam
mutuamente? Ademais, relações de diferenciação que hoje são vigentes, outrora não
foram e, talvez, amanhã não sejam mais. Como entender, então, a especificidade dos
grupamentos diferenciais? Como entender sua origem e dissipação? A investigação
lingüística de Saussure não dá conta de responder essas questões. Afinal, o recorte sin-
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Marcos José Muller-Granzotto
crônico da língua pode mapear os diferentes grupamentos diferenciais, mas não pode
explicar como eles se estabeleceram, sequer como se mantêm. O recorte diacrônico,
com seu viés histórico, só pode mostrar a relação entre grupamentos diferenciais já
estabelecidos. Nesse sentido, ele não toca na questão da gênese e da auto-sustentação
da linguagem. Ademais, ele próprio exigiria uma explicação sobre o que lhe permitiu
comparar os diversos sistemas. Razão pela qual, vai dizer Merleau-Ponty, é preciso apa-
nhar a linguagem em funcionamento, compreendê-la de dentro, desde a posição de
quem a exerce. O que deslocará para a fala o que a lingüística de Saussure só admitia
para a língua, a saber, a investigação das condições dinâmicas que dão sistematicidade
à linguagem. Por isso encontramos, em contrapartida de uma diacronia da língua, não
mais uma sincronia também da língua, mas da fala. E o que Merleau-Ponty conquis-
ta, por meio desse deslocamento em direção a uma sincronia da fala, é aquilo que a
gramática velava no âmbito da língua, precisamente, a temporalidade. Ou seja, quan-
do suspendemos nossa crença na absoluta objetividade da linguagem – a qual estaria
assegurada pela gramática – quando nos colocamos na condição daquele que tem de
produzir uma significação para quem ainda não a possui, ou compreender o que se
figura para nós como uma articulação inédita, não temos outra alternativa senão re-
correr a grupamentos diferenciais não atuais, a processos de diferenciação que estão
em outro tempo e que, portanto, estariam a princípio excluídos do recorte sincrônico.
De onde se segue que a diferenciação não é conseqüência de uma lei, que lhe dá re-
gularidade. Recorrer a essa alternativa seria transportar o problema para outro lugar,
afinal, de onde surgiu essa lei? Como ela se mantém? A diferenciação, ao contrário, é
decorrência da espontaneidade dos falantes, de suas capacidades para compartilhar sig-
nos trazidos de outros tempos, de falas antigas, em proveito de falas novas. Ou, então,
a diferenciação é uma figura oriunda de um campo temporal, de uma temporalidade
intersubjetivamente construída. E eis que, por meio da descrição da temporalidade da
fala, Merleau-Ponty esclarece não só como se dá a diferenciação e, por extensão, a ex-
pressão de um significado, como mostra que a expressividade da linguagem é a própria
temporalidade engendrada pelos falantes, intersubjetivamente instituída.
Ora, estamos já aqui diante de uma outra maneira de se entender a expressividade.
Se é verdade que Merleau-Ponty ainda a define como uma sorte de temporalização, tal
temporalização já não é mais prerrogativa do corpo falante. Não há mais um indiví-
duo como garantia da expressividade (como temporalização) e, por conseqüência, da
constituição dos significados. A expressividade – e não apenas os significados que ela
engendra - é, agora, uma construção social, o processo de retomada de falas antigas
ante a fala do outro ou, inversamente, a incorporação da fala do outro pelas minhas
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Merleau-Ponty em Salvador
falas antigas. Trata-se do “ímpeto dos sujeitos falantes que querem se compreender e
que retomam como uma nova maneira de falar os destroços gastos de um outro modo
de expressão” (1969, 50). Trata-se, para falar da intercorporeidade, de uma experiência
de “descentramento”, em que me polarizo nas ações desempenhadas pelo outro, bem
como dele acolho uma orientação ou perspectiva. Meu sentir, agora, parece se “difun-
dir” (1969: 188) como generalidade carnal (1969: 29), no interior da qual eu e o outro
tornamo-nos “significações transferíveis” (1969: 194).
Ora, a grande vantagem dessa nova maneira de se entender a expressividade é que
ela nos dispensa de pensar a comunicação a partir do paradoxo constitutivo da noção
de subjetividade proposta na Phénoménologie de la perception. Já não temos de decidir
se a comunicação é um desdobramento de nossa inserção histórica no mundo da cul-
tura, ou de nossa solidão pré-pessoal, lateralmente unificada no cogito tácito de nós
mesmos. A expressividade característica da comunicação – e na forma da qual nos des-
cobrimos implicados como uma só comunidade de possibilidades – não exige que nos
compreendamos como seres sociais ou como seres individuais. A expressividade não é
dos sujeitos, mas do campo. E é a partir do campo, então, que podemos dizer quem
somos ou como somos a cada vez. Se é verdade que já na Phénomenologie de la percep-
tion Merleau-Ponty admitia que nossas percepções, como a sedimentação cultural de
nossa língua, dependiam de que houvesse troca, comunidade intercorporal e lingüísti-
ca, ele não considerava essa comunidade intercorporal um operador ontológico autô-
nomo e primevo, apenas uma certa dimensão do corpo perceptivo, o que instaurava,
no fundamento da comunicação, um paradoxo sem solução: é a comunicação uma
prerrogativa do corpo histórico ou do corpo pré-pessoal? Com a suspensão da investi-
gação topológica do fundamento da expressão e com a proposição da expressão como
o modo temporal de funcionamento do campo de coexistência (impessoal e cultural),
Merleau-Ponty deixa para traz a fenomenologia do corpo expressivo em proveito de
uma ontologia da expressividade vivida intersubjetivamente.
Eis então que se configura para Merleau-Ponty uma nova base desde onde os temas
da Phénoménologie de la perception podem ser recolocados, dentre eles, o da psicanáli-
se. Merleau-Ponty está agora em condições de esclarecer em que sentido a vivência da
transferência na relação analítica é uma ocorrência intersubjetiva. Afinal, se as inter-
venções do médico re-introduzem o outro que o paciente havia perdido, trata-se de
um acontecimento, de um milagre que não podia ser calculado, mas, nem por isso,
descartado. Pois, havendo abertura para isso, o médico “sabe” que pode repercutir a
queixa do paciente, “sabe” que pode apresentar aquilo que o sintoma mascara ou tenta
evitar. As interpretações do médico, ou a ausência delas, mais do que fundadas em um
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Marcos José Muller-Granzotto
VI
Ora, quem é o protagonista dessa vida mista, indissociável dos outros, mas ao mes-
mo tempo singular? Quem é essa diferença que só se revela à medida que se descentra
como “generalidade carnal” (1969: 29)? Para Merleau-Ponty, esse protagonista não é
outro senão nossa percepção ambígua. E tudo estaria relativamente tranqüilo não fosse
a ousada manobra merleau-pontyana de vincular tal definição à noção de inconscien-
te (supostamente extraído da segunda tópica freudiana). Aparentemente, a descrição
dinâmica da intersubjetividade não repercutiu apenas no entendimento merleau-pon-
tyano sobre o sentido da experiência analítica. Ela também levou Merleau-Ponty – e
foi isso que gerou espécie – a admitir o conceito de inconsciente.
Não devemos pensar, entretanto, que Merleau-Ponty tivesse voltado atrás em suas
considerações críticas dos anos de 1940. Mesmo tendo ele identificado, no conceito
de inconsciente, aquilo que ele próprio denominava de percepção ambígua, não sig-
nificou que tivesse passado a admitir a dialética de sistemas (primário e secundário)
que antes recusara à luz dos comentários de Politzer a respeito de Freud. Ao contrário,
(o) inconsciente evoca, à primeira vista, o lugar de uma dinâmica das pulsões, da qual,
somente o resultado nos será dado. E, no entanto, o inconsciente não pode ser um pro-
cesso “em terceira pessoa”, já que é ele quem escolhe, o que de nós, será admitido na exis-
tência oficial, que evita as situações às quais nós resistimos e que não é portanto um não-
saber, mas antes um saber não reconhecido, informulado, que nós não queremos assu-
mir. Em uma linguagem aproximada, Freud está aqui a ponto de descobrir o que outros
melhor nomearam de percepção ambígua. É trabalhando nesse sentido que se encontrará
um estado civil para essa consciência que roça seus objetos, retira-os no momento em
que vai pô-los, tem-nos em conta como o cego aos obstáculos, mais que não os reconhe-
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Merleau-Ponty em Salvador
ce, que não quer sabê-los, ignora-os enquanto os sabe, sabe-os enquanto os ignora e que
sustenta por baixo nossos atos e conhecimentos expressos (1960: 228)
(h)á na interpretação dos sonhos toda uma descrição da consciência onírica – cons-
ciência que ignora o nome, que não diz sim a não ser tacitamente, produzindo diante
do analista as respostas que ele espera dela, incapaz de fala, de cálculo e de pensamen-
tos atuais, reduzida às elaborações antigas do sujeito, de forma que os sonhos não estão
circunscritos ao momento em que os sonhamos, trazendo em bloco ao nosso presente
fragmentos inteiros de nossos momentos prévios – e essas descrições querem dizer que o
inconsciente é consciência perceptiva, procedendo como ela por uma lógica de implicação
ou de promiscuidade, seguindo passo a passo um caminho onde não há mais rendição
total, visando os objetos e os seres através do negativo que ele detém, o que é suficiente
para que ele ordene seu passo sem se colocar em condições de nomeá-los “por seu nome”
(1968: 70-1).
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Marcos José Muller-Granzotto
Quando digo que todo visível é invisível, que a percepção é impercepção, que a cons-
ciência tem um “punctum caecum”, que ver é sempre ver mais do que se vê – é preciso
não compreender isso no sentido de contradição: - É preciso não imaginar que ajunto
ao visível perfeitamente definido como em-Si um não-visível (que seria apenas ausên-
cia objetiva) isto é, presença objetiva alhures, num alhures em si) – É preciso compre-
ender que é a visibilidade mesma quem comporta uma não-visibilidade.
As coisas visíveis, assim como minha própria existência visível estão impregnadas
de uma não-visibilidade que, a sua vez:
não ocorre porque eu seja espírito, uma ‘consciência’, uma espiritualidade positivas,
existência como consciência (isto é, como puro aparecer-se), mas porque sou aquele
que 1) tem um mundo visível, i. e., um corpo dimensional e participável, 2) i. e., um
corpo visível para si próprio, 3) e portanto, finalmente, uma presença a si que é ausên-
cia de si. (1964 a, p. 303)
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Merleau-Ponty em Salvador
eu me sinta, como eles, um ser ao mesmo tempo visível e invisível, o que, por fim,
impede qualquer forma de síntese ou identidade.
O que significa apenas dizer “que toda percepção é forrada por uma contra-
percepção (...), é ato de duas faces, não mais se sabe quem fala e quem escuta.”
(1964 a, p. 318). Eis por que razão, para Merleau-Ponty, o ser se comunica, pa-
radoxalmente, com o nada. “O sensível, o visível deve ser para mim a ocasião de
dizer o que é o nada – O nada não é nada mais (nem nada menos) que o invisí-
vel.” (1964 a, p. 311), essa forma de apresentação do inconsciente que não faz
concessões aos modelos objetivos, que está mais além deles, porquanto não toma
o negativo (ao qual Freud talvez chamasse de “pulsão de morte”) a partir de uma
fórmula natural ou antropológica.
VII
alguém é escultor porque é anal, porque as fezes já são greda, modelar, etc. Mas as fezes
não são “causa”: se o fossem, todos seriam escultores. As fezes só suscitam um caráter
(Abscheu) se o sujeito as vive de forma a aí encontrar uma dimensão do ser – Não se cuida
de renovar o empirismo (as fezes imprimindo certo caráter à criança). Trata-se de com-
preender que a relação com as fezes é, na criança, uma ontologia concreta. (1964 a: 323)
Essa ontologia não é uma abstração operada pela criança, mas a forma singular se-
gundo a qual ela experimenta a presença do negativo. Essa presença não é a expressão
de uma regra pré-determinada, tampouco a singularidade tem a ver com a prevalência
de um sujeito. Ao contrário, para Merleau-Ponty, a existência é o domínio das pos-
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Marcos José Muller-Granzotto
o ser anal não “explica” nada: porque, para sê-lo, é preciso ter a capacidade ontológica
(= capacidade de tomar um ser como representativo do Ser). Portanto, o que Freud quer
indicar não são cadeias de causalidade; é, a partir de um polimorfismo ou amorfismo que
é contato com o Ser de promiscuidade, de transitivismo, a fixação de um “caráter” por
investimento num Ente da abertura ao Ser, que, daqui em diante, se faz “através deste
Ente”. Portanto, a filosofia de Freud não é filosofia do corpo, mas carne.
O id, o inconsciente, - e o ego (correlativos) para serem compreendidos a partir da carne.
Toda a arquitetura das noções da psico-logia (percepção, idéia – afeição, prazer, desejo,
amor, Eros) tudo isso, toda esta quinquilharia se ilumina, de repente, quando se deixa de
pensar estes termos como “positivos” (“espiritual” mais ou menos espesso) para pensá-los
não como negativos ou negatividades (porque isso traz de volta as mesmas dificuldades),
mas como diferenciações de uma única e maciça adesão ao ser que é a carne (eventual-
mente como “rendas”) (1964 a: 324)
Nesse sentido, afirma Merleau-Ponty contra Sartre: é preciso ”(f )azer não uma
psicanálise existencial, mas uma psicanálise ontológica”. Diferentemente da primei-
ra – que procuraria dilucidar objetivamente o “saber de ser” por cujo meio o ho-
mem se experimentaria como consciência transparente para si mesmo -, a psicanálise
ontológica visaria tão somente à retomada associativa (literária ou pré-objetiva) do
campo de sobredeterminações, que outra coisa não é senão o complexo espontâneo
de relações de diferenciação, reversibilidade ou quiasma entre os dados da percepção
e minha participação no Ser de generalidade carnal. Eis em que sentido Merleau-
Ponty pode dizer que as “associações da psicanálise são, na realidade, “raios” de tem-
po e mundo”. Merleau-Ponty recorre aqui ao escrito “O homem dos lobos”, para
dizer que
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Merleau-Ponty em Salvador
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Marcos José Muller-Granzotto
Referências bibliográficas
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Merleau-Ponty em Salvador
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Ação e situação em Merleau-Ponty:
o sentido intersubjetivo da historicidade
Creusa Capalbo
Foi com o criticismo kantiano que se passou a afirmar que o homem é a origem
de sua própria ação, de sua práxis, e ela deixou de ser entendida, como era até então,
como consequência da teoria, quer de natureza racional quer de natureza religiosa. A
ação implica um poder de decisão e portanto de liberdade, que o sujeito desenvolve
num determinado meio circunstancial, isto é, numa dada situação. A ação humana
disporá, pois, de força para transformar seu meio ambiente, natural e social, histórico
e cultural. Entende-se assim que a ação é um comportamento corporal do homem,
que pressupõe a aquisição do sentido do corpo próprio e da consciência intencional
de si, conforme afirmaram Husserl e Merleau-Ponty. A ação é movida pela vontade e
pela determinação de ideais e de valores, que são dimensões éticas, proporcionando ao
homem a sua auto-afirmação e auto-conservação.
A ação não se dá de modo isolado, realizada por um sujeito, pois ela requer o rela-
cionamento com os outros que fazem parte da sua situação no seio do mundo. Assim,
ela se dará nas relações ditas humanas, pelo trabalho, pela comunicação, no lazer etc.
A ação se manifesta por atos intencionais de um sujeito que por eles se expressa, reflete
e se transforma.
Pela ação, dá-se a modificação do meio físico e humano, ou do próprio sujeito,
demonstrando-se, assim, que há uma intenção no projeto que lança a vontade huma-
na em direção ao futuro. Contemporaneamente, a ação humana deve levar em conta
o pensamento técnico que calcula, pela teoria dos jogos, a proteção que se deve dar às
incertezas do presente e do futuro. Aplica-se, assim, o cálculo das probabilidades aos
problemas de decisão tão necessária não só ao indivíduo em sua vida cotidiana, mas
ao poder de gestão, à política, à economia dentre outros. Decidir é escolher um ato
num conjunto, em função de um objetivo que se fixa. A escolha deve levar em conta
os critérios segundo os quais se avaliam as consequências ou os inconvenientes, os fa-
tores estranhos que interferem na decisão. O recolhimento do maior número possível
de informações sobre os dados aleatórios possíveis permitirá revelar as probabilidades
de ocorrências e as medidas das consequências das ações possíveis. É o que se chama,
desde Pascal, de “esperança matemática” para cada ação possível. Mas, se a esperança
matemática pode ser calculada por terceiros ou por adversários, adota-se, então, di-
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Creusa Capalbo
versos pontos de vista, segundo o risco previsível, para que ele seja o menor possível.
Nesta perspectiva, não se fala mais das noções de bem ou de mal, mas sim da teoria
dos jogos onde se alcança o sucesso ou o fracasso.
Embora Merleau-Ponty não tenha falado explicitamente da teoria dos jogos e da
esperança matemática, ele as vivenciou em sua vida pessoal e social, pelo seu engaja-
mento político e pela sua ação, durante a ocupação nazista da França. Merleau-Ponty
pertenceu ao Partido Comunista Francês mas dele afastou-se por não concordar com
a ação dos comunistas na guerra da Argélia, com a defesa que faziam dos Goulags na
antiga União Soviética, com a ocupação russa da ex-Iugoslávia, dentre outras ações
persecutórias dos comunistas, tendo dito e publicado as suas razões, contrárias a tais
atitudes adotadas pelos comunistas, em jornais e revistas.
Conforme dissemos no início, a ação, como modo de realização humana, implica
na presença do outro face à minha existência e, por conseguinte, na situação em que
vivemos. Merleau-Ponty examina esta questão, a qual foi desenvolvida por Alphonse
De Waelhens em suas publicações sobre Merleau-Ponty. O que aqui temos é a inten-
ção de mostrar que não se pode falar de situação sem que falemos de uma ética de
situação. Por ética de situação entende-se a concepção filosófica cuja idéia central é a
de que não se pode determinar o que é moralmente bom ou mal, a partir de normas
gerais, abstratas ou absolutas, que seriam válidas para todos. A ética de situação ex-
clui de sua concepção que as regras gerais da ética tenham algum valor normativo.
O valor moral se apresenta em uma situação vivida determinada, à qual a pessoa
concreta, em sua existência, vê-se confrontada e toma suas decisões. Merleau-Ponty,
por exemplo, não era obrigado, por nenhuma regra moral abstrata, a se engajar con-
tra os nazistas na ocupação francesa. Foram, certamente, a sua situação existencial
de homem de esquerda, sua educação, sua atuação como professor, resultante dos
fatores de tempo e de lugar numa dada época histórica, que o levaram a tal decisão,
ao engajamento corpo-alma, a sua corporeidade e a tudo que ela se apegou no seu
modo de ser em situação no mundo, que o levaram às suas decisões em prol da de-
fesa da liberdade humana.
A liberdade situada indica que o homem é um ser no mundo aqui e agora. Li-
berdade, mundo, ação envolvendo o outro, se entrecruzam nos laços da existência
humana, situada à medida que elas são vividas.
Podemos dizer que os elementos da situação são de natureza geofísica (clima,
estações do ano, dia e noite etc); de natureza biopsicossomática, isto é, sexo, idade,
temperamento, herança genética; de natureza cultural, tal como a educação, a re-
ligião, a língua que se fala e todos os demais elementos objetivos da cultura, como
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Merleau-Ponty em Salvador
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Creusa Capalbo
na sua vivência concreta, pois ela é quem constitui o valor moral em consonância
com os outros numa dada sociedade aqui e agora.
De um modo geral, esta concepção repousa sobre a idéia de que o homem, que é
um ser de liberdade, tem o poder de se determinar a si mesmo à luz dos valores que
sua consciência lhe faz reconhecer no contato existencial concreto de uma situação,
esta sim, imposta, pois ele não a criou. Neste contato inter-subjetivo, o homem não é
passivamente receptivo de valores, mas sim fonte de sentido e de valor, que ele escolhe
livremente.
É preciso esclarecer o que estamos chamando aqui de intersubjetividade, e faremos
isto seguindo os ensinamentos que Merleau-Ponty nos legou. A intersubjetividade
nada tem a ver com a idéia de “reciprocidade das consciências”. Na sua obra O visível e
o invisível, inacabada devido a sua morte, Merleau-Ponty nos ensina que a pluralidade
dos sujeitos é intersubjetividade, porque ela repousa sobre a coexistência, a presença
com, o pertencimento de um mundo comum. E “o outro” é para mim o vidente visível
em carne e osso e ele me constitui em vidente visível.
Para Merleau-Ponty, o sujeito é o portador e o motor da fenomenologia da história,
“é o homem engajado num certo modo de apropriação da natureza onde se desenham
os modos de suas relações com o outro, é a intersubjetividade humana concreta, a co-
munidade sucessiva e a simultaneidade das existências, que estão em busca de se reali-
zar num tipo de propriedade que elas sofrem e que elas transformam, cada uma criada
por outro e o criando” (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 228).
Vê-se que para Merleau-Ponty o sujeito que eu sou e o outro são dois momentos
de um só fenômeno. Esta tensão é o que permite o movimento de transcendência da
existência; o seu inacabamento é tão necessário quanto o da tensão. Tudo quanto o
homem é, ele o é à base de uma situação de fato que ele pode retomar, transformar e
ultrapassar. Facticidade e transcendência são, portanto, dois momentos correlativos da
existência (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 197).
Na Fenomenologia da percepção, a sua preocupação principal foi a de descrever a
estrutura humana através das análises feitas sobre a percepção, a corporeidade, a sexu-
alidade, a linguagem, a intersubjetividade, a liberdade, a história e a temporalidade.
Posteriormente, vê-se que há uma modificação, pois o seu interesse, em Signos e em
O visível e o invisível, passa a ser o de indagar como o homem é capaz de constituir
sentido no mundo. Ele fará a passagem da fenomenologia do vivido (Erlebnis), que
permanecera presa à filosofia da consciência, para a ontologia do Ser Bruto, para uma
filosofia do Ser Selvagem, onde a noção de instituição originária (Urstiftung) é funda-
mental; pois esta noção será a base do que ele denominará “Historicidade Vertical”.
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Merleau-Ponty em Salvador
A historicidade será para Merleau-Ponty uma força instituinte, como uma força
criadora. O ser do homem é o ser que ao vir à existência terá o poder de instituir-se por
si mesmo, e no qual liberdade e necessidade, atividade e passividade estão entrecruza-
das na formação do ser que se dá a si mesmo o seu poder. Já na história concreta, a his-
toricidade se apresenta como uma obra a ser feita em coexistência social, instituindo a
cultura, a sociedade, a arte, a linguagem etc. Merleau-Ponty chama a esta historicidade
de poemática para sublinhar o papel da criação em história, comparável à produção
poética. Nesta há um ritmo e igualmente o haverá na história. O primeiro ritmo é o
do entrelaçamento e do entrecruzamento dos momentos antecedentes, presentes e se-
guintes, carregando consigo um ou vários sentidos que se superpõem prolongando-se.
O segundo ritmo é o “hiatus” pelo qual se exprime ao mesmo tempo a continuidade e
a distância que separam duas coisas que se afastam.
Merleau-Ponty, ao exercer a sua autocrítica de que estivera preso à concepção de
uma consciência transparente, caminhará, em sua pesquisa, em direção a uma ontolo-
gia do sensível, onde o ser é qualificado como amorfo ou polimorfo, e onde o elemen-
to “carne” se apresentará como força instituinte na Carne do Mundo, no Ser Visível,
na Carne do Homem e na Carne da História Concreta. Todos os sensíveis se encon-
trarão reunidos no horizonte total do Ser Bruto ou do Ser Selvagem, dito polimorfo. É
deste Ser Bruto que são pré-erguidas todas as dimensões e, para explicitar este poder da
pregnância, que faz brotar uma forma, é que Merleau-Ponty se dedicará à pesquisa da
Historicidade Vertical. Ele dirá que o que torna possível esta Verticalidade que permite
a emergência do existir é o Invisível, porque, diz-nos ele: “o visível é pregnante de invi-
sível” (DE WAELHENS, A., 1967, p. 247), e esta pregnância é poder de fecundação
e possibilidade objetiva de fazer brotar, de criar, de fazer nascer, e é neste sentido que
se deve entender a “instituição originária”, o princípio em virtude do qual há o “surgir
imotivado”, há instituição e não subsunção (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 281). É
graças à Historicidade Vertical que o Ser se põe na postura de estar de pé, a colocação
em posição do “há o Ser”.
Esta análise do “ser-no-mundo ou da intra-ontologia”, como prefere dizer Merle-
au-Ponty, desenvolve-se para a explicitação do elemento carne, permitindo-nos com-
preender o sentido como o invisível que só aparece no visível da carne (Ibid, p. 262-
264; CAPALBO, 2004, p. 103-121).
O homem e o mundo estão entrelaçados no entrelaçamento intercorporal com os
outros. Esta noção de Carne não se confunde com a matéria ou com a substância. Ela
é “um elemento, no sentido em que os gregos empregaram este conceito para falar da
água, do ar, da terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral a meio caminho
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Creusa Capalbo
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Merleau-Ponty em Salvador
cria são diversos modos de expressão que ela adota. Neste sentido, ela é Historicidade
instituinte, Criadora e assim podemos compreender que cada um de nós se encontra
no interlúdio da Poemática do Ser Bruto. Merleau-Ponty quer, assim, realizar uma
ontologia do Sensível e a compreensão do Ser como Poemática do Ser Selvagem, His-
toricidade originária, Vertical. Ela é produção ativa que consiste em fazer vir o Ser em
seu aparecer, poder de tornar algo visível. Pensa-se assim o Ser no interior dos entes, o
Ser se faz presente através do mundo.
Vimos, de modo resumido, que Merleau-Ponty distingue a historicidade do Ser
humano da historicidade na história concreta e que, aprofundando o tema da histori-
cidade ele a qualifica de Poemática, chegando, então a Historicidade Vertical ou do Ser
Bruto. A historicidade aparece como força criadora, como um poder formador que,
para se manter deve institucionalizar-se. Assim a historicidade se define, em sentido
amplo, como ação de instituir ou como poder formador. Merleau-Ponty só dá este
salto porque abandona a filosofia da consciência que a entendia como transparente
e translúcida, tal como se apresenta na Fenomenologia da percepção, para investigar a
ontologia do Sensível ou a Filosofia do Ser em seu entrelaçamento de Visível e Invi-
sível. Mas, na verdade, Merleau-Ponty não abandona a sua concepção de Percepção:
ela é uma estrutura fundamental que estará presente na sua obra inacabada O visível
e o invisível.
A história, a cultura, a sociedade, a linguagem fazem parte da situação em que o
homem se encontra na sua existência, e não pode ser considerado à parte de uma tradi-
ção que faz dele o que ele é. Mas, por outro lado, esta tradição não sufoca a liberdade;
ao contrário, é por ela que a liberdade se efetua pois o homem, pela sua ação com os
outros, pode transformá-la. Assim, a instituição se apresenta como uma estrutura du-
rável mas também de transformação, ela é conservação e ultrapassagem.
O Sujeito nasce na e pela instituição e é por ela e nela que ele se reconhecerá a si
mesmo graças a mediação do outro, dos laços da intersubjetividade. A tarefa de rea-
lizar-se a si mesmo não se faz isoladamente ou fora da polis. Merleau-Ponty compara
esta tarefa com a obra de arte que se faz sem ruído, em silêncio, e no estilo próprio de
seu autor.
A reflexão sobre o Outro, a partir de Husserl, se deu em três direções, e será ne-
cessário falarmos brevemente sobre este assunto para compreendermos a posição que
tomará Merleau-Ponty.
A primeira direção enfatizou a experiência do outro enquanto tal para mostrar que
o outro não pode se reduzir a um objeto constituído pela consciência, pois perdería-
mos a “volta às coisas nelas mesmas”, ou seja, o Sujeito como tal que se constitui um
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Creusa Capalbo
si-mesmo. Merleau-Ponty, em parte, acata esta direção sem, no entanto, deixar de en-
fatizar que para a ciência a objetivação do Sujeito se faz necessária.
A segunda direção se debruça sobre o conhecimento do outro, afirmando que tal
se dá pelo fato de que a sua maneira de ser original consiste em ser expressão. Assim o
outro é uma realidade significante e o conhecimento que eu tenho dele é o sentido que
eu depreendo de sua fala, de seus gestos, de seu comportamento, como preferirá dizer
Merleau-Ponty. Para ele, os gestos e o corpo próprio se expressam numa linguagem
silenciosa e muda que será elevada à segunda potência da linguagem expressa através
da fala enunciada.
A terceira direção enfatiza que o outro só é alcançável na comunicação intersubje-
tiva que se faz, dentre outras maneiras, pela linguagem expressa, compreendida e in-
terpretada em relação ao seu sentido. Para Merleau-Ponty, no entanto, a emergência
do sentido não deixa de estar unida em relação tensional, com o não-sentido, estando
pois, fala e comunicação numa unidade tensional, expressando, nesta tensão, as rela-
ções entre cultura, historicidade e corpo próprio.
O poder de tornar-se si-mesmo requer o outro; este e o caminho comum a todos,
é uma obra comum a todos, instituinte de sociabilidade e de intersubjetividade. Dá-se
um verdadeiro movimento circular de um para outro, do Mesmo para o Outro, sem
que este movimento seja de repetição, podendo ele ser de unificação e de separação.
Os modos de vida do ser humano se realizam, a partir daí, quer como verdadeira união
no amor autêntico, fonte viva da qual nasce toda vida humana, como dom de si ou
partilha, quer como separação, dilaceração. Na realidade, estes dois processos estão
entrelaçados pois se trata de um só e mesmo movimento circular.
A reflexão sobre o mundo da vida não nos dá, segundo Merleau-Ponty, um pen-
samento claro como desejava Husserl. A reflexão permite o permanecer próximo e
afastado, um “ter em mãos” sob a modalidade do horizonte que sempre se afasta. Ela
nos restitui a “cifra ontológica que a marca interiormente, a saber o ser longínquo”
(MERLEAU-PONTY, 1960, p. 198).
A historicidade pessoal não é a história de uma vida curvada sobre si mesma. É an-
tes a história de uma vida no seio de uma dada comunidade e do mundo.
Concluindo, podemos dizer com Merleau-Ponty que entre a minha vida pessoal
e as situações dadas, há sempre a espessura de uma aquisição originária (MERLEAU-
PONTY, 1945, p. 250), uma espessura histórica, uma modalidade geral de existência
e de anonimato (Ibid, 249-250). Este anonimato é um universal impessoal que Mer-
leau-Ponty chama de “eu natural, pré-pessoal” e mais tarde de “carne”. A historicidade
humana carrega consigo o pessoal e o anônimo que se entrecruzam no desenrolar da
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Merleau-Ponty em Salvador
vida. É por isto que se entende que a estrutura do sujeito concreto comporta a ge-
neralidade e a individualidade entrelaçadas. A primeira experiência de nosso ser no
mundo é a coexistência anônima, a indistinção de si e dos outros e não a consciência
de si. Esta emerge como experiência segunda. É por querer aprofundar esta questão
que Merleau-Ponty se detém na análise da região selvagem e polimorfa do Ser Bruto,
a generalidade universal e anônima do elemento carne que, por ser historicidade pri-
mordial “se recoloca no ‘há’ preliminar, sobre o solo do mundo sensível e do mundo
trabalhado, tais como eles são em nossa vida, para nosso corpo (...), para os corpos
associados ou os outros (...) que me frequentam, com os quais ando junto, com quem
tenho familiaridade por conviver com um só Ser atual, presente (...)” (MERLEAU-
PONTY, 1961, p. 194-195).
Referências bibliográficas
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3. Merleau-Ponty e as artes
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Forma e instituição: experiência estética e
sensibilidade histórica em Merleau-Ponty
Monclar Valverde
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Monclar Valverde
Como é bem sabido, apesar de derivar de uma palavra grega (aísthesis – que toma-
mos aqui como equivalente a sensibilidade), o termo “estética” surgiu apenas na Alema-
nha do século XVIII, quando Baumgarten tentou dar um tratamento filosófico à di-
mensão expressiva, conferindo dignidade intelectual àquilo que era então considerado
1 * Não seria o caso de desenvolver esses temas, até porque já o fizemos em outras ocasiões (cf. “A dimensão estética da
experiência”, “Os limites do jogo poético” e “Experiência estética e recepção”. In VALVERDE, 2007, p. 102-115, p.
119-133 e p. 134-148, respectivamente). O que pretendemos assinalar aqui é que a reflexão estética contemporânea
a Merleau-Ponty rejeita simultaneamente a simples oposição e a simples identificação entre o artístico e o estético. Ao
mesmo tempo, ela tende a vincular a experiência estética à experiência ordinária, mesmo que para desconstruí-la. Du-
frenne, por exemplo, mostra que a sensibilidade é o elo entre a técnica do artista e a expectativa do público, pois é o
que permite ao primeiro decidir se a obra está pronta e ao segundo julgar se ela é bela (1981, p. 91). Dewey mostra a
passividade do criador (que deve modular cada gesto a partir do efeito produzido pelos gestos anteriores) e a atividade
do espectador, tratando o estético como “o desenvolvimento clarificado e intensificado de traços que pertencem a toda
experiência normalmente completa” (1974, 255). Pareyson desenvolve uma concepção performativa da recepção, mos-
trando que o espectador também vive uma experiência, quando “executa” a obra através da leitura, da interpretação e
da avaliação. Ao mesmo tempo, aproxima autor e público pela dialética entre “forma formada” e “forma formante”,
procurando mostrar que a criação seria o percurso entre esta e aquela e a recepção seria o caminho inverso (1989, p.
142). De um modo geral, afirma-se a relação entre o arístico e o estético, mas se reconhece a subordinação do plano
poético (da produção) ao campo estético (da recepção).
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Merleau-Ponty em Salvador
uma fonte de enganos. Mas, ao mesmo tempo em que destacou o papel da sensibilida-
de, ele a subordinou, de modo quase automático, às faculdades cognitivas, justificando
a abordagem dessa forma de “cognição inferior” pelo fato de ela constituir uma espécie
de preâmbulo à cognição propriamente dita, isto é, a intelecção.
O Kant da Crítica da razão pura permanece nesse registro. Em sua “estética trans-
cendental”, ele define a sensibilidade como a “capacidade de receber representações”
e identifica as noções de tempo e espaço como suas condições a priori. Mas reserva ao
entendimento o poder de processar essas representações e traduzi-las em proposições
dotadas de sentido. Desse modo, ele circunscreve a dimensão estética ao âmbito da
percepção, a qual, por sua vez, é reduzida à condição de mera passividade estesiológica.
A beleza e os juízos de valor só virão a ser tematizados mais tarde, na Crítica à faculdade
do Juízo, através da problemática do gosto, que aparece e é desenvolvida no âmbito das
analíticas do belo e do sublime. Neste novo contexto, aquela atribuição de passividade
traduz-se no reconhecimento de uma condição de passibilidade, pela qual um sujeito
é passível de ser afetado, isto é, de ser tocado em seu afeto. E sua atividade criadora é
vista não como pura iniciativa, mas como reação e “resposta” à doação sensível.
Contudo, entre Kant e Hegel, a estética do gênio e a estética do gosto, que eram
solidárias na reflexão kantiana, serão separadas, acentuando-se o papel da criação e
reduzindo-se a teoria estética a uma filosofia da arte. O primeiro efeito desse processo
será a entronização da racionalidade como critério último para a descrição da própria
experiência da criação artística, a qual, por sua vez, mirando-se nesta imagem, virá a
afastar-se ainda mais da experiência sensível, até atingir, no século XX a bizarra condi-
ção de “arte conceitual”. Ao mesmo tempo, a reflexão tida como “estética” abandonou
o âmbito da experiência natural e da recepção espontânea dos produtos culturais para
fixar-se, inicialmente, na recepção das obras de arte, mais tarde, nas obras, enquanto
tais, e, finalmente, no artista e em seu projeto poético. Desse modo, destacando o âm-
bito da produção, essa teoria acabou deixando de lado a fruição, em seu caráter senso-
rial, afetivo e prático, para focalizar apenas a “criação”, concebida como o ato ilumina-
do de um pequeno demiurgo, capaz de controlar os efeitos provocados por sua obra.
Em todo esse processo, a experiência da beleza foi confundida com a descrição e a
análise dos mecanismos acionados por aquelas obras intencionalmente voltadas à pro-
dução de efeitos estéticos, confundindo-se a habilidade de fazer arte com a capacida-
de para experimentá-la. Até então, esta aptidão receptiva fora reduzida à experiência
sensível e concebida como mera apreensão de “dados”, sendo, portanto, gradualmente
desqualificada, como uma forma extrema de contemplação e passividade, em contraste
com a atividade racional do “autor”. Por fim, a abordagem do gosto como uma dispo-
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sição meramente ideológica, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século
XX, concluiu o processo de esvaziamento da discussão estética, vista, a partir de então,
como algo do passado.
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nossa vida” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 18). Este corpo não é uma coisa, mas
um meio de comunicação com o tempo e o espaço (MERLEAU-PONTY, 1994, p.
246), o foco de um campo de relações que constituem os órgãos dos sentidos em
“órgãos de experiência” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 137).
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Merleau-Ponty em Salvador
trás das aparências. O termo sofreu, assim, sua primeira torção, deixando de indicar
“o que está aí”, na evidência do mundo exterior, para designar uma inteligibilidade
ideal, situada “além de todo aí”. Uma nova modulação semântica ocorre na Idade
Média, pois, enquanto os pensadores gregos situavam a existência no plano da cos-
mologia, os filósofos medievais voltaram-se para entidades que escapavam da deter-
minação absoluta – condição própria dos astros e das coisas materiais –, tomando a
pessoa (humana ou divina) como seu modelo (cf. MORA).
Desse modo, a idéia banal da existência, como a ocorrência do que há no mun-
do, dá lugar a uma concepção que recusa sua caracterização a partir de algo simples-
mente dado, para vê-la como um modo de ser que não se reduz a um “si mesmo” e
se constitui como um poder-ser que não tem natureza substancial, mas realiza o seu
próprio ser sendo. Sem caber numa definição atomista, este ente (o Da-Sein, o ser-aí,
a pre-sença), cuja estrutura ontológica é a de um ser situado (figura sobre um fundo,
perspectiva num horizonte, ser-no-mundo), abre-se, pela compreensão de suas possi-
bilidades de vir a ser, ao próprio ser enquanto tal.
Esta concepção lança uma nova luz sobre o modo como a relação entre ser e não-
ser é experimentada na existência, pois, como vimos, existir é deixar de ser para vir a
ser e isto mostra que a identidade de um existente tem um caráter dinâmico, não lhe
pertence previamente, não está assegurada pelo destino, pelas condições geográficas
ou sócio-econômicas, pelos astros ou pelo código genético, mas é o efeito deste seu
modo histórico de ser-sendo: abertura a partir de uma situação previamente dada.
Esta transcendência finita (ou esta finitude transcendente) é exemplarmente vivida
nesta condição de ter um corpo como meio da experiência; enfim, nesta proto-expe-
riência que é, mais radicalmente ainda, ser um corpo.
Enquanto “orgão” da experiência, o corpo, por isso mesmo, simplesmente não
pode ser “superado”, porque vem sendo ultrapassado desde sempre, por si mesmo,
por seu próprio modo de ser. Na verdade, ele não é senão este excesso situado, este
acesso possível à possibilidade mesma. À medida que se abre a um “mundo” (este
horizonte de sentido que ultrapassa todo objeto particular), o corpo é ultrapassado
pela experiência que, no entanto, somente ele pode tornar possível. Encarnando este
sentido em expansão, ele transborda em direção ao mundo exterior, a outras épocas
e aos outros, incorporando a diferença na unidade dinâmica dessas formas de insti-
tuição que são a percepção, a expressão e a ação. Nas palavras de Merleau Ponty: “É
preciso reconhecer então essa potência aberta e indefinida de significar – quer dizer,
ao mesmo tempo de apreender e de comunicar um sentido – como um fato último
pelo qual o homem se transcende em direção a um comportamento novo, ou em
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Num comentário ao texto que Kant escreveu sobre o Iluminismo (O que é isso, o
Iluminismo?), Michel Foucault (ex-aluno de Merleau-Ponty) conclui que a epistémê
contemporânea é ambígua, no que se refere ao duplo empírico-transcendental: se-
gundo ele, nós somos e não somos kantianos, ao mesmo tempo. Somos kantianos,
porque ainda procuramos as condições de possibilidade da experiência, mas não so-
mos mais kantianos, à medida que não reconhecemos nessas condições de possibili-
dades uma estrutura absolutamente fixa, genérica e universal.
Ao mesmo tempo, se reconhecemos que as próprias condições de possibilida-
de da experiência têm caráter plástico, somos igualmente obrigados a admitir que
sua plasticidade não tem o mesmo grau de maleabilidade da experiência singular.
Os historiadores diriam que as transformações dos quadros da experiência ocorrem
numa “longa duração”, enquanto a dinâmica das experiências de cada sujeito envol-
ve transformações que se dão na “curta duração”. Neste sentido, o pensamento do
próprio Merleau-Ponty ilustraria, de maneira exemplar, essa condição do pensamen-
to contemporâneo.
Enquanto Kant buscava definir as condições de possibilidades a priori da ex-
periência, Merleau-Ponty procurava analisar os seus enquadramentos históricos e
culturais, vistos como condições prévias, mas não absolutas. No âmbito da sensibi-
lidade, o primeiro aponta as noções de tempo e espaço como condições de possibi-
lidade da experiência perceptiva, pela qual o sujeito constitui seu objeto, mas essas
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Merleau-Ponty em Salvador
próprias condições de possibilidade podem ser vistas como instituídas, embora não
na história pessoal, mas na história da cultura. Neste sentido, Merleau-Ponty estaria
sugerindo que os a priori da experiência são, também eles, plasmados pela experiên-
cia, ainda que não pela experiência do sujeito individual, em sua vivência pessoal,
mas pela experiência histórica, intersubjetiva e anônima, acumulada culturalmente.
Assim, a prolongada experiência da instituição de um mundo físico estável aca-
bou estabelecendo condições que, para o sujeito individual, representam um enqua-
dramento fixo e absoluto de sua experiência atual, mas esse quadro não é fixo para
sempre e não é o mesmo para todos, pois, ao longo da história e entre as diferentes
culturas, ele corresponde à maneira como cada cultura plasma, junto com o seu
modo de vida, seu próprio mundo, não só como conjunto de objetos e repertório
de condutas, mas como referência de sentido e horizonte comum. Enquanto a ex-
periência individual recorta os objetos a partir de condições espácio-temporais bem
determinadas, no plano intersubjetivo, a espacialidade e a temporalidade são, elas
mesmas, tratadas como matéria plástica pela cultura.
A sensibilidade não é, pois, redutível ao plano fisiológico, uma vez que esta con-
dição biológica foi apropriada e ampliada pela cultura, tanto em sentido prático
quanto discursivo, mas jamais será inteiramente incorpórea e digital, como acredi-
tam os profetas da Pós-Modernidade. Ela não é imutável, mas não está sujeita a mu-
danças repentinas, ao sabor das modas ou das inovações tecnológicas. Ela tem uma
história própria, que ultrapassa a experiência individual e se projeta na história dos
hábitos perceptivos desenvolvidos por diversas comunidades.
Da mesma forma, mesmo em sua condição anônima, o próprio corpo, concebido
como “órgão e meio da experiência”, não se mantém imutável ao longo do tempo.
O repertório pessoal de gestos e o patrimônio comum das condutas não se opõem,
mas se complementam e se engendram mutuamente. Como assinala Hermann Par-
ret, o pensamento de Merleau-Ponty explicita o duplo movimento que sustenta a
experiência, em sua condição radicalmente intersubjetiva, assinalando uma vez mais
a reversibilidade entre natureza e cultura, através do duplo processo de sensibilização
do social e de socialização do sensível (PARRET, 1997, p. 197-201).
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9. A dúvida de Merleau-Ponty
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ciar os entes, através de formas abstratas e bem determinadas, que os recortam do con-
tinuum sensível. Na Fenomenologia da percepção, apesar de encontrarmos um capítulo
sobre “o sentir”, não encontramos uma reflexão específica sobre o ver. Já na última fase,
especialmente em O visível e invisível e em O olho e o espírito, a visão passa ao primeiro
plano, ao mesmo tempo em que a pintura parece tornar-se a principal porta de acesso
ao mundo, enquanto expressão originária da visão. No primeiro momento, a idéia
de sinestesia parece sugerir um equilíbrio e mesmo uma equivalência entre os senti-
dos, enquanto na fase final de seu pensamento o privilégio da visão é inquestionável
e inquietante.
Em terceiro lugar, a diferença (não tematizada) entre perceber (ou ver) um ente
natural e perceber (ou ver) um ente cultural ou, como prefere Merleau-Ponty, um “ser
de cultura”. Na primeira fase de seu pensamento, até 1948, Merleau-Ponty acreditava
que a cultura apenas prolongava a experiência ordinária da percepção, ampliando-lhe
o repertório natural com a incorporação do mundo dos signos, como fica bem claro
nos textos recolhidos do programa radiofônico Conversas 1948 (MERLEAU-PONTY,
2004), ou na palestra “O cinema e a nova psicologia”, apresentada a um grupo de re-
alizadores cinematográficos (MERLEAU-PONTY, 1983). Durante a década de 50,
como vimos, suas investigações o levaram a crer que nossa inserção na história é apre-
endida mediante uma forma de “percepção histórica”. Essa idéia sugere, ao mesmo
tempo, que a sensibilidade tem um caráter prático, portanto, intersubjetivo, e que é
passível de transformação. Somos sensíveis à história e esta sensibilidade, é, ela mes-
ma, histórica4*.
Nas observações de Merleau-Ponty sobre Cézanne, ele parece ver uma continuida-
de entre a obra do pintor e a percepção de seu corpo, mas o projeto da pintura moder-
na parece melhor captado na idéia de Klee, segundo a qual o pintor nos dá a ser visto
um inédito do visível. Há uma contradição aqui e isto mostra o quanto é problemática
a relação que se estabelece, freqüentemente, entre a fenomenologia merleau-pontiana
e a pintura modernista.
Seria necessário desenvolver uma reflexão específica sobre a apreensão sensível dos
seres de cultura, que não negasse a dinâmica da percepção sensível, mas que não a
reduzisse a ela. Sabemos que a percepção não se confunde com a representação do
mundo exterior, mas, mesmo sem reduzi-la a uma representação, devemos tentar com-
preender a nossa capacidade de perceber, como coisas, representações visuais que, quan-
4 * Curiosamente, encontramos uma idéia semelhante, sobre a dimensão coletiva e temporal da sensibilidade, em um
texto deste kantiano heterodoxo que foi Georg Simmel (“Ensaio sobre a sociologia dos sentidos”). No século XX, essa idéia
se impõe também no trabalho de historiadores, como Alain Corbin (“História e antropologia sensorial”) ou Donald Lowe
(História da percepção burguesa).
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Merleau-Ponty em Salvador
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gem, na qual apenas esta última aparecia como essencial para que as expressões fossem
consideradas expressões legítimas. Segundo a leitura de Merleau-Ponty, aliás, “o grande
interesse da carreira de Husserl consiste em não ter cessado de voltar a questionar sua
exigência de racionalidade absoluta”, o que o teria levado a fixar “o programa de uma
filosofia que descreverá o sujeito lançado num mundo natural e histórico”, contribuin-
do, assim, “mais do que ninguém, para descrever a consciência encarnada num meio
de objetos humanos, numa tradição linguística” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 271).
No período que destacamos aqui (a década de 50), este cuidado para não reduzir
o discurso a uma dimensão puramente monológica leva-o a desenvolver um verdadeiro
combate contra a concepção “algorítmica”, que vê a linguagem como um neutro instru-
mento de transposição do pensamento puro ao mundo da expressão, como se a própria
idéia ocorresse ao sujeito inicialmente numa forma de transparência. Contra esta con-
cepção, ele adverte: “a palavra que profiro ou escuto é pregnante de uma significação
legível na própria textura do gesto lingüístico, a ponto de uma hesitação, uma alteração
da voz, a escolha de uma certa sintaxe, ser suficiente para modificá-la, sem, no entanto,
nunca estar contida nele” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 323).
Desse modo, o caminho tomado pela fenomenologia hermenêutica de Merleau-
Ponty será diferente do escolhido pela filosofia hermenêutica de Gadamer, formulada
na mesma época, como um suposto desdobramento da teoria da compreensão de Hei-
degger. Enquanto esta se apega à idéia de “lingüisticidade”, concebida como base da
compreensão e da própria ontologia, aquela aponta a necessidade de se investigar a base
plástica do próprio código lingüístico. Merleau-Ponty provavelmente concordaria com a
idéia de que “a compreensão não é nunca um comportamento subjetivo com respeito a
um ‘objeto’ dado, mas pertence à história dos seus efeitos, isto é, ao ser do que se compre-
ende” (GADAMER, 1988, p. 13). Contudo, certamente procuraria aplicar tal princípio
tanto à compreensão da “vozes do silêncio” quanto à própria compreensão lingüística.
Se “a imagem é um processo ôntico, [se] nela o ser tem acesso a uma manifestação visí-
vel e cheia de sentido (...), [se] a ‘idealidade da obra de arte não pode determinar-se por
referência a uma idéia, a de um ser que se trataria de imitar ou reproduzir; [mas] deve
determinar-se ao contrário como o ‘aparecer’ da idéia mesma (...)” (GADAMER, 1988,
p. 193), seria necessário, então, que a “valência ôntica da imagem” se referisse também à
própria linguagem e à forma de suas significações, tanto na fala quanto na escrita.
Para concluir, diríamos que a questão estética abrange dois aspectos na obra de Merleau-
Ponty: uma fenomenologia da expressão (bem localizada e, de resto, bem estudada) e uma
hermenêutica da sensibilidade (difusa e pouco explorada, nestes termos). Considerados em
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Merleau-Ponty em Salvador
conjunto, estes aspectos revelam a estética de Merleau-Ponty como uma estética da comuni-
cação, por ressaltar a comunicabilidade estética e por fundá-la numa comunhão sensível, que
não se retringe à natureza mas se desdobra na história pela qual se plasma a própria cultura.
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Motricidade e expressão musical:
arte e técnica em Merleau-Ponty
É com grande prazer que vejo a música voltando a ocupar seu lugar junto à filoso-
fia, lugar que lhe era reservado na antiguidade e mesmo na idade média, e que foi se
perdendo na idade moderna, quando a música passou a ser vista como objeto da cul-
tura e do entretenimento. A própria musicologia tem, inadvertidamente, contribuído
para com uma concepção na qual música e pensamento parecem estar dissociados –
como se a música precisasse de um ato intelectivo e verbalizador para aceder a um esta-
tuto filosófico ou científico (“sério”), para ter dignidade epistêmica. A compreensão da
ação musical enquanto pensamento é algo recente, assim como a compreensão de que
essa ação pode tornar-se também – por que não? –, ela mesma, filosofante.
Nesse sentido, a fenomenologia vem nos mostrando a importância de se diferen-
ciar ‘A Filosofia’ do filosofar, ‘A Arte’ do fazer artístico, ‘A Música’ do fazer musical – a
inicial maiúscula apontando para um saber institucionalizado, um conjunto determi-
nado de “conteúdos” passíveis de posse e domínio. Interessante observar como, por
exemplo, o termo alemão antigo para música, Tonkunst (arte dos sons), foi aos poucos
substituído pelo termo Musik: em Musik encontramos o fazer musical institucionali-
zado da história das Belas Artes e das obras-primas, onde se compreende sob o título
Música o conjunto das obras dos “grandes mestres”. Assim, o estudo da Música parece
significar hoje o estudo das obras de Bach, Beethoven e Chopin, assim como o estudo
da Filosofia compreende a leitura das obras de Aristóteles, Descartes e Kant. Mais que
música e filosofia, estamos tendo história da música e história da filosofia (numa no-
ção pobre do termo ‘história’ em que esta se transforma em mero inventário – note-se
portanto que não estou criticando a necessidade do estudo da história nem menos-
prezando sua importância, apenas alertando contra seu mau uso). É preciso evitar a
impressão de que as obras estariam acabadas, que a história da arte e do pensamento se
fariam por acumulação e reunião de obras (a história como história pomposa, oficial
e celebrativa). Seria preciso, como afirma Merleau-Ponty, ir ao museu e à biblioteca
como ali vão os artistas, os escritores e os pensadores: na alegria e na dor de uma tarefa
interminável em que cada começo é promessa de recomeço.
Mesmo que as referências à música ao longo da obra de Merleau-Ponty sejam um
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Alberto Andrés Heller
tanto escassas, sua contribuição para com a compreensão do fenômeno musical é ines-
timável, contribuição essa que se faz presente especialmente através de temas tais como
corpo, motricidade, expressão, temporalidade e liberdade. Esses temas, da forma como
são mostrados e discutidos por Merleau-Ponty, põem em xeque o esquema teleológi-
co clássico da prática musical no qual o instrumentista 1) lê a partitura (decodifica a
escrita musical), 2) compreende e organiza o sentido musical da obra, 3) organiza os
movimentos do seu corpo para que este execute a música de forma satisfatória e efi-
ciente ao instrumento, 4) melhora sua execução a cada repetição a partir de critérios
de escuta, análise, crítica e correção. Mesmo que no decorrer do estudo de uma obra
musical se possa diferenciar e vivenciar essas etapas assim descritas, o que experiencio
durante o tocar não é a separação entre eu, corpo, instrumento, movimento e som,
mas um todo difuso onde os limites entre um e outro se fundem e se con-fundem.
Toco esquecido dos meus dedos, assim como o orador fala esquecido dos seus lábios e
o dançarino das suas pernas.
Ao fazer música, esta não se dá na perspectiva de um objeto para uma consciência
apreendido através de um ato; “não se sai do dilema racionalismo-irracionalismo en-
quanto se pensar a “consciência” e os “atos” – nos diz Merleau-Ponty -; o passo decisivo
é reconhecer que uma consciência é, na verdade, intencionalidade sem atos, fungierende,
que os próprios “objetos” da consciência não são o positivo diante de nós, mas núcleos de
significação em torno dos quais gira a vida transcendental, vazios especificados”.1 Admitir
isso nos afasta definitivamente da noção cartesiana de sujeito e nos impele a perceber
o sujeito antes como campo, como dimensão e sistema de estruturas abertas. Curio-
samente, porém, os discursos sobre o fazer musical têm mostrado certa relutância em
abandonar a idéia de uma consciência enquanto poder de representação e síntese,
insistindo na noção segundo a qual os movimentos do corpo (e conseqüentemente a
música) proviriam de um ‘eu’ detentor das experiências e com total poder de escolha
e deliberação. Basta que se leia qualquer método ou manual destinado à interpretação
musical para que ali se encontre as mais diversas orientações referentes à aquisição de
uma “boa técnica”, esta compreendida enquanto controle eficiente do corpo.
Tal noção de técnica concebe o corpo como instrumento à mercê da vontade,
como máquina à disposição de um sujeito que a manejaria. Nem seria preciso recor-
rer a Merleau-Ponty para criticar a idéia de um corpo-objeto habitado e operado por
um “homenzinho interior” – basta um pouco de observação e bom senso para perce-
ber que a grande maioria dos nossos movimentos ocorre independentemente de nos-
sa vontade e do nosso poder de deliberação: ao levantar-me da cadeira, por exemplo,
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passagem dessa relação. Doravante a música existe por si e é por ela que todo o resto existe.
Não há aqui lugar para uma ‘recordação’ da localização das teclas e não é no espaço obje-
tivo que o organista toca”.3
Gostaria de analisar, ao longo das próximas linhas, de que maneira “doravante a
música existe por si”. Afinal, é essa a sensação descrita por tantos músicos: que, ao to-
car, não são mais “eles” que tocam o instrumento, mas é o instrumento que os toca.
Nessa reversibilidade, o músico deixa de ser o autor dos sons para ser o lugar de passa-
gem do fenômeno sonoro; em vez de fazer a música, ele apenas permite que a música
aconteça. Em ambos os casos continuamos tendo músico, corpo, instrumento, movi-
mento, música – mas o modo de relação entre esses elementos muda (e aqui Merleau-
Ponty se reporta à noção de fundação proposta por Husserl4 - noção segundo a qual
as partes de um todo se relacionam de forma não-independente, formando entre elas
uma relação de mútua fundamentação ou enlace necessário – bem como à noção de
Gestalt). Se for verdade que, como se diz, a obra fascina no momento em que o autor
desaparece,5 ou ainda, que quanto maior o mestre, mais completamente ele desapare-
ce por trás da obra,6 então precisamos verificar o que exatamente desaparece, e como
isso se dá. [Importante observar que essas descrições não pertencem única e exclusiva-
mente ao mundo da música; veja-se, por exemplo, as pesquisas do psicólogo húngaro
radicado nos EUA Mihaly Csikszentmihalyi, que obteve descrições similares junto a
músicos, cirurgiões, alpinistas, jogadores de xadrez, dançarinos e outros profissionais,
denominando o fenômeno estado de fluxo - Flow: um estado no qual o praticante se
deixa absorver tão completamente em sua atividade que não mais tem a sensação de
um eu nem de tempo: imerso na ação, ele se torna a ação, se confunde com a ação,
deixando de se perceber como aquele que a executa7].
Tal agir não se mostra como uma mera “ponte” que liga o ator ao fruto da ação;
trata-se da pessoa em ação, nela e apenas por ela se reconhecendo, de forma que ao
correr se reconhece como corredor, ao comer se reconhece como comedor. Não há um
eu que corre nem um eu que come, mas um correr e um comer (poderíamos até te-
cer um paralelo com o Gênese, onde as primeiras palavras de Deus teriam sido “Haja
luz”, e não “Eu ordeno que se faça a luz”; não há, nessas palavras, um “eu” que origina
a ação, mas apenas a ação). Ao correr não me represento a mim mesmo, muito menos
3 Ibidem, p.201-202.
4 HUSSERL: Logische Untersuchungen III (Zur Lehre von den Ganzen und Teilen).
5 LEFORT: Posfácio a MERLEAU-PONTY: O visível e o invisível, p.251.
6 HEIDEGGER: Gelassenheit, p.10.
7 Paralelos com esse “estado de fluxo” podem ser encontrados em várias práticas budistas, especialmente no Zen, que se re-
fere a esse estado de consciência como mushin ou munem (chinês: wu-hsin): não-ego, não-identidade, estado de não-mente,
estado de não-pensamento.
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8 LEE: Gelassenheit und Wu-Wei – Nähe und Ferne zwischen dem späten Heidegger und dem Taoismus, p.41.
9 HEIDEGGER: Carta sobre o humanismo, p.1.
10 Cf. também noções de awareness (Gestalt) e consciência perceptiva (Husserl), bem como as expressões “consciência aguda do
difuso” e “consciência de bruma” citadas por Barthes (a propósito de Baudelaire) em O Neutro (p.203).
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coisas (“falando” consigo mesmo); por isso aconselham os músicos: ao tocar, não pen-
se, simplesmente se concentre no que está fazendo. Nesse conselho, porém, ronda ain-
da a noção vulgar de técnica, que prevê uma consciência que dita ordens a um corpo
(através de “falas” tais como dobre o braço, estique a perna etc.), de tal modo que se
pensaria poder silenciar essa fala na forma de um “toque e não pense”. Mas o tocar já
é o pensamento do corpo; o pensamento não está ‘no’ corpo, ele não é um objeto solto
dentro de uma caixa: o corpo é pensante. Não estamos num corpo, não ocupamos um
corpo: somos um corpo.
‘Ter um corpo’, ‘ser um corpo’. A discussão sobre ter e ser é, na verdade, uma dis-
cussão já bastante antiga. Um dos primeiros pensadores a sistematizar tal distinção foi
Gabriel Marcel, em sua obra justamente intitulada Étre e Avoir (Ser e Ter), publicada
em 1935 (também o psicanalista Erich Fromm publicou, em 1976, uma obra com o
mesmo título e com uma visão similar relativa a esses termos). Para Marcel, ter um
corpo estabelece, através da relação de posse, a idéia do corpo como objeto. Através
da posse, meu corpo torna-se um isso, uma coisa, e enquanto coisa torna-se exterior a
mim. Segundo Marcel, o primeiro objeto, “o objeto-tipo com o qual me identifico, e que,
portanto, me escapa, é meu corpo. Parece que aí estamos no reduto mais secreto e profundo
do ter. O corpo é o caso típico do ter. (,,,) No momento em que penso meu corpo como ob-
jeto, deixa de ser meu. O meu corpo enquanto meu não é algo que tenho. O que tenho, sob
certo aspecto, permanece exterior a mim. Posso transferi-lo a outrem sem que atinja essen-
cialmente meu ser. Posso perder o que tenho sem deixar de existir. Isso já não acontece com
meu corpo. Por outro lado, ele resiste a tal tipo de reflexão, pois, mais exatamente, sou meu
corpo. A rigor, meu corpo não é instrumento, pois instrumento só existe em relação ao pró-
prio corpo como prolongamento do mesmo. O meu corpo não é mediador entre o meu eu e
o objeto. Seria instrumento de quê? Se responder da alma, atribuo-lhe funções corpóreas”.11
Gabriel Marcel se opõe, assim, a uma visão ‘instrumental’ do corpo, na qual este
se tornaria não um corpo-sujeito, mas um corpo para um sujeito. Nesse sentido, ao di-
zermos ‘meu corpo’ estaríamos nos colocando em relação a ele da mesma forma como
nos colocamos diante de qualquer objeto – como ao dizer, por exemplo, ‘meu livro’.
Segundo Marcel, a identificação com o corpo pelo modo de um ter faz com que ele nos
escape, pois, ao representá-lo para mim mesmo, já não o sou, apenas o penso, fazendo
dele um corpo-idéia. Dessa forma, pareceria que o modo do ter instituiria uma espécie
de “alienação” entre sujeito e objeto, uma quase “impossibilidade” de relação, senão
pela relação causal, e que uma atitude “existencialista” poderia reuni-los. Já Merleau-
Ponty aborda a questão por outro ângulo, preferindo afirmar que devemos ultrapassar
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ação tem caráter instrumental? Não necessariamente. Heidegger diferencia, aqui, dois
tipos de técnica: uma de caráter causal, instrumental (técnica em seu senso comum de
produção de algo – onde, mais que uma ação propriamente, teríamos uma operação)
e outra que ‘se deixa estar em si mesma’. Heidegger nos recorda que produzir, em gre-
go, é “tíkto; a raiz tec desse verbo é comum à palavra tékhne. Tékhne não significa, para
os gregos, nem arte, nem artesanato, mas um deixar-aparecer algo como isso ou aquilo,
dessa ou daquela maneira, no âmbito do que já está em vigor. Os gregos pensam a tékhne,
o produzir, a partir do deixar-aparecer. (...) A essência do produzir que constrói não se
deixa, porém, pensar nem a partir da arquitetura, nem da engenharia e nem tampouco a
partir da mera combinação de uma e de outra”.15 A essência tanto do construir quanto
da técnica não está no produto da ação, mas na própria ação, compreendida no ‘dei-
xar-aparecer’ a que se refere Heidegger. A diferença entre uma técnica com ênfase na
criação e outra com ênfase no criado (na técnica como meio eficaz para se alcançar um
fim – o produto) pode parecer sutil ou mesmo inexistente, já que, de alguma forma,
ambas contém o produtor, o produzir e o produto. Mas existe, sim, essa diferença, e
ela tem conseqüências importantes. Ao ver na técnica apenas um ‘meio para um fim’,
diferencio ‘meio’ e ‘fim’ e os relaciono num princípio de causa e efeito. Assim, movo
as mãos e os dedos para produzir uma melodia ao instrumento, adquiro uma boa pos-
tura para causar uma boa impressão, movo meu corpo de uma forma tal e qual para
que o público veja uma determinada expressão em meu corpo, de forma que a técnica
passa a agir pela representação de um movimento, guiada pela representação de um
objetivo. Onde se perseguem fins, aplicam-se meios, onde reina a instrumentalidade, aí
também impera a causalidade. E onde impera a causalidade temos não uma ação, mas
uma operação, caracterizada, ao contrário da ação, por ser forçosamente regulada em
seu decurso; trata-se, então, de uma ação induzida, solicitada, mediatizada - um afazer
ao invés de um fazer.
A outra concepção de técnica é a que se volta à ação em si-mesma. Claro que essa
ação gera um produto, mas esse produto é apenas uma conseqüência natural da ação.
Não há seqüência temporal entre a expressão e o exprimido, pois ambos não estão dis-
postos seqüencialmente no tempo: ambos pertencem a uma mesma temporalidade (ou
intemporalidade). Trata-se de uma técnica que não sabe de si mesma, que age não sa-
bendo que age, que age esquecida de si. Ela não “produz”: ela deixa aparecer. A motrici-
dade dessa técnica é uma motricidade rítmica e espontânea, e espontânea é também sua
expressão.
Merleau-Ponty aborda essa questão sob o tema da passividade, enquanto Heidegger o
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todo indiviso onde, mais que acausalidade, o que ocorre são infinitas causalidades.
Nesse deixar-me levar, nesse ceder, nesse permitir – temos um Dizer-Sim17: permito-
se arrebatar à pertença de um campo, deixo-me vir à proximidade do longínquo, permi-
to-me atrair e demorar no caminho que encaminha, abro-me à pregnância do tempo, e
ali repouso. Quando dizemos repouso não é porque não há ação, mas porque há repouso
na ação, isto é: a ação não busca seu sentido fora do próprio movimento, fora da própria
ação. Como não coloca o fim ou a meta fora da própria ação, não quer, não expecta:
espera em si mesma, e nessa espera faz-se, espontaneamente. Não se trata da imperma-
nência na duração, mas da permanência na não-duração (uma intemporalidade, mais
que uma atemporalidade). A ‘inação’ não é passiva: é possível. E ocorre não porque a
fazemos, mas porque a deixamos acontecer.
O calígrafo Zen, por exemplo, busca essa espontaneidade ao dar preferência à primei-
ra ação, à primeira pincelada, que não deve ser “corrigida” nem “melhorada” (cf. também
happening e action painting). O artista que pratica o shodô (a arte da caligrafia – em japo-
nês: sho, escrever; do, caminho) interessa-se pelo ritmo da linha18, onde se revela o Ki ou
Ch’i (parece não haver uma tradução ideal para ki nas línguas ocidentais: ora é traduzido
por energia, ora por espírito ou respiração vital - segundo alguns, encontra certa relação
com o pneuma grego). Ritmo é tempo, ritmo é corpo. Podemos dizer que o ritmo é uma
compreensão temporal e motriz que se dá com/em meu corpo, anterior a qualquer ou-
tro tipo de compreensão19. Na noção de ritmo está implícito não um corpo-objeto co-
mandado por um sujeito, mas um corpo expressivo (o corpo-vivido ou corpo-próprio,
descrito pela fenomenologia). Para Merleau-Ponty, esse corpo não é um movido mas um
movente: nele nos deparamos com uma motricidade espontânea que independe do meu
poder de decisão e de deliberação; há um esquema corporal através do qual me movo
integrado ao espaço (uma motricidade de situação, não de posição), meu corpo em re-
lação de mútua fundação com os outros corpos e com tudo que o rodeia. Sei de mim
esquecido de mim; não percebo para, somente então, tomar a decisão de mover-me:
movo-me perceptivamente, sem antes e depois, apenas expressão viva em contínua
atualização. O movimento não parte de um eu, mas se faz em mim. E isso é ritmo.
Compreender o ritmo é ter acesso a essa organização silenciosa, poder de reunião
para além das dicotomias eu-mundo, sujeito-objeto, pessoal-impessoal. No shodô se
revela a escrita da impermanência, que a caligrafia revela como movimento original,
17 Cf. palavras de Zarathustra: “Para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim”. NIETZSCHE: Also
sprach Zarathustra (Von den drei Verwandlungen), KSA, vol.IV, p.31.
18 SAITO: O shodô, o corpo e os novos processos de significação, p.40-43.
19 Sobre a questão do ritmo, remeto o leitor ao meu livro Fenomenologia da expressão corporal (que teve como base minha
dissertação de mestrado Ritmo, motricidade, expressão: o tempo vivido na música).
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ainda muito por pesquisar a partir dessa experiência da prática musical, que se torna
assim um campo privilegiado para o estudo da temporalidade. Dizem que a música
é uma “arte temporal” porque ocorre no tempo; mas ela não ocorre “no tempo”: ela
é tempo, ela cria tempo (criação em sentido radical, como propõe Merleau-Ponty
– e talvez pudéssemos ou mesmo devêssemos ler também nesse sentido de criação
radical a famosa frase de Agostinho, de que “não houve tempo nenhum em que não
fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo”22). Meu corpo é a realização do
tempo, e é por isso que podemos dizer, junto com Merleau-Ponty, que o tempo está
no coração da expressão.
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Paisagem e pintura:
arte e visibilidade em Merleau-Ponty
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Iraquitan de Oliveira Caminha
ao lado de um quadrado verde sobre o fundo de um círculo amarelo ou, até mesmo,
de uma figura que não sugere nenhuma designação específica, mas que se faz visível
para nosso olhar.
Ora, nós não queremos pôr o problema da história da pintura, tentando mostrar
seu desenvolvimento no que diz respeito à utilização de novas técnicas, à formação
de diferentes escolas, à concepção de vários modelos estéticos ou de outros aspectos
que determinam o progresso da arte de pintar. Ao contrário, nós queremos, essen-
cialmente, examinar o poder de a pintura acionar o visível, quer dizer, um tipo de
arquitetura do quadro, que gera a instauração do aparecer das formas percebidas ou
o nascimento mesmo do visível. Desse ponto de vista, mesmo que a pintura possa
ser utilizada para tatuar uma parte do corpo humano, como signo de uma posição
social de acordo com certas comunidades primitivas, para traçar sobre os muros das
cavernas uma cena de caça como meio de exaltar a atividade que assegura a sobre-
vivência de uma tribo ou para desenhar figuras abstratas sobre uma tela como ma-
neira de divulgar um movimento artístico determinado, seu desafio é sempre o de
inventar a visibilidade (BENOIST, 1997, p.6). É sob esse ângulo que toda forma de
pintura, qualquer que seja a época à qual nós nos refiramos, tem como “finalidade
a apresentação do ser no modo do visível” (DE WAELHENS, 1962, p. 433). Dessa
maneira, evoca-se a pintura como a arte de nos colocar na irrupção do fenômeno do
aparecer ou do porvir visível.
Está claro que é o acesso ao ser visível ou o próprio percebido revelado pela
pintura que nós queremos explorar. Em outras palavras, nossa pesquisa limita-se a
mostrar o papel da pintura para apresentar o nascimento do visível, e não, somente
daquilo que vemos particularmente figurar em um quadro, como se a experiência
perceptiva fosse reduzida à indicação de objetos. Evidentemente, nós não queremos
ignorar a importância da história da pintura para entender a evolução das diversas
maneiras de apresentar as formas percebidas animadas sobre uma tela2. Nossa in-
tenção é pôr o problema da germinação do visível no quadro, e não, designar cro-
nologicamente as múltiplas transformações que a arte pictórica sofreu. Daí procede
nossa proposta de compreender a pintura como obra criadora do visível. Assim, há,
na ocupação do pintor, qualquer que seja o período histórico de sua pintura, a tarefa
2 Nós não podemos negar, por exemplo, que o instrumento das técnicas de perspectiva, utilizadas pela pintura da Renascen-
ça, é um recurso indispensável para se demarcar da pintura medieval que mostrava um mundo sem espessura. Mas uma coisa
é considerar esse instrumento como um elemento que determina a filiação à escola que quer ignorar o mundo supranatural
para se dedicar ao mundo da ciência e, uma outra coisa, é tratar esse instrumento como uma invenção que quer tornar exis-
tente a manifestação do visível para o olhar, o que todas as pinturas têm em comum. É nessa última compreensão que nós
colocamos a reflexão de Merleau-Ponty sobre a pintura. Nesse quadro, toda forma de pintura pode ser encontrada quando
nós evocamos como problema o nascimento do visível enquanto resultante da ação do mundo de se tornar visível no quadro.
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Iraquitan de Oliveira Caminha
que está lá no coração do mundo, está também no coração de sua visão. Entretanto,
Merleau-Ponty não põe aqui o problema do mestre de uma escola de pintura, que
conhece uma maneira de ver o mundo que os outros ignoram. O filósofo quer subli-
nhar a formação da visão que o pintor não faz a partir da atividade de constituição do
entendimento como uma possessão intelectual, mas que se faz nele como uma relação
continuada com as paisagens do mundo percebido.
O pintor nunca abandona a “fascinação” para com o mundo percebido (MER-
LEAU-PONTY, 1992b, p. 31). Ele é o revelador desse mundo que jorra no quadro,
conforme seu poder de se pôr a aparecer ou de se fazer visível para o olhar. A pintura
é o lugar privilegiado de um tipo de “ontogênese da visão”, que caracteriza a dimensão
da espontaneidade da visão em estado nascente (DIAS, 1978, p. 198). O exercício do
olhar daquele que faz a pintura revela, de maneira exemplar, o nascimento do mundo,
fazendo-se visão. Ora, aqui, nós podemos constatar a existência de uma continuidade
entre a arte do pintor e a percepção, enquanto experiência de ter um mundo através
do corpo que se põe a ver. É nesse sentido que “a interrogação da pintura visa, em
todo caso, a essa gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo”, diz Merleau-Ponty
(1992b, p. 30). A atividade da pintura é, então, um prolongamento da vida perceptiva
como a experiência de abrir-se ao surgimento do mundo.
Nesse contexto, a filosofia de Merleau-Ponty encontra-se com a pintura porque am-
bas põem o problema do visível, recorrendo ao porvir visível do mundo para aquele que
vê. Da mesma maneira que “o sentido da filosofia é o sentido de uma gênese”, a pintura
está também orientada para o sentido de uma gênese, visto que é considerada como o
esforço de instauração do visível (MERLEAU-PONTY, 1993, p. 103). Em outras pa-
lavras, de maneira análoga, a filosofia de Merleau-Ponty e a pintura nos mostram que o
mundo é aquilo que nós vemos como a expressão de seu aparecer, e não, o que é conce-
bido como uma construção mental instituída pela clareza do pensamento. Sem dúvida
nenhuma, essa relação marca a oposição de Merleau-Ponty ao modelo tradicional de
tratar a visão, sustentado pela Dióptrica de Descartes.
Merleau-Ponty considera que a Dióptrica de Descartes é a tentativa de reconstruir o
visível, na base de representações meramente intelectuais, em lugar de considerá-lo a par-
tir de nossa relação insuperável com o mundo percebido. O projeto da filosofia de Des-
cartes é exatamente livrar-se dessa relação para estabelecer, com precisão, a visão como
uma operação do pensamento, independentemente do mundo que nossos olhos podem
ver. Com efeito, vemos somente aquilo que pensamos, pois o visível é apenas uma pro-
jeção de um mundo pensado. O mundo, aqui, é sempre visto de fora, como se, através
de um pensamento de ver, que confere uma exterioridade radical ao mundo percebido,
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3 Aqui, a visão é considerada como se “toda potência do quadro [fosse] a de um texto proposto a nossa leitura, sem nenhuma
promiscuidade do vidente e do visível” (MERLEAU-PONTY, 1992b, p. 40).
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Iraquitan de Oliveira Caminha
que não é a soma dos objetos que nos rodeiam, é, no fundo, o “casal” que nós formamos
originariamente com o mundo (MALDINEY, 1973, p. 18).
É verdade que Merleau-Ponty reconhece que não há visão sem pensamento. Apesar dis-
so, segundo ele, não basta pensar para ver. A visão depende sempre daquilo que acontece em
nosso corpo através das paisagens do mundo percebido em que nós existimos como seres
que podem ver. Se, de um lado, nós não podemos nos livrar da consciência, de outro, não
podemos nos livrar do corpo. Aliás, como dissemos, é impossível tratar a consciência desliga-
da do mundo percebido quando ela se torna efetivamente consciência apenas com base em
uma vida perceptiva que não cessa de existir como ser aberta para o mundo. Aqui, Merleau-
Ponty decide fazer o que Descartes quis evitar em suas meditações, a saber, habitar o visível
para poder tratar o problema da formação da visão. É no quadro de uma reabilitação da
visão, através daquilo que se oferece a ser visto, que “o mundo percebido (como a pintura)
é o conjunto dos caminhos de meu corpo e não uma multidão de indivíduos espácio-tem-
porais” concebida pelo pensamento.
Afinal de contas, Merleau-Ponty (1992b, p. 25) visa, precisamente, mostrar que a visão
“aprende apenas vendo, aprende apenas de si mesma”, quando o sujeito que percebe se en-
gaja na aventura da experiência de ver. De acordo com Merleau-ponty (1991, p. 18), nós
não apenas vemos o mundo, mas devemos também “aprender a vê-lo”, que significa dizer
que um sujeito pode perceber o percebido porquanto tem a possibilidade de fazê-lo visível4.
Fazê-lo visível significa dizer que o olhar sempre oferece a nossa visão um visível ainda não
visto. O que mais nos oferece para ser visto não é o mundo partes extra partes, submetido às
operações do pensamento puro, mas um mundo perceptível, que se mostra dinamicamente
para nosso olhar.
Para Merleau-Ponty, o pintor é aquele que quer nos ensinar a ver o mundo per-
cebido como o ser mesmo do visível, que sempre oferece algo a mais a ser visto. Em
outros termos, “o pintor nos dá a ser visto um inédito do visível”, que mobiliza nos-
so olhar para ver o mundo de uma maneira constantemente renovada (CAVALIER,
1998, p. 34). É graças a esse ponto de vista, fundado na retomada constante da ex-
periência de ver, que o filósofo prefere adotar a teoria da visão do pintor em lugar de
aceitar os pressupostos da Dióptrica de Descartes. O pintor nos abre definitivamente
o caminho, que permite examinar o movimento do porvir visível do mundo percebido
para além das representações do pensamento sob a forma de conceitos matemáticos ou
físicos. Nesse contexto, com efeito, a visão do pintor não é mais um olhar sobre um
fora, como se o mundo estivesse diante dele, através de uma série de representações.
4 Da mesma maneira, Heidegger põe o problema da aprendizagem quando examina o problema do pensamento. Segundo
ele, “para que o pensamento possa estar em nosso poder, nós devemos aprendê-lo” (HEIDEGGER, 1959, p. 22).
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De acordo com Merleau-Ponty, Cézanne fez de sua pintura uma tentativa de ex-
pressão do ser, quer dizer, “de fixá-lo vivo sobre a tela” (MADISON, 1993, p. 90). É
sempre o elo originário perceptivo do ser com o mundo que Cézanne procura desven-
dar e expor em suas telas. Ele deu sentido a sua obra de pintor, através de sua própria
percepção do mundo, que é o fundamento das paisagens reveladas por suas telas. Ele
queria retornar para o mundo mesmo e pintá-lo tal como ele se manifesta, para nós,
em nossa experiência primitiva de perceber (BARBARAS, 1994, p. 63). É no desejo de
retorno ao mundo que reside todo o esforço de Cézanne de mostrar o mundo se fazen-
do mundo. Para isso, ele precisava, por exemplo, de cem sessões de trabalho para pintar
uma natureza morta e cento e cinqüenta para pintar um retrato (MERLEAU-PONTY,
1966, p. 15). Isso não significa que o pintor assume uma perspectiva realista que pre-
tende copiar uma realidade preexistente, mas ele tinha a intenção de pintar o mundo
sempre presente para nosso olhar, “este mundo primordial” em que estamos ancorados
(MERLEAU-PONTY, 1966, p. 23). É na base dessa compreensão que Merleau-Ponty
encontrou uma aproximação entre sua filosofia e a pintura de Cézanne.
Os impressionistas e, em especial, Pissaro, foram, para Cézanne, uma fonte de ins-
piração por considerarem a pintura como “o estudo preciso das aparências”, realizado
através de uma relação direta com as paisagens do mundo percebido (MERLEAU-
PONTY, 1966, p. 19). A perspectiva estética dos impressionistas queria fazer aparecer
na pintura a maneira mesma pela qual os objetos tocam nossa visão ou caem sob nos-
sos sentidos. Entretanto, Cézanne separou-se rapidamente dessa perspectiva estética
porque começou a constatar que a pintura não deve reproduzir sobre uma tela um
conjunto de percebidos comparáveis à natureza ponto a ponto, mas a ordem espon-
tânea da própria natureza. Com efeito, a tonalidade do quadro não está mais limita-
da à mistura das sete colores do prisma, mas à combinação de várias cores do prisma
ricamente alargado que comporta também as terras, os ocres e os pretos. A utilização
de uma grande variedade de cores é encarada por Cézanne como o meio de obter em
seus quadros a vibração que emana de todo espetáculo visível, vivamente presente ao
nosso olhar. A finalidade do pintor não é mostrar, por meio de sua pintura, percebidos
dissolvidos na atmosfera da paisagem, mas sim, tornar visível a densidade da presença
maciça daquilo em direção a que nosso olhar se projete para ver. Em outros termos,
ele queria pintar não os dados dos sentidos, mas a coisa, quando está aparecendo como
expressão da visibilidade da paisagem em que nosso olhar se situa para poder realizar
a experiência de ver.
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6 Segundo Heidegger, “início de realização” significa exatamente “instituir” (HEIDEGGER, 1962, p. 37).
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Cézanne considera a paisagem como um organismo nascendo que ele queria tra-
zer vivo para um quadro. Já que sua pintura não é somente a transposição de uma
paisagem primeiramente vista do lado de fora e, depois, disposta em um quadro, nós
pensamos que ele quer deixar a própria natureza se mostrar através de suas pinceladas
vibrantes. Aqui, o fenômeno perceptivo é apenas a expressão que emerge da paisagem
vivamente presente para o nosso olhar. Em nossa opinião, há um sentido de expressão
que não é derivado apenas da maneira de viver que Cézanne expressa em seus qua-
dros, nem da possibilidade de sugerir diversas interpretações em torno dos assuntos
exteriorizados por suas telas, mas sim, do movimento mesmo de aparecer do fenôme-
no perceptivo enquanto fenômenos que se mostram ou se fenomenalizam de acordo
com sua pertença a uma paisagem freqüentada por nosso olhar. Entretanto, nós não
queremos negar que há um elo entre a vida e a obra do artista e que podemos sempre
submeter uma obra a interpretações para saber quais significações ela porta. Em outros
termos nós não queremos contestar que um caráter esquizóide, provavelmente desen-
volvido por Cézanne, não seja exprimido em seus quadros ou que seja possível identi-
ficar a expressão de sofrimento ou de alegria manifestada em uma tela determinada de
Cézanne. Sob esse ângulo, nós não podemos recusar o fato de que existe uma maneira
de examinar o problema da expressão da pintura e de toda manifestação artística em
geral, a partir do caráter simbólico da obra de arte. Isso quer dizer que é possível, por
exemplo, sustentar que o desenho de uma criança “não corresponde sempre à realida-
de das coisas, mas à expressão de um caráter e de uma atitude” (MERLEAU-PONTY,
1998, p. 220). Todavia, queremos pôr em evidência uma outra abordagem do proble-
ma da expressão fundada sobre o movimento do porvir visível daquilo que nós vemos,
ou seja, sobre a juntura entre o aparecer e o movimento de se mostrar ou de se exterio-
rizar do fenômeno perceptivo.
Nós situamos aquilo que designamos como “a expressividade do fenômeno” no
contexto em que Cézanne afirma que ficou muito tempo sem poder pintar a mon-
tanha Sainte-Victoire, porque ele imaginava a sombra “côncava” como se ela existisse
centrada sobre si mesma (GASQUET, 1988, p. 135). Portanto, é somente após ter
mantido seu olhar de maneira a ver que a sombra é, no fundo, “convexa”, quer dizer,
fugindo de seu centro, que ele retomou sua série inacabada da montanha Sainte-Vic-
toire (GASQUET, 1988, p. 135). É exatamente essa compreensão de convergência
em direção para o exterior que nos dá o fundamento para falar de uma expressividade
do fenômeno. Evidentemente, isso não quer dizer que a expressividade é usada, aqui,
para afirmar a exteriorização de um ser já existente, mas para sublinhar que a ação de
se exteriorizar é o modo mesmo do visível que se instaura como visível no mundo per-
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cebido. Nós podemos compreender o sentido que Merleau-Ponty (1966, p. 26) quer
dar à expressividade quando considera que “a expressão daquilo que existe é uma tarefa
infinita”. Mais uma vez, nós podemos constatar o encontro entre a pintura de Cézanne
e a filosofia de Merleau-Ponty em relação ao caráter inacabado de suas obras.
Cézanne e Merleau-Ponty procuram compreender nossa experiência de ser no
mundo, que se faz dinamicamente visível para nós. Ambos se interessam pelo tema da
percepção a partir da visão que se estabelece na relação que nós mantemos por meio de
nosso corpo com as paisagens do mundo percebido. É claro que, ver implica sempre um
olhar que se dirige em direção para o mundo, como já assinalamos. Dessa maneira, as
coisas percebidas, concebidas pelo pensamento como objetos identificados precisamen-
te, perdem sua estabilidade par ganhar um estatuto variável em função da paisagem em
que elas estão situadas, quando o olhar se lança livremente no conjunto aberto do mun-
do para ver cada vez mais. É a esse enigma de “ser apenas pelo outro” que nós referimos
todas nossas perguntas sobre o problema da percepção e do aparecer em Merleau-Ponty.
Nós pensamos que é na visão do pintor e, particularmente, na visão de Cézanne, que
Merleau-Ponty indica um encaminhamento para seguir todos os momentos do proble-
ma. Assim, é no seio da pintura, que “oferece à visão não objetos, mas o elo entre os ob-
jetos”, que nós podemos encontrar a paisagem sobre a qual se abrem nossos olhos para
construir a ontogênese da visão (COUQUELIN, 1989, p. 72). Isso não significa que
Merleau-Ponty considera que a visão de Cézanne é intrinsecamente diferente daquela
de todos os outros sujeitos que percebem, ele quer assinalar que, na visão do pintor, há a
vontade de pôr em evidência o enigma da própria visão.
Segundo Merleau-Ponty (1966, p. 33), os quadros nascidos do olho de Cézanne são
manifestações de uma vida muito singular e, ao mesmo tempo, do “logos infinito” do
mundo sensível que nos envolve e nos traspassa. Merleau-ponty (1993, p. 60-61) quer
pôr em discussão o hiato, introduzido na história da pintura por Malraux, entre a sub-
jetividade criadora do pintor e o mundo percebido que nos é revelado por seus quadros
(MALRAUX, 1947). Para Merleau-Ponty, na fase do estabelecimento do visível, as hesi-
tações do pincel do pintor, enquanto poder de expressão para além de todos os quadros
já realizados, e a intenção de criar o visível, enquanto expressão do mundo que se oferece
à visão na tela, são ações entrelaçadas. Com efeito, “a obra não se faz longe das coisas e
em algum laboratório íntimo, cuja chave só o pintor possuiria” (MERLEAU-PONTY,
1993, p. 68). A pintura é sempre um meio de comunicação com o mundo, quer dizer,
de encontro com o mundo que nos solicita continuamente a vivermos a experiência de
perceber. Por isso, para aplicar ou inventar uma técnica, o pintor precisa ser pintor já
no mundo.
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mundo7. Ora, em relação a essa opinião, a pintura é uma maneira de o pintor habitar
e assumir o mundo. Deve-se, assim, diz Merleau-Ponty (1966, p. 15), considerar que,
para Cézanne, “a pintura foi seu mundo e sua maneira de existir”. Por meio da pintu-
ra, Cézanne mostra que o mundo para o qual ele olha não está fechado em si, mas é
um meio aberto que, durante a vida toda, ele quis fazer viver em seus quadros. Nesse
sentido, o espaço do mundo percebido nunca é um espaço descrito sozinho como um
continente puro, como se pudéssemos pintar objetos dissolvidos no ar.
A pintura de Cézanne ilustra muito bem que as coisas percebidas, quando se apre-
sentam à visão, valem apenas pelo conjunto, já que não são objetos reconhecidos
separadamente. Aquele que vive a experiência de ver não é um observador absoluto
abordando o mundo do fundo do nada. Se o sujeito que percebe e os percebidos estão
sempre situados no mundo percebido, através de uma implicação mútua, o olhar não
pode ser considerado como um pensamento de sobrevôo que assiste, estaticamente, ao
aparecer do fenômeno diante dele, sem o pathos da admiração de estar já em relação
com o mundo. Evocando uma ontogênese da visão através do olho de Cézanne, Mer-
leau-Ponty pretende respeitar a exigência fenomenológica de abordar os percebidos
com base em seu modo de doação. E, simultaneamente, ele requer a necessidade de
examinar, de maneira ontológica, a instauração do porvir visível dos percebidos, na re-
alização dinâmica de seu aparecer, como expressão das paisagens do mundo percebido.
A abertura para o mundo que nosso olhar nos oferece não é independente do
movimento do aparecer perceptivo como apresentação de um mundo, porque, para
Merleau-Ponty, aquele que vê não pode se livrar “da contingência de uma situação”
(LEFORT, 1978, p. 142). Na experiência de ver no solo do mundo, nunca se vê um
percebido inteiro sob nosso olhar como uma realidade pensável que não comporta
nenhuma indeterminação. Aqui, o aparecer do percebido não é definido por si mes-
mo como um objeto determinado sobre o fundo de um nada prévio. Daí, liberado do
pressuposto de um nada prévio, nosso olhar pode retomar sua experiência de ver o
mundo para constatar a existência de uma tensão permanente entre os percebidos situ-
ados na paisagem de onde eles se fazem visíveis. É nesse sentido “que o visto não coin-
cide consigo mesmo, ele se produz como unidade de si mesmo e daquilo que o excede”
(BARBARAS, 1999, p. 205). Desse ponto de avista, o ser do visível não é distinto de
sua operação de se fazer visível, que se atualiza nas paisagens do mundo percebido.
É assim que, nos quadros de Cézanne, toda forma está submetida a uma dinâmica
de mutações em que nada existe senão pela vibração do todo sob nossos olhos. O pin-
7 De acordo com Merleau-Ponty, “o pintor é o único a ter direito de olhar sobre todas as coisas sem nenhum dever de apre-
ciação” (MERLEAU-PONTY, 1992b, p. 14).
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tor compreendeu muito bem que uma pincelada de cor a mais ou a menos e uma linha
auxiliar acrescentada são suficientes para transformar a configuração de suas telas. Para
Merleau-Ponty (1992a, p. 372), a pintura de Cézanne “é uma tentativa de encontrar a
fisionomia das coisas e dos rostos pela restituição íntegra de sua configuração sensível”.
É considerando a pintura nessa perspectiva que, para obter a articulação dos elementos
de uma paisagem como um sistema de instâncias múltiplas, Cézanne recorre às suas
célebres “deformações”, com a intenção de estruturar, de maneira dinâmica, a eclo-
são do visível em seus quadros (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 25). Provavelmente é
o visível, enquanto surgimento dinâmico de um mundo sob os olhos, que Cézanne
sempre queria pintar.
Nesse contexto, a invenção da fotografia, que tornou possível uma equiva-
lência entre tudo o que o olho vê e tudo o que a lente do aparelho “vê”, não in-
terrompeu as interrogações de Cézanne sobre o aparecer do mundo a partir da
pintura. Segundo ele, as aparências não esgotam o ser mesmo do porvir visível,
elas constituem apenas um aspecto dele. Os questionamentos de Cézanne sobre
a ação da pintura, tornando-se visível, fizeram dele o mais filósofo dos pintores
(DELACAMPAGNE, 1988, p. 20). Ele não somente queria pintar, mas também
dizer a verdade na pintura (DERRIDA, 1978, p. 6). A pintura de Cézanne é o
fruto de uma reflexão permanente sobre a manifestação mesma do visível ou o
brilho do aparecer que caracteriza, na sua essência, a arte de pintar. É por esse
motivo que Merleau-Ponty afirma que a pintura de Cézanne nos permite abor-
dar o pôr-se a se mover ou a êxtase do olhar que oferece à nossa visão o mundo
percebido como percepção da paisagem que porta a expressividade do fenômeno.
O que está em jogo, aqui, é a experiência de ver, que edifica a visão através dos
movimentos de nosso olhar, o qual está sempre situado nas paisagens do mun-
do percebido. Com efeito, logo que um sistema de interação entre os corpos que
percebem e as coisas percebidas e, ao mesmo tempo, entre as coisas percebidas
elas mesmas, é dado no solo de um mesmo mundo, o problema da espacialida-
de deve ser posto para compreender como o visível se torna visível por meio de
um olhar que vê apenas segundo uma paisagem. Trata- se, assim, de examinar
constantemente a constituição de um espaço em que aquele que vê se coloca a
distância para ver, porém continua em contato permanente com as paisagens do
mundo percebido. Nós queremos, então, pensar em um tipo “de espaço da con-
taminação”, por meio do qual aquele que vê só pode ver segundo uma aderência
primordial ao mundo a partir de seu corpo que percebe habitando o espaço (ES-
COUBAS, 1995, p. 35).
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Referências bibliográficas
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Passividade e criação:
pintura e abertura, a partir de Merleau-Ponty1
Stéphanie Ménasé
A idéia de trabalhar com a passividade nasceu de certa experiência que fiz em pin-
tura. Ao trabalhar, não tive de modo algum a idéia de um sujeito atuante; logo depois,
tive a impressão que o movimento me escapava.
Mas, se ao fazer, não sei quem faz, será que faço verdadeiramente? Será que aquilo
que creio “atividade” não seria apenas “passividade”? Formulei esta experiência pela
idéia de que no momento que pintava não havia ninguém. Ninguém. Porém, algo se
passou, pois me sentia diferente antes e depois do trabalho. Ninguém..., mas a experi-
ência de um antes e de um depois, de um tempo, de um momento suspenso ao olhar
de uma consciência. Tinha apenas a impressão de ter ganhado espaço após o trabalho.
Constatei: há algo no processo de pintar que escapa ao sujeito reflexivo, à consci-
ência de si.
Mas que algo me escape neste processo de pintar não basta para pôr em questão
a realidade de meu ato, já que não havia ninguém durante, mas depois me sentia um
pouco diferente, havia um quadro, que eu era portadora de gestos que aí se encontra-
vam, novas vias e novas interrogações, novos horizontes de pesquisa.
O que estava fazendo, o que estava acontecendo, enquanto estava totalmente ab-
sorvida na atividade de pintar?
Rapidamente constatei, depois de recolher alguns testemunhos, que esta experi-
ência foi partilhada por numerosos artistas e escritores. Observei traços semelhantes
desta experiência em Jean Arp, Bram Van Velde, Jean Dubuffet, Nicolas de Staël, Zao
Wou-ki, Robert Rauschengerg, Daniel Spoerri, etc.
Descobri em notas de Merleau-Ponty a mesma constatação em relação ao pensamen-
to que tive ao pintar. Merleau-Ponty declarava: “Nós não sabemos o que pensamos”2 e
assim põe a questão da transparência do pensamento para um sujeito que pensa.
1 Agradeço a Monclar Valverde pelo convite para participar do Colóquio por ele organizado em Salvador, Bahia, em home-
nagem ao pensamento de Maurice Merleau-Ponty e onde tive a oportunidade de expor pesquisas que me são caras. Também
agradeço calorosamente a Leandro Neves Cardim pela tradução de meu texto. Enfim, agradeço a Universidade Federal da
Bahia, o Ministério das Relações Exteriores e a Aliança Francesa de Salvador, Bahia, pela ajuda financeira.
2 Merleau-Ponty, M. “A ontologia cartesiana e a ontologia de hoje”, in Notes de cours au Collège de France, 1959 et 1961.
Editado por Stéphanie Ménasé e Prefácio de Claude Lefort. Paris… Gallimard, 1966, p.163.
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Stéphanie Ménasé
Além deste eco em relação ao meu trabalho, esta experiência tornou-me atenta à
frases de Merleau-Ponty como: “A filosofia nunca falou – não digo da passivida-
de: não somos efeitos – mas diria da passividade de nossa atividade”.3 Ou ainda:
“por mais novas que sejam as iniciativas, elas nascem no coração do ser, elas são
oriundas do tempo que irrompe dentro de nós”.4
Ora, na formulação da ontologia que encontramos em O olho e o espírito, redi-
gido durante o verão de 1960, Merleau-Ponty liga a visão à fissão do ser em nós:
“Ver é o meio de assistir de dentro a fissão do ser”5 (OE, p.81). Não é unicamente
pelo ato que esta gênese toma corpo sobre a tela, é na conjugação do movimento
(que é visão) e da visão (que é movimento) que ela toma corpo.
Merleau-Ponty, em seus últimos trabalhos, considera as pesquisas em arte
como fundamentais, e é nesta medida que ele se refere a elas; é também sob este
aspecto que quero me reportar a elas e interrogá-las para aproximar da passivi-
dade em obra no processo de criação. Minha experiência da passividade em pin-
tura, reforçada por um lado pelos discursos de Merleau-Ponty, e de outro, pelos
testemunhos dos artistas, me convenceu a interrogar esta estranha passividade
em obra.
3 Idem, Le visible et l’invisible. Editado e Posfaciado por Claude Lefor. Paris: Gallimard, 1964, nota de trabalho, novem-
bro de 1959, “Tel”, p.274.
4 Idem, ibidem, p.274.
5 Idem, L’Œil et l’esprit. Prefácio de Claude Lefort, Paris : Gallimard, 1964; reeditado por “Folio essai”, p.81.
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Merleau-Ponty em Salvador
A. O que é a passividade?
“O regime da gravidade –
Ministério das coincidências.
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Departamento
(ou melhor):
Regime da coincidência
Ministério da gravidade.
Quadro ou escultura.
Recipiente plano em vidro – [recebendo]
todo tipo de líquidos coloridos, pedaços
de madeira, de ferro, reações químicas.
Agitar o recipiente e olhar
Por transparência – ”8
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Merleau-Ponty em Salvador
11 Por exemplo, Kurt Schiwitters, MZ 1926, 2. selbst oben 1926, colagem 12,5 x 9,3 x 0,4 cm, Paris, Musée National d’Art
Moderne – Ceorges Pompidou.
12 Arp, J. Jours effeuillés. Paris: Gallimard, 1966, p.447.
13 Por exemplo, Joan Mitchell, A small garden (1980 ?) óleo sobre tela, 2.545 x 7.200 m, Paris, Musée National d’Art Mo-
derne – Centre Georges Pompidou. É preciso sublinhar que este quadro de 2 m 50 sobre 7 m 20 se intitula “Small garden”,
o que dá, é verdade, um “pequeno jardim”, mas um grande quadro.
14 Dubuffet, Apercevoir, 23 de março de 1958, in Prospectus. Op. Cit., t.2, p.61.
15 Hantaï, S. Citado por G. Didi-Huberman. L’étoilement. Paris: Minuit, 2005, p.81.
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Staël escreve: “É preciso trabalhar muito, uma tonelada de paixão e cem gramas de
paciência”.18 O que espera, procura, solicita, Nicolas de Staël, por exemplo, aquilo
com o que ele conta, é uma possibilidade, uma capacidade, talvez de “medir o brilho
até o fim”. E ele acrescenta: “se tudo ocorrer bem”. Do que depende este sucesso? Seu
amigo, Jean Adrien, fala de um “ritmo gerador” e de inspiração, mas recusa a idéia de
um quadro como resultado de uma “inconsciência”. Staël replica que o ritmo não é
dado, nem regular, que o quadro é o espaço de captação de certa ancoragem no mun-
do. Conseqüentemente, o “ajustamento” não é, para ele, uma decisão, mas o movi-
mento no qual o artista “como não sei quem” é o meio, o agente. Não há decisão,
porque não há um sujeito estabelecido que projeta. O sujeito agente é subjetividade
apenas a título de “eu posso”. O passado torna possível a abertura. Ele não é posição,
mas integração de potencialidades e de experiências.
Encontramos, ainda, esta dimensão da passividade em relação à incidência do im-
previsto na obra. Ela pode tomar a forma de exploração de um esgarçamento, de um de-
feito, de uma fratura. Na litogravura intitulada Acidente (1963), Rauschengerg integra a
fratura de seu suporte no momento da impressão. A fratura torna-se uma parte da obra.
A interrupção também deixa um lugar para a passividade. Jean Arp escreve: “O fato
de ter sido preciso interromper ou abandonar incidentalmente um trabalho é talvez o
momento decisivo, a ação essencial do nascimento de uma obra”.19
Este exame da passividade em obra convida a se inclinar sobre a arte na sua maneira
de proceder e não como produto acabado ou para um olhar inteiramente constituído.
Sob este ângulo de aproximação, podemos extrair elementos ou formas emergentes
de maneira característica na pintura moderna. Assim, a presença de “manchas” ma-
nifesta este desejo em obra de uma abolição de uma forma de “fazer”, de gestos con-
cordantes, movimento de libertação dos gestos, de tal maneira que haja escapamento
da obra como sua vida e sua potencialidade. A obra surge através de uma experiência
de desapego. A mancha parece o objeto que de maneira mais elementar faz tocar a
possibilidade de um engendramento sem preço, não concordante, faz aproximar do
caráter inesperado, não premeditado ou predeterminado do engendrado, que se revela
sem relação com aquilo que provocou o engendramento, surgindo como inarticulado,
18 Staël, N. Catalogue raisonné. Editado por Jean Dubourg. Paris: Le temps, 1968, p.72.
19 Arp, J. Jours effeuillés. Op. cit., p.419.
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20 Por exemplo, Sam Francis, Sans titre, 1988-1989, pintura acrílica 2,440 x 1,670 m, Toulouse, Espace d’Art Moderne
et Contemporain.
21 Cf. Lenain, T. La peinture des singes. Paris: Éditions Syros-Alternatives, 1990.
22 Staël, N. Op. cit., p.218.
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23 Merleau-Ponty, M. “Le problème de la passivité: le sommeil, l’inconscient, la mémoire”, Edição e transcrição S. Mé-
nasé, in Institution –Passivité, cours au Collège de France, 1954-1955. Prefácio Claude Lefort, Paris, Belin, 2003, [citado
com a sígla IP] p.182, Mss. BnF, vol 13 ´136] (18) – a numeração entre colchetes corresponde à numeração BnF, a entre
parêntese é do autor.
24 Idem. Le visible et l’invisible. Nota de trabalho, novembro de 1959, p.275.
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da arte no século XX que adotei não é, em princípio, aquele que Merleau-Ponty adota
para compreender a possibilidade de uma relação criativa com mundo.
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temente, me permite encontrar o que faz minha percepção, meu pensamento, minha
experiência do mundo. É o corpo como pólo diferenciante que me constitui como eu
penso. Mas a consciência não tem natureza própria, é a relação com corpo que lhe dá
sua coloração e institui a modalidade de sua relação com mundo.
O outro, o mundo, o campo de experiência são condições de elaboração do sujeito.
Há uma interação entre a percepção dos outros e a minha maculadas por sua implica-
ção enquanto outro corpo perceptível. Há em sua filosofia a idéia de um anonimato
singular pelo corpo que ancora o sujeito com os outros em um mundo comum. Este
filósofo me permite juntar dois aspectos que sem ele eu não chegaria a unir: “o mundo
está inteiramente dentro e estou inteiramente fora”.31 Este filósofo me permite man-
ter juntos dois aspectos que sem ele não chegaria a religar. Ele diz: “somos sós quando
somos nós mesmos”, mas ao mesmo tempo significava que não há existência separada,
os outros são implicados em minha singularidade. Em quase todos os filósofos antes
dele me parece que estávamos em um ou outro campo.
Para Merleau-Ponty, “nós estamos misturados ao mundo e aos outros em uma
confusão inextrincável”.32 Nós só aparecemos em relação aos outros. A diferenciação,
a transcendência é a condição de minha singularidade. O desvio é a própria forma de
minha relação aos outros, o mundo e a mim mesma. O desvio, a distância que faz que
“eu me embarace aos outros, que eu faça isto com meus pensamentos”33 é a forma de
minha relação a eles e não seu impasse. Moldo-me ao mesmo tempo em que tenho
acesso a sua diferença. O outro agente está “do meu lado”, ele não me é alheio. Mer-
leau-Ponty concebe a relação com os outros como uma relação de generalidade, aliás,
reversível que é marcada por um surgimento em meu corpo perceptível (e não mais
como somente corpo fenomenal ou objetivo): “sei que eles percebem porque eles têm
um comportamento no interior de meu sensível”.34
Para Merleau-Ponty, e também era claro para numerosos artistas, era preciso co-
locar em questão um sentido de uma subjetividade inteiramente pronta, insularidade
inteiramente constituída.
Há, em sua filosofia, uma relação dinâmica entre os seres correlativos de uma mo-
dificação incessante do sentido de ser do mundo, e através dos quais um sujeito se
molda. O sujeito que em sua força não é situação, escolhas sem laços, mas “eu posso”:
capacidade de conhecer os limites e a deslocá-los.
O processo iniciado no curso de 1954-1955, principiará nos trabalhos ulteriores
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sobre uma precisão daquilo que ele entende por “contanto com o mundo” e sobre as
modalidades deste “acesso ao mundo”. Merleau-Ponty procura elaborar uma experi-
ência do mundo que seja outra coisa que uma projeção simples sem ligação. Trata-se,
para ele, de tornar perceptível a textura das experiências que, se elas são experiências
de algo, não podem estabelecer-se de maneira unívoca.
A introdução da questão da passividade conduz a enunciar que a experiência não
dá nunca o ser ou o mundo como plena positividade, aliás, minha própria percepção
não é plena positividade. A partir das questões abordadas neste curso de 1954-1955,
Merleau-Ponty sai totalmente dos modelos intelectualistas, abstratos, do pensamen-
to e passa aplicar uma modalidade operante do pensamento.
O que há de particular neste curso é que a passividade põe em jogo uma defi-
nição da própria instância pensante e com isto põe em cena cegamente aquilo que
ela procura, como no processo da análise. É o estatuto do lacunar na percepção que
está no centro do problema – lacunar, desvio, que engendra o próprio movimento
da percepção.
Sob este aspecto da memória e do papel do corpo na lembrança, seus propósitos
em seu curso corroboram a maneira com a qual ele mesmo retoma idéias um ano
depois do outro. Seu pensamento não é linear, mas de várias dimensões. Nós o abor-
damos sob diversos ângulos, interrogações, orientações ou pontos de vista diferen-
tes, assim como, para o filósofo, há no mundo várias entradas, se bem que o mundo
permaneça único.
É então uma modalidade dinâmica da experiência que se abre: a experiência é
um processo. Merleau-Ponty escreve: “por mais novas que sejam nossas iniciativas,
elas nascem no coração do ser, elas estão engrenadas sobre o tempo que funde em
nós”.35 O processo, o movimento temporal, eles mesmos precedem sempre como
fundo nossa relação com mundo: “o tempo funde em nós” e toda iniciativa se inscreve
no processo segundo o qual o mundo se faz.
A questão da passividade é retomada na seqüência de sua obra e muito freqüen-
temente em seus trabalhos em torno da escrita de seu livro a partir de 1958. De sua
parte, ele reconhece não ter explorado o pleno alcance filosófico desta questão. Mas,
talvez, seja próprio à passividade escapar a qualquer exame frontal ou tético, donde
sua inscrição de caráter operante em sua ontologia e sua incidência na elaboração de
uma ontologia indireta.
O objetivo que Merleau-Ponty persegue nesse caso, e, depois em O visível e o in-
visível de maneira ainda mais radical já que adota uma modalidade de expressão não-
35 Idem, Le visible et l’invisible, op. cit., nota de trabalho de novembro de 1959, p.274.
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Merleau-Ponty em Salvador
tética, é uma oposição às filosofias da consciência. Se ele introduz o corpo como mo-
dalidade da subjetividade, é porque o “eu posso” do corpo, da linguagem, são as úni-
cas forças daquilo que não se dá nunca como positivo, na medida em que ele não se
define por uma percepção como plenitude, mas relativamente às lacunas que a com-
põem e à sua espessura carnal. Conseqüentemente, se o real não se forma senão no
passado, se ele não se opõe ao imaginário e se ele não é sem lacuna, se o “eu posso” é
pelo corpo como possível atual, possível eminentemente (mas que não é “possível de
porvir”) a modalidade de minha relação com mundo, então, meu pensamento sobre
o mundo, ao invés de ser re-cognição, reminiscência, ou mesmo quadro de represen-
tação ou de imagens positivas “não pode se oferecer a mim senão como o que por trás
avançou meu pensamento atual, lhe transborda sua energia, se faz reconhecer como
sua história”.36
Somente a partir de seus trabalhos de 1960-1961 que as obras e as falas dos artistas
ou dos escritores serão invocadas sob o aspecto do que escapa (e que designamos como
passividade) e que se imporá a forma da reversibilidade, verdade última correlativa de uma
relação com mundo por ontogênese.
B. Implicações
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Stéphanie Ménasé
intelectualista da percepção e uma visão delirante do mundo, um delírio de louco são indis-
cerníveis. Merleau-Ponty mostra que é o corpo como polarização pelo mundo que garante
a pregnância de uma percepção.
No curso sobre a passividade, o filósofo mostrou que não é a consciência que
torna possível a percepção, mas o corpo que unicamente garante a consistência do
percebido;37 que, conseqüentemente, não há oposição entre real e imaginário como
pleno e vazio do percebido, mas como o imaginário estrutura minha percepção; que,
conseqüentemente, é o corpo que permite a diferenciação do que vejo e do que sou,
e que encerra a memória do passado.
O trabalho sobre a passividade é o pivô da articulação de sua ontologia indireta. É
com o pensamento da passividade e da atividade agindo entre si que uma reforma da
ontologia se impõe. E estas próprias reformas desencadeiam um transtorno completo
das categorias habituais e tidas, ainda hoje, por formas atuais de nossas experiências.
Um processo de transformação da relação com o mundo acompanha esta ontolo-
gia em toda sua complexidade. Contentarei-me em insistir em certos elementos que se
tornam obsoletos com esta ontologia.
É o caso, e nós já evocamos, do cogito: não há relação transparente ou direta a si,
nem a nosso próprio passado e nem aos outros. No lugar da constituição do outro
sobre o modo do espelho, encontramos uma enigmática possibilidade de compre-
ensão entre as pessoas, como não sendo nunca, de antemão, garantida ou evidente.
É também o caso do mundo como totalidade dada: no lugar de um mundo como
conjunto de dados, totalidades dos modelos ou das formas, nós temos um mundo
no sentido de “campo de nossa experiência” como unidade aberta e indefinida e,
correlativamente, do sujeito como todo constituído, em seu lugar temos: o sujeito
é um X ao qual estão abertos os campos práxicos, sensoriais, imaginários, ideológi-
cos, míticos.
É também o caso da relação com passado e de certa concepção da temporalidade:
no lugar da alteridade ou de uma exterioridade das temporalidades, acarretando uma
simples sucessão de momentos, encontramos um encaixamento das histórias pessoais e
públicas, com a idéia de um encaixamento dos tempos. Torna-se também inatual com
esta ontologia a distinção corpo e pensamento: no lugar de uma aderência corpo/pen-
samento, temos uma identidade de princípio sempre defeituosa; a singularidade não é
dada como um originário, nem como em si, nem como para si. Ela aparece de um só
golpe no contato do mundo e dos outros.
Nas notas de curso sobre a passividade ele descreve a possibilidade do sentido depois
37 “É este duplo sistema dos Abschattungen e do Eu posso que faz o ‘real’, o ‘algo’ perceptivo”, Mss. BnF. Vol.13 [151] (32).
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Merleau-Ponty em Salvador
do desvio entre as perspectivas ou o desvio entre várias perspectivas que abrem todas
sobre um mundo único, e ele acrescenta: “sei que há somente um mundo, enquanto as
outras perspectivas se inserem na minha”.38 Mas, Merleau-Ponty torna isto mais preci-
so, e isto, no sentido de que as diferentes perspectivas não são todas compossíveis; em
todo caso, mesmo incompossíveis, elas devem ser tidas como não-falsas, restituindo
certo relevo. É, aliás, por este viés e graças a esta modalidade, que a singularidade pode
também se tornar mais precisa, se articular. Merleau-Ponty escreve: “sabemos o que
queremos através do que não queremos”.39 Há uma pluralidade de complexos espírito-
corpo que é pluralidade dos modos de articulação corpo-pensamento. A articulação im-
plica que esta relação corpo-pensamento seja susceptível de infinitas variações e, por isto
mesmo, corpo e pensamento são susceptíveis de infinitas transformações.
Se este complexo fosse inteiramente ação, não compreenderíamos como a compre-
ensão de outras disposições seriam possíveis. Não é senão pela articulação comum desta
atividade (que é um poder sobre algo) com uma passividade – que é tornada possível
menos pela compreensão de um outro (que suporia dado o sujeito ego como primeiro),
que a emergência de uma singularidade, de uma diferença no seio de um magma indi-
ferenciado.40 Na nossa linguagem, diríamos que toda relação entre corpo e pensamento
se dá sobre um modo de articulação ou complexo; todavia, cada articulação é singular,
e é este duplo modo de comum ou anônimo e de singular que torna cada complexo
susceptível de infinitas mudanças, e conseqüentemente de abertura às diferenças. Ao
acentuar uma modalidade anônima da relação corpo-pensamento, é a distinção real que
ele procura compreender e extrair. Esta distinção, por mais real que ela seja, é, porém,
inteiramente dependente das outras.
A idéia de um ser separado, absoluto, é abandonada mesmo no sentido de possi-
bilidade. Portanto, é menos a disparidade, o infinitamente diferente que asseguraria a
compatibilidade das diferenças-singularidades, e mais a compatibilidade que assegura
a unidade do ser que elas afetam. Compreende-se, então, este estranho retorno da ex-
trema singularidade em experiência fundamental, ou seja, partilhável por outra e vindo
enriquecer a percepção do mundo de cada um. O indivíduo torna-se “um modo de ver
o mundo”. A uma “unidade aberta do mundo deve corresponder uma unidade aberta
e indefinida da subjetividade”.41 “Sou um campo, sou uma experiência”. Viver é,
portanto, “se explicar com o mundo”.
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Merleau-Ponty em Salvador
sições: por exemplo, meu corpo é uma coisa e meu corpo vê e toca; ele pertence, en-
tão, à ordem do objeto e à ordem do sujeito: de fato, estas duas proposições não são
contraditórias ou exclusivas, mas cada uma chama a outra. O corpo vê e toca as coisas,
os outros, porque ele mesmo é visível e tangível. Do eu às coisas, há uma relação de
participação44 e este processo pode complexificar-se ao infinito.
Desta dupla forma de nossa ancoragem-participação no sentido de ser do mun-
do, processo de reversibilidade, nascem fórmulas como: “somos tocados pelas coi-
sas”, “a linguagem nos fala”. Em O visível e o invisível, ele escreverá: “como disseram
vários pintores, sinto-me olhado pelas coisas, [...] minha atividade é identicamente
passividade”.45 Ele desenvolve esta forma de narcisismo: “não simplesmente ver no
fora, como os outros o vêem, o contorno de um corpo que habitamos, mas, sobretu-
do, ser visto por ele, existir nele, emigrar nele, [...] de modo que vidente e visível sejam
recíprocos e que nós não saibamos mais quem vê e quem é visto”.46
Se a relação com o mundo é criação, é porque ela se inscreve necessariamente na
ontogênese. Este movimento de ontogênese, ao qual Merleau-Ponty atribui grande
importância em seus últimos trabalhos, é o movimento que ele descreve em O olho e o
espírito a propósito da experiência artística:47 ser pego no impulso do ser e engrenar-se
sobre o movimento através do qual há surgimento, abertura, criação. Trata-se quase de
consentir a viver junto de si de moldar-se (ou seja, com a idéia de um si, vimos, que
não tem nada de comum com uma identidade, uma ipseidade ou um ego48) ao mesmo
tempo em que articular uma visão do mundo.
Qual é a possibilidade de fazer compartilhar a experiência singular?
É porque o sujeito é uma abertura de campo que a experiência do ser se faz como
criação. Pintar ou qualquer outra atividade criadora significa produzir “um pedaço de
mundo”, “abrir um campo, deslocar ou modificar uma configuração, uma percepção,
transformar um pouco o mundo”, assim como ser transformado por ele. Todavia, se
a arte fosse a expressão de um universo incomunicável, a própria idéia de arte seria
absurda. É preciso, ainda, pelo trabalho da arte, trabalhar para “construir” uma reali-
dade a partir da experiência definida como “vir-a-ser em direção à liberdade”.49 Cada
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Stéphanie Ménasé
tentativa participa desta criação porque, como escreveu Merleau-Ponty, só há uma hu-
manidade, só há um mundo. O que está em jogo na criação é, portanto, aprofundar sua
própria situação como meio único para alcançar a expressão e a “produção da realidade”.
A arte aparece como parábola da relação criativa com o mundo de tal forma que
esta ontologia o supõe, e segundo o qual o ser é polimorfo e que é o contato com o
ser que suscita a expressão. Merleau-Ponty continua, então, a examinar além do mo-
vimento desta ontologia que exige que cada um faça sua experiência, as possibilidades
de compartilhá-lo com os outros.
Ter acesso ao mundo nesta filosofia é articular sua experiência com um espaço
comum, um tempo comum, uma experiência compartilhada daquilo através da lin-
guagem: campos e dimensões que definem a possível aquisição do estatuto do sujeito.
A singularidade de uma expressão sobre o mundo se impõe e participa do movi-
mento de instituição como obra sobre o mundo de certo desvio. Mais do que confor-
midade, Merleau-Ponty fala de deformação coerente, é a modalidade da relação, ou
seja, também da distância que permite extrair uma forma da coesão do movimento
perceptivo. É a modalidade do processo de encadeamento e as modalidades do encai-
xamento que permitem retrospectivamente definir ou reconhecer a singularidade de
uma argila ou de um estilo. As perspectivas diferentes ou as subjetividades diferentes
são “diferentes desvios possíveis em relação ao mundo, desvios que são variações do
mundo e da coisa”.50
Entre a passividade e a criação, não há oposição: a passividade se encontra, antes,
do lado do movimento em obra, ela revela a modalidade do ato ou do processo e não
dos efeitos deste ato sobre o mundo. A dimensão da passividade no seio da atividade
conduz à suspensão do modelo do ato puro, que induziria a idéia da criação como
não procedendo de nada e, conseqüentemente, ao próprio aniquilamento da possi-
bilidade da criação. O nexo é, então, entre a atividade e a passividade; sua reversibi-
lidade desemboca sobre a modalidade operante. A concepção de uma oposição entre
passividade e criação estaria ligada à idéia que esta passividade colocaria em perigo a
possibilidade de um ato deliberado confundido com o movimento de criação. Porém,
a passividade longe de tornar impossível a liberdade, é o que funda o movimento: “mi-
nha liberdade, o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas minhas expe-
riências, não é distinta de minha inserção no mundo”.51
É preciso desacostumar a conceber a criação como uma modalidade da ativida-
de pura. Por criação, é preciso entender abertura de algo sobre a base de referências
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Merleau-Ponty em Salvador
comuns ou de instituição e isto é muito diferente da produção que ela não abre,
mas perpetua. A criação corta a continuidade temporal, já que ela introduz uma di-
ferença irredutível e mudanças de tempo, é também o que nos processos temporais
se traduz por saltos. Por exemplo, decidir é fazer uma incisão momentânea no con-
tínuo; a interrupção é uma destas formas. Somente retrospectivamente a reconsti-
tuição de um contínuo temporal se produz, movimento mesmo da instituição, sem
o que se trata de um fora do campo que não tem dimensão ou valor propriamente
de pregnância.
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forma a partir de sua experiência enriquecem este poder, mas não são nunca tidas por
soluções ou instituídas em saber. Se o artista não vê distância entre o que iniciou seu
trabalho e o que ele elaborou, então, se contenta em produzir, mas não é criador (não
se abre e não abre sobre nada, só produz o já conhecido, representado por imagens).
Não basta querer criar para criar, ainda é preciso estar em poder sobre o impulso do
ser. Assim como a coisa é o resultado de uma deiscência do ser, da mesma fora a práti-
ca artística dá a ver algo na relação carnal da atividade e da passividade. A criação não
poderia ser execução. Porque não se trata somente de colocar em forma nem de repro-
duzir uma forma tal como aprendi a ver sob o modo da identidade.
Mas o que é um ato sem ninguém, uma operação efetuada como à revelia do agen-
te podendo até mesmo suscitar uma surpresa? E inversamente, como, se a consciên-
cia é suspendida, podemos fazer a constatação de que uma coisa tenha aparecido? É
porque assim como o ato não é uma visada intencional, o olhar não é objetivante,
ele é “olhar participando do movimento do corpo em ação”.
O sujeito enquanto “eu posso” e como corpo é o mediador da experiência nova.
Fala-se de criação na medida em que algo inscreve um novo regime de experiên-
cia, e conseqüentemente abre novas experiências. Ora, não poderia ter abertura aí
sem a configuração da relação da qual nosso corpo é o instrumento e o princípio. É
assim que através do corpo eu persigo o “eu posso”. Também não se pode mais im-
putar a uma imperícia, ou seja, a um movimento insuficientemente hábil, o acidente
no trabalho. É, antes, a idéia de um gesto dominado por uma intenção transparente
a si mesma que é pouco confiável. O corpo não é uma máquina. Conseqüentemen-
te, se bem que eu pinte ou veja depois e através de um corpo, não posso dizer que
seja meu corpo que faz.
De certa forma, esta passividade em obra em toda atividade humana, nada pode
escapar dela e o escapamento é a própria experiência. A passividade designa também
esta conversão do ponto de vista através do qual o escapamento se desenha como
uma dimensão do mundo e não uma impotência que devemos dominar.
A arte tal como a definimos, a saber, prática criadora – integrando a experiência
como abertura à passividade – exprime uma dimensão da realidade que é escapa-
mento, que não se deixa apreender, um indomável, um ser selvagem. A criação seria
o movimento que inscreve uma fratura, uma brecha, uma abertura. Vem daí a idéia
de que algo criado (da realidade de uma experiência como criação) não se julga se-
não pela experiência “concreta” ou “verdadeira” que ela abre ou institui.
Nenhuma expressão tética produzirá a coisa.52 Que haja aí apenas coisas, outras
52 Idem, Titres et travaux… Op. cit., p.14-15; retomado in Parcours deux. Op. cit., p.29-30.
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Merleau-Ponty em Salvador
pessoas, uma experiência deles, uma relação, isto não é um impasse, é a experiência
do mundo e dos outros.53 A distância irredutível que se estabelece entre os sujeitos
graças a seus corpos é precisamente o que torna compreensível sua singularidade ou
diferenciação entre eles. Parece, portanto, que não posso dizer que não posso ima-
ginar o pensamento dos outros, porque, precisamente, não posso senão imaginar,
ou seja, primeiramente, só posso reportar-me à experiência por um movimento que
é criação.
Sob a pena de Nicolas Staël, a expressão “matéria em movimento”, designa esta
passividade. Eis alguns testemunhos seus sobre a passividade: “escolha determina-
da, atitude passiva, vontade de organizar ordem e caos, todas as exigências, todas as
possibilidades, pobreza e ideal, nos melhores quadros tudo se passa de tal maneira
que temos a impressão de não ter sua palavra para dizer”,54 mostram mesmo que a
atividade e a passividade no seio da criação não se opõem, mas se completam. Falar
de uma dimensão onde nada se faz sem o engajamento que subentende a escolha, é
assumir que a criação seja colocação em obra, que ela seja ação.
Há um “fazer”, uma intervenção que não é possessão, domínio de lado a outro.
A intervenção exige uma obra, mas também significa um movimento herdado e sua
modificação pela participação.
A passividade se traduz em arte por uma experiência que abre sobre o operante:
“é o tempo que faz crescer os quadros, pinto como posso”.55 A partir destas práticas
e experiências, a expressão em primeira pessoa parece a única possível. Todavia, se
por primeira pessoa entendemos “sujeito reflexivo”, esta idéia da prática enferma é
o que procuramos mostrar. Com efeito, ela parece expor a experiência sob a forma
posicional ou afirmar que ela pode ser exposta somente de modo reflexivo. Então, a
imbricação da passividade e da atividade deve ser acompanhada de um sentido parti-
cular da singularidade como estrutura universal do sujeito trabalhando o “eu posso”
no sentido da liberdade, através do que ele emerge ou aparece como “eu”.
***
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Stéphanie Ménasé
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Merleau-Ponty em Salvador
e também:
56 Pessoa, F. “Poemas de Alberto Caeiro”, “O guardador de rebanhos”, in Obra poética e em prosa. Introdução, organi-
zação, bibliografia e notas de Antônio Quadros e Dalila Pereira da Costa, Vol. I. Porto: Lello & Irmão – Editores, 1986,
p.788-89.
57 Idem, Ibidem, p.761.
58 IP, p.175-176; Mss. BnF, vol.13, [124] (15).
237 |
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Informações sobre os autores
239 |
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
(calberto@usp.br)
Creusa Capalbo
(ccapalbo@uol.com.br)
241 |
Monclar Valverde (Org.)
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Merleau-Ponty em Salvador
Miriam Rabelo
(mcmrabelo@uol.com.br)
243 |
Monclar Valverde (Org.)
Monclar Valverde
(monclar@ufba.br)
Pascal Dupond
(Pascal.Dupond@wanadoo.fr)
Stéphanie Ménasé
(stephanie.menase@free.fr)
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Merleau-Ponty em Salvador
Agradecimentos
245 |
Monclar Valverde (Org.)
O organizador.
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GRUPO DE PESQUISA
ESTÉTICA E EXISTÊNCIA
LINHAS DE PESQUISA:
1. Fenomenologia da Expressão
2. Hermenêutica da Sensibilidade
3. Estética da Comunicação
COORDENAÇÃO: