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escolha do sistema de citação adotado.

Diagramação e Capa: Carlos Vilmar

Ficha catalográfica elaborada por: xxxxxxxxxxxxxxxxxx


Valverde, Monclar
S234m Merleau-Ponty em Salvador. Salvador: Arcádia, 2008.
250 p.; il.; 21 cm

ISBN: xxxxxxx xxxxxxxxxxxxxxxxx
1. xxxx. 2. xxxxx. 3. xxxxxx. I.Título.
CDD 341.347

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Contato com o organizador:


monclar@ufba.br
MONCLAR VALVERDE (Org.)

Merleau-Ponty
em Salvador

Salvador
2008
Sumário

Apresentação
Monclar Valverde 6

Introdução: por que Merleau-Ponty?


José de Anchieta Corrêa 9

1. Merleau-Ponty e a filosofia de seu tempo

1.1 - Intencionalidade e existência: Husserl e Merleau-Ponty


Carlos Alberto Ribeiro de Moura 19
1.2 - Interioridade, tempo e experiência: Merleau-Ponty e os limites da durée bergsoniana
Débora Morato Pinto 33
1.3 - Existência e temporalidade: o “diálogo” entre Merleau-Ponty e Heidegger
Acylene Cabral Ferreira 53
1.4 - Merleau-Ponty e Sartre: notas sobre o conceito de liberdade
Leandro Neves Cardim 63

2. Merleau-Ponty e as ciências do homem

2.1 - A razão encarnada: pensamento e sensibilidade em Merleau-Ponty


Pascal Dupond 79
2.2 - Merleau-Ponty e as ciências sociais: corpo, sentido e existência
Miriam C. M. Rabelo 103
2.3 - Comportamento, expressão e subjetividade: Merleau-Ponty e a psicanálise
Marcos José Muller-Granzotto 125
2.4 - Ação e situação em Merleau-Ponty: o sentido intersubjetivo da historicidade
Creusa Capalbo 147

3. Merleau-Ponty e as artes

3.1 - Forma e instituição: experiência estética e sensibilidade histórica em Merleau-Ponty


Monclar Valverde 159
3.2 - Motricidade e expressão musical: arte e técnica em Merleau-Ponty
Alberto Andrés Heller 179
3.3 - Paisagem e pintura: arte e visibilidade em Merleau-Ponty
Iraquitan de Oliveira Caminha 193
3.4 - Passividade e criação: pintura e abertura, a partir de Merleau-Ponty
Stéphanie Ménasé 213

Informações sobre os autores 239

Agradecimentos 245
Apresentação

Monclar Valverde

Não há qualquer registro, ou mesmo possibilidade, de uma visita de Maurice Mer-


leau-Ponty à Bahia, em seus 53 anos de vida. Ao contrário de seu amigo mais famoso,
que esteve em várias cidades baianas a convite de Jorge Amado, Merleau-Ponty parece
ter deixado a Europa apenas uma vez, em 1948, para uma curta visita ao México, mas
mesmo esse episódio permanece pouco conhecido em sua biografia.
Por outro lado, podemos dizer que seu nome e seu pensamento têm estado presen-
tes, entre nós, especialmente neste ano em que se celebrou o seu centenário de nasci-
mento. Certamente, isto só se tornou possível porque o estudo de sua obra já se faz,
aqui, há algum tempo e, em Salvador, como em outras partes, encontramos leitores de
Merleau-Ponty em diversas áreas, como as de Psicologia, Pedagogia, Educação Física,
Enfermagem, Belas Artes e Comunicação, além, é claro, de Filosofia.
Tal interesse, por parte dos leitores, é, na verdade, uma retribuição pela atenção
que o autor dedicou a seus campos de atuação. Lendo seus textos, eles descobrem uma
outra dimensão de sua prática, por trás das rotinas profissionais e das convenções de
cada metier. E descobrem, também, um outro modo de pensar, que permite abordar
questões essenciais, sem apelar para o jargão das puras essências.
Isto se dá, em parte, porque Merleau-Ponty concebe efetivamente a expressão a
partir da comunicação e da relação intersubjetiva. Mas, de modo igualmente decisivo,
porque ele inaugura um estilo de reflexão transcendental que não se perde em etéreas
distinções categoriais, pois extrai suas categorias do próprio campo da experiência, sem
reduzí-las aos limites de cada experiência.
Tal estratégia discursiva deixa o estudioso da filosofia muito desconcertado, pois,
ao mesmo tempo que parece querer abandonar o seguro solo do pensamento a-doutri-
nal, que convém ao filósofo profissional, Merleau-Ponty surpreende seu leitor com a
concepção de um novo transcendental, ao mesmo tempo natural, cultural e histórico,
e o surpreende uma vez mais, quando faz brotar daí uma reflexão ontológica original,
que, no entanto, retoma e redimensiona seu pensamento anterior.
Desse modo, embora não esteja entre os filósofos oficiais, que já conquistaram um
prestígio inequívoco na academia, Merleau-Ponty mostrou-se o melhor interlocutor
filosófico no campo da cultura contemporânea, dialogando incessantemente com a li-

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teratura, as ciências e as artes de seu tempo. Não apenas para tomá-las como motivo ou
ilustração para suas idéias, mas para mostrar seu enraizamento nas condições estéticas,
práticas e históricas da existência.

Mas este não foi o único mérito do pensamento de Merleau-Ponty. Além de pro-
mover a aproximação entre a filosofia e as ciências humanas, de abrir uma nova pers-
pectiva para a história política, de favorecer o diálogo entre as ciências e as artes e de
conferir um novo vigor ao investimento filosófico, atribuindo um sentido existencial
ao pensamento transcendental, ele também formulou e desenvolveu o programa crí-
tico da filosofia e da cultura contemporâneas, através de sua luta contra o dualismo.
Num sentido mais especificamente filosófico, ele redimensionou a atitude fenome-
nológica, ampliando o seu campo de abrangência e deslocando o lugar da intenciona-
lidade: da consciência ao corpo, do comportamento à conduta e da carne do mundo
à carne da história. Da mesma forma, com sua compreensão da estrutura participati-
va do ser no mundo, ele introduziu nas ciências humanas o critério metodológico da
imersão, desenvolvido a seguir pelo interacionismo simbólico e pela etnometodologia.
Com sua crença na imaginação individual e histórica, ele preparou o terreno para
a reflexão de uma nova geração de intelectuais, que foram seus alunos e interlocutores
(como Dufrenne, Leffort, Clastres e Castoriadis). E, com sua valorização dos aspectos
históricos da experiência simbólica, antecipou, em grande medida, o pensamento de
autores que nem sempre souberam reconhecer sua inspiração (como Bourdieu, Fou-
cault, Deleuze e Maffesoli).
Além disso, do ponto de vista estilístico, Merleau-Ponty inaugurou uma maneira
serena e amistosa de exercer a crítica, tratando com reverência e respeito os autores que
mais critica (o que nos faz pensar que ele seria o modelo por trás da figura do “intelec-
tual tranquilo”, idealizada por Roland Barthes). Personificando um tipo de intelectu-
al reservado e discreto, oposto ao ativismo de Sartre, ele soube desenvolver um estilo
de expressão incisivo, embora fundamentalmente dialógico, que, ao abordar os temas
mais diversos, encanta o leitor, para submetê-lo, em seguida, à implacável serenidade
de sua maiêutica.

Este livro procura desenvolver algumas interrogações, derivadas desses diálogos do


autor com essas diferentes problemáticas, mediante o diálogo entre estudiosos de sua
obra, reunidos em torno de alguns eixos temáticos. Ele registra as palestras e conferên-

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cias pronunciadas por ocasião do Colóquio Merleau-Ponty, realizado na última sema-
na do mês de agosto de 2008, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA
e no Teatro Molière, na sede da Aliança Francesa de Salvador.
O evento pretendeu reunir pesquisadores que pudessem falar do maior número
de temas, dentre os abordados pelo filósofo, segundo perspectivas e situações as mais
diversas, apresentando ao público, ao mesmo tempo, as conexões que reuniram tais
temas numa obra tão coerente quanto singular. Aproximando estudiosos de várias
gerações, regiões e perfis, o evento teve, como principal objetivo, mostrar a impor-
tância do pensamento merleau-pontiano e a riqueza de sua herança intelectual, tanto
para um público universitário quanto para um público mais amplo. A ocasião serviu
também para homenagear alguns dos responsáveis pela difusão do pensamento de
Merleau-Ponty no Brasil e para estimular os pesquisadores mais jovens a desenvolver
este legado.
Neste sentido, todos os participantes foram convocados a deixar de lado seus te-
mas atuais de pesquisa, para aproveitar a oportunidade de fazer, com conhecimento de
causa, um balanço crítico das contribuições do autor, levando em conta, igualmente,
a história de sua repercussão nos mais diversos campos de atuação, como o intelectual,
o pedagógico, o político e o artístico.
Dessa forma, o evento proporcionou uma bela ocasião para rever as idéias deste
pensador genial e para agradecer por sua reflexão profunda e instigante. Por essa razão,
podemos dizer que este livro permitirá compartilhar com os leitores uma herança que
possui imensa significação intelectual, política e afetiva, para todos aqueles que, de al-
gum modo, se viram inspirados ou provocados por esse que foi um dos mais legítimos
exemplos de inquietação intelectual e existencial que o século XX nos legou.

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Introdução:
por que Merleau-Ponty?

José de Anchieta Corrêa

Nos dias atuais, o progresso científico e tecnológico fez aumentar vertiginosamen-


te tanto a produção de novos conhecimentos, quanto de artefatos para manipular e
dominar a natureza, produzindo novos bens e mais riquezas a serviço de uma parte
da humanidade, em particular, dando condições espetaculares para manutenção e re-
cuperação da saúde e afastando o fim da vida para um horizonte cada dia mais lon-
gínquo. Possibilitou também vencer distâncias oferecendo comunicação em tempo
real e proporcionou experiência simultânea entre diferentes lugares e distantes atores,
a exemplo da vivência planetária do espetáculo fantástico das Olimpíadas, na outrora
inatingível Pequim.
Por outro lado, a humanidade continua incapaz de vencer a miséria, a fome e o
analfabetismo de milhões e milhões de seres humanos, em um universo marcado por
violentas desigualdades e injustas exclusões entre as gentes. Diante de tal quadro de-
salentador, falta inteligência e coragem às lideranças mundiais para enfrentar uma das
crises mais assustadoras do capitalismo mundial.
Como se isto não bastasse, vivemos sob a ameaça cada dia mais próxima de des-
truição do planeta com a crescente diminuição dos bens naturais: água, atmosfera
limpa e cobertura vegetal. Ameaça que rivaliza com o fato mais grave ainda da contí-
nua destruição da convivialidade e de diferentes formas de sociabilidade humana, em
decorrência da existência de fanatismos e intolerâncias de várias ordens a serviço de
fundamentalismos assassinos e suicidas, vindos tanto do Oriente, quanto nascidos en-
tre nós, no Ocidente.
À semelhança da situação vivida por Merleau-Ponty, relatada em “O homem e a
adversidade”1, nosso tempo tem notória e sabidamente tantas razões para ter esperan-
ças, quantas para sucumbir no desespero.
Merleau-Ponty é esse filósofo que, diante das dificuldades históricas da década
de 30/40 na Europa e em reação à filosofia dominante na Sorbonne – o neokantis-
mo, propõe então, analisar “a presença sensível e carnal do mundo”2. Projeto tenaz e
1 Sinais. Lisboa: Minotauro, 1962.
2 La Philosophie de l’Existence. Dialogue, Revue Canadienne de Philosophie. V (1966), n.3, p.309.

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José de Anchieta Corrêa

claramente perseguido em suas obras fundamentais: na Estrutura do comportamento


onde busca “compreender as relações entre a consciência e a natureza”3, na Fenome-
nologia da percepção, perseguindo “compreender o homem e o mundo a partir de sua
facticidade”4; e, igualmente em O visível e invisível, construindo um novo modo de
ver o mundo, em busca de “saber o sentido de ser no mundo”5, tarefas exercidas sob o
modo de interrogação, em busca de construir para a filosofia um começo inteiramente
novo, através de um percurso “sem nenhum compromisso com o humanismo, nem
com o naturalismo, nem enfim com as teologias. Tratando precisamente de mostrar
que a filosofia não pode mais ser pensada segundo esta clivagem: Deus, o homem e
as criaturas, que era a clivagem de Spinoza”6. Sua morte prematura deixou essa tarefa
inacabada, cabendo a outros o trabalho de retomá-la e prosseguir. De tal forma que,
mesmo “sob uma coluna ausente”, aí está a razão maior, o porquê fundamental para
o filósofo de hoje voltar a Merleau-Ponty e reaprender a ver o mundo sem a ilusão de
esgotar a questão, fechar a pergunta, pois, tal como na pintura, como sempre soube
Cézanne, “nenhuma obra se completa absolutamente”.
Essa orientação e atitude “em direção ao concreto”, no entrelaço do visível e do in-
visível, sem lamentar que “todas as sínteses sejam eivadas de déficits”, tal como experi-
mentou Merleau-Ponty, obrigam-nos a operar uma mudança em nossa atitude reflexi-
va, nascida ainda em meio a uma rede de oposições, presa a um sistema de contrários
julgados intransponíveis: bem e mal, dentro e fora, esquerdo e direito, alto e baixo,
passado e futuro, novo e velho, luzes e sombras etc. Rede de dualismos da cultura e
freqüentemente traduzidos em meio a um arraigado maniqueísmo, que termina tanto
por reificar quanto por idealizar os contrários, impedindo-nos de ver e dizer a experi-
ência do mundo, experiência tecida de entrelaçamentos, relações, vínculos, passagens
de uma a outra dessas dimensões contrárias.
Para vencer esses obstáculos é necessário, pois, privilegiar o conhecimento das es-
truturas, das totalidades onde tais contrariedades se operam, atentando para os dina-
mismos e os laços que atravessam a constituição do homem, do próprio mundo e das
coisas. Sempre em busca das evidências, sem perder o gosto pelas ambigüidades. Tarefa
só possível, dirá mais tarde Merleau-Ponty, sem opor reflexão e corporeidade. O corpo,
concebido como corpo-próprio, corpo-sujeito, vínculo “du moi et des choses”. Por es-
ses caminhos Merleau-Ponty nos leva e nos ensina a freqüentar os temas fundamentais
da filosofia - o cogito, o outro, o tempo e a liberdade. Caminho longo e avesso às velhas

3 La structure du comportement. Paris: PUF, 1949, p. 1.


4 Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945, p. 1.
5 Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964, p. 21.
6 Id., p. 328.

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Merleau-Ponty em Salvador

e arraigadas antinomias construídas a partir da oposição sujeito-objeto, herança sem-


pre presente em nossa condição humana. Basta aqui relembrar e evocar o modo notá-
vel e eloqüente através do qual Merleau-Ponty encara a tarefa de refletir sobre o tema
do cogito, começando por dizer: “Penso no Cogito cartesiano, quero terminar este
trabalho, sinto em minha mão o frescor do papel, através da janela percebo as árvores
da avenida. A cada momento minha vida precipita-se em coisas transcendentes, ela
se passa inteira no exterior”7. Mais tarde, voltando à mesma questão, registra: “Hoje
como outrora a filosofia começa pelo: que é pensar? E nessa pergunta inicialmente
se absorve”. Todavia, “o eu penso não quer dizer que salte fora do tempo e para um
mundo inteligível (...) quer antes dizer que a flecha do tempo tudo arrasta consigo, faz
com que meus pensamentos sejam, num sentido segundo, simultâneos, ou pelo me-
nos que legitimamente se imbriquem uns nos outros”8 e falar de simultaneidade é falar
de “constelações de horas espaciais, pontos-acontecimentos”, percebendo “as cores, os
sons, as coisas como as estrelas de Van Gogh”, como “terrenos natais, irradiações de
ser”. Compreensão que reafirma a necessidade de exercer a filosofia sob o primado do
sensível, “mundo mais velho que o universo do pensamento”.

No prefácio da Fenomenologia da percepção, respondendo aqueles que estranharam


seu caminho, devedor que era de Husserl, mas tomando distância do idealismo, Mer-
leau-Ponty registra que “a fenomenologia é o estudo das essências, e todos os proble-
mas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência
da consciência, por exemplo”. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe
as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo
de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”9. Perspectiva que afasta o filósofo
tanto da necessidade de se erigir como um “eu transcendental”, quanto de se assumir
como um espectador imparcial.

Repor as essências na existência é praticar uma filosofia sob o primado do sensível,


lembrando o desejo de Cézanne de pintar, não uma maçã qualquer, mas a maçã pre-
sente do amigo Émile. Certo de que quando isto acontecer o espectador experimen-
tará até o odor da paisagem, transportando-se até “a fonte impalpável das sensações”.
Semelhante tarefa, Merleau-Ponty nos ensina a praticar, não somente através da expe-
7 Phénoménologie de la perception. Ob. cit.p.493.
8 Sinais. Ob. .cit. p.23.
9 Phénoménologie de la perception. Ob. cit.p.1.

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José de Anchieta Corrêa

riência da obra de arte, mas igualmente face à experiência histórica da polis, sem ter
medo da opinião daquele que “troça-(se) do filósofo que pretende fazer passar o “pro-
cesso histórico” pela sua mesa de trabalho”10 , acreditando que ”a filosofia de sobrevôo
(seja) apenas um episódio, volvido já”. A tentação idealista e/ou intelectualista, toda-
via, ressurge sempre sob diferentes formas, através da construção de conceitos vazios
presos a uma lógica incapaz de operar a necessária passagem ou conversão do espírito
ou da razão na espessura do sensível.
Nosso tempo, sem dúvida, exige uma filosofia que se apresente não como serva,
nem senhora da história, de modo que a leitura das relações com o mundo se pro-
ceda como “uma ação à distância (...) exigindo em cada uma delas, do fundo da sua
diferença, a mistura e a promiscuidade”. Para tanto, é necessário que aprendamos
“o bom uso dessa imbricação”, praticando “uma filosofia tanto menos atada por res-
ponsabilidades políticas quanto mais sua própria possui, tanto mais livre de entrar
em toda parte quanto menos se substitui a alguém, quanto menos joga às paixões,
à política, à vida, quanto menos as recria no imaginário, e, pelo contrário, buscan-
do desvelar precisamente o Ser que habitamos”11. Aí se encontram, por outro viés,
não menores razões para freqüentar e percorrer os caminhos traçados por Merleau-
Ponty. Razões para freqüentar o “filósofo e sua sombra”, em resposta a pergunta “por
que Merleau-Ponty?”.

Freqüentar Merleau-Ponty para falar das coisas e do mundo e de nós mesmos,


falando dos outros. Mas afinal quem são os outros que povoam essa paisagem “não
(como) ficções (...) nem filhos de meu espírito”, dirá Merleau-Ponty, mas como
“meus irmãos gêmeos ou a carne de minha carne. Decerto não vivo a sua vida, en-
contram-se definitivamente ausentes de mim e eu deles. Mas esta distância converte-
se em estranha proximidade uma vez encontrado o ser sensível, pois o sensível é, pre-
cisamente, aquilo que sem se mexer do seu lugar pode assediar mais de um corpo”12.
Em resumo: “Tudo repousa sobre a riqueza insuperável, sobre a miraculosa multipli-
cação do sensível”13, pois, “todo enigma está no sensível, nesta televisão, que nos faz,
no mais privado de nossa vida, simultâneos com os outros e com o mundo”14. Mun-
do humano que se nos apresenta como “um sistema aberto ou inacabado e a própria

10 Sinais. Ob.cit. p.23.


11 Id, p. 22/23.
12 Id., p.25.
13 Id., p.26.
14 Id., p.27.

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Merleau-Ponty em Salvador

contingência fundamental que o ameaça de discordância o subtrai também à fata-


lidade da desordem e impede de desesperar, com a condição somente que nos lem-
bremos que os elementos são homens, e que se mantenha e multiplique as relações
de homem a homem”15. De tal modo que “quer se trate das coisas ou das situações
históricas, a filosofia não tem outra função senão a de tornar a nos ensinar a vê-las
bem, e é verdadeiro dizer que ela se realiza destruindo-se como filosofia separada”16.
Merleau-Ponty, ao terminar a Fenomenologia da percepção não hesita em ceder a pa-
lavra à Saint-Exupéry proclamando que “o homem é só um laço de relações, apenas
as relações contam para o homem”17.
Temos muitas outras razões para voltar a Merleau-Ponty, procurando percorrer
seus caminhos, indo em busca de ler o não-dito presente nas entrelinhas de sua obra.
Proceder sempre sob o modo interrogativo, considerando sempre a facticidade como
componente irredutível da subjetividade, jamais se afastando da concepção da uni-
dade do homem como subjetividade engajada. Freqüentando seu texto para além
da pura definição ou compreensão dos conceitos, pondo algo de si, acordando suas
experiências naturais, psicológicas e/ou culturais. Experiências inscritas no corpo-
próprio, cuja gênese só foi possível liberta da oposição costumeira entre reflexão e
corpo e, igualmente, convictos de que nenhuma doutrina pode prevalecer sobre a
verdade das coisas. Só assim, a partir da imersão de um ir e vir ao texto e a nós, pode-
remos transformar o exercício acadêmico do aprendizado filosófico em um verdadei-
ro pathos, à semelhança de um ter passado por, de uma provação que de fato ensina.
Pertencer a seu tempo através da vida do espírito como “outro lado do corpo” é o
segredo da chamada “vida intelectual”. Mais que se iniciar ao filosofar apenas pelo
exercício e aprendizado da ordem dos conceitos ou das essências, iniciar-se, igual-
mente, a partir de um logos encarnado, motor de nossas experiências. Um caminhar
em direção a ver o mundo sob um constante movimento, que parte de si em busca
do ser das coisas, de um universal, sempre segundo e voltando a si. “Se meu pensa-
mento não é senão o anverso de meu tempo, de meu ser passivo e sensível, é todo o
tecido do mundo sensível que vem, quando eu tento apreender a mim e aos outros
que nele são tomados”18.
Vinculação e fecundação, que Merleau-Ponty sempre praticou e deixou testemu-
nhadas em sua obra. Alphonse De Walhens, meu inesquecível orientador de tese,
gostava de relembrar fatos de seus encontros com Merleau-Ponty. Assim, após as vi-

15 Humanismo e terror, Tempo Brasileiro, Rio, 1958., p. 183.


16 Phénoménologie de la perception, ob. cit, p.520.
17 Sinais, ob. cit. p.22.
18 Id., p.25.

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José de Anchieta Corrêa

sitas de Sartre e Merleau-Ponty aos Arquivos Hurssel, em Louvain, a eles se juntava


para tomar uma cerveja, falar de política, das eleições americanas na época, e final-
mente discutirem sobre o resultado do dia de freqüentação dos Arquivos Husserl.
Segundo De Waelhens, chegado a esse ponto, Sartre lia e discutia a partir das notas
tomadas em um caderno “abarrotado de citações”. Merleau-Ponty, por sua vez, reti-
rava do bolso algumas fichas onde tomara notas e passava a comentá-las. Na época,
era comum elogiar o trabalho de Merleau-Ponty afirmando que, a rigor, não havia
propriamente evolução em seu pensamento, que sua filosofia já nascera feita, de tal
modo punha de si, “deformando” ou desconstruindo de antemão a herança filosó-
fica que lhe era dada. Demonstrava, assim, que havia lido o texto husserliano, não
como um “bom discípulo”, mas animado por questões e perguntas próprias, fruto
de suas experiências pessoais. Essa passagem da passividade à atividade da razão e
vice-versa, sobre que tanto refletira quando de suas análises acerca da estrutura do
comportamento ou das experiências humanas, seja no domínio da espacialidade, da
aprendizagem, da percepção erótica, seja no domínio especial da linguagem e nota-
damente da arte, tal exercício por ele praticado lhe permitia dialogar e fecundar o
texto do mestre.
É preciso conhecer o segredo dessa atitude e praticá-la para que se possa chegar
à filosofia e se fazer aprendiz de filósofo. Sem dúvida, o discípulo precisa dominar a
ordem dos conceitos do discurso do Mestre, começando por exercer um certo mime-
tismo face ao texto maior, dando razão ao ditado que afirma: “é do ombro dos anti-
gos que se vê mais longe”. Há professores que fazem isto com primor. Mas perma-
necer aí, como apenas um especialista, poderá levar professores e alunos a traírem a
própria filosofia. Certo, o especialista é muito importante para Academia, mas bom
seria que ele se comportasse também como alguém que recebe a riqueza da tradição
e a transforma e, se preciso, até mesmo a nega. Para tanto, o amigo da filosofia deve
chegar a ela, mais que sabendo geometria, como se escreveu um dia, trazendo em si
perguntas sobre o enigma da própria existência em meio ao entrelaçamento das evi-
dências e das ambigüidades do mundo.
Penso na máxima que tantas vezes ouvi repetida da boca de Waelhens: “só existe
filosofia da não-filosofia, um filósofo que só fala de filosofia é um tagarela”. Have-
rá o aprendiz de filosofo de freqüentar as experiências vindas da vida política, das
ciências, das artes ou da vida cotidiana. Freqüentemente, seja pelo cuidado com o
“rigor” próprio ao discurso filosófico, seja pelo respeito à sua pureza, ou também por
preguiça ou por não ter feito a experiência de estar presente no mundo, o professor
de filosofia acaba impedindo o aluno de trazer perguntas a partir de sua experiên-

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Merleau-Ponty em Salvador

cia. Que bom seria ter professores que animassem esta conjunção, esse vínculo da
experiência do sujeito aluno com a experiência do filósofo estudado. Não é preciso
dizer mais para dar-nos conta de que Merleau-Ponty é um mestre que conduz a re-
conhecer a filosofia como uma experiência pela experiência. Vale, pois, freqüentar
Merleau-Ponty, filósofo que “elevou a recusa obstinada do “sim ou não” à dignidade
do ato filosófico por excelência”19.

19 Revue Les Temps Modernes. Paris, 1961, p. 397.

15 |
1. Merleau-Ponty e a
filosofia de seu tempo
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Intencionalidade e existência:
Husserl e Merleau-Ponty

Carlos Alberto Ribeiro de Moura

Qual será o resultado da transposição do conceito husserliano de “intencionalida-


de operante”, forjado na atmosfera rarefeita do “transcendental”, para esta região que
Merleau-Ponty chamava de “existência”, sempre ancorada ou enraizada no interior do
mundo “concreto”? A resposta a esta pergunta parece exigir, antes de tudo, que se su-
blinhe a mais ampla diferença existente, entre Husserl e Merleau-Ponty, no que con-
cerne ao registro daquilo que deve ser o “discurso filosófico”. A fenomenologia husser-
liana prolonga o modelo a-doutrinal de discurso filosófico, tal como este foi inaugura-
do por Kant, que avisava seu leitor, já na “Introdução” à Crítica da razão pura, que ali
se lidava apenas com a “razão”, não com os “objetos da razão”, e que o discurso crítico
não se confundia, por isso mesmo, com o discurso metafísico ou com o discurso cien-
tífico, enquanto explicitações do “mundo” ou de “regiões objetivas”.
Quando Husserl opõe a “orientação natural” à “orientação fenomenológica”, é
para sublinhar que apenas na primeira a consciência se dirige às coisas, no intuito de
conhecê-las ou manipulá-las, em nossa vida teórica ou prática. Na orientação fenome-
nológica, ao contrário, o interesse não se dirige às “coisas”, mas sim aos “fenômenos”,
quer dizer, aos múltiplos modos subjetivos de doação dos objetos, que permeiam nossa
experiência do mundo, mas permanecem não temáticos na orientação natural (Hus-
serl, 1968, p.237-9). Neste domínio, que é aquele da “filosofia”, não se pergunta o que
são as “coisas”, mas sim se investiga como opera a consciência de coisa (Husserl, 1971,
p. 84). A questão que está no centro da filosofia é a pergunta pela possibilidade do
conhecimento, pela possibilidade do acesso da subjetividade à transcendência. E essa
investigação nunca desembocará em uma “doutrina”, em um conhecimento de regiões
mundanas. Por isso se dirá que a fenomenologia está em um “dimensão totalmente
nova” em face ao conhecimento “natural” (Husserl, 1973, p. 24). Para Husserl, é por
definição que a redução fenomenológica inibe “qualquer interesse voltado ao conhe-
cimento teórico do mundo” (Husserl, 1962, p.178). Vem daí o entendimento bem
particular que ele terá sobre o que significa uma “verdade fenomenológica”. Trata-se

19 |
Carlos Alberto Ribeiro de Moura

de um gênero de verdade, assegura Husserl, que “não compreende em si a menor opi-


nião sobre o mundo transcendente puro e simples, o mundo existente”(Husserl, 1968,
p.191). Em suma, não existe, para Husserl, uma “fenomenologia do ser”. Existe ape-
nas uma fenomenologia da razão, expressamente identificada por ele à fenomenologia
“em geral”(Husserl, 1950, p.380).
Esse quadro fornece o cenário o mais amplo em que se desdobram as diversas fi-
guras da “intencionalidade” na filosofia de Husserl. Se a pergunta que está no centro
da filosofia é aquela de saber como o conhecimento é possível, como pode existir algo
assim como uma consciência de objeto, a intencionalidade será o lugar natural para
se responder a essa questão. Husserl dirá que a intencionalidade é o território ao qual
reenviam todos os “enigmas” da teoria da razão (Husserl, 1950, p. 204). Desde que
não nos limitemos, é claro, a repetir esterilmente, com Brentano, que “toda a consci-
ência é consciência de alguma coisa”, e investiguemos em que consiste esse enigmá-
tico “relacionar-se” ao objeto, e quais são as sínteses que estão encarregadas de trans-
formar a consciência em consciência de algo (Husserl, 1973 a, p. 79). Isso significa
que a importância da noção de intencionalidade, em Husserl, é indissociável de um
primado teórico do “problema do conhecimento”, logo, de um primado do sujeito
contemplativo ou epistemológico, que se pergunta pelas condições de possibilidade
da experiência.
Com Merleau-Ponty a filosofia voltará a ser “doutrina”, um certo conhecimento do
mundo, que nunca se confundirá, certamente, com qualquer figura de conhecimento
ditada pelo “pensamento objetivo”. Por isso, não é de forma alguma indiferente que
Merleau-Ponty comece a construir a sua versão da “filosofia da existência” em polêmi-
ca aberta e franca contra Brunschvicq, o digníssimo representante do kantismo fran-
cês. O tema da “existência” é apresentado por ele como sendo, antes de tudo, a supe-
ração do criticismo (Merleau-Ponty, 1960, p.195). Se Brunschvicq limitava a filosofia
ao simples comentário sobre a atividade espiritual que opera na ciência era porque, fiel
a Kant, para ele, enquanto o cientista se dirige aos objetos, o filósofo se volta para o
espírito que constrói os objetos da ciência, para este Uno que é a razão universal (Mer-
leau-Ponty, 2000, p.250). Essa interdição, para a filosofia, de falar sobre mundo, era
de princípio. Merleau-Ponty sublinhará que se Brunschvicq podia reconhecer que o
objeto da ciência não é coextensivo à totalidade do mundo, este excedente da ciência
não podia ser tema de discurso, daquilo que não foi reduzido a objeto de ciência não se
pode nada dizer, nada pensar, nem mesmo que ele existe (Merleau-Ponty, 1997, p.32).
Para constituir o território de sua filosofia, o primeiro Merleau-Ponty jogará Bruns-
chvicq contra Brunschvicq. Se o próprio Brunschvicq reconhece que a análise cientí-

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Merleau-Ponty em Salvador

fica não esgota o que é dado aqui e agora, se para além das relações estabelecidas pela
ciência existe aquilo que o próprio filósofo crítico chama de “incoordenável”, o “fundo
não relacional” sobre o qual as relações se estabelecem, então nesta rebarba que per-
manece fora da ciência há um mundo a ser investigado. Sendo assim, se por um lado
existe a “representação científica do mundo”, por outro existe também o mundo per-
cebido ou vivido, que deve ser o tema da filosofia e não pode ser considerado menos
real (Merleau-Ponty, 1997, p.66). Na formulação lapidar de Merleau-Ponty, se a obje-
tividade não esgota a existência, então a tarefa da filosofia é a de tentar um reconheci-
mento e uma descrição da existência sob todas as suas formas, sem o que ela deixaria
de lado a sua tarefa de elucidação universal (Merleau-Ponty, 1997, p. 33).
É no interior deste “mundo percebido” que começará a ganhar algum rosto este
cristal tão difícil e de tantas facetas, para o qual se quer apontar com a noção de “exis-
tência”. O existente merleau-pontyano é este sujeito que, contra o idealismo, deve ser
pensado como sempre encarnado (Merleau-Ponty, 2000, p.254). Enquanto esse exis-
tente tem um corpo, ele não é pura consciência. E se seu corpo o ancora e o engaja
no mundo e na “situação” física e social, este corpo será o seu ponto de vista sobre o
mundo (Merleau-Ponty, 2000, p.18). Essa situação corporal é aquilo que, ao mesmo
tempo, dá a este existente a sua perspectiva sobre o mundo, quer dizer, a sua finitude,
e o inicia na verdade e no mundo (Merleau-Ponty, 2000, p.21). O engajamento desse
existente na natureza e na história é, ao mesmo tempo, uma limitação de sua visão so-
bre o mundo e a única maneira que ele tem de ter acesso a esse mundo, de conhecê-lo
e de fazer qualquer coisa (Merleau-Ponty, 1966, p.125). Essa situação corporal é por-
tanto a junção da particularidade e da universalidade, do interior e do exterior.
Mas esse existente não será, primariamente, um sujeito teórico, epistemológico
ou contemplativo, como era o seu homônimo husserliano. Merleau-Ponty insistirá
nesse ponto. O existente não se limita à rubrica de um “conhecimento” que, aliás,
agora deve ser re-integrado ao interior da totalidade da praxis humana. Esse existente
não é um sujeito epistemológico, mas sim o sujeito humano “em situação”, que for-
ma suas categorias em contato com sua experiência e muda sua situação pelo sentido
que ali encontra (Merleau-Ponty, 1966, p.237). Esse existente não “conhece” apenas
o mundo. Como dizia Heidegger, ele “está no mundo”, e a tarefa da filosofia, garan-
te Merleau-Ponty, é “reencontrar esse elo com o mundo que precede o pensamento
propriamente dito ”(Merleau-Ponty, 1997, p.66). Por isso, ao invés da velha relação de
conhecimento entre sujeito e objeto, deveremos falar agora em uma relação de ser en-
tre esses termos, uma relação segundo a qual “paradoxalmente o sujeito é seu corpo,
seu mundo e sua situação, e, de alguma forma, se modifica” (Merleau-Ponty, 1966,

21 |
Carlos Alberto Ribeiro de Moura

p.125).E se é assim, esse “existente” é essencialmente um sujeito prático, o polo de um


conjunto de comportamentos, um sujeito para quem o conhecimento é apenas uma
das práticas possíveis, mas não necessariamente a principal ou a mais decisiva. E alí na
Krisis o Husserl já analisava a ciência como sendo apenas uma das “atividades’ que se
desdobram no interior do “mundo da vida”.
E se para Merleau-Ponty o conceito de “existência” não aponta para uma noção
exclusivamente antropológica (Merleau-Ponty, 1960, p.196), é porque este “ser no
mundo”, enquanto ele se comporta, não pode ter diante de si um mundo reduzido à
totalidade dos objetos, no sentido kantiano da expressão. Como dirá Merleau-Ponty,
para esse existente o mundo é promessa ou ameaça, ele constrói armadilhas, seduz ou
cede, traz caminhos ou obstáculos. Por isso, se Merleau-Ponty pode filiar até mesmo
Hegel ao partido da “existência”, contra o voto expresso de Kierkegaard, é porque ele
considerará que alí na Fenomenologia do Espírito a “experiência” não é mais, como em
Kant, apenas nosso contato contemplativo com o mundo sensível mas, ao contrário,
“a palavra retoma a ressonância trágica que ela tem na linguagem comum, quando um
homem fala daquilo que viveu” (Merleau-Ponty, 1966, p.113). Em termos husserlia-
nos, esse mundo precisa estar recoberto por “predicados de significação” – como beleza
ou utilidade – que suscitam comportamentos nesse existente. Ele precisa ser um mundo
capaz de exercer motivação sobre o sujeito, - para nomear o conceito husserliano ple-
namente retomado por Merleau-Ponty.
É para o interior desse cenário que Merleau-Ponty quer contrabandear a doutrina
husserliana da intencionalidade “operante”. O que Husserl pensaria deste ambiente
projetado por Merleau-Ponty para hospedar o seu conceito? As piores coisas possíveis,
como se pode inferir das páginas em que ele comenta ou responde às críticas daquele
setor da “filosofia da existência” que ele pôde conhecer, e que mais o aborrecia. Husserl
descreve as censuras que lhe são dirigidas, pelo partido heideggeriano, ali no posfácio à
edição inglêsa do primeiro livro de Idéias, publicado em 1930. De que o acusam? De
“intelectualismo”. De ser por princípio incapaz de apreender a “subjetividade prático-
ativa, originariamente concreta”. Ele seria cego aos problemas da “assim chamada exis-
tência”, bem como aos problemas metafísicos (Husserl, 1971, p.140).
Onde se enraízam essas censuras? Para Husserl, simplesmente na cegueira dos cen-
sores. Segundo ele, seus críticos interpretam a fenomenologia reportando-a ao pata-
mar que, por princípio, ela se propõe a superar. Esses críticos míopes nem mesmo en-
trevêem a novidade da redução fenomenológica e, com isso, perdem de vista a ascese
da subjetividade mundana, aquela do homem, para a subjetividade transcendental,
que não é mais parte do mundo. Com esse gesto, a verdadeira filosofia é escamoteada,

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Merleau-Ponty em Salvador

e o que toma seu lugar no centro da cena é apenas uma certa antropologia. Em uma
conferência proferida em 1931, intitulada “Fenomenologia e Antropologia”, Husserl
indicará expressamente que não existe meio termo ou solução de compromisso: ou é
fenomenologia transcendental, ou é antropologia, quer dizer, esta doutrina equívoca
do Dasein humano, que não tem mais nada a ver com a verdadeira fenomenologia.
Como se não tivesse nem mesmo cabimento contrabandear os conceitos de uma dis-
ciplina para a outra, do “transcendental” para o “mundano”. O diagnóstico de Husserl
será severo: toda doutrina que se nomeia “fenomenológica”, sem poder alcançar a ver-
dadeira dimensão filosófica do transcendental, garante ele, é pura e simplesmente uma
“aberração” (Husserl, 1989, p.179).
Todavia, o próprio Husserl não admitia a existência, paralelamente à fenomeno-
logia transcendental, de uma psicologia fenomenológica? Nos anos 20 ele a apresen-
tava como uma disciplina “mundana”, mas reflexiva e eidética, e que faz pleno uso
de conceitos como o de intencionalidade, enquanto esta, justamente, circunscreve o
“caráter fundamental do psíquico” (Husserl, 1968, p. 306). Ora, o Husserl dos anos
30 dirá que uma psicologia fenomenológica, bem compreendida, simplesmente se
identifica à fenomenologia transcendental, deixando de ter, assim, o estatuto de mera
ciência positiva ao lado das demais (Husserl, 1989, p. 180). Será este, como se sabe, o
tema dos parágrafos finais da Krisis. Como existe vida “superficial” e vida “profunda”,
assegura Husserl, aos diferentes níveis da “redução” corresponderão diferentes níveis
da “psicologia fenomenológica”. E se é assim, a “redução psicológica” nos conduzirá
necessariamente à redução transcendental, a redução “completa e radical” nos encami-
nhará ao “ego absolutamente único”, que não é mais o “homem”, não é mais um ente
real “no mundo”. E será forçoso reconhecer então que, a bem considerar as coisas, a
psicologia pura “não existe” enquanto ciência positiva, existe apenas a filosofia trans-
cendental. Assim, tudo se passa como se o código “fenomenológico”, desde que bem
compreendido, nos encaminhasse inevitavelmente para o “transcendental”, quer dizer,
para uma “região” por princípio situada “fora do mundo”.
Mas, então, o que acontecerá com a “intencionalidade operante”, tal como esta foi
forjada por Husserl, quando ela for transposta para o território do “existente” merleau-
pontyano, este “ser no mundo” que, por seu corpo, está sempre enraizado neste mun-
do e posto “em situação”? Ou então, pode-se formular também a pergunta inversa e
simétrica, a saber, o que se tornará este “ser no mundo”, quando ele for gentilmente
convidado a desempenhar o papel de espectador privilegiado do trabalho da “inten-
cionalidade operante”?

23 |
Carlos Alberto Ribeiro de Moura

II

A categoria de “existência”, para Merleau-Ponty, deverá dar conta da unidade de


nosso mundo e da unidade de nossa vida. Ela já entra em cena, portanto, como sendo
a chave teórica para se perseguir a solução de uma questão classicamente “metafísica”,
que é aquela de se compreender “o todo e de suas articulações” (Merleau-Ponty, 1996
a, p.37). Assim ela deve dar conta, entre outras coisas, da unidade do “mundo perce-
bido” e da unidade, no homem, da alma e do corpo, do psicológico e do fisiológico.
Desde então, se a “percepção” for ocupar o centro da cena filosófica é porque, por um
lado, ela coincide com o movimento de transcendência pelo qual nós nos dirigimos ao
mundo e, por outro, porque ela está na junção entre a alma e o corpo, entre o psíquico
e o fisiológico, permitindo que se re-escreva, a partir dela, a 6a Meditação de Descartes.
Qual será, então, o lugar e o papel a ser desempenhado pela “intencionalidade”
nesse novo enredo, bem distinto daquele pelo qual Husserl se pautava? Quando Mer-
leau-Ponty afirma que o sujeito da percepção é o corpo, e não o espírito, parece que se
sugere que a intencionalidade migrou, de sua antiga residência, na consciência, para
uma nova morada, o corpo próprio, evidentemente não mais compreendido como
a máquina cartesiana. E, de fato, não faltam textos em que Merleau-Ponty se refere a
uma intencionalidade “que nós encontramos no organismo” (Merleau-Ponty, 2000,
p.16), ou a uma “intencionalidade do corpo” (Merleau-Ponty, 1945, p. 528). É essa
intencionalidade corporal que parece se desdobrar ali nas páginas da Fenomenologia da
percepção em que a motricidade é apresentada como uma intencionalidade original,
ou na análise do corpo como ser sexuado. Apresentar a motricidade como uma inten-
cionalidade é algo estranho ao universo de Husserl. No plano da motricidade, a in-
tencionalidade estará reduzida à sua significação mínima: ela é referência a um objeto
No gesto da mão que se levanta em direção a um objeto, garante Merleau-Ponty, está
encerrada uma referencia ao objeto, mover o corpo é visar as coisas através dele (Mer-
leau-Ponty, 1945, p.161). E sabe-se que se essa intencionalidade é apresentada como
original é porque ela não é um caso particular de conhecimento, ela nos dá um acesso
ao mundo que não passa pela mediação de qualquer “representação”. Nesse sentido,
se dirá que a motricidade não é “serva da consciência” (Merleau-Ponty, 1945, p.161).
Mas a consciência que sai de cena aqui é aquela “da qual toda essência é conhecer”
(Merleau-Ponty, 1967, p.135), a consciência tética, não toda e qualquer consciência.
O que se afirma é que a consciência é originariamente um “eu posso”, não um “eu
penso”. Vem daí os limites da originalidade dessa intencionalidade motora. Ela seria
efetivamente original diante, por exemplo, da visão? É certo que para Merleau-Ponty

| 24
Merleau-Ponty em Salvador

visão e movimento são maneiras específicas de nos relacionarmos a objetos. Mas é


certo também que tratam-se aqui de duas espécies de um mesmo gênero. Através da
visão e do movimento, assegura Merleau-Ponty, se exprime uma “função única” que é
o “movimento de existência” (Merleau-Ponty, 1945, p.160).
Mas, se é assim, pode-se muito bem perguntar se essa intencionalidade motora é
efetivamente suportada pelo corpo, por mais que se tenha afastado o “corpo próprio”
de seu homônimo cartesiano. Merleau-Ponty teria efetivamente transportado a inten-
cionalidade do domínio da consciência para aquele do corpo? Ora, se é certo que ele
fala em intencionalidade corporal, é certo também que, a todo momento, volta às
suas páginas uma metáfora instrumentalista, bastante comprometedora para quem se
dispõe a varrer do mapa as oposições conceituais clássicas: se o corpo próprio não deve
ser definido como objeto, ele será apresentado, contudo, como “o veículo do ser no
mundo” (Merleau-Ponty, 1945, p.163). O que significa estabelecer uma relação exte-
rior e de mera justaposição entre corpo próprio e “ser no mundo”, isso é praticamente
retomar a metáfora aristotélica que Descartes já combatia, a imagem de que a alma
está no corpo como o piloto em seu navio. E essa linguagem instrumental está nas pá-
ginas que tratam da própria intencionalidade corporal. Assim, pode-se declarar ali que
no gesto da mão que se levanta em direção a um objeto está encerrada uma referência
ao objeto. Mas o que se conclui dessa premissa? Se conclui que a consciência é “o ser
para a coisa por intermédio do corpo” (Merleau-Ponty, 1945, p.161). Pode-se dizer que
mover o corpo é visar as coisas através dele. Mas é a consciência que será definida, não
como posição explícita de seus objetos, “mas mais geralmente como referência a um
objeto tanto prático como teórico” (Merleau-Ponty, 1945, p.163). Pode-se dizer que o
corpo próprio secreta tempo, que ele liga em conjunto um presente, um passado e um
futuro (Merleau-Ponty, 1945, p.277) Mas é ao cogito tácito ou à subjetividade que a
temporalidade se identificará.
E desde o prólogo à Fenomenologia da perceção Merleau-Ponty reportava a cate-
goria de “existência” ou de “ser no mundo” ao “verdadeiro cogito” (Merleau-Ponty,
1945, p.VIII). Esse “verdadeiro cogito” será, como se sabe, o “cogito tácito”, anterior
ao “cogito falado”, apresentado por Merleau-Ponty como a “presença de si a si” que,
“sendo a própria existência, é anterior a toda filosofia” (Merleau-Ponty, 1945, p.462).
Por isso, apesar deste “existente” merleau-pontyano estar sempre, através de seu corpo,
“em situação”, e não obstante as afirmações enfáticas de que é o corpo que percebe, se
a “existência” tinha sido apresentada como sendo o próprio movimento de transcen-
dência, no final do livro é pelo “cogito” que eu descubro e reconheço “o movimento
profundo de transcendência que é meu próprio ser, o contato simultâneo com meu ser

25 |
Carlos Alberto Ribeiro de Moura

e com o ser do mundo” (Merleau-Ponty, 1945, p.432). Assim, a questão da “existên-


cia” se reportará inteira àquela subjetividade que será identificada por Merleau-Ponty
ao próprio movimento da temporalidade (Merleau-Ponty, 1945, p.276). E por isso a
“intencionalidade operante”, identificada por Merleau-Ponty à retenção e à protensão,
às intencionalidades que Husserl descrevia como “originais”, e que deviam costurar
todo o tecido de nossa consciência do tempo, será apresentada agora como sendo ape-
nas o outro nome da “existência” (Merleau-Ponty, 1945, p.141n).
Assim, se a “existência” entrava em cena com a dupla incumbência de dar conta da
unidade de nosso mundo e da unidade de nossa vida, nenhuma surpresa se, no Pró-
logo à Fenomenologia da percepção, se afirme que é a “intencionalidade operante” a
responsável pela “unidade natural e antepredicativa de nosso mundo e de nossa vida”
(Merleau-Ponty, 1945, p.XIII). Isso prescreverá o roteiro seguido por Merleau-Ponty
para explicitar a “unidade de nossa vida”, a comunicação entre o corpo e a alma, entre
o fisiológico e o psíquico. Se essa comunicação é usualmente vista como impensável,
é porque o problema é formulado em linguagem cartesiana ou segundo o código do
“pensamento objetivo”. Porque de fato é um mistério insondável compreender a co-
municação entre “fatos fisiológicos”, que são da ordem da extensão, e “fatos psíqui-
cos”, que são inextensos. Mas essa comunicação precisa se tornar pensável. Afinal, se
existem “acontecimentos psicofísicos”, estes não podem ser vistos como a mera con-
tiguidade entre o em si e a cogitatio, a união entre a alma e o corpo não pode ser es-
tabelecida por decreto entre dois termos exteriores entre si, objeto e sujeito (Merleau-
Ponty, 1945, p.105). Mas então, será preciso sair dos marcos do pensamento objetivo,
sempre preso a categorias contraditoriamente alternativas, para encontrar o “ambien-
te comum” em que se possa articular o psíquico ao fisiológico, o para si ao em si. A
“existência”, apresentada como o “terceiro têrmo” entre o psíquico e o fisiológico, se
encarregará desse trabalho. Como Merleau-Ponty sublinhará, a “existência” não é nada
da ordem dos “fatos” – como os “fatos psíquicos”- mas sim o “ambiente equívoco” da
comunicação entre os fatos, “o ponto comum em que seus limites se embaralham, ou
ainda, a trama comum a eles” (Merleau-Ponty, 1945, p.194). Uma vez reintegrados na
“existência”, o psíquico e o fisiológico não se distinguem mais como dois contraditó-
rios, eles não se distinguem mais como o para si do em si.
Mas qual é a origem deste milagre? Merleau-Ponty registra expressamente a sua dí-
vida, neste ponto, com o Bergson de Matéria e Memória. Mesmo se enganando sobre o
corpo, sobre a consciência e sobre o próprio tempo, Bergson teve o mérito inegável de
ter visto que corpo e espírito comunicam-se pela mediação do tempo (Merleau-Ponty,
1945, p.93n). Se é o tempo que torna “pensáveis” as relações entre o psíquico e o fi-

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Merleau-Ponty em Salvador

siológico, virá daí a solução que Merleau-Ponty dará para o problema, ali no final da
Fenomenologia da percepção. Ou antes, a dissolução do problema, que só persistiria no
interior de um código estritamente espacial. Se era uma tentativa vã conceber as rela-
ções entre a alma e o corpo ligando o para si a um objeto em si, o inextenso ao exten-
so, tudo muda com a idéia de subjetividade como temporalidade. Merleau-Ponty já
indicara que o mundo só comporta o momento temporal do presente, e que passado
e futuro, que não são, se retiram do mundo e passam para o lado da subjetividade, já
que ela é o não-ser que concorda com a natureza do passado e do futuro. Agora, se-
guindo Bergson, se associará o corpo ao momento temporal do presente. Se associará
o espírito ao passado e ao futuro. E, seguindo Husserl, se reconhecerá que as intencio-
nalidades da consciência do tempo estabelecem uma relação interna e necessária entre
os momentos temporais, uma relação de “fundação”. E, se é assim, o problema das
relações entre a alma e o corpo se traduz naquele de se saber como um ser que é por-
vir e passado, também tem um presente, quer dizer, o problema se suprime, garante
Merleau-Ponty, “visto que o porvir, o passado e o presente estão ligados no movimen-
to da temporalização” (Merleau-Ponty, 1945, p.493).
Eis aí a “unidade de nossa vida”... Ela é bem mais simples do que se poderia ima-
ginar no início. Mas por qual passe de mágica o “para si” e o “em si” cessaram de ser
contraditórios, e podem agora se dar as mãos, alegremente, na ciranda da “tempora-
lização”? Falta a essa dissolução do problema um passo que Bergson dava e que não
encontra nenhum equivalente na Fenomenologia da percepção. Para conceber a união
entre a alma e o corpo, Bergson começava por distinguir entre matéria e espaço. E esse
gesto era essencial para a afirmação de uma continuidade ou de uma diferença apenas
de graus entre matéria e espírito. Era essa diferença apenas de graus que excluía qual-
quer diferença de natureza ou qualquer contradição entre corpo e espírito (Bergson,
1970, p.354). Não dando um passo equivalente, a solução de Merleau-Ponty parece
ser apenas nominal. Mas esse não é, de forma alguma, o ponto mais importante. Aqui
ainda há uma outra dificuldade, que se tornará mais patente quando a intencionalida-
de operante for dar conta da “unidade de nosso mundo”.

III

Em que pese o divórcio proclamado, em alto e bom som, entre a “filosofia da


existência” e a “filosofia crítica”, haverá, na Fenomenologia da percepção, um claro re-
torno do recalcado kantiano. É efetivamente uma investigação sobre as condições de
possibilidade da experiência que Merleau-Ponty empreende ali, em ortodoxo espírito

27 |
Carlos Alberto Ribeiro de Moura

husserliano. O retorno à temporalidade será apresentado como sendo nada mais, nada
menos, do que o retorno “às condições últimas de nossa experiência” (Merleau-Ponty,
1945, p.381). A intencionaliddade operante será descrita como aquilo que torna a ex-
periência possível, no mesmo sentido em que Husserl afirmava que, sem as intencio-
nalidades de horizonte, nem haveria consciência de objeto.
A operação típica da Fenomenologia da percepção será compreender a intencionali-
dade de nossa vida perceptiva segundo o modelo exclusivo da intencionalidade ope-
rante. Serão as retenções e as protensão, situadas por Husserl na origem da consci-
ência do tempo, que, com o auxílio do esquema corporal, comentarão a totalidade do
funcionamento de nossa vida perceptiva. Por isso, quando Merleau-Ponty for tratar
da “unidade de nosso mundo”, a sua primeira preocupação será reportar a perspectiva
espacial à perspectiva temporal, fazendo com que o espaço perca qualquer especifici-
dade enquanto Abschattung original. Como o aspecto espacial é também um aspecto
temporal, este último roubará inteiramente a cena. Agora o tempo será apresentado
como sendo “tanto a ordem das coexistências quanto a ordem das sucessões” (Mer-
leau-Ponty, 1945, p.383). E esse passo - anti husserliano - será essencial para que as
intencionalidades da consciência do tempo possam ser vistas como a verdade da in-
tencionalidade em geral.
Desde então, todos os segredos e movimentos da “existência” encontrarão seu fun-
damento último na temporalidade, e na intencionalidade operante que está em sua
base, seja enquanto potência de expressão, no interior do mundo, seja enquanto po-
tência de unificação deste próprio mundo sensível – os dois lados conjugados na ex-
pressão “logos do mundo estético”. O roteiro trilhado por Merleau-Ponty é bem co-
nhecido. Se existe “sentido”, reenvio intencional do aspecto dado aos aspectos não da-
dos do objeto, é porque o presente reenvia ao passado e ao futuro, o presente reenvia
ao ausente.. Se é o objeto inteiro que se “exprime” em cada um de seus aspectos, é por-
que cada momento temporal exprime os demais. E se existe uma síntese unificando os
objetos e unificando o mundo, ela é aquela síntese temporal, passiva ou de transição,
que se confunde com o próprio movimento aberto da temporalização. E se este “exis-
tente” é movimento de transcendência, é porque ele se confunde com uma temporali-
dade em que, “por definição”, o presente não está encerrado nele mesmo mas se trans-
cende para um porvir e para um passado, ele é uma fuga generalizada para fora do Si.
Sem dúvida, uma das razões da elegância da Fenomenologia da percepção está na sua
arte de reportar uma diversidade imensa de problemas a um único campo de soluções,
este território do tempo identificado à própria subjetividade. E o capítulo sobre a tem-
poralidade, visto por alguns míopes como externo à Fenomenologia da percepção, é na

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Merleau-Ponty em Salvador

verdade seu coração e sua chave. Mas é certo também que esse mesmo campo em que
se situam as soluções apresentará uma dificuldade específica, assinalada por Merleau-
Ponty. Mas uma dificuldade grave o suficiente para ser pouco compatível com o pro-
jeto de fazer do “existente” alguem sempre “em situação”, sempre ancorado, por seu
corpo, no mundo, uma dificuldade pouco compatível com o projeto de unir o trans-
cendental ao empírico. Essa dificuldade diz respeito à ipseidade, diz respeito àquele
Si, situado no interior ou no coração do tempo, e que será apresentado por Merleau-
Ponty como “um reduto de não-ser”, um “perpétuo ausente” (Merleau-Ponty, 1945,
p.458). Trata-se aqui de uma dificuldade que parece congênita às filosofias que repor-
tam o tempo a uma subjetividade constituinte do tempo.
Com esta expressão não se quer sugerir, de forma alguma, que a subjetividade
merleau-pontyana se confunda com qualquer versão mitológica de uma subjetivida-
de “produtora” ou “criadora”, leitura certamente fantasista do significado da noção de
“constituição” na fenomenologia, mas amplamente difundida pelos primeiros intér-
pretes de Husserl. A “subjetividade”, tal como Merleau-Ponty a concebe, sem dúvida
está bem longe desta ficção. “É visível – dirá ele – que eu não sou o autor do tempo,
não mais que dos batimentos de meu coração, não sou eu quem toma a iniciativa da
temporalização” (Merleau-Ponty, 1945, p.488). Também não se quer insinuar que
Merleau-Ponty flerte com o modelo kantiano de constituição do tempo, expressa-
mente criticado por destrui-lo, ao metamorfosea-lo em idealidade (Merleau-Ponty,
1945, p.474). Fala-se aqui em subjetividade constituinte do tempo no sentido ortodo-
xamente husserliano da expressão, a saber, a subjetividade enquanto instancia encarre-
gada de fazer aparecer o tempo a um sujeito. O tempo só é para o sujeito, este sujeito
é o próprio tempo, mas são as estruturas intencionais que fazem com que este tempo
apareça ao sujeito – o que é, aliás, exatamente aquilo que Merleau-Ponty entendia por
“subjetividade”, a saber, o negativo encarregado de “fazer aparecer” o positivo (Mer-
leau-Ponty, 1960, p.193).
Mas onde se situa o “sujeito” para o qual o tempo aparece ou se “auto-constitui”? Se
o tempo é a matriz do “sentido”, se cada uma de suas dimensões é visada como outra
coisa que ela mesma, é porque há um olhar situado no seu interior, aquele para quem
a palavra “como” diz alguma coisa, e que experimenta o tempo sem aplaina-lo ou
imobiliza-lo. Este olhar se situa naquele ôco formado pelo tempo como afecção de si
por si, na relação de si a si desenhada pelo jogo entre o tempo como transição, o tempo
constituinte, e o tempo constituído, enquanto série desdobrada dos presentes. É este
o lugar em que se germina um Si cuja essência, garante Merleau-Ponty, assim como
aquela da luz, é fazer ver (Merleau-Ponty, 1945, p.487). Mas se é assim, este olhar si-

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Carlos Alberto Ribeiro de Moura

tuado no interior da relação entre o tempo constituinte e o tempo constituído não


poderá se confundir nem com o tempo como transição, nem com o tempo enquanto
série desdobrada de momentos temporais.
Este olhar não se confundirá com o tempo como transição, transição da qual ele
tem a experiência no “campo de presença”, já que ele é o recuo necessário, ou o ponto
de fuga, a quem essa transição aparece.. Ele também não se confunde com o tempo
constituído, enquanto série desdobrada das dimensões do tempo. Se os múltiplos atos
particulares deste Si se situam em distintos momentos temporais, o próprio Si, en-
quanto “generalidade” ou “potência indivisa”, nunca poderá estar alocado em algum
momento temporal. Vem daí o reconhecimento, por Merleau-Ponty, de um tópico
bem preciso em que o criticismo teria acertado. É verdade, - garante ele – que para
aperceber a relação entre presente, passado e futuro, “é preciso que eu não me confun-
da com nenhum deles” (Merleau-Ponty, 1945, p. 475).
E é exatamente este Si, que não é da “ordem dos fatos”, quem assiste, de seu ponto
de fuga em relação ao tempo, à unidade de sua própria vida, enquanto união entre a
alma e o corpo, envolvimento entre os fatos psíquicos e os fatos fisiológicos, produzi-
do por um movimento de temporalização em que a intencionalidade unifica presente,
passado e futuro, e exibe esta unidade ao Si. Mas se é assim, existe aqui uma clara di-
ficuldade, dado o projeto confesso de Merleau-Ponty.
Esta dificuldade, formulada na Fenomenologia da percepção de forma expressa,
mas ainda envergonhada, é reportada por Merleau-Ponty de maneira mais direta nas
discussões que se seguem à sua conferência sobre “O primado da percepção”. Exis-
te, assegura-se ali, um “centro da consciência por onde nós não estamos no mundo”
(Merleau-Ponty, 1996, p.101). De onde brota a necessidade deste reconhecimento
embaraçoso? A lógica subjacente a ele era a mesma já presente em Husserl, quando
este insistia na tese de que o ego transcendental originário não é “parte” do mundo ou
está “fora” do mundo. Estar fora do mundo é estar fora do tempo. O ego originário,
que está no centro da subjetividade constituinte do tempo, e que assiste dali tanto ao
“fluir” do tempo, quanto ao desdobramento do presente, do passado e do futuro en-
quanto modalidades temporais, não pode se confundir nem com o fluxo do tempo,
nem com qualquer uma das modalidades do tempo. Este ego pré-monádico, ao qual a
fenomenologia chegava através da “última redução”, enquanto ele era o polo idêntico
para todas as séries temporais, só podia entrar em cena como sendo supra temporal
(Husserl, 2001, p. 277). E se este eu “permanente e constante”, desprovido de qual-
quer extensão temporal, desdobrava sua vida em um “presente originário”, este não era
nenhuma modalidade temporal, mas era antes aquele “presente” de onde se assiste ao

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Merleau-Ponty em Salvador

aparecimento do presente, do passado e do futuro enquanto modalidades temporais


(Husserl, 1973 b p. 668). E para Husserl este ego originário já era, assim como o “Si”
de Merleau-Ponty, um “perpétuo ausente”, e por isso ele era apresentado como não
sendo apresentável, um ego “anônimo”.
E é a essa necessidade imperiosa, inscrita nas filosofias que reportam a tempora-
lidade a uma consciência do tempo, que Merleau-Ponty se referia em uma das notas
trabalho de O visível e o invisível, ao observar ali que a analítica intencional “subenten-
de um lugar de contemplação absoluta de onde se faz a explicitação intencional e que
possa abranger presente, passado e até mesmo abertura para o porvir” (Merleau-Ponty,
1964, p.297). Este lugar de contemplação absoluta não pode se confundir com o pre-
sente, o passado e o futuro, que estão envolvidos por ele. E é a este centro do cogito
tácito que a Fenomenologia da percepção se reportava, ao falar ali do “fundo inumano”
pelo qual, segundo a expressão de Rimbaud, “nós não estamos no mundo” (Merleau-
Ponty, 1945, p.466).
E, se é assim, quando a “filosofia da existência” se traveste de “filosofia crítica”, ape-
sar das restrições iniciais, é nisto que se transforma o seu “ser no mundo”, no momento
em que ele se torna o espectador do trabalho da “intencionalidade operante”. Ele se
traduz em um ser “fora do mundo”. Husserl, no final das contas, tinha toda a razão. O
código “fenomenológico”, desde que bem compreendido, sempre nos transporta para
uma instância situada fora do mundo, quer dizer, fora do tempo, pouco importando
que este sujeito atenda pelo nome de “Si” ou de “ego originário”. Neste ponto, ao me-
nos, Merleau-Ponty foi um aluno exemplar.

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Carlos Alberto Ribeiro de Moura

Referências Bibliográficas

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Husserl, E. 1950. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischer
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tale Phänomenologie. Haag: M. Nijhoff, Husserliana, Bd VI.
________ 1968. Phänomenologische Psychologi. Haag: M. Nijhoff, Husserliana, Bd XI.
________ 1971. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen
Philosophie. Drittes Buch, Haag: M. Nijhoff, Husserliana, Bd V.
________ 1973. Die Idee der Phänomenologie. Haag: M. Nijhoff, Husserliana, Bd II.
________1973 a. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge. Haag: M. Ni-
jhoff, Husserliana, Bd I.
_______ 1973 b. Zur Phänomenologie der Intersubjektivität, Dritter Teil, Haag: M.
Nijhoff, Husserliana, Bd XV.
_______ 1989. Aufsätze und Vorträge (1922-1937), Dordrecht: Kluwer, Husserlia-
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______________ 1996 a. Notes de Cours. Paris: Gallimard.
______________ 1997. Parcours. Lagrasse: Verdier.
______________ 2000. Parcours deux. Lagrasse: Verdier.

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Interioridade, tempo e experiência:
Merleau-Ponty e os limites da durée bergsoniana

Débora Morato Pinto

“Esta troca entre o passado e o presente, a matéria e o espírito, o silêncio e a palavra, o


mundo e nós, esta metamorfose de um no outro que tem um vislumbre de verdade é o
melhor do bergsonismo” (Merleau-Ponty – Elogio da filosofia).

Quando consideramos o ponto de partida da filosofia de Bergson, um estudo ori-


ginal e profundo da interioridade psicológica, não podemos evitar o estranhamento
de lidar com uma filosofia da subjetividade em plena passagem do século XIX a XX.
Esse estranhamento nos encaminha diretamente às famosas páginas da Fenomenologia
da percepção em que Merleau-Ponty faz questão de explicitar suas diferenças com o
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência: a verdadeira filosofia da experiência deve
estar fundada no campo fenomenal, pátria da intencionalidade que em nada se asse-
melha a uma interioridade fechada em si. Se for imprescindível efetivar um retorno ao
imediato, este não pode revelar-se como vida solitária e muda, refratária à expressão.
Em outros termos, “o que descobrimos ao ultrapassar o prejuízo do mundo objetivo
não é um mundo interior tenebroso. E este mundo vivido não é, como a interiorida-
de bergsoniana, absolutamente ignorado pela consciência ingênua”(Merleau-Ponty,
2004, p.91).
A discordância explícita, por seu lado, não deixa de incomodar o leitor ber-
gsoniano da Fenomenologia da percepção. Afinal, não encontramos no “primeiro
Merleau-Ponty”, precisamente aquele no qual a distância em relação a Bergson
mais se reafirma, objetivos bastante convergentes com a filosofia da durée, uma
filosofia que quer recuperar o valor e o alcance dos dados dos sentidos e da ex-
periência consciente? Não vemos nos dois autores a tentativa de recuperação da
inteligibilidade própria ou imanente ao sentir que toma a experiência como solo
e fundamento de uma racionalidade alargada? Mais que isso, ao descrever sua fi-
losofia como aquela que, ao invés de procurar superar os dados perceptivos, mer-
gulha e penetra na percepção, nela inserindo uma vontade que se dilata e assim
dilata “nossa visão das coisas”(Bergson, 1993, p.148), Bergson não teria definido
seu campo de batalha num terreno muito próximo ao de uma fenomenologia de-

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Débora Morato Pinto

finida como “tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela
é”(Merleau-Ponty, 2004, p.1)?
Trata-se assim, num primeiro momento, de compreender o sentido da descrição
da experiência nos dois autores, uma das pistas para, ao fim e ao cabo, atingirmos uma
visão mais justa sobre os respectivos projetos filosóficos. Desse modo, se essa passa-
gem da conferência A percepção da mudança é valorizada por Merleau-Ponty na lou-
vação a Bergson que abre seu Élogé de la philosophie, em contrapartida, à definição da
tarefa descritiva da fenomenologia segue-se uma restrição que imediatamente põe em
sursis a convergência aqui pontuada: a descrição fenomenológica, ao menos ao modo
husserliano, interdita o recurso “à gênese psicológica e às explicações causais”(id.).
A gênese psicológica é o caminho para a ontologia em Bergson, sua filosofia opera a
mesmo a passagem da compreensão do espírito funcionando para a prática, sua defi-
nição do objeto da psicologia, à metafísica enquanto esse “próprio espírito esforçando-
se para desembaraçar-se das condições da ação útil e assumir-se como pura energia
criadora”(Bergson,1999, 0.9). Resta saber até onde vai o papel atribuído por Merleau-
Ponty à psicologia na renovação filosófica. Em todo caso, no vínculo entre psicologia
e ontologia, podemos encontrar pistas sobre a relação tensa com a noção de duração
que se evidencia na obra capital do fenomenólogo.
O retorno à experiência como fundamento da reflexão devolve à sensibilidade seu
estatuto filosófico e esse retorno é efetivado pelos dois autores. Ocorre que a feno-
menologia merleau-pontiana articula-se em torno de uma rica definição da experi-
ência como lugar originário do sentido. A renovação do sentir e seu retorno à condi-
ção de questão filosófica vêm a reboque da constatação de que “a visão já é habitada
por um sentido que lhe dá uma função no espetáculo do mundo”(Merleau-Ponty,
2004, p.83). Desse modo, a tentativa de conjugar o “extremo objetivismo ao extremo
subjetivismo”(id., p.18) desemboca na circunscrição do reino ambíguo e indetermi-
nado do pré-reflexivo, momento ante-predicativo de nossa experiência concreta. O
mundo vivido, para o qual o ato filosófico inaugural deve se voltar (e que antecede e
sustenta o mundo objetivo), surge na investigação como campo fenomenal, a cama-
da da “experiência viva” em que um sistema eu-mundo-outrem se nos apresenta em
seu estado nascente. Assim, se a sensibilidade é o ponto de partida da fenomenolo-
gia, ela não se identifica à interioridade subjetiva ou à reverberação psíquica do sen-
tir: o campo fenomenal não é um mundo interior ou estado mental. Merleau-Ponty
faz questão de enfatizar, numa primeira de várias referências críticas ao bergsonismo
(que parecem, diga-se de passagem, apontar todas para um mesmo significado), que
a “experiência dos fenômenos não é uma introspecção ou um intuição no sentido de

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Merleau-Ponty em Salvador

Bergson”(Merleau-Ponty, 2004, p.90), coincidência ou fusão do sujeito com o objeto.


As mesmas ressalvas em relação à interioridade, à coincidência e à fusão reaparecem
no que diz respeito ao tempo. Mais que isso, é nas referências à multiplicidade quali-
tativa e à própria noção de durée (referências que pontuam a análise da dialética inter-
na à temporalidade) que podemos efetivamente compreender o cerne da discordância
merleau-pontiana. Em outros termos, para além de reconhecer o mérito de Bergson
ao promover o encontro entre, de um lado, a revalorização da sensibilidade como ins-
tância de conhecimento filosófico e, de outro, apreensão da verdadeira manifestação
da temporalidade, Merleau-Ponty constrói sua análise do tempo em permanente con-
traposição à duração bergsoniana. Desse modo, no momento em que encontramos o
estabelecimento do sentido do tempo, também somos introduzidos a considerações
que procuram esclarecer o sentido último das críticas que permearam o trajeto descri-
tivo da Fenomenologia da percepção. O percurso que descreve o corpo como atividade
expressiva, a percepção e a fala sendo modalidades essenciais dessa atividade, institui-
se, como sabemos, em contraste como o pensamento objetivo. Por esse pensamento,
o fenomenólogo compreende as correntes derivadas do empirismo inglês e parte do
trabalho intelectualista, incluindo Descartes e Kant entre os alvos primordiais. As con-
cepções tradicionais que tematizaram a percepção, a fisiologia clássica que coisifica o
organismo, a definição convencionalista da linguagem que impõe o regime de “exte-
rioridade entre o signo e a significação”(Moura, 2001, p. 249), em suma, várias das
explicitações do objetivismo são denunciadas ao longo desse trajeto. O ponto de par-
tida, delineado na introdução, constata que o pensamento objetivo nunca soube lidar
com a indeterminação e a ambigüidade da experiência imediata.
Ocorre que a continuidade da Fenomenologia vem mostrar que o tempo está no
coração da experiência, legitimando as descrições do corpo, do sentir e do mundo per-
cebido. A indeterminação e a ambigüidade do campo fenomenal, que escapam com-
pletamente ao raciocínio próprio a uma ontologia do ser determinado, encontram sua
condição originária nas dimensões temporais. Este é, como nos explica Moutinho, o
sentido transcendental do “tempo-sujeito”, na medida em que ele vem, “ao invés de
expulsar a ambigüidade que encontramos nas descrições, instalar essa ambigüidade no
centro da filosofia, tornando-a definitiva”(Moutinho, 2006, p.245). A pertinência des-
sa afirmação nos autoriza a concordar com aqueles que consideram o capítulo sobre o
tempo o núcleo teórico da obra, o centro da determinação dos fundamentos da expe-
riência, isto é, a própria chave de uma fenomenologia da percepção
Mas a temporalidade surge como escopo de um longo trajeto em que a experiência
do corpo e o modo como ela conduz ao mundo e ao outro são analisados em detalhe

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Débora Morato Pinto

e em oposição aos estudos efetivados à luz da racionalidade moderna. E, eis o que nos
interessa, a despeito da insistência em se afastar da interioridade bergsoniana, o diálogo
crítico e positivo com os dados da psicologia descritiva constitui a base desse percurso,
sobretudo em seus passos iniciais. A crítica ao empirismo e ao intelectualismo está fun-
dada no reconhecimento de que a estrutura figura e fundo define a percepção, não há
perceber que não se dê como relação entre um algo e seu campo – uma tese demons-
trada e explorada nos trabalhos da escola da Gestalt. Mais que isso, as descrições que
atravessam a obra “firmam seus primeiros passos com os psicólogos”(Merleau-Ponty,
2004, p.99). As condições últimas da experiência possível, aquilo que se torna o trans-
cendental na filosofia de Merleau-Ponty – transcendental reformado “para que possa
abranger as diversas facetas do mundo da vida”(Sacrini, 2006, p.12) –, são delimita-
das como campo fenomenal. Se a obra capital do fenomenólogo se nos apresenta em
duas etapas bem marcadas, o retorno aos dados da experiência (primeiro momento) a
partir do qual se poderá determinar seu significado e de seus fundamentos (segundo
momento), tais etapas redimensionam a fenomenologia como filosofia transcenden-
tal. Em outros termos, a descrição direta dos processos relativos ao corpo e ao mundo
compõem o que se define como o trabalho descritivo da Fenomenologia da percepção e a
terceira parte, quando o cogito e o tempo serão trabalhados, constitui o momento em
que Merleau-Ponty efetiva sua “fenomenologia da fenomenologia”(Merleau-Ponty,
2004, p.99), reflexão de segundo grau em que as ambigüidades que marcaram a expe-
riência perceptiva são compreendidas em seu sentido filosófico, A temporalidade vem
então esclarecer esse sentido, oferecendo-nos o fundamento da ambigüidade e mos-
trando-a definitiva; ou seja, a generalidade e a particularidade articulam-se finalmente,
dissolvendo o paradoxo da atividade que é passividade, através do tempo, ou antes,
do “tempo sujeito que é todo e múltiplo, definitivamente ambíguo, porque só há to-
talidade na multiplicidade, generalidade na particularidade”(Moutinho, 2006, p.265)
É possível encontrarmos elementos já no percurso descritivo que expõem como
a ambigüidade dos processos da experiência está sustentada na temporalidade, indi-
cando a diferença de base entre o tempo merleau-pontiano e a duração bergsoniana.
Desde a delimitação do campo fenomenal, tal diferença é marcada por Merleau-Ponty,
como vimos acima, o que nos indica a coerência da relação crítica assim estabelecida,
bem como o seu ponto culminante, atingido no momento em que a “multiplicidade
qualitativa” de Bergson é recusada. Como a experiência tomada na interioridade psí-
quica traz à tona tal multiplicidade indistinta ou confusa, palco da indeterminação e
fundamento da liberdade, ou seja, uma zona da experiência consciente em que a durée
é de fato apreendida, não é pouco o que essa contraposição pode nos ensinar. Há ainda

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Merleau-Ponty em Salvador

outra dimensão da relação entre descrição da experiência e compreensão da tempo-


ralidade em Merleau-Ponty que vem lançar luz aos nossos propósitos. Sabemos que a
descrição do sentir acaba por evidenciar os dados imediatos da experiência consciente
não mais como “impressão” ou interioridade, mas sim como campo de relações ou
conjunto impregnado de “significação imanente”. O imediato não é a interioridade ou
o psíquico, mas revela-se na investigação fenomenológica – necessariamente fundada
em dados descritivos sem, entretanto, reduzir-se a tal descrição – como “o sentido, a
estrutura, o arranjo espontâneo de partes”(Merleau-Ponty, 2004, p.91). Essa conclu-
são, em torno da qual se organizará a continuidade das descrições, é enunciada em
contraste direto com a posição bergsoniana: o sentido ou a configuração sensível não
se apresenta intuitivamente, numa coincidência inefável, numa impressão muda. Em
suma, a impressão, pela qual se define, segundo Merleau-Ponty, a intuição da duração,
condena a filosofia ao silêncio, senão ao solipsismo da vida “cega, solitária e muda”. A
razão maior da condenação do Bergson do Ensaio expõe o aspecto essencial da expe-
riência: “a interioridade, definida pela impressão, por princípio escapava a qualquer
tentativa de expressão”(Merleau-Ponty, 2004, p.90, grifo meu).
A expressividade, ou a falta dela, é a lacuna da multiplicidade interna. Sabemos
que a reabilitação da sensibilidade, em Merleau-Ponty, recupera seu sentido imanen-
te, estabelecendo uma nova e original relação entre o sensível e sua significação cujo
principal operador teórico é, segundo Moura, a expressão, conceito que funciona como
“novo elo”(Moura, 2001, p.245) e repõe o laço que o convencionalismo tornara in-
viável. Com efeito, no artigo “A cera e o abelhudo” acompanhamos o esclarecimento
sobre a tarefa hercúlea do conceito: fazer a linguagem e a experiência, já que a ex-
pressão é o centro da convergência na análise fenomenológica dos dois domínios de
investigação, escaparem aos impasses da exterioridade sem, entretanto, fazê-las recair
numa interioridade fechada em si. Assim, se através da crítica ao objetivismo e ao con-
vencionalismo1 o signo e a significação não se encontram mais em territórios distin-
tos, se a expressão torna possível pensar sua imanência, isso não se identifica a trocar
“o exterior pelo interior”(id., p.250). Em outros termos, não há significação antes do
1 Os admiráveis ensaios de Carlos Alberto Ribeiro de Moura sobre Merleau-Ponty mostram a convergência entre a fenome-
nologia da experiência – ou da percepção – e a fenomenologia da linguagem, assentada na superação da aporia “interioridade
X exterioridade”. No artigo aqui citado, cujas considerações retomamos como direções para nossa investigação, a relação en-
tre expressão e tempo surge como esclarecimento fundamental da originalidade de Merleau-Ponty face à tradição filosófica.
No caso da denúncia de certa tendência à objetivação da linguagem configurada pelo convencionalismo, cabe transcrever
o cerne das críticas: “A crítica às teorias da linguagem visa assim afastar as metáforas com as quais, insistentemente, a tradi-
ção comentava a exterioridade entre o signo e a significação. Designação, tradução, manifestação ou veste do pensamento,
são tantas as expressões que apenas ganham sentido a partir da escolha prévia de se fazer da linguagem algo separado do
pensamento”(Moura, 2001, p.248). Essa convergência, que aponta para uma filosofia da linguagem extremamente relevante,
é o que de fato, apostamos, afasta Merleau-Ponty de Bergson, muito mais do que as ressalvas em relação à durée.

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Débora Morato Pinto

signo e tampouco dentro do signo, e a insistência que encontramos na Fenomenologia


da percepção em recusar a exterioridade não faz da posição do filósofo uma “apologia
da interioridade”2 É fundamental ressaltar o que está em jogo aqui: se Merleau-Ponty,
ainda segundo Moura, explicará esse poder da expressão à luz da noção husserliana
de transcendência imanente, ele transfere tal “quadro conceitual” para o campo da
intencionalidade operante, “aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do
mundo e de nossa vida”(Merleau-Ponty, 2004, p.16). A transferência assim efetiva-
da significa, por sua vez, que a passagem que se trata de descrever é a que se dá entre
noema e objeto, ao invés de tratar da relação entre os conteúdos vividos – atos reais
– e os noemas, como em Husserl. Agora, a intencionalidade revela-se ligação entre o
objeto e uma multiplicidade de noemas que circunscrevem a manifestação – a signifi-
cação se objetiva, aponta um exterior do sujeito que se origina do interior. Os conte-
údos perceptivos passam a ser o dado, o sensível é o vivido como manifestação, cuja
expressividade traz intencionalmente a significação. O objeto, aquilo que se manifes-
ta, passa a ser considerado “a transcendência imanente em face dos noemas”(Moura,
2001,p.255). A passagem que se trata de elucidar, a verdade da intencionalidade ope-
rante, reside na transição entre o dado, o presente, o sensível, e o visado, o intencio-
nalmente presente ou o significado. Não há um ato constitutivo do sujeito, mas um
presente no qual ele está imerso e vive, e que traz em si um outro, um além, que pro-
mete o transcender-se em ligação consigo, a transcendência imanente.
A passagem de um momento a outro do tempo, que não pode depender de um
termo exterior aos próprios momentos, é a chave da análise da temporalidade. Descre-
ver uma síntese passiva ou de transição significa compreender finalmente a dialética
interna ao tempo. O que nos interessa aqui é a afirmação de Moura, sustentada por
trechos da Fenomenologia, de que a relação entre um agora e os momentos passados e
futuros que nele estão presentes em intenção é a de uma “quase-presença”, é a própria
relação de transcendência imanente: isso significa simplesmente que o fundamento
da relação expressiva é o tempo, o qual garante a passagem interna entre o dado e o
visado, entre o presente e o passado, entre o futuro e o presente. Em suma, a afirma-
ção de que “o tempo está no coração da expressão”, ou seja, a defesa de que “pode-se
encontrar, no plano do tempo, todas as distinções em função das quais é elaborado
o conceito de expressão, e o lugar da intencionalidade da qual a expressão será o ou-

2 Retomamos aqui considerações apresentadas anteriormente, quando tocamos na relação entre essa necessidade de superar
a classificação exterior/interior e a postura crítica de Merleau-Ponty em relação a Bergson. Pretendemos estar desenvolvendo
aqui algum avanço sobre tal relação a que fizemos alusão, sobretudo pela relação intrínseca entre expressão, reforma ontológi-
ca e temporalidade estabelecida por ele no capítulo sobre o tempo. Ver: Pinto, D.C.M., “A meditação segundo a percepção”
in Marques, R.; Pinto, D. (org). A fenomenologia da experiência. Goiânia: Editora da UFG, 2006, pp.171-202.

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Merleau-Ponty em Salvador

tro nome”(Moura, 2001, p.259). Trata-se do modo como a manifestação anuncia o


significado, numa ligação à distância, numa “nova” interioridade sem que a primeira
contenha o segundo, e ele se revela no nosso campo de presença, em que os momentos
temporais se anunciam uns aos outros, em que o presente traz consigo seus horizon-
tes de retenção e protensão. Assim, do mesmo modo que o perfil anuncia a coisa sem
contê-la e essa relação aponta para uma nova maneira de pensar a parte como expres-
são do todo – maneira já indicada ao longo das duas obras iniciais de Merleau-Ponty
pela categoria da Gestalt – a temporalidade está fundada numa unidade natural que
condiciona uma síntese de transição. Cabe-nos ressaltar dois fatores essenciais à aná-
lise das referências a Bergson: a verdade da percepção reside em ser uma Gestalt,
pondo em cena uma totalidade internamente ligada em partes ou perfis, cuja coesão
remete ao todo que as sustenta, mas que jamais se apresenta como tal. E, do mesmo
modo, a verdade do tempo reside na sua unidade, segundo a qual “cada momento
do tempo se comunica com todos os outros”(Moura, 2001, p.264), mas me permite
diferenciar passado de presente e com isso ter o sentido do passado, da transição, da
deiscência. A unidade do tempo é condição indispensável para efetivação de uma
passagem contínua de um momento a outro, da passagem ao outro, de uma síntese
não externa aos momentos que vivemos, isto é, não originada numa consciência té-
tica ou num entendimento.
Ao permanecer em regime de exterioridade – pensando, em oposição à espaciali-
dade, uma interioridade oposta às partes extra partes e fechada em si – Bergson teria
falhado naquilo que é tarefa por excelência da renovação ontológica: superar a dis-
tinção abismal entre objetividade externa e interioridade subjetiva. Desde Descartes,
o dualismo virou núcleo ontológico nunca abandonado e a distinção substancial se
disfarça sob as mais diversas roupagens. A interioridade psíquica inextensa seria ape-
nas mais uma figura da res cogitans, isolando o sujeito na incomunicabilidade com o
mundo exterior e extenso. Ao menos no Ensaio, Bergson teria permanecido atrelado
aos prejuízos modernos e teria dividido o real em dois gêneros de ser, agora represen-
tados pelas duas multiplicidades cuja distinção está no centro do livro. Dois gêneros
de ser que compõem o real, num realismo dualista que nada faz avançar a ontologia.
Seria preciso esperar Matéria e memória para ver na filosofia de Bergson uma intuição
nova e um avanço no sentido fenomenológico. Em outros termos, se a “subjetividade”
do racionalismo clássico só pode ser pensada como substância distinta ou realidade
metafisicamente oposta à exterioridade partes extra partes dos objetos materiais, que se
prestam à matematização completa, a tarefa de superação da oposição clássica somente
seria iniciada quando Bergson desenvolve, na segunda obra, uma nova e original con-

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Débora Morato Pinto

cepção da representação que pensa a sua gênese a partir de um campo pré-subjetivo e


pré-objetivo, num itinerário convergente com a fenomenologia3.

******

Vejamos então alguns momentos da análise do tempo à luz das considerações aci-
ma desenvolvidas. Se ela nos oferece o a priori das descrições, sua importância ainda se
intensifica quando consideramos, segundo Moutinho, que ele se revela o fundamento
último do conhecimento, já que todo pensamento tético tem sua origem e seu solo na
camada pré-reflexiva, ponto essencial para uma fenomenologia que interdita a “pas-
sagem à esfera constitutiva”. Assim, a fenomenologia da fenomenologia na terceira
parte do livro vem dar conta, retrospectivamente, “daquela mútua implicação, apenas
antecipada, entre a esfera objetiva da atitude natural e o campo fenomenal ao qual ela
remete”(Moutinho, 2004, p.11). As contradições serão absorvidas pelo tempo, ver-
dadeiro transcendental, e nesse sentido a convergência com Bergson se apresenta nas
intenções de ultrapassar o pensamento objetivo, que opera em “regime de ser”, só acei-
tando noções alternativas, exatamente como o entendimento espacializador diante da
heterogeneidade e da mudança.
O sentido da temporalidade no campo da experiência atravessa toda a parte des-
critiva da Fenomenologia da percepção, sendo anunciado de modo mais explícito na
introdução à análise do corpo. Se, espacialmente, o processo de delimitação de um
objeto deriva do movimento de fixação percorrido por meu olhar, então o ato de ver
tem duas faces: exige a estrutura “objeto-horizonte” para sua efetivação. Um objeto é
fixado pelo movimento do olhar que, ao se concentrar numa região do campo que a
ele se abre, acaba necessariamente por “adormecer a circunvizinhança”(Merleau-Ponty,
2004, p.104). A relação intrínseca entre mostrar e esconder, o jogo entre o objeto e o
horizonte que o envolve, a implicação mútua entre os objetos indicando um sistema
do mundo visual sugerem que a identidade de um objeto só se constitui na base da re-
lação figura e fundo na qual ele se dá ou existe para nós. Assim, a posição de um objeto
determinado, a delimitação da objetividade, se dá sobre esse fundo relacional sem o
qual nada se vê: “o horizonte é aquilo que assegura a identidade do objeto no decorrer
da exploração, é o correlativo da potência próxima que meu olhar conserva sobre os

3 O primeiro capítulo de Matéria e memória é apontado por muitos como momento privilegiado da obra de Bergson,
tomando-o inclusive como o texto em que se antecipam algumas discussões fundamentais à própria Fenomenologia da per-
cepção, como já bem mostraram Victor Goldschmidt e Bento Prado Júnior. Ver a esse respeito Annales Bergsoniennes I,
Paris:PUF,2002, p.73-90, e o terceiro capítulo de Presença e campo transcendental, São Paulo:Edusp, 1989.

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Merleau-Ponty em Salvador

objetos que acaba de percorrer e a potência próxima que já tem sobre os novos deta-
lhes que vai descobrir”(Merleau-Ponty, 2004, p.105). A estrutura objeto-horizonte é a
condição do mostrar-se, pois é a do esconder-se. Em outros termos, há uma identifica-
ção do objeto que não apela à memória e à consciência explícita do reconhecimento: o
objeto se identifica no movimento de fixação, na exploração do campo pelo jogo com
os horizontes. E essa relação entre mostrar e esconder explicita uma potência próxima
do olhar para o que se viu e o que se verá.
Constatamos assim que, desde as primeiras considerações sobre o ver, Merleau-
Ponty evidencia tal relação de potência próxima, que se torna mais explícita na descrição
da dimensão temporal. Um objeto estrito senso seria visto a partir de todos os tempos
e por meio da estrutura de horizontes. Mas sua condição primeira é o presente em que
ele se forma, e o que interessa é que “o momento presente é pleno”. Já aqui o fenome-
nólogo alude à espessura do presente, ao tempo como coração da experiência. A ple-
nitude do presente reside na conservação do passado imediato ainda presente, ainda
nas mãos do presente, ao seu alcance. Esse passado que já foi presente também retém
o passado imediato que o precedeu e, nesse sentido, todo o tempo já passado de algum
modo é retomado no presente, ainda que sob uma forma distinta daquela que os mo-
mentos revestiram quando foram presentes. Insinua-se uma totalidade nunca repre-
sentada, mas retomada num ato singular da consciência. O horizonte do passado acu-
mulado e a abertura ao futuro cujo estilo é pré-figurado acompanham o conjunto que
se fixa como um momento atual da minha vida, que jamais se apresenta como todo fe-
chado e determinado. A despeito dos objetos “existentes” em face do sujeito, a despeito
das recordações expressas e das sínteses de identificação, a experiência se efetiva como
um campo em que a consciência atual retoma uma história e incide sobre o mundo
sem evocar o passado representando-o e sem imaginar o futuro delimitando suas alter-
nativas, suas opções, seu conjunto de possibilidades explícitas e determinadas.
O enigma dessa forma de apresentar-se é o mistério do tempo e o núcleo de nossa
experiência. Trata-se de saber como o presente pode referir-se diretamente à totalidade
do tempo decorrido, o passado total. Ora, a diferença entre minha relação com meu
presente e a referência ao passado, imediato ou remoto, assim como ao futuro iminen-
te ou longínquo, é a que se estabelece entre ver e ver em intenção, de forma presunti-
va, entre aquilo que vivo atualmente e a espécie de “névoa” que o envolve, que pode-
mos explorar pela analogia com a diferença psicológica entre “sentir” e “pressentir”.
O presente se apresenta para mim, é aquilo que vivo e experimento, o campo direto
em que espetáculo do mundo se abre para uma subjetividade. O passado e o futuro,
entretanto, o espreitam, como “minha jornada transcorrida” e a tarde e a noite que es-

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Débora Morato Pinto

tão no “horizonte”(id., p.557). Assim, passado e futuro estão e não estão presentes,
eles são na verdade “dimensões intencionais às quais a subjetividade se dirige e não
têm o mesmo peso da vivência atual”(Sacrini, 2006, p.195). Nesse âmbito, é ainda
mais amplo o campo temporal que o presente de algum modo contém: o passado
imediato tinha seu próprio futuro iminente, com meu passado imediato “tenho o
horizonte de futuro que o envolvia, tenho, portanto, o meu presente efetivo visto
como futuro desse passado”(Merleau-Ponty, 2004, p.106). O presente efetivo “vê” o
passado imediato e se vê como futuro desse passado. E com o futuro iminente tenho
o horizonte de passado que o envolverá, tenho, portanto, meu presente efetivo como
passado desse futuro. A objetivação, transformação do presente fático em presente
objetivo, isto é, instante do tempo objetivo, é então proporcionada por esse duplo
horizonte de protensão e retenção, de conservação não tética do horizonte do passado
e do horizonte do futuro e pela visão do próprio presente como futuro do passado
e passado do futuro. Graças a esse duplo horizonte, “meu presente pode deixar de
ser um presente de fato, logo arrastado e destruído pelo escoamento da duração, e
tornar-se um ponto fixo e identificável em um tempo objetivo”(id., p.108).
Mas o meu olhar só põe uma face do objeto e visa as outras; o presente só tem o
passado imediato em intenção. Assim, a síntese dos horizontes (união e conservação
perceptiva) é apenas presuntiva, e só opera “com certeza e com precisão na circunvi-
zinhança imediata do objeto”. E é por isso que o objeto visto se perde num horizon-
te anônimo, restando inacabado e aberto; por essa abertura, sua substancialidade se
escoa. Merleau-Ponty arrisca também determinar o que seria a densidade do objeto:
ela se sustentaria numa infinidade de perspectivas que seriam o “objeto absoluto”.
O processo de realização da densidade do objeto a revela como noção que remete
aos olhares infinitos que veriam tudo o que não posso ver, mas que pertenceria ao
objeto. Além de nunca vermos a totalidade dos elementos da casa, não podemos
reconhecer a casa mesma porque a duração lhes dá modificações; quando podemos
confrontar nossas recordações com os objetos aos quais se reportam somos surpre-
endidos com as mudanças que eles sofreram no tempo. Mesmo assim, acreditamos
que há uma verdade do passado, apoiamos nossa memória numa imensa Memória
do mundo, “na qual figura a casa tal como ela verdadeiramente era naquele dia e que
funda o seu ser no mundo”(id., p.108). Desse modo, quando formamos a noção de
objeto, que exige ser considerado em si mesmo, ele está inteiramente exposto, suas
partes coexistem quando nosso olhar as percorre alternadamente, “seu presente não
apaga seu passado, seu futuro não apagará seu presente”: a temporalidade é, pois, o

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Merleau-Ponty em Salvador

solo da objetivação4. Mas a constituição de um objeto pleno e determinado oculta seu


solo temporal: a representação espacial ou de coexistência atual das partes é o oposto
estrito senso da relação objeto horizonte do campo visual e, portanto, da dialética tem-
poral. A objetivação, posição de um objeto é “a morte da consciência”, pois sepulta o
tempo enquanto relação viva com a consciência. O tempo é a subjetividade, ou está
em ligação íntima com ela, pois ele se instala nessa relação entre a consciência e o mun-
do – o tempo e o sujeito “comunicam-se do interior”(Merleau-Ponty, 2004, p.549).
Em outros termos, o sujeito é temporal, porque não é eterno, porque existir é estar
no tempo. Se o sujeito transforma-se, num primeiro momento, no corpo, as operações
expressivas do corpo desembocaram em paradoxos cujo fundamento último serão os
paradoxos do tempo; desse modo, “sob o sujeito encontramos o tempo”(Moutinho,
2004, p18). Assim, desde o início de sua análise, Merleau-Ponty encontra antecipa-
ções sobre a temporalidade ao longo do trajeto descritivo, indicando sua ligação indis-
sociável com a subjetividade, o que imediatamente situa o fenomenólogo na seara da
Bergson. Mas aqui começam os pecados do filósofo da durée: ao encontrar a duração
no campo da interioridade como marca dos “fatos psíquicos” que se manifestam em
interpenetração, Bergson teria (na passagem da descrição dos estados de consciência
à delimitação do seu sentido filosófico) distinguido um novo gênero de ser, apenas
invertendo o seu atributo principal. Em outros termos, na passagem da descrição da
intensidade dos estados mentais, em que se apresenta a nós a imagem de uma multi-
plicidade, à diferenciação entre multiplicidade numérica e multiplicidade qualitativa,
teríamos apenas uma nova “substância”, um ser não mais fixo, distinto e imóvel, tal
como os entes físicos, mas um ser fluido, movente. Essa outra multiplicidade, cuja
descoberta é o ato inaugural de uma “outra metafísica”, segundo a boa expressão de
Pierre Montebello5, seria, nos próprios termos de Bergson, indistinta ou confusa, ma-
nifestando-se como interpenetração de momentos interiores uns aos outros e descrita
4 E solo das ilusões do pensamento objetivo, quando se toma por definitivo, esquecendo suas origens e tomando partido da
obsessão pelo ser e do esquecimento do perspectivismo da experiência: “trato o ser como objeto, eu o deduzo de uma relação
entre objetos”, nesse projeto de recalque do olhar e da posição do objeto, passo a considerar meu corpo como objeto entre
os outros, meus olhos como fragmentos de matéria (recalcando meu olhar como meio de ver, de conhecer), minha história,
etc. Trata do recalque envolvido no ato d pôr um objeto no sentido pleno, a qual exige a conjugação de todas as experiências
(pontos de vista) num único ato politético; a posição do objeto excede a experiência perceptiva e a síntese de horizontes. Do
mesmo modo, a noção de um universo, isto é, “de uma totalidade acabada, explícita, em que as relações sejam de determi-
nação recíproca, excede a noção de mundo, quer dizer, de uma totalidade aberta e indefinida em que as relações sejam de
implicação recíproca”(p.109).
5 L’autre métaphysique. Essai sur Ravaisson, Tarde, Nietzsche et Bergson. Paris: Desclée de Brower, 2003. Montebello aproxima
os autores pela noção de uma nova metafísica, em todos os sentidos oposta à metafísica clássica, mas também opondo-os,
sobretudo Bergson, ao caminho da fenomenologia. Nesse sentido, sua interpretação tem bastante relevância para nossos pro-
pósitos. Via de regra, a experiência de “tensão interna à nossa totalidade viva”(p.8), quer ela se defina como pulsão, esforço
ou duração, afastaria os autores do “donnée” fenomenológico.

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Débora Morato Pinto

como aquilo que se passa “dentro de mim”: um “processo de organização ou de pene-


tração mútua dos fatos de consciência que constitui a duração verdadeira”(Bergson,
1993 [2], p.80).
Merleau-Ponty remete essa descrição do tempo como fusão e confusão à tese da
conservação em si do passado, a delimitação da memória pura como “bola de neve”,
indicando-nos que Matéria e memória também entra em questão: não foi suficiente
criticar o espaço ou a espacialização, não foi o bastante vincular percepção e ação,
o tempo continua para Bergson uma “série de agoras que faz bola de neve consigo
mesma”(Merleau-Ponty, 2004, p.623, nota 19). Mais que isso, não basta vincular in-
ternamente consciência e tempo, pois ao falar do tempo como multiplicidade de fu-
são, Bergson pensou a consciência “como um líquido em que os instantes e as posições
se fundem”(id., p.644, nota 47), impedindo qualquer compreensão da articulação
entre passado, presente e futuro e impossibilitando a inteligibilidade dos atos de cons-
ciência pelos quais o tempo seria retomado e a consciência se “saberia a si”. A ipsei-
dade que relaciona a consciência a si mesma, o Si que inaugura um cogito não teria
lugar nessa temporalidade diluída e passiva. Bergson teria falhado, enfim, ao falar do
tempo em terceira pessoa, pensando-o ainda como coisa ou objeto, mesmo que coisa
fluida ou “energia espiritual”. Ele teria permanecido preso a um realismo ingênuo e,
ao pensar a unidade do tempo como mistura, perdeu o sentido do tempo, por não
encontrar ou oferecer meios de diferenciar, nesse caldo, passado, presente e futuro. O
tempo como multiplicidade confusa seria um tempo nivelado, homogêneo, um tempo
que não se diferencia e que assim não passa – em suma, um “não tempo” tal e qual as
concepções espacializadores às quais sua durée procuraria superar.
A crítica não é feita de modo genérico. Em sua descrição da experiência, Bergson
teria deixado escapar o essencial por ter perdido o tempo, e essa perda se explicita, para
Merleau-Ponty, em três aspectos relacionados: em primeiro lugar, Bergson não enten-
deu que o tempo exige o espectador finito, ele não é um “processo real”, mas nasce
de nossa relação com as coisas; em segundo lugar, Bergson não percebeu que o tempo
não é uma sucessão de “agoras”, mesmo que esses tempora ou instantes sejam rodeados
de passado imediato e futuro iminente – os instantes se definem “por relação a”, um
novo presente é o futuro que veio a ser, o passado é o presente que passou, isto é, saiu
da linha do presente e se conservou como perfil, em sua individualidade própria, mas
dado em intenção. Finalmente, Bergson teria sido incapaz de dar conta da unidade do
tempo – e assim de sua coesão. A totalidade que se mantém no movimento de impul-
so ininterrupto sustenta a descrição merleau-pontiana da articulação movente entres
os momentos do tempo, das projeções dos momentos que “saem uns dos outros”, cuja

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Merleau-Ponty em Salvador

condição é dissolução ou “deiscência total”(Merleau-Ponty, 2004, p.562). Enfim, não


há em Bergson descrição e significação que dêem conta da abertura própria à tempo-
ralidade “ek-stática” (e aqui Heidegger vem em apoio), enfim, da síntese passiva do
tempo que, na nota crítica já citada, Merleau-Ponty denomina “sinopse” – porque ten-
tou explicá-la pela mera continuidade, quando é a unidade do tempo que funda sua
continuidade. Bergson não teria conseguido articular a densidade e a coesão do tempo
com seu movimento interno de “fuga geral para fora do si”: apesar de que, nos textos
tardios, o fenomenólogo reconhecerá na filosofia da duração “uma antecipação desse
pensamento da deiscência”(Dupond, 2008, p.53)6. Essa divergência deve ser ressalta-
da: o que está em jogo aqui é o tempo como totalidade, o todo que sustenta a passa-
gem contínua de seus instantes, de seus tempora.
A pertinência das críticas merleau-pontianas, sua eventual inadequação ou infide-
lidade ao texto bergsoniano assim como a reverberação de tais ressalvas no interior da
filosofia da duração abrem-nos a uma série de questões que envolvem as inclinações
fenomenológicas de Bergson. Não pretendemos desenvolvê-las aqui, mas podemos in-
dicar como o problema do aparecer da duração a si mesma, isso é, à consciência que é
“espectadora e atriz”7 na intuição da durée, acaba por ser o nó da discussão. Em todo
caso, há um elemento do capítulo da Fenomenologia sobre temporalidade que parece
particularmente fértil nesse contexto: o modo como Merleau-Ponty mobiliza a metá-
fora do rio. A “célebre” metáfora é confusa, porque pode significar a objetivação do
tempo: se ele é como um riacho, se “le temps passe ou s’écoule”(Merleau-Ponty, 2004,
p.550), ele é tomado como um fluxo que se compõe de um antes, um durante e um
depois, ou seja, um processo real e objetivo, sobre o qual falamos em terceira pessoa.
O “tempo-rio” não dá conta do acontecimento, que exige um espectador para quem
a mudança das águas apareça, um espectador finito que recorte o acontecimento. No
tempo objetivo, a noção de acontecimento não tem nenhum sentido: quer pensado
nas coisas, quer pensado na consciência, esse tempo é um “único ser indivisível que
não muda”(id., p.556). O tempo não é a substância fluente de Bergson porque “supõe
uma visão sobre o tempo”. Desse modo, ao observar-se o riacho desde sua margem, há
uma inversão em relação ao rio em si: o porvir passa a situar-se na nascente e as águas
que se escoaram vão em direção ao passado (não mais ao futuro, pois elas acabaram de
6 E o texto citado por Dupond é uma passagem de o Visível e o Invisível em que a “consciência espectadora e atriz” é
mencionada, num reconhecimento de que “entre a intuição e o intuicionado não há nem fusão, nem coincidência, nem
exterioridade”(Dupond, 2008, p.53).
7 Perguntar-se pela essência da duração identifica-se, para Bergson, à questão sobre seu modo de aparecer, conforme a pas-
sagem essencial de La pensée et le mouvant: “Como a duração apareceria a uma consciência que não quisesse senão vê-la sem
medi-la, que a apreendesse então sem detê-la, que se tomasse enfim a si mesma por objeto e que, espectadora e atriz, espon-
tânea e reflexiva, aproximaria, até fazê-las coincidir, a atenção que se fixa e o tempo que escapa?”(Bergson, 1993 [1], p.4).

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Débora Morato Pinto

ser vistas, viraram passado); se o rio simplesmente escoasse, seu passado seria a nascen-
te e seu futuro seria o mar em que ele desemboca. Pelo contrário, se há um espectador,
o que ele vê são as águas passando, elas passam e se tornam passado, as águas que con-
tinuam em direção ao mar são as águas que ele já viu; as águas que vêm da nascente
são as águas que ele verá, que aparecerão, são o futuro.
A bem dizer, o espectador é já suposto quando dizemos que o rio se escoa: isso
significa conceber, ali “onde só existe uma coisa inteiramente exterior a si mesma,
uma individualidade e um interior do riacho que desdobra, no exterior, as suas
manifestações”(Merleau-Ponty, 2004, p.551). A metáfora é confusa, mas não total-
mente inadequada, o que a manteve desde sempre foi a pressuposição tácita do espec-
tador indicada pelo pronome “se”, já que supor o reflexivo indica ao menos a alusão
a um auto-desenvolvimento ou a uma auto-posição que se manifesta a si ao se des-
dobrar. A metáfora do rio não apenas não é totalmente inadequada, como encontra
sua justificativa em outra dimensão temporal, apresentada por Merleau-Ponty depois
de retomar o diagrama husserliano do tempo e de novamente explicitar a hesitação de
Bergson. O tempo pode ser comparado a um riacho se considerarmos a sua unidade,
o fato de que ele é um único ímpeto indiviso, tal como um jato d’água, em que suas
partes se modificam em relação umas às outras, ou melhor, se diferenciam umas das
outras. O tempo se temporaliza pelo movimento articulado de suas partes, numa certa
orquestração em que a mudança de uma delas está ligada à mudança das outras: o pre-
sente que se torna passado imediato “desce” à condição de perfil, mas ele era um futuro
pré-figurado que veio tomar sua posição como agora, tornando-se passado imediato na
mesma ação em que deixou de ser futuro. Assim, se o jato d’água permanece, é apenas
enquanto suas ondas continuam a mudar, a tomar e retomar o lugar das ondas prece-
dentes, sem estarem jamais separadas: há um único jato, um único ímpeto, e é aqui
que “aqui que se justifica a metáfora do rio: não enquanto ele se escoa, mas enquanto
permanece um e o mesmo”(Merleau-Ponty, 2004, p.565).
É certo que Bergson nos apresenta à intuição da duração, em primeiro lugar, no
mergulho interior que o Ensaio sobre os dados imediatos comenta. Assim, a durée é sen-
tida de dentro e retomada numa análise dissociativa da percepção de alguns eventos
ilustrativos – as oscilações de um pêndulo, as batidas de um martelo, etc., mas a multi-
plicidade de interpenetração é encontrada sempre no âmbito da interioridade, “dentro
de mim”. No caso da experiência tematizada na Fenomenologia da percepção, temos o
ser-no-mundo tomado em suas dimensões originárias. Mas, para ambos, trata-se de
descobrir uma articulação de eventos na experiência consciente que não pode ser en-
quadrada na representação partes extra partes. Mais que isso, se o campo fenomenal,

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Merleau-Ponty em Salvador

aberto pela crítica da tradição e explorado pela análise do corpo e do sentir, consiste
no solo mesmo da experiência, sua retomada como campo de presença nos dá as con-
dições originárias da temporalidade, isto é, uma apreensão fiel do ser do tempo. Com
efeito, Merleau-Ponty mostra que o contato com o tempo e a apreensão do seu sentido
se dão em meu campo de presença – só posso compreender o passado distante como
sendo da ordem temporal enquanto esse passado foi presente, “foi atravessado por mi-
nha vida”. O campo de presença é o momento atual, vivido por mim, e é rodeado do
que foi e do que virá: nele estão “pressentidos” o passado e o porvir, que a ele se mis-
turam e fazem dele um evento. Eles estão “presentes”, são presença não notada, sem
representação, tensionam o atual sem exatamente aparecerem. Rodeado de virtualida-
des, o momento que vivo, meu campo de presença é a experiência originária do tempo,
na qual “o tempo e suas dimensões aparecem em pessoa, sem distância interposta e
em uma evidência última” (Merleau-Ponty, 2004, p.557) – tal e qual uma intuição,
visão direta do espírito pelo espírito, que nos dá sempre uma continuidade indivisa e
esse dar-se não apresenta vazios, distância entre o que aparece e suas dimensões, como
também não apresenta distância entre o aparecer e o sujeito. O passado pesa sobre o
presente, o futuro desliza sobre ele, que então desliza para o passado – o deslizamento
se efetiva em nós e para nós, e ele significa um passagem em que esses diferentes mo-
mentos se misturam, “embaralham-se”. Em outros termos, o passado imediato não é
evocado, não vem à consciência, mas está ao alcance de poder ser evocado, eu o tenho
“ainda em mãos”. Na experiência primordial do tempo, ele é para nós como um am-
biente movente que se distancia de nós, modo pelo qual Merleau-Ponty descreve “a
fuga geral do Si”, a diferenciação ininterrupta dos momentos temporais que se efetiva
em totalidade como “um único fenômeno de escoamento”(id.). A convergência com a
descrição do dar-se por perfis é notável: a tarde que vai chegar não é elemento da per-
cepção, “não a vejo, mas ela está ali como o fundo de uma figura”, como a face oculta
do dado que percebo. O presente, assim como a face do dado, se prolonga em linhas
intencionais e traça o “estilo” do porvir. E o presente novo, a passagem a um novo
momento, ao porvir, não é um salto: o porvir vira presente, que vira passado, e é com
“um só movimento que, de um extremo a outro, o tempo se põe a mover”(Merleau-
Ponty, 2004, p.561).
O tempo tem uma unidade natural que é sua coesão e que só se efetiva pela diferen-
ciação de seus momentos, a qual Merleau-Ponty procura descrever reinterpretando o
gráfico de Husserl. Quando passo de A a B, A vira perfil, isto é, retenção de A como A’,
A se projeta ou se perfila em A’. Há uma transformação de A em A’ que é vivida, e nessa
experiência não há uma síntese que faz de A uma unidade ideal; A é o passado imedia-

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Débora Morato Pinto

to que me é dado em pessoa em B através de A’. O fundamental é que a passagem de


A a B não é um salto e eu não represento B em A; eu tenho B em A como futuro pró-
ximo, em gênese, com seus perfis também: quando passo a B, é esse conjunto de perfis
que formam uma unidade natural que vem com C em seu limite, sua maturidade, com
uma densidade, C sendo o limite de uma concentração de perfis. Há então um acordo
e uma recuperação do passado e do porvir através do presente, numa síntese abaixo
da síntese de recognição, e esse acordo é a base do tempo objetivo. O tempo conserva
aquilo que fez ser no próprio momento em que o expulsa do ser, porque o novo ser era
anunciado pelo precedente como devendo ser (era porvir próximo) e porque para este
era a mesma coisa tornar-se presente e ser destinado a passar: “a temporalidade não é
uma sucessão de êxtases. O porvir não é posterior ao passado e este não é anterior ao
presente. A temporalidade , segundo a fórmula de Heidegger, se temporaliza como
“porvir-que-vai-para-o-passado-vindo-para-o-presente” (id. p.563)
Desse modo, a síntese passiva repousa na unidade natural do tempo, na coesão que
marca a tempo enquanto ímpeto único, totalidade movente em que as partes se modi-
ficam e se modulam continuamente. Se passo de um instante a outro do tempo, isso
significa que o futuro iminente passa ao presente necessariamente “empurrando” esse
momento para além da linha do presente: A só se apresenta, na passagem a B, atra-
vés de A’, mas se apresenta em pessoa, sem perder sua singularidade. É por isso que
Merleau-Ponty pode dizer que “eu retenho o passado”, e reter é ter à distância. Tanto o
passado imediato quanto o futuro iminente fazem “parte” do campo de presença, mas
não como conteúdos reais. Eles me são dados pelo filtro dos perfis, A’ na dissolução,
B como realização do que se antecipava num estilo pré-figurado. B vem a ser presente,
mas ele mesmo carregava consigo seu futuro iminente, cuja densidade é condição para
a não desintegração do tempo. Assim, a referência ao tempo como totalidade sustenta
a continuidade, e a elucidação da continuidade se dá pela síntese passiva, pelo movi-
mento de deiscência pelo qual a temporalidade é.
Daí outra referência negativa a Bergson. A relação entre passado, presente e porvir
não é “cronológica”, não se trata de uma sucessão como na linha do tempo; há sim um
acordo entre passado e presente, entre futuro e presente, na passagem, uma recupera-
ção do passado e do porvir através do presente – tudo se dá pelo presente, na transi-
ção, na espessura do tempo. O tempo faz ser e conserva esse ser feito, mas a conser-
vação do que ele fez ser se dá por sua expulsão do ser – o novo ser era porvir próximo
(futuro imediato, era anunciado como devendo ser, seu estilo estava pré-figurado) e
o porvir passar a ser ou tornar-se presente significa passar, ser destinado a passar, isso
é, a ser expulso do ser. De onde a referência à fórmula de Heidegger. O que Bergson

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Merleau-Ponty em Salvador

não teria percebido é que a unidade do tempo não pode ter como fundamento a sua
continuidade, pensada como indistinção entre passado, presente e porvir, numa no-
ção de tempo como confusão ou bloco homogêneo. Para Merleau-Ponty, com efeito,
a durée se define como conteúdo indiferenciado, tal como a expressão “multiplicida-
de indistinta” poderia sugerir, e torna-se impossível discernir na duração o passado, o
presente e o futuro.
Mas o que é a multiplicidade distinta? E como se explicita a multiplicidade qualita-
tiva no Ensaio? A descrição da fusão que impede a distinção entre passado, presente e
futuro é justa com Bergson? Ou ela teria desconsiderado o trabalho de “enformação”,
que revela uma articulação na duração, um organizar-se imanente à durée, ou mostra
o tempo como passagem de momentos interiores uns aos outros, como diferenças em
coesão? O Ensaio é o livro em que Bergson desenvolve sua distinção conceitual mais
importante, descobrindo e determinando a idéia de duração no esteio da descrição da
multiplicidade interna. Mesmo considerando que a durée se manifesta como relação
entre momentos interiores uns aos outros, desenrolar de diferenças internas e virtuais,
o estatuto da interioridade subjetiva em tal itinerário permaneceria problemático para
a fenomenologia. A questão que se coloca é saber como a reflexão do Ensaio não se
limita à descoberta de uma interioridade psicológica, mas de um absoluto que permi-
te fundar uma nova metafísica, desenvolver o método adequado a ela, apontando as
direções do seu “alargamento” sucessivo e concebendo assim “uma diversidade de du-
rações que correspondem aos diversos graus de ser”8. Tudo se joga na função da análise da
interioridade psicológica na constituição da filosofia de Bergson, isto é, de seu méto-
do e de sua doutrina. E tal análise nos dá indicações de que o fundamental na análise
psicológica se encontra na determinação da forma pela qual a interioridade se mani-
festa e é apreendida – em última instância, o essencial é a sua apreensão como criação
e diferença, restando saber como ambas exigem ou condicionam a interiorização. Em
suma, é a questão da verdadeira filosofia e de seu método que se recoloca a partir da
inspeção da interioridade da consciência: “a descoberta da duração psicológica con-
diciona a reposição da questão do método na filosofia, uma vez que é esta descoberta
que mostrará o caráter artificial do ‘problema da liberdade’”9. A crítica bergsoniana

8 Parte do verbete Durée no Le vocabulaire de Bergson, de Frédéric Worms. Este autor nos forneceu uma das chaves de leitura
do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, em sua Tese de Doutoramento – não publicada integralmente – quando nos
mostra, na construção dos dois primeiros capítulos do livro, uma reformulação do par sujeito empírico/sujeito transcenden-
tal, isto é, ao enfatizar a importância da análise da intensidade no primeiro capítulo bem como a forma como está encadeada
com a análise da multiplicidade do segundo – momento em que de fato se determina a idéia de duração.
9 Leopoldo e Silva, F. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo:Loyola, 1994. A discussão do método intuitivo é exa-
minada no detalhe pelo autor, e nos auxilia a pensar como se efetiva no texto do Ensaio a apreensão interna da própria inte-
rioridade, assim como a função do estudo da experiência interna metodicamente desenvolvida no método bergsoniano e seu

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Débora Morato Pinto

assim instaurada é processo de interiorização, que no seu sentido autêntico consiste na


“presença imediata do eu a si mesmo, cuja identidade se revela como diferença interna
do fluxo temporal”(id.).
A subjetividade profunda estudada no Ensaio põe em cena uma auto-posição de
um conteúdo em progressão. Seja na descrição da intensidade de um sentimento, que
se revela como progressão qualitativa, isto é, como totalização – figuras heterogêneas
marcadas por um mesmo tom cuja intensificação é a realização de uma essência do
sentir em atualização – seja na determinação da multiplicidade dos estados de consci-
ência em seu puro desenrolar, encontramos descrições e definições que retomam uma
relação com a totalidade na passagem de um conteúdo psicológico qualquer. Assim,
pelo esforço em abstrair a forma espacial ou o meio vazio e homogêneo que não
pode de modo algum ser confundido com a heterogeneidade, temos a experiência
de uma multiplicidade cuja quantificação só pode ser efetivada de modo artificial
– inserindo-a numa forma na qual ela não se dá diretamente. A multiplicidade que
então vivenciamos é indistinta ou mesmo “confusa” nesse sentido, de que seus mo-
mentos não podem ser separados nitidamente, o que significaria representá-la como
sucessão de agoras.
Ao descrever essa base da atitude teórica da intuição, superação da forma espacial
e retomada do movimento temporal, Bergson enfatiza, de resto, que não há necessi-
dade, para reencontrar a vida do espírito em sua manifestação direta, de “absorver-se
inteiramente na sensação ou na idéia que passa”(id., p.67), o que significaria, para o
eu, o mesmo que parar de durar. Não se trata, portanto, nesse encontro, de uma fu-
são indiferenciada entre o sujeito e sua experiência consciente, de uma introspecção
“na qual o sujeito e o objeto estavam confundidos e o conhecimento era obtido por
coincidência”(Merleau-Ponty, 1994, p.90), uma definição da interioridade como
impressão. A vida interior, pela dissociação analítica que permite isolá-la até o limite
da influência pragmática que tende a espacializá-la, mostra-se autototalização ima-
nente, o movimento de uma totalidade em formação que se efetiva por diferenciação
imanente. E a metáfora agora esclarecedora é a da vida temporal como melodia: sem
a tendência a justapor os momentos do tempo no espaço, encontramos uma visão
semelhante à lembrança das notas de uma melodia, imagem que expressa a visão di-
reta dos dados imediatos da consciência. Em outros termos, o eu que se “deixa viver”
(numa formulação que aponta o esforço de Bergson para dar conta da articulação
interna entre passividade e atividade) tem acesso a um todo em formação, no qual
papel nas intenções últimas de sua filosofia – a proposta do conhecimento filosófico como resultado de um “dimensionamento
equilibrado da observação externa e da experiência interna”, colocando em relevo o movimento de “descer às profundezas de si
mesmo para alcançar o eu na sua pureza original, na medida em que o sujeito coincide consigo mesmo”(id.).

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Merleau-Ponty em Salvador

ele toma parte ao organizar seus estados consigo, participando interiormente de uma
progressão da mesma ordem que a lembrança das “notas de uma melodia”(Bergson,
1991, p.67) , cujo principal aspecto a ser notado é a totalidade não totalizada que
lhes dá sentido: “a experiência estava ao alcance de todos; e aqueles que quiseram
fazê-la não tiveram dificuldade em se representar a substancialidade do eu como sua
duração mesma. É, dizíamos nós, a continuidade indivisível e indestrutível de uma
melodia em que o passado entra no presente e forma com ele um todo indiviso, o
qual permanece indiviso e mesmo indivisível a despeito daquilo que a ele se acres-
cente ou mesmo graças a isso”(id., p.1312,).
A atribuição de uma fenomenologia a Bergson, por mais discutível que seja, en-
contra apoio em seu procedimento teórico, já que, como ressalta Bento Prado Jr., o
exame da duração da consciência, que revela a consciência como duração, se dá pela
descrição do presente no qual “algo se produz para a consciência, que é a consciên-
cia da lei interna de sua produção”(Prado Jr., 1989, p.65). A multiplicidade inter-
na e qualitativa dos estados de consciência emerge como sucessão verdadeira, isto
é, prolongamento de momentos uns nos outros à luz de um sentido unificando-os
virtualmente e pelo qual eles se reportam uns aos outros, sentido que pode ser dito
sua essência. Assim, podemos retomar os termos de Marquet: a intuição centra do
Ensaio é a apreensão do tempo como um “plano em que o todo se re-encontra, se
re-presenta, se re-percute em cada parte”(Marquet, 2004, p.78). O eu faz parte des-
se todo que ele mesmo presencia, na configuração de um campo de presença em que
ele se vê como inserido e integrado ao movimento de totalização. Já no Ensaio essa
consciência em duração é conservação e diferenciação, indicando o acesso a um ser
não fixo, mutável, dinâmico – um ser que é consciência e que se dá à consciência
reflexivamente – um ser que é tempo, durée.

51 |
Débora Morato Pinto

Referências bibliográficas

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__________ Mélanges. Paris:PUF, 1972.
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__________ Razão e Experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty. São Paulo: Editora Unesp, 2006.
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de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
Sacrini, M. O transcendental e o existente em Merleau-Ponty. São Paulo: Associação
Editorial Humanitas, 2006.

| 52
Existência e temporalidade:
o “diálogo” entre Merleau-Ponty e Heidegger


Acylene Maria Cabral Ferreira

A correlação entre a filosofia de Heidegger e de Merleau-Ponty não causa nenhum


espanto, pois para os leitores destes filósofos é perceptível a influência do pensamento
heideggeriano em algumas concepções da filosofia de Merleau-Ponty, seja como apro-
ximação ou distanciamento. Com o intuito de resgatar o “diálogo entre Merleau-Pon-
ty e Heidegger”, centraremos nossas observações na Fenomenologia da percepção e em
Ser e tempo, especificamente, no que concerne a questão do tempo, pois como afirma
Dupond “o capítulo sobre a temporalidade é o ápice da Fenomenologia da percepção.”1
A temporalidade, em Ser e tempo, também cumpre um papel de destaque nesta obra,
visto que aponta o tempo como o fundamento para o sentido do ser e do mundo. Há
outras correlações possíveis e significativas entre o pensamento destes autores, nestas
obras, que tratam de conceitos fundamentais para a filosofia de ambos, tais como a
questão do ser-no-mundo, da circularidade ou ainda do significado do mundo e do
ser. Segundo Madison, “o problema da relação entre o mundo e o ser” na Fenomenolo-
gia da percepção é análogo ao exposto em Ser e tempo. Ou seja, mundo e ser “somente
podem ser definidos em relação a noção de ser-no-mundo. [Para Madison] A análise
de Merleau-Ponty levanta e deixa em suspenso a questão que é de fato a “bête noire”
[sombra negra] da fenomenologia. Esta é a questão do status ontológico do mundo,
do ser do mundo. A fenomenologia (no caso de Heidegger tanto quanto no de Mer-
leau-Ponty) procura superar a antinomia idealismo-realismo.”2 Podemos dizer que,
para eles, uma das perspectivas de superação desta antinomia está na concepção de
ser-no-mundo. Na Fenomenologia da percepção, esta concepção está fundamentada na
subjetividade, na consciência encarnada, no primado da percepção. Já em Ser e tempo,
a concepção de ser-no-mundo está fundamentada na mundanidade, que diz respeito à
significância do mundo. O ser-no-mundo é assim constituído de mundo e este é cons-
1 DUPOND, Pascal. Le vocabulaire de Merleau-Ponty. Paris: Ellipses, 2001, p. 57.
2 MADISON, Gary Brent. The Phenomenology of Merleau-Ponty. Ohio: Ohio University Press, 1990, p. 32.

53 |
Acylene Maria Cabral Ferreira

tituído a partir da publicidade das significâncias, ou seja, do contexto de significações


em que o ser-no-mundo existe. Por isto, na maior parte das vezes o ser-no-mundo está
na impessoalidade, na publicidade do mundo.

A concepção de ser no mundo de Merleau-Ponty é talvez melhor traduzida como ser-


em-direção-a-mundo do que ser-no-mundo. O corpo-sujeito está sempre apontando para
além dele mesmo porque ele já está perceptivamente ligado aos objetos mundanos. [...]
Para Heidegger, [...] o Dasein é o mundo, o ‘impessoal’, a rede pública de relações signi-
ficativas, o nexo dos costumes, hábitos, normas e instituições na base das quais as coisas
se mostram enquanto tais em um comportamento incorporado. Dasein, enquanto um
contexto referencial compartilhado, já está aí, antes da percepção corporal. Ele é a con-
dição de possibilidade para toda e qualquer percepção significativa. [...Diferentemente
de Heidegger,] Merleau-Ponty dá ‘primazia’ a percepção como fundamento para toda e
qualquer experiência significativa. [...] Pelo fato de focalizar-se na percepção, espaciali-
dade e mobilidade da consciência ‘encarnada’, Merleau-Ponty é incapaz de dar conta das
condições de possibilidade do sentido e da inteligibilidade.3

A diferença radical da percepção, “como fundamento de toda e qualquer expe-


riência significativa”, e do impessoal, “como condição de possibilidade para toda e
qualquer percepção significativa”, nos conduz para uma outra diferença radical, esta
do corpo. Na Fenomenologia da percepção, o corpo sustenta nossas percepções, funda-
menta o sujeito e o mundo, expressa significações e “faz o tempo”. O corpo, enquanto
corpo fenomenal ou corpo próprio/vivo, tem um papel importantíssimo nesta obra,
posto que é o cerne da constituição do mundo, do ser, da temporalidade e da consci-
ência. Por outro lado, em Ser e tempo, Heidegger pouco toca na questão do corpo. Este
tema é abordado por ele, anos depois, nos Seminários de Zollikon, os quais remontam
a resposta, dada por ele, à crítica dos filósofos franceses a pouquíssima ou a quase ne-
nhuma menção sobre o corpo em Ser e tempo. Nestes seminários “é de fato notório
que Heidegger, em sua extensa análise de mais de 50 páginas sobre o problema do cor-
po, [faz referência a Sartre] e não faz referência a Merleau-Ponty, mesmo sendo claro
que estava ciente do trabalho de Meleau-Ponty. Isto é especialmente curioso dado que
Merleau-Ponty foi positivamente influenciado por Heidegger em sua obra magna, a
Fenomenologia da percepção.”4 Apesar da ausência da questão do corpo em Ser e tempo
e da importância desta questão na Fenomenologia da percepção, podemos afirmar que o

3 AHO, Kevin A. The Missing Dialogue between Heidegger and Merleau-Ponty: on the Importance of the Zollikon Se-
minars. In: Body & Society. 2005 SAGE Publications (London, Thousand Oaks and New Delhi), Vol 11 (2): 1-23; p.
16, 18 e 19.
4 ASKAY, Richard R. Heidegger, the body, and the French philosophers. In: Continental Philosophy Review, 32: 29-
35, 1999.

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Merleau-Ponty em Salvador

ponto de partida que afasta Heidegger da investigação sobre o corpo e que leva Merle-
au-Ponty a destacá-lo como ponto nevrálgico de sua filosofia é o mesmo: o problema
da superação da metafísica, no que diz respeito à dualidade substancialidade-subjeti-
vidade. Para superá-la, Heidegger elaborou uma rede conceitual capaz de comportar a
concepção do homem como corpo, alma, razão, sensação, paixão, sujeito e do mun-
do como objeto, sem fundamentá-la em nenhuma destas instâncias. Em Ser e tempo,
a analítica existencial, através dos conceitos de existencialidade do ser-no-mundo, de
mundanidade do mundo, de temporalização do tempo e do ser, constitui o fundamen-
to ontológico do sentido do ser, do homem e do mundo. Destas estruturas ontológico-
existenciais derivam as instâncias de razão, sujeito, significação, objeto e outras. Parale-
lamente, podemos dizer que a superação da metafísica, na Fenomenologia da percepção,
fundamenta-se nos conceitos de percepção, mundo percebido, Cogito, temporalidade,
liberdade e corpo vivo, na acepção de pré-objetivo, pré-pessoal, pré-reflexivo e pré-
lógico. As considerações feitas por nós até este momento, nos permitem afirmar que a
questão da superação da metafísica é uma questão comum tanto a Heidegger quanto
a Merleau-Ponty. Mas elas também nos permitem estabelecer uma diferença radical
entre estes autores: esta do corpo como resposta para a superação da metafísica. É exa-
tamente a partir desta perspectiva de similitudes e diferenças que pretendemos resgatar
o “diálogo entre Merleau-Ponty e Heidegger”.
Mesmo sabendo que a questão do tempo foi tematizada na segunda e última
parte de Ser e tempo e na terceira e última parte da Fenomenologia da percepção,
esta questão será nosso esteio para mostrar o diálogo entre Merleau-Ponty e Hei-
degger, visto que tanto em Ser e tempo quanto na Fenomenologia da percepção o
tempo ocupa um lugar de destaque para a significação do ser e do mundo. A
questão da temporalidade será ainda ponto de partida deste diálogo porque nes-
te capítulo Merleau-Ponty faz uma epígrafe e pelo menos sete citações de Ser e
tempo, com o objetivo de fundamentar a sua estruturação do sujeito e do mundo.
Porém, não devemos esquecer que apesar da recorrência a Heidegger, as consi-
derações sobre o tempo na Fenomenologia da percepção estão fundamentadas em
Husserl. Devemos também lembrar que Heidegger foi aluno e assistente de Hus-
serl e responsável pela publicação em 1928 dos “Aditamentos e complementos
dos anos 1905-1910 à análise da consciência do tempo”, que compõem a obra
Lições para a fenomenologia da consciência interna do tempo de Husserl. Vale ressal-
tar a relevância e influência do pensamento de Husserl tanto para Merleau-Ponty
quanto para Heidegger. Este último, em reconhecimento à importância da obra
do mestre, dedicou a ele o seu livro Ser e tempo. Como nosso objetivo aqui é res-

55 |
Acylene Maria Cabral Ferreira

gatar o “diálogo entre Merleau-Ponty e Heidegger”, centraremos nossas conside-


rações, especificamente, nestes filósofos.
Assim podemos dizer com Merleau-Ponty que “é pelo tempo que pensamos o ser,
porque é pelas relações entre o tempo sujeito e o tempo objeto que podemos compre-
ender as relações entre o sujeito e o mundo.”5 E podemos afirmar com Heidegger
que “deve-se conceber e esclarecer, de modo genuíno o tempo como horizonte de
toda compreensão e interpretação de ser.”6 Através destas citações podemos afirmar
tanto que o objetivo de Ser e tempo é tratar do sentido do ser e do mundo.Tanto
que “a questão que a Fenomenologia da percepção levanta, mas que não elucidou, é
a antiga questão da relação entre ser e aparência, ser e fenômeno, uma questão tão
antiga quanto a própria filosofia. [...] A questão do significado do ser e do mundo.”7
Recorremos também a estas citações para referendar que, apesar de Merleau-Ponty
não acentuar a dimensão ontológica na Fenomenologia da percepção, como o faz com
evidência em seu texto “O entrelaçamento – O quiasma”, no Visível e invisível, seu
pensamento naquela obra também englobaria, além da clara perspectiva fenomeno-
lógica, uma obscurecida perspectiva ontológica, já que preocupava-se em tratar da
fundamentação do “significado do ser e do mundo”. Ora, como sabemos esta é a
questão primordial da metafísica ocidental.

II

Em Ser e tempo, o ser se desvela e ganha sentido no horizonte do tempo, este é a


abertura e a clareira na qual dá-se o acontecimento de ser, mundo e presença (Da-
sein). Nesta obra, o horizonte do tempo dá sentido ao ser através do movimento de
temporalização, que institui a temporalidade do ser. Segundo Heidegger, a direção
deste movimento é ekstático, ou seja, é “o fora de si’ em si e para si mesmo originá-
rio. Chamaremos, pois os fenômenos caracterizados de porvir, vigor de ter sido e
atualidade de ekstases da temporalidade;”8 os quais constituem a unidade ekstática
da temporalidade. Tal unidade, não significa que estas ekstases se justapõem ou
se excluem ou surgem uma das outras, antes significa que elas são distintas e se
temporalizam simultânea e conjuntamente. Assim cada ekstase ao temporalizar-se,
5 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo:
Martins Fontes, 1994; p. 577.
6 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006; p. 55.
7 MADISON. The Phenomenology of Merleau-Ponty, p. 36.
8 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo, p. 413.

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Merleau-Ponty em Salvador

traz consigo a temporalização das demais, introduzindo-nos em uma circularidade


ekstática. Se o tempo é o “horizonte de toda compreensão e interpretação de ser”
e se a presença é o ente que compreende e dá sentido ao ser e ao mundo, então a
temporalidade “é o regulador primordial da unidade possível de todas as estrutu-
ras essencialmente existenciais da presença.”9 Isto significa que a temporalidade é a
condição de possibilidade da existencialidade da presença, quer dizer, das aberturas
que fundamentam a presença enquanto existência e ser-no-mundo, dentre elas, o
projeto e a disposição. Desta maneira, a temporalidade é a base de sustentação da
cotidianidade e historicidade da presença assim como da história do ser e do mun-
do. Afirmar que as aberturas existenciais da presença são temporalizadas, significa
dizer que elas caracterizam-se por uma estrutura prévia ou antecipativa, que por sua
vez, caracterizam a presença como o ente que sendo, antecede-se a si mesmo, exis-
tindo como poder-ser. Temporalizadas, as aberturas da presença, que constituem
o seu pré, comportam as estruturas hermenêuticas antecipativas da compreensão-
interpretativa, em seu caráter pré-temático, que permitem à presença dar sentido
ao ser e significar o mundo.
Enquanto o porvir é, ontologicamente, a ekstase privilegiada da temporalidade
ekstática, ele fundamenta a existencialidade da presença como antecipação. Como a
antecipação é a temporalidade própria do porvir e como este fundamenta, existen-
cialmente, a presença, conseqüentemente, a presença se constitui, propriamente,
na antecipação. Na medida em que a atualidade e o vigor de ter sido movimentam-
se, juntamente com o porvir, em uma circularidade ekstática ou em uma unidade
ekstática, eles também apresentam um caráter de antecipação. Nesta circularidade
a temporalidade própria da atualidade, o instante, se temporaliza propriamente na
antecipação do porvir e a temporalidade própria do vigor de ter sido, a retomada,
temporaliza-se, antecipativamente, como retração projetiva do poder-ser da presen-
ça. Assim, a antecipação, como eixo da circularidade ekstática, efetiva o movimento
de propriedade da temporalização do tempo e da existencialidade da presença. Pelo
fato de a presença fundamentar-se na circularidade antecipativa da temporalidade
ekstática, ela estrutura-se como possibilidade de ser, projeto, antecedência, prece-
dência a si mesma, ser-para-a-morte e poder-ser. Devido ao seu caráter de antecipa-
ção, a temporalidade horizontal-ekstática é denominada por Heidegger de tempo
originário, do qual deriva a intratemporalidade ou o tempo vulgar, quer dizer, pas-
sado, presente e futuro, ontem, hoje e amanhã ou outrora, agora e antes etc. Mas
qual a relação desta concepção de temporalidade com esta da Fenomenologia da per-

9 Ibidem, p. 438.

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Acylene Maria Cabral Ferreira

cepção? Quais as similitudes ou diferenças possíveis entre estas concepções de tem-


poralidade? Como poderemos correlacioná-las sem reduzir um autor ao outro ou
sem retirarmos a peculiaridade e grandeza de cada uma destas concepções de tempo?
Na Fenomenologia da percepção, “não há lugar do tempo, é o próprio tempo que
se conduz e torna a se lançar. Somente o tempo enquanto ímpeto indiviso e enquan-
to transição pode tornar-se o tempo enquanto multiplicidade sucessiva, e o que nós
colocamos na origem da intratemporalidade é um tempo constituinte.”10 Baseados
nesta citação, podemos correlacionar o tempo constituinte ao tempo originário na
medida em que tanto o primeiro quanto o segundo fundamentam a intratemporali-
dade, que por sua vez, tanto para Merleau-Ponty quanto para Heidegger nos dão o
sentimento de eternidade, completude e infinitude do tempo. Para Merleau-Ponty
através do “ritmo cíclico” do tempo face ao movimento de circularidade e de conti-
nuidade entre o ontem, hoje e amanhã, movimento este que nos fornece uma “visão
inautêntica” do tempo, já que o tomamos como se fosse inteiro ou completo. E para
Heidegger através da circularidade imprópria da temporalidade ekstática: expecta-
tiva, atualização e esquecimento do caráter antecipativo, os quais também nos dão
uma visão de inteireza e completude do tempo. Ainda é possível estabelecer tal cor-
relação porque tanto o tempo constituinte quanto o tempo originário reúnem em
si e espelham o movimento de temporalização do tempo. No tempo constituinte,
esta reunião e espelhamento faz-se ver através da “síntese” do tempo, quer dizer, de
porvir, presente e passado; e no tempo originário esta reunião e espelhamento faz-
se ver mediante a unidade ekstática, de porvir, vigor de ter sido e atualidade. Outra
característica similar sobre a questão do tempo, nestes pensadores, consiste em que
para Heidegger a presença é temporalidade e para Merleau-Ponty a subjetividade é
temporalidade. Não foi por acaso que ele escolheu, como uma das epígrafes do capí-
tulo da temporalidade, uma citação de Ser e tempo que diz respeito “a temporalidade
como sentido da presença.”11

É essencial ao tempo não ser apenas tempo efetivo ou que se escoa, mas ainda tempo
que se sabe, pois a explosão ou a deiscência do presente em relação ao porvir é o ar-
quétipo da relação de si a si e desenha uma interioridade ou uma ipseidade. Aqui brota
uma luz, aqui não tratamos mais com um ser que repousa em si, mas com um ser do
qual toda a essência, assim como a da luz, é fazer ver. É pela temporalidade que, sem
contradição, pode haver ipseidade, sentido e razão.12
Estas palavras de Merleau-Ponty nos ajudam a melhor entender a reciprocidade
10 MERLEAU-PONTY, Maurice .Fenomenologia da percepção, p. 567.
11 Cf. MERLEAU-PONTY Maurice. Fenomenologia da percepção, p. 549.
12 Ibidem, p. 571.

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Merleau-Ponty em Salvador

entre temporalidade e subjetividade, na medida em que clarifica que a temporalida-


de nos faz ver o sentido do mundo e do sujeito assim como nos faz ver a ipseidade e a
razão. O ser assim como o tempo faz ver um mundo percebido e uma subjetividade
situada. Desta maneira, o ser e o tempo apresentam uma dimensão fenomenológi-
ca, dimensão esta que esboça uma arqueologia da relação do mundo percebido e do
sujeito percepiente. Nesta arqueologia fenomenológica “a consciência se enraíza no
ser e no tempo assumindo ali uma situação.”13 Através deste enraizamento podemos
vislumbrar a ambigüidade do tempo, na medida em há um tempo efetivo, o da in-
tratemporalidade, ou seja, o tempo objetivo com o qual lidamos em nossa cotidiani-
dade e que nos remete para a completude do tempo; e o tempo constituinte ou “ain-
da o tempo que se sabe”, que aponta para a incompletude e para o vazio do tempo.
Outro motivo que nos permite falar de uma arqueologia fenomenológica que trata
de conversibilidade do tempo e da subjetividade, sustenta-se no esclarecimento da
definição do tempo constituinte como “o tempo que se sabe”, pois a palavra “saber”
nesta frase, não diz respeito a conhecimento ou a certeza, refere-se antes tanto ao ca-
ráter pré-reflexivo e pré-objetivo do tempo como ao caráter pré-pessoal e pré-lógico
da subjetividade. Levando-se em conta este caráter de ambigüidade do tempo, pode-
mos ainda acrescentar que o tempo constituinte apresenta uma dimensão ontológi-
ca, visto que estrutura a “síntese” do tempo realizada pelo presente, porvir e passado
em seu movimento de prospecção e retrospecção. “Mas o presente (no sentido am-
plo, com seus horizontes de passado e de porvir originários) tem todavia um privi-
légio porque ele é a zona em que o ser e a consciência coincidem.”14 Ou seja, o pre-
sente é a condição de possibilidade para que os atos da consciência aconteçam, estes
surgem do presente, como se estivessem colados a ele, por isto no presente “o ser e
a consciência coincidem”. Seguindo esta linha de raciocínio, podemos inferir que o
passado e o futuro expõem o distanciamento dos atos da consciência do presente, ou
melhor, a subjetividade volta-se para o passado e para o futuro porque está situada
no presente. Quer dizer, passado e futuro existem referidos ao presente, é nele que a
consciência pode dirigir-se a um passado e a um futuro. Seria neste direcionamento
mesmo que subjetividade e temporalidade se confundem e se constituem, visto que
“o ser da consciência, que recentemente descrevemos como a possibilidade de situ-
ações, deverá ser tratado agora como presente (perspectiva temporal) e ao mesmo
tempo como presença, a perspectiva da subjetividade com a qual ela é conversível.
[...] O que é o último no tempo é o presente no qual todo acontecimento flui [...] e

13 Ibidem, p. 569.
14 Ibidem, p. 568.

59 |
Acylene Maria Cabral Ferreira

o que é último na subjetividade [...] é a consciência [...] que não tem nenhuma outra
consciência atrás dela.”15 Nesta conversibilidade do presente do tempo e da presença
da subjetividade, prepondera o vácuo do tempo e o vazio da subjetividade. “Nessas
condições pode-se dizer, se se quiser que nada existe absolutamente, e com efeito
seria mais exato dizer que nada existe e tudo se temporaliza.”16

III

Neste momento temos condições de estabelecer mais uma diferença signifi-


cativa entre a concepção de temporalidade em Heidegger e em Merleau-Ponty,
pois para o primeiro o presente é uma condensação ou uma cristalização dos
acontecimentos, e por isto constitui, juntamente com o passado e o futuro, a
temporalidade imprópria do tempo vulgar, ou seja, a intratemporalidade deri-
vada do tempo originário. Em Ser e tempo, vimos que a ekstase privilegiada é o
porvir, o qual se temporaliza propriamente como antecipação. Afirmamos ainda
que o ser ganha sentido ao se temporalizar e que por isto a presença e o mun-
do, enquanto modos de ser, também ganham sentido temporalizando-se, própria
ou impropriamente. De outro lado, o presente é, para Merleau-Ponty, a ekstase
privilegiada do tempo, da qual passado e futuro convergem e se direcionam. Na
Fenomenologia da percepção, “toda síntese é simultaneamente distendida e refeita
pelo tempo que, em um único movimento, a põe em questão e a confirma por-
que ele produz um novo presente que retém o passado. A alternativa entre o na-
turado e o naturante transforma-se então em uma dialética do tempo constituído
e do tempo constituinte”17, apontando assim para o caráter de ambigüidade do
tempo, qual seja, o tempo tanto é tempo constituído, tempo objeto como tempo
constituinte e tempo sujeito. Ora, se no presente ser, sujeito e consciência coin-
cidem com o tempo e são um e o mesmo então podemos falar também de uma
ambigüidade da consciência com o corpo (“pivô do mundo”), isto é, de uma
ambigüidade do ser-no-mundo, que para Merleau-Ponty refere-se a uma ambi-
güidade do corpo, ou seja, esta do corpo-sujeito e do corpo-objeto ou do corpo
habitual e do corpo atual. Podemos ainda acrescentar que o presente fundamenta

15 BANNAN, John F. The Philosophy of Merleau-Ponty. Chicago: Brace, 1967; p. 126, 129.
16 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, p. 445.
17 Ibidem, p. 323.

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Merleau-Ponty em Salvador

o tempo constituinte, visto que nele não há sedimentação, completude ou eter-


nidade, apenas fluxo, florescimento e eclosão de novos presentes, de retrospec-
ção do passado e de prospecção do futuro. Porém, neste ponto de sua reflexão,
Merleau-Ponty mostra sua discordância com Heidegger relativa ao porvir como
ekstase privilegiada. Para ele,

O tempo histórico de Heidegger, que flui do porvir e que, pela decisão resoluta, ante-
cipadamente tem seu porvir e salva-se de uma vez por todas da dispersão, é impossível
segundo o próprio pensamento de Heidegger: pois se o tempo é um ek-stase, se pre-
sente e passado são dois resultados desse êxtase, como deixaríamos totalmente de ver
o tempo do ponto de vista do presente, e como sairíamos definitivamente do tempo
inautêntico? 18

A esta pergunta de Merleau-Ponty, Heidegger responderia que “a decisão que


retorna a si e se transmite torna-se, assim, retomada de uma possibilidade legada de
existência. A retomada é a transmissão explícita, ou seja, o retorno às possibilidades da
presença, que é o vigor de ter sido presença. A retomada própria do ter sido de uma
possibilidade existencial [...] funda-se, existencialmente, na decisão antecipadora.”19
Em sua cotidianidade, o si-mesmo da presença decidida ganha consistência e logo
dispersa-se novamente em sua existência. Neste sentido, “a decisão do si-mesmo
contra a inconsistência da dispersão é, em si mesma, a consistência es-tendida”20. Isto
significa que para Heidegger não há como sair definitivamente da inautenticidade,
pois dizer que a consistência da presença é es-tendida, significa dizer que em sua
existência a presença movimenta-se na temporalidade ekstática em direção ao mun-
do, de modo próprio ou impróprio. “E isto de tal maneira que, nessa consistência,
ela [a decisão do si-mesmo] é o instante para a história do mundo de cada uma de
suas situações.”21 Assim situada, a presença em sua existência está na maior parte
das vezes na inconsistência da dispersão, já que aí encontra-se sempre ocupada com
os afazeres de sua lida cotidiana.
Na Fenomenologia da percepção, nos deparamos com a expressão “presente pré-
objetivo”. Qual seria a diferença entre este presente e o instante, temporalidade pró-
pria da atualidade, que se temporaliza na antecipação e que, por isto tem o caráter de
prévio? Nesta perspectiva, o presente pré-objetivo assim como o instante, não teria
também um caráter antecipativo? Então o presente pré-objetivo estaria na mesma
18 Ibidem, p. 573.
19 HEIDEGGER, Ser e tempo, p. 478.
20 Ibidem, p. 483.
21 Ibidem, p. 483.

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Acylene Maria Cabral Ferreira

dimensão que o porvir originário? Sendo assim não caberia a ele o estatuto de on-
tológico, de fundamentação do ser e, portanto do ser do mundo? Parece que sim,
tanto pelo fato que para Merleau-Ponty “é pelo tempo que pensamos o ser” quanto
porque para ele o tempo “é o sentido de nossa vida e, assim como o mundo, só é
acessível àquele que está situado nele e esposa sua direção.”22 Ora, esta concepção de
tempo parece similar àquela que considera o tempo como horizonte-ekstático, no
qual mundo e existência são iluminados e ganham sentido e consistência, fazendo-
se ver naquilo que eles são. Buscando ainda uma similaridade entre estas concepções
de tempo, retomaremos nossa consideração sobre o tempo como movimento, que
reúne retenção e projeção na unidade ekstática em Heidegger, ou que reúne pros-
pecção e retrospecção na “síntese do tempo” em Merleau-Ponty. Em ambos, este
movimento de temporalização requer uma abertura ou uma saída, um para fora de,
um direcionamento a outra temporalidade, propiciando assim a fundamentação e
constituição do sentido da existência e do mundo. Apesar de ambos considerarem
o tempo como movimento, há uma diferença constituinte nestes movimentos de
temporalização. Para Heidegger, este movimento mostra-se através da decisão ante-
cipadora da presença, ou seja, pelo caráter de antecipação da existencialidade, que
constitui a presença como possibilidade, projeto lançado e poder-ser. Enquanto que
para Merleau-Ponty, o movimento de temporalização coincide com o próprio mo-
vimento da consciência, por isto a temporalidade é subjetividade e reciprocamente.
Tanto a temporalidade quanto a subjetividade ganham sentido a partir do corpo fe-
nomenal ou corpo próprio / vivo, que traduz a ambigüidade do corpo (corpo sujeito
e corpo objeto), que por sua vez, nos remete para a ambigüidade do ser-no-mundo,
qual seja, a conversibilidade da consciência e do corpo.

Pelo fato de Merleau-Ponty procurar reavivar o corpo vivo, o vínculo pré-temático en-
tre o corpo-sujeito e o objeto mundano é que ele negligencia o fato ontológico de que
nossas percepções presentes tornam-se significativas não pela consciência encarnada,
mas pelo horizonte prévio da temporalidade. [...] Para Heidegger, o Dasein como a
clareira de inteligibilidade estruturada temporalmente, está sempre já aí, previamente
ao aparecimento do corpo-sujeito.”23

22 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, p. 577.


23 AHO, Kevin A. The Missing Dialogue between Heidegger and Merleau-Ponty: on the Importance of the Zollikon
Seminars; p. 19-20.

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Merleau-Ponty e Sartre:
notas sobre o conceito de liberdade

Leandro Neves Cardim

“É preciso reconhecer desde a origem um princípio de passividade na liberdade, de outro


modo não compreenderemos as dificuldades da liberdade, nem que ela possa ser solici-
tada” (Merleau-Ponty).

Pode parecer evidente que haja uma relação entre estes dois filósofos, mas será
que realmente se consegue avaliar o peso da influência exercida por Sartre sobre a
obra de Merleau-Ponty? Seria o caso de uma relação apenas circunstancial ou uma
presença maciça e surda da filosofia sartreana junto aos alicerces da filosofia merle-
au-pontiana? Do ponto de vista da filosofia de Merleau-Ponty, esta relação deve ser
rastreada do início ao fim de sua carreira. Em princípio, trata-se muito mais de um
diálogo consciente e resoluto do que alguma espécie de influência apenas lateral. O
leitor da obra merleau-pontiana sabe que este diálogo não é tão simples de ser circuns-
crito, e isto, porque nela encontramos uma proximidade e uma distância que na maioria
das vezes passa despercebido e que chega a ser desconcertante se nos atemos apenas nas
intenções expressas de filósofo. Merleau-Ponty e Sartre eram amigos; eles fundaram jun-
tos a revista Les Temps Modernes. Depois, durante o período que nosso filósofo esteve no
Collège de France, ele se afasta da direção da revista, momento em que a amizade com
Sartre se abala irremediavelmente devido a publicação, em 1955, de As aventuras da dia-
lética. Desta relação de caráter institucional, é importante passar, o quanto antes, para o
verdadeiro diálogo entre eles, o diálogo conceitual. A influência de Sartre sobre a obra
de Merleau-Ponty pode ver avaliada sob três aspectos: primeiramente, Merleau-Ponty
discute francamente com Sartre desde os seus primeiros artigos, mas principalmente,
em sua Fenomenologia da percepção, onde tece duras críticas à filosofia sartreana visando
ultrapassá-la assim como superar definitivamente as alternativas clássicas. Em segundo, é
possível detectar, sob a crítica merleau-pontiana a Sartre, uma espécie de presença mas-
siva e subterrânea do modelo da filosofia que ele pretende criticar. Por último, pode-se
dizer que o diálogo com Sartre permanece presente e determinante até mesmo em O visí-
vel e o invisível, só que neste livro, além de predominar o tom crítico, Merleau-Ponty pro-
cura neutralizar ao máximo os prejuízos filosóficos herdados via filosofia sartreana.

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Leandro Neves Cardim

Desde 1945, em um artigo intitulado “A querela do existencialismo”, Merleau-


Ponty já chama atenção de seu leitor para o olhar agudo de Sartre na tentativa de
compreender o “paradoxo da consciência e da ação”. 1 É de se notar que nosso filó-
sofo sempre elogia e parece tirar muito proveito das descrições feitas por Sartre, pois
este “põe de maneira aguda e com profundidade nova o problema central da filoso-
fia tal qual se apresenta depois das aquisições dos últimos séculos” (SNS, 126). Mas
isto não quer dizer que Merleau-Ponty estivesse satisfeito com a maneira de Sartre
resolver os problemas em questão. Se referindo à relação entre a consciência e a ação
presente no livro O ser e o nada, Merleau-Ponty interpreta as soluções sartreanas
como sendo insatisfatórias, já que tais relações não teriam sido “inteiramente eluci-
dadas”. Por quê? Ora, “em minha opinião”, diz Merleau-Ponty, “o livro permanece
muito exclusivamente antitético: a antítese de minha visão sobre mim mesmo e da
visão de outrem sobre mim, a antítese do para si e do em si fazem frequentemente
figura de alternativas, ao invés de serem descritas como liame vivo de um dos ter-
mos ao outro e como sua comunicação” (SNS, 125). Na leitura merleau-pontiana, a
filosofia presente no livro de Sartre não ultrapassa a dicotomia do sujeito e do obje-
to, ela não chega a tratar do fundamental, ponto, aliás, que seria tratado na própria
filosofia merleau-pontiana, a saber: o liame e a comunicação com o mundo e com
outrem que precede tanto o pensamento objetivista quanto subjetivista. É verdade
que o quadro teórico e o horizonte da análise presente na última fase da filosofia de
Merleau-Ponty é bem diferente daquele do início de sua carreira e de seu período
intermediário. Se tomarmos como base o curso publicado sob o título de A natureza,
veremos que passados mais de dez anos, o juízo sobre a obra de Sartre ainda visa o
mesmo ponto. Neste curso ministrado no Collège de France no ano letivo de 1956-
1957 a repreensão à filosofia de Sartre visa a não admissão de uma “mistura entre
o Ser e o nada”, 2 quando, na verdade, é preciso reconhecer uma espécie de “fusão”
entre estes pólos. Assim, se no início de sua carreira Merleau-Ponty exigia de Sartre
o reconhecimento de uma terceira dimensão onde os opostos contraditórios não fos-
sem mais opostos e se comunicassem, resta que em seu último período ele dirá que
“não há lugar para uma concepção de Natureza, nem para uma concepção de histó-
ria” (N, 102) na filosofia de Sartre.
Nosso objetivo aqui não é tanto frisar a crítica merleau-pontiana à filoso-
fia de Sartre, mas através desta crítica, tendo em vista principalmente os escritos da
primeira fase que giram em torno do conceito de liberdade, chamar a atenção para a

1 Merleau-Ponty, M. Sens et non-sens. Paris : Nagel, 1966, p.125; obra será citada com a sigla SNS.
2 Idem. La nature. Notes. Cours du Collège de France. Paris : Seuil, 1994, p.101; esta obra será citada com a sigla N.

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Merleau-Ponty em Salvador

presença subterrânea da filosofia sartreana. É verdade que a presença de Sartre sem-


pre será muito marcante mesmo nos escritos do último período, mas sua filosofia
não será abordada através do mesmo aparato conceitual, nem sua crítica terá o mes-
mo escopo. Nesta última etapa do pensamento de Merleau-Ponty há o esforço ainda
mais obstinado de afastar os prejuízos cartesiano-sartreanos presente em sua própria
obra. No curso sobre o conceito de natureza o filósofo ainda entretém um ferrenho
diálogo com Sartre, só que desta vez, a proximidade não ocultará mais aquilo que
possibilita um afastamento sadio. Da sua parte, Merleau-Ponty estará muito mais
preocupado em “elaborar um conceito válido de Natureza” com a intenção de en-
contrar “alguma coisa na juntura do Ser e do nada” (N, 102). Como, então, abor-
dar, sob a ótica do conceito de liberdade, a relação entre estes dois filósofos? Como
compreender a presença subliminar de Sartre mesmo sendo criticado duramente?
Nossa sugestão consiste em chamar a atenção, sobretudo, para o vocabulário em-
pregado por Merleau-Ponty quando se tratar de afirmar positivamente sua filosofia.
Tentaremos frisar que mesmo quando o filósofo constrói sua doutrina da liberdade,
ainda que tenham submetido a filosofia sartreana a severas críticas, é no interior de
seu horizonte conceitual que se estabelece a discussão.
Para Sartre, a liberdade nunca pode ser identificada com uma faculdade subjetiva
que o sujeito disporia dela ora sim ora não. Não é correto dizer que a subjetividade
é o fundamento da liberdade, pois somente pela liberdade se pode pensar a condi-
ção humana. No seu processo de existência, o homem escolhe a cada momento, a
cada instante, pois se ele não se confunde com uma coisa é porque ele se projeta por
vias de sua escolha. O homem nunca escolhe tendo em vista determinações pré-es-
tabelecidas. O homem deve criar, a todo instante, o critério de sua ação. Nada pode
determinar o homem em suas escolhas livres, nem a moral, nem a tradição, nem um
valor. Neste contexto, a liberdade significa um processo de construção de si através de
escolhas e projetos. Vem daí a responsabilidade que se exige do agente: cabe apenas a
ele aquilo que irá se tornar. Em Sartre, a consciência é identificada com a liberdade e
com a subjetividade, e recebe a alcunha de “para si”; aliás, nada, negação, não-ser são
expressões sinônimas para a consciência. Ou melhor, o “para si” só pode se identificar
com o não-ser ou com o nada na exata medida em que ele é a negação do “em si”, ou
seja, do ser em sua plenitude, repousando de maneira maciça em si mesmo. Trata-se
da própria dimensão do ser objetivo, se bem que representado pelo sujeito. É neste
sentido que há oposição do “em si” ao “para si”. Pode-se dizer que o ser objetivo em
sua plenitude não depende da subjetividade. Ainda em relação ao “para si” é impor-
tante ressaltar que ele significa, por um lado, que a característica principal do sujeito

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Leandro Neves Cardim

é a reflexividade, ele está voltado para si, por outro, que o sujeito também é um pro-
cesso que constitui sua identidade através de projetos e escolhas. Sartre não pensa este
processo fora da situação. O existente está situado e é em relação a esta situação que a
liberdade se apresenta. Assim, somente em relação à situação é possível compreender
que não há nada antes da liberdade que o agente possa se valer para agir, a liberdade
se remete apenas a si mesma, ela é a própria realidade humana. O sujeito pode, en-
tão, escolher qual significado ele atribuirá tanto aos fatos quanto às outras pessoas que
compõe sua situação. Do lado dos fatos, o existente atribui a eles uma significação que
deve variar de acordo com sua liberdade, do lado das outras pessoas, ele deve ser livre
para atribuir uma significação para aquilo que os outros fazem dele. É neste sentido
que, na filosofia sartreana, liberdade e situação devem se relacionar.
Dito isto, é possível compreender o elogio feito a Descartes por parte de Sartre:
“em uma época autoritária, ter lançado as bases da democracia, de ter perseguido até o
fim as exigências da idéia de autonomia e de ter compreendido [...] que o único fun-
damento do ser era a liberdade”. 3 Mas, uma vez que Sartre propõe atribuir ao próprio
homem esta “liberdade criadora que Descartes havia colocado em Deus”, 4 resta que
permanecemos em uma doutrina da liberdade absoluta sem Deus. Assim, a liberdade
não pode comportar degraus, pois ou ela é total ou é nula: “a liberdade não é um ser:
ela é o ser do homem, ou melhor, seu nada de ser. [...] O homem não pode ser ora
livre ora escravo: ele é inteiramente e sempre livre ou não é”. 5 Em As aventuras da dia-
lética, Merleau-Ponty nos lembra que “Sartre sempre pensou que nada pode ser causa
de um ato de consciência”. 6 Mesmo os obstáculos à liberdade são “desdobrados por
ela”. Em Sartre, liberdade e situação devem se relacionar, mas é preciso reconhecer na
consciência a possibilidade de tomar uma “posição de recuo em relação ao mundo”, 7
logo, reconhecer a possibilidade de escapar do mundo, de libertar-se dela, o que é, pre-
cisamente, reconhecer a liberdade da consciência. Vimos que a filosofia sartreana não
nega a condição humana, mas também isso não quer dizer que o sujeito seja passivo
em relação ao mundo. Como diz Merleau-Ponty se referindo a Sartre: “sou eu quem
fabrica com todas as peças minha liberdade” (AD, 196). Aqui, o sujeito é detentor
de um poder que o afasta da passividade; ele ultrapassa a passividade em vista de fins
escolhidos de maneira livre. É verdade que Sartre pretenda ligar, do interior, a condi-

3 Sartre, J.-P. “La liberté cartésienne”, in Situations I. Paris : Gallimard, 1947, p.308.
4 Idem, Ibidem, p.407.
5 Idem. L’être et lê néant. Essai d’ontologie phénoménnologique. Paris : Gallimard, 1943, p.516.
6 Merleau-Ponty, M. Les aventures de la dialectique. Paris : Gallimard, 1955, p.150; obra doravante citada com
a sigla AD.
7 Sartre, J.-P. L’imaginaire. Psychologie phénoménologique de l’imagination. Paris : Gallimard, 1986, p.353.

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Merleau-Ponty em Salvador

ção humana e aquilo que especifica o homem. Ele afasta simultaneamente as análises
deterministas (o homem não é livre já que é determinado a agir por causas que fogem
ao seu domínio) e intelectualistas (o homem é agente porque tem poder de escolha). 8
O primeiro não percebe que existe uma relação interna entre situação e liberdade, e o
segundo, erra ao excluir da escolha o lastro do mundo.
Na famosa conferência O existencialismo é um humanismo, Sartre parte de uma má-
xima que fez história: “a existência precede a essência”. Ora, em princípio, isto quer di-
zer que é preciso partir da subjetividade e que a liberdade de que aqui se trata é aquela
do existente definido como consciência, a qual é definida como intencional. 9 O que
se trata de recusar com esta hipótese é a tese de que “a essência precede a existência”,
donde a recusa da idéia de que exista um fim a priori, um modelo, um padrão, em di-
reção ao qual os homens caminham. Trata-se, enfim, da recusa da idéia de “natureza
humana” em prol da existência concreta. Isto significa que, em princípio, o homem
existe e só depois ele se define. 10 Sartre não está incorrendo em nenhuma espécie de
individualismo, já que o ser-no-mundo se opõe aos objetos que fazem parte do mun-
do e estão submetidos às leis de seu determinismo. Vimos que a consciência é sempre
capaz de escapar do mundo, o que atesta, justamente, o poder da imaginação. Assim,
o homem para Sartre “não é nada além do que aquilo que ele faz de si mesmo. Tal é o
primeiro princípio do existencialismo”. 11 O que significa dizer que para o homem não
existe modelo prévio. Mas se o homem “é responsável por aquilo que ele é”, o que se
torna a liberdade? O que é uma ação? A ação livre não é aquela que alcança fins pre-
viamente estabelecidos ou que não tem obstáculos para a ação. A ação livre determina
seus fins a partir de si mesma. 12 O existente sartreano escolhe de maneira autônoma
8 Moutinho nos diz que, para Sartre, o “erro comum”, ou seja, a ilusão compartilhada entre o determinista (que pensa que
o motivo é a causa do ato) e o partidário da liberdade (que pensa que o ato livre é fruto apenas dos atos voluntários) é que
“a atitude, em ambos os casos, nasce a posteriori. [...] Significa que, introduzindo ou não o fim, o motivo age por si mesmo,
ignorando o fato de ele só ser motivo à luz do fim projetado”. Em suma, os “pretensos rivais”, “irmãos de doutrina”, fazem
abstração ao isolar o motivo. Moutinho insiste na idéia de que para compreender a “estrutura fim/motivo” em Sartre é preci-
so inseri-la na “estrutura futuro/passado”. Afinal, uma vez estabelecido que a “consciência é temporalidade, que para ela ser e
passar são um e o mesmo”, “futuro e passado se implicam como fim e motivo”. “Na verdade, os termos são intercambiáveis:
fim, possível ou futuro designam a mesma coisa, dependendo apenas do ponto de vista em que me coloque, se descrevo a
ação, a consciência ou a temporalidade. Do mesmo modo, motivo ou passado, ação ou presente” (Moutinho, L.D.S. Sartre.
Existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995, p.62-63, 70).
9 “A consciência é intencional, isto quer dizer que ela chega a fazer existir um fora, um além da consciência ao se colocar,
em princípio, ela mesma fora do ser. Ela implica a cada instante uma ruptura com o ser, um surgimento fora do ser: mas é o
surgimento de um nada” (Varet, G. L’ontologie de Sartre. Paris: PUF, 1948, p.58).
10 Cf. Sartre, J.-P. L’existentialisme est un humanisme. Paris : Nagel, 1970, p.21.
11 Idem, Ibidem, p.22.
12 “Não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. [...] Assim, nós não temos nem atrás de nós, nem à
nossa frente, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. É o que eu exprimiria dizendo que o homem está
condenado a ser livre. Condenado, porque ele não é criado por si mesmo, e, aliás, todavia, livre, porque uma vez lançado no

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Leandro Neves Cardim

os seus fins. É o próprio homem que constitui a essência daquilo que ele é, mas isto a
partir de sua existência concreta. 13 Agora, essa liberdade é caracterizada como criado-
ra, já que o motivo só é motivo para um sujeito que lhe dá sentido, antes disto, tal mo-
tivo não é para o sujeito, ou seja, não tem significado. Não há modelo ou fundamento
para ação do homem, é a liberdade que especifica ação, ela é o seu próprio fundamen-
to. Se o fim vem ao mundo através do homem e não de maneira exterior, é porque
ele é escolhido livremente, portanto, a liberdade é plena. A liberdade se apóia, sim, na
ação ou no engajamento, é aí que devemos, segundo Sartre, encontrar o critério da
ação – o engajamento faz da liberdade o critério da existência. 14 Agora, a estrutura da
consciência intencional é transferida para a perspectiva da ação, a qual “é sempre um
ultrapassamento do dado em direção a um fim”. 15 A liberdade tem, assim, um fundo
de gratuidade, ela é imotivada ou se “automotiva”, como uma automotivação do nada.
Como a liberdade está fora da ordem do em si, compreende-se que o homem é livre e
que a própria liberdade se identifica com o modo de constituição da consciência. Não
cabe ao homem escolher ser livre, o homem escolhe “a partir da liberdade”. 16 Este é o
dado imediato fundamental, o qual tem por base a situação concreta.
Se o dado imediatamente fundamental, espontâneo e natural é a escolha que o
homem faz de si mesmo a partir da liberdade, é porque o “para si” não encontra ne-

mundo ele é responsável por tudo o que ele faz. [...] [O existencialismo] pensa então que o homem, sem nenhum apoio e sem
nenhuma segurança, está condenado a cada instante a inventar o homem” (Idem, Ibidem, p.37-38).
13 Varet nos diz que se trata de uma “auto-motivação, exigência para cada consciência de que nada, salvo a consciência, não
a determina ou a limita, ‘existência em círculo’. Todavia, se deve haver aí uma ‘realidade efetiva’ dessa liberdade, é preciso
também que esta condição lhe seja definida como uma situação de fato” (Varet, G. L’ontologie de Sartre. Op. cit., p.32).
14 Sartre concebe o engajamento como “engajamento continuado”, “estado de vigília permanente”, ou seja, “como Deus
de Descartes, envolvido na tarefa cotidiana da criação continuada do mundo, dando-lhe o suporte infinito de realidade
ou substancialidade às coisas”. “Espectador absoluto, soberano e transcendente, o filósofo, empoleirado em Sírius, julga
ter a chave do tempo, da história e do mundo” (Chaui, M. “Filosofia e engajamento: em torno das cartas de ruptura entre
Merleau-Ponty e Sartre”, in Experiência do pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p.279).
15 Moutinho, L.D.S. Sartre: Existencialismo e liberdade. Op. cit., p.71. E Moutinho continua dizendo que “se o motivo
não produz o fim, tal como a causa o seu efeito, é porque o fim vem ao mundo pelo homem, isto é, pela intenção da cons-
ciência. Um dado, uma coisa, não produzem fim, não tem finalidade. Mais que isso: se o dado presente só se torna motivo
para uma ação à luz do fim, é porque a intenção implica uma permanente ruptura com o dado; ruptura porque é o fim que
colore o dado e o torna motivo. Isto não é feito em momentos distintos, mas de uma única vez: a intenção visa a um fim e
faz do dado um motivo a partir desse fim. Nisso estará a verdadeira liberdade humana” (p.71).
16 “A precedência da existência”, diz Silva, “é a precedência da negatividade porque é a precedência do vazio essencial. Po-
deríamos ver aí algo como uma indeterminação vivida, porque é um nada que, a princípio, é tudo o que o homem tem. Por
isso, ele pode ser definido pela ausência de determinação positiva, isto é, pela liberdade. [...] A liberdade, portanto, o ser da
consciência, está aí, nesse vazio de determinação, e no ato livre a consciência não é seu passado, porque a liberdade surge a
partir da negação, e não da reiteração do que já foi ou do que tem sido. Essa negação do passado é uma forma de situar-se
perante ele, precisamente a forma da nadificação” (Silva, F.L. Ética e literatura em Sartre. Ensaios introdutórios. São Pau-
lo: Unesp, 2004, p.70-73).

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Merleau-Ponty em Salvador

nhum apoio no que ele era, sua herança é reduzida a zero, donde o passado não poder
produzir um ato, pois só um fim pode iluminar o passado. A liberdade consiste no
fato de que a escolha é incondicionada. Vem daí que a liberdade seja criadora, e isto,
no mesmo sentido que os clássicos atribuíam esta palavra a Deus, mas se aqui Deus
desaparece, é porque se trata de atribuir ao homem o pleno exercício da liberdade. Se
o atualismo radical de Sartre entra em confronto com o Deus de Descartes é porque
ele pretende retomar esta liberdade plena e criadora que Descartes havia reconhecido.
O que significa dizer que, no limite, ele reedita as clivagens cartesianas da res extensa e
da res cogitans nas clivagens radicais do “em si” e do “para si”, do pleno e do vazio, do
ser e do nada; com isto, ele atribui um poder ilimitado ao sujeito e deixa o objeto to-
talmente desprovido de produtividade. Vem daí a recusa, por parte de Merleau-Ponty,
em descrever a liberdade “como um jorrar ex nihilo”; importa, ao contrário, interpretar
a liberdade “como a outra face [da inserção do sujeito] no mundo”. 17 O problema está
em que, para a filosofia sartreana, mesmo que a consciência esteja situada no mundo,
ela não é condicionada por nada, nem pelos fatos, nem pelas outras pessoas. Ao con-
trário, a consciência tem o poder ilimitado de nadificar o mundo. Ora, esta negação é
precisamente sua forma de se situar em relação ao mundo, donde a característica par-
ticular da consciência imaginante, isto é, seu poder nadificador. O que Merleau-Ponty
não pode aceitar nesta descrição da liberdade é a soberania da consciência e a ausência
de sentido imanente ao mundo. Considerar a consciência como doadora de sentido e
fundadora de toda significação é uma maneira de tratar a subjetividade como “plena”,
“soterrada no mundo”, “idéia do nada que ‘vem do mundo’, bebe o mundo, precisa
do mundo para ser seja lá o que for, mesmo nada, e que, no seu auto-sacrifício ao ser,
permanece estranha ao mundo” (S, 194).
Da parte de Merleau-Ponty há o esforço de inscrever o sentido no mundo, pois
aquilo que motiva o sujeito a agir é da ordem prática. Aqui, é indispensável ressaltar
o duplo sentido da intencionalidade, ao contrário da filosofia sartreana onde há so-
mente um movimento centrífugo, ou seja, do centro para fora. Para o nosso filósofo
é preciso reencontrar a ambigüidade fecunda que nos dá os dois lados do problema, a
saber: o duplo movimento ao mesmo tempo centrífugo e centrípeto. Donde a recusa
da via de mão única, mas também a insistência na via de mão dupla precisamente no
sentido do a priori da correlação: existe um movimento do sujeito para o mundo e um
movimento do mundo para o sujeito. É no interior deste campo que há liberdade, é
ele que faz com que haja, para o sujeito, possíveis privilegiados e um sentido autócto-
ne no mundo. Ora, para esta filosofia, é o mundo que motiva a ação; o mundo não

17 Lebrun, G. “A esperança, hoje...”, in Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.118.

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Leandro Neves Cardim

determina a ação de maneira absoluta e não elimina a liberdade. O conceito de moti-


vação surge com a incumbência de redimensionar a perspectiva da liberdade. Através
da motivação é possível distinguir o que existe de generalidade e de individualidade
na existência humana. É nesta direção que se encaminha a discussão a propósito da
liberdade no último capítulo da Fenomenologia da percepção. Se, por um lado, ela pro-
íbe o determinismo completo, por outro, proíbe a escolha incondicionada. Aqui, a
liberdade se faz por motivação em um campo de presença onde a dimensão espacial
(aqui-ali) e a dimensão temporal (presente-passado-futuro) estão em uma relação de
motivação recíproca. 18
Em Merleau-Ponty, a liberdade se engaja em um campo temporal onde há transi-
ção dos momentos do tempo uns nos outros. Este campo não deve ser compreendido
como sucessão de momentos do tempo que seriam descontínuos, instantes que não se
comunicam, mas, sim, instantes que se envolvem mutuamente. O conceito de liberda-
de exige, então, a noção de temporalidade, a qual necessita de um campo no interior
do qual possa haver uma comunicação e um intercâmbio, graças aos quais as decisões
livres se engrenam em um passado e em um futuro coexistentes com um presente. É
justamente o presente o responsável pela mediação da individualidade e da generalida-
de (cf. PhP, 606), o que não quer dizer que o homem viva apenas na dimensão do pre-
sente. É verdade que Merleau-Ponty insiste no fato de que “estamos sempre no pleno,
no ser” (PhP, 606), mas isto também não quer dizer que as outras dimensões do tempo
não estejam imbricadas umas nas outras. É preciso que o sujeito se estenda às outras
18 O conceito de motivação deve ser concebido a partir da oposição feita por Husserl entre a atitude naturalista e a atitude
personalista. Tal oposição se traduz em uma outra: a oposição entre o mundo da ciência da natureza e o mundo das ciências
do espírito, ou seja, as ciências humanas do século XIX na Alemanha. A atitude do naturalista é teórica por oposição à atitu-
de valorativa ou prática do cotidiano. Já o mundo do naturalista é o correlato da ciência natural (o naturalista faz abstração
dos predicados de significação das coisas do mundo circundante para alcançar as puras coisas). Vale insistir que é na atitude
personalista que aparece a motivação. São nas relações entre as pessoas e o mundo circundante que as relações de motivação se
dão, as quais não têm nenhum parentesco com a causalidade física. Para Husserl, a motivação é puramente intencional. Pela
motivação, um fenômeno suscita outro não pela eficácia objetiva que liga os acontecimentos da natureza, mas pelo sentido
que o fenômeno oferece (sobre a motivação em Husserl conferir, em particular, “La motivation en tant que loi fondamenta-
le du monde de l’esprit”, in Idées directrices pour une phénoménologie et une philosophie phénoménologique pure.
Tome deux. Recherches phénoménologique pour la constituition. Trad. Eliane Escoubas. Paris : Puf, 1982). Todavia, é
de se perguntar se Merleau-Ponty não traz com este conceito de origem husserliana aquela oposição radical entre a natureza e
o espírito e se este conceito faz sentido fora do marco espiritualista. Pelo que tudo indica, se ele traz o conceito de motivação
e o mundo ambiente, certamente ele abre mão do modelo da intencionalidade de ato que costurava tais conceitos no interior
da filosofia de Husserl. Mas quem é o sujeito das motivações? Para Husserl, este sujeito estava fora do mundo, uma vez que
se trata de considerar a consciência absoluta do tempo, que é atemporal. Para Merleau-Ponty, não há prioridade ontológica
entre aquilo que motiva o sujeito da motivação (o fato motivante) e o resultado da motivação. Entre estes momentos há, sim,
uma reciprocidade: “à medida que o fenômeno motivado se realiza, sua relação interna com o fenômeno motivante aparece,
e, em lugar de apenas sucedê-lo ele o explicita e o faz compreender, de maneira que ele parece ter preexistido ao seu próprio
motivo” (Merleau-Ponty, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945; a paginação equivale a tradução
brasileira de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Martins Fontes, 1996, p. 81; obra citada com a sigla PhP).

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Merleau-Ponty em Salvador

dimensões temporais para que elas brotem para ele. Passado e futuro “só existem quan-
do uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma pers-
pectiva, ali introduzir o não-ser” (PhP, 564). O campo que a liberdade deve ter se ela
quiser pronunciar-se como liberdade é aquela região no interior da qual algo a separa
de seus fins (cf. PhP, 587). Esta é a verdadeira situação do ser-no-mundo, o qual habi-
ta o mundo e faz como que espaço e tempo sejam o ambiente de sua vida. A ação só
será eficaz e verdadeira se desdobrada no interior deste campo que preexiste ao sujeito.
Se assim for, a escolha que fazemos de nós mesmos deve supor uma aquisição pré-
via. Para que a liberdade seja “concreta e efetiva”, deve haver “troca” entre a situação
de fato e a escolha livre, a qual retoma um projeto prévio que é proposto pela relação
do sujeito com o mundo e com outrem. A liberdade se torna, então, um “fazer”, uma
“práxis”. As condições de possibilidade às quais o filósofo opõe as condições de reali-
dade devem nos reenviar, então, ao sentido imanente ao mundo sensível; tal sentido é
dado desde sempre, ele habita o mundo, ele é dado antes da atividade do eu pensante
e é sobre ele que a ação livre opera. Não é nem fora do sujeito, nem dentro dele que
encontramos os limites à liberdade. Para compreender isto, Merleau-Ponty estabelece
uma distinção entre as intenções expressas que o sujeito tem de transpor um obstáculo
e suas intenções gerais que valorizam virtualmente sua circunvizinhança. Os obstácu-
los, como, por exemplo, um rochedo intransponível, parece grande ao sujeito que pre-
tende escalá-lo porque ele ultrapassa o poder de seu corpo (cf. PhP, 589). Mesmo que
nos situássemos em um lugar fora da terra encontraríamos abaixo de nós, enquanto
seres pensantes, a existência de um “eu natural que não abandona sua situação terrestre
e que sem cessar esboça valorizações absolutas” (PhP, 580). Assim, há intenções gerais
em um duplo sentido: “em primeiro lugar no sentido em que [as intenções gerais]
constituem um sistema em que todos os objetos possíveis estão de um só golpe en-
cerrados”; estas intenções gerais são passíveis de ser encontradas “em todos os sujeitos
psicofísicos cuja organização é semelhante à [do sujeito perceptivo]” (PhP, 589-90).
Em segundo lugar, há intenções gerais se elas não dizem respeito a mim enquanto su-
jeito pensante, mas se elas dizem respeito ao “eu natural” que sustenta outros sujeitos
que tem um corpo como o do sujeito da percepção. Os obstáculos à liberdade são, no
limite, valorizações do sujeito perceptivo, o qual não é “acósmico”, mas, ao contrário,
um sujeito natural e anônimo “que se precede a si mesmo junto às coisas para dar-lhes
figura de coisas”. “Existe um sentido autóctone do mundo, que se constitui no co-
mércio de nossa existência encarnada com ele, e que forma o solo de toda Sinngebung
decisória” (PhP, 591). É este sentido autóctone a condição de realidade de todo pensa-
mento racional e de toda ação.

71 |
Leandro Neves Cardim

O sujeito só é livre em relação a certas determinações na medida em que ele é li-


vre para “prosseguir seu caminho sob a condição de transformá-lo”. Quando dizemos
que é “provável” que consigamos transpor um rochedo, trata-se de compreender que
o conceito de provável não deve ser interpretado pura e simplesmente como algo pre-
visível, ou melhor, algo que poderia ser depreendido de alguma probabilidade pre-
sente nos fatos e que teria sido calculada e antevista. Na verdade, no contexto desta
discussão, o conceito de provável deve ser interpretado como sinônimo do conceito de
possível. É neste sentido que o conceito de provável deve ser encontrado no mundo
percebido, junto às próprias coisas percebidas. O possível deve ser inscrito no próprio
interior da necessidade, é ele que indica que sob certas circunstâncias o curso das coisas
pode ser alterado. Se retornarmos ao exemplo do rochedo intransponível, compreen-
deremos que ele “se situa no campo de ações virtuais [do sujeito] e em relação a um
nível que não é apenas o de [sua] vida individual, mas de ‘todo homem’” (PhP, 592).
O conceito de provável ou de possível não está boiando fora do mundo, mas tem suas
raízes no próprio mundo, ele está relacionado com a temporalidade, afinal, ele é pre-
cisamente aquilo que passa a existir graças ao agir humano. É neste sentido que deve
ser comentada a afirmação merleau-pontiana segundo a qual “o mundo objetivo é in-
capaz de trazer o tempo” ou que “o mundo objetivo é excessivamente pleno para que
nele haja tempo” (PhP, 552). Não que o mundo objetivo seja demasiadamente estreito
ou que precisássemos acrescentar a ele o passado ou o futuro. Mas porque o passado e
o futuro devem “retirar-se do ser” e passar “para o lado da subjetividade para procurar
nela não algum suporte real, mas, ao contrário, uma possibilidade de não-ser que se
harmonize com sua natureza. Se separamos o mundo objetivo das perceptivas finitas
que dão acesso a ele e o pomos em si, em todas as suas partes só poderemos encon-
trar ‘agoras’” (PhP, 552). Com esta passagem Merleau-Ponty quer justamente chamar
a atenção para a abstração que separa o mundo objetivo de suas perspectivas finitas.
O tempo não é uma somatória de “agoras” pontuais ou instantâneos. Se o tempo é de
fato a “medida do ser” é porque o ser só é temporal se a ele fundirmos a perspectiva do
não-ser própria ao alhures, ao outrora e ao amanhã (cf. PhP, 552). Isto nos leva nova-
mente à questão do peso específico do passado, ou antes, chama atenção para o fato de
que o passado é “a atmosfera do presente”: o passado não é nem fatalidade, nem um
destino inexorável. A motivação não é um oposto contraditório da liberdade, elas não
estão em situação antinômica. Uma vez que a situação é aberta, a liberdade está estrei-
tamente relacionada com a motivação. 19
19 “A alternativa racionalista: ou o ato livre é possível, ou não o é, ou o acontecimento vem de mim, ou é imposto pelo
exterior, não se aplica às nossas relações com o mundo e com o passado. Nossa liberdade não destrói nossa situação, mas se
engrena a ela: nossa situação, enquanto vivemos, é aberta, o que implica ao mesmo tempo que ela reclama modos de resolu-

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Merleau-Ponty em Salvador

A liberdade está profundamente engrenada na situação natural e histórica, ou ain-


da, no mundo da existência sedimentada sem o qual ela não tem nenhum poder. Este
poder não é a suspensão das motivações, mas sua retomada em uma dimensão pesso-
al. Sem as motivações não haveria nem escolha, nem liberdade. A decisão do sujeito
“retoma um sentido espontâneo de [sua] vida, que ela pode confirmar, mas não anu-
lar” (PhP, 600). Em uma troca entre a existência generalizada e a existência individu-
al “cada uma recebe e dá” (PhP, 603). Para compreender esta distinção ou este duplo
anonimato, vale frisar que na vida do sujeito há um sentido que ele não constitui,
que, rigorosamente falando, há uma intersubjetividade, e que cada ser humano é “si-
multaneamente um anônimo no sentido da individualidade absoluta e um anônimo
no sentido da generalidade absoluta” – “nosso ser-no-mundo é portador desde duplo
anonimato” (PhP, 601). O primeiro anonimato é aquele onde o sujeito é tomado em
seu “halo de generalidade” ou como em uma “atmosfera de ‘sociabilidade’”. Não se
trata, bem entendido, da consideração da economia e da sociedade como “sistema de
forças impessoais”, mas, sim, da economia e da sociedade tais como o sujeito as traz
em si mesmo, como ele as vive. Já o segundo sentido do anonimato deve nos reenviar
àquelas decisões livres ou aos projetos individuais do sujeito da ação. Uma vez que o
mundo natural é o “lugar de todos os temas e de todos os estilos possíveis”, correla-
tivamente falando, “a generalidade e a individualidade do sujeito” não são duas con-
cepções do sujeito entre as quais seria preciso escolher, mas “dois momentos de uma
estrutura única que é o sujeito concreto” (PhP, 605). Portanto, se quisermos tomar a
noção de liberdade em consideração é preciso considerá-la em um mundo já consti-
tuído, mas o próprio mundo nunca é completamente constituído, ele é aberto a uma
infinidade de possíveis. Segundo Merleau-Ponty, somente desta forma podemos com-
preender que o sujeito existe “sob os dois aspectos ao mesmo tempo”. Quando há troca
entre a situação e quem a assume, não é possível determinar aquilo que cabe à situação
ou à liberdade. Longe de anular a liberdade, os motivos “fazem com que ela não esteja
sem escoras no ser”. 20
A questão da liberdade se confunde, então, com a questão do homem ligado ao
mundo e do homem criador. O que, aliás, delimita bem precisamente o perfil da filo-
sofia merleau-pontiana da liberdade, pois a liberdade aparece como ao mesmo tempo
uma “liberdade situada” ou uma “liberdade condicionada” (PhP, 609) e uma liberda-

ção privilegiados e que por si mesma ela é impotente para causar algum” (PhP, 593).
20 “Escolhemos nosso mundo e o mundo nos escolhe. [...] Nós aprendemos a reconhecer a ordem dos fatos. Estamos mis-
turados ao mundo e aos outros em uma confusão inextrincável. A idéia de situação exclui a liberdade absoluta na origem de
nossos envolvimentos. Aliás, ela a exclui igualmente em seu termo” (PhP, 609-10).

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Leandro Neves Cardim

de que ele chama de “Deus em nós”, 21 ou melhor, a liberdade não pode ser separada
de alguma “potência”, ela é o “poder de ir além”, é a “potência de nos fazer ir além”.
Em suma, a liberdade deve ser situada, mas, além disto, ela guarda alguma potência: a
liberdade é ambígua. O existente está situado no mundo e guarda um poder de negá-
lo. Por isto, não há como não enfatizarmos os dois lados do problema: a passividade
e a atividade. Do lado da passividade, “não existe liberdade efetiva aquém do mundo,
mas em contato com ele” (SNS, 261). Do lado da atividade, a liberdade só chega a
manifestar-se plenamente quanto exerce um ato transfigurador.
Merleau-Ponty chama a atenção para a existência de duas espécies de engajamento:
o “engajamento de fato” e o “engajamento no sentido ativo”. O primeiro é aquele que
surge “quando o [sujeito] desperta na vida, [quando ele se] descobre responsável por
inumeráveis coisas que, todavia, [ele] não fez, mas que [ele] retoma por [sua] conta
ao viver” (AD, 269). Já o segundo, é aquele engajamento que é a resposta dada pelo
sujeito à armadilha original, e que consiste, então, na sua própria construção, na esco-
lha de si mesmo; que consiste, enfim, em “apagar [seus] comprometimentos natais, a
escolhê-los, e a [se] resgatar pela seqüência que [ele] lhes dá ao inventar, ao [se] reco-
meçar e recomeçar a história também” (AD, 269). Compreende-se, então, que ao lado
destes dois tipos de engajamento encontremos dois tipos de liberdade. A primeira é a
de Sartre, a qual deve ser compreendida como um “puro poder” e que nunca se iden-
tifica a um fazer. A ação do lado sartreano não passa de um “fiat mágico” e a liberdade
se fragmenta em instantes, restando uma espécie de criação continuada reconduzida a
uma “série indefinida de atos de posição”. “Esta liberdade que não se faz jamais carne,
nunca tem um adquirido e não se compromete jamais com a potência, é, na realidade,
a liberdade de julgar” (AD, 273). A segunda concepção de liberdade que Merleau-
Ponty aponta é aquela de sua própria filosofia. 22
Como, então, pensar a engrenagem entre o sujeito e a sedimentação, entre o uni-
versal e o particular que é precisamente o núcleo da questão? Ora, o enigma consiste
em saber como a vida articula estes dois aspectos em uma só aventura ou trama. É
o que o filósofo nos ensina ao interpretar a relação do artista com sua obra. A partir

21 Trata-se de uma expressão do próprio Merleau-Ponty citada a partir artigo de Shoichi Matsuba “L’ambiguïté de la li-
berté. La liberté, en particulier chez Leibiniz, de Merleau-Ponty”, in S. Heidsiek (dir.) Le philosophe et son langage, Re-
cherches sur la philosophie et le langage. Grenoble, 1993, p.249.
22 O sujeito precisa reconhecer que ele está sempre instalado “em certa posição em relação aos outros e aos acontecimentos
no momento em que [ele] procura vê-los claramente. [...] E seguramente, estas infra-estruturas não são um destino, a vida
[do sujeito] as transformará. Mas se [ele] tem a oportunidade de ultrapassá-los e de [se] tornar uma outra coisa que este pa-
cote de acasos, não é decidindo dar a [sua] vida este ou aquele sentido, é tratando de viver ingenuamente o que se oferece a
[ele], sem usar de astúcia com a lógica da empreitada, sem fechá-la de antemão nos limites de uma significação premeditada”
(AD, 273-74).

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Merleau-Ponty em Salvador

deste contexto compreenderemos a passagem ou a troca entre a situação e a liberdade:


“o regime da obra de arte é a liberdade”. 23 O artista em obra é livre porque retoma as
condições factuais ultrapassando-as. Mais: o artista nos ensina que é preciso esta vida
determinada para que sua obra seja realizada. Artistas como El Greco, Cézanne e Van
Gogh devem ser lembrados, pois o que era acidente no início de suas vidas tornou-
se instrumento de sua liberdade. 24 O determinismo físico, o tempo enquanto sofri-
do, passou a ser uma maneira de elaborar o mundo, tornou-se tempo feito. O artista
transforma o peso da necessidade em obra, ele dá um sentido figurado e novo para as
determinações. 25 A ordem dos fatos ou os acidentes de nossa vida podem receber um
“sentido novo”, já que tanto “para a vida como para o espírito, não existe passado ab-
solutamente passado” (SC, 224). Ainda que a liberdade se torne um poder, ela não está
longe da situação de fato. A propósito, a função deste poder é justamente concentrar
um sentido ainda esparso na experiência e comunicá-lo expressamente.
Tocamos, agora, no ponto decisivo: a criação. Não é o caso de retomar a discussão
em torno da fala falada e da fala falante, mas para que o contraste com a obra sartrea-
na possa ser levado a bom termo é preciso lembrar que é na fala falante que compre-
endemos a comunicação. É nela que surgem os pensamentos novos, pois a expressão
criadora retoma um sentido já existente e imprime nele um uso inesperado. É nesta
camada da fala primária que “a intenção significativa encontra-se em estado nascente”
(PhP, 266) ou que uma “idéia começa a existir” (PhP, 523). Por uma espécie de “mi-
lagre” operado pelo sujeito criador, algo novo começa a existir. O emprego dos signos
existentes é precisamente o momento essencial em que a produtividade da consciência
se revela. Para compreender o gesto que rompe o silêncio primordial e cria o novo,
Merleau-Ponty aproxima ao máximo o gesto criador de toda espécie de comporta-
mento, pois seu objetivo é acabar com a distância entre a natureza e a cultura. Ele não
quer “sobrepor” uma camada de comportamento natural e um mundo cultural (cf.
PhP, 257). 26

23 Idem, Parcours 1935-1951. Lagrass: Verdier, 1997, p.70.


24 Se há verdadeira liberdade, só pode existir no percurso da vida, pela superação da situação de partida e sem que deixe-
mos, contudo, de ser o mesmo - eis o problema. Duas coisas são certas a respeito da liberdade: que nunca somos determi-
nados e que não mudamos nunca, que, retrospectivamente, poderemos sempre encontrar em nosso passado o prenúncio
do que nos tornamos. Cabe-nos entender as duas coisas ao mesmo tempo e como a liberdade irrompe em nós sem romper
nossos elos com o mundo” (SNS, 36-37).
25 “Os acidentes de nossa constituição corporal podem sempre desempenhar este papel de reveladores, com a condição de
que ao invés de serem sofridos como fatos puros que nos dominam, eles tornem-se, pela consciência que nós tomamos deles,
um meio de expandir nosso conhecimento” (Idem, La structure du comportement. Paris: Puf, 1990, p. 219; obra citada
com a sigla SC).
26 Todavia no momento de descrever a criação ele diz que na fala falante “a existência polariza-se em certo ‘sentido’ que não
pode ser definido por nenhum objeto natural; é para além do ser que ela procura alcançar-se e é por isso que ela cria a fala

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Leandro Neves Cardim

Apresentada a partir deste ponto de vista, a filosofia de Merleau-Ponty pode estar


aparentemente muito distante da filosofia de Sartre. É verdade que para a filosofia
merleau-pontiana do primeiro período o vínculo que prende o homem ao mundo
não é um impasse definitivo, tal vínculo é, sim, o meio de sua liberdade. Aqui, o su-
jeito deve assumir seu presente, retomar e transformar seu passado, ou ainda, ele pode
mudar o seu sentido, libertar-se ou desembaraçar-se dele, o que ele só consegue se se
envolver alhures (cf. PhP, 610). O homem utiliza ou se vale da necessidade (heredi-
tariedade, circunstâncias, hábitos, influências culturais, meio social) e se expressa li-
vremente. Momento em que a produtividade humana se apresenta em todo seu vigor.
O problema está em que além de se utilizar do vocabulário sartreano (o ser e o nada,
o vazio e a plenitude, o ser e o não-ser), no momento em que ele explica a criação,
Merleau-Ponty acaba por fazer aquilo que havia sido proibido por sua própria filoso-
fia. Tratava-se de aproximar ao máximo a natureza e a criação e não sobrepor uma a
outra, mas justamente neste momento, ele termina explicando a fala como um excesso
sobre o ser natural, ou seja, como uma espécie de ruptura que prende sua filosofia nos
marcos categoriais que se tratava de criticar, a saber, a tradição cartesiana-sartreana.
Tradição que partia da dicotomia do sujeito e do objeto e que deixava o ser e o nada
em uma situação antitética. Mais: esta tradição atribuía toda produtividade ao sujeito
e deixava o objeto repousando no domínio do “em si” sem nenhuma produtividade.
Percebe-se que a proximidade com a filosofia de Sartre é tão profunda que somente
com os textos do último período o filósofo afastará os prejuízos da tradição que o pren-
diam no interior da filosofia da consciência, a qual só pensa a relação entre o sujeito e
o objeto no interior do a priori da correlação. O que fica a desejar é, finalmente, a pro-
metida ligação entre o particular e o universal, mas também a conseqüente superação
do quadro conceitual onde os opostos ainda permanecem relativamente afastados. A
presença subterrânea de Sartre só desaparecerá quando a produtividade que se expres-
sa na consciência for transplantada para a dimensão da natureza e quando se estiver
afastado definitivamente do quadro teórico-filosófico que “mantém um desvio entre o
objetivo e o subjetivo, e que torna impossível este subjetivo-objetivo que será sempre
a Natureza” (N, 102). Agora, a liberdade criadora será vista como uma modulação da
produtividade do ser natural que se cumpre através do homem. Donde a afirmação de
Merleau-Ponty em um inédito de 1959 transcrito por Renaud Barbaras (cf. 31 b) que
diz que “a liberdade é sempre a gestão de uma herança”.

como apoio empírico de seu próprio não-ser. A fala é o excesso de nossa existência por sobre o ser natural” (PhP, 267).

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2. Merleau-Ponty e
as ciências do homem
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A razão encarnada:
pensamento e sensibilidade em Merleau-Ponty

Pascal Dupond

Merleau-Ponty1 pensava que a percepção é o primeiro estabelecimento da raciona-


lidade; que ela é uma luz natural; que ela nos oferece uma unidade do ser e do sentido, que
é a trama daquilo que denominamos razão.
Esta unidade do ser e do sentido é, ao mesmo tempo, imperiosa e aberta, presuntiva: o
mundo, como diz Malebranche, é uma obra inacabada. E a vida humana não é talvez nada
mais que “o próprio ato pelo qual retomamos este mundo inacabado para tentar totalizá-lo
ou pensá-lo”2.
Podemos procurar totalizá-lo e pensá-lo, abandonando sua doação originária no âmbito
da sensibilidade. É a tentação “metafísica” por excelência: o espírito não se alcança a si mes-
mo, senão livrando-se da opacidade do dado sensível.
Podemos, ao contrário, tentar totalizar e pensar o mundo, sem abandonar sua doação
originária através da sensibilidade. Tal é a via da arte. O pintor “pensa pintando”; Cézanne
dizia: “a paisagem se pensa em mim e eu sou sua consciência”.
Merleau-Ponty pensava que a fidelidade à doação originária era o caminho não só da
arte, mas do ser de cultura como tal. O ser de cultura leva adiante o logos estético do mundo,
mas só o faz admitindo sua dívida – infinita – para com a sensibilidade.
E a filosofia não constitui uma exceção: “... todas as grandes filosofias, escreve Merleau-
Ponty, são reconhecidas pelo esforço em pensar o espírito e sua dependência, as idéias e seu
movimento, o entendimento e a sensibilidade...”3.

1 Os textos de Merleau-Ponty citados aqui serão referidos às edições francesas, segundo as abreviaturas habituais para
os títulos dessas obras, com o número da página indicado em seguida. Os títulos das obras e suas respectivas abreviaturas
encontram-se nas referências bibliográficas, no final do artigo. No caso dos manuscritos inéditos depositados na Biblioteca
Nacional da França (MBN), as referências trazem o número do microfilme em algarismos romanos e o número da página
em algarismos arábicos [Nota do Tradutor].
2 PP, XV.
3 O “primado da percepção” não é tão estranho quanto se poderia pensar, em uma tradição que chamaríamos tranqüilamen-
te de intelectualista. Quando Kant constrói sua dedução transcendental, ele age como se o pensamento pudesse se retirar do
mundo e “dá-lo” para si, por suas operações construtivas; mas esta não é sua última palavra: “Na realidade, como o próprio
Kant disse profundamente, só podemos pensar o mundo porque de início temos experiência dele; é por essa experiência que
temos a idéia do ser e é por ela que as palavras ‘ racional’ e ‘real’ recebem simultaneamente um sentido” (P, 50). E Brunschvi-
cg retoma Kant nesse ponto: “o acontecimento percebido nunca pode ser reabsorvido no conjunto das relações transparentes
que a inteligência constrói por ocasião do acontecimento” (P, 57).

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Pascal Dupond

Proponho-me a explicitar os vínculos entre o ser de cultura e a doação originária. Farei


isso em duas partes, que correspondem aos dois grandes momentos do trabalho filosófico de
Merleau-Ponty; momentos, no sentido cronológico, mas antes lógico e conceitual.
O primeiro é aquele em que Merleau-Ponty estabelece o “primado da percepção”. Em
sua conferência de 1946, na Sociedade Francesa de Filosofia (na qual recapitula as aquisições
de seus dos primeiros livros), Merleau-Ponty precisa em que sentido (não-empirista) deve-se
compreender essa primazia: “denominamos primordial a essa camada da experiência para
dizer, não que todo o resto deriva dela, por via de transformação ou de evolução (afirmamos
expressamente que o homem percebe como nenhum animal), mas no sentido de que ela
revela os dados permanentes do problema que a cultura procura resolver”.
O problema que a cultura procura resolver é o problema do inacabamento do mundo:
estamos na encruzilhada entre o sentido e o contra-senso, a verdade e a inverdade – e o ser
de cultura procura sempre levar mais adiante o sentido e a verdade.
Retornar à percepção é mostrar que o ser de cultura está enraizado na doação ori-
ginária, que não o compreendemos senão sob a condição de discernir este enraiza-
mento; procurando “fazer ver a ligação, por assim dizer orgânica, da percepção e da
intelecção”4.
Mas este retorno à percepção não é senão uma primeira fase. Resta questionar o
modo de ser original do ser de cultura e procurar entender como ele resolve ou tenta
resolver o problema do mundo.
O segundo momento é aquele no qual a questão do ser de cultura, da expressão, da
história, da linguagem, do simbolismo, passa ao primeiro plano. E este trabalho sobre
o ser da cultura vai exigir uma inflexão do pensamento, a passagem de um pensamento
que ainda permanece submisso ao cogito a um pensamento do Ser vertical e do logos.

I – O retorno à percepção

Existem duas maneiras de compreender o conhecimento das coisas: ou pensamos


que, para conhecê-las, não devemos nos “confundir com elas”, ou pensamos que, pelo
contrário, para conhecê-las, é preciso se “confundir com elas”.
A segunda dessas orientações foi reativada no século XX por Bergson, que escreveu:
“qualquer que seja a essência intima daquilo que é e daquilo que se faz, fazemos parte
dela”. Merleau-Ponty, vai por sua vez embrenhar-se nesse mesmo caminho.

4 P, 58.

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Merleau-Ponty em Salvador

A primeira é aquela que foi iniciada pela filosofia moderna com Descartes à frente,
e coincide com a ratio moderna.
Descartes não pode abstrair uma “ontologia do existente”, mas todo seu esforço
filosófico tende a edificar uma “ontologia do entendimento”, fundamento do conhe-
cimento da natureza, da racionalidade científica e técnica.
Ora, a ontologia do entendimento – e isto é, por assim dizer, seu ato de nascença
– estabelece uma cisão ontológica entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido.
O entendimento cartesiano é, como afirmam os inéditos, “um pensamento que recua
até o nada para ver (luz natural)”5, é “um pensamento que pratica o método de purificação,
que desfaz a comunhão”6, quer dizer a comunhão sensível entre nós e o mundo.
A filosofia moderna separa, assim, “o pensamento que recua até o nada para ver”
– puro pensamento, ato de um sujeito que é pura interioridade ou pura liberdade – e
o que este pensamento ou sujeito vê, ao recuar desta forma até o nada, quer dizer um
puro objeto, um objeto que é pura exterioridade e pura necessidade.
A filosofia moderna é, pois, um pensamento que estabelece “bifurcações”, que afir-
ma que não se pode compreender a si próprio nem compreender as coisas sem sepa-
rar espírito e natureza, espírito e matéria, liberdade e necessidade, para si e em si etc.
Ora, atualmente, essas bifurcações tornaram-se, para nós, problemáticas.
Em primeiro lugar, porque elas separam o homem dele mesmo: elas o dividem em
uma natureza naturante denominada razão, espírito, luz natural ou pensamento cons-
tituinte, e uma natureza naturada que reúne o corpo, a sensibilidade, a percepção ou
tudo aquilo que depende da facticidade da existência. A unidade do homem é perdida.
E se for restabelecida, isto acontece com violência: a violência que um dos dois ter-
mos exerce sobre o outro.
O naturalismo ou objetivismo ignora a natureza naturante; ele conhece as coisas e
o próprio homem apenas na qualidade de natureza naturada; naturaliza o pensamento
e a existência humana, reduzindo-as a um acontecimento do universo que podemos,
assim como os outros, estudar de forma objetiva; mas o pensamento e a existência são,
então, privados de liberdade, eles não se fazem, mas são feitos pelo jogo da casualidade
natural, são subtraídos de sua efetuação, e o fenômeno da verdade é incompreensível.

5 MBN VI, 71; ver também MBN VI, 82 : “O espírito puro e atento, que recua até o nada para ver, que define o ser por
seu ser-posto”.
6 MBN XVI, 6. Daí o mecanismo: “o mecanismo é um esforço para ruduzir o mundo a um objeto puro, para designar
isto que é em si, para livrar-nos das comunhões que os sentidos e a imaginação organizam entre ele e nós” (MBN VI, 40). O
entendimento cartesiano é um pensamento que “apreende as essências, apreende os « objetos de pensamento » e só se detém
diante do ojeto puramente objeto” (Id.). O entendimento constrói assim uma “filosofia da significação”, que se propõe a
esclarecer o sentido disto que denominamos natureza, e que identifica nosso conceito claro e distinto da natureza ao em si :
“sentido e em si [são] sinônimos” (MBN VI, 99).

81 |
Pascal Dupond

A filosofia transcendental objeta ao naturalismo que, se há uma verdade (tal como


o próprio naturalismo reconhece), o pensamento deve ser compreendido como algo
capaz de efetuar-se por si mesmo livremente, como agir, como poder constituinte ou
transcendental. Mas este poder transcendental está separado da facticidade da existên-
cia, que se torna um objeto sob o olhar do kosmothéoros7.
De um lado ou de outro, a união da luz natural e da facticidade é incompreensível.
Em segundo lugar, as bifurcações da filosofia moderna são rejeitadas pela cultura
contemporânea, não apenas no domínio das artes, mas também no das ciências, da
racionalidade cientifica. A ciência, na prática, contesta as divisões herdadas do pen-
samento clássico, sem, entretanto, conseguir desligar-se delas. Merleau-Ponty escreve
em uma nota de trabalho inédita: “as ciências, quando seu próprio desenvolvimento
as conduz confusamente às questões ontológicas, não podem senão recorrer às catego-
rias da tradição, elas reintroduzem as noções operacionais às quais a pesquisa as con-
duziu, numa linguagem tradicional que não dá conta delas. Convertemos novamente
em objeto ou sujeito o ser microfísico, a regulação em enteléquia ou em hormônios,
o comportamento em psiquismo ou mecanismo, mas o leitor sente que não é a sério,
e, habitualmente, os cientistas empregam ambas as linguagens, uma ao lado da outra,
acrescentando um ponto de interrogação, pois não confiam totalmente em nenhuma
das duas [...]”8.
As ciências têm, pois, a consciência da falta de conceitos ontologicos que corres-
pondam a seu trabalho efetivo. Esta carência não afeta a ciência como pensamento
operatório, mas a afeta como prática racional inteligível para si mesma.
A exigência de racionalidade, que herdamos dos Gregos, permanece, assim, irrea-
lizada: o homem domina a natureza (ou tenta dominá-la), mas não compreende mais
a si mesmo e, sendo assim, perde a capacidade de se tornar responsável por seu ser e
por seu agir.
O projeto de Merleau-Ponty é o de restituir ao homem a inteligibilidade do que
ele é e do que ele faz, superando as bifurcações do pensamento e da ciência clássicas.
Sua preocupação é a de reunir ou reconciliar o naturante e o naturado, o sujeito
transcendental e a facticidade da existência. E ele pensa que a única via possível para tal
reconciliação é o retorno à percepção, à doação originária. Como afirma na Fenomenolo-
gia da percepção, “o primeiro ato filosófico seria então retornar ao mundo vivido, aquém
do mundo objetivo, [...] restituir à coisa sua fisionomia concreta [...], à subjetividade
sua inerência histórica, reencontrar os fenômenos, a camada de experiência viva através

7 Termo grego que equivale aqui a um “observador imparcial”, o “pensamento de sobrevôo” de que fala Merleau-Ponty (NT).
8 MBN VI, 54.

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Merleau-Ponty em Salvador

da qual o outro e as coisas nos são dados inicialmente [...], despertar a percepção e des-
vendar a astúcia pela qual ela se deixa esquecer enquanto fato e enquanto percepção em
benefício do objeto que nos entrega e da tradição racional que funda”9.
Merleau-Ponty nos coloca, assim, numa situação paradoxal. Os modernos pensavam
ter de abandonar a percepção para edificar um conhecimento racional. Este conheci-
mento racional produziu um irracional em segundo grau, tornando o homem ininteligí-
vel a si mesmo em seu ser e em seu agir. Acaso vamos remediar esta situação voltando às
antinomias da fé perspectiva? Vamos chamar o irracional para socorrer a razão?
Sim, eis o paradoxo: talvez exista mais sentido e razão em nos misturarmos ao mundo
do que na purificação exigida pelo entendimento.
O que nos ensina finalmente a doação originária?
Por causa de sua natureza intencional, a percepção pode ser abordada sob um ângulo
noemático (o objeto percebido) e sob um ângulo noético (o sujeito perceptivo). A estru-
tura do comportamento aborda a percepção sob o ângulo noemático, a Fenomenologia da
percepção, sob o ângulo noético. As duas orientações são complementares: A estrutura do
comportamento nos ensina que não há objeto científico que não esteja fundado em uma
estrutura percebida; a Fenomenologia da percepção nos ensina que o sujeito perceptivo é
uma existência carnal e temporal.

Consideremos primeiro o ângulo noemático.


A estrutura do comportamento propõe-se a mostrar que os objetos científicos são fun-
dados em formas ou estruturas percebidas e que a ciência não pode compreender-se a si
mesma se ela esquece o enraizamento de seus objetos nas formas percebidas.
Esse retorno às formas percebidas não deriva de uma arqueologia do conhecimento
ele se faz também em favor do conhecimento: ele contribui para dar ao conhecimento
uma justa inteligência de seu objeto; a percepção não é uma primeira descoberta (ingê-
nua) do objeto, que precede seu conhecimento propriamente dito, ela é a origem perma-
nente e o enraizamento ontológico de todo conhecimento10.
O que é uma forma? Uma forma não é uma coisa, uma realidade física11, um
ser de natureza estendida no espaço, um “ser em si”, mas uma idealidade sensível.
Não há uma “forma em si” que, com a chegada de um observador, tornar-se-ia
“forma para nós”; toda forma é “forma para nós”; pertence a seu modo de ser exis-
tir para uma consciência, ela é inseparável de uma consciência.
9 PP, 69.
10 SC, 157: “a referência a um dado sensível ou histórico não é uma imperfeição provisória, ela é essencial ao conhecimen-
to físico”.
11 SC, 193.

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Pascal Dupond

O pensamento racional se apodera desta forma para fazer dela um objeto de


ciência. Em sua busca de objetividade, ele tenta separar o subjetivo do objetivo.
E o que surge desta purificação passa a ser a “própria coisa”, a “coisa verdadeira”.
Ora, a “coisa verdadeira”, objeta Merleau-Ponty, é antes de tudo a forma per-
cebida.
Não se trata de desqualificar os conhecimentos adquiridos por objetivação e
analise da forma inicial; trata-se de mostrar que eles perdem o sentido se forem
separados de sua raiz sensível.
Consideremos, para exemplificar, a questão do organismo.
Para a percepção, o organismo é uma “unidade de significação” , uma totali-
dade na qual uma ordem significante se realiza.
Para a biologia cientifica, o organismo é uma rede de processos físico-quími-
cos.
O organismo percebido, o organismo como unidade de significação, é para a
biologia científica, uma aparência antropomórfica, que a ciência deve reduzir à
única realidade dos processos físico-químicos.
Para Merleau-Ponty, que retoma aqui, através de Goldstein, as categorias kan-
tianas, o organismo percebido não é uma aparência, mas um fenômeno12.
E este fenômeno, o organismo percebido, o organismo para nós, é o “organis-
mo verdadeiro”.
Ele é, precisa Merleau-Ponty, “portador de todas as correlações que a análise nele
descobre”, mas – ponto essencial – “não se reduz a uma composição delas”13.
O pensamento científico ascende da percepção (que nos dá o organismo para
nós) à análise (que nos dá o organismo em si), porém o “organismo em si” é uma
abstração extraída do “organismo para nós” ou do organismo percebido e este, não
é, portanto, uma aparência antropomórfica que a ciência deveria eliminar: “nada
permite postular que a dialética vital [o comportamento do organismo como uni-
dade de significação] possa ser integralmente traduzida em relações físico-químicas
e reduzida à condição de aparência antropomórfica. Afirmá-lo, seria inverter a or-
dem lógica do pensamento científico, que parte daquilo que é percebido para chegar
àquilo que é coordenado, sem que se possa seguir o caminho inverso e fazer com que

12 SC, 172 : “O conhecimento científico encontra [no organismo] relações físico-químicas e o investe delas pouco a pou-
co. Uma contra-força que interviesse para romper essas correlações é inconcebível. Mas nada nos obriga a pensar que o ciclo
das relações físico-químicas possa se encerrar pelo fenômeno do organismo, que a explicação possa se juntar aos dados da
descrição, o corpo fenomenal ser convertido em sistema físico e integradoà ordem física. A totalidade não é uma aparência,
mas um fenômeno”.
13 SC, 169.

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Merleau-Ponty em Salvador

a ordem pros èmas se assente em uma ordem kath auto”14.


Há uma passagem da forma ao objeto, mas não ao contrário, do objeto à forma.
A ontologia do objeto pode nos ensinar numerosas coisas sobre o organismo, mas é
cega para o fenômeno da vida. O fenômeno da vida, apenas nossa percepção pode nos
ensinar: “nós, que temos de entender o animal, precisamos enxergá-lo e não apenas
dissecá-lo”15.
E a percepção não é apenas a chave da animalidade: neutralizando a bifurcação do
em si e do para si, a percepção nos permite pensar a diferença e a continuidade entre
as ordens do ser, do inanimado ao espírito. Merleau-Ponty escreve, numa nota inédita:
“O que seria preciso: sair tão resolutamente do universo do em si e do para si que nos-
so reconhecimento de uma vista da coisa percebida ou do animal inferior, não seja de
modo algum a atribuição de uma realidade “psicóide” a uma e ao outro. Há extamente
isto que aparece, a cor ou a coisa como saber adormecido e que vai despertar através
de nós – o animal inferior pronto a ser percebido como um animal que reina sobre um
domínio de Umwelt16, assumindo o seu desígnio ou Bauplan17 (Uexküll) não a título
de fim artificialista, mas a título de modulação de sentido”18.
A palavra importante aqui é a palavra “vista”, que é um substantivo, mas se aparenta
gramaticalmente a um particípio passado, a uma forma passiva. O que isto quer dizer?
14 Id. Ambas as expressões são caras à metafísica clássica, especialmente a Aristóteles. A primeira refere-se à ordem da su-
cessão temporal, pela qual o ente e o ser nos são dados, remetendo, portanto, àquilo “que é relativo a nós” ; a segunda indica
o que é “por si mesmo”, o “em si mesmo”. Daí a idéia latina de “absoluto” [N.T.].
15 MBN, XVI, 69. A ontologia do objeto está presa a uma alternativa. Ela diz : tudo o que não é alma ou espírito é puro
mecanismo; ora o animal não é espírito, então ele é pura coisa, puro mecanismo. Para Merleau-Ponty, nós devemos recusar
esta alternativa: e a única maneira de recusá-la é retornar à percepção, implicar a percepção do animal no sentido de ser da
animalidade. Esta implicação se formula em três proposições: 1) O animal percebe outros animais: congêneres, presas, preda-
dores; sua percepção funda sua relação com seu meio ambiente; 2) O animal é percebido por outros animais: “[o] corpo [do
animal] não é compreensível fora da função de ser visto. Ele vê segundo o modo como é visível. Isto quer dizer: referência ao
congênere; os ornamentos de um animal são órgãos da visão do outro […] A relação entre semelhantes, tal como nos é dada
como espetáculo não é realidade segunda, perspectiva humana superposta a uma ordem do em si; esta relação “é” realizada
nos corpos animais que se entrevêem e formam uma “interanimalidade”. Aqui não há nenhuma especulação no tocante à
«consciência animal» ; trata-se apenas da visão e da reciprocidade como comportamento” (MBN XVI, 69). “Não temos o
direito de considerar a espécie como uma soma de indivíduos exteriores uns aos outros. Há tantas relações entre os animais
de uma mesma espécie quantas relações internas entre cada parte do corpo de um animal […], há uma relação especular en-
tre os animais, cada um é o espelho do outro. Esta relação perceptiva restitui um valor ontológico à noção de espécie. O que
existe não são animais separados, mas uma interanimalidade. A espécie é o que o animal tem para ser, não no sentido de um
poder ser, mas no sentido de um pendor pelo qual todos os animais da mesma espécie são localizados. A vida não é, segundo
a definição de Bichat, “o conjunto das funções que resistem à morte, mas um poder de inventar do visível” (Nat, 247-248);
3) O animal é percebido por nós, e nossa percepção do animal funda o fenômeno da animalidade: “as relações entre animais,
entre organismos animais, não podem ser compreendidas senão pela mediação de nossa percepção do animal, por emprésti-
mo a este campo” (MBN XVI, 68-69).
16 Meio ambiente ou meio circundante [NT].
17 “Projeto corporal” – referência às mudanças experimentadas pelo organismo em sua relação com o meio [NT].
18 MBN, VIII-2, 203.

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Pascal Dupond

1) Esta “vista na coisa percebida” não é uma “visão”, nem a nossa, nem a dela (no
sentido em que se atribuiria à coisa ou ao animal inferior uma consciência surda em
relação a si e ao mundo).
2) Ela não é produzida, constituída por nossa visão (da qual ela seria o contraponto
do lado do objeto).
3) Ela não é tampouco livre de toda visão (pois uma “vista” sem “visão” seria
ininteligível).
Vista e visão estão numa relação de envolvimento: Ineinander.
O que Merleau-Ponty denomina “vista” equivale, no plano sensível, ao que deno-
minamos “sentido” no plano do inteligível. Vista e visão estão na mesma relação que
sentido e compreensão: o sentido envolve a compreensão – da qual ele é a Urstif-
tung (a fundação originária) ou a antecipação – assim como a compreensão envolve
o sentido (do qual ela é a realização ou a Nachstiftung); da mesma maneira, a vista
da coisa envolve, antecipa e convoca nossa visão como nossa visão envolve a vista da
coisa, efetivando o sentido visual incoativo; a “vista na coisa percebida” é como um
sentido adormecido, a espera de que nossa percepção o desperte.
Em seu curso sobre a natureza, no Collège de France, Merleau-Ponty afirma: “O
que habita a natureza não é o espírito, mas o começo de sentido, em vias de se organizar,
mas não totalmente definido [...]. É preciso que o sujeito intervenha para extrair este
sentido, mas essa atribuição de sentido não é constituinte”19.
O sentido adormecido, o prenúncio de sentido é o ser natural; e esta possibilidade
de liberar um sentido, que o desperta mas não o constitui, é precisamente a percepção.

Consideremos agora o ângulo noético.


O projeto da Fenomenologia da percepção é pensar a percepção como “luz natural”
ou como pensamento inseparavelmente naturado e naturante. Pensamento natura-
do, porque o sujeito perceptivo é um “sujeito natural”20, um “eu natural”21, “encar-
nado em uma natureza”22 ou “lançado em uma natureza”23 que não aparece somente
fora dele, mas também no centro da subjetividade. Pensamento naturante, porque o
sujeito perceptivo é também evasão, criação de sentido, espírito, liberdade, história.
Esta dualidade inerente à percepção, naturante e naturada, nós a reencontramos
em todo pensamento.
19 Nat, 68.
20 PP, 231.
21 PP, 502.
22 PP, VII.
23 PP, 398.

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Merleau-Ponty em Salvador

O pensamento, como o apresenta o capítulo da Fenomenologia da percepção a res-


peito do cogito, é, com efeito, sempre e de maneira indivisível, da ordem do aconte-
cimento e da ordem do agir ou da efetuação.
Acontecimento e agir não são igualmente acentuados em todo pensamento.
Na percepção, o pensar é antes de tudo da ordem do acontecimento.
Nos afetos ou nas operações metódicas, o pensar é antes de tudo da ordem do
agir: “meu amor, minha raiva ou vontade não são certos como simples pensamen-
tos de amar, odiar ou querer, mas pelo contrário, toda certeza desses pensamentos
provém da certeza dos atos de amor, de ódio ou de vontade, dos quais tenho certeza
porque os pratico...”24.
Entretanto, esse fazer é ainda da ordem do acontecimento, como todo aconte-
cimento no pensamento é já da ordem do agir: “não haveria pensamento e verdade
sem um ato pelo qual ultrapasso a dispersão temporal das fases do pensamento e a
simples existência de fato de meus eventos psíquicos...”25.
Um pensamento que seria “puro ato”, coincidência perfeita consigo mesmo, seria
uma evidência absoluta: não temos nenhuma experiência disso, pois nossas evidên-
cias envolvem sempre um passado de certezas sedimentadas que lhes dão um fundo
de opacidade. Pelo contrário, um pensamento que fosse “puro acontecimento” se-
ria subtraído da sua própria efetuação, seria privado deste contato consigo mesmo,
que é a própria experiência da verdade; Não seria um pensamento; e é por isso que
Merleau-Ponty pode afirmar: “a consciência que tenho de ver e de sentir não é o re-
gistro passivo de um evento psíquico fechado sobre si mesmo, [...] é a própria efe-
tuação da visão”26.
Assim, no espírito humano, a evidência inerente ao agir é “dada” a ela mesma e
pertence, desse modo, à ordem do acontecimento e, inversamente, o que permite
ao acontecimento do pensamento não ser “psíquico” ou empírico, mas transcenden-
tal, no sentido de uma abertura ao mundo e de uma luz natural, é o fato de que o
pensamento pertença à ordem da efetuação e do agir ou à ordem da liberdade. Se o
pensamento é naturado, na qualidade de acontecimento dado a si mesmo, ele é na-
turante na qualidade de efetuação desta doação27.

24 PP, 439.
25 PP, 441.
26 PP, 431.
27 Esta análise da natureza do pensamento permite fazer uma justa leitura do cogito cartesiano. No cogito, precisa Merleau-
Ponty, “não é minha existência que é restituída na consciência que tenho dela, mas, inversamente, é o eu penso que é reinte-
grado ao movimento de transcendência do eu sou e a consciência à existência” (PP, 439). Para alcançar o solo da evidência,
trata-se, não de reter nossa existência na imanência, a pura presença a si do pensamento (o que seria, aliás, impossível, pois
em contradição com a essência do pensamento), mas, ao contrário, de empenhar a vontade (quer dizer, este modo do pen-

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Pascal Dupond

Esta dupla qualidade, o pensamento a deve à temporalidade. Todo pensamento,


toda verdade é de teor temporal, é colhido na trama do tempo, em vez de dominá-
lo. E como o tempo é dispersão e concentração, como ele “se afasta e se reúne num
mesmo e único movimento”, todo pensamento, toda verdade é luz e opacidade; luz,
porque se unifica ou se reintegra; opacidade, porque se perde ou se dissolve na disper-
são do tempo.
O cogito não é exceção: ele também possui uma “espessura temporal”28, ele
também participa de uma “historia sedimentada” que lhe dá uma “evidência à
primeira vista”, mas o destitui de evidência absoluta. Por isso, Merleau-Ponty es-
creve: “a reflexão não é absolutamente transparente para si mesma, ela é sempre
dada em uma experiência [...] surge sem mesmo saber de onde vem e se oferece a
mim como uma dom da natureza”29. A opacidade do pensamento para si mesmo
é localmente dissipada, mas não é abolida pela reflexão.
E é por isso que Descartes pensava que “a própria evidência pode ser revogada
pela dúvida”30, quando é subtraída pelo tempo da luz da pura atualidade: assen-
tada em um suporte de evidências sedimentadas, ela envolve uma facticidade que
exclui a plena posse de si mesmo. Dúvida e certeza são, pois, no final das contas,
inseparáveis31 e, como afirmou Merleau-Ponty, “há uma opinião que não é uma
forma provisória do saber, destinada a ser substituída por um saber absoluto,
mas, pelo contrário, a forma, ao mesmo tempo, mais antiga ou mais rudimentar
e a forma mais consciente ou mais madura do saber...”32.

samento que é aquele do agir ou da efetuação) no movimento de transcendência (ou de abertura) do ser no mundo, e de
empenhá-la de tal modo que a vontade efetue o acontecimento da existência, seja a sua retomada ativa. Essa efetuação passa,
em Descartes, pela dúvida metódica, que não é a impossível recusa da transcendência, o impossível retorno à imanência, mas
a retomada do acontecimento da existência no pensamento, o agir ou a liberdade. Através da dúvida metódica, o cogito eleva
o movimento de transcendência (a abertura ao mundo) à condição de um verdadeiro agir, colocando a reflexão como cons-
ciência de si, enquanto agente do movimento de transcendência. É no momento em que a vontade se compreende como
transcendência e a transcendência como vontade, no momento em que a transcendência se torna pensante, reflexiva, atuante,
que se estabelece a certeza do cogito, ou que a luz do mundo vem a ser verdade propriamente dita. Mas que a transcendência
torne-se um agir, que a luz do mundo torne-se uma verdade não quer dizer que o pensamento possa ser pura coincidência e
posse de si mesmo: “Não é verdadeiro que minha existência se possua a si mesma e menos ainda que seja estranha a si mesma,
porque ela é um ato ou um fazer, e um ato, por definição, é a passagem violenta do que eu tenho àquilo que viso, do que eu
sou àquilo que tenho a intenção de ser” (PP, 438). O ato não é posse de si mesmo (e permanece assim na ordem do aconte-
cimento), à medida que é “levado” no movimento de transcendência do qual, contudo, ele é também efetuação, “tomado”
na trama do tempo e não seu senhor.
28 PP, 456.
29 PP, 53.
30 PP, 454.
31 “A certeza é dúvida”, no sentido em que toda evidência “me aparece como evidência para uma certa natureza pensante da
qual usufruo e que prolongo, mas que permanece contingente e dada a si mesma”.
32 PP, 454.

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Merleau-Ponty em Salvador

Um racionalismo que não conhecesse senão o pensamento naturante ou identifi-


casse verdade e evidência absoluta, um ceticismo que renunciasse à verdade, em nome
da contingência de nossa natureza, seriam ambos falsos: nossa situação é o entrelaça-
mento da verdade e da ausência de verdade: “a consciência, se não é verdade ou alètheia
absoluta, exclui pelo menos toda falsidade absoluta”33.

Façamos o balanço dessas análises. No primeiro momento de seu trabalho filosó-


fico, Merleau-Ponty passa da razão à percepção, mostrando que: 1) “a vida mental ou
‘cultural’ toma emprestadas da vida suas estruturas e que o sujeito pensante deve ser
fundado no sujeito encarnado”34; 2) as verdades racionais são aparentadas às verdades
da percepção (elas têm a mesma estrutura temporal); 3) as verdades racionais se arris-
cam a perder até mesmo o seu senso de verdade, se elas renegam sua ancoragem nas
verdades de percepção.
Como pensar então a diferença entre as verdades racionais e as verdades de percep-
ção? Como pensar a emergência das verdades racionais sobre o suporte das verdades
de percepção?
Essa questão não está ausente na Fenomenologia da percepção. Merleau-Ponty fala
de “transcendência” ou de “escape”, para designar o “movimento pelo qual a existên-
cia, por sua própria conta, retoma e transforma uma situação de fato”35 ou “transforma
o berço do sensível sem abandoná-lo”36. Porém a questão do ser de cultura permanece
marginal no livro de 1945.
Permanece marginal, em primeiro lugar, porque a tarefa inicial, prévia, é retornar à
percepção, re-enraizar o ser de cultura na percepção.
Ela permanece também marginal, mais secretamente, porque a Fenomenologia da
percepção encontra uma dificuldade. E aquilo que o demonstra é o fato de que, no
momento em que a questão do ser de cultura torna-se central, no início dos anos
50, ela exige uma inflexão do pensamento, o abandono daquilo que permanecia, na
Fenomenologia da percepção, da filosofia da consciência, em favor de uma ontologia
do Ser vertical.
Uma filosofia da consciência não pode pensar a emergência do ser de cultura ou
do espírito porque, mesmo efetuando uma volta à percepção, à natureza, ao que
antecede e funda o espírito, ela o considera apenas do ponto de vista do espírito.
Para compreendê-lo, retomemos A estrutura do comportamento.

33 PP, 456.
34 PP, 225.
35 PP, 197.
36 PP, 68.

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Pascal Dupond

As formas ou as estruturas que são estudadas nesta obra parecem neutralizar a bi-
furcação natureza/espírito, pois são, ao mesmo tempo, formas naturais (sistema solar,
organismo) e formas percebidas, reconciliando assim a exterioridade em relação a si, da
natureza, e a interioridade em relação a si, do espírito.
Na realidade, a bifurcação não desapareceu: ela reaparece no momento em que,
após ter distinguido a ordem física, a ordem vital e a ordem humana, Merleau-Ponty
se pergunta segundo que ordem elas devem estar articuladas.
A teoria da forma (ao menos para seus fundadores alemães: Koffka, Koeller) é de
orientação realista, naturalista, redutora: o mundo físico funda o biológico, que funda
o psíquico; “a integração da matéria, da vida e do espírito se obtém pela redução ao
denominador comum das formas físicas”37.
Merleau-Ponty pensa que essa postura redutora trai o conceito de forma38: sendo
assim, ele vai inverter a ordem de fundação e dar a primazia à ordem humana; ele es-
creve: “a ordem humana da consciência não aparece como uma terceira ordem sobre-
posta às outras duas, mas como sua condição de possibilidade e seu fundamento”39.
Merleau-Ponty se inscreve, assim, na tradição do idealismo transcendental, que
confere ao espírito (constituinte) uma primazia transcendental sobre a matéria e a vida
(a natureza constituída).
É verdade que ele encarna a subjetividade transcendental na facticidade da existên-
cia, modificando profundamente o conceito; porém, mediante esta modificação, ele
lhe confere também uma validação40. Nisto reside todo o equívoco de A estrutura do
comportamento.
Este equívoco se reencontra na Fenomenologia da percepção. Merleau-Ponty nos diz
que a percepção é naturante e naturada, verdade e facticidade; ele nos diz que o pen-
samento, todo pensamento, inclusive o cogito, é, de maneira inseparável, ato e acon-
tecimento. Reencontramos, portanto, em todo pensamento a estrutura da percepção,
assim como reencontramos, na percepção, a estrutura de todo pensamento. Mas, en-
tão, é a percepção que fornece sua estrutura ao pensamento, ou é o pensamento que
37 SC, 146.
38 “Em vez de perguntar que tipo de ser pode pertencer à forma […], nós a colocamos entre os acontecimetos da natureza,
servimo-nos dela como uma causa ou uma coisa real e, por isso mesmo, não pensamos mais segundo a ‘forma’” (SC, 147).
Contra os postulados naturalistas da Gestalttheorie, trata-se de “pedir à própria forma a solução da antinomia de que ela é a
ocasião, a síntese da natureza e da idéia” (Id.).
39 SC, 218.
40 O transcendental kantiano é sem gênese ou sem história (pois só há gênese ou história na qualidade de objeto construído
pelo sujeito transcendental); em compensação, o transcendental de A estrutura do comportamento está imerso na existência,
no mundo e no tempo. A consciência só conhece sua gênese pondo-a livremente no modo da objetividade, mas esta gênese
permanece, do ponto de vista da existência, na “profundidade presente” do espírito, não diante do espírito, mas às suas costas,
de tal sorte que “para a vida, como para o espírito, não há passado absolutamente passado…” (SC, 224).

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Merleau-Ponty em Salvador

fornece sua estrutura a percepção? O pensamento é uma visão ou a visão é um pen-


samento de ver?
Com uma filosofia reflexiva, como a de Descartes, a visão é um pensamento de
ver; e se a visão é já um pensamento, não há passagem entre da visão ao pensamento.
A Fenomenologia da percepção rejeita este ponto de vista: ela nos mostra que a visão
não é um pensamento, que existe uma passagem, uma métabasis41, da visão ao pensa-
mento e que a visão funda o pensamento. Diversos textos o mostram, como este: “Os
conteúdos visuais são retomados, usados, sublimados ao nível do pensamento por uma
potência simbólica que os ultrapassa, mas é sobre a base da visão que esta potência
pode constituir-se. A relação entre a matéria e da forma é aquela que a fenomenologia
chama relação de Fundierung: a função simbólica repousa sobre a visão como sobre
uma base, não porque a visão seja sua causa, mas porque ela é este dom da natureza
que o espírito devia utilizar, para além de toda esperança, à qual ele devia dar um sen-
tido radicalmente novo e da qual, contudo, ele precisava não somente para encarnar-
se, mas também para ser”42.
Mas a Fundierung é sempre uma fundação cruzada: a percepção funda o pensamento,
mas o pensamento, por sua vez, funda a percepção. Merleau-Ponty escreve no capitulo
sobre o cogito: “A relação da razão e do fato, da eternidade e do tempo, como aquela da
reflexão e do irrefletido, do pensamento e da linguagem ou do pensamento e da percep-
ção é essa relação de duplo sentido que a fenomenologia chamou de Fundierung: o termo
fundante – o tempo, o irrefletido, o fato, a linguagem, a percepção – é primeiro, no sen-
tido de que o fundado se dá como uma determinação ou uma explicitação do fundante,
o que o impede para sempre de reabsorvê-lo, e contudo o fundante não é o primeiro,
no sentido empirista, e o fundado não é simplesmente um derivado, pois é através do
fundado que o fundante se manifesta. É assim que se pode dizer indiferentemente que
o presente é um esboço de eternidade e que a eternidade do verdadeiro não é senão uma
sublimação do presente. Não ultrapassaremos este equívoco, mas o compreenderemos
como definitivo, ao reencontrar a intuição do tempo verdadeiro que conserva tudo e que
está no coração da demonstração, bem como da expressão”43.
A visão funda o pensamento, mas é através do pensamento que a visão se manifes-
ta; o equívoco é, diz Merleau-Ponty, insuperável, definitivo.
Merleau-Ponty nunca parou de se explicar em relação a este equívoco; ele o diz na
sua aula inaugural no Collège de France: “o filosofo se reconhece por ter indistinta-
mente o gosto da evidência e o sentido da ambigüidade. Quando ele se limita a sub-
41 Mudança, transformação, passagem de um ambiente a outro ou de uma idéia a outra, ou ainda retorno à origem [NT].
42 PP, 147.
43 PP, 451.

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Pascal Dupond

meter-se à ambigüidade, ela se chama equívoco. Para os filósofos maiores, ela se torna
tema, contribuindo para fundar as certezas em vez de ameaçá-las. Seria preciso,
portanto, distinguir uma má e uma boa ambigüidade’’44. 
Na Fenomenologia da percepção, ele procura, de duas maneiras, elevar este
equívoco último à condição de tema.
Uma consiste em “pluralizar” o cogito. O cogito é ao mesmo tempo o que Mer-
leau-Ponty denomina “verdadeiro cogito” (“há consciência de algo, algo se mostra,
há um fenômeno”45) e o que ele denomina “cogito tácito”, quer dizer, “uma pre-
sença de si para si, que é a própria existência e que é anterior a toda filosofia”46;
e também o “cogito falado”, posto em palavras, que expressa o ideal de uma posse
de si ou de uma coincidência do pensamento consigo mesmo.
A outra consiste em mostrar que a percepção e o pensamento, as verdades de
fato e verdades de razão, distinguem-se, em última instância, apenas como duas
maneiras que a consciência tem de ser temporal, uma inclinando-se para o acon-
tecimento (ou para o tempo que se dispersa), a outra em direção ao ato (ou ao
tempo que se reintegra); e os dois modos de temporalidade são inseparáveis: o
tempo se dispersa e se unifica em um mesmo e único movimento; não há acon-
tecimento de pensamento que não seja também ato, assim como não há ato de
pensamento que não seja também acontecimento; o tempo natural funda o tem-
po histórico, assim como o tempo histórico funda o tempo natural. O equívoco
da Fundierung se resolve então em ultimo caso naquilo que Merleau-Ponty chama
de “dialética do tempo constituído e do tempo constituinte”47.
Essa maneira de resolver o equívoco conduz a uma ambigüidade boa ou má?
Nos trabalhos dos anos 50, Merleau-Ponty verá aí uma “ambigüidade má”. Apesar
dos esforços para compreender o pensamento como uma visão, foi antes a visão que
foi compreendida como um pensamento.
Ele vai, pois, tentar se explicar mais radicalmente com a ambigüidade da Fundie-
rung, e isto vai produzir a inflexão em direção à ontologia do Ser vertical.

44 EP, 10.
45 PP, 342.
46 PP, 462.
47 PP, 278.

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Merleau-Ponty em Salvador

II – A emergência do ser de cultura

Esta inflexão é, de início, uma deslocamento do centro de gravidade do fenômeno


de expressão.
Na Fenomenologia da percepção, este centro de gravidade é o corpo perceptivo, que
“não é apenas um espaço expressivo entre todos os outros”, mas “a própria origem de
todos os outros, o próprio movimento de expressão”48.
O movimento de expressão é sempre, tal como o gesto, por menor que seja, ao
mesmo tempo, natural e para além da natureza, “físico” e “metafísico”49.
É porque quando este movimento se torna cultura – arte, ciência ou filosofia –, ele
permanece, no fundo, idêntico a si próprio. Toda percepção, todo gesto nos dá a intei-
reza do fenômeno de expressão.
Merleau-Ponty não ignora os diferentes regimes da expressão; ela não apaga suas
diferenças; ele reconhece particularmente a especificidade da expressão linguageira, ao
observar que “dentre todas as operações expressivas, apenas a fala é capaz de sedimen-
tar-se e de constituir uma aquisição intersubjetiva”50, quer dizer, uma verdade51, uma
ordem racional. Mas o que mais o interessa, não é esta especificidade, mas, pelo con-
trário, o que vincula e funde a expressão linguageira com a percepção e o gesto52. A
linguagem é uma certa contração da garganta, um certa emissão de ar entre a língua e
os dentes, que “se deixa de repente investir por um sentido figurado e o significa fora
de nós”53. A preocupação de Merleau-Ponty é, portanto, de maneira manifesta, fundar
o sujeito falante no sujeito encarnado54.
Ao retomar o estudo do fenômeno de expressão, no inicio dos anos 50, o centro
de gravidade se desloca do corpo perceptivo para as obras de cultura: a percepção que

48 PP, 171.
49 PP, 194: “É preciso, sem dúvida alguma, reconhecer que o pudor, o desejo, o amor em geral têm uma significação me-
tafísica, quer dizer, que eles são imcompreensíveis se se trata o homem como uma máquina governada por leis naturais, ou
mesmo um « feixe de instintos » e que concernem ao homem como consciência e como liberdade”; e, mais adiante, Merleau-
Ponty fala da “estrutura metafísica do meu corpo” (PP, 195).
50 PP, 221.
51 “A fala instala em nós a idéia de verdade como limite presuntivo de seu esforço” (Id.).
52 “Tudo é natural e tudo é fabricado”: eu me pergunto se não há aqui uma manifestação daquela “má ambiguidade” da
qual falará posteriormente Merleau-Ponty.
53 PP, 226. A passagem citada continua assim: “Isto não é mais nem menos miraculoso que a emergência do amor no de-
sejo ou do gesto nos movimento descoordenados do começo da vida […] É preciso então reconhecer como um fato último
esta potência aberta e indefinida de significar – quer dizer, ao mesmo tempo, de apreender e comunicar um sentido –, pela
qual o homem se transcende em direção a um comportamento novo ou em direção a outrem ou em direção a seu próprio
pensamento, através de seu corpo e sua fala”.
54 PP, 225: “A vida mental ou cultural toma de empréstimo da natureza suas estruturas e […] o sujeito pensante deve ser
fundado sobre o sujeito encarnado”.

93 |
Pascal Dupond

interessa a Merleau-Ponty, aquela que é verdadeiramente nossa iniciação ao mundo,


é a visão de Cézanne contemplando o motivo, o olho dilatado e “germinando com a
paisagem”.
No livro de 1945, Merleau-Ponty ainda está preso ao equívoco da Fundierung: o
segredo da obra de cultura está atrás dela, na percepção, porque a percepção sempre é,
já, um pensamento, um cogito. Nos anos 50, no momento em que Merleau-Ponty faz
a crítica do cogito, a percepção deixa de ser originariamente pensamento. E porque não
é pensamento desde logo, ela pode anunciar o pensamento: o segredo da percepção
tem seu aval na obra de cultura.
Esta inflexão provoca um significativo remanejamento do dispositivo conceitual
de Merleau-Ponty.
Primeiro ponto: observamos a emergência da categoria de Stiftung (ou de maneira
mais exata das categorias de Urstiftung e de Nachstiftung) que se substituem à categoria
de Fundierung.
A Stiftung ocupa o lugar da Fundierung quando, como o afirma o Resumo do curso
de 54-5555, trata-se de encontrar “um remédio para as dificuldades da consciência”, um
remédio melhor do que a noção de Fundierung oferecia.
Essas dificuldades são as aporias vinculadas ao tema da “constituição”.
Quando há constituição, os papeis do constituinte e do constituído se tornam ir-
reversíveis: o constituinte não deve nada ao contituído, que deve tudo ao constituin-
te56; o mundo, o outro, o tempo são, a cada instante, “o reflexo exato dos atos e dos
poderes da consciência”57.
A Fenomenologia da percepção faz uma primeira crítica da idéia de constituição,
mostrando claramente suas aporias.
Se a consciência é constituinte, a intersubjetividade desaparece; em razão de uma
das duas seguintes possibilidades: ou eu sou constituinte, e o outro é constituído e não
pode, pois, ser um outro sujeito, um alter ego; ou é o outro que é constituinte, mas
eu não sou, então, mais que objeto de seu olhar; de um lado ou de outro, a intersub-
jetividade se esquiva.
Se a consciência é constituinte, nosso mundo, multiplicidade aberta e indefini-

55 RC, 59.
56 A constituição da intersubjetividade é a cruz da fenomenologia: “A posição do outro como um eu mesmo […] não é
possível, se é a consciência que deve efetuá-lo: ter consciência é constituir, não posso então ter consciência de outrem, pois
isto seria constituí-lo como constituinte e como constituinte em relação ao ato mesmo pelo qual o constituo” (S, 117). Em
compensação, se sou instituinte, a alternativa desaparece: “um sujeito instituinte pode coexistir com outro, porque o institu-
ído não é o reflexo imediato de suas próprias ações, pode ser retomado em seguida, por si mesmo ou pelos outros, sem que
se trate de uma recriação total…” (RC, 60).
57 Id.

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Merleau-Ponty em Salvador

da, torna-se um universo “sem fissuras e sem lacunas”; não estamos mais lançados
no mundo, simultaneamente nascidos do mundo e para o mundo, tornamo-nos um
kosmotheoros.
Se a consciência é constituinte, o tempo está concluído e o sujeito se encontra fora
do tempo; nossa situação temporal fica imcompreensível.
A idéia de constituição deve, pois, ser abandonada: a relação entre o sujeito e o
mundo, o tempo e o outro é uma relação de Fudierung, quer dizer, uma relação rever-
sível; o outro, o mundo e o tempo nascem das operações do sujeito, como o sujeito
nasce do outro, do mundo e do tempo.
Mas Merleau-Ponty, no início dos anos 50, quer ir mais longe; ele se dá conta de
que a idéia de Fundierung, segundo o modo como ele a utiliza no livro de 1945, é ain-
da prisioneiro da filosofia da consciência. Esta situação aparece na questão do tempo:
a subjetividade não constitui o tempo, ela não é autora do tempo; mas ela tem o poder
de sublimar o tempo em eternidade e, neste sentido, de libertar-se do tempo. A falsa
idéia de constituição do tempo comporta um núcleo de verdade: ela anuncia o tempo
da razão ou da verdade, “o tempo verdadeiro”, que mantém tudo, no qual cada acon-
tecimento recebe um lugar inalienável58. Há, portanto, no livro de 1945, uma impor-
tante referência à eternidade, uma nostalgia da eternidade, que substitui a impossível
constituição do tempo.
Quando Merleau-Ponty aborda a problemática da instituição, isto desaparece; ele
escreve em A prosa do mundo: “Husserl empregou a bela palavra Stiftung para designar
de início a fecundidade infinita de cada momento do tempo – que, justamente, por ser
singular e passar, jamais poderá cessar de ter sido ou de ser universalmente – e mais ain-
da a fecundidade, dela derivada, das operações da cultura, que criam uma tradição, con-
tinuam valendo após suas aparições históricas e exigem além delas mesmas, operações
distintas e próprias”59. Como podemos observar não se trata mais de eternidade, mas de
“fecundidade do tempo” e a problemática da história se amplia.
Eis o primeiro ponto: o abandono da Fundierung em favor da Stiftung.
Segundo ponto: nos trabalhos dos anos 50, Merleau-Ponty abandona o “principio
dos princípios” de uma filosofia transcendental, que o livro de 1945 havia nuançado
sem, contudo, rejeitar, e segundo o qual “eu sou a fonte absoluta”60.
Se eu sou a fonte absoluta, a percepção permanece, com todas as nuanças que se
queira, como pensamento de ver, uma modalidade do cogito, um cogito tácito.

58 “Aquilo que vivemos é e permanece perpetuamente para nós, o velho mantém contato com sua infância. Cada presente
que se produz se crava no tempo e aspira à eternidade” (PP, 450).
59 PM, 95-96.
60 PP, III.

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Pascal Dupond

Podemos admitir que há um cogito tácito?


A posição de Merleau-Ponty é complexa e nuançada.
Ele observa que existe uma unidade de nossa vida sensível, um “centro” da visão
que une nossas visões dispersas, um centro do tato que concentra a vida tátil de nosso
corpo; portanto, diz ele em O visível e o invisível, isto é, nos estudos tardios, um eu
penso deve poder acompanhar esta vida sensível61.
Porém este eu penso não é o cogito intelectualista; o sentir está “disperso no meu
corpo”, não é um puro pensamento; é, pelo contrario, o pensamento que possui uma
infra-estrutura sensível: “todo pensamento conhecido por nós advém a uma carne”62.
Merleau-Ponty é consciente que a expressão eu penso ou cogito corre o risco de pro-
duzir uma leitura falseada da visão. Assim, ele escreve em O visível e o invisível: “em
que sentido ‘com a visão’ não introduzimos ainda o pensar: com efeito, não estamos
no em si. Desde o instante em que dizíamos VER, VISÍVEL, e descrevíamos a deis-
cência do sensível, estávamos, se assim quisermos, na ordem do pensamento. Não no
sentido em que o pensar que introduzimos fosse HÁ e não ME PARECE QUE (pare-
cer que faria todo o ser aparecer para si)”63.
Esta nota, é preciso reconhecer, é bastante embaraçosa: com a visão estamos e não
estamos na ordem do pensamento; estamos situados nela porque dizemos que “há”;
não estamos, porque não se trata aí do aparecer (o videre videor cartesiano).
Uma nota de janeiro de 1959 é, ao contrário, mais radical; ela diz: “o cogito tácito
é impossível”64.
Esta nota mostra: 1) que o cogito tácito é uma interpretação do ver e do sentir como
“pensamento de ver e de sentir”, 2) que este pensamento de ver e de sentir é insepará-
vel de uma certa prática filosófica: a redução, o retorno à imanência transcendental,
3) que esta redução e este retorno não são nada fora das palavras, da linguagem, pelos

61 VI, 191: “Tanto é patente que o sentir está disperso em meu corpo, que minha mão apalpa, por exemplo, e que, por conse-
guinte, não nos cabe reportar de antemão o sentir a um pensamento de que ele apenas seria um modo – quanto seria absurdo
concerbermos o tato como uma uma colônia de experiências táteis reunidas [Merleau-Ponty lembra-se,aqui, do Teeteto]. Não
propomos, aqui, nenhuma gênese empirista do pensamento: perguntamo-nos, precisamente, qual é esta visão central que re-
úne as visões esparsas, este tato único que governa globalmente toda a vida tátil do meu corpo, este eu penso, que deve poder
acompanhar todas as nossas experiências”. RC, 115: “A percepção que eu tenho de meu corpo como morada de uma ‘visão’,
de um ‘tato’ e (posto que os sentidos geram nele até mesmo a consciência impalpável de que dependem) de um eu penso, e a
percepção que eu tenho de um outro corpo excitável, sensível e (posto que tudo isso não se dá sem um eu penso) portador de
um outro eu penso – essas duas percepções se iluminam uma à outra e se realizam em conjunto”.
62 Id.
63 VI, 190. Nota inédita de 58-59: “É preciso descrever um Eu penso, que não seja existência como consciência, mas que seja
emergência de um pré-objeto por um pré-indivíduo: desenho [?] de uma perspectiva e não instauração de uma esfera de ima-
nência, escalonamento de planos em torno de um foco virtual que não é definido [?] senão por esta repartição dos planos em
torno dele, que, portanto, não pode ser, em caso algum, descrito como origem absoluta, dobra no ser e não buraco no ser”.
64 VI, 224.

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Merleau-Ponty em Salvador

quais “assumo a atitude transcendental, [...] constituo a consciência constituinte...”.


Qualquer que seja a legitimidade destas operações, elas supõem todo um trabalho de
linguagem. E é esta dependência do cogito em relação ao trabalho da linguagem que é
inteiramente esquecida quando se interpreta a percepção como um cogito tácito.
As relações de cogito e da linguagem passam, assim, por um tipo de inversão.
No livro de 1945, como o mostra o Prefácio, a consciência, o cogito – fonte absolu-
ta – é a condição transcendental de toda significação lingüística65.
Nos trabalhos do início dos anos 50, Merleau-Ponty reflete a respeito da lingüística
estrutural. A língua, diz ele, é regida por um principio de organização interna66, que é
um “espírito” no sentido de Hegel, ou um “sistema diacrítico intersubjetivo”, como o
dirá mais tarde, mas não é um cogito67.
Acentuando essa inflexão, as notas de trabalho do final dos anos 50 mostram que
a experiência da consciência, que passava por ser a fonte de qualquer significação, é
dependente da significação “consciência”, que é, ela mesma, dependente das operações
diacríticas da linguagem.
E é então que intervém a crítica do cogito tácito: a reflexão quis alcançar e expressar
o irrefletido, a “consciência silenciosa”, o “mundo do silencio”, mas para chegar a isto,
ela se contentou em projetar de maneira “ingênua” o cogito da reflexão no irrefletido,
eliminando de forma imaginária a trama da linguagem. Assim fazendo, ela criou um
tipo de monstro, que não é nem o irrefletido nem a reflexão, nem o silêncio nem a
palavra.
A consciência silenciosa não é um cogito tácito, ela não é uma modalidade do co-
gito, mas sobretudo uma Gestalt, uma diferenciação, um relevo ou uma dobra no ser:
Merleau-Ponty escreve, em uma importante nota inédita: “jamais pensaremos a vida
se não pensarmos o nascimento e a morte. A impossibilidade de pensá-los nos ter-
mos do cogito é a condenação do cogito, ao menos a prova de que ele não é a fórmula
65 No Prefácio à Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty escreve: “Quaisquer que possam ter sido os deslizamentos de
sentido que finalmente nos entregaram a palavra e o conceito de consciência enquanto aquisição de linguagem, nós temos
um meio direto de ter acesso àquilo que ele designa, nós temos a experiência de nós mesmos, dessa consciência que somos, e
é a partir dessa experiência que se medem todas as significações da linguagem, é justamente ela que faz com que a linguagem
queira dizer algo para nós” (PP, X). E no capítulo sobre o cogito, ele acrescenta: “Assim, a linguagem pressupõe uma consci-
ência da linguagem, um silêncio da consciência que envolve o mundo falante e em que, primeiramente, as palavras recebem
configuração e sentido” (PP, 462).
66 “Há […] um interior da linguagem, uma intenção de significar que anima os acidentes linguísticos e faz da língua, a cada
momento, um sistema capaz de se recortar e de se confirmar a si mesmo” (PM, 51).
67 PM, 26: “A psicologia nos faz redescobrir com o « eu falo » as relações, uma dimensão que não aquelas do pensamento
no sentido ordinário do termo. ‘Eu penso’, isto significa: há um certo lugar denominado ‘eu’, em que fazer e saber que se faz
não são diferentes, em que o ser se confunde com sua revelação a si mesmo, em que, portanto, nenhuma intrusão de fora
é sequer concebível. Este ‘eu’ não saberia falar. Aquele que fala entra em um sistema de relações que o supõem e o tornam
aberto e vulnerável”.

97 |
Pascal Dupond

derradeira [...]. Como começar, então? Não pode ser com Eu penso algo, mas com Há
ser, há algo, uma figura sobre um fundo, isto é, não um objeto sobrevoado, mas algo
que se destaca sobre... [...] E a passagem de minha inexistência a minha existência,
bem como a passagem inversa, é compreensível como acentuação ou dissolução da
minha relação precisa e articulada com este objeto perceptivo. O nada da percepção
está no limite de uma percepção cujo relevo diminui”68.
Uma vez que o cogito tácito desapareceu, Merleau-Ponty pode apresentar uma
articulação entre percepção e linguagem de maneira mais precisa que na Fenomeno-
logia da percepção69. Podemos apresentar esta articulação em três ou quatro propo-
sições.
1) Há um mundo do silêncio, um mundo anterior à linguagem; as coisas per-
cebidas não estão desde sempre presentes na linguagem nem são, elas mesmas, lin-
guagem70. Mas a linguagem não disfarça o mundo do silêncio, pelo contrário: “se
soubermos retomá-la com todas as suas raízes e todos os seus frutos”, a linguagem
será “a mais válida testemunha do Ser”, ela “realiza, ao quebrar o silêncio, aquilo
que o silêncio pretendia sem consegui-lo71”, ela transforma as coisas em si mesmas,
transformando-as em coisas ditas.
2) O mundo do silêncio é visível e invisível: o visível, o sensível está ordenado, es-
truturado por formas, membruras, armaduras, essências carnais, que a percepção re-
conhece cegamente (como reconhecemos um rosto sem conseguir descreve-lo), mas
que, na percepção, estão mergulhadas no visível, confundem-se com sua manifestação
e, neste sentido, são invisíveis. A obra de cultura em geral consiste em expressar as ar-
maduras e as membruras invisíveis do visível, dando-lhes uma figuração, plástica, mu-
sical ou lingüística. Quando Cézanne, tendo “germinado com a paisagem”, declara “eu
tenho meu motivo”, ele exprime o fato de que a membrura invisível da paisagem, seu
logos estético, é composto o bastante, graças ao trabalho do olhar, para que a tela rece-
ba o traço visível; o “motivo” é o invisível, a essência carnal da paisagem de Cézanne.
A criação consiste então em transportar o invisível do mundo ou do Ser para uma
carne mais sutil, que nos ofereça uma compreensão mais aguda.
Esta passagem da carne do mundo, em que o invisível está escondido, à carne sutil
do ser de cultura, na qual o invisível é acolhido e figurado, é, por excelência, o trabalho
68 MBN, VIII-2, 204.
69 Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty dá sobre estas articulações três indicações: 1) a vida perceptiva não é, em
sentido algum, anterior à vida falante, uma vida perceptiva só é humana enquanto vida falante: “… não há experiência sem
fala, o puro vivido não está presente na vida falante do homem…”; 2) o sentido primeiro da fala está no ‘texto da experiência’
(PP, 388) que nos dá a percepção; 3) o essencial do gesto linguístico está prefigurado no gesto pré-linguístico.
70 “É o erro das filosofias semânticas, fechar a linguagem, como se só falasse de si” (VI, 167).
71 VI, 230.

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Merleau-Ponty em Salvador

da linguagem72. E é por isso que Merleau-Ponty pode dizer: “a linguagem = o aparelho


que produz para nós percepções do invisível – as percepções do visível são já percep-
ções do invisível [...]. O espírito, o conceito, o espiritual não são nada mais que essa
estrutura remanejada, reconstruída pela linguagem”73.
3) O ser de cultura confere uma presença mais nítida ao invisível do mundo, mas
só consegue fazê-lo sendo também, tal como o mundo, uma duplicação visível do in-
visível; a criação e a expressão nunca podem oferecer, para o invisível, senão uma ou-
tra maneira de vir a assediar o visível, e a obra nunca é senão uma outra maneira de
existir na carne do mundo, que é o alfa e o omega de toda expressão e toda existência.
O eidos, observa uma nota inédita, é “essa profundidade que o Ser verbal dispõe em si
mesmo. Esta região oca, entendida corretamente, não é geschaffen [criado] pelo exercí-
cio da fala: é, ao contrário, o exercício da fala que se torna possível com o surgimento
dessas zonas de vazio no coração do chamado Ser objetivo, como na água que começa
a ferver”.
4) Merleau-Ponty distingue duas polaridades no ser de cultura, que são ao mesmo
tempo duas maneiras de pensar a essência e a historicidade da obra de cultura.
Uma, de inspiração hegeliana, estabelece que, para a cultura, é essencial “desen-
volver-se, quer dizer, ao mesmo tempo, mudar e, como o diz Hegel, “retornar a si
mesmo”, portanto, apresentar-se sob a forma de historia”74. Essa concepção do ser
da cultura vale sobretudo para as obras de linguagem, e entre estas, para aquelas que,
como as ciências e a filosofia, estão para além das artes da linguagem, por conservarem
o passado, em seu espírito ou seu sentido. Merleau–Ponty assume, é verdade, uma
certa distância em relação a Hegel: a filosofia não é acumulação total ou posse defini-
tiva de si mesma, mas “presunção de uma acumulação total” e “provisória posse de si
mesma”75. O sentido da filosofia não é um sentido realizado, mas um sentido aberto
ou um sentido em gênese. O ato de expressão nunca nos faz sair do tempo. O pon-
to de vista a partir do qual se produz a totalização deve se compreendido a si mesmo
como temporal76. Mas Merleau-Ponty admite, e aí está a verdade da concepção hege-
liana da historicidade, que em certas obras de linguagem, o ato de expressão é
72 Numa nota inédita de junho de 1959, pode-se ler : “… qual é a carne, o corpo próprio do eidos, esta ganga na qual ele
aparece? Este meio ontológico, este campo, cuja presença ele sempre pressupõe? Certamente, é o carnal sensível […]. Mas é o
carnal tornado capaz de abrigar, de circunscrever, de figurar seus próprios invariantes, sua própria membrura […] e esses siste-
mas diacríticos, que formulam, para além daqueles [sistemas] do sensível, a operação deles, que seguem o impulso dado por
eles, que os ultrapassam pelo próprio élan que recebem deles, como volantes e como Urstiftung – são os sistemas diacríticos
da fala. Não pensá-los a partir do Eu penso, ao contrário, pensar o Eu penso a partir deles…” (MBN, VIII-2).
73 MBN, VIII-2, 338.
74 S, 87.
75 S, 102.
76 PM, 154.

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Pascal Dupond

uma retomada do passado em sua verdade e fornece uma segura captação do sentido, uma
aquisição para sempre.
A outra, mais próxima da Stiftung husserliana, estabelece que a cultura é menos uma to-
talização do passado que uma retomada, uma metamorfose, um recomeço perpétuo.
Ou o olho é a arqueologia do espírito, e o espírito a teleologia do olho que se sublima em
espírito; a cultura é uma liberação do sentido: o sentido está aprisionado na figura sensível
e não encontra a sua liberdade senão no conceito; as vozes do silêncio preparam as artes da
linguagem, que anunciam a racionalidade científica e filosófica.
Ou o olho é o fundo permanente e inesgotável do espírito; toda e qualquer obra de cul-
tura participa da “lógica alusiva” das vozes do silêncio, e o sensível não é a prisão do sentido,
mas, ao contrário, sua origem permanente.
O ser de cultura não é nada mais que a tensão permanente entre essas duas polaridades.

Como conclusão, lembrarei o artigo que Merleau-Ponty escreveu, com o título “Einstein
e a crise da razão”.
A leitura feita por Merleau-Ponty do diálogo – do falso diálogo – entre Einstein e Berg-
son ilustra de maneira exemplar a postura filosófica de nosso autor.
Quando Einstein desqualifica a experiência pré-científica – e a duração bergsoniana, que
para ele é uma modalidade desta experiência, Merleau-Ponty responde: o racional é fundado
na evidência pré-racional de que há um único mundo e a duração bergsoniana, que é uma
expressão desta unicidade do mundo, desta razão antes da razão, é uma visão “profunda”,
que não deve ser abandonada como falsa, ilusória, em função do tempo do físico, que seria
o único verdadeiro.
Quando Bergson recusa à ciência o poder de emitir um testemunho sobre o ser, Mer-
leau-Ponty responde: a obra racional faz parte de nosso campo de experiência ontológica,
mesmo se a ciência nos dá apenas ensinamentos negativos.
O Ser exige de nós criação para que dele tenhamos experiência: o logos do ser de cul-
tura ou “proferido” (prophorikos) é o caminho obrigatório para que tenhamos experiência
dos seres e do ser. Mas o logos proferido não é vivo senão por ser sempre contestado, sempre
retomado pelo Ser bruto e pelo logos interior (endiathetos), que é a sua armadura. E é por
isso que nossas obras de cultura jamais poderão se fechar nelas mesmas ou constituir uma
totalidade concluída e separada. Elas serão sempre testemunhas de um mundo inesgotável.

Tradução de Monclar Valverde


Revisão e notas de Rodrigo Vieira Marques

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Merleau-Ponty em Salvador

Referências bibliográficas (Textos de Merleau-Ponty)

EP – Éloge de la philosophie. Paris: Gallimard Idées NRF, 1960.


MBN – Manuscrits déposés à la Bibliothèque Nationale de France
Nat – La Nature. Paris: Seuil, 1995.
P – Le Primat de la perception et ses conséquences philosophiques. Paris: Cynara, 1989.
PM – La Prose du monde. Paris: Gallimard, Tel, 1969.
PP – Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, Tel, 1945.
RC – Résumés de cours – Collège de France, 1952-1960. Paris: Gallimard,Tel, 1968.
S – Signes. Paris: Gallimard, 1960.
SC – La structure du comportement. Paris: PUF, édition Quadrige, 1990.
VI – Le Visible et l’invisible. Paris: Gallimard, Tel, 1964.

101 |
| 102
Merleau-Ponty e as ciências sociais:
corpo, sentido e existência

Miriam C. M. Rabelo

Um dos aspectos característicos da filosofia de Merleau-Ponty é sua curiosidade


para as reflexões e achados de outros campos disciplinares, sua disposição para pensar
filosoficamente estes achados – redescrevê-los sob o ponto de vista da filosofia (da fe-
nomenologia) e para através deste pensamento abrir trilhas pelas quais a reflexão his-
tórica, sociológica, antropológica etc. pudessem se aventurar. Aqui pretendo iluminar
algumas dessas trilhas e refletir sobre o trabalho que, no âmbito das ciências sociais,
pode ser feito a partir delas.
Se nos pedirem para identificar a contribuição de Merleau-Ponty às ciências sociais,
imediatamente nos ocorrerão questões priorizadas pelo filósofo, que ao serem incorpo-
radas pelos cientistas sociais, não demoraram de render frutos importantes para suas
disciplinas. Entre estas está sem dúvida a temática do corpo ou da corporeidade – à
qual voltarei em breve. Mas além de oferecer um conjunto de tópicos, ou melhor, de
novas categorias para problematização e análise do “social”, Merleau-Ponty brinda-nos
também com um certo estilo de reflexão – uma maneira de colocar os problemas, de
seguir as pistas ou rastros deixados pelas ações dos outros que nos propomos a com-
preender, de descrever interpretativamente estas ações. Não menos importante que os
conceitos, categorias e conclusões analíticas – de fato, talvez mais importante, porque
efetivamente os engloba – este estilo é mais elusivo para os cientistas sociais, mais di-
fícil em converter em um programa de pesquisa, mais desafiador enquanto guia às
nossas interpretações.
Neste texto, destacarei três questões chaves que a filosofia de Merleau-Ponty coloca
às ciências sociais – embora significativas, certamente não são as únicas. A primeira
diz respeito a uma re-descrição da experiência humana ou da prática, para usar um
termo mais corrente nas ciências sociais, a partir da corporeidade; a segunda a uma re-
descrição da significação (e de noções como a de expressão e representação, bastante
correntes na análise social) a partir de um questionamento radical da cisão entre mate-
rialidade e sentido e a terceira uma proposta de interpretação que recusando explicita-
mente o pensamento causal, possa dar conta do movimento da existência – enquanto
dinâmica em que se articulam não só natureza e cultura, corpo e alma, mas também

103 |
Miriam C. M. Rabelo

a generalidade da história e dos ciclos orgânicos e a singularidade dos atos pessoais.


Enquanto a primeira questão – pelo qual inicio – foi em grande medida “assumida”
pelas ciências sociais contemporâneas, ou ao menos por algumas de suas correntes
mais expressivas, as duas seguintes ainda mantêm o caráter de questões marginais no
quadro destas ciências.

Merleau-Ponty, seus leitores e a teoria da ação

É através de sua reflexão radical sobre o corpo, que a fenomenologia de Merleau-


Ponty primeiro “impacta” as ciências sociais. Embora, enquanto objeto de estudo, o
corpo seja uma presença recorrente na sociologia (e na antropologia), a tematização
explícita da corporeidade enquanto problema sociológico deve-se em grande medida a
recuperação das idéias de Merleau-Ponty por estudiosos destas disciplinas. Entre estes se
destacam sem dúvida Michel Foucault e Pierre Bourdieu – que dialogam com Merleau-
Ponty sem maiores pretensões de fidelidade – mas também toda uma geração de cien-
tistas sociais contemporâneos, em sua maioria antropólogos, que introduzem idéias do
filósofo no âmbito de suas disciplinas. Graças às suas contribuições o termo embodiment
(corporeidade) estabeleceu-se na literatura para enfatizar a dimensão encarnada – corpo-
rificada – da cultura e das práticas sociais (do conhecimento, das emoções, da moral, etc).
A teoria da ação é um dos campos que sofre reorientação significativa sob o impul-
so da reflexão fenomenológica – não só de Merleau-Ponty como também de Husserl
e Heidegger1 – e talvez seja o campo em que a discussão sobre o corpo primeiro produz
deslocamentos importantes. Para dar uma medida destes deslocamentos, vale a pena
apresentar rapidamente alguns dos elementos chaves das abordagens a ação que duran-
te muito tempo dominaram as ciências sociais. No modelo parsoniano, certamente o
mais influente entre o que estou chamando de abordagens “tradicionais” à ação, toda
ação pode ser pensada em termos da articulação entre quatro elementos: um ator, um
fim ou estado futuro antecipado que este ator visa “provocar”, uma situação (composta
de meios e condições) em que ele atua, e a orientação normativa, que corresponde a va-
lores e normas interiorizados pelo ator. É essa última que preside tanto a definição dos
fins quanto a seleção dos meios e que, portanto, integra os demais elementos da ação,
conferindo-lhe uma dimensão sistêmica. Neste modelo analítico, vale notar, a situação

1 Enquanto as idéias de Husserl inspiram diretamente o programa sociológico de Schutz e, através deste, exercem
forte influência sobre a etnometodologia; é a sociologia de Pierre Bourdieu que articula mais diretamente elementos
da filosofia de Heidegger e Merleau-Ponty em uma teoria de prática formulada para superar os impasses do subjeti-
vismo e do intelectualismo.

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Merleau-Ponty em Salvador

é neutra com relação à ação que nela se desenrola: é simplesmente o palco onde são exe-
cutadas diretrizes normativas.
Queria examinar cada um destes termos e sua articulação, a luz do pensamento de
Merleau-Ponty. Na Fenomenologia da percepção nosso filósofo volta-se contra as teorias
que igualam o sujeito da experiência à consciência e relegam o corpo a condição de sim-
ples instrumento a seu serviço. Parsons é um claro exemplo desta orientação: no seu mo-
delo analítico o corpo não pertence ao pólo do ator; funciona antes como instrumento
ou meio do qual ele se serve. “A unidade de referência que estamos considerando como
ator não é o organismo, mas um ‘ego’ ou ‘self’. Para o ator seu corpo é tão parte da situ-
ação da ação quanto o ‘ambiente externo’” (Parsons, 1968: 47).
Central na crítica merleau-pontiana é a noção de corpo vivido (claramente ausen-
te do esquema de Parsons). Antes de constituir um objeto para reflexão - nosso corpo
que miramos no espelho, o corpo do outro cuja figura avaliamos ou o “organismo” ao
qual se voltam as ciências biomédicas, dotado de propriedades universais e passíveis de
análise - o corpo é o fundamento de nossa experiência no mundo, dimensão mesma do
nosso ser. No domínio da experiência constitui o ponto de vista pelo qual nos inserimos
no mundo. É partir da perspectiva que o corpo fornece que nos orientamos no espaço
(ou melhor, que somos no espaço) e apreendemos e manipulamos os objetos. Enquanto
centro de instrumentalidade, o corpo não tem o mesmo status que os demais objetos
que percebemos e empregamos na lida cotidiana; ele se confunde com nosso próprio ser.
Postular a imbricação necessária entre corpo e consciência não é para Merleau-Ponty
retirar o corpo de seu lugar consagrado na natureza, para jogá-lo no terreno da subjeti-
vidade. Trata-se antes de redefinir os dois termos a partir desta sua “imbricação”. Per-
passado pelo subjetivo (“todo ele psíquico”), o corpo não é mais matéria inerte ante o
espetáculo da cultura, é “corpo vivido”. Ancorada no corpo, por sua vez, a subjetivi-
dade já não pode mais ser tomada como interioridade, locus de onde emanam e onde
são armazenadas representações acerca do mundo. O corpo nos enraíza no mundo da
cultura e da história (mas também dos sensíveis), nos enreda nas ações de outros e faz
os outros inevitavelmente participarem de nossas ações. Imiscuída no corpo, a subje-
tividade já não pode mais ser entendida como espaço bem demarcado de existência
pessoal (caracterizado por atributos como racionalidade, autonomia e controle). No
corpo encontramos uma dimensão de existência anônima, pré-pessoal que diz respeito
tanto ao ritmo de nossa vida natural, quanto à generalidade dos papéis sociais, que nos
remete tanto para a esfera das funções e processos orgânicos, quanto a ação do hábi-
to arraigado, das aspirações não articuladas e disposições sedimentadas, dificilmente
acessíveis à reflexão. Essa existência anônima, escreve Merleau-Ponty, traça um halo de

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Miriam C. M. Rabelo

generalidade em torno de minha individualidade absoluta: “Há um sujeito abaixo de


mim, para quem existe um mundo antes que eu ali estivesse... Esse espírito ativo ou
natural é meu corpo” (ibid: 589).
A reflexão sobre o corpo produz assim um descentramento do sujeito – tema que
se tornou verdadeira palavra de ordem nas ciências sociais contemporâneas. Ao mesmo
tempo enfatiza a cumplicidade operante entre corpo e mundo, não apenas expondo
a presença do mundo e do “outro” no fundo da própria subjetividade, como também
revelando a sociabilidade enquanto condição existencial que funda qualquer processo
de subjetivação. Minha existência encarnada se tece sob o horizonte da existência do
outro; meus gestos retomam e respondem ao outro, nos seus gestos descubro minhas
intenções. Através dos nossos corpos, nossas ações entrecruzam-se, referem-se mutu-
amente e por vezes adquirem uma fluência ou um ritmo que nos configura enquanto
um nós, sujeito coletivo de práticas e discursos. Habitamos um mundo comum e é
dessa sociabilidade primária que posso surgir enquanto sujeito e que, por vezes, o ou-
tro, surge enquanto objeto ou me faz surgir nessa mesma condição.
O sujeito que, na experiência, orienta-se por um senso de familiaridade com os
espaços sociais que compõem seu mundo cotidiano, compreende este mundo com o
corpo ou justamente porque é corpo: “meu corpo tem seu mundo ou compreende seu
mundo sem precisar passar por representações, sem subordinar-se a uma função sim-
bólica ou objetivante” (ibid: 195). A noção de compreensão presente na Fenomenologia
da percepção revela nítida convergência com o conceito heideggeriano. Para Heidegger
a compreensão aponta para uma prioridade de nosso engajamento prático no mundo
sobre a atitude descolada de conhecimento. Na perspectiva de Heidegger, a prática é
um retomar contínuo de contextos de dados de sentido que compreendemos sem pre-
cisar articular. De maneira semelhante, na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty
fala de uma compreensão prática que não é da ordem do eu penso, mas do eu posso,
e que remete ao corpo - não o corpo “objetivo”, massa de dados sensíveis ou soma de
partes interrelacionadas, mas o corpo como “sistema de ações possíveis, um corpo vir-
tual cujo lugar ‘fenomenal’ é definido por suas tarefas e por sua situação” (ibid: 336).
O hábito é um claro exemplo dessa compreensão encarnada: “Dizíamos – escreve ele –
que na aquisição do hábito é o corpo que compreende. Essa fórmula parecerá absurda
se compreender for subsumir um dado sensível a uma idéia e se o corpo for um objeto.
Mas justamente o fenômeno do hábito nos convida a remanejar nossa noção de com-
preender e nossa noção do corpo” (ibid: 200). Na aquisição de hábitos incorporamos,
enquanto prolongamento do nosso corpo, um certo tipo de situação, de tal modo que,
ao agir, experimentamos um acordo entre o que visamos e o que nos é dado, entre a

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Merleau-Ponty em Salvador

ação e sua efetivação. O hábito não solda respostas individuais a estímulos individuais;
modo de compreensão prática, é antes o poder de responder por um tipo de solução
a um certo tipo de situação.
Embutido nessa reflexão está uma crítica importante a duas noções dominantes
nas ciências sociais, ambas com repercussões notáveis na definição de sujeito e subje-
tividade: a noção de sujeito racional presente na teoria da ação, e a idéia de que a re-
lação do indivíduo com o mundo é mediada por representações acerca do mundo (a
subjetividade correspondendo, assim, a um espaço interior onde são produzidas e/ou
armazenadas essas representações). Conforme observa Taylor: “a noção de que nossa
compreensão do mundo se acha fundada em nossas relações com ele equivale à tese
de que essa compreensão não se baseia em última análise em quaisquer representações
no sentido de descrições identificáveis independentemente daquilo que descrevem”
(Taylor, 2000: 24). Essa crítica tem marcado a teoria social contemporânea e está
presente nas abordagens à ação de diversos autores influenciados pela fenomenologia.
Pierre Bourdieu é certamente um deles, talvez o mais conhecido - embora ele mes-
mo evite alardear seu débito para com a fenomenologia. Inspirado em Merleau-Ponty,
Bourdieu desloca o sujeito racional da teoria parsoniana para o habitus – um corpo
socializado, resultado de uma história coletiva que se inscreve nas posturas, nos movi-
mentos, nos gostos, que educa os sentidos e marca distinções que são tão mais eficazes
quanto menos passíveis de se tornarem objeto de reflexão. As experiências adquiridas
no jogo social, bem como os esforços acumulados para intervir no jogo são integrados,
via uma síntese espontânea, em um esquema corporal: mais que agregado de compor-
tamentos sociais, o habitus é uma potência virtual para agir e responder às situações
que solicitam formas características de mobilização do corpo, segundo um esquema
socialmente constituído. Enquanto senso corporificado do jogo social, o habitus opera
sem a necessidade de atos de escolha e reflexão de um agente racional. A introdução do
conceito de habitus na teoria da prática faz parte de um projeto mais amplo de análise
social. Trata-se para Bourdieu de:

... construir uma teoria materialista capaz de recuperar no idealismo... o lado ativo do
conhecimento prático... Eis precisamente a função da noção de habitus que restitui ao
agente um poder gerador e unificador, construtor e classificador, lembrando ainda que
essa capacidade de construir a realidade social, ela mesma socialmente construída, não é
a de um sujeito transcendental, mas de um corpo socializado... (Bourdieu, 2001: 167).

Recuperando a tradição fenomenológica, neste caso via sua aproximação ao prag-

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Miriam C. M. Rabelo

matismo clássico, o sociólogo alemão Hans Joas (1996) também recorre a uma noção
de compreensão prática, habitual, para colocar em questão o modelo de sujeito racio-
nal. A corporeidade, argumenta o autor, chama atenção para disposições e aspirações
operantes em um nível pré-reflexivo, e que dificilmente e sempre apenas parcialmente
ganham o status de idéias articuladas, tornando-se objeto possível de reflexão. Capa-
cidade definidora do sujeito racional, a reflexão é sempre relativa a essa compreensão
corporal, pré-reflexiva; depende dela e se ergue a partir dela.
Nem o conhecimento claro dos fins nem a obediência a regras podem servir para
explicar o curso da ação. Nas teorias da ação inspiradas na fenomenologia, a crítica a
“representação” como mediadora da nossa relação com as situações, os outros e as coisas
aparece como crítica a idéia de que o sujeito age a partir de regras ou normas interiori-
zadas. Conforme argumentam seus adeptos, a ação não é causada por regras – funda-se
antes em um senso não articulado de contexto (para os etnometodólogos um contexto
presumido), que orienta o ator e do qual depende a sua capacidade mesma de recorrer
a regras2.
A reflexão sobre o corpo também embasa uma revisão importante do conceito de si-
tuação, ou melhor, do lugar ocupado por esta categoria na teoria da ação. No esquema
parsoniano a situação é neutra com relação à ação que nela se desenrola; é simplesmen-
te o palco onde são executadas diretrizes normativas. Conforme argumenta Garkinkel,
ao colocar peso explicativo na orientação normativa, Parsons não elabora uma teoria da
ação, mas uma teoria do que antecede a ação. No seu modelo analítico o valor da situa-
ção lhe é aderido de fora – são os fins previamente colocados que fazem com que alguns
objetos adquiram status de meios, e outros apareçam como condições que impõem li-
mite à capacidade realizadora do sujeito. Não é a toa que o espaço seja considerado pelo
próprio Parsons uma categoria irrelevante no esquema analítico da ação (diferente do
tempo que é categoria básica).
Na Fenomenologia da percepção a temática do espaço ocupa papel de destaque. Não
me parece exagerado dizer que a fenomenologia do corpo é também uma fenomenologia
do espaço no sentido em que corpo e espaço formam um sistema integrado. Assim como
Heidegger nos conduz à espacialidade originária do dasein ao descrever seu engajamento
prático com as coisas-instrumentos em contextos de ocupação, Merleau-Ponty desvela
o espaço como arena da práxis. Diferente de Heidegger, entretanto, para nosso autor,
pensar o espaço nestes termos, como terreno da práxis, implica já no reconhecimento do
papel do corpo na constituição da espacialidade. Os lugares circunscrevem contextos ou

2 Em uma versão bastante particular do círculo hermenêutico os etnometodólogos propõem que ao invés de serem causas
da ação, as regras funcionam como recursos interpretativos através do qual os atores articulam, relatam e justificam suas ações.

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Merleau-Ponty em Salvador

horizontes que nos conectam significativamente a outros, que permitem que pessoas e
objetos se destaquem e possam vir ao encontro na dinâmica da ocupação. Mas o corpo é
também horizonte, o terceiro termo sempre subentendido desta estrutura figura-fundo,
“toda figura se perfila sobre o duplo horizonte do espaço exterior e do espaço corporal”
(Merleau-Ponty, 1994: 147): afinal é ele que oferece a perspectiva a partir da qual outros
corpos e objetos estão posicionados. Corpo e lugar estão em estreita dependência e rela-
ção. Como unidade dos sentidos o corpo está sempre mobilizado pelos múltiplos apelos
do lugar. Os lugares, por sua vez, não só dependem da intencionalidade corporal como
também freqüentemente se mostram em termos de diferenciações que estão fundadas na
própria estrutura diferenciada do corpo: acima/embaixo; direita/esquerda; frente/costas
(Casey, 1996).
A abordagem fenomenológica ao espaço serve sem dúvida de contraponto interessan-
te ao modelo parsoniano e os críticos mais contundentes deste modelo têm, de maneiras
diferenciadas (muitas vezes através de aproximações entre a fenomenologia e outras ver-
tentes filosóficas, como o pragmatismo), se apoiado nela para resgatar o papel importan-
te da situação na configuração da ação3. A idéia de uma sintonia ou sincronização entre
corpo e lugar no processo de ação tem rendido bons frutos na teoria social. Nesta direção
Joas (1996) fala de fins ou quase fins operantes na ação tal modo amarrados a certos tipos
de situação que usualmente não se destacam delas enquanto planos ou projetos “cons-
cientes”, que são despertados pelas situações, a partir de nosso envolvimento com elas.
Bourdieu (1977) por sua vez defende que estabilidade da vida social repousa sobre
uma sintonia fina entre habitus e mundo, corpo e lugar. A configuração dos lugares que
habitamos demanda certos modos de ajustamento corporal, reforçando e naturalizando
padrões de ação e interação (com base em diferenças de classe, gênero, geração, etc); as-
sim como as disposições e técnicas corporais socialmente constituídas revelam os lugares
como contextos adaptados a essas mesmas habilidades corporais e às classificações ou
idéias estereotipadas que elas corporificam.
Inspirado por esta idéia, o antropólogo Michael Jackson procura identificar, em sua
etnografia dos Kuranko da Serra Leoa, os contextos de sociabilidade Kuranko que sus-
citam uma quebra no habitus, abrindo caminho para uma exploração criativa de novas
imagens e idéias. Conforme procurar mostrar os rituais de iniciação constituem instân-
cias desse tipo, em que formas alteradas de uso do corpo funcionam como gatilhos para
a produção de novas imagens e confronto com distintas possibilidades de organiza-
3 É preciso fazer a ressalva de que muitos dos desdobramentos mais radicais da reflexão de Merleau-Ponty sobre o espaço,
suas ramificações na discussão acerca do sentido e da existência, têm sido relativamente ignorados pelas ciências sociais mains-
tream. Trataremos de alguns destes desdobramentos na seção seguinte.

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Miriam C. M. Rabelo

ção do mundo social. Vale notar que as mudanças sinalizadas por Jackson (conforme
mostra a citação abaixo) referem-se a processos de orientação espacial (movimento x
repouso; agachado x ereto; dentro de casa x fora de casa):

Meu argumento é que esta disrupção do habitus, em que as mulheres gozam de mobili-
dade irrestrita na vila e em que os homens devem prover para si (cozinhando mesmo suas
próprias refeições) ou ficar em casa como mulheres agachadas (quando se faz o cortejo
do objeto de culto das mulheres pela vila), coloca as pessoas abertas para possibilidades
de comportamento que elas incorporam, mas não estão ordinariamente inclinadas a ex-
pressar. Além do mais acredito que é com base na força dessas possibilidades extraordi-
nárias que as pessoas controlam e recriam seu mundo, seu habitus (Jackson, 1989: 129).

Para resumir este primeiro tópico podemos dizer que a retomada crítica do corpo na teo-
ria social a partir de uma reflexão oriunda da fenomenologia está ligada a um descentramen-
to do sujeito, definido como interioridade auto-contida que se relaciona com o mundo por
meio de representações e que desenvolve e exercita, no meio social, capacidade de controle
sobre os objetos, sobre o próprio corpo e sobre os outros. Este descentramento, também já
vimos, tem como contrapartida uma ênfase na sociabilidade: o resgate do corpo, argumenta
Taylor, é também resgate do outro (Taylor, 2000: 187).

Novas questões

A reflexão merleau-pontiana sobre a corporeidade não tardou a ser absorvida nas ciên-
cias sociais. A Fenomenologia da percepção inspirou uma revisão significativa das abor-
dagens dominantes à ação social e embasou uma crítica ao dualismo corpo e mente
fortemente arraigado no pensamento sociológico tradicional. Sua leitura pelos cientis-
tas sociais tem sido, no entanto, seletiva. Neste momento gostaria de me voltar para
duas questões bastante caras a Merleau-Ponty – presentes não só na Fenomenologia da
Percepção, mas em algumas de suas obras mais tardias – que, embora potencialmente
relevantes às ciências sociais, têm recebido pouca atenção dos estudiosos dessas disci-
plinas. A primeira é aparentemente uma questão mais restrita, embora tenha ramifica-
ções bastante importantes no pensamento de Merleau-Ponty: diz respeito às relações
entre materialidade e idealidade no advento do sentido. A segunda toca diretamente a
proposta merleau-pontiana de compreender o humano a partir da ótica da existência.
É precisamente este viés que conduz Merleau-Ponty a uma recusa explícita do pensa-

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Merleau-Ponty em Salvador

mento causal. Ao contrário da seção anterior, na exposição destes temas, me deterei


mais nas próprias idéias de Merleau-Ponty.

Recuperando os nexos entre materialidade e idealidade na teoria da


significação

A questão da articulação entre materialidade e idealidade na experiência do sentido


é retomada com freqüência na obra de Merleau-Ponty. As ciências sociais têm man-
tido estes dois campos tradicionalmente separados, até porque evocam muito direta-
mente a dualidade natureza e cultura que lhes é tão cara. A maneira como sociólogos,
antropólogos e mesmo geógrafos abordam o espaço é bem indicativa desta orientação:
ao espaço objetivo, “real”, que serve de pano de fundo às ações humanas, justapõem
o espaço simbólico, culturalmente construído pela adição de significados a esta espa-
cialidade natural.
Assim um domínio simbólico é postulado como existindo “acima” ou sobreposto
ao domínio das coisas materiais ou da natureza. Enquanto acesso aos significados re-
quer operações de cognição, acesso ao domínio da matéria/natureza envolve experiên-
cia sensível ou simplesmente sensação. Muitas das teorias do simbolismo estão cons-
truídas segundo esta lógica. Em linhas gerais definem os símbolos como objetos (mas
também gestos e ações) cujo significado remete para além de sua existência material,
sensível. O objeto pode ter se tornado símbolo por alguma afinidade percebida entre
sua forma sensível e o conteúdo ideal de que é feito portador, mas suas propriedades
sensíveis nada têm a ver com a produção ou transformação do significado. Em outras
palavras, o objeto simbólico vale enquanto suporte de significado - sua materialidade
é ignorada em favor do significado social que ele porta: funciona como expressão ou
representação material seja de concepções abstratas da cultura (visão de mundo, cos-
mologia), seja de relações sociais vigentes no espaço social (como as relações de poder
entre diferentes agentes ou grupos). Figura apenas como intermediário4 através do
qual o significado transita, mas não faz nenhuma diferença em termos do significado
mesmo – nenhum deslocamento ou transformação advém do fato de que o significado
circula ou é encarnado nele.
Esta maneira de conceber a relação entre coisa material e sentido delineia um es-
tilo recorrente e bem sucedido de análise cultural que consiste em por em relação ou
4 Estou aqui me apoiando em uma distinção proposta por Latour (2005) entre mediadores e intermediários: enquanto estes
últimos são meros veículos através dos quais certos significados ou conteúdos são transportados (mas que em nada alteram
esses conteúdos), os mediadores são entidades que participam elas mesmas da construção dos conteúdos que transportam,
produzindo deslocamentos, traduções e transformações ao longo do percurso.

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Miriam C. M. Rabelo

descobrir a relação oculta entre duas ordens distintas: a ordem da materialidade ou


da natureza, e a ordem dos significados ou da cultura. Trata-se para os cientistas de
desvendar os significados sociais profundos, ocultos por trás da aparente naturalidade
de corpos e coisas. Assim através de suas obras descobrimos que arranjos arquitetô-
nicos expressam/simbolizam as hierarquias sociais vigentes em uma sociedade ou que
o traçado da cidade representa no espaço a estrutura social. Também aprendemos que
emoções que os sujeitos vivem através de uma profusão de sensações corporais podem
funcionar como metáforas poderosas para situações sofridas de desigualdade e domi-
nação política; e que a intrincada configuração de coisas – comida, objetos, dança,
música – com que as pessoas se envolvem em um contexto ritual representa a cosmo-
logia da sua religião ou ainda, em outro nível, as relações de poder a que estão sujeitas
naquele espaço. Neste tipo de análise é como se as coisas e os corpos se erguessem de
sua materialidade ao funcionarem como símbolos – guardiões de concepções abstratas
ou intermediários de forças sociais. Na medida em que os sujeitos comuns – e não ape-
nas os cientistas – têm acesso a estes significados (em várias abordagens os significados
agem a um nível inconsciente), este acesso envolve cognição, embora, como observem
vários estudiosos dos rituais, a emoção seja auxiliar freqüente da cognição (as reações
emotivas geradas pelo contato com os símbolos em contextos rituais contribuem para
o conhecimento e reforço dos significados que eles portam).

Em Merleau-Ponty a discussão das relações entre o sensível e a idéia delineia-se pri-


meiro como uma reflexão acerca da percepção. Contra a disjunção entre percepção e
cognição, Merleau-Ponty argumenta que a percepção é já experiência de sentido e que
cognição (tanto quanto a emoção) repousa em uma operação mais originária de signi-
ficação, fundada em uma cumplicidade prévia entre o sujeito da percepção e o objeto
percebido, ou entre o sentiente e o sensível. Antes que as coisas sejam apreendidas pela
reflexão como entidades objetivas, existe uma comunicação com elas, que se nutre do
nosso co-pertencimento a um ambiente ou espaço existencial. “Na realidade, todas as
coisas são concreções de um ambiente, e toda percepção explícita de uma coisa vive de
uma comunicação prévia com uma certa atmosfera” (Merleau-Ponty, 1994: 430). Ao
colocar o acento na espacialidade existencial para descrever a experiência perceptiva,
Merleau-Ponty logra escapar da alternativa entre reduzir a percepção a um somatório
de sensações distintas soldadas pelo hábito ou concebê-la como a imposição de uma
forma sobre conteúdos dispersos. A percepção é comunhão com as coisas – como co-
munhão pressupõe nossa inserção comum no lugar e gradativamente revela o lugar
como arena de nosso encontro.

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Merleau-Ponty em Salvador

A coisa, escreve Merleau-Ponty, é o correlativo do corpo, é “uma estrutura acessível


à inspeção do corpo e se queremos descrever o real tal como ele nos aparece na expe-
riência perceptiva, nós o encontramos carregado de predicados antropológicos” (ibid:
429). Por outro lado, é na unidade da coisa, tal como dada na experiência perceptiva,
que aprendo a unidade do meu corpo. A percepção é tanto uma exploração das coisas
via o movimento, quanto uma resposta às suas solicitações, a maneira pela qual elas
apelam aos sentidos, pedem certos modos de engajamento corporal (como atividade
ou relaxamento), dirigem o olhar, a qualidade do toque, o ritmo da experiência. Há
assim uma relação fundamental entre percepção e movimento, passividade e atividade:
percebo uma qualidade quando meu corpo adota a atitude ou comportamento que
ela propõe (percebo o azul quando meu corpo adota a significação motora do azul).
A percepção é de fato o movimento pelo qual todo meu corpo assume e se sincroniza
com uma situação: “O sujeito da sensação não é nem um pensador que nota uma qua-
lidade, nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela; é uma potência
que co-nasce com um certo meio de existência ou se sincroniza com ele” (ibid: 285).
Esta reflexão traz uma redefinição importante do conceito de sentido. A percep-
ção é uma experiência de sentido, mas o sentido da coisa percebida não é uma idéia
que unifica seus aspectos sensíveis, fazendo-a aparecer como um objeto a um sujeito:
é um estilo que nos solicita e mobiliza. Antes de apreendermos as coisas como obje-
tos – entidades discretas e isoladas – discernimos nelas um estilo que se desenha atra-
vés de suas sucessivas aparições, uma tonalidade ou ambiência. “Nós não percebemos
quase nenhum objeto, assim como não vemos os olhos de um rosto familiar, mas seu
olhar e sua expressão. Existe ali um sentido latente, difuso através da paisagem ou da
cidade, que reconhecemos em uma evidência específica sem precisar defini-lo” (ibid:
378). Compreender é situar-se neste sentido latente, retomar, via o comportamento,
o estilo que as coisas nos propõem. Nas palavras do autor: “compreendemos a coisa
como compreendemos um comportamento novo, quer dizer não por uma operação
intelectual de subsunção, mas retomando por nossa conta o modo de existência que os
signos observáveis esboçam diante de nós” (ibid: 428). Vale a pena nos determos um
pouco na noção de estilo – por sinal bastante recorrente na Fenomenologia da percep-
ção. Como estilo, a significação não existe independente do sensível, não é uma idéia
abstrata que este não faz mais que representar. Um estilo é ao mesmo tempo fortemen-
te material – relações entre corpos e coisas – e fortemente ideal – a orientação geral que
emerge de tais relações e que se cristaliza em torno delas.
Na Fenomenologia da percepção há talvez dois momentos importantes em que Mer-
leau-Ponty procura se desfazer da dualidade entre materialidade e sentido subjacente

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Miriam C. M. Rabelo

às abordagens intelectualistas da significação. No primeiro a discussão gira em torno


da expressividade do corpo. Postular que o corpo porta uma significação é o mesmo
que tomá-lo enquanto signo em uma operação de representação? O que queremos
dizer quando afirmamos que o corpo exprime conteúdos existenciais, ou normas e
valores da sociedade, ou ainda as hierarquias que nela estruturam as relações entre as
pessoas? Para Merleau-Ponty a relação puramente exterior entre signo e significado
não serve para descrever a expressividade do corpo. “Se a cada momento o corpo ex-
prime as modalidades da existência... não é como os galões significam a graduação ou
como um número designa uma casa: aqui o signo não indica a significação, ele é ha-
bitado por ela” (ibid: 222). “Para aquém dos meios de expressão convencionais é pre-
ciso reconhecer uma operação primordial de significação em que o expresso não existe
separado da expressão...” (ibid: 229). Esta também é a relação entre a entre a palavra
– enquanto coisa sonora – e o seu sentido: “o sentido [da frase] não está na frase como
a manteiga na fatia de pão, qual segunda camada de ‘realidade psíquica’ estendida por
cima do som: o sentido é a totalidade do que se diz, a integral de todas as variações da
cadeia verbal, é dado com as palavras aos que possuem ouvidos para ouvir”. (Merleau-
Ponty, 1992: 149)
Assim como a expressividade do corpo não equivale a sua operação como signo que
representa, evoca ou remete a um significado que existe independente dele, tampouco
o sentido da coisa percebida é uma idéia que sua materialidade serve para carregar ou
guardar. Enquanto estilo, o sentido habita a “coisa como a alma habita o corpo; não
está atrás das aparências” (Merleau-Ponty, 1994: 428). Esta concepção de sentido é
posteriormente desenvolvida em uma reflexão preciosa sobre a idealidade do sensível:

A literatura, a música, as paixões, mas também a experiência do mundo visível são, tan-
to quanto a ciência de Lavoisier e de Ampère – a exploração de um invisível, consistin-
do ambas no desvendamento de um universo de idéias. Simplesmente aquele invisível,
aquelas idéias não se deixam separar, como as dos cientistas, das aparências sensíveis (…)
essas verdades não estão apenas escondidas como uma realidade física que não soubemos
descobrir, invisível de fato, que poderemos um dia chegar a ver face a face, e que outros,
melhor colocados, poderiam ver já agora, desde que se retire o anteparo que o dissimu-
la. Aqui, pelo contrário, não há visão sem anteparo: as idéias de que falamos não seriam
por nós mais conhecidas se não possuíssemos corpo e sensibilidade, mas então é que se-
riam inacessíveis … só nos poderiam ser dadas como idéias através de uma experiência
carnal. Não se trata apenas do fato de que aí encontremos ocasião para pensá-las; é que
sua autoridade, seu poder fascinante e indestrutível advém precisamente de estarem elas
em transparência, através do sensível ou em seu âmago (Merleau-Ponty, 1992: 144-5).

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Merleau-Ponty em Salvador

Para Merleau-Ponty a relação entre o sensível e o cultural, o material e o ideal não


equivale a uma relação entre diferentes camadas de experiência. A metáfora das cama-
das só pode conceber o sentido como uma adição à matéria, e mostra-se incapaz de
dar conta de um sentido carnal, de idéias que não podem ser desconectadas do mun-
do sensível sob pena de que seu sentido seja perdido ou simplesmente substituído
por uma versão derivada. Ao invés de estarem sobre o sensível, estas idéias estão nas
articulações dos sons, das cores, cheiros e movimentos. O material não é seu suporte
– ocasião para pensá-las – nem o véu que deve ser removido para que possam ser apre-
endidas – é prenhe de sentido, sustentado por uma idealidade que adere a ele, e que
apenas por um tipo de derivação pode ser descolada dele.
A noção de uma idealidade sensível proposta por Merleau-Ponty repousa em uma
abordagem à compreensão como prática corporal: sincronizar-se com uma situação,
discernir um estilo através de uma atitude que já é uma resposta a ele, acolher e re-
tomar o sentido proposto pelos contextos e coisas. De acordo com Merleau-Ponty as
idéias sensíveis compõem um horizonte a partir do qual as idéias abstratas são forma-
das e do qual nunca se destacam completamente. Tecidas nos interstícios do sensível,
nas articulações de um meio intersensorial, elas apontam para um sentido difuso, que
brota de um certo modo de ser em situação. A idealidade da linguagem tampouco está
desconectada deste sentido carnal. O mundo em que estamos sensorialmente envolvi-
dos é sempre já perpassado pela linguagem – de fato como seres culturais, toda nossa
paisagem é inundada por palavras (Merleau-Ponty, 1992: 149) – e por mais abstrato
que seja um discurso este nunca é inteiramente livre da aderência ao sensível.
Voltemos agora à análise social. A partir dessas colocações podemos dizer que nem
a sociologia nem a antropologia avançam muito no entendimento da vida social ao
mostrar que significados sociais, políticos, econômicos (relações de poder e desigual-
dades) são expressos através de imagens corporais (ou de arranjos espaciais), como se
seu conteúdo original, ao ser transferido para o campo das características e funções do
corpo físico (ou do espaço “natural”), apenas ganhasse aí uma tonalidade mais viva ou
mesmo um maior poder de persuasão. Enquanto integrantes da experiência, o políti-
co, social e cultural não são sentidos abstratos, mas dimensões vividas e, portanto, já
articuladas no corpo (e no espaço), assim como o corpo não é simplesmente sede de
sensações brutas e o espaço não é o pano de fundo neutro da vida cultural. Se levarmos
a sério a noção de sentidos carnais, proposta por Merleau-Ponty, devemos, então, pen-
sar na dinâmica de poder que vigora em um certo campo social não como sentidos que
transitam através dos corpos dos participantes – de gestos, posturas, formas de vestir
– ou que são representados por um determinado arranjo de coisas, mas como sentido

115 |
Miriam C. M. Rabelo

aderido aos corpos e coisas, formando com eles um contexto total de experiência. Esta-
mos aqui próximos da noção foucaultiana de poder como difuso e concreto, presente
nas micro-articulações entre pessoas e coisas.
Mais interessante – e proveitoso do ponto de vista teórico – do que mostrar o que
as coisas representam é procurar entender o que elas “fazem fazer”5: como apelam à
nossa atenção e convidam à ação, como estão ligadas a outras coisas e pessoas em cir-
cuitos de interação que ajudam, em virtude de sua própria materialidade, a enquadrar e
manter. Recorrendo ao meu último exemplo no início desta seção – a análise dos rituais
– é preciso reconhecer que do ponto de vista da experiência encarnada de seus partici-
pantes, os objetos que compõem e se sucedem em uma cena ritual não se apresentam
primeiro e fundamentalmente como símbolos, que condensam e evocam pensamentos
inconscientes ou normas e valores abstratos (duplicando assim idéias que existem inde-
pendentes delas). Emergem primeiro como estilo, como um apelo à percepção e ação.
Como tal seu sentido não é separável de sua materialidade, de sua inerência no lugar e de
sua existência prática para aqueles que são tocados ou movidos por eles. Para descrever o
tipo de compreensão que se produz nos rituais, ou no que ordinariamente classificamos
como eventos “carregados de simbolismo” é preciso antes de mais nada considerar como
o evento abre um campo de sentido ao propor certos modos de engajamento sensível, ou
ao colocar em comunicação pessoas e coisas.
Procurando resumir a orientação que passa a caracterizar a antropologia a partir de
seu encontro com a fenomenologia, Jackson fala de uma atenção ao corpo enquanto ló-
cus de agência social e aos contextos vividos de sociabilidade – “nossa ênfase deslocou-se,
portanto, daquilo que as crenças significam intrinsecamente para o que elas são feitas sig-
nificar, e o que elas realizam para aqueles que as invocam e as usam” (Jackson, 1996: 6).
Para o antropólogo inglês Tim Ingold a reorientação requerida é bem mais radical.
Trata-se de mudança mesma do ponto de partida da disciplina, um questionamento de
algumas das premissas que para muitos definem o lugar da antropologia em relação às
outras ciências. Embora não se considere representante de uma vertente fenomenológica
na antropologia, Ingold é influenciado por Merleau-Ponty e em certo sentido é o an-
tropólogo que de forma mais consistente tem questionado a cisão entre materialidade e
sentido, natureza e cultura presente em muitas abordagens das ciências sociais.
Conforme Ingold (2000) a noção de cultura dominante na antropologia é perfeita-
mente compatível com a concepção de natureza das ciências naturais e não faz mais que
contribuir para assentar essa divisão de campos em uma distinção entre esferas ontológi-

5 Esta é expressão utilizada por Bruno Latour em sua proposta de uma sociologia das associações. Há importantes conver-
gências entre as abordagens de Latour e Merleau-Ponty que não poderei abordar no espaço deste texto.

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Merleau-Ponty em Salvador

cas: de um lado a unidade da natureza, do outro a diversidade das culturas ou dos mun-
dos construídos culturalmente – um mesmo mundo natural processado segundo signi-
ficados ou esquemas culturais distintos. Embora antropólogos tenham mostrado que a
divisão natureza e cultura é estranha a alguns povos nativos (constituindo, de fato, no
grande baluarte da cultura ocidental moderna), o esquema analítico que cinde natureza
e cultura permanece inalterado: ainda se está falando de diferenças entre culturas (ou da
maneira como cada cultura concebe a relação cultura/natureza); a natureza “verdadeira-
mente real” permanece como suposto não questionado.
Esta concepção de cultura como mundo de significados discursivos opera um duplo
desengajamento: o primeiro corta o vínculo do mundo humano com o mundo natural,
supõe que os humanos deram um passo para fora do mundo habitado por todas as ou-
tras criaturas viventes; o segundo estabelece uma distância (impossível de superar) entre
o antropólogo e os povos que pesquisa, distância necessária para que aquele possa ver
uma cosmologia naquilo que para as pessoas é antes de mais seu mundo da vida.
Desfazer este duplo desengajamento, argumenta Ingold, requer “substituir a impro-
dutiva dicotomia entre natureza e cultura pela sinergia dinâmica entre organismo e am-
biente6” (ibid: 16). Ao assumir como ponto de partida a unidade organismo-ambiente a
atenção do antropólogo se desloca dos padrões culturais pelos quais as pessoas constro-
em seus mundos, para os modos de envolvimento e engajamento pelos quais habitam
um mundo junto com seres diversos; do estudo das crenças que medeiam suas relações
com espaço e com os outros, para o estudo das sensibilidades e habilidades pelas quais
percebem e participam deste mundo comum, se fazendo junto com ele. É apenas a par-
tir deste ponto de vista que podemos de fato superar a idéia de que os significados são
atribuídos às coisas e ao mundo, sobrepondo-se a eles como uma segunda pele de cren-
ças que encobre o real. Ao descobrir que seres animados diversos habitam o mundo da
vida dos povos que estuda e mesmo o seu próprio mundo da vida, o antropólogo deve
lembrar que:

O “ser animado” (animacy)... não é uma propriedade que as pessoas imaginativamente


projetam sobre as coisas que elas percebem em sua volta. Ao invés… é um potencial di-
nâmico, transformativo do campo total de relações em que seres de todos os tipos, mais
ou menos como pessoas ou como coisas, contínua e reciprocamente, se fazem existir. O
caráter animado do mundo da vida, em suma, não é o resultado da infusão de espírito na
substância, de agência na materialidade, mas é ontologicamente anterior a sua diferencia-
ção (Ingold, 2006:10).

6 Da mesma forma que rejeita a visão de cultura como representação, Ingold também rejeita a visão do ambiente como re-
alidade física imutável, existindo independente daqueles que o habitam.

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Miriam C. M. Rabelo

O movimento da existência

Na Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty propõe que entendamos a perten-


ça e envolvimento do sujeito no mundo (para Ingold a sinergia organismo-ambiente)
como existência. Ao procurar descrever a existência, o seu movimento, expõe também
um estilo de interpretação e articula uma crítica poderosa ao pensamento causal.
Para Merleau-Ponty a existência abarca movimento que põe em relação ordens di-
versas. Antes que uma unidade já dada, corpo e alma, natureza e cultura, orgânico e
psíquico se articulam neste movimento. Mas não se trata nunca de uma fusão perfeita
ou superação de uma ordem pela outra. “O homem concretamente considerado não é
um psiquismo unido a um organismo, mas esse vaivém da existência que ora se deixa ser
corporal, ora se dirige as atos pessoais” (Merleau-Ponty, 1994: 130).
Se o orgânico e o psíquico podem se conjugar na existência, é porque não são estra-
nhos um ou outro, é porque entre eles há troca e contaminação. Merleau-Ponty vê aí
não a relação entre duas ordens de fatos que se influenciam de fora, mas a conexão vital
de diferentes dimensões de uma existência total ou totalizadora:

A vida da consciência – vida cognoscente, vida do desejo ou vida perceptiva – é sustentada


por um arco intencional que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso
meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou
antes, que faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos. É esse arco intencional
que faz a unidade dos sentidos, a unidade entre os sentidos e a inteligência, a unidade entre
a sensibilidade e a motricidade” (ibid: 190).

Enquanto totalidade ou movimento totalizador, a existência envolve transcendência


contínua. Mas a transcendência da vida orgânica pela vida pessoal – sublimação da exis-
tência biológica na existência pessoal – é sempre parcial, nunca plenamente realizada.
Na temporalidade está a chave para entendê-la: “a fusão entre alma e corpo no ato, a
sublimação da existência biológica em existência pessoal, do mundo natural em mundo
cultural é tornada ao mesmo tempo possível e precária pela estrutura temporal de nossa
experiência” (ibid: 125). A relação se explica aqui pela estrutura de retenções e proten-
sões que conecta cada presente com seu passado e porvir, fazendo que o tempo não a seja
a experiência de uma mera sucessão de instantes pontuais. Enquanto movimento de to-
talização da vida, cada presente integra a si um passado – de modo que mesmo o passado
remoto das estereotipias orgânicas pode ser reintegrado a existência pessoal – mas esse
movimento nunca se fecha e essa integração é sempre também conservação. Em outras
palavras, se o presente pode se comunicar com o passado é porque não pode eliminá-lo

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Merleau-Ponty em Salvador

ou superá-lo completamente, senão reaprendê-lo e assumi-lo. O movimento não é sim-


ples superação, mas de conservação e retomada.
Este é o mesmo movimento (temporal) que faz com que a história e a cultura não
sejam alheias a generalidade e impessoalidade absoluta dos processos orgânicos e que na
história e na vida social põe em relação a singularidade dos atos pessoais e a generalidade
dos papéis e situações cristalizadas. Para entender esta relação é preciso superar a alterna-
tiva entre por um lado, ver os primeiros como atos de pura criação e conceber a história
como novidade perpétua, e por outro, tomar os segundos como condições que se im-
põem sobre os sujeitos e explicar a história como determinação.

As estereotipias não são uma fatalidade, e assim como a vestimenta, o adorno, o amor
transfiguram as necessidades biológicas por ocasião das quais eles nasceram, da mesma for-
ma no interior do mundo cultural o a priori histórico só é constante para uma dada fase...
Assim, a história não é nem uma novidade perpétua, nem uma repetição perpétua, mas o
movimento único que cria formas estáveis e as dissolve (ibid: 130).

O pensamento causal é incapaz de dar conta desta dialética da existência: opera pon-
do em relação fatos ou conteúdos diversos que assume de antemão como sendo exterio-
res uns aos outros. É apenas nestes termos que pode tomar a classe, a nação ou a cultura
como causas do comportamento, ou como fatalidades que se impõem sobre nós de fora,
deixando escapar o fato de que, ao invés de causas ou fatores externos, estes são funda-
mentalmente modos de coexistência que nos solicitam.
Merleau-Ponty ilustra bem as limitações da análise causal ao discutir a relação entre
sexualidade e existência na Fenomenologia da Percepção. O que queremos dizer, per-
gunta, quando afirmamos que estes termos estão em uma relação de expressão? Aqui há
dois erros a se evitar. O primeiro consiste em pensar a relação de expressão segundo a
lógica causal. A sexualidade, argumenta o filósofo, não pode ser causa da existência, por-
que efetivamente participa dela – e o grande achado da psicanálise não foi ter finalmente
localizado a causa de nossos dramas existenciais na pulsão sexual, mas justamente de ter
integrado a sexualidade à dinâmica do existir. O segundo erro é aquele que, procurando
escapar ao pensamento causal, toma a vida sexual como simples reflexo da existência,
reduzindo-a a essa última. Na sexualidade, escreve nosso autor, se encena uma corrente
particular da vida, que embora retomada e reintegrada ao movimento mais geral do exis-
tir, não se apaga ou se dissolve neste movimento.
Nesta discussão se delineia um novo modo de pensar a relação entre forma e con-
teúdo. O movimento da existência – e também da história – não é a pura sucessão de
conteúdos diversos que se relacionam de fora segundo uma cadeia de causalidade. Mas

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Miriam C. M. Rabelo

também não se deixa captar como imposição de uma forma que, em última instância,
dissolve a multiplicidade dos conteúdos e anula a contingência da história.

A relação entre matéria e forma é aquela que a fenomenologia chama de Fundierung: a


função simbólica repousa na visão como em um solo, não que a visão seja sua causa... A
forma integra a si o conteúdo a tal ponto que, finalmente, ele parece um simples modo
dela mesma, e as preparações históricas do pensamento parecem uma astúcia da Razão dis-
farçada em natureza – mas, reciprocamente, até em sua sublimação intelectual o conteúdo
permanece uma contingência radical, como o primeiro estabelecimento ou fundação do
conhecimento e da ação, como a primeira apreensão do ser ou do valor dos quais o conhe-
cimento e a ação jamais esgotarão a riqueza concreta... (ibid: 179).

Posteriormente Merleau-Ponty reelabora seu entendimento acerca do movimento


da existência através da noção de instituição. Se sentido da existência – e da história – não
é uma forma atemporal que paira sobre ela e que comanda de cima a sucessão dos eventos,
nem o resultado arbitrário de uma série de experiências singulares, é porque toda a experiên-
cia está sempre aberta ao passado e ao futuro, já que (minhas) ações pedem desdobramentos
que serão realizados e retomados por outros. O sentido da história, escreve Merleau-Ponty,
é instituído (ao invés de constituído), é um estilo que emerge através de sucessivas apropria-
ções de modos herdados de ação e coexistência. O estilo que se delineia neste movimento
de retomada não é uma estrutura ou sentido a priori; não está imune à contingência dos
eventos. Na imagem eloqüente do autor, o sentido é “convite para uma seqüência” (Merle-
au-Ponty, 1968a: 61).
Com a noção de instituição Merleau-Ponty deseja tanto retirar do presente o livre poder
de criação (ou constituição), que faz dele o artífice da história; quanto retirar do passado o
poder absoluto de determinação que, na interpretação histórica, o transforma em um con-
junto de condições ou fatores causais. Por um lado, é preciso entender que o presente só po-
deria ser senhor absoluto da história, se tivesse rompido completamente seus vínculos com
o passado, se não fosse ele mesmo herdeiro do passado. Por outro, entretanto, cabe lembrar
que se o passado pré-figura o presente e o futuro e assenta os termos sobre os quais estes se
erguem, é o futuro que confirma e faz vigorar o passado em sua retomada – como observa
Merleau-Ponty é a busca iniciada pelo presente que conduz à articulação de uma verdade
acerca do passado: “no homem, o passado pode não apenas orientar o futuro... mas dar lu-
gar, ainda, a uma busca, no sentido de Kafka, ou a uma elaboração indefinida: conservação
e superação são mais profundos, de modo que se torna impossível de explicar a conduta por
seu passado, como de resto por seu futuro, uma vez que ecoam um no outro” (ibid: 61-2)7.

7 Tradução de Monclar Valverde.

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Merleau-Ponty em Salvador

Merleau-Ponty (1984) encontra na sociologia de Weber uma aplicação desta noção


de instituição. Embora preocupado em compreender a emergência de certas estruturas
na história, Weber recusou-se a pensar este processo a partir uma linha de desenvolvi-
mento a priori que reduzisse os fatos à matéria bruta de uma lógica histórica. Para ele
nem o capitalismo já estava contido no calvinismo, nem o calvinismo representava uma
fase precária, ainda dependente, do que viria a ser um sistema econômico inteiramente
autônomo. Weber partiu da indeterminação essencial da história, e viu os acontecimen-
tos como encerrando possibilidades sempre dependentes da retomada humana para sua
plena efetivação. Assim entendeu que se o calvinismo continha o germe de uma orien-
tação econômica capitalista, esta orientação só poderia ser encontrada pelo historiador
se este atentasse para o campo de ação aberto pela posição religiosa. Tratava-se de com-
preender como certas escolhas se cristalizaram neste campo, se engataram e reforçaram,
mediante a iniciativa humana, escolhas semelhantes feitas em outros domínios de práti-
ca, fazendo surgir uma estrutura ou um estilo a partir do que, em um dado momento,
eram apenas possibilidades históricas e que só posteriormente poderiam se transformar
em sua verdade última.
Neste percurso interpretativo, sugere Merleau-Ponty, Weber efetivamente superou o
abismo que em seus escritos metodológicos, separa o historiador que contempla o passa-
do de fora e articula uma verdade sobre ele, e o agente histórico, que é impedido de ter
acesso ao sentido da história em virtude do seu engajamento nela. A conexão entre calvi-
nismo e capitalismo não foi tecida ao acaso ou sob o domínio de uma razão que apenas
o historiador está em posição para identificar – (e que para alguns cabe a ele “produzir”).
A “afinidade” entre a orientação religiosa e o ethos econômico não era alheia aos agentes
religiosos - embora não tão bem posicionados quanto o historiador, eles a viram ser teci-
da ou confirmada a partir das respostas que suas escolhas precipitaram nos outros. A nar-
rativa do historiador só pode re-apreender este percurso, na medida em que ela mesma
é mobilizada por uma interrogação do passado. Talvez devido a sua atenção à mediação
fundamental da ação na cristalização das estruturas Weber pode compreender tão bem
o movimento de conservação e retomada através do qual um sentido se sedimenta na
história, como “convite a uma seqüência”.
Não me interessa aqui avaliar até que ponto Merleau-Ponty é fiel a Weber em sua
apreciação da obra do autor. Desejo, antes, observar, que o estilo de interpretação histó-
rica que Merleau-Ponty distingue em Weber, e que ele articula a partir da noção de ins-
tituição, não tem sido objeto privilegiado de atenção dos cientistas sociais.
Basta observarmos a maneira como as ciências sociais “mainstream” têm buscado
compreender as relações que as pessoas cultivam com seu passado. Atualmente está bas-

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Miriam C. M. Rabelo

tante em voga uma visão do passado como fabricado ou inventado: narrativa construí-
da por determinados grupos ou seus representantes para legitimar identidades no jogo
político. Assim o passado redescoberto é tomado como seleção e fabricação tendenciosa
realizada do ponto de vista do presente. Seu papel é criar um foco de identificação e mo-
bilização social: forjando um passado comum e apresentando o futuro como seu resul-
tado necessário, esta narrativa confere credibilidade a um estado desejável de coisas. Em
outras palavras, e parafraseando Bourdieu, transforma estratégia em destino.
Curiosamente esta visão do passado – construção simbólica que serve para fortalecer
lideranças e seguidores em um campo político – é frequentemente articulada à outra,
bastante diferente, que visa responder à questão de por que certas pessoas ou grupos
precisam recorrer estes tipos de construção, ou melhor, que visa identificar as condições
– exploração de classe, de gênero ou étnico-racial, por exemplo – que explicam o recur-
so a certas formas de mobilização. Aqui a análise dá uma guinada e apresenta o passado
como uma cadeia objetiva de eventos transcorridos, de forças sociais e econômicas que
determinam presente e futuro. Uma linha demarcatória é desenhada entre passado real
e passado fabricado: ligado a este há o sujeito como agência, uma imagem de constru-
ção ativa do mundo; ligado àquele, um contexto de condições objetivas e uma imagem
de submissão passiva. Interessante observar que em ambas as soluções a conexão que as
pessoas mantêm com seu passado só pode ser externa: quer como criação ativa ou como
conservação passiva, o passado é privado de seus elos vitais com a experiência. Em um
dos cursos que proferiu no Collège de France, Merleau-Ponty observou:

O problema da memória não tem saída enquanto se hesita entre a memória como conser-
vação e a memória como construção. […] [a] imanência e a transcendência do passado, a
atividade e a passividade da memória não podem ser reconciliados enquanto não renun-
ciarmos a colocar o problema em termos de representação. Se, para começar, o presente
não é mais “representação” (Vorstellung), mas uma certa posição única do índice do ser no
mundo, se nossas relações com ele, quando ele desliza para o passado, como nossas relações
com o entorno, são atribuídas a um esquema corporal que detém e designa uma série de
posições e possibilidades temporais, se o corpo é quem a cada vez responde [à] questão:
“Onde estou e que horas são”, então não haverá mais alternativa entre conservação e cons-
trução. (Merleau-Ponty 1968b:72)8.

8 Tradução de M. Rabelo. No original em francês: “Le problème de la memoire est au point mort tant on hésite entre la mé-
moire comme conservation et la mémoire comme construction. (...) L’immanence et la transcendence du passé, l’activité et
la passivité de la mémoire ne peuvent être réconciliées que si l’on renounce à poser le problème en termes de representation.
Si, pour commencer, le présent n’était pas ‘representation’ (Vorstellung), mais une certaine position unique de l’index de l’être
au monde, si nos rapports avec lui, quand il glisse au passé, comme nos rapports avec l’entourage spatial, étaient attribués à
une schema postural qui détient et désigne une série de positions et possibilités temporelles, si le corps est qui répond chaque
fois a la question: ‘Où suis-je et quelle heure est-il’, alors il n’y aurait pas d’alternative entre conservation et construction…”

| 122
Merleau-Ponty em Salvador

Conclusão

Merleau-Ponty via na reflexão sobre a corporeidade um foco a partir do qual repensar


não apenas a experiência (individual ou coletiva), mas também nossa maneira de com-
preendê-la – de articular o seu sentido. Parece-me acertado dizer que para ele o reconhe-
cimento da corporeidade do ser no mundo deveria tanto servir de base para a formulação
de novos conceitos nas ciências do homem, quanto abrir caminho para um novo estilo
de interpretação – uma alternativa poderosa ao pensamento causal que evitasse, ao mes-
mo tempo, atribuir ao sujeito do presente liberdade de criação incondicionada. Nas ci-
ências sociais estes dois desenvolvimentos não se deram de forma integrada ou por igual.
Os cientistas sociais que souberam se assenhorar de suas idéias sobre o corpo e com base
nelas formular proposições bastante novas para o entendimento do mundo social – que
incorporaram ao seu vocabulário teórico termos claramente influenciados pela tradição
fenomenológica, como compreensão prática, habitus, sentido pré-reflexivo, etc. – foram
mais tímidos ou resistentes a se apropriar da reflexão merleau-pontiana para superar o
pensamento causal – de fato, para rever sua concepção geral de ciências sociais.

123 |
Miriam C. M. Rabelo

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| 124
Comportamento, expressão e subjetividade:
Merleau-Ponty e a psicanálise1

Marcos José Muller-Granzotto

Os significantes “comportamento”, “expressão” e “subjetividade” cumprem diver-


sas funções nos textos merleau-pontyanos. Estabelecer a vinculação entre eles não é
tarefa simples. Escolhemos uma via polêmica, que consiste em compreender o fun-
cionamento desses significantes nos comentários que Merleau-Ponty tece sobre os
efeitos do discurso psicanalítico em seu filosofar. Afinal, em diversas passagens de
sua obra, Merleau-Ponty reconhece na psicanálise um motivo que a aproxima dos
esforços que ele-próprio empreende no sentido de rearticular os dois domínios de
objeto que a ciência e a tradição filosófica depois do século XVII separam: o físico
e o psíquico. O que não quer dizer que, para Merleau-Ponty, Freud esteja acima de
qualquer suspeita. Na avaliação daquele, Freud foi incapaz de extrair, das noções que
articulara, as conseqüências ontológicas que pudessem esclarecer em que sentido a
pulsão demarcaria uma região especial entre o psíquico e o somático. Mas, nas notas
de trabalho de Le visible et l’invisible, além de mencionar uma “filosofia do freudis-
mo” (1964 a: 323), Merleau-Ponty se propõe escrever uma “psicanálise da natureza”
(1964 a: 321), como se, a despeito da leitura sartreana de Freud, fosse preciso ”(f )
azer não uma psicanálise existencial, mas uma psicanálise ontológica” (1964 a: 324).
É o certo que, na avaliação de Merleau-Ponty, somente uma leitura ontológica das
obras de Freud poderia salvar a psicanálise de se transformar em mera antropologia
(1964 a: 321). Mas o curioso é que essa leitura ontológica recolhe da psicanálise
mesma o motivo que, antes, nos textos dos anos 1940, Merleau-Ponty acreditava fal-
tar aos textos freudianos, precisamente: a idéia de uma invisibilidade, a qual, tal qual
a “pulsão de morte” de que fala Freud, designa uma negatividade que nunca pode ser
1 O presente escrito consiste numa versão modificada e ampliada do artigo “Merleau-Ponty leitor de Freud”, originalmente
publicado em Natureza Humana, Vol 7, nº 2, 2005, p. 399-432. URL: www.centrowinnicott.com.br. Naquela oca-
sião, propusemo-nos compreender a leitura merleau-pontyana de Freud a partir dos desdobramentos programáticos que nos
levaram da Phénomenologie de la perception a Le visible et l’invisible. Dessa vez, entretanto, interessa-nos mostrar como a noção
de inconsciente, primeiramente recusada, acabou por se mostrar como uma possível solução para os problemas inerentes ao
emprego merleau-pontyana da noção de corpo expressivo.

125 |
Marcos José Muller-Granzotto

integrada à visibilidade de nossa existência ôntica, embora nesta se manifeste como


ausência, estranhamento, potência vidente ou, simplesmente, olhar. Mais do que
isso, Merleau-Ponty refere-se à propriedade dinâmica dessa negatividade, que é a de
gerar uma “transitividade” – como aquela que define a sobredeterminação das in-
terpretações no trabalho analítico – e que introduz, no campo da existência ôntica,
uma espécie de porosidade, que interdita para sempre qualquer forma de síntese, ao
mesmo tempo que assegura a indivisão entre o atual e o inatural, o ato e a essência,
o interpretativo e o pulsional. Ora, o que é essa idéia de transitividade? Ela está arti-
culada à noção de expressão, tal como essa aparecia nos textos merleau-pontyanos de
1940? Em que sentido ela enseja uma “carnalidade” e em que termos “carnalidade”
e “inconsciente da pulsão” são comparáveis?

II

Nos anos de 1940, Merleau-Ponty estava engajado na investigação de um motivo


extraído de Husserl – e que consistia na aceitação de que, aquém de nossa maneira
representada de compreender a existência, haveria um domínio primitivo, denomi-
nado por Husserl (1976: 139) de “Lebenswelt” e onde encontraríamos a própria pré-
história de nossas representações. Tratar-se-ia de uma camada de experiências pré-ló-
gicas, a qual, na interpretação de Merleau-Ponty, já estaria investida de um sentido,
razão pela qual seria fundante em relação ao conhecimento científico (1945: 419).
E a tarefa da filosofia seria, então, restituir esse domínio. Algo que a psicanálise não
podia fazer, ao menos enquanto permanecesse limitada a reproduzir, num sistema
objetivo, a ligação econômica entre o domínio físico e o domínio psíquico.
A crítica que nesse momento Merleau-Ponty dirige a Freud, está toda ela alicer-
çada em Politzer. Segundo o autor da obra Critique des fondements de la psychologie
(1967: 209), a psicanálise

apresenta uma dualidade essencial. Ela anuncia, pelos problemas que se coloca e pela
maneira pela qual orienta suas investigações, uma psicologia concreta, mas ela a des-
mente em seguida pelo caráter abstrato das noções que emprega, ou que cria, e pelos
esquemas de que se serve. E podemos dizer sem paradoxo que Freud é tão espantosa-
mente abstrato em suas teorias quanto concreto em suas descobertas.

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Merleau-Ponty em Salvador

Politzer reconheceu ter sido Freud o primeiro a introduzir, como domínio da


psicologia, a investigação da pessoa não como ego, mas como “eu”. Aos olhos de
Politzer, ao afirmar que o sonho tem sentido e que esse sentido é inseparável do eu,
“sendo por essência uma ‘modulação’ desse eu”, que se liga “internamente a ele e o
exprime” (1967: 40), Freud delimitou a natureza específica do fenômeno psíqui-
co, o qual passou a ser entendido como um sentido relativo à subjetividade, mas
à subjetividade tal como nós a vivemos e relatamos na primeira pessoa do singular
(e não tal como a poderíamos representar na terceira pessoa do singular, a partir de
uma teoria do ego). Da mesma forma, Politzer admitiu ter sido Freud o primeiro a
compreender que é no campo da narrativa que nós podemos lograr a determinação
desse sentido subjetivo. Trata-se, evidentemente, de uma narrativa na primeira pes-
soa do singular, tal como aquela exercitada nas sessões de análise, onde falamos de
nós mesmos sem precisar nos representar a partir das significações convencionais da
linguagem. Há nessas narrativas uma natureza dramática que, quando aliada às in-
tenções pragmáticas que deixamos compreender em nossas ações, revelam a singula-
ridade de nossa vida psicológica. Todavia, avalia Politzer, Freud não resistiu a tentar
reconhecer, na estrutura dramática das narrativas que testemunhava, leis que pudes-
sem ser universalizadas e a partir das quais poderia representar (em terceira pessoa)
a natureza humana em sua intimidade. Para Freud, é como se a singularidade do
fenômeno psíquico (relatado na primeira pessoa do singular) resguardasse uma “tí-
pica” que a metapsicologia haveria de sistematizar (na terceira pessoa do singular).
Na avaliação de Politzer, Freud só pôde almejar isso porque transportou, para o do-
mínio de nossa dramaturgia individual, a estrutura representacional que caracteri-
za nossa linguagem convencional e segundo a qual toda construção simbólica está
destinada a reproduzir um conteúdo mais antigo, independente da linguagem, que
subsistiria em si mesmo. Aquilo que prometia ser uma elaboração concreta – quer
dizer, comprometida com a singularidade do sentido relatado por um “eu” atual e,
nesse sentido, concreto - permaneceu uma especulação abstraída de uma egologia
recalcitrante, a egologia do inconsciente estruturado como dialética de forças ou re-
presentações psíquicas.
Merleau-Ponty era partidário dessa avaliação, pois - também para ele -, apesar
das relevantes “descobertas” de Freud, este não soube evitar um “sistema de noções
causais”, que acabou por transformar aquelas descobertas em uma “teoria metafísica
da existência humana” (1942: 192).

(o) que gostaríamos de perguntar, sem colocar em questão o papel assinalado por
Freud à infra-estrutura erótica e às regulações sociais, é se os próprios conflitos de que

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Marcos José Muller-Granzotto

ele fala, os mecanismos psicológicos que ele descreveu, a formação dos complexos, o
recalque, a regressão, a resistência, a transferência, a compensação, a sublimação exigiu
verdadeiramente o sistema de noções causais pelo qual Freud as interpreta, e que trans-
forma em uma teoria metafísica da existência humana as descobertas da psicanálise.

Ademais, segundo Merleau-Ponty,

a idéia de uma consciência que seria transparente para si mesma, e cuja existência se
tornaria então, a consciência que ela tem de existir não é tão diferente da noção de in-
consciente: é, de ambos os lados, a mesma ilusão retrospectiva: introduz-se em mim, a
título de objeto explícito, tudo o que poderia, a seguir, aprender de mim (1945: 436).

Por conta disso, Merleau-Ponty acredita que seja com razão que se censure Freud:
ele introduziu com o nome de inconsciente “um segundo sujeito pensante cujas pro-
duções seriam simplesmente recebidas pelo primeiro, e Freud mesmo admitiu que essa
“demonologia” não era mais que uma concepção psicológica frustrada” (1968 :69).
Mas essa avaliação não nos deveria levar a crer que Merleau-Ponty tivesse
aderido ao programa de consecução de uma psicologia concreta, que recusasse toda
sorte de recurso ao “profundo” em proveito daquilo que efetivamente se formulasse
na “atualidade” de nossos atos, fosse isso uma intenção significativa ou uma intenção
prática. Para Merleau-Ponty, do fato de não se poder aceitar que o inconsciente fosse
um conjunto de representações de primeira ordem em oposição dialética às nossas re-
presentações conscientes, não se segue que nossa singularidade se limitaria às intenções
significativas e às intenções práticas reveladas, respectivamente, na estrutura dramática
de nossos relatos e na teleologia de nossas ações individuais em situação social, como
acreditava Politzer. Tão problemático quanto dizer que minha individualidade já es-
taria determinada no passado, seria dizer que ela se reduziria àquilo que eu haveria de
desempenhar no presente, como um conteúdo manifesto. Para Merleau-Ponty, se é
verdade que a dramaticidade revelada por nossos relatos na atualidade da situação clí-
nica exprime nossa existência subjetiva, se é verdade, ademais, que o sentido dessa exis-
tência nós o vivemos em cada ação desempenhada no convívio social, daí não se segue
que nossa subjetividade esteja toda aí. Ela comporta mais do que nossa atualidade. O
que não quer dizer que, para Merleau-Ponty e conforme a censura politzeriana dirigida
a Freud, esse “a maior” seja determinado como um em-si independente de nossa inser-
ção pragmática e discursiva no presente. Eis por que Merleau-Ponty refere-se à subje-
tividade como a “unidade expressiva” (1945: 239) de um corpo que, tanto quanto aos
gestos atuais que desempenha no mundo e frente ao outro, dispõe de um sistema de

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Merleau-Ponty em Salvador

possibilidades assegurado não por uma lei, mas por um hábito, por um corpo habitual
que não se confunde com o primeiro, mas se oferece a ele como uma camada segunda,
inatual. No dizer de Merleau-Ponty, o corpo parece comportar “como que duas cama-
das distintas, a do corpo habitual e a do corpo atual. Na primeira, figuram os gestos de
manuseio que desaparecem na segunda” (1945: 97).
Merleau-Ponty evoca aqui o fenômeno do “membro fantasma” para mostrar que o
corpo habitual de que se trata não diz respeito a uma estimulação recalcitrante – afinal
o doente acometido desse fenômeno não dispõe das terminações nervosas (do braço
amputado) a partir das quais tal estimulação poderia ser localizada -, tampouco diz
respeito a uma representação mental inadequada (seja ela um juízo ou uma “sensação
renascente”) – uma vez que a suspensão dessa representação não faz cessar a coceira
que o doente “sente” na extremidade de “braço ausente”. Se continua a visar o mundo
por meio de um aparelho que, todavia, deixou de figurar no espaço, é porque a per-
da do braço não elidiu a “espessura histórica”, o “saber latente” que, tal qual “ciência
implícita ou sedimentada”, faz o doente transcender as estimulações e representações
que ele pode viver no presente (1945: 275). De onde se segue, conclui Merleau-Ponty,
que a percepção sempre retoma “algo de anônimo”, o que impede que possamos nos
apreender como transparências absolutas (1945: 275). Quando muito, posso ter de
mim um cogito tácito, que não se confunde com a “imanência psicológica, a inerên-
cia de todos os fenômenos a ‘estados privados’, o contato cego da sensação consigo
mesma”. Tampouco se confunde com a imanência transcendental, “a pertença de to-
dos os fenômenos a uma consciência constituinte, a posse do pensamento claro por si
mesmo”. A vivência de mim mesmo como generalidade temporal, o “cogito tácito” de
minha própria solidão é, antes, “o movimento profundo de transcendência que é meu
próprio ser, o contato simultâneo com meu ser e com o ser do mundo” (1945:432), os
quais, por só se revelarem na atualidade como “fenômenos”, exprimem uma evidência
que vem de outro momento, de outro lugar, como “um passado que permanece nos-
so verdadeiro presente” porque “não se distancia de nós e esconde-se sempre atrás de
nosso olhar em lugar de dispor-se diante dele” (1945: 124). O fenômeno do “membro
fantasma”, por fim, ensina que “é preciso que meu corpo seja apreendido não apenas
em uma experiência instantânea, singular, plena, mas ainda sob um aspecto de gene-
ralidade e como um ser impessoal” (1945: 97).
Aliás, para Merleau-Ponty, tal impessoalidade é a mesma que podemos encontrar
no “recalque de que fala a psicanálise” (1945: 98). Pois o recalque

(...) consiste em que o sujeito se empenha em uma certa via – relação amorosa, carrei-
ra, obra -, encontra uma barreira nessa via e, não tendo força nem para transpor o obs-

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Marcos José Muller-Granzotto

táculo nem para renunciar ao empreendimento, permanece bloqueado nessa tentativa


e emprega indefinidamente suas forças em renova-la em espírito. O tempo que passa
não leva consigo os objetos impossíveis, não se fecha sobre a experiência traumática, o
sujeito permanece sempre aberto ao mesmo futuro impossível, senão em seus pensa-
mentos explícitos, pelo menos em seu ser efetivo. Um presente entre todos os presentes
adquire então um valor de exceção: ele desloca os outros e os destitui de seu valor de
presentes autênticos. Continuamos a ser aquele que um dia se empenhou nesse amor
de adolescente, ou aquele que um dia viveu nesse universo parental. (1945: 97)

Sem dúvida, o recalque implica a co-presença eminente de um passado que não


necessariamente faz fundo ao fenômeno do “membro fantasma”, a saber, a experi-
ência de percepção “de outrem”. Ainda assim, acredita Merleau-Ponty, também esta
retorna “sob um véu de anonimato” (1945: 400). Razão pela qual, tal como no
fenômeno do “membro fantasma”, no recalque, vivemos uma sorte de “escolástica
da existência”, porquanto uma experiência antiga e anônima se sedimenta até dela
restar apenas a “forma típica” (1945: 99). Essa forma típica é o nosso corpo habitu-
al, que apesar de co-presente, jamais se deixa capturar como um momento de nossa
atualidade. Trata-se de uma “existência anônima e geral”, que é nossa “adesão pré-
pessoal à forma geral do mundo” (1945: 99), o qual, assim como nós mesmos, já era
antes, como uma “evidência perceptiva” que se anuncia desde o passado, como algo
com que não podemos coincidir integralmente (1945: 77).
Há dois aspectos importantes aqui. Contra aqueles que – como Politzer - acredi-
tam que a subjetividade só se constitui na atualidade do discurso e das ações, Merle-
au-Ponty vai dizer que eu já era antes. Mas, contra aqueles que – como Freud - vão
tentar identificar, nesse primado, alguma sorte de estrutura determinada (que eu ha-
veria de encontrar pela interpretação daquilo que se exprimisse na livre associação),
Merleau-Ponty vai dizer que se trata de uma generalidade à qual, quando muito,
retomamos de maneira tácita no presente. Razão pela qual, para Merleau-Ponty, a
restituição da subjetividade exigiria um deslocamento da psicologia (fosse ela con-
creta ou metapsicológica) para a fenomenologia, para a fenomenologia da percep-
ção, percepção do corpo, do mundo, do outro e, de maneira radical, percepção da
forma íntima de toda e qualquer percepção: ambigüidade temporal de mim mesmo.
Em suas duas primeiras obras, Merleau-Ponty deixa para trás Freud e a abordagem
metapsicológica do inconsciente, ao passo que os conceitos politzerianos são diluí-
dos no de Lebenswelt.

| 130
Merleau-Ponty em Salvador

III

A propósito, ainda que Merleau-Ponty continuasse citando Freud e Politzer, ainda


que continuasse visitando os conceitos de inconsciente e de dramaturgia, tinha-se ago-
ra em vista outro objetivo, no caso específico da problemática da subjetividade, des-
crevê-la em sua forma originária, em seu campo de origem ou, o que é a mesma coisa,
nas suas relações temporais com o outro e com o mundo. O que certamente acabou
sacrificando a precisão no emprego daqueles conceitos. Em um trabalho intitulado “A
posição do problema do inconsciente em Merleau-Ponty”, J.-B. Pontalis afirma que
“(o)s exemplos psicanalíticos da Phénoménologie de la perception – emprestados mais a
Daseinanalyse de Binswanger, do que de Freud” – não se destinam a fazer o comentário
do inconsciente, mas a “esclarecer como é o corpo que ‘exprime a cada momento as
modalidades da existência’” (1972: 66). O que levou Merleau-Ponty a tratar a repres-
são, por exemplo, não como um desdobramento específico da dialética de dois siste-
mas separados (o inconsciente e o pré-consciente), mas como uma atitude existencial
global, um modo de organização da existência absolutamente articulado com o hori-
zonte de generalidade temporal em que o reprimido estivesse inserido.
Para ilustrar essa concepção de subjetividade como atitude existencial global, Mer-
leau-Ponty trouxe à tona o caso de uma moça que sofria de uma afonia. Quando
criança, após um tremor de terra, a então menina se viu incapacitada de usar a boca:
primeiro não conseguia engolir, depois não conseguia falar. Mais tarde, na juventude,
a afonia voltou a se manifestar, depois que a mãe proibiu-a de ver o rapaz a quem ama-
va. Para Merleau-Ponty “uma interpretação estritamente freudiana colocaria em ques-
tão a fase oral do desenvolvimento da sexualidade”. Mas o que se “fixou” na boca, diz
ele, “não é apenas a existência sexual; são, mais geralmente, as relações com o outro,
das quais a fala é o veículo” (1945: 187). Por outras palavras, o que se fixou na boca
foi uma “atitude existencial global”, a qual não pode ser confundida com as represen-
tações ou estados que a doente poderia formular a respeito dela mesma ou do outro,
tampouco com uma sorte de efeito simulado por ação de um mecanismo de defesa
frente à ameaça. Para Merleau-Ponty, a afonia da moça é uma experiência de campo.
A partir de um fundo habitual, ao qual permanece vinculada mesmo quando o recusa,
a moça singulariza-se em uma figura específica, faz um sintoma, mas sempre a partir
daquele fundo. Sua postura é sempre global. Suas atitudes sempre têm em conta um
contexto, sem o qual permaneceriam vazias. E ainda que, como admoesta Pontalis
(1972: 66), Merleau-Ponty tenha confundido aqui repressão com fixação, ainda que
seja mais fácil falar de fixação em termos gestálticos, do que por meio da terminologia

131 |
Marcos José Muller-Granzotto

da primeira tópica freudiana, devemos acrescentar que a descrição merleau-pontyana


estabeleceu a gênese da significação sexual do sintoma, a qual não tem a ver com um
princípio de evitação de dor, mas com a vinculação habitual entre a moça e as pessoas
a quem amava. Aliás, dissociado do lastro intersubjetivo que a doente arrasta como seu
fundo habitual, a interdição da oralidade não explica a perda da fala na menina, menos
ainda sua reedição na juventude. Para a menina, velar a angústia numa privação oral (es-
pecificamente, de comida) era evitar encontrar a “perda” daquilo que ela nunca deixou
de ter em conta, precisamente, a coexistência. Se ela não podia engolir a perda, como
também não pôde engolir, mais tarde, a proibição que lhe foi feita, é porque, como pano
de fundo dessa perda, havia o outro. Nesse sentido, conclui Merleau-Ponty, “se a emo-
ção escolhe exprimir-se pela afonia, é porque a fala é, dentre todas as funções do corpo,
a mais estreitamente ligada à existência em comum ou, como diremos, à coexistência”
(1945: 222). E é precisamente a coexistência, acredita Merleau-Ponty, o fundo habitual
desde onde a subjetividade emerge como atitude existencial global.
Ora, essa apresentação de subjetividade não como ego ou coincidência comigo
mesmo, mas como atitude existencial a partir de um fundo habitual de coexistên-
cia com o outro e com o mundo, viabilizou uma outra forma de aproximação entre
Merleau-Ponty e a psicanálise freudiana. Dessa vez, o tema não era tanto o tratamento
metapsicológico da noção de inconsciente, até aqui criticado por Merleau-Ponty, mas
a noção de experiência analítica. Apesar de discordar da forma objetivista segundo a
qual Freud definiu o inconsciente, não obstante preferir falar de nossa singularidade
como a unidade expressiva de um corpo atual orientado ao futuro a partir da “opa-
cidade de um passado originário” (1945: 403), Merleau-Ponty reconheceu na prática
psicanalítica algo de verdadeiro. Trata-se, sem sombra de dúvida, de uma avaliação
inspirada na leitura politzeriana de Freud. Mas – à diferença de Politzer, para quem
importava apenas a atualidade do ato de expressão de uma intenção significativa –
Merleau-Ponty lê, na prática freudiana, a retomada disso que, para a Phénoménologie
de la perception, definia o campo de emergência da subjetividade, a saber, a coexistên-
cia temporal – e, nesse sentido, pré-pessoal, ambígua - entre eu e o outro. Ou seja,
ainda que, diante do analisando, o psicanalista pudesse partir do pressuposto de ha-
ver algo assim como um domínio de significações latentes à espera de interpretação,
isso não impedia que a experiência analítica restabelecesse, para o analisando, o acesso
àqueles laços de coexistência que este mantinha em suspenso, como um fundo interdi-
tado. Nos termos de uma relação de transferência – que para Freud mais não seria que
uma repetição ou retorno de um funcionamento primário – o analisando integraria, à
atualidade de sua relação com o médico, o fundo de orientação habitual que alienara

| 132
Merleau-Ponty em Salvador

em um sintoma particular. E uma vez estabelecido essa reintegração – que se daria de


maneira irrefletida -, o analisando poderia suspender sua queixa, sua sintomatologia.
Nesse sentido, diz Merleau-Ponty,

(o) tratamento psicanalítico não cura provocando uma tomada de consciência do passa-
do, mas em primeiro lugar ligando o paciente ao seu médico por novas relações de exis-
tência. Não se trata de dar um assentimento científico à interpretação psicanalítica e de
descobrir um sentido nocional do passado, trata-se de revivê-lo como significando isto
ou aquilo, e o doente só chega a isso vendo seu passado na perspectiva de sua coexistência
com o médico (1945: 519).

Reafirmando sua intuição de que a subjetividade é mais que sua própria atualida-
de – o que o opõe a Politzer -, mas sem ceder à tentação de reduzir a “opacidade” de
nossa existência passada a um sistema de representações de primeira ordem – o que
o distingue de Freud -, Merleau-Ponty pode admitir o êxito da experiência analítica,
por reconhecer nela a retomada do fundo habitual de coexistência que acompanha a
subjetividade de cada qual.

IV

Uma dificuldade, então, se estabelece. Se a experiência analítica consiste no resta-


belecimento, para o analisando, de um fundo habitual de coexistência, dado que esse
fundo habitual é, para aquele, senão uma dimensão impessoal quando muito a vivên-
cia tácita de sua própria solidão, em que sentido Merleau-Ponty pode falar de uma
relação atual do analisando com o analista? Em que sentido, para Merleau-Ponty, o
paciente se ligaria a seu médico? E se, a partir do exemplo de Merleau-Ponty, tentás-
semos pensar as relações humanas em geral, em que medida cada qual se ligaria a ou-
trem, se as relações de coexistência se limitariam a retomar o anonimato de vivências
perceptivas?
Uma resposta para essas questões, nós a podemos encontrar retornando do capítulo
sobre “La liberte” à segunda parte da Phénoménologie de la perception, onde Merleau-
Pony se ocupa de pensar a percepção dos objetos culturais. Ao lado da experiência de
percepção do mundo - a qual é tributária de uma tradição pré-pessoal e de um mundo
já sempre ali, que se apresentam sozinhos, como dimensões que não preciso constituir,
mas às quais posso me entregar em proveito de uma unidade de sentido que se formula
sempre a frente de mim, como futuro transcendente -, há a experiência de percepção

133 |
Marcos José Muller-Granzotto

das cidades, das igrejas, das estradas, enfim, desses objetos que, diferentemente das
“coisas enraizadas em um fundo de natureza inumana”, aparecem para mim como que
“postos” sobre o mundo, edificados a partir de uma história composta de ações huma-
nas (1945: 374). O que permite a Merleau-Ponty falar da existência de um mundo
humano, paralelo à tradição pré-pessoal de um mundo já sempre ali, natural. E é desse
mundo humano, fundo histórico de meus atos sociais, que adviria não o cogito tácito
de mim como alguém jogado à própria sorte, mas a consciência de ser eu uma cons-
ciência entre outras consciências, ser pessoal num universo de outras pessoas. O que,
enfim, viabiliza para Merleau-Ponty a apresentação da relação intersubjetiva, tal como
aquela que se dá na experiência analítica, menos como emancipação de subjetivida-
des solitárias e mais como reedição atual de uma mesma comunidade, de um mundo
comum, que é o mundo humano. Tal significa dizer que a experiência analítica, além
de solitária e temporal, é intersubjetiva, no que ela justamente se distingue da gene-
ralidade mundana. Merleau-Ponty evoca aqui a originalidade do mundo humano ou
cultural, que assim como o mundo da percepção, traz sua evidência de um lugar mais
antigo. E a coexistência entre o analista e o analisando não os fecha em seus cogitos
privados, mas os faz reconhecer o mundo comum ao qual pertencem desde o passado.
Mas, que noção de subjetividade é essa que acomoda, numa só unidade expressiva,
uma pré-pessoalidade solitária e uma pessoalidade comunitária? Que noção de subje-
tividade é essa que articula, como um só movimento de transcendência em direção ao
futuro, um passado singular paralelo a um passado universal? Ora, decretará Merleau-
Ponty no texto de candidatura ao Collège de France, “ o estudo da percepção não pôde
responder essas questões. Ele só podia nos ensinar uma ‘má ambigüidade’, a mistura da
finitude e da universalidade, da interioridade e da exterioridade” (1962: 409).

No texto que submeteu ao Collège de France, Merleau-Ponty diz que: se é verdade


que o estudo topológico do mundo da percepção expresso na ambigüidade do corpo
próprio resguarda uma “má ambigüidade”, se é verdade que a busca do “lugar” da ex-
pressividade implica um domínio indecidível entre o pré-pessoal e o pessoal, o singular
e o universal, também é verdade que “há, no fenômeno da expressão, uma ‘boa ambi-
güidade’, isto é, uma espontaneidade que realiza o que parecia impossível, a conside-
rar os elementos separados, que reúne em um só tecido a pluralidade das mônadas, o
passado e o presente, a natureza e a cultura” (1962: 409). Todavia, a expressão deve ser

| 134
Merleau-Ponty em Salvador

entendida para além do corpo. Ela não pode se limitar a descrever a dinâmica corpo-
ral, o funcionamento deste campo ambíguo, ao mesmo tempo particular e universal.
É preciso reconhecer, no fenômeno de expressão, a dinâmica da própria generalidade,
da própria relação de coexistência, que tão bem a Phénoménologie de la perception pôde
marcar. Talvez, assim, se possa ultrapassar as dificuldades internas da Phénoménologie
de la perception, que consistem, precisamente, em se compreender como se pode reu-
nir, em um só tecido, a pluralidade de sujeitos, as várias dimensões do tempo, a sin-
gularidade das percepções e a universalidade do saber que as retoma. E eis então que,
em textos como La doute de Cézanne, Le roman et la métaphysique (publicados na obra
Signes, de 1960), Humanisme et terreur (1947), todos eles publicados depois de 1945,
Merleau-Ponty se propõe não mais restituir o mundo da percepção (estabelecer sua to-
pologia), mas mostrar “como a comunicação com outrem e o pensamento retomam e
ultrapassam a percepção que nos iniciou na verdade” (1962: 402). Não que Merleau-
Ponty estivesse abandonando o motivo de outrora. Apenas retomando-o desde um
ponto de vista dinâmico, como descrição da expressividade inerente à coexistência
intersubjetiva e à generalidade perceptiva, única forma de se esclarecer o que lá havia
permanecido obscuro.
Tal exigiu de Merleau-Ponty o aprofundamento das discussões sobre o sentido da
noção de práxis, as quais, nas duas primeiras obras, levaram-no a refletir sobre como
se articulariam a vida perceptiva, a ordem do trabalho, linguagem e a história. Mas,
diferentemente do modo como essas temáticas apareceram nas duas primeiras obras,
depois de 1945, elas não têm mais em vista dizer quem é a subjetividade que se revela
diante do outro, ou quem é esse outro que me põe em contato com o que eu não sabia
de mim, mas descrever como se relacionam, como eles se comunicam. O acento ago-
ra está no “como” e não no “quê”. O que se pode ver no modo como Merleau-Ponty
passa a considerar, por exemplo, a experiência da comunicação. Ele deixa de lado a
discussão com a psicologia da linguagem para polemizar com as análises lingüísti-
cas de Saussure. Evidentemente, o que interessa a Merleau-Ponty não é a lingüística
em si, mas como aí se articulam os temas da expressão e da intersubjetividade (1962:
405). Se é verdade que a diferenciação dos signos entre si é o segredo da sistematici-
dade da linguagem; se é por meio dela que um significado se exprime como todo, tal
diferenciação não se explica por si. Por que e de que maneira os signos se diferenciam
mutuamente? Ademais, relações de diferenciação que hoje são vigentes, outrora não
foram e, talvez, amanhã não sejam mais. Como entender, então, a especificidade dos
grupamentos diferenciais? Como entender sua origem e dissipação? A investigação
lingüística de Saussure não dá conta de responder essas questões. Afinal, o recorte sin-

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Marcos José Muller-Granzotto

crônico da língua pode mapear os diferentes grupamentos diferenciais, mas não pode
explicar como eles se estabeleceram, sequer como se mantêm. O recorte diacrônico,
com seu viés histórico, só pode mostrar a relação entre grupamentos diferenciais já
estabelecidos. Nesse sentido, ele não toca na questão da gênese e da auto-sustentação
da linguagem. Ademais, ele próprio exigiria uma explicação sobre o que lhe permitiu
comparar os diversos sistemas. Razão pela qual, vai dizer Merleau-Ponty, é preciso apa-
nhar a linguagem em funcionamento, compreendê-la de dentro, desde a posição de
quem a exerce. O que deslocará para a fala o que a lingüística de Saussure só admitia
para a língua, a saber, a investigação das condições dinâmicas que dão sistematicidade
à linguagem. Por isso encontramos, em contrapartida de uma diacronia da língua, não
mais uma sincronia também da língua, mas da fala. E o que Merleau-Ponty conquis-
ta, por meio desse deslocamento em direção a uma sincronia da fala, é aquilo que a
gramática velava no âmbito da língua, precisamente, a temporalidade. Ou seja, quan-
do suspendemos nossa crença na absoluta objetividade da linguagem – a qual estaria
assegurada pela gramática – quando nos colocamos na condição daquele que tem de
produzir uma significação para quem ainda não a possui, ou compreender o que se
figura para nós como uma articulação inédita, não temos outra alternativa senão re-
correr a grupamentos diferenciais não atuais, a processos de diferenciação que estão
em outro tempo e que, portanto, estariam a princípio excluídos do recorte sincrônico.
De onde se segue que a diferenciação não é conseqüência de uma lei, que lhe dá re-
gularidade. Recorrer a essa alternativa seria transportar o problema para outro lugar,
afinal, de onde surgiu essa lei? Como ela se mantém? A diferenciação, ao contrário, é
decorrência da espontaneidade dos falantes, de suas capacidades para compartilhar sig-
nos trazidos de outros tempos, de falas antigas, em proveito de falas novas. Ou, então,
a diferenciação é uma figura oriunda de um campo temporal, de uma temporalidade
intersubjetivamente construída. E eis que, por meio da descrição da temporalidade da
fala, Merleau-Ponty esclarece não só como se dá a diferenciação e, por extensão, a ex-
pressão de um significado, como mostra que a expressividade da linguagem é a própria
temporalidade engendrada pelos falantes, intersubjetivamente instituída.
Ora, estamos já aqui diante de uma outra maneira de se entender a expressividade.
Se é verdade que Merleau-Ponty ainda a define como uma sorte de temporalização, tal
temporalização já não é mais prerrogativa do corpo falante. Não há mais um indiví-
duo como garantia da expressividade (como temporalização) e, por conseqüência, da
constituição dos significados. A expressividade – e não apenas os significados que ela
engendra - é, agora, uma construção social, o processo de retomada de falas antigas
ante a fala do outro ou, inversamente, a incorporação da fala do outro pelas minhas

| 136
Merleau-Ponty em Salvador

falas antigas. Trata-se do “ímpeto dos sujeitos falantes que querem se compreender e
que retomam como uma nova maneira de falar os destroços gastos de um outro modo
de expressão” (1969, 50). Trata-se, para falar da intercorporeidade, de uma experiência
de “descentramento”, em que me polarizo nas ações desempenhadas pelo outro, bem
como dele acolho uma orientação ou perspectiva. Meu sentir, agora, parece se “difun-
dir” (1969: 188) como generalidade carnal (1969: 29), no interior da qual eu e o outro
tornamo-nos “significações transferíveis” (1969: 194).
Ora, a grande vantagem dessa nova maneira de se entender a expressividade é que
ela nos dispensa de pensar a comunicação a partir do paradoxo constitutivo da noção
de subjetividade proposta na Phénoménologie de la perception. Já não temos de decidir
se a comunicação é um desdobramento de nossa inserção histórica no mundo da cul-
tura, ou de nossa solidão pré-pessoal, lateralmente unificada no cogito tácito de nós
mesmos. A expressividade característica da comunicação – e na forma da qual nos des-
cobrimos implicados como uma só comunidade de possibilidades – não exige que nos
compreendamos como seres sociais ou como seres individuais. A expressividade não é
dos sujeitos, mas do campo. E é a partir do campo, então, que podemos dizer quem
somos ou como somos a cada vez. Se é verdade que já na Phénomenologie de la percep-
tion Merleau-Ponty admitia que nossas percepções, como a sedimentação cultural de
nossa língua, dependiam de que houvesse troca, comunidade intercorporal e lingüísti-
ca, ele não considerava essa comunidade intercorporal um operador ontológico autô-
nomo e primevo, apenas uma certa dimensão do corpo perceptivo, o que instaurava,
no fundamento da comunicação, um paradoxo sem solução: é a comunicação uma
prerrogativa do corpo histórico ou do corpo pré-pessoal? Com a suspensão da investi-
gação topológica do fundamento da expressão e com a proposição da expressão como
o modo temporal de funcionamento do campo de coexistência (impessoal e cultural),
Merleau-Ponty deixa para traz a fenomenologia do corpo expressivo em proveito de
uma ontologia da expressividade vivida intersubjetivamente.
Eis então que se configura para Merleau-Ponty uma nova base desde onde os temas
da Phénoménologie de la perception podem ser recolocados, dentre eles, o da psicanáli-
se. Merleau-Ponty está agora em condições de esclarecer em que sentido a vivência da
transferência na relação analítica é uma ocorrência intersubjetiva. Afinal, se as inter-
venções do médico re-introduzem o outro que o paciente havia perdido, trata-se de
um acontecimento, de um milagre que não podia ser calculado, mas, nem por isso,
descartado. Pois, havendo abertura para isso, o médico “sabe” que pode repercutir a
queixa do paciente, “sabe” que pode apresentar aquilo que o sintoma mascara ou tenta
evitar. As interpretações do médico, ou a ausência delas, mais do que fundadas em um

137 |
Marcos José Muller-Granzotto

panorama de pensamentos privados, se estabelecem no interior de um campo inter-


corporal, em que o paciente pode ver se diferenciarem as muitas caras de sua própria
dramaturgia. O que permite a Merleau-Ponty formular, com mais clareza, uma tese já
estabelecida na Phénoménologie de la perception e segundo a qual, “o essencial do freu-
dismo não é ter mostrado que há sob as aparências toda uma outra realidade, mas sim
que a análise de uma conduta encontra várias camadas de significações, que elas têm
todas sua verdade, que a pluralidade de interpretações possíveis é a expressão discursi-
va de uma vida mista, onde cada escolha tem sempre vários sentidos sem que se possa
dizer que um deles é o único” (1968: 71).

VI

Ora, quem é o protagonista dessa vida mista, indissociável dos outros, mas ao mes-
mo tempo singular? Quem é essa diferença que só se revela à medida que se descentra
como “generalidade carnal” (1969: 29)? Para Merleau-Ponty, esse protagonista não é
outro senão nossa percepção ambígua. E tudo estaria relativamente tranqüilo não fosse
a ousada manobra merleau-pontyana de vincular tal definição à noção de inconscien-
te (supostamente extraído da segunda tópica freudiana). Aparentemente, a descrição
dinâmica da intersubjetividade não repercutiu apenas no entendimento merleau-pon-
tyano sobre o sentido da experiência analítica. Ela também levou Merleau-Ponty – e
foi isso que gerou espécie – a admitir o conceito de inconsciente.
Não devemos pensar, entretanto, que Merleau-Ponty tivesse voltado atrás em suas
considerações críticas dos anos de 1940. Mesmo tendo ele identificado, no conceito
de inconsciente, aquilo que ele próprio denominava de percepção ambígua, não sig-
nificou que tivesse passado a admitir a dialética de sistemas (primário e secundário)
que antes recusara à luz dos comentários de Politzer a respeito de Freud. Ao contrário,

(o) inconsciente evoca, à primeira vista, o lugar de uma dinâmica das pulsões, da qual,
somente o resultado nos será dado. E, no entanto, o inconsciente não pode ser um pro-
cesso “em terceira pessoa”, já que é ele quem escolhe, o que de nós, será admitido na exis-
tência oficial, que evita as situações às quais nós resistimos e que não é portanto um não-
saber, mas antes um saber não reconhecido, informulado, que nós não queremos assu-
mir. Em uma linguagem aproximada, Freud está aqui a ponto de descobrir o que outros
melhor nomearam de percepção ambígua. É trabalhando nesse sentido que se encontrará
um estado civil para essa consciência que roça seus objetos, retira-os no momento em
que vai pô-los, tem-nos em conta como o cego aos obstáculos, mais que não os reconhe-

| 138
Merleau-Ponty em Salvador

ce, que não quer sabê-los, ignora-os enquanto os sabe, sabe-os enquanto os ignora e que
sustenta por baixo nossos atos e conhecimentos expressos (1960: 228)

Ora, no curso sobre a passividade, em 1954, Merleau-Ponty retorna à Interpretação


dos sonhos, para reconhecer ali algo que não necessariamente tem a ver com o freudis-
mo, mais, sim, com sua tese sobre as subjetividades descentradas que habitam a gene-
ralidade carnal. Diz Merleau-Ponty:

(h)á na interpretação dos sonhos toda uma descrição da consciência onírica – cons-
ciência que ignora o nome, que não diz sim a não ser tacitamente, produzindo diante
do analista as respostas que ele espera dela, incapaz de fala, de cálculo e de pensamen-
tos atuais, reduzida às elaborações antigas do sujeito, de forma que os sonhos não estão
circunscritos ao momento em que os sonhamos, trazendo em bloco ao nosso presente
fragmentos inteiros de nossos momentos prévios – e essas descrições querem dizer que o
inconsciente é consciência perceptiva, procedendo como ela por uma lógica de implicação
ou de promiscuidade, seguindo passo a passo um caminho onde não há mais rendição
total, visando os objetos e os seres através do negativo que ele detém, o que é suficiente
para que ele ordene seu passo sem se colocar em condições de nomeá-los “por seu nome”
(1968: 70-1).

Merleau-Ponty toma o cuidado de não confundir o inconsciente propriamente


dito com o inconsciente do recalque. Nesse sentido, evoca a distinção que o próprio
Freud fez entre esses dois domínios. Há, por um lado, o inconsciente do recalque, o
qual deve ser entendido como “uma formação secundária, contemporânea das for-
mas percepção-consciência”. Mas há também, “o inconsciente primordial, o deixar
ser, o sim inicial, a indivisão do sentir” (1968: 179). De sorte que, ao falar da indivi-
são do sentir, Merleau-Ponty refere-se mais à experiência de descentramento do que
a uma subjetividade (a um eu imaginário ou personalista). O inconsciente parece
aqui uma operação, um processo que não dispensa as ocorrências empíricas (ou o
imaginário social no qual encontramos consistência ôntica), mas que não se reduz a
elas, porquanto é o próprio movimento de diferenciação de uma em relação a outra,
a despossessão de nossa atualidade empírica frente a outra que nos advém, sem que
possamos reunir tudo sob o véu da identidade. Sensibilidade parece ser o nome dessa
operação de desapossamento, razão pela qual, diz Merleau-Ponty, o inconsciente é
“o sentir mesmo, já que o sentir não é a possessão intelectual ‘daquilo’ que é senti-
do, mas despossessão de nós mesmos em seu proveito, abertura àquilo que em nós é
necessário pensar para compreender” (1968: 178-98).
Se o inconsciente é ainda aqui algo pessoal, tal só pode designar a negatividade
que define minha posição de vidente num mundo do qual faço parte como visível

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Marcos José Muller-Granzotto

sem, entretanto, poder me ver como vidente. O significante inconsciente só pode


aqui designar a ambigüidade de minha inserção no mundo perceptivo e cultural: ao
mesmo tempo em que participo do mundo visível, sou dotado de uma invisibilidade
que me impede de ser coincidência comigo mesmo e com o mundo. Não obstante
minha generalidade sensível, subsiste uma impossibilidade de fato, uma alteridade
radical, que é a forma como Merleau-Ponty fala do inconsciente: invisibilidade de
mim e do próximo como videntes, invisibilidade do mundo como origem.
É preciso, entretanto, compreender bem esse possível correlativo merleau-pon-
tyano da noção freudiana de inconsciente, que é a invisibilidade. Não se trata de
algo que, em algum momento, foi visto e deixou de ser. Não se trata, portanto, de
uma invisibilidade objetiva, de uma visibilidade provisória ofuscada por outra ima-
gem visível. “Princípio: não considerar o invisível como outro visível “possível”, ou
um “possível visível para outro” (1964 a, p. 282). Conforme Merleau-Ponty (1964
a, p. 300):

Quando digo que todo visível é invisível, que a percepção é impercepção, que a cons-
ciência tem um “punctum caecum”, que ver é sempre ver mais do que se vê – é preciso
não compreender isso no sentido de contradição: - É preciso não imaginar que ajunto
ao visível perfeitamente definido como em-Si um não-visível (que seria apenas ausên-
cia objetiva) isto é, presença objetiva alhures, num alhures em si) – É preciso compre-
ender que é a visibilidade mesma quem comporta uma não-visibilidade.

As coisas visíveis, assim como minha própria existência visível estão impregnadas
de uma não-visibilidade que, a sua vez:

não ocorre porque eu seja espírito, uma ‘consciência’, uma espiritualidade positivas,
existência como consciência (isto é, como puro aparecer-se), mas porque sou aquele
que 1) tem um mundo visível, i. e., um corpo dimensional e participável, 2) i. e., um
corpo visível para si próprio, 3) e portanto, finalmente, uma presença a si que é ausên-
cia de si. (1964 a, p. 303)

Vivo, na minha intimidade, “uma transcendência sem máscara ôntica” (1964 a,


p. 282-3), um distanciamento sem medida objetiva, que faz de mim um estranho
para mim, uma ausência que conta. Tal ausência jamais se sobrepõe à visibilidade
de meu corpo, e vice-versa; o que me torna comparável ao mundo e aos outros ho-
mens, em quem sempre reencontro essa comunidade ambígua, sempre prometida,
mas jamais realizada objetivamente, entre o visível e o invisível. As coisas e muito
especialmente os outros homens exprimem essa mesma ambigüidade, de modo que

| 140
Merleau-Ponty em Salvador

eu me sinta, como eles, um ser ao mesmo tempo visível e invisível, o que, por fim,
impede qualquer forma de síntese ou identidade.

Não há coincidência entre o vidente e o visível. Mas um empresta do outro, toma


ou invade o outro, cruza-se com ele, está em quiasma com o outro. (1964 a, p. 314)

O que significa apenas dizer “que toda percepção é forrada por uma contra-
percepção (...), é ato de duas faces, não mais se sabe quem fala e quem escuta.”
(1964 a, p. 318). Eis por que razão, para Merleau-Ponty, o ser se comunica, pa-
radoxalmente, com o nada. “O sensível, o visível deve ser para mim a ocasião de
dizer o que é o nada – O nada não é nada mais (nem nada menos) que o invisí-
vel.” (1964 a, p. 311), essa forma de apresentação do inconsciente que não faz
concessões aos modelos objetivos, que está mais além deles, porquanto não toma
o negativo (ao qual Freud talvez chamasse de “pulsão de morte”) a partir de uma
fórmula natural ou antropológica.

VII

Para Merleau-Ponty, importa compreender a dinâmica intercorporal em que o in-


consciente, como invisível, se manifesta. E, ainda segundo ele, é deste ponto de vista
que as noções psicanalíticas devem ser lidas.
Em uma nota de dezembro de 1960, quando fala da “filosofia do freudismo”,
Merleau-Ponty faz a crítica da interpretação superficial do freudismo. Segundo essa
interpretação,

alguém é escultor porque é anal, porque as fezes já são greda, modelar, etc. Mas as fezes
não são “causa”: se o fossem, todos seriam escultores. As fezes só suscitam um caráter
(Abscheu) se o sujeito as vive de forma a aí encontrar uma dimensão do ser – Não se cuida
de renovar o empirismo (as fezes imprimindo certo caráter à criança). Trata-se de com-
preender que a relação com as fezes é, na criança, uma ontologia concreta. (1964 a: 323)

Essa ontologia não é uma abstração operada pela criança, mas a forma singular se-
gundo a qual ela experimenta a presença do negativo. Essa presença não é a expressão
de uma regra pré-determinada, tampouco a singularidade tem a ver com a prevalência
de um sujeito. Ao contrário, para Merleau-Ponty, a existência é o domínio das pos-

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Marcos José Muller-Granzotto

sibilidades, é o domínio da transitividade e transponibilidade sensório-motora que a


criança experimenta desde cedo.
Esse domínio, entretanto, também comporta zonas de impossibilidade, frente às
quais a criança experimenta uma espécie de estranhamento. A forma mais radical des-
sa impossibilidade é a experiência que a criança tem do “outro”. O outro introduz um
sistema de transponibilidade que a criança não pode realizar. E essa vivência da impos-
sibilidade é, simultaneamente, a vivência de uma singularidade, da sua singularidade.
A partir do outro, a criança conquista uma reflexividade primitiva, uma intimidade
que, de ora em diante, orientará sua inserção na existência, sua transponibilidade sen-
sório-motora, da qual a linguagem é uma forma tardia. Merleau-Ponty chama essa
transponibilidade, ao mesmo tempo genérica e singularizada, de carne. E é desde a
ótica da carnalidade que passará a ler Freud. Nesse sentido,

o ser anal não “explica” nada: porque, para sê-lo, é preciso ter a capacidade ontológica
(= capacidade de tomar um ser como representativo do Ser). Portanto, o que Freud quer
indicar não são cadeias de causalidade; é, a partir de um polimorfismo ou amorfismo que
é contato com o Ser de promiscuidade, de transitivismo, a fixação de um “caráter” por
investimento num Ente da abertura ao Ser, que, daqui em diante, se faz “através deste
Ente”. Portanto, a filosofia de Freud não é filosofia do corpo, mas carne.
O id, o inconsciente, - e o ego (correlativos) para serem compreendidos a partir da carne.
Toda a arquitetura das noções da psico-logia (percepção, idéia – afeição, prazer, desejo,
amor, Eros) tudo isso, toda esta quinquilharia se ilumina, de repente, quando se deixa de
pensar estes termos como “positivos” (“espiritual” mais ou menos espesso) para pensá-los
não como negativos ou negatividades (porque isso traz de volta as mesmas dificuldades),
mas como diferenciações de uma única e maciça adesão ao ser que é a carne (eventual-
mente como “rendas”) (1964 a: 324)

Nesse sentido, afirma Merleau-Ponty contra Sartre: é preciso ”(f )azer não uma
psicanálise existencial, mas uma psicanálise ontológica”. Diferentemente da primei-
ra – que procuraria dilucidar objetivamente o “saber de ser” por cujo meio o ho-
mem se experimentaria como consciência transparente para si mesmo -, a psicanálise
ontológica visaria tão somente à retomada associativa (literária ou pré-objetiva) do
campo de sobredeterminações, que outra coisa não é senão o complexo espontâneo
de relações de diferenciação, reversibilidade ou quiasma entre os dados da percepção
e minha participação no Ser de generalidade carnal. Eis em que sentido Merleau-
Ponty pode dizer que as “associações da psicanálise são, na realidade, “raios” de tem-
po e mundo”. Merleau-Ponty recorre aqui ao escrito “O homem dos lobos”, para
dizer que

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Merleau-Ponty em Salvador

a “lembrança” anteparo” de uma borboleta de listras amarelas (Freud, L’homme aux


loups, Paris, Puf, 1954, p. 394) revela à análise uma ligação com pêras amarelas que lem-
bram, em russo, Grucha, que é o nome de uma criada jovem. Aí não há três recordações:
a borboleta – a pêra – a criada (com o mesmo nome) associadas. Há certo jogo da bor-
boleta no “campo” colorido, certo Wesen (verbal) da borboleta e da pêra – que comunica
com o Wesen próprio da linguagem Grucha (em virtude da força da encarnação da lin-
guagem) – Há três Wesen ligados pelo seu centro, pertencendo ao mesmo sulco do Ser.
A análise mostra, além disso, que a criada abriu as pernas como a borboleta, abriu as asas.
Portanto, há “sobredeterminação” da associação – Talvez válida em geral: não há associa-
ção que funcione se não houver sobredeterminação, isto é, uma relação de relações, uma
coincidência que não pode ser fortuita, que não tem sentido ominal.” .(1964 a: 234)

Merleau-Ponty acredita que o método associativo é absolutamente tributário da


comunidade espontânea que as vivências (perceptivo-motoras e linguageiras) do falan-
te estabelecem entre si. Essa comunidade é, propriamente, o que Merleau-Ponty en-
tende por inconsciente. De onde se segue que “este inconsciente a ser procurado, não
é aquilo que estaria no fundo de nós mesmos, atrás das costas de nossa consciência,
mas diante de nós como articulações de nosso campo” (1964 a: 234), como articula-
ções de nossa Gestalt.
Mas é preciso ter cuidado aqui: “qualquer psicologia que reponha a Gestalt no qua-
dro do “conhecimento” ou da “consciência” erra o sentido da Gestalt”. (1964 a: 258-
9). Gestalt é a não coincidência do mundo consigo mesmo; um “princípio de distri-
buição, o pivô de um sistema de equivalências, (...) o Etwas de que os fenômenos par-
celares serão a manifestação”. Ela não é um chora platônico, um arcabouço de onde se
depreenderia o sentido, mas essa distância nunca vencida entre uma figura e outra. E
se a filosofia é, em algum sentido, comparável à psicanálise, é porque trabalha a partir
da Gestalt, assim como a psicanálise a partir do inconsciente, o que, enfim, Merleau-
Ponty acredita ser a mesma coisa. Eis por que razão, ao refletir sobre a tarefa de seu
pensar, especificamente sobre a descrição da natureza enquanto Carne, Merleau-Ponty
vai dizer que é preciso “(f)azer uma psicanálise da natureza: é a carne, a mãe” (1964
a: 321). Mesmo porque “(u)ma filosofia da carne é condição sem a qual a psicanálise
permanece antropologia” (1964 a: 321).

143 |
Marcos José Muller-Granzotto

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Merleau-Ponty em Salvador

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145 |
| 146
Ação e situação em Merleau-Ponty:
o sentido intersubjetivo da historicidade

Creusa Capalbo

Foi com o criticismo kantiano que se passou a afirmar que o homem é a origem
de sua própria ação, de sua práxis, e ela deixou de ser entendida, como era até então,
como consequência da teoria, quer de natureza racional quer de natureza religiosa. A
ação implica um poder de decisão e portanto de liberdade, que o sujeito desenvolve
num determinado meio circunstancial, isto é, numa dada situação. A ação humana
disporá, pois, de força para transformar seu meio ambiente, natural e social, histórico
e cultural. Entende-se assim que a ação é um comportamento corporal do homem,
que pressupõe a aquisição do sentido do corpo próprio e da consciência intencional
de si, conforme afirmaram Husserl e Merleau-Ponty. A ação é movida pela vontade e
pela determinação de ideais e de valores, que são dimensões éticas, proporcionando ao
homem a sua auto-afirmação e auto-conservação.
A ação não se dá de modo isolado, realizada por um sujeito, pois ela requer o rela-
cionamento com os outros que fazem parte da sua situação no seio do mundo. Assim,
ela se dará nas relações ditas humanas, pelo trabalho, pela comunicação, no lazer etc.
A ação se manifesta por atos intencionais de um sujeito que por eles se expressa, reflete
e se transforma.
Pela ação, dá-se a modificação do meio físico e humano, ou do próprio sujeito,
demonstrando-se, assim, que há uma intenção no projeto que lança a vontade huma-
na em direção ao futuro. Contemporaneamente, a ação humana deve levar em conta
o pensamento técnico que calcula, pela teoria dos jogos, a proteção que se deve dar às
incertezas do presente e do futuro. Aplica-se, assim, o cálculo das probabilidades aos
problemas de decisão tão necessária não só ao indivíduo em sua vida cotidiana, mas
ao poder de gestão, à política, à economia dentre outros. Decidir é escolher um ato
num conjunto, em função de um objetivo que se fixa. A escolha deve levar em conta
os critérios segundo os quais se avaliam as consequências ou os inconvenientes, os fa-
tores estranhos que interferem na decisão. O recolhimento do maior número possível
de informações sobre os dados aleatórios possíveis permitirá revelar as probabilidades
de ocorrências e as medidas das consequências das ações possíveis. É o que se chama,
desde Pascal, de “esperança matemática” para cada ação possível. Mas, se a esperança
matemática pode ser calculada por terceiros ou por adversários, adota-se, então, di-

147 |
Creusa Capalbo

versos pontos de vista, segundo o risco previsível, para que ele seja o menor possível.
Nesta perspectiva, não se fala mais das noções de bem ou de mal, mas sim da teoria
dos jogos onde se alcança o sucesso ou o fracasso.
Embora Merleau-Ponty não tenha falado explicitamente da teoria dos jogos e da
esperança matemática, ele as vivenciou em sua vida pessoal e social, pelo seu engaja-
mento político e pela sua ação, durante a ocupação nazista da França. Merleau-Ponty
pertenceu ao Partido Comunista Francês mas dele afastou-se por não concordar com
a ação dos comunistas na guerra da Argélia, com a defesa que faziam dos Goulags na
antiga União Soviética, com a ocupação russa da ex-Iugoslávia, dentre outras ações
persecutórias dos comunistas, tendo dito e publicado as suas razões, contrárias a tais
atitudes adotadas pelos comunistas, em jornais e revistas.
Conforme dissemos no início, a ação, como modo de realização humana, implica
na presença do outro face à minha existência e, por conseguinte, na situação em que
vivemos. Merleau-Ponty examina esta questão, a qual foi desenvolvida por Alphonse
De Waelhens em suas publicações sobre Merleau-Ponty. O que aqui temos é a inten-
ção de mostrar que não se pode falar de situação sem que falemos de uma ética de
situação. Por ética de situação entende-se a concepção filosófica cuja idéia central é a
de que não se pode determinar o que é moralmente bom ou mal, a partir de normas
gerais, abstratas ou absolutas, que seriam válidas para todos. A ética de situação ex-
clui de sua concepção que as regras gerais da ética tenham algum valor normativo.
O valor moral se apresenta em uma situação vivida determinada, à qual a pessoa
concreta, em sua existência, vê-se confrontada e toma suas decisões. Merleau-Ponty,
por exemplo, não era obrigado, por nenhuma regra moral abstrata, a se engajar con-
tra os nazistas na ocupação francesa. Foram, certamente, a sua situação existencial
de homem de esquerda, sua educação, sua atuação como professor, resultante dos
fatores de tempo e de lugar numa dada época histórica, que o levaram a tal decisão,
ao engajamento corpo-alma, a sua corporeidade e a tudo que ela se apegou no seu
modo de ser em situação no mundo, que o levaram às suas decisões em prol da de-
fesa da liberdade humana.
A liberdade situada indica que o homem é um ser no mundo aqui e agora. Li-
berdade, mundo, ação envolvendo o outro, se entrecruzam nos laços da existência
humana, situada à medida que elas são vividas.
Podemos dizer que os elementos da situação são de natureza geofísica (clima,
estações do ano, dia e noite etc); de natureza biopsicossomática, isto é, sexo, idade,
temperamento, herança genética; de natureza cultural, tal como a educação, a re-
ligião, a língua que se fala e todos os demais elementos objetivos da cultura, como

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Merleau-Ponty em Salvador

a arte, a culinária, a habitação, o vestuário etc; de natureza social, como a família


em que vivemos, o povo, a nação, a classe social a que pertencemos etc; de natureza
histórica, quer seja ela da historicidade pessoal de cada um, quer seja da história se-
dimentada que herdamos no mundo vivido; e, finalmente, de natureza moral, como
os valores que nós reconhecemos como tais para a nossa vida e para a relação com os
outros, que são por nós reconhecidos como pertencentes à nossa própria consciência
e não por imposição de qualquer espécie.
Merleau-Ponty e alguns de seus comentadores chamam a tais elementos, consti-
tutivos da situação, de facticidade. Todo homem está situado e não é ele quem de-
termina sua situação. É face ao mundo que aí está que o homem tomará posição em
consonância com a consciência de si em sua valoração ética.
Merleau-Ponty dá como exemplo de facticidade, dentre outros, a linguagem. Diz
ele que a língua fala em nós antes que a falemos, ou seja, nascemos com um aparelho
fonador apto a falar qualquer língua, mas falamos o português por causa do contexto
sócio-cultural-histórico que nos cerca desde que nascemos – o Brasil, onde se fala a
língua portuguesa em seus diversos sotaques e sonoridades; a língua portuguesa fa-
lou em nós, pela nossa vivência corporal, antes mesmo que a aprendêssemos a falar.
A situação está constantemente submetida a variações, pois a natureza do homem
não é imóvel, mas sim uma natureza em devenir na história, pois o desenvolvimento
e a mudança fazem parte do ser humano.
O homem em situação se vê interpelado e interpela o outro, daí emergindo os va-
lores da pessoa como o respeito, a dignidade, o amor, a amizade, ou seja, aquilo que
na facticidade se apresenta como uma ética de situação concreta, na vivência do ser
no mundo; onde elas são experimentadas na confrontação pessoal com a situação. É
por esta razão que uma ética de situação, a partir de alguns pensamentos de Merle-
au-Ponty, embora ele não tenha feito uma obra ou um artigo completo sobre ética,
não permite que se acatem regras éticas imutáveis, absolutas, mas sim condicionadas
historicamente e modificando-se na historicidade em devenir pessoal ou coletivo.
A moral não pode ser imposta ao homem mas sim proposta e lhe fazendo apelo,
como se fosse um convite de adesão ao qual o homem livremente responderá em
sua facticidade.
É engano pensar que a ética de situação nega qualquer valor ou norma moral
como se a sua escolha fosse arbitrária, caindo-se assim no relativismo, quer da sua
moral pessoal e individual, quer histórico-social concreta. Para a moral de situação
uma ação humana é boa ou má de acordo com a consciência que forma livremente
os seus juízos sobre tais valores. A consciência moral descobre as normas e os valores

149 |
Creusa Capalbo

na sua vivência concreta, pois ela é quem constitui o valor moral em consonância
com os outros numa dada sociedade aqui e agora.
De um modo geral, esta concepção repousa sobre a idéia de que o homem, que é
um ser de liberdade, tem o poder de se determinar a si mesmo à luz dos valores que
sua consciência lhe faz reconhecer no contato existencial concreto de uma situação,
esta sim, imposta, pois ele não a criou. Neste contato inter-subjetivo, o homem não é
passivamente receptivo de valores, mas sim fonte de sentido e de valor, que ele escolhe
livremente.
É preciso esclarecer o que estamos chamando aqui de intersubjetividade, e faremos
isto seguindo os ensinamentos que Merleau-Ponty nos legou. A intersubjetividade
nada tem a ver com a idéia de “reciprocidade das consciências”. Na sua obra O visível e
o invisível, inacabada devido a sua morte, Merleau-Ponty nos ensina que a pluralidade
dos sujeitos é intersubjetividade, porque ela repousa sobre a coexistência, a presença
com, o pertencimento de um mundo comum. E “o outro” é para mim o vidente visível
em carne e osso e ele me constitui em vidente visível.
Para Merleau-Ponty, o sujeito é o portador e o motor da fenomenologia da história,
“é o homem engajado num certo modo de apropriação da natureza onde se desenham
os modos de suas relações com o outro, é a intersubjetividade humana concreta, a co-
munidade sucessiva e a simultaneidade das existências, que estão em busca de se reali-
zar num tipo de propriedade que elas sofrem e que elas transformam, cada uma criada
por outro e o criando” (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 228).
Vê-se que para Merleau-Ponty o sujeito que eu sou e o outro são dois momentos
de um só fenômeno. Esta tensão é o que permite o movimento de transcendência da
existência; o seu inacabamento é tão necessário quanto o da tensão. Tudo quanto o
homem é, ele o é à base de uma situação de fato que ele pode retomar, transformar e
ultrapassar. Facticidade e transcendência são, portanto, dois momentos correlativos da
existência (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 197).
Na Fenomenologia da percepção, a sua preocupação principal foi a de descrever a
estrutura humana através das análises feitas sobre a percepção, a corporeidade, a sexu-
alidade, a linguagem, a intersubjetividade, a liberdade, a história e a temporalidade.
Posteriormente, vê-se que há uma modificação, pois o seu interesse, em Signos e em
O visível e o invisível, passa a ser o de indagar como o homem é capaz de constituir
sentido no mundo. Ele fará a passagem da fenomenologia do vivido (Erlebnis), que
permanecera presa à filosofia da consciência, para a ontologia do Ser Bruto, para uma
filosofia do Ser Selvagem, onde a noção de instituição originária (Urstiftung) é funda-
mental; pois esta noção será a base do que ele denominará “Historicidade Vertical”.

| 150
Merleau-Ponty em Salvador

A historicidade será para Merleau-Ponty uma força instituinte, como uma força
criadora. O ser do homem é o ser que ao vir à existência terá o poder de instituir-se por
si mesmo, e no qual liberdade e necessidade, atividade e passividade estão entrecruza-
das na formação do ser que se dá a si mesmo o seu poder. Já na história concreta, a his-
toricidade se apresenta como uma obra a ser feita em coexistência social, instituindo a
cultura, a sociedade, a arte, a linguagem etc. Merleau-Ponty chama a esta historicidade
de poemática para sublinhar o papel da criação em história, comparável à produção
poética. Nesta há um ritmo e igualmente o haverá na história. O primeiro ritmo é o
do entrelaçamento e do entrecruzamento dos momentos antecedentes, presentes e se-
guintes, carregando consigo um ou vários sentidos que se superpõem prolongando-se.
O segundo ritmo é o “hiatus” pelo qual se exprime ao mesmo tempo a continuidade e
a distância que separam duas coisas que se afastam.
Merleau-Ponty, ao exercer a sua autocrítica de que estivera preso à concepção de
uma consciência transparente, caminhará, em sua pesquisa, em direção a uma ontolo-
gia do sensível, onde o ser é qualificado como amorfo ou polimorfo, e onde o elemen-
to “carne” se apresentará como força instituinte na Carne do Mundo, no Ser Visível,
na Carne do Homem e na Carne da História Concreta. Todos os sensíveis se encon-
trarão reunidos no horizonte total do Ser Bruto ou do Ser Selvagem, dito polimorfo. É
deste Ser Bruto que são pré-erguidas todas as dimensões e, para explicitar este poder da
pregnância, que faz brotar uma forma, é que Merleau-Ponty se dedicará à pesquisa da
Historicidade Vertical. Ele dirá que o que torna possível esta Verticalidade que permite
a emergência do existir é o Invisível, porque, diz-nos ele: “o visível é pregnante de invi-
sível” (DE WAELHENS, A., 1967, p. 247), e esta pregnância é poder de fecundação
e possibilidade objetiva de fazer brotar, de criar, de fazer nascer, e é neste sentido que
se deve entender a “instituição originária”, o princípio em virtude do qual há o “surgir
imotivado”, há instituição e não subsunção (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 281). É
graças à Historicidade Vertical que o Ser se põe na postura de estar de pé, a colocação
em posição do “há o Ser”.
Esta análise do “ser-no-mundo ou da intra-ontologia”, como prefere dizer Merle-
au-Ponty, desenvolve-se para a explicitação do elemento carne, permitindo-nos com-
preender o sentido como o invisível que só aparece no visível da carne (Ibid, p. 262-
264; CAPALBO, 2004, p. 103-121).
O homem e o mundo estão entrelaçados no entrelaçamento intercorporal com os
outros. Esta noção de Carne não se confunde com a matéria ou com a substância. Ela
é “um elemento, no sentido em que os gregos empregaram este conceito para falar da
água, do ar, da terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral a meio caminho

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Creusa Capalbo

do indivíduo espaço-temporal e da idéia (...) A Carne neste sentido é elemento do Ser.


E Ser aqui é dito Ser Bruto, Selvagem” (Ibid, p. 203-235).
J. Canguilhem comenta que o termo “selvagem” usado por Merleau-Ponty nos
remete à nostalgia da autenticidade expressa pelo desejo do retorno ao arcaísmo e ao
naturalismo da vida ou das comunidades primitivas. Talvez ele quisesse significar com
este termo o retorno à aurora da filosofia como fonte inspiradora deste contato inocen-
te e espantoso que nos abre as portas para o maravilhamento do que há, do que existe,
do que já está aí, do Ser que se faz Visível, que possibilita a instituição e a emergência
dos entes, e que nos incita a indagar “por que há o ser e não antes o Nada”?
O retorno ao Ser Bruto ou Selvagem é a maneira que Merleau-Ponty encontra para
abordar a questão metafísica das relações entre o Um e o Múltiplo, o Mesmo e o Ou-
tro. Tais relações se situam no mundo entendido como campo ou horizonte sempre
aberto. Nosso pertencimento ao mesmo mundo situa-nos na comunidade do Ser; nos-
so pertencimento à mesma língua comum situa-nos na comunidade do fazer, da ação
(MERLEAU-PONTY, 1969, p. 64, 173). É do Ser Bruto, e do seu elemento que é a
carne, anônima, que advém tudo o que é. “É a vinda da diferença sob o fundo da se-
melhança” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 270). O elemento Carne é o mesmo para
o homem e para o mundo, mas a carne enquanto diferenciação que faz advir o ho-
mem leva-o ao advir do humano no homem, do ser que busca tornar-se um eu (MER-
LEAU-PONTY, 1960, p. 161; 1968, p. 54). Assim entende-se que o homem é o ser
que busca realizar o seu ser, sendo este o seu desejo fundamental. O poder do desejo
de ultrapassagem em direção à realização de si mesmo, de se tornar isto que ele ainda
não é, é uma operação silenciosa, muda, que se faz com o Ser Selvagem, instituindo,
nesta relação a linguagem e o pensamento (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 189-191).
O desejo é fundamentalmente o desejo de instituição de meu próprio ser e se torna,
como diz J. Ladrière, afrontamento e necessidade de reconhecimento pelo outro; ele é
carência do outro bem como carência do que ele não é. Esta carência, presença vazia,
precisa ser preenchida pela presença do outro e pelo tornar-se si mesmo (LADRIÈRE,
J., 1973, p. 90-104).
A historicidade começa com o homem em situação nas suas relações intersubjeti-
vas. Mas, além do homem existe o mundo. Por isto para Merleau-Ponty o homem não
pode ser a medida do Ser. A “meta-física”, diz ele, se encontra no homem e é necessá-
rio encontrar o Ser que é a medida do homem, caso contrário a filosofia seria apenas
uma antropologia e não a interrogação do Ser primordial. Daí a tarefa da filosofia de
Merleau-Ponty que busca recuperar o Ser Bruto como força operante em seu seio; a
história poemática é a expressão da vida produtiva do Ser Bruto, pois as obras que ela

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Merleau-Ponty em Salvador

cria são diversos modos de expressão que ela adota. Neste sentido, ela é Historicidade
instituinte, Criadora e assim podemos compreender que cada um de nós se encontra
no interlúdio da Poemática do Ser Bruto. Merleau-Ponty quer, assim, realizar uma
ontologia do Sensível e a compreensão do Ser como Poemática do Ser Selvagem, His-
toricidade originária, Vertical. Ela é produção ativa que consiste em fazer vir o Ser em
seu aparecer, poder de tornar algo visível. Pensa-se assim o Ser no interior dos entes, o
Ser se faz presente através do mundo.
Vimos, de modo resumido, que Merleau-Ponty distingue a historicidade do Ser
humano da historicidade na história concreta e que, aprofundando o tema da histori-
cidade ele a qualifica de Poemática, chegando, então a Historicidade Vertical ou do Ser
Bruto. A historicidade aparece como força criadora, como um poder formador que,
para se manter deve institucionalizar-se. Assim a historicidade se define, em sentido
amplo, como ação de instituir ou como poder formador. Merleau-Ponty só dá este
salto porque abandona a filosofia da consciência que a entendia como transparente
e translúcida, tal como se apresenta na Fenomenologia da percepção, para investigar a
ontologia do Sensível ou a Filosofia do Ser em seu entrelaçamento de Visível e Invi-
sível. Mas, na verdade, Merleau-Ponty não abandona a sua concepção de Percepção:
ela é uma estrutura fundamental que estará presente na sua obra inacabada O visível
e o invisível.
A história, a cultura, a sociedade, a linguagem fazem parte da situação em que o
homem se encontra na sua existência, e não pode ser considerado à parte de uma tradi-
ção que faz dele o que ele é. Mas, por outro lado, esta tradição não sufoca a liberdade;
ao contrário, é por ela que a liberdade se efetua pois o homem, pela sua ação com os
outros, pode transformá-la. Assim, a instituição se apresenta como uma estrutura du-
rável mas também de transformação, ela é conservação e ultrapassagem.
O Sujeito nasce na e pela instituição e é por ela e nela que ele se reconhecerá a si
mesmo graças a mediação do outro, dos laços da intersubjetividade. A tarefa de rea-
lizar-se a si mesmo não se faz isoladamente ou fora da polis. Merleau-Ponty compara
esta tarefa com a obra de arte que se faz sem ruído, em silêncio, e no estilo próprio de
seu autor.
A reflexão sobre o Outro, a partir de Husserl, se deu em três direções, e será ne-
cessário falarmos brevemente sobre este assunto para compreendermos a posição que
tomará Merleau-Ponty.
A primeira direção enfatizou a experiência do outro enquanto tal para mostrar que
o outro não pode se reduzir a um objeto constituído pela consciência, pois perdería-
mos a “volta às coisas nelas mesmas”, ou seja, o Sujeito como tal que se constitui um

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Creusa Capalbo

si-mesmo. Merleau-Ponty, em parte, acata esta direção sem, no entanto, deixar de en-
fatizar que para a ciência a objetivação do Sujeito se faz necessária.
A segunda direção se debruça sobre o conhecimento do outro, afirmando que tal
se dá pelo fato de que a sua maneira de ser original consiste em ser expressão. Assim o
outro é uma realidade significante e o conhecimento que eu tenho dele é o sentido que
eu depreendo de sua fala, de seus gestos, de seu comportamento, como preferirá dizer
Merleau-Ponty. Para ele, os gestos e o corpo próprio se expressam numa linguagem
silenciosa e muda que será elevada à segunda potência da linguagem expressa através
da fala enunciada.
A terceira direção enfatiza que o outro só é alcançável na comunicação intersubje-
tiva que se faz, dentre outras maneiras, pela linguagem expressa, compreendida e in-
terpretada em relação ao seu sentido. Para Merleau-Ponty, no entanto, a emergência
do sentido não deixa de estar unida em relação tensional, com o não-sentido, estando
pois, fala e comunicação numa unidade tensional, expressando, nesta tensão, as rela-
ções entre cultura, historicidade e corpo próprio.
O poder de tornar-se si-mesmo requer o outro; este e o caminho comum a todos,
é uma obra comum a todos, instituinte de sociabilidade e de intersubjetividade. Dá-se
um verdadeiro movimento circular de um para outro, do Mesmo para o Outro, sem
que este movimento seja de repetição, podendo ele ser de unificação e de separação.
Os modos de vida do ser humano se realizam, a partir daí, quer como verdadeira união
no amor autêntico, fonte viva da qual nasce toda vida humana, como dom de si ou
partilha, quer como separação, dilaceração. Na realidade, estes dois processos estão
entrelaçados pois se trata de um só e mesmo movimento circular.
A reflexão sobre o mundo da vida não nos dá, segundo Merleau-Ponty, um pen-
samento claro como desejava Husserl. A reflexão permite o permanecer próximo e
afastado, um “ter em mãos” sob a modalidade do horizonte que sempre se afasta. Ela
nos restitui a “cifra ontológica que a marca interiormente, a saber o ser longínquo”
(MERLEAU-PONTY, 1960, p. 198).
A historicidade pessoal não é a história de uma vida curvada sobre si mesma. É an-
tes a história de uma vida no seio de uma dada comunidade e do mundo.
Concluindo, podemos dizer com Merleau-Ponty que entre a minha vida pessoal
e as situações dadas, há sempre a espessura de uma aquisição originária (MERLEAU-
PONTY, 1945, p. 250), uma espessura histórica, uma modalidade geral de existência
e de anonimato (Ibid, 249-250). Este anonimato é um universal impessoal que Mer-
leau-Ponty chama de “eu natural, pré-pessoal” e mais tarde de “carne”. A historicidade
humana carrega consigo o pessoal e o anônimo que se entrecruzam no desenrolar da

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Merleau-Ponty em Salvador

vida. É por isto que se entende que a estrutura do sujeito concreto comporta a ge-
neralidade e a individualidade entrelaçadas. A primeira experiência de nosso ser no
mundo é a coexistência anônima, a indistinção de si e dos outros e não a consciência
de si. Esta emerge como experiência segunda. É por querer aprofundar esta questão
que Merleau-Ponty se detém na análise da região selvagem e polimorfa do Ser Bruto,
a generalidade universal e anônima do elemento carne que, por ser historicidade pri-
mordial “se recoloca no ‘há’ preliminar, sobre o solo do mundo sensível e do mundo
trabalhado, tais como eles são em nossa vida, para nosso corpo (...), para os corpos
associados ou os outros (...) que me frequentam, com os quais ando junto, com quem
tenho familiaridade por conviver com um só Ser atual, presente (...)” (MERLEAU-
PONTY, 1961, p. 194-195).

Referências bibliográficas

CAPALBO, Creusa. A filosofia de Maurice Merleau-Ponty. Historicidade e Ontologia.


Londrina: Humanidades, 2004.
DE WAELHENS, A. Une philosophie de l’ambiguité. L’existentialisme de Maurice Merleau-
Ponty. 2. ed. Louvain: Nauwelaerts, 1967.
LADRIÈRE, Jean. Vie sociale et destinée. Gemboux (Belgique): Duculot, 1973.
MERLEAU-PONTY, Maurice. L’oeil et l’esprit .In Les Temps Modernes, 1961.
______. L’union de l’âme et du corps chez Malebranche, Biran et Bergson. Paris: J. Vrin, 1968.
______. La prose du monde. Paris: Gallimard, 1969.
______. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964.
______. Phénoménolgie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.
______. Sens et non-sens. 5. ed. Paris: Nagel, 1966.
______. Signes. Paris: Gallimard, 1960.

155 |
3. Merleau-Ponty e as artes
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Forma e instituição: experiência estética e
sensibilidade histórica em Merleau-Ponty

Monclar Valverde

“Da mais simples percepção de movimento à experiência da pintura é sempre


o mesmo paradoxo de uma força legível numa forma, de um vestígio ou de
uma assinatura do tempo no espaço” (Maurice Merleau-Ponty).

1. Arte e experiência estética em Merleau-Ponty

Merleau-Ponty abordou temas muito diversos e trouxe contribuições essenciais a


vários deles. Contudo, embora em seus textos, cursos e notas de trabalho, existam
inúmeras referências aos temas tradicionais da filosofia, muitos deles foram desenvol-
vidos fora da rubrica correspondente. Neste sentido, assim como não encontramos
uma exposição sobre ética em sua obra, devemos admitir também que não há uma
estética merleau-pontiana, enquanto formulação sistemática, explicitada em um livro,
um curso ou um ensaio. Mas devemos reconhecer, igualmente, que se trata de uma
questão que acompanha todo o percurso do seu pensamento, independentemente da
ocorrência daquela palavra – seja nas reflexões sobre a percepção e a expressão, seja nas
discussões sobre a força instituinte da linguagem, através de modulações estilísticas do
discurso sedimentado, seja nas investigações sobre a visibilidade e o “lógos estético”.
Apesar disso, curiosamente, seus leitores tendem a considerar como “textos estéticos”
apenas os que falam de arte (da pintura, especialmente, mas também da literatura e,
em menor proporção, da música).
Ronald Bonan, em sua introdução à estética de Merleau-Ponty, reconhece a tensão
entre esses dois aspectos (o estético e o artístico) e procura sugestivamente reconciliá-
los, tratando-os como figura e fundo de uma “Gestalt intelectual”: sob o fundo de
um pensamento que é estético, de parte a parte, uma vez que “o corpo e seu poder
de sentir, de ser afetado pelo sensível, está sempre no centro de toda problemática”,
destaca-se um pensamento sobre a arte e seus desafios, a partir da reflexão sobre “os
procedimentos do artista e do contemplador”. Tomando por fundo, como diz ele, “a
idéia de estética em sentido amplo, como poder de perceber”, a figura seria “a idéia de

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Monclar Valverde

estética em sentido restrito, como conjunto de reflexões sobre a criação e a recepção de


obras de arte” (BONAN, 1997, p. 2). Com este artifício, a tensão que há entre os dois
aspectos da questão é minimizada e se adia uma decisão sobre o caráter desta relação,
uma vez que a invocação da psicologia da forma permite supor a possibilidade de uma
hierarquia intercambiável entre os dois termos que aparecem como “figura” e “fundo”,
em função da mudança da perspectiva que se adote na leitura.
Todavia, esta dificuldade em circunscrever a reflexão estética na obra de Merleau-
Ponty pode ser estendida a quase toda a filosofia contemporânea, em função mesmo
de uma confusão generalizada entre o “estético” e o “artístico” e em função da própria
história da noção de sensibilidade, que oscila entre uma acepção meramente sensorial
e outra, mais abrangente, envolvendo sensações, sentidos e sentimentos (cf. AGAM-
BEN e FERRUCI). Para ultrapassarmos o dilema, será necessário contrariar a opi-
nião dominante entre os leitores de Merleau-Ponty e admitir que, também no seu
caso, as reflexões sobre a criação artística devem estar subordinadas à compreensão da
experiência sensível – efetiva base da reflexão estética (cf. DUFRENNE, DEWEY e
PAREYSON)1*.

2. Teoria estética versus filosofia da arte

Como é bem sabido, apesar de derivar de uma palavra grega (aísthesis – que toma-
mos aqui como equivalente a sensibilidade), o termo “estética” surgiu apenas na Alema-
nha do século XVIII, quando Baumgarten tentou dar um tratamento filosófico à di-
mensão expressiva, conferindo dignidade intelectual àquilo que era então considerado
1 * Não seria o caso de desenvolver esses temas, até porque já o fizemos em outras ocasiões (cf. “A dimensão estética da
experiência”, “Os limites do jogo poético” e “Experiência estética e recepção”. In VALVERDE, 2007, p. 102-115, p.
119-133 e p. 134-148, respectivamente). O que pretendemos assinalar aqui é que a reflexão estética contemporânea
a Merleau-Ponty rejeita simultaneamente a simples oposição e a simples identificação entre o artístico e o estético. Ao
mesmo tempo, ela tende a vincular a experiência estética à experiência ordinária, mesmo que para desconstruí-la. Du-
frenne, por exemplo, mostra que a sensibilidade é o elo entre a técnica do artista e a expectativa do público, pois é o
que permite ao primeiro decidir se a obra está pronta e ao segundo julgar se ela é bela (1981, p. 91). Dewey mostra a
passividade do criador (que deve modular cada gesto a partir do efeito produzido pelos gestos anteriores) e a atividade
do espectador, tratando o estético como “o desenvolvimento clarificado e intensificado de traços que pertencem a toda
experiência normalmente completa” (1974, 255). Pareyson desenvolve uma concepção performativa da recepção, mos-
trando que o espectador também vive uma experiência, quando “executa” a obra através da leitura, da interpretação e
da avaliação. Ao mesmo tempo, aproxima autor e público pela dialética entre “forma formada” e “forma formante”,
procurando mostrar que a criação seria o percurso entre esta e aquela e a recepção seria o caminho inverso (1989, p.
142). De um modo geral, afirma-se a relação entre o arístico e o estético, mas se reconhece a subordinação do plano
poético (da produção) ao campo estético (da recepção).

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Merleau-Ponty em Salvador

uma fonte de enganos. Mas, ao mesmo tempo em que destacou o papel da sensibilida-
de, ele a subordinou, de modo quase automático, às faculdades cognitivas, justificando
a abordagem dessa forma de “cognição inferior” pelo fato de ela constituir uma espécie
de preâmbulo à cognição propriamente dita, isto é, a intelecção.
O Kant da Crítica da razão pura permanece nesse registro. Em sua “estética trans-
cendental”, ele define a sensibilidade como a “capacidade de receber representações”
e identifica as noções de tempo e espaço como suas condições a priori. Mas reserva ao
entendimento o poder de processar essas representações e traduzi-las em proposições
dotadas de sentido. Desse modo, ele circunscreve a dimensão estética ao âmbito da
percepção, a qual, por sua vez, é reduzida à condição de mera passividade estesiológica.
A beleza e os juízos de valor só virão a ser tematizados mais tarde, na Crítica à faculdade
do Juízo, através da problemática do gosto, que aparece e é desenvolvida no âmbito das
analíticas do belo e do sublime. Neste novo contexto, aquela atribuição de passividade
traduz-se no reconhecimento de uma condição de passibilidade, pela qual um sujeito
é passível de ser afetado, isto é, de ser tocado em seu afeto. E sua atividade criadora é
vista não como pura iniciativa, mas como reação e “resposta” à doação sensível.
Contudo, entre Kant e Hegel, a estética do gênio e a estética do gosto, que eram
solidárias na reflexão kantiana, serão separadas, acentuando-se o papel da criação e
reduzindo-se a teoria estética a uma filosofia da arte. O primeiro efeito desse processo
será a entronização da racionalidade como critério último para a descrição da própria
experiência da criação artística, a qual, por sua vez, mirando-se nesta imagem, virá a
afastar-se ainda mais da experiência sensível, até atingir, no século XX a bizarra condi-
ção de “arte conceitual”. Ao mesmo tempo, a reflexão tida como “estética” abandonou
o âmbito da experiência natural e da recepção espontânea dos produtos culturais para
fixar-se, inicialmente, na recepção das obras de arte, mais tarde, nas obras, enquanto
tais, e, finalmente, no artista e em seu projeto poético. Desse modo, destacando o âm-
bito da produção, essa teoria acabou deixando de lado a fruição, em seu caráter senso-
rial, afetivo e prático, para focalizar apenas a “criação”, concebida como o ato ilumina-
do de um pequeno demiurgo, capaz de controlar os efeitos provocados por sua obra.
Em todo esse processo, a experiência da beleza foi confundida com a descrição e a
análise dos mecanismos acionados por aquelas obras intencionalmente voltadas à pro-
dução de efeitos estéticos, confundindo-se a habilidade de fazer arte com a capacida-
de para experimentá-la. Até então, esta aptidão receptiva fora reduzida à experiência
sensível e concebida como mera apreensão de “dados”, sendo, portanto, gradualmente
desqualificada, como uma forma extrema de contemplação e passividade, em contraste
com a atividade racional do “autor”. Por fim, a abordagem do gosto como uma dispo-

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Monclar Valverde

sição meramente ideológica, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século
XX, concluiu o processo de esvaziamento da discussão estética, vista, a partir de então,
como algo do passado.

3. Merleau-Ponty e a estética kantiana

É verdade que Merleau-Ponty fala do gosto apenas episodicamente e tende a abor-


dar o sentimento a partir de sua expressão, como modulação perceptível na atitude
corporal. Em alguns de seus textos (“A dúvida de Cézanne” e partes de A prosa do
mundo), ele próprio parece ceder à romântica tentação de fazer a apologia da criação e
do criador, como o jovem Nietzsche, em sua “metafísica de artista”. Mas sabemos que,
para ele, a capacidade expressiva de um sujeito só é adquirida e desenvolvida através da
comunicação e representa uma face das estruturas de compreensão que o vinculam ao
mundo, através da experiência. Além disso, como aquela recorrente modulação da ex-
pressão, que caracteriza o estilo como “deformação coerente”, opera a partir de uma
gestualidade anônima, que remete à condição intercorpórea da existência, reforça-se
a idéia de que a experiência sensível é a base de toda experiência estética e a condição
da própria experiência artística.
Isto nos faz pensar na primeira parte da Crítica da faculdade do Juízo, na qual o
sensus communis que sustenta o juízo de gosto é, por sua vez, remetido a uma comu-
nicabilidade originária dos sentimentos. Ao caracterizar o gosto como “a faculdade
de ajuizar a priori a comunicabilidade dos sentimentos que são ligados a uma re-
presentação dada (sem a mediação de um conceito)” (s/d, § 40, p. 198), Kant nos
remete à condição originária da comunicação, enquanto compartilhamento de um
mundo e comunhão do sentimento de existência, do mesmo modo como Merleau-
Ponty nos remete a uma partilha do mundo sensível, como ponto de partida da ex-
periência e como idéia-mestra de sua própria filosofia.
Por outro lado, as reflexões de Merleau-Ponty sobre o “ser de cultura”, apesar de
relativamente tardias, voltam-se para a dimensão prática das condutas, destacando
o caráter simbólico, político e ético dos comportamentos mais elementares, sem
desconsiderar o caráter essencialmente corporal das instituições e do próprio pensa-
mento. No mesmo sentido, suas reflexões sobre o corpo como ser sexuado, levam-no
a situar a percepção e os mecanismos psicológicos em relação ao âmbito afetivo. E
mais tarde, quando começa a vislumbrar sua ontologia vertical, Merleau-Ponty con-
ceberá a experiência como “vibração da carne”. Contudo, se inicialmente ele define

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Merleau-Ponty em Salvador

a carne a partir da “carne do corpo”, da “carne das coisas” ou da “carne do mundo”,


sua determinação última parece ser a de carne da história, âmbito em que as formas
se instituem e o próprio sujeito é plasmado, em meio a suas experiências (cf. o “pre-
fácio” de Signos).
Ao mesmo tempo, este caminho através da sensibilidade parece justificar a idéia
de que a própria ética tem uma base estética, pois Merleau-Ponty aparentemente
herda de Kant a idéia de que, se o juízo de gosto conta com a aquiescência dos ou-
tros, é porque aquele que o emite julga colocando-se no lugar de qualquer outro
membro de sua comunidade. Isto remeteria cada julgamento individual a um tipo
de intersubjetividade primária, anterior ao sujeito jurídico ou mesmo psicológico,
revelando, por trás do gosto e do próprio sensus communis, um sensus communalis,
isto é, um sentido primário de comunidade, “um sentimento de estar-com-os-outros
(Mitmenschein)” (PARRET, 1997, p. 178).
Contudo, para o próprio Kant, não se trata de conceber o gosto como um “senso
comum” ou um “consenso”, no sentido iluminista de uma convergência de idéias
ou opiniões, estabelecida a partir da análise crítica e da comparação, mas como um
sentido comum, um outro órgão dos sentidos, dessa vez, coletivo e relacionado aos
sentimentos, antes que às sensações. Do mesmo modo, não se trata, como pensou
Hume (1997), de apontar os padrões a que o gosto deve se submeter em seu exercí-
cio, mas de conceber o próprio gosto como um padrão que orienta, implicitamente,
os julgamentos estéticos particulares. Por essa razão, quando procuramos compreen-
der o lugar da sensibilidade no pensamento de Merleau-Ponty, neste sentido estético
de um modo de sentir em comum, somos conduzidos a Aristóteles e a Kant, antes
que a Husserl e Heidegger, porque ele leva adiante, relacionando-as, as intuições de
cada um daqueles pensadores, com relação a uma base comum para os sentidos e os
sentimentos (a aísthesis koiné e o sensus communis), aproximando o sentido aristoté-
lico da sinestesia e o sentido kantiano da comunidade.
Enquanto gesto, a expressão (bem como a própria percepção – que ele encara
como expressão do movimento) ultrapassa a esfera do cogito e volta-se para fora,
em direção a um “objeto” ou a um outro “sujeito”, situado num mundo que é com-
partilhado pelos interlocutores e lhes é dado, simultaneamente. Mas, se não se trata
apenas de uma “imagem” formada por impressões, esse mundo tampouco se reduz
a uma simples evidência “material”. Ele se apresenta, ao mesmo tempo, como um
meio físico, lingüístico e histórico. E aqui reconhecemos a dimensão propriamente
estética desta sensibilidade, que não se pode mais conceber como mera captação de
estímulos físico-químicos. Desse modo, o tema da experiência estética leva Merleau-

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Monclar Valverde

Ponty a situar a sensibilidade para além do registro estritamente cognitivo, assim


como Kant, ao reconhecer, no gozo da beleza, o jogo entre as faculdades cognitivas,
ultrapassa implicitamente os limites da própria noção de “faculdade”, que ele mes-
mo havia estabelecido anteriormente.

4. A “crítica da razão sensível”

Para Merleau-Ponty, era evidente que este reconhecimento da amplitude e da re-


levância da experiência sensível não poderia ter um significado apenas local e deveria
produzir repercussões decisivas em todo o edifício da reflexão filosófica. Podemos
imaginar o quanto a história do criticismo e da própria filosofia poderiam ter sido
diferentes, se Kant houvesse tido a oportunidade de rever suas duas primeiras Críti-
cas, a partir do que pensou na terceira… De certo modo, embora implicitamente, e
enfatizando um outro aspecto da sensibilidade (em vez do gosto, a percepção), esta
possibilidade de fundar a filosofia num “lógos estético” corresponde àquilo que Mer-
leau-Ponty assumiu como projeto, embora em resposta ao que considerava ser uma
exigência de sua própria época à filosofia.
Num de seus cursos no Collège de France, ainda no início da década de 50, ele
apontava, no pensamento filosófico da época, uma situação paradoxal com relação
ao sentido e ao papel da sensibilidade na vida humana: ao mesmo tempo em que se
reconhecia a importância e a peculiaridade dos mecanismos sensíveis para a dinâmi-
ca existencial, tais mecanismos eram desqualificados, quando se tratava de analisar
amplamente os aspectos cognitivos ou mesmo a dimensão cultural da experiência.
Ele acreditava, ao contrário, que o filósofo deve aprender a conhecer, em contato
com a percepção, “uma relação com o ser que torna necessária e possível uma nova
análise do entendimento” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 11).
Por um lado, assinala ele, somos obrigados a admitir que o ideal de adequação
que caracteriza as teorias da representação é profundamente abalado, quando se des-
cobre que o sentido de uma coisa percebida é algo de natureza perspectiva, depende
de sua situação num horizonte de relações e se configura como um desvio no univer-
so da experiência. Por outro lado, o reconhecimento de que a expressão propriamen-
te dita, tal como a obtém a linguagem, apenas “retoma e amplia uma outra expressão
que se revela à ‘arqueologia’ do mundo percebido” (MERLEAU-PONTY, 1968, p.
12-13), sugere que a própria compreensão do mundo percebido não pode ser soli-

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Merleau-Ponty em Salvador

tária ou imediata, pois se elabora coletivamente, como uma instituição sensível. Em


suma, o simples fato de haver um mundo comum é um indício seguro de que nos
comunicamos, através da percepção. Contudo, para os mais conservadores, a sim-
ples expressão “lógos estético” deve provocar um imenso desconforto intelectual.
O que seria, afinal, um lógos estético? Não haveria uma contradição entre aísthesis
e lógos? No âmbito das definições escolares – em que estamos acostumados, simul-
taneamente, a identificar lógos e razão e a opor razão e sensibilidade –, sem dúvida,
aquela expressão seria considerada um oxímoro. Mas se compreendermos o lógos
como uma forma de vínculo ou conexão reconhecida e compartilhada através do
discurso, concordaremos que Merleau-Ponty não está defendendo a existência de
uma “razão” no mundo sensível, mas assinalando, através da noção de lógos estético,
um circuito de sentido que se dá na existência mesma, conectando e conferindo uni-
dade a conjuntos de acontecimentos do mundo sensível, segundo uma racionalidade
plástica e não conceitual.
Segundo a concepção clássica, a sensibilidade fora concebida como uma coleção
de capacidades localizadas, especializadas na apreensão de determinados aspectos do
mundo sensível, através dos chamados “órgãos dos sentidos”. Em nossa experiência
efetiva, contudo, os sentidos não operam isolados desta maneira, mas em conexão,
por sinestesia; nossa relação efetiva com o mundo é inteira e, neste sentido, a própria
noção de “órgãos dos sentidos” é já uma abstração. Do mesmo modo, a descrição
da experiência em primeira pessoa rejeita a redução analítica de nossa percepção do
mundo a uma função estritamente sensorial, pela qual teríamos acesso a sensações
puras, pontuais, isoladas. Ela se mostra, ao contrário, como uma atividade de confi-
guração, graças à qual privilegiamos determinadas relações dentro de um campo vir-
tualmente contínuo. A percepção não é, pois, uma atitude meramente contempla-
tiva e, ainda menos, uma ausência de atitude, mas um agenciamento corporal, uma
performance, um comportamento que, mais que representar o mundo, exprime o
movimento pelo qual nós o habitamos.
Por um lado ou por outro, somos levados a este “lugar” que é o foco de uma série
de práticas que caracterizam nosso modo peculiar de habitar o mundo: o nosso corpo
próprio – “o registro onde estamos inscritos e continuamos a nos inscrever” –, pelo
qual experimentamos a simples existência material como uma forma de “intimidade
prática com o espaço” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 16). Para Merleau-Ponty, o
corpo é “o portador de um número indefinido de sistemas simbólicos cujo desen-
volvimento intrínseco excede certamente a significação dos gestos ‘naturais’, mas
que se desmoronam se o corpo deixa de pô-los à prova e instalá-los no mundo e na

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Monclar Valverde

nossa vida” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 18). Este corpo não é uma coisa, mas
um meio de comunicação com o tempo e o espaço (MERLEAU-PONTY, 1994, p.
246), o foco de um campo de relações que constituem os órgãos dos sentidos em
“órgãos de experiência” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 137).

5. Corpo, experiência e existência

Na Modernidade, a idéia de experiência sempre esteve associada à apreensão de


uma realidade exterior por um sujeito individual e, situando-se na ordem do sin-
gular, assumiu uma condição inferior, frente à apreensão racional do mundo. Na
prática científica, ela acabou reduzida, então, a uma série de rotinas que a transfor-
maram em “experimento” controlado, destituído dos sentidos complementares de
espontaneidade e acumulação, com que ela circula na linguagem ordinária. Neste
último âmbito, a experiência tem um caráter claramente relacional, envolvendo a
participação do sujeito vivo em seu ambiente, a unidade dos momentos vividos por
esse sujeito e sua interação com outros sujeitos presentes no mesmo mundo.
Longe de ser vista como uma descrição neutra do mundo exterior, a experiência
se mostra, pois, como um acontecimento, cuja narração é inseparável da interpreta-
ção e da avaliação praticadas no mundo público, segundo um modo que não é estri-
tamente objetivo ou subjetivo, mas intersubjetivo. Do ponto de vista etimológico,
a expressão ex-peri-ência remete à capacidade de transformação que possibilita ao
sujeito assimilar o que é dado (a natureza, o outro, o passado) ultrapassando, simul-
taneamente, os limites (peras) estabelecidos por essa doação. Ela se revela, então,
como o meio e o modo espontâneo de viver esta “transcendência na imanência”,
que caracteriza o próprio existir como advento – ao mesmo tempo, risco de se per-
der e possibilidade de realização2. Enquanto acontecimento propriamente humano,
a experiência contribui, portanto, de maneira ainda mais profunda, para situar um
sujeito em relação aos outros, ancorando-os radicalmente no âmbito temporal da
existência, cujo conceito tem também a sua história.
Os primeiros pensadores gregos não investigaram a questão da existência, mas a
identificação do existente enquanto tal. Com Parmênides e Platão, a questão pas-
sou a ser a de identificar o que poderia ser considerado “realmente existente”, por
2 Em português, a palavra “perigo” explicita este sentido da experiência como risco inevitável na travessia da vida (cf. MI-
RANDA, José A. Bragança de. Analítica da actualidade. Lisboa: Vega, 1994 p. 59).

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Merleau-Ponty em Salvador

trás das aparências. O termo sofreu, assim, sua primeira torção, deixando de indicar
“o que está aí”, na evidência do mundo exterior, para designar uma inteligibilidade
ideal, situada “além de todo aí”. Uma nova modulação semântica ocorre na Idade
Média, pois, enquanto os pensadores gregos situavam a existência no plano da cos-
mologia, os filósofos medievais voltaram-se para entidades que escapavam da deter-
minação absoluta – condição própria dos astros e das coisas materiais –, tomando a
pessoa (humana ou divina) como seu modelo (cf. MORA).
Desse modo, a idéia banal da existência, como a ocorrência do que há no mun-
do, dá lugar a uma concepção que recusa sua caracterização a partir de algo simples-
mente dado, para vê-la como um modo de ser que não se reduz a um “si mesmo” e
se constitui como um poder-ser que não tem natureza substancial, mas realiza o seu
próprio ser sendo. Sem caber numa definição atomista, este ente (o Da-Sein, o ser-aí,
a pre-sença), cuja estrutura ontológica é a de um ser situado (figura sobre um fundo,
perspectiva num horizonte, ser-no-mundo), abre-se, pela compreensão de suas possi-
bilidades de vir a ser, ao próprio ser enquanto tal.
Esta concepção lança uma nova luz sobre o modo como a relação entre ser e não-
ser é experimentada na existência, pois, como vimos, existir é deixar de ser para vir a
ser e isto mostra que a identidade de um existente tem um caráter dinâmico, não lhe
pertence previamente, não está assegurada pelo destino, pelas condições geográficas
ou sócio-econômicas, pelos astros ou pelo código genético, mas é o efeito deste seu
modo histórico de ser-sendo: abertura a partir de uma situação previamente dada.
Esta transcendência finita (ou esta finitude transcendente) é exemplarmente vivida
nesta condição de ter um corpo como meio da experiência; enfim, nesta proto-expe-
riência que é, mais radicalmente ainda, ser um corpo.
Enquanto “orgão” da experiência, o corpo, por isso mesmo, simplesmente não
pode ser “superado”, porque vem sendo ultrapassado desde sempre, por si mesmo,
por seu próprio modo de ser. Na verdade, ele não é senão este excesso situado, este
acesso possível à possibilidade mesma. À medida que se abre a um “mundo” (este
horizonte de sentido que ultrapassa todo objeto particular), o corpo é ultrapassado
pela experiência que, no entanto, somente ele pode tornar possível. Encarnando este
sentido em expansão, ele transborda em direção ao mundo exterior, a outras épocas
e aos outros, incorporando a diferença na unidade dinâmica dessas formas de insti-
tuição que são a percepção, a expressão e a ação. Nas palavras de Merleau Ponty: “É
preciso reconhecer então essa potência aberta e indefinida de significar – quer dizer,
ao mesmo tempo de apreender e de comunicar um sentido – como um fato último
pelo qual o homem se transcende em direção a um comportamento novo, ou em

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Monclar Valverde

direção ao outro, ou em direção a seu próprio pensamento, através de seu corpo e de


sua fala” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 263).

Mesmo as tecnologias de uma sociedade dominada pela digitalização, aptas a si-


mular ou gerar novas situações e novos ambientes, não podem ultrapassar o regime
da experiência, pois não são capazes de simular a experiência que tais situações e am-
bientes suscitarão em nós. Só a experiência é capaz de superar a experiência, pois é
próprio da sua estrutura não só preceder-se a si mesma, mas exceder-se a si mesma,
na natureza, na cultura e na história. E é o corpo que torna presente a possibilida-
de de toda essa experiência , pois ele é o meio, ao mesmo tempo, natural, cultural e
histórico de transcendência.

6. O lógos estético como lógos histórico

Num comentário ao texto que Kant escreveu sobre o Iluminismo (O que é isso, o
Iluminismo?), Michel Foucault (ex-aluno de Merleau-Ponty) conclui que a epistémê
contemporânea é ambígua, no que se refere ao duplo empírico-transcendental: se-
gundo ele, nós somos e não somos kantianos, ao mesmo tempo. Somos kantianos,
porque ainda procuramos as condições de possibilidade da experiência, mas não so-
mos mais kantianos, à medida que não reconhecemos nessas condições de possibili-
dades uma estrutura absolutamente fixa, genérica e universal.
Ao mesmo tempo, se reconhecemos que as próprias condições de possibilida-
de da experiência têm caráter plástico, somos igualmente obrigados a admitir que
sua plasticidade não tem o mesmo grau de maleabilidade da experiência singular.
Os historiadores diriam que as transformações dos quadros da experiência ocorrem
numa “longa duração”, enquanto a dinâmica das experiências de cada sujeito envol-
ve transformações que se dão na “curta duração”. Neste sentido, o pensamento do
próprio Merleau-Ponty ilustraria, de maneira exemplar, essa condição do pensamen-
to contemporâneo.
Enquanto Kant buscava definir as condições de possibilidades a priori da ex-
periência, Merleau-Ponty procurava analisar os seus enquadramentos históricos e
culturais, vistos como condições prévias, mas não absolutas. No âmbito da sensibi-
lidade, o primeiro aponta as noções de tempo e espaço como condições de possibi-
lidade da experiência perceptiva, pela qual o sujeito constitui seu objeto, mas essas

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Merleau-Ponty em Salvador

próprias condições de possibilidade podem ser vistas como instituídas, embora não
na história pessoal, mas na história da cultura. Neste sentido, Merleau-Ponty estaria
sugerindo que os a priori da experiência são, também eles, plasmados pela experiên-
cia, ainda que não pela experiência do sujeito individual, em sua vivência pessoal,
mas pela experiência histórica, intersubjetiva e anônima, acumulada culturalmente.
Assim, a prolongada experiência da instituição de um mundo físico estável aca-
bou estabelecendo condições que, para o sujeito individual, representam um enqua-
dramento fixo e absoluto de sua experiência atual, mas esse quadro não é fixo para
sempre e não é o mesmo para todos, pois, ao longo da história e entre as diferentes
culturas, ele corresponde à maneira como cada cultura plasma, junto com o seu
modo de vida, seu próprio mundo, não só como conjunto de objetos e repertório
de condutas, mas como referência de sentido e horizonte comum. Enquanto a ex-
periência individual recorta os objetos a partir de condições espácio-temporais bem
determinadas, no plano intersubjetivo, a espacialidade e a temporalidade são, elas
mesmas, tratadas como matéria plástica pela cultura.
A sensibilidade não é, pois, redutível ao plano fisiológico, uma vez que esta con-
dição biológica foi apropriada e ampliada pela cultura, tanto em sentido prático
quanto discursivo, mas jamais será inteiramente incorpórea e digital, como acredi-
tam os profetas da Pós-Modernidade. Ela não é imutável, mas não está sujeita a mu-
danças repentinas, ao sabor das modas ou das inovações tecnológicas. Ela tem uma
história própria, que ultrapassa a experiência individual e se projeta na história dos
hábitos perceptivos desenvolvidos por diversas comunidades.
Da mesma forma, mesmo em sua condição anônima, o próprio corpo, concebido
como “órgão e meio da experiência”, não se mantém imutável ao longo do tempo.
O repertório pessoal de gestos e o patrimônio comum das condutas não se opõem,
mas se complementam e se engendram mutuamente. Como assinala Hermann Par-
ret, o pensamento de Merleau-Ponty explicita o duplo movimento que sustenta a
experiência, em sua condição radicalmente intersubjetiva, assinalando uma vez mais
a reversibilidade entre natureza e cultura, através do duplo processo de sensibilização
do social e de socialização do sensível (PARRET, 1997, p. 197-201).

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Monclar Valverde

7. A experiência da expressão e a instituição do sentido

Habitualmente, os estudiosos da obra merleau-pontiana dividem-na em dois mo-


mentos, que eles supõem profundamente distintos: o da fenomenologia da percepção
(e do comportamento) e o da ontologia do ser bruto. Entre eles, admitem, haveria um
“período intermediário”, que curiosamente equivale a cerca de 10 anos, coincidindo
quase inteiramente com a década de 50. Isto parece ainda mais estranho, quando pen-
samos que a “última fase” do seu pensamento se resume aos últimos três ou quatro
anos de sua existência. É como se, em toda uma década, ele estivesse apenas tentando
se livrar das amarras teóricas da consciência constituinte e buscando um “vocabulário”
ontológico próprio.
No entanto, trata-se de um período singular e extremamente fértil, no qual Merle-
au-Ponty desenvolve reflexões que têm um papel decisivo na transição entre a primeira
e a última fase de seu pensamento. Nossa interpretação é que os textos produzidos en-
tão (especialmente voltados aos temas da linguagem, da pintura e da história política),
fazem convergir duas investigações (de caráter, em última instância, estético): a pri-
meira delas, sobre a base plástica do sentido, que se manifesta claramente na experiência
da expressão pictórica, mas está igualmente presente na própria expressão lingüística;
a segunda, sobre a plasmação histórico-cultural das condições de possibilidade da experi-
ência, à qual nos referimos acima.
Para testar a pertinência desta hipótese, basta considerar em que medida os con-
ceitos de “fala”, “percepção” e “comportamento”, decisivos na primeira fase de seu
pensamento, são enriquecidos ainda mais, quando assumem uma conotação simulta-
neamente histórica e estética, a partir das idéias de “expressão”, “instituição” e “passivi-
dade”, desenvolvidas no período em foco. Nesta fase do seu pensamento, diríamos que
a mais sofisticada experiência da expressão prolonga ainda a primeira tentativa de ex-
pressão da experiência, e ambas se revelam como meio da instituição do sentido (VAL-
VERDE, 1993), pela qual compartilhamos a dimensão operante da compreensão.
A idéia de instituição3*, pela qual Merleau-Ponty traduz a noção husserliana de stif-
tung, é a ponte hermenêutica entre a fenomenologia das configurações estruturais e a
ontologia da verticalidade carnal, e sua articulação com a idéia de passividade, desen-
volvida no mesmo período que estamos destacando, atesta sua base estética, em senti-
3 * “Entenda-se portanto, aqui, por instituição, esses acontecimentos de uma experiência que lhe conferem dimen-
sões duráveis, em relação às quais toda uma série de experiências farão sentido, formarão uma seqüência pensável ou
uma história; ou ainda os acontecimentos que depositam em mim um sentido, não a título de sobrevivência e resíduo,
mas como apelo a uma seqüência, exigência de um porvir” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 61).

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Merleau-Ponty em Salvador

do amplo. Para ele, a experiência sensível não é o simples “reconhecimento” do mundo


dado (por uma consciência meramente receptiva), mas tampouco é sua “instauração”
(por um sujeito constituinte). Ela é, inicialmente, expressão gestual (de um corpo pró-
prio), em seguida, instituição histórica (de um horizonte comum) e, mais tarde, en-
trelaçamento carnal (do visível e do invisível). Contudo, não se trata apenas de etapas
ou mesmo de camadas sucessivas do seu pensamento, mas de distintas dimensões de
um mesmo regime simbólico.
A expressão – como, em sentido mais profundo, o próprio olhar – nos instala no
tempo, como num sentido, e, através do evento do discurso, abre-nos ao mundo, uma
vez que cada documento, seja ele textual, estético ou técnico, “solicita e faz convergir todas
as vidas cognoscentes, instaurando e restaurando, assim, um lógos do mundo cultural”. É no
coração do meu presente – escreve Merleau-Ponty – “que encontro o sentido daqueles que o
precederam, que encontro com que compreender a presença de outrem ao mesmo mundo,
e é no próprio exercício da palavra que aprendo a compreender” (1975, p. 330).
Essa interpenetração daquilo que Merleau-Ponty chama de “experiências irrecusáveis”
(perceber, falar e agir), identificadas por ele como “sistemas simbólicos”, deve-se, pois, a
um modo de operação comum, que consiste em recolher e projetar um sentido, seja atra-
vés da estrutura figura-fundo da percepção, seja através da reversibilidade entre sincronia e
diacronia lingüísticas, seja através da dialética entre atuação e situação. Tudo isso remete à
dinâmica temporal da projeção e da sedimentação, que traduz a estrutura existencial do ser-
no-mundo. E é este reconhecimento do regime simbólico de toda compreensão, comum aos
fenômenos da percepção, da fala e da ação histórica, que nos autoriza a caracterizar aquele
período “intermediário”, entre uma fenomenologia e uma ontologia, como uma hermenêu-
tica da sensibilidade.

8. Uma hermenêutica da sensibilidade

A princípio, a aproximação desses dois conceitos, “hermenêutica” e “sensibili-


dade” pode parecer mais uma contradição em termos. Para alguns leitores, talvez
seja até mesmo desconfortável a simples proximidade entre as duas palavras. De
fato, tradicionalmente, a palavra “hermenêutica” esteve associada às práticas de
compreensão do texto, fosse ele religioso (a exegética), legal (a jurisprudência) ou
literário (a filologia). Dessa forma, a “compreensão” foi reduzida a um conjunto
dos mecanismos – de interpretação, de aplicação e de tradução – encarregados

171 |
Monclar Valverde

de promover uma leitura “adequada”, entre a paráfrase positivista e o devaneio


idiossincrático.
A partir de Dilthey, a compreensão é encarada como condição histórica da
própria cultura e fundamento das “ciências humanas” (as Geistswissenschaften).
Ao mesmo tempo, confrontada com a idéia de “explicação”, que caracterizaria o
modus operandi das ciências naturais – o estabelecimento de relações fixas entre
grandezas dadas –, esta noção de compreensão dá uma nova amplitude à idéia
hegeliana da “consciência histórica dos efeitos” (Wirkungsgeschichtliche Bewusst-
sein).
Mas é somente com a “fenomenologia hermenêutica”, inaugurada pelo Ser e
Tempo, que a discussão sobre o estatuto da “compreensão”, ultrapassa o âmbito
da psicologia, da antropologia e da história, assim como de qualquer “metodo-
logia”, para adquirir um sentido existencial e assumir claramente um estatuto
ontológico. A partir daí, a compreensão é concebida como “o ser existencial do
próprio poder-ser da pre-sença” (HEIDEGGER, 1988, p. 200). Não se trata mais
de uma operação mental ou de um artifício interpretativo, mas de uma experiên-
cia de assimilação e abertura, pela qual o ser-no-mundo se dá conta de suas pos-
sibilidades. Como está inserido num mundo de ocupações, um mundo prático,
sua experiência originária da compreensão não se dá pela pura contemplação de
uma idéia ou mesmo pela elaboração precisa de uma representação consciente,
mas pela adoção de uma conduta, isto é, de um comportamento ao mesmo tempo
individual e anônimo. Merleau-Ponty aponta, a seguir, o corpo como meio desta
conduta e a carne, como seu elemento.
O conceito de “sensibilidade”, curiosamente, parece ter permanecido no re-
gistro cognitivo desde Aristóteles, passando por Descartes, os empiristas ingle-
ses, Kant, para quem ela não é mais que “a capacidade de receber representações,
graças à maneira como somos afetados pelos objetos” (1985, p. 61), e o próprio
Heidegger, uma vez que, em Ser e Tempo, a percepção sensível parece permanecer
como o meio de acesso simplesmente dado aos objetos simplesmente dados. Isto
é insinuado na sua análise da “circunvisão” (Umsicht), ou quando somos adverti-
dos de que a “visão prévia” (Vorsicht) nada tem a ver com a visão tout court. Após
caracterizar a compreensão como “visão da pre-sença”, ele acrescenta que “ver” (entre as-
pas, no texto de Heidegger) “significa não só não perceber com os olhos do corpo como
também não apreender, de modo puro e com os olhos do espírito, algo simplesmente
dado em seu ser simplesmente dado” (1988, p. 203).
Portanto, é apenas na obra de Merleau-Ponty que a dimensão existencial da compre-

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Merleau-Ponty em Salvador

ensão será estendida ao âmbito da percepção e dos desempenhos corporais, aparecendo


como partilha de sentido que se exerce na comunicação e em toda forma de interação,
tendo como solo um mundo comum. Nesse contexto, a sensibilidade conquistará uma
dimensão em si mesmo significativa, ultrapassando o papel de mero instrumento de
captação das “qualidades sensíveis” num mundo “natural” pré-lingüístico. Concebendo
a percepção como a expressão do movimento e o modo mais direto de trazer a coisa
mesma à presença – a partir do deslizamento dos perfis (Abschatungen) que o movimen-
to do sujeito delineia sobre um fundo igualmente móvel –, ele mostra a impossibilidade
existencial do “simplesmente dado” e a artificialidade da distinção radical entre pre-
sença e presença, que opõe o ser do existente ao mundo percebido, segundo o regime
heideggeriano da “diferença ontológica”.

9. A dúvida de Merleau-Ponty

Mas o sentido desta hermenêutica merleau-pontiana não se fixa claramente e de


uma vez por todas, ela se desdobra em interrogações que acabam conduzindo às ques-
tões ontológicas da última fase, sem que ele tenha podido revisar suas formulações ini-
ciais. Contudo, já nas entrelinhas de sua discussão sobre “a dúvida de Cézanne”, pode-
se entrever uma hesitação ou uma (tríplice) inquietação sobre aspectos da sensibilidade,
que ora parecem mantê-la no âmbito pessoal do corpo próprio, ora a distanciam niti-
damente deste plano, em direção ao corpo da cultura.
Em primeiro lugar, a distinção entre ver e olhar, entre receber espontaneamente uma
doação sensível que se impõe de forma imperiosa, pela pregnância de sua “boa forma” e
um movimento de focalização dirigida, seja pela curiosidade, seja pela necessidade ou
suscitado por alguma forma de codificação. Vemos uma paisagem, olhamos um quadro.
No olhar está presente a visão, não em seu regime espontâneo, mas agenciada por um
enquadramento que extrapola a Gestalt perceptiva, ainda que não a negue. Poderíamos
talvez dizer que se trata de uma Gestalt ampliada pela textura simbólica do mundo da
cultura... Mas uma vez esclarecida, tal distinção parece nos exigir uma consideração re-
troativa: uma vez que o mundo da cultura é o “primeiro” (pois atua como um ambiente
ativo, “filtrando” a relação do indivíduo com a natureza, desde antes do seu nascimen-
to), não podemos ver a própria paisagem sem olhá-la, sem percorrê-la com o interesse
que nos é legado por nossa cultura e nosso modo de vida.
Em segundo lugar, a distinção entre perceber e ver, entre essa forma global e vaga de
apreensão de algo, enquanto presença sensível, e a capacidade de identificar e diferen-

173 |
Monclar Valverde

ciar os entes, através de formas abstratas e bem determinadas, que os recortam do con-
tinuum sensível. Na Fenomenologia da percepção, apesar de encontrarmos um capítulo
sobre “o sentir”, não encontramos uma reflexão específica sobre o ver. Já na última fase,
especialmente em O visível e invisível e em O olho e o espírito, a visão passa ao primeiro
plano, ao mesmo tempo em que a pintura parece tornar-se a principal porta de acesso
ao mundo, enquanto expressão originária da visão. No primeiro momento, a idéia
de sinestesia parece sugerir um equilíbrio e mesmo uma equivalência entre os senti-
dos, enquanto na fase final de seu pensamento o privilégio da visão é inquestionável
e inquietante.
Em terceiro lugar, a diferença (não tematizada) entre perceber (ou ver) um ente
natural e perceber (ou ver) um ente cultural ou, como prefere Merleau-Ponty, um “ser
de cultura”. Na primeira fase de seu pensamento, até 1948, Merleau-Ponty acreditava
que a cultura apenas prolongava a experiência ordinária da percepção, ampliando-lhe
o repertório natural com a incorporação do mundo dos signos, como fica bem claro
nos textos recolhidos do programa radiofônico Conversas 1948 (MERLEAU-PONTY,
2004), ou na palestra “O cinema e a nova psicologia”, apresentada a um grupo de re-
alizadores cinematográficos (MERLEAU-PONTY, 1983). Durante a década de 50,
como vimos, suas investigações o levaram a crer que nossa inserção na história é apre-
endida mediante uma forma de “percepção histórica”. Essa idéia sugere, ao mesmo
tempo, que a sensibilidade tem um caráter prático, portanto, intersubjetivo, e que é
passível de transformação. Somos sensíveis à história e esta sensibilidade, é, ela mes-
ma, histórica4*.
Nas observações de Merleau-Ponty sobre Cézanne, ele parece ver uma continuida-
de entre a obra do pintor e a percepção de seu corpo, mas o projeto da pintura moder-
na parece melhor captado na idéia de Klee, segundo a qual o pintor nos dá a ser visto
um inédito do visível. Há uma contradição aqui e isto mostra o quanto é problemática
a relação que se estabelece, freqüentemente, entre a fenomenologia merleau-pontiana
e a pintura modernista.
Seria necessário desenvolver uma reflexão específica sobre a apreensão sensível dos
seres de cultura, que não negasse a dinâmica da percepção sensível, mas que não a
reduzisse a ela. Sabemos que a percepção não se confunde com a representação do
mundo exterior, mas, mesmo sem reduzi-la a uma representação, devemos tentar com-
preender a nossa capacidade de perceber, como coisas, representações visuais que, quan-

4 * Curiosamente, encontramos uma idéia semelhante, sobre a dimensão coletiva e temporal da sensibilidade, em um
texto deste kantiano heterodoxo que foi Georg Simmel (“Ensaio sobre a sociologia dos sentidos”). No século XX, essa idéia
se impõe também no trabalho de historiadores, como Alain Corbin (“História e antropologia sensorial”) ou Donald Lowe
(História da percepção burguesa).

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Merleau-Ponty em Salvador

do analisadas, reduzem-se a meros traços ou manchas lançadas sobre uma superfície.


Inicialmente, seria preciso reconhecer que esta percepção de segundo grau não pode
ser idêntica à apreensão espontânea que temos dos entes da natureza. Em seguida, re-
trospectivamente, seria preciso assinalar também a base cultural daquela “espontanei-
dade”, retomando, neste contexto, “o gosto da evidência e o sentido da ambiguidade”.
Mas esta foi uma tarefa que Merleau-Ponty deixou em aberto...

10. Uma estética da comunicação

Em determinado momento, Merleau-Ponty recorre à música, para ilustrar a idéia


de uma “essência encarnada” (o que nos faz pensar na noção kantiana das “idéias sensí-
veis”); nesse ponto, a percepção é concebida como protótipo de toda consciência pos-
sível. Em outra circunstância, ele considera a expressão verbal como “a” expressão por
excelência, uma vez que diz o que diz a partir do silêncio (os signos vazios da lingua-
gem); nesse quadro, a dialética dos cortes sincrônicos e diacrônicos na evolução lin-
güística torna-se o modelo da própria história. Em outro contexto, ele eleva a pintura
à condição de forma paradigmática da expressão; nesse caso, a criação artística assume
nitidamente um estatuto ontológico. A oscilação do autor frente às diversas formas de
expressão parece indicar, mais do que o deslocamento de seu foco, a identificação de
um impensado comum: a comunicabilidade estética. O que está em questão, nos casos
acima, é esta capacidade de dar corpo sensível a uma idealidade invisível, idéia que a
noção de carne pretende explicitar nos últimos textos, mas que já estava presente nas
discussões intermediárias sobre a expressão e nas suas discussões iniciais sobre o concei-
to de estrutura. Em todos eles, trata-se da forma como instituição sensível.
Desse modo, a experiência estética aparece, no pensamento de Merleau-Ponty, como
o meio privilegiado da comunhão sensível, através das formas naturais e culturais com-
partilhadas pelos sujeitos. Ela representaria o mais profundo grau de imbricação entre
criação e fruição, caracterizando plenamente o movimento de imersão e projeção do
sujeito em relação a seu mundo. Ao conceber a expressão, simultaneamente, como atu-
alização de uma potência de comunicação e comunicação de uma potência plasmadora,
Merleau-Ponty afirma a indissociabilidade entre expressão e compreensão, mostrando que
sua fenomenologia descreve a linguagem do ponto de vista da comunicação e das práticas
sociais em que está inserida e não mais pela perspectiva do sujeito e da consciência.
Desta forma, ele se afasta definitivamente do primeiro Husserl, que ainda estabele-
cia a distinção entre uma “função comunicativa” e uma “função expressiva” da lingua-

175 |
Monclar Valverde

gem, na qual apenas esta última aparecia como essencial para que as expressões fossem
consideradas expressões legítimas. Segundo a leitura de Merleau-Ponty, aliás, “o grande
interesse da carreira de Husserl consiste em não ter cessado de voltar a questionar sua
exigência de racionalidade absoluta”, o que o teria levado a fixar “o programa de uma
filosofia que descreverá o sujeito lançado num mundo natural e histórico”, contribuin-
do, assim, “mais do que ninguém, para descrever a consciência encarnada num meio
de objetos humanos, numa tradição linguística” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 271).
No período que destacamos aqui (a década de 50), este cuidado para não reduzir
o discurso a uma dimensão puramente monológica leva-o a desenvolver um verdadeiro
combate contra a concepção “algorítmica”, que vê a linguagem como um neutro instru-
mento de transposição do pensamento puro ao mundo da expressão, como se a própria
idéia ocorresse ao sujeito inicialmente numa forma de transparência. Contra esta con-
cepção, ele adverte: “a palavra que profiro ou escuto é pregnante de uma significação
legível na própria textura do gesto lingüístico, a ponto de uma hesitação, uma alteração
da voz, a escolha de uma certa sintaxe, ser suficiente para modificá-la, sem, no entanto,
nunca estar contida nele” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 323).
Desse modo, o caminho tomado pela fenomenologia hermenêutica de Merleau-
Ponty será diferente do escolhido pela filosofia hermenêutica de Gadamer, formulada
na mesma época, como um suposto desdobramento da teoria da compreensão de Hei-
degger. Enquanto esta se apega à idéia de “lingüisticidade”, concebida como base da
compreensão e da própria ontologia, aquela aponta a necessidade de se investigar a base
plástica do próprio código lingüístico. Merleau-Ponty provavelmente concordaria com a
idéia de que “a compreensão não é nunca um comportamento subjetivo com respeito a
um ‘objeto’ dado, mas pertence à história dos seus efeitos, isto é, ao ser do que se compre-
ende” (GADAMER, 1988, p. 13). Contudo, certamente procuraria aplicar tal princípio
tanto à compreensão da “vozes do silêncio” quanto à própria compreensão lingüística.
Se “a imagem é um processo ôntico, [se] nela o ser tem acesso a uma manifestação visí-
vel e cheia de sentido (...), [se] a ‘idealidade da obra de arte não pode determinar-se por
referência a uma idéia, a de um ser que se trataria de imitar ou reproduzir; [mas] deve
determinar-se ao contrário como o ‘aparecer’ da idéia mesma (...)” (GADAMER, 1988,
p. 193), seria necessário, então, que a “valência ôntica da imagem” se referisse também à
própria linguagem e à forma de suas significações, tanto na fala quanto na escrita.

Para concluir, diríamos que a questão estética abrange dois aspectos na obra de Merleau-
Ponty: uma fenomenologia da expressão (bem localizada e, de resto, bem estudada) e uma
hermenêutica da sensibilidade (difusa e pouco explorada, nestes termos). Considerados em

| 176
Merleau-Ponty em Salvador

conjunto, estes aspectos revelam a estética de Merleau-Ponty como uma estética da comuni-
cação, por ressaltar a comunicabilidade estética e por fundá-la numa comunhão sensível, que
não se retringe à natureza mas se desdobra na história pela qual se plasma a própria cultura.

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Motricidade e expressão musical:
arte e técnica em Merleau-Ponty

Alberto Andrés Heller

É com grande prazer que vejo a música voltando a ocupar seu lugar junto à filoso-
fia, lugar que lhe era reservado na antiguidade e mesmo na idade média, e que foi se
perdendo na idade moderna, quando a música passou a ser vista como objeto da cul-
tura e do entretenimento. A própria musicologia tem, inadvertidamente, contribuído
para com uma concepção na qual música e pensamento parecem estar dissociados –
como se a música precisasse de um ato intelectivo e verbalizador para aceder a um esta-
tuto filosófico ou científico (“sério”), para ter dignidade epistêmica. A compreensão da
ação musical enquanto pensamento é algo recente, assim como a compreensão de que
essa ação pode tornar-se também – por que não? –, ela mesma, filosofante.
Nesse sentido, a fenomenologia vem nos mostrando a importância de se diferen-
ciar ‘A Filosofia’ do filosofar, ‘A Arte’ do fazer artístico, ‘A Música’ do fazer musical – a
inicial maiúscula apontando para um saber institucionalizado, um conjunto determi-
nado de “conteúdos” passíveis de posse e domínio. Interessante observar como, por
exemplo, o termo alemão antigo para música, Tonkunst (arte dos sons), foi aos poucos
substituído pelo termo Musik: em Musik encontramos o fazer musical institucionali-
zado da história das Belas Artes e das obras-primas, onde se compreende sob o título
Música o conjunto das obras dos “grandes mestres”. Assim, o estudo da Música parece
significar hoje o estudo das obras de Bach, Beethoven e Chopin, assim como o estudo
da Filosofia compreende a leitura das obras de Aristóteles, Descartes e Kant. Mais que
música e filosofia, estamos tendo história da música e história da filosofia (numa no-
ção pobre do termo ‘história’ em que esta se transforma em mero inventário – note-se
portanto que não estou criticando a necessidade do estudo da história nem menos-
prezando sua importância, apenas alertando contra seu mau uso). É preciso evitar a
impressão de que as obras estariam acabadas, que a história da arte e do pensamento se
fariam por acumulação e reunião de obras (a história como história pomposa, oficial
e celebrativa). Seria preciso, como afirma Merleau-Ponty, ir ao museu e à biblioteca
como ali vão os artistas, os escritores e os pensadores: na alegria e na dor de uma tarefa
interminável em que cada começo é promessa de recomeço.
Mesmo que as referências à música ao longo da obra de Merleau-Ponty sejam um

179 |
Alberto Andrés Heller

tanto escassas, sua contribuição para com a compreensão do fenômeno musical é ines-
timável, contribuição essa que se faz presente especialmente através de temas tais como
corpo, motricidade, expressão, temporalidade e liberdade. Esses temas, da forma como
são mostrados e discutidos por Merleau-Ponty, põem em xeque o esquema teleológi-
co clássico da prática musical no qual o instrumentista 1) lê a partitura (decodifica a
escrita musical), 2) compreende e organiza o sentido musical da obra, 3) organiza os
movimentos do seu corpo para que este execute a música de forma satisfatória e efi-
ciente ao instrumento, 4) melhora sua execução a cada repetição a partir de critérios
de escuta, análise, crítica e correção. Mesmo que no decorrer do estudo de uma obra
musical se possa diferenciar e vivenciar essas etapas assim descritas, o que experiencio
durante o tocar não é a separação entre eu, corpo, instrumento, movimento e som,
mas um todo difuso onde os limites entre um e outro se fundem e se con-fundem.
Toco esquecido dos meus dedos, assim como o orador fala esquecido dos seus lábios e
o dançarino das suas pernas.
Ao fazer música, esta não se dá na perspectiva de um objeto para uma consciência
apreendido através de um ato; “não se sai do dilema racionalismo-irracionalismo en-
quanto se pensar a “consciência” e os “atos” – nos diz Merleau-Ponty -; o passo decisivo
é reconhecer que uma consciência é, na verdade, intencionalidade sem atos, fungierende,
que os próprios “objetos” da consciência não são o positivo diante de nós, mas núcleos de
significação em torno dos quais gira a vida transcendental, vazios especificados”.1 Admitir
isso nos afasta definitivamente da noção cartesiana de sujeito e nos impele a perceber
o sujeito antes como campo, como dimensão e sistema de estruturas abertas. Curio-
samente, porém, os discursos sobre o fazer musical têm mostrado certa relutância em
abandonar a idéia de uma consciência enquanto poder de representação e síntese,
insistindo na noção segundo a qual os movimentos do corpo (e conseqüentemente a
música) proviriam de um ‘eu’ detentor das experiências e com total poder de escolha
e deliberação. Basta que se leia qualquer método ou manual destinado à interpretação
musical para que ali se encontre as mais diversas orientações referentes à aquisição de
uma “boa técnica”, esta compreendida enquanto controle eficiente do corpo.
Tal noção de técnica concebe o corpo como instrumento à mercê da vontade,
como máquina à disposição de um sujeito que a manejaria. Nem seria preciso recor-
rer a Merleau-Ponty para criticar a idéia de um corpo-objeto habitado e operado por
um “homenzinho interior” – basta um pouco de observação e bom senso para perce-
ber que a grande maioria dos nossos movimentos ocorre independentemente de nos-
sa vontade e do nosso poder de deliberação: ao levantar-me da cadeira, por exemplo,

1 MERLEAU-PONTY: O visível e o invisível, p.218.

| 180
Merleau-Ponty em Salvador

não preciso representar previamente a mim mesmo os movimentos necessários para


isso (apoiar-me sobre os pés, inclinar e torcer o tronco, apoiar as mãos no encosto da
cadeira, esticar o pescoço, girar a cabeça etc.): há uma organização espontânea do mo-
vimento, um esquema corporal que funciona tanto melhor eu não interfira (como na
anedota da centopéia que, ao ser indagada sobre com qual perna ela começava a cami-
nhar, passou a fazer tanta confusão que nem conseguia mais sair do lugar). Sabemos de
nós esquecidos de nós. Não nos movemos no espaço objetivo fazendo cálculos em rela-
ção a um corpo objetivo (Einstein já dizia que os objetos físicos não estão no espaço: os
objetos são espacialmente estendidos). Não estamos no espaço: somos espaço, e é nessa
espacialidade primordial que reconhecemos o corpo enquanto essencialmente motriz.
“Nosso corpo não é um objeto” - diz Merleau-Ponty -, “nem seu movimento um simples
deslocamento no espaço objetivo, sem o que problema só seria deslocado, e o movimento do
corpo próprio não traria nenhum esclarecimento ao problema da localização das coisas, já
que ele mesmo seria uma coisa. É preciso que exista, como Kant o admitia, um “movimento
gerador de espaço”, que é o nosso movimento intencional, distinto do movimento “no espa-
ço”, que é aquele das coisas e de nosso corpo passivo. Mas há mais: se o movimento é gerador
do espaço, está excluído que a motricidade do corpo seja apenas um “instrumento” para
a consciência constituinte. (...) O movimento do corpo só pode desempenhar um papel na
percepção do mundo se ele próprio é uma intencionalidade original, uma maneira de se re-
lacionar ao objeto distinta do conhecimento. É preciso que o mundo esteja em torno de nós
não como um sistema de objetos dos quais fazemos a síntese, mas como um conjunto aberto
de coisas em direção às quais nós nos projetamos”.2
É por isso que Merleau-Ponty define nossa espacialidade não como uma espacia-
lidade de posição, mas de situação, citando como exemplo o organista, que habita em
seu teclado como habitamos em nossa casa: cada tecla torna-se uma extensão de seus
dedos, uma extensão de sua expressividade. Uma vez habituado ao teclado, ele não
precisa mais representá-lo a si mesmo, pois ele o tem (ou, na linguagem de Gabriel
Marcel, ele o ‘é’). Ele não precisa “pensar” seus dedos, nem “pensar” o teclado, muito
menos “pensar” os movimentos que deverá efetuar para realizar uma música “retida em
sua memória”; ele não toca “as” notas, ele toca a partir das notas, de onde se expressa,
e todo o espaço à sua volta está integrado a essa expressão. Pois o corpo não se expressa
no espaço: o corpo é eminentemente espaço expressivo. “O organista instala-se no órgão
como nos instalamos em uma casa. O que ele aprende para cada tecla e para cada pedal
não são posições no espaço objetivo, e não é à sua memória que ele os confia. (...) Estabelece-
se uma relação tão direta que o corpo do organista e o instrumento são apenas o lugar de

2 MERLEAU-PONTY: Fenomenologia da Percepção, p.517.

181 |
Alberto Andrés Heller

passagem dessa relação. Doravante a música existe por si e é por ela que todo o resto existe.
Não há aqui lugar para uma ‘recordação’ da localização das teclas e não é no espaço obje-
tivo que o organista toca”.3
Gostaria de analisar, ao longo das próximas linhas, de que maneira “doravante a
música existe por si”. Afinal, é essa a sensação descrita por tantos músicos: que, ao to-
car, não são mais “eles” que tocam o instrumento, mas é o instrumento que os toca.
Nessa reversibilidade, o músico deixa de ser o autor dos sons para ser o lugar de passa-
gem do fenômeno sonoro; em vez de fazer a música, ele apenas permite que a música
aconteça. Em ambos os casos continuamos tendo músico, corpo, instrumento, movi-
mento, música – mas o modo de relação entre esses elementos muda (e aqui Merleau-
Ponty se reporta à noção de fundação proposta por Husserl4 - noção segundo a qual
as partes de um todo se relacionam de forma não-independente, formando entre elas
uma relação de mútua fundamentação ou enlace necessário – bem como à noção de
Gestalt). Se for verdade que, como se diz, a obra fascina no momento em que o autor
desaparece,5 ou ainda, que quanto maior o mestre, mais completamente ele desapare-
ce por trás da obra,6 então precisamos verificar o que exatamente desaparece, e como
isso se dá. [Importante observar que essas descrições não pertencem única e exclusiva-
mente ao mundo da música; veja-se, por exemplo, as pesquisas do psicólogo húngaro
radicado nos EUA Mihaly Csikszentmihalyi, que obteve descrições similares junto a
músicos, cirurgiões, alpinistas, jogadores de xadrez, dançarinos e outros profissionais,
denominando o fenômeno estado de fluxo - Flow: um estado no qual o praticante se
deixa absorver tão completamente em sua atividade que não mais tem a sensação de
um eu nem de tempo: imerso na ação, ele se torna a ação, se confunde com a ação,
deixando de se perceber como aquele que a executa7].
Tal agir não se mostra como uma mera “ponte” que liga o ator ao fruto da ação;
trata-se da pessoa em ação, nela e apenas por ela se reconhecendo, de forma que ao
correr se reconhece como corredor, ao comer se reconhece como comedor. Não há um
eu que corre nem um eu que come, mas um correr e um comer (poderíamos até te-
cer um paralelo com o Gênese, onde as primeiras palavras de Deus teriam sido “Haja
luz”, e não “Eu ordeno que se faça a luz”; não há, nessas palavras, um “eu” que origina
a ação, mas apenas a ação). Ao correr não me represento a mim mesmo, muito menos
3 Ibidem, p.201-202.
4 HUSSERL: Logische Untersuchungen III (Zur Lehre von den Ganzen und Teilen).
5 LEFORT: Posfácio a MERLEAU-PONTY: O visível e o invisível, p.251.
6 HEIDEGGER: Gelassenheit, p.10.
7 Paralelos com esse “estado de fluxo” podem ser encontrados em várias práticas budistas, especialmente no Zen, que se re-
fere a esse estado de consciência como mushin ou munem (chinês: wu-hsin): não-ego, não-identidade, estado de não-mente,
estado de não-pensamento.

| 182
Merleau-Ponty em Salvador

represento a mim meus próprios movimentos. Autores japoneses, chineses e indianos


se referem freqüentemente a esse fenômeno como “não-ação” ou “inação”; a não-ação
é também uma ação, mas de outro tipo: é uma ação que se deixa acontecer esponta-
neamente, sem ‘esforço’. No taoísmo fala-se em Wu-Wei: não-agir, não-fazer (às vezes
também grafado como Wei-Wu-Wei: fazer o não-fazer), em oposição a Yu-Wei (que
seria um fazer oriundo da vontade e da deliberação).8 Não-agir faz referência, portan-
to, a algo intermediário entre agir e não agir (tema ao qual voltaremos ao comentar
a noção de Gelassenheit em Heidegger). Wu-Wei, assim como Gelassenheit, implica o
passivo no ativo, o repouso no movimento, a ação indireta, o deixar-acontecer, a tem-
poralidade de espera impregnante que se faz na contingência (resultando daí seu modo
espontâneo).
Heidegger, ao falar sobre a questão da técnica, diferencia também dois tipos de
ação, reconhecendo porém que “estamos ainda longe de pensar, com suficiente radicali-
dade, a essência do agir. Conhecemos o agir apenas como o produzir de um efeito. A sua
realidade efetiva é avaliada segundo a utilidade que oferece. Mas a essência do agir é o
consumar. Consumar significa desdobrar alguma coisa até à plenitude de sua essência”.9
O ato que se consuma ‘deixa de ser’, ou melhor, transforma-se em outro ato. O ato
‘em vias de consumar-se’ deve ser diferenciado do ‘ato consumado’. A ação que “quer”
consumar-se tem um objetivo, reportando-se assim à causalidade. Atentemos para o
fato de que Heidegger não nos diz que a essência do agir é ‘o estar consumado’, ele nos
diz que sua essência é ‘o consumar’: é um agir que vive na tênue fronteira entre ser e
não-ser, pois ‘é’ enquanto se dirige a um estar consumado, e deixa de ser ao consumar-
se. É preciso, pois, permanecer na ação, deixar-se estar na ação.
Um dos grandes desafios para o músico é exatamente esse ‘permanecer em ação’,
ou ainda: ater-se a uma continuidade de fluxo (temporal, expressivo) ao longo da exe-
cução de uma obra de forma que não haja interrupções e cortes (assim agindo, ele
possui a obra ‘num único gesto’, ‘num único tempo’, ‘num único fôlego’). Os maiores
inimigos seriam aqui a distração e o excesso de concentração – se me concentro em
demasia num certo trecho da música, corro o risco de ali permanecer e interromper o
fluxo (assim como o espadachim Zen: se o seu olhar se fixar na ponta da espada do seu
adversário, mesmo que por uma fração de segundo, pode ser atingido e morto; é pre-
ciso que sua atenção seja difusa10). Já o caso mais comum de distração (e conseqüente
perda do fluxo) é quando, durante a ação de tocar, o músico se vê pensando em outras

8 LEE: Gelassenheit und Wu-Wei – Nähe und Ferne zwischen dem späten Heidegger und dem Taoismus, p.41.
9 HEIDEGGER: Carta sobre o humanismo, p.1.
10 Cf. também noções de awareness (Gestalt) e consciência perceptiva (Husserl), bem como as expressões “consciência aguda do
difuso” e “consciência de bruma” citadas por Barthes (a propósito de Baudelaire) em O Neutro (p.203).

183 |
Alberto Andrés Heller

coisas (“falando” consigo mesmo); por isso aconselham os músicos: ao tocar, não pen-
se, simplesmente se concentre no que está fazendo. Nesse conselho, porém, ronda ain-
da a noção vulgar de técnica, que prevê uma consciência que dita ordens a um corpo
(através de “falas” tais como dobre o braço, estique a perna etc.), de tal modo que se
pensaria poder silenciar essa fala na forma de um “toque e não pense”. Mas o tocar já
é o pensamento do corpo; o pensamento não está ‘no’ corpo, ele não é um objeto solto
dentro de uma caixa: o corpo é pensante. Não estamos num corpo, não ocupamos um
corpo: somos um corpo.
‘Ter um corpo’, ‘ser um corpo’. A discussão sobre ter e ser é, na verdade, uma dis-
cussão já bastante antiga. Um dos primeiros pensadores a sistematizar tal distinção foi
Gabriel Marcel, em sua obra justamente intitulada Étre e Avoir (Ser e Ter), publicada
em 1935 (também o psicanalista Erich Fromm publicou, em 1976, uma obra com o
mesmo título e com uma visão similar relativa a esses termos). Para Marcel, ter um
corpo estabelece, através da relação de posse, a idéia do corpo como objeto. Através
da posse, meu corpo torna-se um isso, uma coisa, e enquanto coisa torna-se exterior a
mim. Segundo Marcel, o primeiro objeto, “o objeto-tipo com o qual me identifico, e que,
portanto, me escapa, é meu corpo. Parece que aí estamos no reduto mais secreto e profundo
do ter. O corpo é o caso típico do ter. (,,,) No momento em que penso meu corpo como ob-
jeto, deixa de ser meu. O meu corpo enquanto meu não é algo que tenho. O que tenho, sob
certo aspecto, permanece exterior a mim. Posso transferi-lo a outrem sem que atinja essen-
cialmente meu ser. Posso perder o que tenho sem deixar de existir. Isso já não acontece com
meu corpo. Por outro lado, ele resiste a tal tipo de reflexão, pois, mais exatamente, sou meu
corpo. A rigor, meu corpo não é instrumento, pois instrumento só existe em relação ao pró-
prio corpo como prolongamento do mesmo. O meu corpo não é mediador entre o meu eu e
o objeto. Seria instrumento de quê? Se responder da alma, atribuo-lhe funções corpóreas”.11
Gabriel Marcel se opõe, assim, a uma visão ‘instrumental’ do corpo, na qual este
se tornaria não um corpo-sujeito, mas um corpo para um sujeito. Nesse sentido, ao di-
zermos ‘meu corpo’ estaríamos nos colocando em relação a ele da mesma forma como
nos colocamos diante de qualquer objeto – como ao dizer, por exemplo, ‘meu livro’.
Segundo Marcel, a identificação com o corpo pelo modo de um ter faz com que ele nos
escape, pois, ao representá-lo para mim mesmo, já não o sou, apenas o penso, fazendo
dele um corpo-idéia. Dessa forma, pareceria que o modo do ter instituiria uma espécie
de “alienação” entre sujeito e objeto, uma quase “impossibilidade” de relação, senão
pela relação causal, e que uma atitude “existencialista” poderia reuni-los. Já Merleau-
Ponty aborda a questão por outro ângulo, preferindo afirmar que devemos ultrapassar

11 MARCEL, Gabriel, apud ZILLES: Gabriel Marcel e o existencialismo, p.87.

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Merleau-Ponty em Salvador

definitivamente a dicotomia clássica entre sujeito e objeto. No capítulo VI da Fenome-


nologia da Percepção, intitulado O corpo como expressão e a fala, afirma que “a relação de
ter, todavia visível na própria etimologia da palavra hábito, é primeiramente mascarada
pelas relações do domínio do ser ou, como se pode dizer também, pelas relações intramun-
danas e ônticas”.12 Na nota referente a essa passagem, explica que “essa distinção entre o
ter e o ser não coincide com a de G. Marcel (Étre e Avoir), embora não a exclua. G. Marcel
toma o ter no sentido fraco que ele tem quando designa uma relação de propriedade (te-
nho uma casa, tenho um chapéu), e toma o ser imediatamente no sentido existencial de ser
para... ou de assumir (eu sou meu corpo, eu sou minha vida). Preferimos levar em conta o
uso que atribui ao termo ser o sentido fraco da existência como coisa ou da predicação (a
mesa é ou é grande) e designa pela palavra ter a relação do sujeito ao termo no qual ele se
projeta (tenho uma idéia, tenho inveja, tenho medo). Decorre daí que nosso “ter” corres-
ponde mais ou menos ao ser de G. Marcel, e nosso ser ao seu “ter”.13
Nessas duas terminologias, nos deparamos com a crítica ao corpo-objeto e, con-
seqüentemente, com a necessidade do resgate do corpo-próprio, que não é coisa nem
idéia, mas espacialidade e motricidade; não é da ordem do querer, mas do poder. Quan-
do nos expressamos musicalmente, não expressamos “algo” “através” de um gesto; no
gesto expressivo encontramos uma totalidade indivisível entre música e corpo. Seria,
pois, uma contradição pensar a técnica como um procedimento mecânico que nos
possibilitaria o acesso a um evento musical. Som e gesto estão envolvidos num mesmo
todo, sendo o fenômeno expressivo justamente esse todo, e não uma somatória de par-
tes numa relação de causa e efeito. É nesse ponto que falham as várias “metodologias”
de ensino musical: ao insistir numa atitude mecanicista e causal onde determinado
efeito é obtido através de determinado recurso (representação prévia do som - imagem
acústica – e posterior reprodução dessa idéia mediante o controle do corpo).
Se a crítica ao aspecto instrumental da técnica se dá principalmente em função da
idéia de causalidade, poderíamos perguntar, como o faz Heidegger, sobre o que vem
a ser esse ‘instrumental’, a que pertence meio e fim; “um meio é aquilo pelo que se faz
e obtém alguma coisa”, afirma Heidegger; “chama-se causa o que tem como conseqüência
um efeito. Todavia, causa não é apenas o que provoca um outro. Vale também como causa
o fim com que se determina o tipo do meio utilizado. Onde se perseguem fins, aplicam-se
meios, onde reina a instrumentalidade, aí também impera a causalidade”.14 Sento-me ao
piano e toco. Devemos afirmar que o fim desse tocar é a música, e que, portanto, essa

12 MERLEAU-PONTY: Fenomenologia da Percepção, p.237.


13 Ibidem, p.636.
14 HEIDEGGER, Martin: Die Frage nach der Technik. In Vorträge und Aufsätze, p.11.

185 |
Alberto Andrés Heller

ação tem caráter instrumental? Não necessariamente. Heidegger diferencia, aqui, dois
tipos de técnica: uma de caráter causal, instrumental (técnica em seu senso comum de
produção de algo – onde, mais que uma ação propriamente, teríamos uma operação)
e outra que ‘se deixa estar em si mesma’. Heidegger nos recorda que produzir, em gre-
go, é “tíkto; a raiz tec desse verbo é comum à palavra tékhne. Tékhne não significa, para
os gregos, nem arte, nem artesanato, mas um deixar-aparecer algo como isso ou aquilo,
dessa ou daquela maneira, no âmbito do que já está em vigor. Os gregos pensam a tékhne,
o produzir, a partir do deixar-aparecer. (...) A essência do produzir que constrói não se
deixa, porém, pensar nem a partir da arquitetura, nem da engenharia e nem tampouco a
partir da mera combinação de uma e de outra”.15 A essência tanto do construir quanto
da técnica não está no produto da ação, mas na própria ação, compreendida no ‘dei-
xar-aparecer’ a que se refere Heidegger. A diferença entre uma técnica com ênfase na
criação e outra com ênfase no criado (na técnica como meio eficaz para se alcançar um
fim – o produto) pode parecer sutil ou mesmo inexistente, já que, de alguma forma,
ambas contém o produtor, o produzir e o produto. Mas existe, sim, essa diferença, e
ela tem conseqüências importantes. Ao ver na técnica apenas um ‘meio para um fim’,
diferencio ‘meio’ e ‘fim’ e os relaciono num princípio de causa e efeito. Assim, movo
as mãos e os dedos para produzir uma melodia ao instrumento, adquiro uma boa pos-
tura para causar uma boa impressão, movo meu corpo de uma forma tal e qual para
que o público veja uma determinada expressão em meu corpo, de forma que a técnica
passa a agir pela representação de um movimento, guiada pela representação de um
objetivo. Onde se perseguem fins, aplicam-se meios, onde reina a instrumentalidade, aí
também impera a causalidade. E onde impera a causalidade temos não uma ação, mas
uma operação, caracterizada, ao contrário da ação, por ser forçosamente regulada em
seu decurso; trata-se, então, de uma ação induzida, solicitada, mediatizada - um afazer
ao invés de um fazer.
A outra concepção de técnica é a que se volta à ação em si-mesma. Claro que essa
ação gera um produto, mas esse produto é apenas uma conseqüência natural da ação.
Não há seqüência temporal entre a expressão e o exprimido, pois ambos não estão dis-
postos seqüencialmente no tempo: ambos pertencem a uma mesma temporalidade (ou
intemporalidade). Trata-se de uma técnica que não sabe de si mesma, que age não sa-
bendo que age, que age esquecida de si. Ela não “produz”: ela deixa aparecer. A motrici-
dade dessa técnica é uma motricidade rítmica e espontânea, e espontânea é também sua
expressão.
Merleau-Ponty aborda essa questão sob o tema da passividade, enquanto Heidegger o

15 HEIDEGGER: Bauen, wohnen, denken. In Vorträge und Aufsätze, p.154.

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Merleau-Ponty em Salvador

faz a partir da noção de Gelassenheit. Em português, Gelassenheit pode adquirir diversos


sentidos, como calma, serenidade, quietude, soltura, relaxamento, repouso ou mesmo
desapego (no caso das traduções da obra de Heidegger, tem se dado preferência ao termo
serenidade). O verbo lassen significa ‘deixar’, assumindo novos significados em suas for-
mas derivadas como verlassen (abandonar), loslassen (largar, soltar), zulassen (permitir),
einlassen (admitir). Em todos esses verbos, o lassen continua transmitindo a idéia básica
de deixar, quase num sentido de ‘passividade’: no abandonar há um ‘deixar que se vá’,
no largar há um ‘deixar que caia’, no permitir há um ‘deixar que ocorra’. Esse sentido do
‘deixar’, existente na palavra Gelassenheit, se perde na tradução para o português como
calma ou serenidade. Gelassenheit indica não uma passividade, mas o ato da passivida-
de (a atividade na passividade e vice-versa): nos deixamos levar, nos deixamos arrebatar.
Assim, não mais me projeto no tempo, mas permito que o tempo se faça e me leve, me
arraste - onde nos deparamos quase que com uma subversão da idéia de Ek-stase.
No termo alemão Gelassenheit temos a substantivização do adjetivo gelassen, que
por sua vez é o particípio passado do verbo lassen (deixar). Poderíamos, então, traduzir
gelassen por ‘deixado, serenado, aquietado, acalmado, tranqüilizado, desapegado’. Em
português, uma posterior substantivização desses termos não se mostra muito práti-
ca, de forma que teríamos, talvez, de falar num ‘estar-deixado’, ‘estar-serenado’, ‘ser/
estar aquietado’. A tradução corrente de Gelassenheit como serenidade (no contexto
heideggeriano) pode levar a que se pense num ente, num em-si; certamente não é nes-
sa direção que a noção de Gelassenheit deve ser compreendida, de forma que o tem-
po verbal deve ser seriamente levado em consideração. No deixado (gelassen) temos o
presente como um futuro que retorna ao passado; aqui não é o homem que se lança
no futuro, é o futuro que chega até ele – razão pela qual Heidegger dirá que não deve-
mos expectar, mas esperar (“nicht erwarten, sondern warten”16). Essa atitude de ‘espera’
não é passividade, mas ação indireta, inação. O conceito de Gelassenheit envolve uma
temporalidade própria, na qual repouso e movimento se fundem, bem como intenção
e não-intenção.
Nessa não-intenção a expressão não “sai de nós”; antes ela vem a nós, se faz em
nós. Não me projeto no tempo e no espaço, mas tempo e espaço chegam a mim, to-
mam-me, arrebatam-me (e eu permito ou não deixar-me levar por esse arrebatamen-
to, por essa Gelassenheit). Na expressão não há uma interioridade sendo expressa,
tornando-se exterioridade objetiva; há abertura à contingência, comunhão expressi-
va onde se reúnem meus pensados e impensados a uma infinidade de outros pensa-
dos e impensados, meu silêncio a uma infinidade de outros silêncios, formando um

16 HEIDEGGER: Gelassenheit, p.42.

187 |
Alberto Andrés Heller

todo indiviso onde, mais que acausalidade, o que ocorre são infinitas causalidades.
Nesse deixar-me levar, nesse ceder, nesse permitir – temos um Dizer-Sim17: permito-
se arrebatar à pertença de um campo, deixo-me vir à proximidade do longínquo, permi-
to-me atrair e demorar no caminho que encaminha, abro-me à pregnância do tempo, e
ali repouso. Quando dizemos repouso não é porque não há ação, mas porque há repouso
na ação, isto é: a ação não busca seu sentido fora do próprio movimento, fora da própria
ação. Como não coloca o fim ou a meta fora da própria ação, não quer, não expecta:
espera em si mesma, e nessa espera faz-se, espontaneamente. Não se trata da imperma-
nência na duração, mas da permanência na não-duração (uma intemporalidade, mais
que uma atemporalidade). A ‘inação’ não é passiva: é possível. E ocorre não porque a
fazemos, mas porque a deixamos acontecer.
O calígrafo Zen, por exemplo, busca essa espontaneidade ao dar preferência à primei-
ra ação, à primeira pincelada, que não deve ser “corrigida” nem “melhorada” (cf. também
happening e action painting). O artista que pratica o shodô (a arte da caligrafia – em japo-
nês: sho, escrever; do, caminho) interessa-se pelo ritmo da linha18, onde se revela o Ki ou
Ch’i (parece não haver uma tradução ideal para ki nas línguas ocidentais: ora é traduzido
por energia, ora por espírito ou respiração vital - segundo alguns, encontra certa relação
com o pneuma grego). Ritmo é tempo, ritmo é corpo. Podemos dizer que o ritmo é uma
compreensão temporal e motriz que se dá com/em meu corpo, anterior a qualquer ou-
tro tipo de compreensão19. Na noção de ritmo está implícito não um corpo-objeto co-
mandado por um sujeito, mas um corpo expressivo (o corpo-vivido ou corpo-próprio,
descrito pela fenomenologia). Para Merleau-Ponty, esse corpo não é um movido mas um
movente: nele nos deparamos com uma motricidade espontânea que independe do meu
poder de decisão e de deliberação; há um esquema corporal através do qual me movo
integrado ao espaço (uma motricidade de situação, não de posição), meu corpo em re-
lação de mútua fundação com os outros corpos e com tudo que o rodeia. Sei de mim
esquecido de mim; não percebo para, somente então, tomar a decisão de mover-me:
movo-me perceptivamente, sem antes e depois, apenas expressão viva em contínua
atualização. O movimento não parte de um eu, mas se faz em mim. E isso é ritmo.
Compreender o ritmo é ter acesso a essa organização silenciosa, poder de reunião
para além das dicotomias eu-mundo, sujeito-objeto, pessoal-impessoal. No shodô se
revela a escrita da impermanência, que a caligrafia revela como movimento original,

17 Cf. palavras de Zarathustra: “Para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim”. NIETZSCHE: Also
sprach Zarathustra (Von den drei Verwandlungen), KSA, vol.IV, p.31.
18 SAITO: O shodô, o corpo e os novos processos de significação, p.40-43.
19 Sobre a questão do ritmo, remeto o leitor ao meu livro Fenomenologia da expressão corporal (que teve como base minha
dissertação de mestrado Ritmo, motricidade, expressão: o tempo vivido na música).

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Merleau-Ponty em Salvador

energia, respiração - silêncio.


Esse silêncio não é um vazio a ser preenchido, mas um vazio que se abre, e é nesse
sentido que devemos compreender o sujeito enquanto campo de presença, dimensão,
corpo-próprio; é no vazio que nos realizamos - o que não quer dizer que nos realizamos
preenchendo o vazio. Ao mesmo tempo, seria um erro crer que tal silêncio só estaria
presente na ação sem intenção ou sem deliberação. Ao descrever o trabalho de Matisse
numa determinada filmagem, Merleau-Ponty comenta como a mão deste se detém, es-
pera, hesita, para só então, finalmente, ‘abater-se como um raio’ sobre a tela20. Encon-
tramos no pintar de Matisse intenção e deliberação. Mas essa intenção e essa deliberação
não explicam o quadro, e o que finalmente aparece como quadro não pode ser inteira-
mente atribuído a essa intenção nem a essa deliberação. Enquanto a mão hesita e espera,
algo acontece: o gesto se demora - e, assim demorando, se temporaliza (Merleau-Ponty:
“germinação do que vai ter sido”21), se impregna de possíveis e compossíveis (passados,
presentes e futuros - o turbilhão temporal referido por Husserl), se funda num impensado
e numa situação que o transcendem, que o extrapolam. O gesto espera, não expecta, e
nessa espera faz-se (fosse expectativa, constituir-se-ia enquanto projeto – e, mesmo que
fosse esse o caso, também haveria espera na expectativa, também haveria trajeto no pro-
jeto). Nessa espera, espera-se pelo presente.
Mesmo ao querer expressar-me, expressa-se-me o que não sou e que não possuo.
Enquanto toco, posso estar buscando uma expressão ou encontrando-a; em cada um de
meus gestos expressa-se uma temporalidade própria, fundada e fundante em relação à
minha motricidade. Mais uma vez, é a essa relação indissociável entre tempo, movimen-
to e expressão que damos o nome de ritmo. Dizemos de uma pessoa que ela tem senso
rítmico quando seus movimentos são orgânicos e livres, fluidos e espontâneos, quando
há uma perfeita harmonia entre o que ela expressa e o como ela expressa, de tal forma que
não há mais um que e um como, nem um agente responsável por ambos: desaparece o
sujeito e permanece a expressão. Na espacialidade do gesto o tempo se dilata e se con-
trai, dilatando-se e contraindo-se simultaneamente meu corpo. Temporalmente, cortes
verticais justapõem-se a cortes horizontais, inscrevendo o tempo e nele se inscrevendo,
formando assim um único tempo de presença; “desaparece” o músico, flui a expressão
(dessubstancializa-se a carne maciça, surge a “carne gloriosa”).
Para o músico que toca, a experiência é a de estar simultaneamente presente e au-
sente; sua sensação não é a de estar tocando, mas apenas contemplando, vendo gesto
e música se fazerem à sua volta como que por milagre. Acredito que a filosofia tem

20 MERLEAU-PONTY: A linguagem e as vozes do silêncio. In Signos, p.46.


21 MERLEAU-PONTY: O visível e o invisível, p.181.

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Alberto Andrés Heller

ainda muito por pesquisar a partir dessa experiência da prática musical, que se torna
assim um campo privilegiado para o estudo da temporalidade. Dizem que a música
é uma “arte temporal” porque ocorre no tempo; mas ela não ocorre “no tempo”: ela
é tempo, ela cria tempo (criação em sentido radical, como propõe Merleau-Ponty
– e talvez pudéssemos ou mesmo devêssemos ler também nesse sentido de criação
radical a famosa frase de Agostinho, de que “não houve tempo nenhum em que não
fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo”22). Meu corpo é a realização do
tempo, e é por isso que podemos dizer, junto com Merleau-Ponty, que o tempo está
no coração da expressão.

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Paisagem e pintura:
arte e visibilidade em Merleau-Ponty

Iraquitan de Oliveira Caminha

A instauração da visibilidade e a pintura

O interesse de Merleau-Ponty pela pintura está essencialmente ligado à possibilidade de


aprofundar o problema da percepção através de um certo tipo de aparecer nas telas1. Nes-
se sentido, ele examina a arte do pintor, evocando radicalmente o tema da percepção, no
sentido de que a pintura tem o poder de despertar em nós o mundo que habitamos como
a primazia da percepção (MADISON, 1973, p. 89). Segundo Merleau-Ponty, essa arte
manifesta a possibilidade de abordar a visão ela mesma constituindo-se como visão. Uma
reflexão sobre a pintura nos permite, assim, pensar a questão da instauração da visibilida-
de visto que essa visibilidade se realiza ativamente no aparecimento de um certo tipo de ser
percebido estruturado pelo quadro. A esse respeito, é preciso, diz Merleau-Ponty (1991),
apreender “cada ser percebido por uma estrutura ou um sistema de equivalências em torno
do qual ele está disposto e que o toque do pintor – a linha flexuosa – ou o varrer do pincel
é a evocação peremptória”. Trata-se de pôr em evidência a pintura como meio de mostrar
que todo percebido está sempre colocado em um tecido mundano que permite seu aparecer.
O que conta, então, é mostrar o ato de pintar como o esforço de manifestar o mun-
do que se faz visível através da configuração das formas percebidas nas paisagens explo-
radas por nosso olhar, pois nós utilizamos o conceito de paisagem para definir o lugar
em que o percebido encontra a atmosfera indispensável para poder aparecer como uma
manifestação visível, o que não significa, absolutamente, que a pintura está reduzida à
representação pictórica de paisagens, no sentido de um simples arranjo justaposto de
árvores e de montanhas ou de outros elementos geográficos. Para Merleau-Ponty (1993,
p. 57), “o ato de pintar é composto de duas faces : há a pincelada ou o traço de cor,
que se coloca em um ponto da tela, e há seu efeito no conjunto”. No fundo, ele con-
sidera que todo quadro é um mundo que se oferece à visão, um aparecer, e isso, antes
de toda identificação, como sendo, por exemplo, a figuração, indiferentemente, de um
buquê de flores arrumado em um vaso, de uma mulher tomando banho em um lago,
de uma taça cheia de vinho posta sobre uma mesa, de um triângulo vermelho colocado
1 “A tela é apenas um empréstimo frágil sobre esse mundo já-aqui que parece inesgotável, sobre essa natureza que se dá à
visão e que, entretanto, foge” (MERCURY, 1993, p. 266).

193 |
Iraquitan de Oliveira Caminha

ao lado de um quadrado verde sobre o fundo de um círculo amarelo ou, até mesmo,
de uma figura que não sugere nenhuma designação específica, mas que se faz visível
para nosso olhar.
Ora, nós não queremos pôr o problema da história da pintura, tentando mostrar
seu desenvolvimento no que diz respeito à utilização de novas técnicas, à formação
de diferentes escolas, à concepção de vários modelos estéticos ou de outros aspectos
que determinam o progresso da arte de pintar. Ao contrário, nós queremos, essen-
cialmente, examinar o poder de a pintura acionar o visível, quer dizer, um tipo de
arquitetura do quadro, que gera a instauração do aparecer das formas percebidas ou
o nascimento mesmo do visível. Desse ponto de vista, mesmo que a pintura possa
ser utilizada para tatuar uma parte do corpo humano, como signo de uma posição
social de acordo com certas comunidades primitivas, para traçar sobre os muros das
cavernas uma cena de caça como meio de exaltar a atividade que assegura a sobre-
vivência de uma tribo ou para desenhar figuras abstratas sobre uma tela como ma-
neira de divulgar um movimento artístico determinado, seu desafio é sempre o de
inventar a visibilidade (BENOIST, 1997, p.6). É sob esse ângulo que toda forma de
pintura, qualquer que seja a época à qual nós nos refiramos, tem como “finalidade
a apresentação do ser no modo do visível” (DE WAELHENS, 1962, p. 433). Dessa
maneira, evoca-se a pintura como a arte de nos colocar na irrupção do fenômeno do
aparecer ou do porvir visível.
Está claro que é o acesso ao ser visível ou o próprio percebido revelado pela
pintura que nós queremos explorar. Em outras palavras, nossa pesquisa limita-se a
mostrar o papel da pintura para apresentar o nascimento do visível, e não, somente
daquilo que vemos particularmente figurar em um quadro, como se a experiência
perceptiva fosse reduzida à indicação de objetos. Evidentemente, nós não queremos
ignorar a importância da história da pintura para entender a evolução das diversas
maneiras de apresentar as formas percebidas animadas sobre uma tela2. Nossa in-
tenção é pôr o problema da germinação do visível no quadro, e não, designar cro-
nologicamente as múltiplas transformações que a arte pictórica sofreu. Daí procede
nossa proposta de compreender a pintura como obra criadora do visível. Assim, há,
na ocupação do pintor, qualquer que seja o período histórico de sua pintura, a tarefa
2 Nós não podemos negar, por exemplo, que o instrumento das técnicas de perspectiva, utilizadas pela pintura da Renascen-
ça, é um recurso indispensável para se demarcar da pintura medieval que mostrava um mundo sem espessura. Mas uma coisa
é considerar esse instrumento como um elemento que determina a filiação à escola que quer ignorar o mundo supranatural
para se dedicar ao mundo da ciência e, uma outra coisa, é tratar esse instrumento como uma invenção que quer tornar exis-
tente a manifestação do visível para o olhar, o que todas as pinturas têm em comum. É nessa última compreensão que nós
colocamos a reflexão de Merleau-Ponty sobre a pintura. Nesse quadro, toda forma de pintura pode ser encontrada quando
nós evocamos como problema o nascimento do visível enquanto resultante da ação do mundo de se tornar visível no quadro.

| 194
Merleau-Ponty em Salvador

de tirar do mundo percebido a presença do visível enquanto revelação do aparecer.


O pintor não procura, por meio de suas pinceladas, sugerir um mundo, mas
apresentar ou exprimir o mundo ele mesmo em seu aparecimento. Assim visto, “o
que constitui o ser-a-obra da obra é a instalação de um mundo” (DASTUR, 1994,
p. 90). Portanto, o artista que pinta, quando tenta criar o visível, não produz uma
falsa aparência destinada a sugerir a existência de uma realidade que emana de seu
quadro. A tentativa de instaurar o visível, realizada pelo pintor, é, muito pelo con-
trário, o ato de gerir um mundo nascido da configuração de um percebido, que se
faz visível na paisagem do quadro. É nessa perspectiva que “a questão da pintura não
pertence, nem primeiramente, nem unicamente aos pintores, menos ainda, aos este-
ticistas. Ela pertence à visibilidade mesma” (MARION, 1991, p. 7). Nesse sentido,
a visibilidade do quadro torna-se um caso privilegiado da expressividade do fenôme-
no perceptivo na medida em que a pintura é, por excelência, a expressão do porvir
visível das formas percebidas. Todavia, de um lado, é possível conceber a pintura
como uma imitação ou uma representação de uma realidade do mundo percebido;
de outro, em compensação, é possível tratar a pintura como sendo originariamente
a retomada imediata de nossa existência nesse mundo que o pintor quer tornar visí-
vel através de um quadro.
Aos olhos de Merleau-Ponty (1992b, p. 13), toda forma de arte e, sobretudo, a
pintura, nunca quebra o elo que nós temos com esse “lençol de sentido bruto” que
é o mundo percebido tal como é visível. O filósofo considera a pintura como uma
espécie de “ciência secreta” que, através do pintor, mostra o mundo percebido como
o lugar em que ele mesmo não cessa de estar já nele (MERLEAU-PONTY, 1992b,
p. 15). O pintor não é, assim, aquele que toca a existência mesma desse mundo em
sua espessura, quando nos faz descobrir a irrupção do visível como uma imagem uti-
lizada para reproduzir um mundo verdadeiro que ele vê diretamente com seus olhos.
Ao contrário, a manifestação visível de um quadro é, para o pintor, a expressão mes-
ma do porvir visível da textura do mundo percebido. É por esse motivo que, para
Merleau-Ponty (1992b, p. 26), “o pintor não celebra nenhum enigma senão o da
visibilidade”. Com efeito, o mundo do pintor é e sempre permanecerá a encenação
do mundo visível que desperta em nós uma potência de ver.
No mundo do pintor, tudo o que existe deve de qualquer maneira, fazer-se visí-
vel para ser. Qualquer pintor, enquanto pinta seu quadro, utiliza o pincel para mo-
bilizar o movimento de instauração do aparecer do mundo percebido. Ele pratica o
que Merleau-Ponty (1992b, p. 27-28) chama de “uma teoria mágica da visão”, que
não é outra coisa que a gênese do ser em sua visão. Para o olhar do pintor, a coisa,

195 |
Iraquitan de Oliveira Caminha

que está lá no coração do mundo, está também no coração de sua visão. Entretanto,
Merleau-Ponty não põe aqui o problema do mestre de uma escola de pintura, que
conhece uma maneira de ver o mundo que os outros ignoram. O filósofo quer subli-
nhar a formação da visão que o pintor não faz a partir da atividade de constituição do
entendimento como uma possessão intelectual, mas que se faz nele como uma relação
continuada com as paisagens do mundo percebido.
O pintor nunca abandona a “fascinação” para com o mundo percebido (MER-
LEAU-PONTY, 1992b, p. 31). Ele é o revelador desse mundo que jorra no quadro,
conforme seu poder de se pôr a aparecer ou de se fazer visível para o olhar. A pintura
é o lugar privilegiado de um tipo de “ontogênese da visão”, que caracteriza a dimensão
da espontaneidade da visão em estado nascente (DIAS, 1978, p. 198). O exercício do
olhar daquele que faz a pintura revela, de maneira exemplar, o nascimento do mundo,
fazendo-se visão. Ora, aqui, nós podemos constatar a existência de uma continuidade
entre a arte do pintor e a percepção, enquanto experiência de ter um mundo através
do corpo que se põe a ver. É nesse sentido que “a interrogação da pintura visa, em
todo caso, a essa gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo”, diz Merleau-Ponty
(1992b, p. 30). A atividade da pintura é, então, um prolongamento da vida perceptiva
como a experiência de abrir-se ao surgimento do mundo.
Nesse contexto, a filosofia de Merleau-Ponty encontra-se com a pintura porque am-
bas põem o problema do visível, recorrendo ao porvir visível do mundo para aquele que
vê. Da mesma maneira que “o sentido da filosofia é o sentido de uma gênese”, a pintura
está também orientada para o sentido de uma gênese, visto que é considerada como o
esforço de instauração do visível (MERLEAU-PONTY, 1993, p. 103). Em outras pa-
lavras, de maneira análoga, a filosofia de Merleau-Ponty e a pintura nos mostram que o
mundo é aquilo que nós vemos como a expressão de seu aparecer, e não, o que é conce-
bido como uma construção mental instituída pela clareza do pensamento. Sem dúvida
nenhuma, essa relação marca a oposição de Merleau-Ponty ao modelo tradicional de
tratar a visão, sustentado pela Dióptrica de Descartes.
Merleau-Ponty considera que a Dióptrica de Descartes é a tentativa de reconstruir o
visível, na base de representações meramente intelectuais, em lugar de considerá-lo a par-
tir de nossa relação insuperável com o mundo percebido. O projeto da filosofia de Des-
cartes é exatamente livrar-se dessa relação para estabelecer, com precisão, a visão como
uma operação do pensamento, independentemente do mundo que nossos olhos podem
ver. Com efeito, vemos somente aquilo que pensamos, pois o visível é apenas uma pro-
jeção de um mundo pensado. O mundo, aqui, é sempre visto de fora, como se, através
de um pensamento de ver, que confere uma exterioridade radical ao mundo percebido,

| 196
Merleau-Ponty em Salvador

nós pudéssemos determinar a existência de um mundo transparente3. A esse respeito, “a


intelectualização da visão anula a experiência radical que ela representa, experiência da
relação verdadeira da visão com o visível, vivenciada de maneira privilegiada no corpo”
(DIAS, 1978, p. 204).
Segundo Descartes (1996, p. 224), em última análise, é sempre a alma que vê, não,
o olho. Para ele, toda potência de se fazer visível do quadro é aquela de uma espécie de
“texto” que suscita nosso pensamento, quer dizer, nosso “espírito leitor”, encarregado
de decifrar, com precisão, aquilo que nós vemos (MERLEAU-PONTY, 1992b, p. 40-
59). É essa preponderância do mundo pensado que leva Descartes a privilegiar o dese-
nho ou a linha em relação à pintura ou à cor, quando fala do quadro como um artifício
pelo qual nós podemos traçar formas reconhecidas pelo pensamento. Isso significa que
as linhas do desenho guardam sempre a forma dos objetos que nos permitem iden-
tificá-los. Trata-se, aqui, de considerar a pintura ligada ao reconhecimento dos seres
estendidos realizado pelo pensamento. Portanto, toda a potência da pintura repousa
sobre o desenho que garante a representação de algo sobre a tela. A esse título, a visão
não é a “metamorfose das coisas mesmas” no mundo que se faz presente para o olhar
daquele que vê, mas a inspeção do pensamento de sobrevôo que pensa ver o mundo
verdadeiro para além de todo ponto de vista (MERLEAU-PONTY, 1992b, p. 41-48).
A pintura permanece assim, para Descartes, a arte de desenhar, que remete sempre ao
pensamento como a única instância capaz de determinar a forma verdadeira das coisas.
Não obstante, na base de uma outra compreensão, Merleau-Ponty (1992b, p. 42) con-
sidera que uma reflexão sobre a pintura “contribui para definir nosso acesso ao ser”. É justa-
mente nessa perspectiva que colocamos a questão da pintura como exemplo paradigmático,
permitindo examinar o problema da percepção e do aparecer no pensamento desse filósofo,
para quem, a pintura nos joga diretamente no campo de presença do “há” do visível que
nos dá possibilidade de perceber o mundo que aparece antes de todo tipo de designação.
O mundo desprovido de ambigüidades é exatamente aquele que a perspectiva filosófica de
Descartes objetivou sob a forma de pensamento. Eis porque Merleau-Ponty (1992b, p. 57)
acusa Descartes de conceber nossa relação com o mundo percebido ou existente como uma
“experiência cega”, pois é sempre necessária a intervenção do pensamento para reconhecer
aquilo que nossos olhos vêem. Nesse caso, se há necessidade imperativa de visar o percebido
como unidade objetiva do pensamento, nós não podemos afirmar que os olhos são capazes
de ver por si mesmos. Entretanto, “o pintor é um homem que não está diante das coisas,
mas que comunica nelas com uma realidade” (MALDINEY, 1973, p. 17). Essa realidade,

3 Aqui, a visão é considerada como se “toda potência do quadro [fosse] a de um texto proposto a nossa leitura, sem nenhuma
promiscuidade do vidente e do visível” (MERLEAU-PONTY, 1992b, p. 40).

197 |
Iraquitan de Oliveira Caminha

que não é a soma dos objetos que nos rodeiam, é, no fundo, o “casal” que nós formamos
originariamente com o mundo (MALDINEY, 1973, p. 18).
É verdade que Merleau-Ponty reconhece que não há visão sem pensamento. Apesar dis-
so, segundo ele, não basta pensar para ver. A visão depende sempre daquilo que acontece em
nosso corpo através das paisagens do mundo percebido em que nós existimos como seres
que podem ver. Se, de um lado, nós não podemos nos livrar da consciência, de outro, não
podemos nos livrar do corpo. Aliás, como dissemos, é impossível tratar a consciência desliga-
da do mundo percebido quando ela se torna efetivamente consciência apenas com base em
uma vida perceptiva que não cessa de existir como ser aberta para o mundo. Aqui, Merleau-
Ponty decide fazer o que Descartes quis evitar em suas meditações, a saber, habitar o visível
para poder tratar o problema da formação da visão. É no quadro de uma reabilitação da
visão, através daquilo que se oferece a ser visto, que “o mundo percebido (como a pintura)
é o conjunto dos caminhos de meu corpo e não uma multidão de indivíduos espácio-tem-
porais” concebida pelo pensamento.
Afinal de contas, Merleau-Ponty (1992b, p. 25) visa, precisamente, mostrar que a visão
“aprende apenas vendo, aprende apenas de si mesma”, quando o sujeito que percebe se en-
gaja na aventura da experiência de ver. De acordo com Merleau-ponty (1991, p. 18), nós
não apenas vemos o mundo, mas devemos também “aprender a vê-lo”, que significa dizer
que um sujeito pode perceber o percebido porquanto tem a possibilidade de fazê-lo visível4.
Fazê-lo visível significa dizer que o olhar sempre oferece a nossa visão um visível ainda não
visto. O que mais nos oferece para ser visto não é o mundo partes extra partes, submetido às
operações do pensamento puro, mas um mundo perceptível, que se mostra dinamicamente
para nosso olhar.
Para Merleau-Ponty, o pintor é aquele que quer nos ensinar a ver o mundo per-
cebido como o ser mesmo do visível, que sempre oferece algo a mais a ser visto. Em
outros termos, “o pintor nos dá a ser visto um inédito do visível”, que mobiliza nos-
so olhar para ver o mundo de uma maneira constantemente renovada (CAVALIER,
1998, p. 34). É graças a esse ponto de vista, fundado na retomada constante da ex-
periência de ver, que o filósofo prefere adotar a teoria da visão do pintor em lugar de
aceitar os pressupostos da Dióptrica de Descartes. O pintor nos abre definitivamente
o caminho, que permite examinar o movimento do porvir visível do mundo percebido
para além das representações do pensamento sob a forma de conceitos matemáticos ou
físicos. Nesse contexto, com efeito, a visão do pintor não é mais um olhar sobre um
fora, como se o mundo estivesse diante dele, através de uma série de representações.

4 Da mesma maneira, Heidegger põe o problema da aprendizagem quando examina o problema do pensamento. Segundo
ele, “para que o pensamento possa estar em nosso poder, nós devemos aprendê-lo” (HEIDEGGER, 1959, p. 22).

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Merleau-Ponty em Salvador

Insistindo em uma compreensão da visão a partir de uma alusão ao olhar do pintor


que sempre vê a partir de dentro do mundo percebido, Merleau-Ponty (1992b, p. 69)
define o quadro como “auto-figurativo”. Entretanto, a animação interna do quadro,
como configuração centrada sobre a expressão de seu próprio aparecer, não significa a
sua liberação do processo de encarnação no mundo. Pelo contrário, “a arte existe ape-
nas pelo mundo e para o mundo” (WAHL, 1961, p. 419). Em uma palavra, há uma
relação profunda entre a pintura e o movimento do mundo se fazendo visível.
O fato de definir o quadro como auto-figurativo não significa considerá-lo em si
mesmo, mas sim, tratá-lo como manifestação da instauração do próprio mundo, que
não seja constituída por um pensamento de ver, que destitui a experiência de ver,
como acontece na perspectiva cartesiana5. Claro, todos os quadros são, no fundo, “tea-
tros do mundo” (MALDINEY, 1993, p. 29). Na gênese do visível fazendo-se presença
aos nossos olhos através do quadro, não há linha visível em si e não há cor visível em
si, pois ambas encontram a expressão de sua visibilidade na visibilidade gerada pelo
mundo percebido. Assim, as interrogações de Merleau-Ponty sobre a pintura nos per-
mitem re-introduzir nossa visão no visível e, sobretudo, destacar o sistema de trocas
dos percebidos nas paisagens que determinam os meios pelos quais a visibilidade mes-
ma do visível se torna visível.
O que está em jogo, aqui, é a manifestação mesma do visível que a pintura quer
exaltar, colocando a questão da gênese do visível. Nesse sentido, “a expressividade do
percebido consiste não somente na capacidade de ter uma fisionomia, um estilo, mas
também naquela de se engajar, a cada momento, na vida venturosa da manifestação”
(SANSOT, 1922, p. 42). A expressão do percebido não é nada senão uma fisionomia
ou um estilo de ser animado pela manifestação do mundo percebido, cuja essência é
de ser um mundo em gênese para aquele que olha. É por isso que nós queremos mos-
trar que a percepção é, originalmente, uma experiência paisagística, e não, geográfica,
que concebe aquele que vê e toda forma percebida como existências suspendidas em
um espaço sobrevoado. Evidentemente, não queremos negar a noção de distância, já
que, “para perceber uma paisagem como tal, é necessário preencher uma condição: a
distância” (STOICHITA, 1999, p. 58). Entretanto, a distância tomada para ver uma
paisagem não é um afastamento para realizar uma observação pela qual o sujeito que
percebe se coloca fora da atmosfera dessa mesma paisagem.
A percepção da paisagem, no que concerne às aparências que se impõem, nunca
pode ser definida em função de um parâmetro objetivista, pois a visão, ou melhor, a
experiência de ver é, antes de tudo, uma experiência do mundo, que não significa a
5 Segundo Merleau-Ponty, “ver é, precisamente, não precisar definir, pensar, vor-stellen para ser no ... (meu corpo, minha
casa) – Presença de uma ausência se se quer – (o Deus escondido)” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 173.)

199 |
Iraquitan de Oliveira Caminha

determinação da paisagem como um conteúdo subjetivo fornecido pelo pensamento.


De acordo com Merleau-Ponty (1992b, p. 81), “a visão não é um certo modo do pen-
samento ou presença a si : é o meio que me é dado para ser ausente de mim mesmo,
para assistir de dentro à fissão do Ser, no fim da qual somente eu me fecho sobre mim”.
Mais uma vez, deve-se insistir no fato de que os dados fenomenais são os atributos de
uma relação que não polariza o fenomenal e aquele que vê, pois que ambos sempre
são modalidades de ser no mundo. É no seio dessa relação que reside a compreensão
de Merleau-Ponty a respeito do sentido perceptivo fundado no espaço autenticamente
vivido pela ação de perceber.
É na perspectiva do espaço vivido de dentro, quer dizer, do espaço que se faz direta-
mente presente para o olhar de quem percebe, que nós podemos encontrar um suporte
para interrogar aquilo que chamamos de arquitetura do quadro. O espaço que aqui se
revela não se obtém através da utilização de um modelo geométrico linear, que combi-
na figuras pontuais em um lugar determinado. Muito pelo contrário, o espaço é consi-
derado segundo a visibilidade de uma paisagem que comporta um sistema de “imbri-
cações múltiplas” (THINES, 1970, p. 137). Quando o pintor dispõe uma pincelada
de cor na tela, esta “não é um átomo indivisível que daria de um golpe só sua identi-
dade, é, antes, um nó em uma intriga de participações e variações” (TAMINIAUX,
1977, p. 84). Com efeito, uma cor colocada sobre uma tela não é uma qualidade fixa,
mas uma “existência atmosférica”, sempre submetida às relações mantidas com sua
circunvizinhança (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 174). Assim, para Merleau-Ponty
(1991, p. 248), “uma linha é um vetor e um ponto, um centro de força”, quando são
considerados como concreções de visibilidade. No espaço pictórico em que o visível
aparece dinamicamente como expressão de uma paisagem, a estruturação daquilo que
nós vemos é constantemente derivada de um sistema de tensões. Esse sistema forma,
assim, uma espécie de “lençol tensorial” que faz vibrar a paisagem do quadro para ins-
taurar a visibilidade mesma (GUIRAUD, 1970, p. 20).
Considerar a utilização da pintura como instrumento para evocar a existência de
um ponto de ancoragem entre o fenômeno perceptivo que aparece e a paisagem que lhe
permite se mostrar, como expressão do movimento do mundo que se faz visível, não
significa dizer que queremos reduzir todo o sentido da expressividade do quadro
aos resultados do jogo de tensões entre as cores, as linhas, os contornos ou outros
elementos que constituem a totalidade arquitetônica do quadro. Nossa intenção é
mostrar que o aparecer do fenômeno perceptivo realiza-se, dinamicamente, sobre
o fundo primordial de uma paisagem que modula toda forma de aparecimento. É
verdade que, nós não podemos negar que um quadro pode expressar o trágico, a

| 200
Merleau-Ponty em Salvador

melancolia, a ternura, o sofrimento, a angústia ou a serenidade como dimensões de


certos comportamentos da vida humana, no entanto, é preciso sempre reconhecer
que, para se fazer visíveis aos nossos olhos, esses sentimentos, exteriorizados no qua-
dro, precisam aparecer. Ao lado disso, para poder encontrar uma forma de aparecer,
eles necessitam de um campo de presença.
Como a experiência de perceber comporta o problema do aparecer do fenômeno
perceptivo, nós achamos que é possível indicar uma nova maneira de abordar a expres-
sividade em Merleau-Ponty, através da questão da instauração do aparecer ou do porvir
visível do mundo percebido. Isso não significa que nós queremos reduzir a atividade do
pintor a uma técnica de produção mecânica dos sistemas de agregados de pinceladas
de cores ou de arranjos de linhas para produzir uma forma determinada de aparecer.
Em outros termos, não queremos simplesmente associar a pesquisa óptica da pintura
como arte dedicada a mostrar a visibilidade no exercício arquitetônico de edificar, de
uma maneira bem calculada, uma camada de pigmentos coloridos sobre a superfície de
um quadro. Para dizer a verdade, o que nos interessa, ao falarmos da expressividade do
fenômeno perceptivo, é o sentido do porvir visível daquilo que nós vemos como ma-
nifestação irrecusável de nossa comunicação com o mundo. A arquitetura do quadro
não é nada senão o processo de estruturação efetuada pelos toques do pintor, ou seja, o
aparecer do percebido como a expressão da paisagem da tela.
Provavelmente, as reflexões de Merleau-Ponty sobre a pintura levam a radi-
calizar sua tese, segundo a qual, na experiência perceptiva, o que é visível se faz
visível mais pelo outro que por si. É nesse sentido que ele afirma que, “quando
eu vejo através da espessura da água o piso no fundo da piscina, não o vejo apesar
da água, dos reflexos, eu o vejo justamente através deles, por eles” (MERLEAU-
PONTY, 1992b, p. 70). Aqui, deixar-se aparecer é sempre a expressão de estar
entre uma rede de formas percebidas que constitui a paisagem de onde o visível
se torna visível para nosso olhar. É por esse motivo que Cézanne realiza sua pin-
tura tentando mostrar o que aparece entre uma pincelada e a outra. A nosso ver, o
olho de Cézanne se encontra com a filosofia de Merleau-Ponty na medida em que
ambos consideram que a visibilidade se forma dinamicamente no jogo de tensões
entre os diferentes percebidos que compõem a paisagem varrida por nosso olhar,
e não, através da identificação evidente de um objeto percebido, que se faz visível
como o desdobramento de uma unidade percebida absolutamente isolada. A esse
respeito, é indispensável pôr o problema do olho de Cézanne e o pathos de sua
admiração para com o mundo, e, desse modo, compreender o sentido da ontogê-
nese da visão proposta por Merleau-Ponty.

201 |
Iraquitan de Oliveira Caminha

O olho de Cézanne e o pathos da admiração para com o mundo

De acordo com Merleau-Ponty, Cézanne fez de sua pintura uma tentativa de ex-
pressão do ser, quer dizer, “de fixá-lo vivo sobre a tela” (MADISON, 1993, p. 90). É
sempre o elo originário perceptivo do ser com o mundo que Cézanne procura desven-
dar e expor em suas telas. Ele deu sentido a sua obra de pintor, através de sua própria
percepção do mundo, que é o fundamento das paisagens reveladas por suas telas. Ele
queria retornar para o mundo mesmo e pintá-lo tal como ele se manifesta, para nós,
em nossa experiência primitiva de perceber (BARBARAS, 1994, p. 63). É no desejo de
retorno ao mundo que reside todo o esforço de Cézanne de mostrar o mundo se fazen-
do mundo. Para isso, ele precisava, por exemplo, de cem sessões de trabalho para pintar
uma natureza morta e cento e cinqüenta para pintar um retrato (MERLEAU-PONTY,
1966, p. 15). Isso não significa que o pintor assume uma perspectiva realista que pre-
tende copiar uma realidade preexistente, mas ele tinha a intenção de pintar o mundo
sempre presente para nosso olhar, “este mundo primordial” em que estamos ancorados
(MERLEAU-PONTY, 1966, p. 23). É na base dessa compreensão que Merleau-Ponty
encontrou uma aproximação entre sua filosofia e a pintura de Cézanne.
Os impressionistas e, em especial, Pissaro, foram, para Cézanne, uma fonte de ins-
piração por considerarem a pintura como “o estudo preciso das aparências”, realizado
através de uma relação direta com as paisagens do mundo percebido (MERLEAU-
PONTY, 1966, p. 19). A perspectiva estética dos impressionistas queria fazer aparecer
na pintura a maneira mesma pela qual os objetos tocam nossa visão ou caem sob nos-
sos sentidos. Entretanto, Cézanne separou-se rapidamente dessa perspectiva estética
porque começou a constatar que a pintura não deve reproduzir sobre uma tela um
conjunto de percebidos comparáveis à natureza ponto a ponto, mas a ordem espon-
tânea da própria natureza. Com efeito, a tonalidade do quadro não está mais limita-
da à mistura das sete colores do prisma, mas à combinação de várias cores do prisma
ricamente alargado que comporta também as terras, os ocres e os pretos. A utilização
de uma grande variedade de cores é encarada por Cézanne como o meio de obter em
seus quadros a vibração que emana de todo espetáculo visível, vivamente presente ao
nosso olhar. A finalidade do pintor não é mostrar, por meio de sua pintura, percebidos
dissolvidos na atmosfera da paisagem, mas sim, tornar visível a densidade da presença
maciça daquilo em direção a que nosso olhar se projete para ver. Em outros termos,
ele queria pintar não os dados dos sentidos, mas a coisa, quando está aparecendo como
expressão da visibilidade da paisagem em que nosso olhar se situa para poder realizar
a experiência de ver.

| 202
Merleau-Ponty em Salvador

O olho de Cézanne procura reencontrar o pathos de nossa admiração para com o


mundo, que escapa de toda tentativa de separar, de um lado, o próprio mundo e do
outro, nossa percepção do mundo. Assim, ele procura pintar o mundo tal como ele é,
sem, todavia, pressupô-lo como uma existência para além da experiência perceptiva. É
nesse sentido que ele não abandona totalmente a perspectiva estética dos impressionis-
tas uma vez que sua pintura visa o mundo, enquanto que ele é para o olhar cuja óptica
está estabelecida no aparecimento mesmo do mundo. Para Merleau-Ponty, é exata-
mente nesse paradoxo que nós podemos encontrar o sentido da pintura de Cézanne e,
aliás, é precisamente esse sentido paradoxal que nos interessa aqui.
Cézanne quer unir a arte e a natureza, ou seja, ele quer eliminar a dicotomia entre
sua visão pessoal do mundo, tornada visível em seus quadros, e o mundo verdadei-
ro definido pelo pensamento, sob a forma de conhecimento científico (MERLEAU-
PONTY, 1966, p. 22). Segundo Merleau-Ponty (1966, p. 23), “Cézanne não achou
que devia escolher entre a sensação e o pensamento, como entre o caos e a ordem”.
Aqui, o que Merleau-Ponty (1992a, p. 279) chama de sensação é a mais simples das
percepções como uma modalidade de nossa existência no mundo. O filósofo re-in-
troduz o conceito de sensação a partir da reabilitação da experiência de ver, e não,
segundo uma determinação objetiva derivada de princípios empiristas ou intelectu-
alistas. “O sujeito da sensação não é um pensador que nota uma qualidade, nem um
meio inerte que seria afetado ou modificado por ela, ele é uma potência que co-nasce
junto a um certo meio de existência ou se sincroniza com ele” (MERLEAU-PONTY,
1992a, p. 245). Mais uma vez, o que está em jogo aqui é todo o problema da recupe-
ração do sentido do mundo tal como nós o vivemos. Assim, “co-nascimento” significa
nascimento em conjunto, quer dizer, ato comum do sujeito que sente e do meio de
existência.
Em lugar de atar-se rigorosamente às tradições de escolas que impõem, de certa
maneira, alternativas já prontas para realizar a arquitetura do quadro, Cézanne quer
fazer reviver a própria natureza em suas telas. É nessa perspectiva que Merleau-Ponty
(1992a, p. 380) afirma: “quando eu observo o verde brilhante de um vaso de Cézanne,
ele não me faz pensar na cerâmica, ele a apresenta a mim”. Isso significa que quando
nós observamos um quadro de Cézanne, assistimos à expressão de um espetáculo nas-
cido no mesmo tempo que a experiência de perceber. O pintor não quer simplesmente
criar uma obra que porta a visão, mas sim, edificar uma obra que revela a visão em sua
origem, quer dizer, a ontogênese da visão. Essa ontogênese não é outra coisa senão a
instituição mesma oriunda do encontro entre o movimento de se fazer visível do mun-
do ou de se pôr a aparecer e o poder de se dirigir para a espessura desse mundo ou de

203 |
Iraquitan de Oliveira Caminha

se pôr a ver. Trata-se de considerar a eclosão ou o início de realização6 da própria visão,


em outras palavras, sua energeia.
O problema da ontogênese da visão é claramente posto por Cézanne quando ele
“não quer separar as coisas fixas que aparecem sob nosso olhar e sua maneira fugitiva
de aparecer, ele quer pintar a matéria dando-se forma” (MERLEAU-PONTY, 1966,
p. 23). O arranjo do conjunto do espetáculo visível nos quadros de Cézanne é a resul-
tante de seu esforço para apresentar a consistência do percebido, fazendo-se percebi-
do para nosso olhar, em outros termos, a expressão do percebido aglomerando-se sob
nossos olhos. A espacialidade de seus quadros sempre se constitui pela vibração das
aparências, que é o berço das coisas percebidas. Merleau-Ponty (1966, p. 29) assevera
que, em Cézanne, “há um único motivo, é a paisagem em sua totalidade”. Com efei-
to, se o pintor não nega totalmente a tradição e a ciência quando, por exemplo, visita
o Louvre para aprender a maneira de pintar de outros artistas ou quando ele estuda a
geologia para compreender a formação da superfície da terra seu objetivo essencial é
sempre pintar o mundo, convertê-lo inteiramente em espetáculo. Isso não quer dizer
que o pintor não interprete a arte de pintar, mas essa interpretação, para Cézanne, não
deve ser um pensamento separado da visão.
O olho de Cézanne que, uma vez por todas, não é “o olho abstrato” da filosofia car-
tesiana, germina com a paisagem (LACAN, 1961, p. 246). Ele observa o mundo não
como um meio de objetos construídos como utensílios dos quais, o mais freqüentemen-
te, nós pensamos que existem necessariamente conforme sua utilidade. Em outras pala-
vras, ele observa o mundo a partir do fundo da “natureza desumana”, que vai até às raí-
zes para aquém da humanidade (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 22). É por esse motivo
que seus quadros exaltam a anterioridade e a preeminência da paisagem. A intenção de
Cézanne de restituir, através de sua pintura, a prega insuperável que nós formamos com
a natureza não tem, todavia, a pretensão de nos desatar de nosso mundo cultural. Em
suma, da mesma maneira que a filosofia de Merleau-Ponty, ele visa re-mergulhar nosso
olhar no mundo para redescobrir a experiência da perplexidade que renova constante-
mente nossa experiência perceptiva. Assim, é justamente para adotar tal ponto de vista
que ambos consideram que “a paisagem participa da eternidade da natureza, um sempre
já aqui, antes do homem, e provavelmente, após ele” (CAUQUELIN, 1989, p. 31). Evi-
dentemente, para Merleau-Ponty (1988, p. 92) a natureza não é evocada para atestar que
nós estamos no em si, mas para mostrar a “circularidade entre o homem e o mundo, que
é a percepção” (MADISON, 1972, p. 95). Eis porque Cézanne dizia que a paisagem se
pensa nele e que ela era sua consciência (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 30).

6 Segundo Heidegger, “início de realização” significa exatamente “instituir” (HEIDEGGER, 1962, p. 37).

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Merleau-Ponty em Salvador

Cézanne considera a paisagem como um organismo nascendo que ele queria tra-
zer vivo para um quadro. Já que sua pintura não é somente a transposição de uma
paisagem primeiramente vista do lado de fora e, depois, disposta em um quadro, nós
pensamos que ele quer deixar a própria natureza se mostrar através de suas pinceladas
vibrantes. Aqui, o fenômeno perceptivo é apenas a expressão que emerge da paisagem
vivamente presente para o nosso olhar. Em nossa opinião, há um sentido de expressão
que não é derivado apenas da maneira de viver que Cézanne expressa em seus qua-
dros, nem da possibilidade de sugerir diversas interpretações em torno dos assuntos
exteriorizados por suas telas, mas sim, do movimento mesmo de aparecer do fenôme-
no perceptivo enquanto fenômenos que se mostram ou se fenomenalizam de acordo
com sua pertença a uma paisagem freqüentada por nosso olhar. Entretanto, nós não
queremos negar que há um elo entre a vida e a obra do artista e que podemos sempre
submeter uma obra a interpretações para saber quais significações ela porta. Em outros
termos nós não queremos contestar que um caráter esquizóide, provavelmente desen-
volvido por Cézanne, não seja exprimido em seus quadros ou que seja possível identi-
ficar a expressão de sofrimento ou de alegria manifestada em uma tela determinada de
Cézanne. Sob esse ângulo, nós não podemos recusar o fato de que existe uma maneira
de examinar o problema da expressão da pintura e de toda manifestação artística em
geral, a partir do caráter simbólico da obra de arte. Isso quer dizer que é possível, por
exemplo, sustentar que o desenho de uma criança “não corresponde sempre à realida-
de das coisas, mas à expressão de um caráter e de uma atitude” (MERLEAU-PONTY,
1998, p. 220). Todavia, queremos pôr em evidência uma outra abordagem do proble-
ma da expressão fundada sobre o movimento do porvir visível daquilo que nós vemos,
ou seja, sobre a juntura entre o aparecer e o movimento de se mostrar ou de se exterio-
rizar do fenômeno perceptivo.
Nós situamos aquilo que designamos como “a expressividade do fenômeno” no
contexto em que Cézanne afirma que ficou muito tempo sem poder pintar a mon-
tanha Sainte-Victoire, porque ele imaginava a sombra “côncava” como se ela existisse
centrada sobre si mesma (GASQUET, 1988, p. 135). Portanto, é somente após ter
mantido seu olhar de maneira a ver que a sombra é, no fundo, “convexa”, quer dizer,
fugindo de seu centro, que ele retomou sua série inacabada da montanha Sainte-Vic-
toire (GASQUET, 1988, p. 135). É exatamente essa compreensão de convergência
em direção para o exterior que nos dá o fundamento para falar de uma expressividade
do fenômeno. Evidentemente, isso não quer dizer que a expressividade é usada, aqui,
para afirmar a exteriorização de um ser já existente, mas para sublinhar que a ação de
se exteriorizar é o modo mesmo do visível que se instaura como visível no mundo per-

205 |
Iraquitan de Oliveira Caminha

cebido. Nós podemos compreender o sentido que Merleau-Ponty (1966, p. 26) quer
dar à expressividade quando considera que “a expressão daquilo que existe é uma tarefa
infinita”. Mais uma vez, nós podemos constatar o encontro entre a pintura de Cézanne
e a filosofia de Merleau-Ponty em relação ao caráter inacabado de suas obras.
Cézanne e Merleau-Ponty procuram compreender nossa experiência de ser no
mundo, que se faz dinamicamente visível para nós. Ambos se interessam pelo tema da
percepção a partir da visão que se estabelece na relação que nós mantemos por meio de
nosso corpo com as paisagens do mundo percebido. É claro que, ver implica sempre um
olhar que se dirige em direção para o mundo, como já assinalamos. Dessa maneira, as
coisas percebidas, concebidas pelo pensamento como objetos identificados precisamen-
te, perdem sua estabilidade par ganhar um estatuto variável em função da paisagem em
que elas estão situadas, quando o olhar se lança livremente no conjunto aberto do mun-
do para ver cada vez mais. É a esse enigma de “ser apenas pelo outro” que nós referimos
todas nossas perguntas sobre o problema da percepção e do aparecer em Merleau-Ponty.
Nós pensamos que é na visão do pintor e, particularmente, na visão de Cézanne, que
Merleau-Ponty indica um encaminhamento para seguir todos os momentos do proble-
ma. Assim, é no seio da pintura, que “oferece à visão não objetos, mas o elo entre os ob-
jetos”, que nós podemos encontrar a paisagem sobre a qual se abrem nossos olhos para
construir a ontogênese da visão (COUQUELIN, 1989, p. 72). Isso não significa que
Merleau-Ponty considera que a visão de Cézanne é intrinsecamente diferente daquela
de todos os outros sujeitos que percebem, ele quer assinalar que, na visão do pintor, há a
vontade de pôr em evidência o enigma da própria visão.
Segundo Merleau-Ponty (1966, p. 33), os quadros nascidos do olho de Cézanne são
manifestações de uma vida muito singular e, ao mesmo tempo, do “logos infinito” do
mundo sensível que nos envolve e nos traspassa. Merleau-ponty (1993, p. 60-61) quer
pôr em discussão o hiato, introduzido na história da pintura por Malraux, entre a sub-
jetividade criadora do pintor e o mundo percebido que nos é revelado por seus quadros
(MALRAUX, 1947). Para Merleau-Ponty, na fase do estabelecimento do visível, as hesi-
tações do pincel do pintor, enquanto poder de expressão para além de todos os quadros
já realizados, e a intenção de criar o visível, enquanto expressão do mundo que se oferece
à visão na tela, são ações entrelaçadas. Com efeito, “a obra não se faz longe das coisas e
em algum laboratório íntimo, cuja chave só o pintor possuiria” (MERLEAU-PONTY,
1993, p. 68). A pintura é sempre um meio de comunicação com o mundo, quer dizer,
de encontro com o mundo que nos solicita continuamente a vivermos a experiência de
perceber. Por isso, para aplicar ou inventar uma técnica, o pintor precisa ser pintor já
no mundo.

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Merleau-Ponty em Salvador

Aos olhos de Merleau-Ponty (1996, p. 169), a “pintura é segregação do Ser em que


somos primeiramente e não construção de ‘traços do Ser’ que daria dele a ilusão ou a ana-
logia”. A transformação em pintura daquilo que nós vemos pressupõe, portanto, o con-
tato que o pintor mantém constantemente com o espetáculo do mundo percebido, que
nunca cessa de aparecer a nossos olhos. É sempre a respeito do mundo irrecusável, em
que aquilo que é visível para nosso olhar não são coisas isoladas mas paisagens, que o pin-
tor pinta. Nesse sentido, a história da pintura não pode ser tratada como um balancete,
onde seriam progressivamente registradas a invenção e a perfeição de procedimentos ou
técnicas destinadas a reproduzir com o máximo de exatidão a natureza. Merleau-Ponty
sublinha que, em última análise, a visão do pintor e a do artista vêm da natureza ela mes-
ma (TYMIENIECKA, 1988, p. 302). Aqui, não faz sentido estabelecer uma distinção
entre o que é do artista e o que é da natureza, ou ainda, entre o que uma nova obra tem
de original ou de tradicional. Devemos concluir disso que a perspectiva, por exemplo, é
muito mais do que um segredo técnico para imitar a realidade da natureza que se apre-
sentaria tal qual para todos os homens, mas que ela, é antes de tudo, “a invenção de um
mundo” que provém do esforço de mostrar o visível se fazendo visível para nosso olhar
(MERLEAU-PONTY, 1993, p. 63).
Assim, para Merleau-Ponty (1992b, p. 16), “é emprestando seu corpo ao mundo que
o pintor transforma o mundo em pintura”. Logo, a atividade de pintar é sempre realiza-
da pela condição de ser de imediato no mundo, vivida pelo pintor. O pintor não pinta
no espaço em si com um “corpo-coisa”, mas no “espaço percebido” com um corpo-fe-
nômeno (MERLEAU-PONTY, p. 82). Nesse quadro, quando a pintura é considerada
segundo a experiência de ter um mundo por meio de um corpo que percebe, o quadro
nunca está diante de nós como um objeto visto do lado de fora. Mesmo que, segundo
Gilson (1972, p. 29), nós possamos considerar o quadro como “um sólido situado em al-
gum lugar no espaço”, “ele é sempre uma certa montagem em relação ao mundo” em que
nós estamos engajados, enquanto seres que percebem (MERLEAU-PONTY, 1992a, p.
350). Segundo Merleau-Ponty, o mundo é o fundo sempre presente que nunca recua,
quer dizer que sempre permanece como um campo aberto de paisagens percorridas por
nosso olhar.
Pintar não é se despedir do mundo sensível para entregar-se a uma interioridade
finalmente invisível, e cuja obra traduziria uma visão privada ou um ponto de vista
escondido pelo artista. Merleau-Ponty não pensa a arte como trancada no mais ínti-
mo do indivíduo, mas como a experiência de um sujeito que estar ligado à existência
do mundo. É exatamente a experiência perceptiva que o pintor reinstala sempre no

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Iraquitan de Oliveira Caminha

mundo7. Ora, em relação a essa opinião, a pintura é uma maneira de o pintor habitar
e assumir o mundo. Deve-se, assim, diz Merleau-Ponty (1966, p. 15), considerar que,
para Cézanne, “a pintura foi seu mundo e sua maneira de existir”. Por meio da pintu-
ra, Cézanne mostra que o mundo para o qual ele olha não está fechado em si, mas é
um meio aberto que, durante a vida toda, ele quis fazer viver em seus quadros. Nesse
sentido, o espaço do mundo percebido nunca é um espaço descrito sozinho como um
continente puro, como se pudéssemos pintar objetos dissolvidos no ar.
A pintura de Cézanne ilustra muito bem que as coisas percebidas, quando se apre-
sentam à visão, valem apenas pelo conjunto, já que não são objetos reconhecidos
separadamente. Aquele que vive a experiência de ver não é um observador absoluto
abordando o mundo do fundo do nada. Se o sujeito que percebe e os percebidos estão
sempre situados no mundo percebido, através de uma implicação mútua, o olhar não
pode ser considerado como um pensamento de sobrevôo que assiste, estaticamente, ao
aparecer do fenômeno diante dele, sem o pathos da admiração de estar já em relação
com o mundo. Evocando uma ontogênese da visão através do olho de Cézanne, Mer-
leau-Ponty pretende respeitar a exigência fenomenológica de abordar os percebidos
com base em seu modo de doação. E, simultaneamente, ele requer a necessidade de
examinar, de maneira ontológica, a instauração do porvir visível dos percebidos, na re-
alização dinâmica de seu aparecer, como expressão das paisagens do mundo percebido.
A abertura para o mundo que nosso olhar nos oferece não é independente do
movimento do aparecer perceptivo como apresentação de um mundo, porque, para
Merleau-Ponty, aquele que vê não pode se livrar “da contingência de uma situação”
(LEFORT, 1978, p. 142). Na experiência de ver no solo do mundo, nunca se vê um
percebido inteiro sob nosso olhar como uma realidade pensável que não comporta
nenhuma indeterminação. Aqui, o aparecer do percebido não é definido por si mes-
mo como um objeto determinado sobre o fundo de um nada prévio. Daí, liberado do
pressuposto de um nada prévio, nosso olhar pode retomar sua experiência de ver o
mundo para constatar a existência de uma tensão permanente entre os percebidos situ-
ados na paisagem de onde eles se fazem visíveis. É nesse sentido “que o visto não coin-
cide consigo mesmo, ele se produz como unidade de si mesmo e daquilo que o excede”
(BARBARAS, 1999, p. 205). Desse ponto de avista, o ser do visível não é distinto de
sua operação de se fazer visível, que se atualiza nas paisagens do mundo percebido.
É assim que, nos quadros de Cézanne, toda forma está submetida a uma dinâmica
de mutações em que nada existe senão pela vibração do todo sob nossos olhos. O pin-

7 De acordo com Merleau-Ponty, “o pintor é o único a ter direito de olhar sobre todas as coisas sem nenhum dever de apre-
ciação” (MERLEAU-PONTY, 1992b, p. 14).

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Merleau-Ponty em Salvador

tor compreendeu muito bem que uma pincelada de cor a mais ou a menos e uma linha
auxiliar acrescentada são suficientes para transformar a configuração de suas telas. Para
Merleau-Ponty (1992a, p. 372), a pintura de Cézanne “é uma tentativa de encontrar a
fisionomia das coisas e dos rostos pela restituição íntegra de sua configuração sensível”.
É considerando a pintura nessa perspectiva que, para obter a articulação dos elementos
de uma paisagem como um sistema de instâncias múltiplas, Cézanne recorre às suas
célebres “deformações”, com a intenção de estruturar, de maneira dinâmica, a eclo-
são do visível em seus quadros (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 25). Provavelmente é
o visível, enquanto surgimento dinâmico de um mundo sob os olhos, que Cézanne
sempre queria pintar.
Nesse contexto, a invenção da fotografia, que tornou possível uma equiva-
lência entre tudo o que o olho vê e tudo o que a lente do aparelho “vê”, não in-
terrompeu as interrogações de Cézanne sobre o aparecer do mundo a partir da
pintura. Segundo ele, as aparências não esgotam o ser mesmo do porvir visível,
elas constituem apenas um aspecto dele. Os questionamentos de Cézanne sobre
a ação da pintura, tornando-se visível, fizeram dele o mais filósofo dos pintores
(DELACAMPAGNE, 1988, p. 20). Ele não somente queria pintar, mas também
dizer a verdade na pintura (DERRIDA, 1978, p. 6). A pintura de Cézanne é o
fruto de uma reflexão permanente sobre a manifestação mesma do visível ou o
brilho do aparecer que caracteriza, na sua essência, a arte de pintar. É por esse
motivo que Merleau-Ponty afirma que a pintura de Cézanne nos permite abor-
dar o pôr-se a se mover ou a êxtase do olhar que oferece à nossa visão o mundo
percebido como percepção da paisagem que porta a expressividade do fenômeno.
O que está em jogo, aqui, é a experiência de ver, que edifica a visão através dos
movimentos de nosso olhar, o qual está sempre situado nas paisagens do mun-
do percebido. Com efeito, logo que um sistema de interação entre os corpos que
percebem e as coisas percebidas e, ao mesmo tempo, entre as coisas percebidas
elas mesmas, é dado no solo de um mesmo mundo, o problema da espacialida-
de deve ser posto para compreender como o visível se torna visível por meio de
um olhar que vê apenas segundo uma paisagem. Trata- se, assim, de examinar
constantemente a constituição de um espaço em que aquele que vê se coloca a
distância para ver, porém continua em contato permanente com as paisagens do
mundo percebido. Nós queremos, então, pensar em um tipo “de espaço da con-
taminação”, por meio do qual aquele que vê só pode ver segundo uma aderência
primordial ao mundo a partir de seu corpo que percebe habitando o espaço (ES-
COUBAS, 1995, p. 35).

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Iraquitan de Oliveira Caminha

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| 212
Passividade e criação:
pintura e abertura, a partir de Merleau-Ponty1

Stéphanie Ménasé

A idéia de trabalhar com a passividade nasceu de certa experiência que fiz em pin-
tura. Ao trabalhar, não tive de modo algum a idéia de um sujeito atuante; logo depois,
tive a impressão que o movimento me escapava.
Mas, se ao fazer, não sei quem faz, será que faço verdadeiramente? Será que aquilo
que creio “atividade” não seria apenas “passividade”? Formulei esta experiência pela
idéia de que no momento que pintava não havia ninguém. Ninguém. Porém, algo se
passou, pois me sentia diferente antes e depois do trabalho. Ninguém..., mas a experi-
ência de um antes e de um depois, de um tempo, de um momento suspenso ao olhar
de uma consciência. Tinha apenas a impressão de ter ganhado espaço após o trabalho.
Constatei: há algo no processo de pintar que escapa ao sujeito reflexivo, à consci-
ência de si.
Mas que algo me escape neste processo de pintar não basta para pôr em questão
a realidade de meu ato, já que não havia ninguém durante, mas depois me sentia um
pouco diferente, havia um quadro, que eu era portadora de gestos que aí se encontra-
vam, novas vias e novas interrogações, novos horizontes de pesquisa.
O que estava fazendo, o que estava acontecendo, enquanto estava totalmente ab-
sorvida na atividade de pintar?
Rapidamente constatei, depois de recolher alguns testemunhos, que esta experi-
ência foi partilhada por numerosos artistas e escritores. Observei traços semelhantes
desta experiência em Jean Arp, Bram Van Velde, Jean Dubuffet, Nicolas de Staël, Zao
Wou-ki, Robert Rauschengerg, Daniel Spoerri, etc.
Descobri em notas de Merleau-Ponty a mesma constatação em relação ao pensamen-
to que tive ao pintar. Merleau-Ponty declarava: “Nós não sabemos o que pensamos”2 e
assim põe a questão da transparência do pensamento para um sujeito que pensa.

1 Agradeço a Monclar Valverde pelo convite para participar do Colóquio por ele organizado em Salvador, Bahia, em home-
nagem ao pensamento de Maurice Merleau-Ponty e onde tive a oportunidade de expor pesquisas que me são caras. Também
agradeço calorosamente a Leandro Neves Cardim pela tradução de meu texto. Enfim, agradeço a Universidade Federal da
Bahia, o Ministério das Relações Exteriores e a Aliança Francesa de Salvador, Bahia, pela ajuda financeira.
2 Merleau-Ponty, M. “A ontologia cartesiana e a ontologia de hoje”, in Notes de cours au Collège de France, 1959 et 1961.
Editado por Stéphanie Ménasé e Prefácio de Claude Lefort. Paris… Gallimard, 1966, p.163.

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Stéphanie Ménasé

Além deste eco em relação ao meu trabalho, esta experiência tornou-me atenta à
frases de Merleau-Ponty como: “A filosofia nunca falou – não digo da passivida-
de: não somos efeitos – mas diria da passividade de nossa atividade”.3 Ou ainda:
“por mais novas que sejam as iniciativas, elas nascem no coração do ser, elas são
oriundas do tempo que irrompe dentro de nós”.4
Ora, na formulação da ontologia que encontramos em O olho e o espírito, redi-
gido durante o verão de 1960, Merleau-Ponty liga a visão à fissão do ser em nós:
“Ver é o meio de assistir de dentro a fissão do ser”5 (OE, p.81). Não é unicamente
pelo ato que esta gênese toma corpo sobre a tela, é na conjugação do movimento
(que é visão) e da visão (que é movimento) que ela toma corpo.
Merleau-Ponty, em seus últimos trabalhos, considera as pesquisas em arte
como fundamentais, e é nesta medida que ele se refere a elas; é também sob este
aspecto que quero me reportar a elas e interrogá-las para aproximar da passivi-
dade em obra no processo de criação. Minha experiência da passividade em pin-
tura, reforçada por um lado pelos discursos de Merleau-Ponty, e de outro, pelos
testemunhos dos artistas, me convenceu a interrogar esta estranha passividade
em obra.

I. Tornar sensível à passividade pelo viés da arte



Que os artistas chamem “passividade”, “inconsciente”, “acaso”, “imprevisto”,
etc., todos colocam o acento sobre o movimento, sobre a maneira de proceder
antes de tentar definir suas intenções ou suas visadas. É preciso sublinhar que
estes testemunhos são reflexões a posteriori e que, todavia, a passividade inscre-
ve o trabalho artístico na operação não-teleológica. Aliás, alguns artistas às vezes
exploram muito paradoxalmente as possibilidades deste movimento, mas fazem
tender esta passividade em direção a uma forma equivalente a um mecanismo. E
esta modalidade reúne a acepção de uma passividade como certo “laissez aller”,
o que atinge a negligência. Ora, é a passividade ligada a um fazer que é aqui in-
terrogada. Nesta passividade, enquanto dimensão ou componente das atividades
criadoras, não se trata de negligência, de “deixar acontecer”.

3 Idem, Le visible et l’invisible. Editado e Posfaciado por Claude Lefor. Paris: Gallimard, 1964, nota de trabalho, novem-
bro de 1959, “Tel”, p.274.
4 Idem, ibidem, p.274.
5 Idem, L’Œil et l’esprit. Prefácio de Claude Lefort, Paris : Gallimard, 1964; reeditado por “Folio essai”, p.81.

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Merleau-Ponty em Salvador

A. O que é a passividade?

Para começar, é preciso distinguir esta passividade de toda ociosidade ou inércia,


ou ainda, de apatia; esta passividade que vem dobrar todas as atividades é, antes, a
forma de certa ausência a um “si” da reflexão, certa suspensão da consciência tética,
quer dizer também e, por via de conseqüência, dimensão surpreendente da forma ou
da orientação que toma a obra e engrena uma modalidade específica do próprio ato
enquanto criador. A passividade traduz este fenômeno de escapamento de todos os
atos, até mesmo daqueles que parecem ser os mais singularmente não apenas livres,
autônomos ou definidos unicamente por seu iniciador, mas aparentemente não liga-
dos, sem laços de constrangimento, de obrigação ou de necessidade, o que poderia pa-
recer o menos tributário das leis de causalidade. Ora, freqüentemente, pelo contrário,
a passividade no trabalho artístico se caracteriza pelo consentimento a uma dimensão
mundana e contingente da experiência.
Se a criação artística é tomada como modelo, é porque ela aparece como a menos
designada a priori a um fim, donde, também, uma possibilidade de aproximar-lhe a pas-
sividade de uma maneira menos camuflada que em outras atividades (digo “camuflada”,
porque a idéia de uma aproximação direta da passividade é no mínimo problemática).
A atividade artística vive nas imediações da passividade, mas como não posso en-
trar nos detalhes de práticas artísticas, proponho alguns exemplos de obras deixando
espaço para a passividade em seus movimentos. Estes exemplos são por vezes acompa-
nhados por citações e por falas dos artistas; todavia, elas não serão comentadas aqui.
Minha idéia é, com estes exemplos, torná-los sensíveis a uma dimensão talvez mais
dificilmente acessível de modo abstrato.
Ao considerar diferentes formas de passividade em arte, constatamos que a obra
de certos artistas trabalha esta dimensão da passividade explorando-a tecnicamente.
É o caso de Michaux e a água: “evitar a ‘longa mancha feita baba’ que sem ser reti-
da, poderia invadir todo o espaço”;6 de Dubuffet e as intempéries: “o vento trazendo
minhas folhas e os cães pisando em cima”;7 ou de Duchamp e os fenômenos da física
como a gravidade ou o calor. A nota manuscrita para “O grande vidro” nos oferece
um exemplo disso:

“O regime da gravidade –
Ministério das coincidências.

6 Michaux, H. Émergences-résurgences. Gèneve: Skira, 1972, p.58.


7 Dubuffet, J. Prospectus et tous écrits suivants. Paris: Gallimard, 1967, t.2, p.143.

215 |
Stéphanie Ménasé

Departamento
(ou melhor):
Regime da coincidência
Ministério da gravidade.
Quadro ou escultura.
Recipiente plano em vidro – [recebendo]
todo tipo de líquidos coloridos, pedaços
de madeira, de ferro, reações químicas.
Agitar o recipiente e olhar
Por transparência – ”8

Encontramos uma outra forma de passividade nos esgarçamentos de Jean


Arp (cf. Duo-rasgado dos elementos de Sophie Taueber e Jean Arp, 19479), ou ainda nas
decalcomanias de Max Ernst (cf. A floresta petrificada, 192910).
Todos libertam a experiência ou se reportam a ela sob um modo dinâmico.

B. Ponto de partida das pesquisas de arte não-figurativa.

Aquilo que pelo trabalho da abstração ou “não-figurativo” é posto em questão é um


ato criador concebido como tendo por origem uma subjetividade criadora. Há criação
como há criação na natureza, ou seja, anônima.
Este aspecto da atividade em arte como pesquisa das possibilidades de uma não-
intervenção racional torna possível as formas de uma arte liberta dos modelos acadê-
micos e conduz os artistas a desenvolver o modo corporal da atividade e também de
deixar uma parte ao contingente na elaboração da obra. A intervenção racional é subs-
tituída por uma intervenção corporal.
Através de que meio reduzir a intervenção subjetiva?
Com a técnica dos papéis cortados, Jean Arp (Colagem segundo as leis do acaso, 1916,
colagem sobre papel, 26 x 12,5 cm, Kunstmuseum Basel, Jupferstichkabinett/ Schenkung
Marguerite Arp-Hegenbach/ãKunstmuseum Basel, Martin P. Büler) procura reduzir a inter-
venção da fantasia compreendida como manifestação exemplar da subjetividade no sentido
de um individualismo ou de um particularismo e, ao compor segundo as “leis do acaso”, sua
idéia é de reencontrar o coeficiente de facticidade e sua irredutibilidade.
8 Duchamp, M. Note autographe pour Le grand livre: “Régime de la pesanteur”, 1912-1915, Mss. Paris, Musée Natio-
nal d’Art Moderne – Centre Georges Pompidou.
9 Dou-dessin déchiré aux éléments de Sophie Tauber et Jean Arp, 1947, colagem de duo-desenhos impressos e esgarça-
dos sobre papel, sobre meio-papelão branco, pintura a cola, 30,4 x 23,2 cm, Bâle, Öffentlich Kunstsammlung.
10 Ernest, M. La forêt pétrifiée, 1929, risco de lápis no avesso de uma gravura do século XIX, 74 x 80 cm, Paris, Musée
National d’Art Moderne – Centre Georges Pompidou.

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Merleau-Ponty em Salvador

A passividade pode ser traduzida pela pesquisa de uma intervenção reduzida


ao mínimo. É a idéia de Jean Arp, como dos suprematistas ou dos construtivistas,
no momento que ele acentua a composição de elementos a disposição ou produtos de
maneira mecânica. Vemos isto, por exemplo, no papel que ele atribui ao “acaso”, seja
quando rasga, seja quando coloca pedaços de madeira flutuantes ou ainda usando re-
síduos. É também o caso de Kurt Schwitters.11
A passividade pode também se caracterizar pela ausência ou diminuição do traba-
lho reflexivo. Deixar-se guiar pela obra que está nascendo (pressupõe um princípio
interno à obra, a sua maneira de aparecer, ou seja, de modelar-se). Penso também em
Rodin (O pensamento, 1886-1889, mármore, escultura, 74,2 x 43,5 x 46,1 cm, Paris,
Museu d’Orsayã ADAGP/ã RMN (Museu d’Orsay)/Jean Schormans) e em sua idéia
de que a forma já está no bloco de pedra ou de madeira, que seu papel de artista é
estritamente de extraí-la, de fazê-la aparecer, ou seja, ele é o mediador ou o daimon.
Podemos pensar também nas esculturas de Jean Arp que diz esculpir como se cativa
uma nuvem (o que, aliás, não é fácil).
“Enfeitiça-se a nuvem com um ar de violino sobre um tambor ou de um ar de tam-
bor sobre um violino. [...] / É assim que em um golpe de mão o escultor realiza a mais bela
das esculturas.”12
Deixar-se levar é uma outra possibilidade: os artistas fazem essa experiência diante dos
grandes formatos que requerem uma grande liberdade gestual, uma livre mobilidade. Pen-
samos em Zao Wou-ki, Willem De Kooning, Joan Mitchell, etc.13
A passividade também pode caracterizar-se por um questionamento do papel da aten-
ção: Dubuffet escreve em 1958: “a atenção mata aquilo que ela toca”.14 À sua maneira,
acentuando as condições de impossibilidade da obra, Dubuffet mostra que a atenção é uma
das maiores. Ela transforma o trabalho artístico em uma produção segundo uma relação de
exterioridade entre o modo de ver e o objeto.
Simon Hantaï, por sua vez, evoca a necessidade, no seu método, de um olhar flutuante.
“Falta de atenção, distração, atenção espalhada, flutuante, periférica, descentrada,
délocalisée. [...] Pintar sem ver, olhando para outro lugar, vacante, ausência de valores,
de conteúdo, desocupado, desabilitado, vago...”.15

11 Por exemplo, Kurt Schiwitters, MZ 1926, 2. selbst oben 1926, colagem 12,5 x 9,3 x 0,4 cm, Paris, Musée National d’Art
Moderne – Ceorges Pompidou.
12 Arp, J. Jours effeuillés. Paris: Gallimard, 1966, p.447.
13 Por exemplo, Joan Mitchell, A small garden (1980 ?) óleo sobre tela, 2.545 x 7.200 m, Paris, Musée National d’Art Mo-
derne – Centre Georges Pompidou. É preciso sublinhar que este quadro de 2 m 50 sobre 7 m 20 se intitula “Small garden”,
o que dá, é verdade, um “pequeno jardim”, mas um grande quadro.
14 Dubuffet, Apercevoir, 23 de março de 1958, in Prospectus. Op. Cit., t.2, p.61.
15 Hantaï, S. Citado por G. Didi-Huberman. L’étoilement. Paris: Minuit, 2005, p.81.

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Stéphanie Ménasé

Ao questionar os modelos do artista como origem ou fonte, os práticos modernos e


contemporâneos evacuam os modelos da criação como produto de um ato puro ou de uma
subjetividade pura, conduzida por um controle total. As vidas dos pinceis de Jean Arp (Vida
de pincel, guache, 24 x 16,6/ãKunstmuseum Basel, Kupferstichkabinett/Schenkung Mar-
gueritte Arp-Hagenbachã Kunstmuseum Basel, Martin P. Bühler) são um exemplo disto.

C. Enumerações de diferentes formas da passividade na arte.

Podemos enunciar diversas condições para deixar essa passividade trabalhar ou


operar: a velocidade, por exemplo; alguns meios: secagem lenta, submissos à gravida-
de; às mudanças de ritmo assim como às mudanças de humor. O encontro de impasse
ou ainda o que Paul Klee (Paisagem com pássaro ípsilon, 1925, aquarela, 14 x 23 cm,
coleção particular /ã Gnika, Berlin) chama de acidente no trabalho.
O próprio acidente pode tomar outras formas: ele pode ser provocado como no
momento em que amarrotamos o papel – o que faz Zao Wou-Ki, mas também ou-
tros paralelamente. Ele pode ser posto em cena como o faz Daniel Spoerri (Os ossos do
Szkely guljas, em colaboração com os ratos da Galeria Schwrtz, 1960, quadro-armadilha,
50 x 50 cm, coleção privada/ã Bacci, Milão) em seus “quadros armadilhas” ou suas
“topologias do acaso”.
A passividade também pode se reportar a meios técnicos. Com sua técnica dos dri-
ppings, Pollock não fez senão medir a tela, ou dançar sobre a tela.
Também localizamos a passividade em relação a processos como os pingos, com o
movimento de um líquido que escorre de Bram van Velde (Sem título, Rue des Grands
Augustins, Paris, 1961, Óleo sobre tela, 132 x 196 cm, ã Stedlijk Museu, Amsterdã).
Ela se encontra, as vezes, em relação ao movimento do corpo, visível por exemplo
no toque fulminante de Goya. Em O colosso,16 o movimento foi acentuado pela dinâ-
mica inversa do céu de onde emerge o colosso. Ele é como a transposição do movi-
mento do corpo do artista trazido para seus gestos.
A passividade opera nos e pelos gestos. Certas vezes, não chegando a alcançar o efeito
que procura, Francis Bacon lança sua esponja; ele perde o controle. E ele se explica em
relação a este gesto descontrolado: “Freqüentemente, eu não sei na verdade o que vai fa-
zer minha pintura e ela faz muitas coisas melhores do que eu poderia lhe fazer”.17
A passividade está em obra também nestas mudanças de ritmo. Nicolas de
16 Goya, F. Le colosse, 1808, óleo sobre tela, 116 x 105 cm, Madri, museu do Prado.
17 Bacon, F. L’art de l’impossible. Entrevista com David Sylvestre, Gèneve: Skira, 1976, p.44.

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Merleau-Ponty em Salvador

Staël escreve: “É preciso trabalhar muito, uma tonelada de paixão e cem gramas de
paciência”.18 O que espera, procura, solicita, Nicolas de Staël, por exemplo, aquilo
com o que ele conta, é uma possibilidade, uma capacidade, talvez de “medir o brilho
até o fim”. E ele acrescenta: “se tudo ocorrer bem”. Do que depende este sucesso? Seu
amigo, Jean Adrien, fala de um “ritmo gerador” e de inspiração, mas recusa a idéia de
um quadro como resultado de uma “inconsciência”. Staël replica que o ritmo não é
dado, nem regular, que o quadro é o espaço de captação de certa ancoragem no mun-
do. Conseqüentemente, o “ajustamento” não é, para ele, uma decisão, mas o movi-
mento no qual o artista “como não sei quem” é o meio, o agente. Não há decisão,
porque não há um sujeito estabelecido que projeta. O sujeito agente é subjetividade
apenas a título de “eu posso”. O passado torna possível a abertura. Ele não é posição,
mas integração de potencialidades e de experiências.
Encontramos, ainda, esta dimensão da passividade em relação à incidência do im-
previsto na obra. Ela pode tomar a forma de exploração de um esgarçamento, de um de-
feito, de uma fratura. Na litogravura intitulada Acidente (1963), Rauschengerg integra a
fratura de seu suporte no momento da impressão. A fratura torna-se uma parte da obra.
A interrupção também deixa um lugar para a passividade. Jean Arp escreve: “O fato
de ter sido preciso interromper ou abandonar incidentalmente um trabalho é talvez o
momento decisivo, a ação essencial do nascimento de uma obra”.19

D. Mudança do olhar lançado sobre a prática artística.

Este exame da passividade em obra convida a se inclinar sobre a arte na sua maneira
de proceder e não como produto acabado ou para um olhar inteiramente constituído.
Sob este ângulo de aproximação, podemos extrair elementos ou formas emergentes
de maneira característica na pintura moderna. Assim, a presença de “manchas” ma-
nifesta este desejo em obra de uma abolição de uma forma de “fazer”, de gestos con-
cordantes, movimento de libertação dos gestos, de tal maneira que haja escapamento
da obra como sua vida e sua potencialidade. A obra surge através de uma experiência
de desapego. A mancha parece o objeto que de maneira mais elementar faz tocar a
possibilidade de um engendramento sem preço, não concordante, faz aproximar do
caráter inesperado, não premeditado ou predeterminado do engendrado, que se revela
sem relação com aquilo que provocou o engendramento, surgindo como inarticulado,
18 Staël, N. Catalogue raisonné. Editado por Jean Dubourg. Paris: Le temps, 1968, p.72.
19 Arp, J. Jours effeuillés. Op. cit., p.419.

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Stéphanie Ménasé

deixando surgir como o inarticulado, do obscuro. Penso principalmente nas pinturas


de Sam Francis.20
Será que a passividade que nos interessa é outro nome para a espontaneidade? Se
retivermos a idéia de espontaneidade, não é do lado de um mítico surgido inteira-
mente só, mas apesar disto algo como a ausência de um controle herdado ou de um
olhar-juízo herdado. É do lado da ausência de vigilância que colocamos o único sen-
tido da espontaneidade e não do lado de um ato que se pretenderia auto-referencial.
É nisto que esta forma de surgimento que é a espontaneidade ou o que a acompanha
(a espontaneidade como o efeito de um ato sem controle) marca um desvio em re-
lação ao ideal do ato como consciência se possuindo. Se o pensamento é primeiro,
então, o mundo e o ser não serão senão idéias.
Do mesmo modo, não nos reencontramos diante da oposição entre um ato que seja
dirigido pela razão (concebido como origem dos efeitos) e o instinto (concebido como
bestial, mecânico, ignorando as causas). Não é porque reconhecemos as causas que nós
as dominamos. O contingente é primeiro. O trabalho toma forma por associação e in-
versão modificando o instituído e o instituinte. (Aliás, é talvez o que marca a principal
diferença entre a pintura dos signos e as obras, mesmo gestuais, de um artista humano).21
Há causas das quais somos o foco ou o princípio, mas cuja fonte é independente
de nossa ação. Nicolas de Staël, nesta perspectiva, recusa a oposição dualista entre o
instinto – compreendido como faculdade que não necessita de uma forma inteligível
– e a razão, que ela mesma se ancora sobre o irrefletido, do condicionado. Ele experi-
menta a “necessidade de pintar” como uma obstinação, “uma verdadeira necessidade
de cada dia”, um aclimatamento. Mais ainda: é uma necessidade comparável a uma
“boa tensão arterial”, a um “poder de respirar”.22
Todos estes artistas defendem a idéia de uma criação como sentido horizonte.

A pesquisa junto aos testemunhos e junto às modalidades da passividade em


obra restitui o caráter enigmático da obra de arte; os próprios artistas procuram
explicar o que motivou pela continuação seus trabalhos. Parece que a cada ex-
pressão artística uma forma ou um sentido particular da passividade e uma re-
lação diferente da expressão em realização, seja uma relação (ou uma paisagem
ontológica) particular com mundo e com sentido de ser do mundo. Entretanto,
não podemos reduzi-lo a quaisquer traços, já que se trata de uma criação, é an-

20 Por exemplo, Sam Francis, Sans titre, 1988-1989, pintura acrílica 2,440 x 1,670 m, Toulouse, Espace d’Art Moderne
et Contemporain.
21 Cf. Lenain, T. La peinture des singes. Paris: Éditions Syros-Alternatives, 1990.
22 Staël, N. Op. cit., p.218.

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Merleau-Ponty em Salvador

tes a colocação em obra de um olhar particular do mundo, mas apesar disto um


olhar do mundo. O mundo entendido como “aquilo sobre o qual se abre todas
as perspectivas”.23
O acento posto sobre a passividade desemboca sobre a descoberta de uma for-
ma particular da subjetividade: onde o sujeito se manifesta em uma forma que o
distingue da consciência soberana. Ele é sujeito a título de participante de uma
experiência; certa capacidade de inventar outras modalidades ou outras maneiras
de proceder, ou ainda, outros gestos: uma liberdade funcional.

II. A passividade: pivô na filosofia de Merleau-Ponty



Frases de Merleau-Ponty como aquela extraída de uma nota de trabalho, da-
tada de novembro de 1959, “não sou [...] o autor deste oco que se faz em mim
pela passagem do presente à retenção, não sou eu que me faz pensar, como não
sou eu que faz bater meu coração”,24 são ressonantes com minha experiência e
estas observações.
Estas considerações são aquilo que, nesta filosofia, me autoriza a tomar por
ponto de partida de meu estudo minha própria experiência que encerra o que
compreendi, mas que encerra também o que não compreendi. Partir de sua pró-
pria experiência ou de um campo de investigação que é familiar para tentar me-
lhor compreender a filosofia de Merleau-Ponty; é, na perspectiva desta filosofia,
o único meio de aproximar-se dela, é o único meio que permite articular um pen-
samento e desenhar sua especificidade. É de dentro da minha própria experiência
que posso descrever esta experiência da fissão do ser, no presente caso, é o enigma
do que se passa no ato de pintar ou de pensar e que suscita uma interrogação. Esta
interrogação que descobre um antes e um depois, que constata uma diferença entre
minha percepção precedente e minha percepção presente que desenha um desvio no
seio do qual se produz “a fissão do ser”, traduz a própria forma da experiência.
Tudo isto para lhes dizer que esta questão da passividade é crucial para aproximar a
ontologia que Merleau-Ponty procurou formular em seus últimos trabalhos, ela é cru-
cial no próprio processo desta filosofia e que, aliás, o campo de investigação da prática

23 Merleau-Ponty, M. “Le problème de la passivité: le sommeil, l’inconscient, la mémoire”, Edição e transcrição S. Mé-
nasé, in Institution –Passivité, cours au Collège de France, 1954-1955. Prefácio Claude Lefort, Paris, Belin, 2003, [citado
com a sígla IP] p.182, Mss. BnF, vol 13 ´136] (18) – a numeração entre colchetes corresponde à numeração BnF, a entre
parêntese é do autor.
24 Idem. Le visible et l’invisible. Nota de trabalho, novembro de 1959, p.275.

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Stéphanie Ménasé

da arte no século XX que adotei não é, em princípio, aquele que Merleau-Ponty adota
para compreender a possibilidade de uma relação criativa com mundo.

A. Emergência

Na filosofia de Merleau-Ponty a questão da passividade foi provocada pelo impas-


se das filosofias da consciência ao tentar dar conta de nosso contato com o mundo.
Em meus estudos, estava muito interessada pela idéia husserliana de síntese passiva.
Husserl invoca esta idéia de síntese passiva como uma idéia para paliar o problema do
aceso a outro eu, ou da percepção contínua de um objeto no tempo. Mas experimen-
tei o limite, já que, finalmente, aos meus olhos, a síntese passiva não permite sair das
condições da identificação.
Se bem que Husserl invocava a síntese passiva no quadro de um alargamento da es-
fera egológica pura diante do problema da constituição de outro ego no seio da esfera
reduzida da imanência (coincidência de si a si), aos meus olhos, ele não torna compre-
ensível o acesso aos outros. Outro concebido como outro eu, como poderia simples-
mente apreciar, a partir de minha identidade, a alteridade?
A não ser por meu corpo, aqui irredutível, como o sujeito poderia ter acesso a uma
diferença de sentido? Sem dúvida esta aporia era a razão que conduzia Merleau-Ponty
na Fenomenologia da percepção, desde 1945, a designar a síntese passiva como intitula-
da para nomear um problema e não uma solução.
Ao retomar a aporia de Husserl, Merleau-Ponty, através do problema da passivi-
dade, procura mostrar que o alargamento do campo é o próprio princípio de nossa
experiência porque nós estamos no mundo no desvio. Conseqüentemente, pela passi-
vidade, ele funda a experiência como abertura.
Interessei-me, então, no estudo que ele consagrou à passividade em um curso pre-
parado para o Collège de France em 1955-1954. Este curso era intitulado assim: “o
problema da passividade: o sono, o inconsciente, a memória”. Merleau-Ponty entende
“afirmar a identidade com o ser do mundo percebido como tal”25 e para compreender
seu projeto, ele propõe “entrar, antes, na elucidação do mundo e do sujeito”.
É neste sentido que ele se dedica a três fenômenos, o sono, o inconsciente, a me-
mória, que são todos eles casos da percepção. Estes fenômenos são considerados como
casos limites, ou melhor, quase como opostos da percepção, desde então se confunde
percepção e consciência (ou consciência perceptiva). Merleau-Ponty os adota no senti-
25 IP, p.166; Mss. BnF, vol.13 [217].

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Merleau-Ponty em Salvador

do de que eles permitem “retornar aquém da consciência reflexiva”.


O exame do sono como estado de desdiferenciação o conduz a conceber e a formu-
lar uma relação com ser radicalmente diferente daquela que se depreende do idealismo
e das monadologias para os quais a instância pensante que é a consciência implica uma
coincidência do ser com o saber, mas que fracassa em explicar que nós encontramos
obstáculos, que façamos por vezes experimentação da incompreensão, que o mundo
sensível nos reenvia a lacunas, que aspectos de nossa ação em relação aos outros e ao
mundo nos escapa. Merleau-Ponty não se interessa pelo sono como mostrando ou
encerrando as origens e os motores da vida consciente, mas porque ele lhe mostra de
onde a vida consciente brota, porque ele lhe mostra a parte do mundo percebido e da
percepção em sua elaboração.
O encadeamento e a escolha destes três fenômenos – sono, inconsciente e memó-
ria – descreve um processo em direção da elucidação conjunta do mundo e do sujeito,
que, na verdade, é uma elaboração conjunta via dimensão carnal ou espessura carnal
da relação com mundo. Só trarei alguns elementos deste curso, que é, todavia, impor-
tantíssimo e cativante.
O objeto de Merleau-Ponty no curso de 1954-1955 é, então, através de casos de
passividade, tornar possível e compreensível a abertura ao novo, a campos de experi-
ência insuspeitados, estranhos ou passados, tanto quanto a conhecimentos inéditos.
Ele realiza este projeto ao recolocar a deiscência, o desvio, a opacidade, o lacunar, a
espessura no coração do sujeito e da história.
Assim, ele interroga a incidência da percepção onírica e do inconsciente sobre
nossas ações. No sentido desta pesquisa de uma ontologia do mundo percebido, ele
rejeita a idéia de uma relação de causalidade entre estas dimensões e estas ancoragens
perceptivas: “nada pode ser ‘causa’ de uma consciência”, o corpo não pode ser causa
do sono, o inconsciente não pode ser causa de minhas ações, o passado não pode
ser causa de nossas lembranças.26 O mais impressionante sendo, sem dúvida, sua re-
cusa de considerar o inconsciente (no sentido freudiano) como sendo reduzido ao
que decidimos não assumir e que faz do inconsciente um caso particular da má-fé
– enquanto que a própria decisão nos supõe em contato com o recalcado. Merleau-
Ponty sublinha, então, a necessidade de uma passividade. Ele escreve, por exemplo,
que sem passividade “o inconsciente [torna-se] recusa de assumir algo, recusa de ter
consciência (regressão)”.
É ainda a fim de interrogar a experiência perceptiva extraída de uma consciência
constituinte (que fracassa ao tentar dar conta de percepções novas sem as anexar a uma

26 IP, p.181; Mss. BnF, vol.13 [135] (17).

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Stéphanie Ménasé

segunda consciência atrás da consciência, um segundo eu penso sob o eu penso) que


Merleau-Ponty interroga a experiência do sujeito adormecido.
Através do estudo do estado de adormecimento e do sonho, Merleau-Ponty se opõe
à hegemonia de todo intencional como única modalidade da relação ao mundo. Ele
evoca intenções ou significações “desconhecidas pelo eu, logo, operantes à sua revelia,
logo, não ‘intencional’ no sentido psicológico”.27
É o sentido de “ter consciência” que o problema da passividade conduz à reformu-
lação. Longe de consistir no fato de reportar o que vemos à aquilo já sabemos, à aquilo
que já compõe nossas aquisições, ter consciência, escreve Merleau-Ponty, é “realizar
um certo desvio, uma certa variante em um campo de experiência já instituído”.28
Nas notas de curso, Merleau-Ponty mostra como este campo de experiência in-
tervém nas ações criadoras, ou seja, as ações pelas quais transformamos o sentido que
herdamos ou que portamos a nossa revelia. “Vemos a relação de nossos três proble-
mas com o problema de outrem: sono e sonho, inconsciente, memória [são] tratados
ordinariamente como modalidades de uma consciência cognitiva. Mas, na realidade,
trata-se, com o sono, do desenvolvimento de um outro imaginário: aquele que traze-
mos em nós, – com o inconsciente, trata-se, principalmente, de nossa posição práxi-
ca de outrem e de nós em relação a ele, – com a memória, de sua história e de nosso
entrelaçamento”.29
Estas análises desembocam na colocação em questão da soberania do sujeito em
face do ser, mas também da alienação do sujeito a uma ordem pré-determinada. Mer-
leau-Ponty, através deste curso, visa redefinir um “fora” que não seja somente imanên-
cia projetada ou transcendência inefável. No estudo dos processos do despertar ou dos
movimentos de sonhos, parece que os critérios de ausência ou de presença, de per-
cepção “plena” ou “vazia” não são suficientes para diferenciar uma percepção desperta
de uma percepção onírica: “dormir não é presença ao mundo, nem presença a outra
coisa, o imaginário, e ausência ou interiorização do mundo. Dormir [...] é manter o
mundo como desvio”.30 É na relação equívoca ao mundo do sono que o autor vê a
necessidade de procurar um outro aparelho de diferenciação do sonho e da vigília que
a consciência.
Ele mostra que é a distância que, através de meu corpo, me estabelece uma rela-
ção com mundo (e não a um sonho do mundo). É também a experiência que torna
possível e real a percepção de um “fora”, de um outro, de um diferente e, conseqüen-
27 Idem, Ibidem, p.181; Mss. BnF, vol13 [135] (17).
28 Idem. Résumés de cours. Reunidos por Claude Lefort. Paris: Gallimard, 1968, “Folio”, p.67.
29 Mss. BnF, vol.13 [114] (5).
30 Mss. BnF, vol.13 [155] (32).

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Merleau-Ponty em Salvador

temente, me permite encontrar o que faz minha percepção, meu pensamento, minha
experiência do mundo. É o corpo como pólo diferenciante que me constitui como eu
penso. Mas a consciência não tem natureza própria, é a relação com corpo que lhe dá
sua coloração e institui a modalidade de sua relação com mundo.
O outro, o mundo, o campo de experiência são condições de elaboração do sujeito.
Há uma interação entre a percepção dos outros e a minha maculadas por sua implica-
ção enquanto outro corpo perceptível. Há em sua filosofia a idéia de um anonimato
singular pelo corpo que ancora o sujeito com os outros em um mundo comum. Este
filósofo me permite juntar dois aspectos que sem ele eu não chegaria a unir: “o mundo
está inteiramente dentro e estou inteiramente fora”.31 Este filósofo me permite man-
ter juntos dois aspectos que sem ele não chegaria a religar. Ele diz: “somos sós quando
somos nós mesmos”, mas ao mesmo tempo significava que não há existência separada,
os outros são implicados em minha singularidade. Em quase todos os filósofos antes
dele me parece que estávamos em um ou outro campo.
Para Merleau-Ponty, “nós estamos misturados ao mundo e aos outros em uma
confusão inextrincável”.32 Nós só aparecemos em relação aos outros. A diferenciação,
a transcendência é a condição de minha singularidade. O desvio é a própria forma de
minha relação aos outros, o mundo e a mim mesma. O desvio, a distância que faz que
“eu me embarace aos outros, que eu faça isto com meus pensamentos”33 é a forma de
minha relação a eles e não seu impasse. Moldo-me ao mesmo tempo em que tenho
acesso a sua diferença. O outro agente está “do meu lado”, ele não me é alheio. Mer-
leau-Ponty concebe a relação com os outros como uma relação de generalidade, aliás,
reversível que é marcada por um surgimento em meu corpo perceptível (e não mais
como somente corpo fenomenal ou objetivo): “sei que eles percebem porque eles têm
um comportamento no interior de meu sensível”.34
Para Merleau-Ponty, e também era claro para numerosos artistas, era preciso co-
locar em questão um sentido de uma subjetividade inteiramente pronta, insularidade
inteiramente constituída.
Há, em sua filosofia, uma relação dinâmica entre os seres correlativos de uma mo-
dificação incessante do sentido de ser do mundo, e através dos quais um sujeito se
molda. O sujeito que em sua força não é situação, escolhas sem laços, mas “eu posso”:
capacidade de conhecer os limites e a deslocá-los.
O processo iniciado no curso de 1954-1955, principiará nos trabalhos ulteriores

31 Idem. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945, “Tel”, 1976, p.467.


32 Idem, Ibidem, p.517.
33 Idem. Le philosophe et son ombre [1959]. In Signes. Paris: Gallimard, 1961, p.201.
34 IP, p.182; Mss. BnF, vol.13 [135] (17).

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Stéphanie Ménasé

sobre uma precisão daquilo que ele entende por “contanto com o mundo” e sobre as
modalidades deste “acesso ao mundo”. Merleau-Ponty procura elaborar uma experi-
ência do mundo que seja outra coisa que uma projeção simples sem ligação. Trata-se,
para ele, de tornar perceptível a textura das experiências que, se elas são experiências
de algo, não podem estabelecer-se de maneira unívoca.
A introdução da questão da passividade conduz a enunciar que a experiência não
dá nunca o ser ou o mundo como plena positividade, aliás, minha própria percepção
não é plena positividade. A partir das questões abordadas neste curso de 1954-1955,
Merleau-Ponty sai totalmente dos modelos intelectualistas, abstratos, do pensamen-
to e passa aplicar uma modalidade operante do pensamento.
O que há de particular neste curso é que a passividade põe em jogo uma defi-
nição da própria instância pensante e com isto põe em cena cegamente aquilo que
ela procura, como no processo da análise. É o estatuto do lacunar na percepção que
está no centro do problema – lacunar, desvio, que engendra o próprio movimento
da percepção.
Sob este aspecto da memória e do papel do corpo na lembrança, seus propósitos
em seu curso corroboram a maneira com a qual ele mesmo retoma idéias um ano
depois do outro. Seu pensamento não é linear, mas de várias dimensões. Nós o abor-
damos sob diversos ângulos, interrogações, orientações ou pontos de vista diferen-
tes, assim como, para o filósofo, há no mundo várias entradas, se bem que o mundo
permaneça único.
É então uma modalidade dinâmica da experiência que se abre: a experiência é
um processo. Merleau-Ponty escreve: “por mais novas que sejam nossas iniciativas,
elas nascem no coração do ser, elas estão engrenadas sobre o tempo que funde em
nós”.35 O processo, o movimento temporal, eles mesmos precedem sempre como
fundo nossa relação com mundo: “o tempo funde em nós” e toda iniciativa se inscreve
no processo segundo o qual o mundo se faz.
A questão da passividade é retomada na seqüência de sua obra e muito freqüen-
temente em seus trabalhos em torno da escrita de seu livro a partir de 1958. De sua
parte, ele reconhece não ter explorado o pleno alcance filosófico desta questão. Mas,
talvez, seja próprio à passividade escapar a qualquer exame frontal ou tético, donde
sua inscrição de caráter operante em sua ontologia e sua incidência na elaboração de
uma ontologia indireta.
O objetivo que Merleau-Ponty persegue nesse caso, e, depois em O visível e o in-
visível de maneira ainda mais radical já que adota uma modalidade de expressão não-

35 Idem, Le visible et l’invisible, op. cit., nota de trabalho de novembro de 1959, p.274.

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Merleau-Ponty em Salvador

tética, é uma oposição às filosofias da consciência. Se ele introduz o corpo como mo-
dalidade da subjetividade, é porque o “eu posso” do corpo, da linguagem, são as úni-
cas forças daquilo que não se dá nunca como positivo, na medida em que ele não se
define por uma percepção como plenitude, mas relativamente às lacunas que a com-
põem e à sua espessura carnal. Conseqüentemente, se o real não se forma senão no
passado, se ele não se opõe ao imaginário e se ele não é sem lacuna, se o “eu posso” é
pelo corpo como possível atual, possível eminentemente (mas que não é “possível de
porvir”) a modalidade de minha relação com mundo, então, meu pensamento sobre
o mundo, ao invés de ser re-cognição, reminiscência, ou mesmo quadro de represen-
tação ou de imagens positivas “não pode se oferecer a mim senão como o que por trás
avançou meu pensamento atual, lhe transborda sua energia, se faz reconhecer como
sua história”.36
Somente a partir de seus trabalhos de 1960-1961 que as obras e as falas dos artistas
ou dos escritores serão invocadas sob o aspecto do que escapa (e que designamos como
passividade) e que se imporá a forma da reversibilidade, verdade última correlativa de uma
relação com mundo por ontogênese.

B. Implicações

Se a passividade habita o movimento do pensamento, como o mundo habita o


corpo, torna-se compreensível que a verdade de adequação, a verdade congruente
com o definitivo, seja destituída para ser substituída por uma verdade emergente
marcada pela modalidade da reversibilidade. Como lembra Merleau-Ponty, no iní-
cio do curso de 1960-1961, “não sabemos o que pensamos”, donde a oposição con-
tra uma verdade-objeto ou resultado, uma verdade emergente. Esta idéia de verdade
acompanha o que ele diz da pluralidade das interpretações. Se, com efeito, o ser é
percebido e a percepção é subentendida por antigas elaborações, há um pano de fun-
do de toda percepção, um sentido latente em nossas percepções, à nossas escolhas, a
nossos atos, então, eles são sustentados e portadores de muitos sentidos. Nossas con-
dutas não têm apenas uma significação.
Ora, a situação se complica, pois, como ter acesso ao percebido, às próprias coisas, se
não sabemos o que pensamos? Conseqüentemente, como qualquer emergência não seria
verdadeira no mesmo sentido? O real é outra coisa que o imaginário ou uma alucinação
(ou ainda uma produção de minha loucura)? Por aí, parece, no limite, que uma concepção

36 Mss. BnF, vol.13 [196] (59).

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Stéphanie Ménasé

intelectualista da percepção e uma visão delirante do mundo, um delírio de louco são indis-
cerníveis. Merleau-Ponty mostra que é o corpo como polarização pelo mundo que garante
a pregnância de uma percepção.
No curso sobre a passividade, o filósofo mostrou que não é a consciência que
torna possível a percepção, mas o corpo que unicamente garante a consistência do
percebido;37 que, conseqüentemente, não há oposição entre real e imaginário como
pleno e vazio do percebido, mas como o imaginário estrutura minha percepção; que,
conseqüentemente, é o corpo que permite a diferenciação do que vejo e do que sou,
e que encerra a memória do passado.
O trabalho sobre a passividade é o pivô da articulação de sua ontologia indireta. É
com o pensamento da passividade e da atividade agindo entre si que uma reforma da
ontologia se impõe. E estas próprias reformas desencadeiam um transtorno completo
das categorias habituais e tidas, ainda hoje, por formas atuais de nossas experiências.
Um processo de transformação da relação com o mundo acompanha esta ontolo-
gia em toda sua complexidade. Contentarei-me em insistir em certos elementos que se
tornam obsoletos com esta ontologia.
É o caso, e nós já evocamos, do cogito: não há relação transparente ou direta a si,
nem a nosso próprio passado e nem aos outros. No lugar da constituição do outro
sobre o modo do espelho, encontramos uma enigmática possibilidade de compre-
ensão entre as pessoas, como não sendo nunca, de antemão, garantida ou evidente.
É também o caso do mundo como totalidade dada: no lugar de um mundo como
conjunto de dados, totalidades dos modelos ou das formas, nós temos um mundo
no sentido de “campo de nossa experiência” como unidade aberta e indefinida e,
correlativamente, do sujeito como todo constituído, em seu lugar temos: o sujeito
é um X ao qual estão abertos os campos práxicos, sensoriais, imaginários, ideológi-
cos, míticos.
É também o caso da relação com passado e de certa concepção da temporalidade:
no lugar da alteridade ou de uma exterioridade das temporalidades, acarretando uma
simples sucessão de momentos, encontramos um encaixamento das histórias pessoais e
públicas, com a idéia de um encaixamento dos tempos. Torna-se também inatual com
esta ontologia a distinção corpo e pensamento: no lugar de uma aderência corpo/pen-
samento, temos uma identidade de princípio sempre defeituosa; a singularidade não é
dada como um originário, nem como em si, nem como para si. Ela aparece de um só
golpe no contato do mundo e dos outros.
Nas notas de curso sobre a passividade ele descreve a possibilidade do sentido depois

37 “É este duplo sistema dos Abschattungen e do Eu posso que faz o ‘real’, o ‘algo’ perceptivo”, Mss. BnF. Vol.13 [151] (32).

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Merleau-Ponty em Salvador

do desvio entre as perspectivas ou o desvio entre várias perspectivas que abrem todas
sobre um mundo único, e ele acrescenta: “sei que há somente um mundo, enquanto as
outras perspectivas se inserem na minha”.38 Mas, Merleau-Ponty torna isto mais preci-
so, e isto, no sentido de que as diferentes perspectivas não são todas compossíveis; em
todo caso, mesmo incompossíveis, elas devem ser tidas como não-falsas, restituindo
certo relevo. É, aliás, por este viés e graças a esta modalidade, que a singularidade pode
também se tornar mais precisa, se articular. Merleau-Ponty escreve: “sabemos o que
queremos através do que não queremos”.39 Há uma pluralidade de complexos espírito-
corpo que é pluralidade dos modos de articulação corpo-pensamento. A articulação im-
plica que esta relação corpo-pensamento seja susceptível de infinitas variações e, por isto
mesmo, corpo e pensamento são susceptíveis de infinitas transformações.
Se este complexo fosse inteiramente ação, não compreenderíamos como a compre-
ensão de outras disposições seriam possíveis. Não é senão pela articulação comum desta
atividade (que é um poder sobre algo) com uma passividade – que é tornada possível
menos pela compreensão de um outro (que suporia dado o sujeito ego como primeiro),
que a emergência de uma singularidade, de uma diferença no seio de um magma indi-
ferenciado.40 Na nossa linguagem, diríamos que toda relação entre corpo e pensamento
se dá sobre um modo de articulação ou complexo; todavia, cada articulação é singular,
e é este duplo modo de comum ou anônimo e de singular que torna cada complexo
susceptível de infinitas mudanças, e conseqüentemente de abertura às diferenças. Ao
acentuar uma modalidade anônima da relação corpo-pensamento, é a distinção real que
ele procura compreender e extrair. Esta distinção, por mais real que ela seja, é, porém,
inteiramente dependente das outras.
A idéia de um ser separado, absoluto, é abandonada mesmo no sentido de possi-
bilidade. Portanto, é menos a disparidade, o infinitamente diferente que asseguraria a
compatibilidade das diferenças-singularidades, e mais a compatibilidade que assegura
a unidade do ser que elas afetam. Compreende-se, então, este estranho retorno da ex-
trema singularidade em experiência fundamental, ou seja, partilhável por outra e vindo
enriquecer a percepção do mundo de cada um. O indivíduo torna-se “um modo de ver
o mundo”. A uma “unidade aberta do mundo deve corresponder uma unidade aberta
e indefinida da subjetividade”.41 “Sou um campo, sou uma experiência”. Viver é,
portanto, “se explicar com o mundo”.

38 IP, p.182; Mss. BnF, vol.13 [135] (17).


39 IP, p.182; Mss. BnF, vol.13 [136] (18).
40 Compreende-se, então, como a unidade da substância se aplica apenas à quantidade, mas que há uma pluralidade de
substâncias (tanto quanto de atributos) do ponto de vista da qualidade.
41 Idem. Phénoménologie de la perception. Op. cit., p.465.

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Stéphanie Ménasé

III. Relação criativa com o mundo: sentido e conseqüências


ontológicas

Em que sentido há criação? Qual é a natureza do sujeito criador? Se o sujeito não é


transparência ou coincidência a si, o que é criar?
Se a atividade é dobrada pela passividade, como minhas ações podem me dar aces-
so ao mundo?

A. A reversibilidade da passividade e da atividade (polarização por


uma participação no mundo)

A interrogação sobre a possibilidade da criação e a questão que diz respeito à natu-


reza do sujeito criador se encontram.
A criação na arte é correlativa de uma experiência do mundo como sujeito genera-
lizado, antes de ser a realização de um cogito, porque a forma da relação ao mundo é
uma experiência a ser feita e não inteiramente pronta.
Ao pintar, o artista participa com seu corpo, enquanto ele é animado pelo movi-
mento da vida, campo de experiência histórica e cultural. Seu trabalho é um trabalho
do corpo ou de incorporação do movimento, uma maneira de emprestar seu corpo ao
nascimento de um outro corpo. Segundo Merleau-Ponty, “o pintor nasce no interior
das coisas como por concentração e retorno a si do visível”.42
É sob o fundo deste processo que ele fala de reversibilidade pelo viés da deiscên-
cia do ser em mim e que conduz à formulação que “sou feito do mesmo estofo que o
mundo”.
Parece que o mundo da reversibilidade, esta forma de articulação, lhe aparece de ma-
neira manifesta por ocasião desta pesquisa sobre a passividade. Ela está em germe desde
seus primeiros textos, já que é uma das características da dialética que ele pratica e que se
opera através de sua obra. Todavia, o trabalho sobre a relação passividade-atividade é seu
paradigma, como o ponto de eclosão enquanto ele o conduz a invocar a idéia de campo.
A idéia de campo ou de experiência de campo, por exemplo, lhe permite “passar
da idéia de corpo como sujeito à idéia da percepção que se faz nas coisas, de Ser que
percebe em nós”.43 O método de Merleau-Ponty consiste, então, em marcar os limites
e as aporias de uma posição, e o que ele exclui e a tentar manter junto as duas propo-

42 Idem. L’Œil et l’esprit. Op. cit., p.69.


43 Mss. BnF, vol.6 [145].

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Merleau-Ponty em Salvador

sições: por exemplo, meu corpo é uma coisa e meu corpo vê e toca; ele pertence, en-
tão, à ordem do objeto e à ordem do sujeito: de fato, estas duas proposições não são
contraditórias ou exclusivas, mas cada uma chama a outra. O corpo vê e toca as coisas,
os outros, porque ele mesmo é visível e tangível. Do eu às coisas, há uma relação de
participação44 e este processo pode complexificar-se ao infinito.
Desta dupla forma de nossa ancoragem-participação no sentido de ser do mun-
do, processo de reversibilidade, nascem fórmulas como: “somos tocados pelas coi-
sas”, “a linguagem nos fala”. Em O visível e o invisível, ele escreverá: “como disseram
vários pintores, sinto-me olhado pelas coisas, [...] minha atividade é identicamente
passividade”.45 Ele desenvolve esta forma de narcisismo: “não simplesmente ver no
fora, como os outros o vêem, o contorno de um corpo que habitamos, mas, sobretu-
do, ser visto por ele, existir nele, emigrar nele, [...] de modo que vidente e visível sejam
recíprocos e que nós não saibamos mais quem vê e quem é visto”.46
Se a relação com o mundo é criação, é porque ela se inscreve necessariamente na
ontogênese. Este movimento de ontogênese, ao qual Merleau-Ponty atribui grande
importância em seus últimos trabalhos, é o movimento que ele descreve em O olho e o
espírito a propósito da experiência artística:47 ser pego no impulso do ser e engrenar-se
sobre o movimento através do qual há surgimento, abertura, criação. Trata-se quase de
consentir a viver junto de si de moldar-se (ou seja, com a idéia de um si, vimos, que
não tem nada de comum com uma identidade, uma ipseidade ou um ego48) ao mesmo
tempo em que articular uma visão do mundo.
Qual é a possibilidade de fazer compartilhar a experiência singular?
É porque o sujeito é uma abertura de campo que a experiência do ser se faz como
criação. Pintar ou qualquer outra atividade criadora significa produzir “um pedaço de
mundo”, “abrir um campo, deslocar ou modificar uma configuração, uma percepção,
transformar um pouco o mundo”, assim como ser transformado por ele. Todavia, se
a arte fosse a expressão de um universo incomunicável, a própria idéia de arte seria
absurda. É preciso, ainda, pelo trabalho da arte, trabalhar para “construir” uma reali-
dade a partir da experiência definida como “vir-a-ser em direção à liberdade”.49 Cada

44 Idem. Le visible et l’invisible. Op. cit., p.181.


45 Idem, Ibidem, p.183.
46 Idem, Ibidem, p.183.
47 Idem, L’Œil et l’esprit. Op. cit., p.81.
48 Merleau-Ponty em seu curso “A filosofia hoje”, de 1959, a propósito da psicanálise define o “eu”, do ponto de vista
psicanalítico, como articulação de um inconsciente e do aparelho formado pela relação “percepção-consciência”. Notes de
cours. Op. cit., p.151.
49 Idem. Titres et travaux, projet d’enseignement, Paris, CDU, 1951, p.17; retomado in Parcours deux. Editado por J.
Prunair. Lagrasse: Verdier, 2001, p.34.

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Stéphanie Ménasé

tentativa participa desta criação porque, como escreveu Merleau-Ponty, só há uma hu-
manidade, só há um mundo. O que está em jogo na criação é, portanto, aprofundar sua
própria situação como meio único para alcançar a expressão e a “produção da realidade”.
A arte aparece como parábola da relação criativa com o mundo de tal forma que
esta ontologia o supõe, e segundo o qual o ser é polimorfo e que é o contato com o
ser que suscita a expressão. Merleau-Ponty continua, então, a examinar além do mo-
vimento desta ontologia que exige que cada um faça sua experiência, as possibilidades
de compartilhá-lo com os outros.
Ter acesso ao mundo nesta filosofia é articular sua experiência com um espaço
comum, um tempo comum, uma experiência compartilhada daquilo através da lin-
guagem: campos e dimensões que definem a possível aquisição do estatuto do sujeito.
A singularidade de uma expressão sobre o mundo se impõe e participa do movi-
mento de instituição como obra sobre o mundo de certo desvio. Mais do que confor-
midade, Merleau-Ponty fala de deformação coerente, é a modalidade da relação, ou
seja, também da distância que permite extrair uma forma da coesão do movimento
perceptivo. É a modalidade do processo de encadeamento e as modalidades do encai-
xamento que permitem retrospectivamente definir ou reconhecer a singularidade de
uma argila ou de um estilo. As perspectivas diferentes ou as subjetividades diferentes
são “diferentes desvios possíveis em relação ao mundo, desvios que são variações do
mundo e da coisa”.50
Entre a passividade e a criação, não há oposição: a passividade se encontra, antes,
do lado do movimento em obra, ela revela a modalidade do ato ou do processo e não
dos efeitos deste ato sobre o mundo. A dimensão da passividade no seio da atividade
conduz à suspensão do modelo do ato puro, que induziria a idéia da criação como
não procedendo de nada e, conseqüentemente, ao próprio aniquilamento da possi-
bilidade da criação. O nexo é, então, entre a atividade e a passividade; sua reversibi-
lidade desemboca sobre a modalidade operante. A concepção de uma oposição entre
passividade e criação estaria ligada à idéia que esta passividade colocaria em perigo a
possibilidade de um ato deliberado confundido com o movimento de criação. Porém,
a passividade longe de tornar impossível a liberdade, é o que funda o movimento: “mi-
nha liberdade, o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas minhas expe-
riências, não é distinta de minha inserção no mundo”.51
É preciso desacostumar a conceber a criação como uma modalidade da ativida-
de pura. Por criação, é preciso entender abertura de algo sobre a base de referências

50 Mss. BnF, vol.14, [17] (III6).


51 dem. Phénoménologie de la perception. Op. cit., p.413.

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Merleau-Ponty em Salvador

comuns ou de instituição e isto é muito diferente da produção que ela não abre,
mas perpetua. A criação corta a continuidade temporal, já que ela introduz uma di-
ferença irredutível e mudanças de tempo, é também o que nos processos temporais
se traduz por saltos. Por exemplo, decidir é fazer uma incisão momentânea no con-
tínuo; a interrupção é uma destas formas. Somente retrospectivamente a reconsti-
tuição de um contínuo temporal se produz, movimento mesmo da instituição, sem
o que se trata de um fora do campo que não tem dimensão ou valor propriamente
de pregnância.

B. A criação é a própria condição da experiência de algo

Sob a questão da passividade da atividade é a própria natureza do ato humano en-


quanto criador que está em questão.
Se a passividade e o escapamento como uma de suas figuras é central na prática ar-
tística, o que é criar? Em que sentido podemos falar de composição? A criação é sim-
plesmente integração do acidente, do defeito no seio da obra? A passividade conduz a
uma modalidade da criação como operatividade?
Ela é menos solicitação do que consentimento ao inarticulado, ao indeterminado,
ao irrefletido, investimento do lacunar. Mas será que o acidente acontece porque não
sei suficientemente o que posso fazer?
Não: mesmo procedendo metodicamente eu não saberia totalmente o que a obra
vai se tornar durante a elaboração, porque não posso ver ou saber antes de ter feito.
Mas uma vez feita, eu não veria, talvez, aquilo que eu queria ver aí? Talvez só o olhar
exterior poderá ver outra coisa, não verá estritamente a realização, a obra feita. A in-
tenção não é confiada à obra. Da mesma forma, todo vivido de alguém não é visível ou
acessível quando ele me fala, da mesma forma ele não sabe e eu mesma não sei neces-
sariamente o que me impulsionou a interessar-me mais pela cor do que pela mecânica.
Não sei necessariamente porque faço algo, em revanche, posso saber porque não o fiz.
É que o fazer não se reduz a querer. No fazer, há poder.
O olhar do outro sobre meu trabalho interpõe uma distância ao mesmo tempo em
que me libera uma espessura de meu trabalho que eu ignorava, espessura que ele colo-
cará entre meu trabalho tal qual ele o vê e meu trabalho tal qual elaborei.
Ser criador é ousar se afastar do que sabíamos, do já conhecido, do já percorrido.
Mas é também uma audácia que está fora da instituição do saber: se no momento que
pintamos “não há ninguém”, então nada parece impossível. As aquisições que o pintor

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Stéphanie Ménasé

forma a partir de sua experiência enriquecem este poder, mas não são nunca tidas por
soluções ou instituídas em saber. Se o artista não vê distância entre o que iniciou seu
trabalho e o que ele elaborou, então, se contenta em produzir, mas não é criador (não
se abre e não abre sobre nada, só produz o já conhecido, representado por imagens).
Não basta querer criar para criar, ainda é preciso estar em poder sobre o impulso do
ser. Assim como a coisa é o resultado de uma deiscência do ser, da mesma fora a práti-
ca artística dá a ver algo na relação carnal da atividade e da passividade. A criação não
poderia ser execução. Porque não se trata somente de colocar em forma nem de repro-
duzir uma forma tal como aprendi a ver sob o modo da identidade.
Mas o que é um ato sem ninguém, uma operação efetuada como à revelia do agen-
te podendo até mesmo suscitar uma surpresa? E inversamente, como, se a consciên-
cia é suspendida, podemos fazer a constatação de que uma coisa tenha aparecido? É
porque assim como o ato não é uma visada intencional, o olhar não é objetivante,
ele é “olhar participando do movimento do corpo em ação”.
O sujeito enquanto “eu posso” e como corpo é o mediador da experiência nova.
Fala-se de criação na medida em que algo inscreve um novo regime de experiên-
cia, e conseqüentemente abre novas experiências. Ora, não poderia ter abertura aí
sem a configuração da relação da qual nosso corpo é o instrumento e o princípio. É
assim que através do corpo eu persigo o “eu posso”. Também não se pode mais im-
putar a uma imperícia, ou seja, a um movimento insuficientemente hábil, o acidente
no trabalho. É, antes, a idéia de um gesto dominado por uma intenção transparente
a si mesma que é pouco confiável. O corpo não é uma máquina. Conseqüentemen-
te, se bem que eu pinte ou veja depois e através de um corpo, não posso dizer que
seja meu corpo que faz.
De certa forma, esta passividade em obra em toda atividade humana, nada pode
escapar dela e o escapamento é a própria experiência. A passividade designa também
esta conversão do ponto de vista através do qual o escapamento se desenha como
uma dimensão do mundo e não uma impotência que devemos dominar.
A arte tal como a definimos, a saber, prática criadora – integrando a experiência
como abertura à passividade – exprime uma dimensão da realidade que é escapa-
mento, que não se deixa apreender, um indomável, um ser selvagem. A criação seria
o movimento que inscreve uma fratura, uma brecha, uma abertura. Vem daí a idéia
de que algo criado (da realidade de uma experiência como criação) não se julga se-
não pela experiência “concreta” ou “verdadeira” que ela abre ou institui.
Nenhuma expressão tética produzirá a coisa.52 Que haja aí apenas coisas, outras

52 Idem, Titres et travaux… Op. cit., p.14-15; retomado in Parcours deux. Op. cit., p.29-30.

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Merleau-Ponty em Salvador

pessoas, uma experiência deles, uma relação, isto não é um impasse, é a experiência
do mundo e dos outros.53 A distância irredutível que se estabelece entre os sujeitos
graças a seus corpos é precisamente o que torna compreensível sua singularidade ou
diferenciação entre eles. Parece, portanto, que não posso dizer que não posso ima-
ginar o pensamento dos outros, porque, precisamente, não posso senão imaginar,
ou seja, primeiramente, só posso reportar-me à experiência por um movimento que
é criação.
Sob a pena de Nicolas Staël, a expressão “matéria em movimento”, designa esta
passividade. Eis alguns testemunhos seus sobre a passividade: “escolha determina-
da, atitude passiva, vontade de organizar ordem e caos, todas as exigências, todas as
possibilidades, pobreza e ideal, nos melhores quadros tudo se passa de tal maneira
que temos a impressão de não ter sua palavra para dizer”,54 mostram mesmo que a
atividade e a passividade no seio da criação não se opõem, mas se completam. Falar
de uma dimensão onde nada se faz sem o engajamento que subentende a escolha, é
assumir que a criação seja colocação em obra, que ela seja ação.
Há um “fazer”, uma intervenção que não é possessão, domínio de lado a outro.
A intervenção exige uma obra, mas também significa um movimento herdado e sua
modificação pela participação.
A passividade se traduz em arte por uma experiência que abre sobre o operante:
“é o tempo que faz crescer os quadros, pinto como posso”.55 A partir destas práticas
e experiências, a expressão em primeira pessoa parece a única possível. Todavia, se
por primeira pessoa entendemos “sujeito reflexivo”, esta idéia da prática enferma é
o que procuramos mostrar. Com efeito, ela parece expor a experiência sob a forma
posicional ou afirmar que ela pode ser exposta somente de modo reflexivo. Então, a
imbricação da passividade e da atividade deve ser acompanhada de um sentido parti-
cular da singularidade como estrutura universal do sujeito trabalhando o “eu posso”
no sentido da liberdade, através do que ele emerge ou aparece como “eu”.

***

Tomemos para acabar um último exemplo: a passividade criadora de Bram van


Velde que pensa somente acentuar a rachadura, aceitar sua miséria, desenvolver a ca-
pacidade a fazer-se passividade por sua atitude diante daquilo que se apresenta e em
53 Cf. Idem, “Le philosophe et son ombre” (Signes, p.201): “Peço emprestado outrem, o faço com meus próprios pensa-
mentos” e ele acrescenta: “não se trata de um impasse da percepção de outrem, é a percepção de outrem”.
54 Staël, N. Lettre à Jean Adrian. Le Temps. Paris, março de 19451968, p.72.
55 Idem, Ibidem, p.364.

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Stéphanie Ménasé

sua relação com a vivacidade da execução. Compreender-se-ia que a prática de Bram


van Velde “integra” de maneira exemplar a passividade no trabalho da pintura, ou
ainda deixe a passividade, como ritmo da vida em nós, informar a obra. Não é um
sujeito pré-dado como unidade que, aí, trabalha. Enquanto Nicolas de Staël é toma-
do em um movimento frenético, possuído, atormentado pelo desejo de encontrar
algo. A passividade que ele atualiza toma a forma de uma fuga adiante, habitada pela
fé de quem sem cessar é retomado pelo infinito. O exemplo de Nicolas de Staël per-
mite modificar um pouco a idéia comum de passividade.
O exemplo de Bram van Velde permite aproximar o que existe de verdadeiramen-
te criador na pintura. Não é a atitude no mundo que, em princípio, nos solicita,
mas a relação desta atitude com sua maneira de pintar, relação que abre a certa visão
do mundo. Sua atitude de resistência ao fazer como produção é de alta exigência;
uma alta exigência em relação com a resistência que o mundo opõe a toda tentativa
de domínio.
Bram van Velde é sem dúvida um dos pintores cuja obra manifesta em mais algo
grau seu contato com a passividade – tomado pela passividade, a vida que o percor-
re. Pelo menos, em sua intenção ele deixa um grande espaço a esta diminuição da
intervenção. Mas existe, sob um modo subjacente a este “laisser faire”, tal aplicação,
tal exigência a não se ater senão ao difícil, que poderíamos nos perguntar se ele mes-
mo não se crê mais passivo do que é. A passividade a que procuramos nos aproximar
é precisamente esta alta exigência, o deixar ser. Ela requer uma potência a não ser
nada ou antes nada além que um consentimento de trabalhar em face desta miséria,
a não dizer senão este silêncio em si que escutamos, esta inconsistência e trabalhar
com o que se apresenta.
O combate de Bran van Velde, mas também como aquele de Nicolas de Staël,
Michaux ou Beckett, Cézanne ou Braque, consiste em não se deixar tomar e fechar-
se pela imagem que outros tentaram, para se tranqüilizar, de aplicá-las. Porque pre-
ocupar-se com o que está por vir? “Preocupar-se com o que está por vir” significa
também preocupar-se com uma atitude criadora.
A experiência de Fernando Pessoa parece muito próxima de Bram van Velde. Na
obra de Fernando Pessoa, a passividade parece anunciar ou ser legível como um pas-
sivismo e, todavia, ela está acompanhada da idéia ou da percepção de um mundo
em transformação incessante (a multiplicação dos nomes também é um elemento
importante do que nós dissemos da colocação em questão de uma subjetividade in-
teiramente pronta e dada).

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Merleau-Ponty em Salvador

“Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,


Nem procurei achar nada; [...]
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva –
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento
E não ir mais longe.”56

e também:

“Se eu interrogasse e me espantasse


Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...”57

Parece, então, que o contrário do criativo esteja muito freqüentemente ligado a


uma meia implicação no que é feito, ou seja, um distanciamento que é visada de uma
adesão total, que é proibida para o ideal da coincidência. Ora, quando o artista cria,
ele participa como por abandono de si (ou da imagem de si), porque ele não é outra
manifestação da liberdade criadora, ele participa do movimento do mundo, ele é pego
no impulso do ser. Merleau-Ponty, por sua vez, escreve: “fazer [...], é continuar com
o impulso que transforma. Mas a transformação vem dos outros e das coisas como de
nós mesmos”.58

Tradução de Leandro Neves Cardim

56 Pessoa, F. “Poemas de Alberto Caeiro”, “O guardador de rebanhos”, in Obra poética e em prosa. Introdução, organi-
zação, bibliografia e notas de Antônio Quadros e Dalila Pereira da Costa, Vol. I. Porto: Lello & Irmão – Editores, 1986,
p.788-89.
57 Idem, Ibidem, p.761.
58 IP, p.175-176; Mss. BnF, vol.13, [124] (15).

237 |
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Informações sobre os autores

Alberto Andrés Heller


(aaheller@uol.com.br)

Possui graduação e pós-graduação em música (piano) pela Escola Superior de


Música Franz Liszt, em Weimar, na Alemanha. É mestre em Educação e Comu-
nicação (2005) e doutor em Literatura (2008) pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Lecionou na Escola de Música e Belas Artes de Jena, Alemanha (de 1994
a 1998) e no curso de Bacharelado em Música, na Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC - de 2001 a 2004), em Florianópolis. Como compositor, tem
ampla produção, com destaque para o Oratório de Natal, o Concerto para piano e or-
questra. Foi eleito pela Academia Catarinense de Letras e Artes (ACLA) personalida-
de musical do ano de 2007, recebendo o importante prêmio Edino Krieger. Tem oito
cds gravados e publicou o livro Fenomenologia da Expressão Musical (Editora Letras
Contemporâneas, 2006).

Acylene Cabral Ferreira


(acylene@ufba.br)

Possui graduação e aperfeicoamento em Filosofia pela Universidade Federal de


Minas Gerais (1988 e 1990) e mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1993 e 1997) em Filosofia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Bahia.
Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Metafísica, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: Heidegger, linguagem, silêncio, tempo, pensamento
originário. Organizou os livros Fenômeno & Sentido (Quarteto, 2003) e Leituras do
mundo (Quarteto, 2006) e é autora de A linguagem originária (Editora Quarteto,
2007).

239 |
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
(calberto@usp.br)

Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1972), instituição


em que defendeu suas teses de doutorado (1982) e livre-docência (2000) em Filoso-
fia. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas, tendo participado da fun-
dação do seu Departamento de Filosofia e do seu Centro de Lógica, Epistemologia e
História da Ciência. Em 1994, foi Professor-Convidado na Université de Provence,
Aix-en-Provence, França, e, atualmente, é Professor Associado no Departamento da
Filosofia da USP, instituição em que iniciou sua carreira acadêmica, em 1973. Tem
interesse nas áreas de História da Filosofia Moderna e Contemporânea, em especial,
no estudo do empirismo e do racionalismo clássicos e da tradição fenomenológi-
ca. Publicou, além de diversos artigos, os livros Crítica da Razão na Fenomenolo-
gia (Edusp/Nova Stella, 1989), Racionalidade e Crise (Discurso Editorial/Editora
UFPR, 2002) e Nietzsche: Civilização e Cultura (Martins Fontes, 2005).

Creusa Capalbo
(ccapalbo@uol.com.br)

Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro


(1961), mestrado em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain (1965) e dou-
torado em Filosofia pela mesma universidade (1973). Atuou como professora de
Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 1968 e 1993, e na Uni-
versidade Estadual do Rio de Janeiro, entre 1981 e 1995. Tem experiência na área
de Filosofia, com ênfase em Fenomenologia e destaque para as obras de Husserl,
Merleau-Ponty, Heidegger, entre outros. Desenvolve pesquisa também nas áreas da
Educação e das Ciências Sociais, investigando sobretudo as questões relacionadas
à História, à Ética e à Política. Publicou Ideologia e Educação (Editora Convívio,
1978), Fenomenologia e Estudos Sociais (Editora Convívio, 1978) e Metodologia das
Ciências Sociais (Editora Antares, 1979).
Débora Morato Pinto
(deboramorato@uol.com.br)

Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1989), instituição


em que obteve também mestrado e doutorado em Filosofia (1994 e 2000). Atual-
mente é professor adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
São Carlos, com atuação, desde 2002, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia.
Tem experiência na área de Filosofia, com especialização em História da Filosofia
Contemporânea. Desenvolve pesquisa sobre a relação entre o pensamento de Berg-
son e outros autores afins, como William James e Merleau-Ponty. Trabalha também
como pesquisadora na área de Epistemologia da Psicologia. Entre as suas produ-
ções destacam-se a participação e a organização dos livros Subjetividade e linguagem
(UFSCAR, 2006) e A Fenomenologia da experiência (Editora da UFG, 2006), este
último em co-autoria com Rodrigo Vieira Marques.

Iraquitan de Oliveira Caminha


(iraqui@uol.com.br)

Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal da Paraíba


(1988), em Psicologia pelo Institutos Paraibanos de Educação (1990) e em Filosofia
pela Universidade Federal da Paraíba (1995). É mestre em Filosofia pela Universi-
dade Federal da Paraíba (1996) e doutor em Filosofia pela Université Catholique de
Louvain, na Bélgica (2001). Atualmente é professor-pesquisador do Departamento
de Educação Física e dos Programas de Pós-graduação em Filosofia (Universidade
Federal da Paraíba) e em Educação Física (Universidade Federal da Paraíba – Uni-
versidade Estadual de Pernambuco). Entre as suas produções, destaca-se Memórias
da Educação Especial: da integração à inclusão (Editora Universitária – UFPB, 2008)
em co-autoria com Maria de Fátima Duarte Holanda.

241 |
Monclar Valverde (Org.)

José de Anchieta Corrêa


(anchietabh@terra.com.br)

Possui graduação em Filosofia pela Universidade Católica de Minas Gerais (1958),


mestrado em Filosofia pelo Instituto Superior de Filosofia da Universidade de Lou-
vain (1970) e doutorado pela mesma instituição (1971). Atuou como professor de
Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, entre 1962 e 1990. Em 1973
tornou-se professor titular da PUC-MG. Em 1996 esteve como professor visitante
da Universidade Federal de Juiz de Fora e em 2005 atuou como professor emérito da
Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. É o tradutor da Estrutura do Com-
portamento de Maurice Merleau-Ponty (Interlivros, 1976) e autor de Morte (Editora
Globo, 2008).

Leandro Neves Cardim


(lncardim@usp.br)

Possui graduação em Filosofia, pela Universidade Católica de Goiás, mestrado e


Doutorado pela Universidade de São Paulo. Pesquisador na area de filosofia contem-
porânea, com ênfase nos campos da percepção, da linguagem, da pintura, da histó-
ria, da política e das Ciências Humanas, desenvolve atualmente seu Pós-Doutorado
em Filosofia, na Universidade de São Paulo. Tradutor e autor de diversos artigos
publicados em periódicos e livros coletivos, publicou também o texto “Science et
philosophie chez Merleau-Ponty”, na Revista Chiasmi International, vol. 8 (Editora
Vrin, 2006).

| 242
Merleau-Ponty em Salvador

Marcos José Muller-Granzotto


(mjmuller@cfh.ufsc.br)

Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (1987),


mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1991) e
doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999). Gra-
duou-se em Psicologia (2006) na Unisul (SC) e é especialista em Psicologia Clínica
(2007) pelo Instituto Gestalten. Atualmente é professor adjunto da Universidade
Federal de Santa Catarina, onde atua nos programas de pós-graduação em Filosofia
e em Literatura. Estuda principalmente os seguintes temas: Merleau-Ponty, fenome-
nologia, Husserl, estética e ontologia, psicanálise, gestalt-terapia e filosofia da psica-
nálise e da psicologia. Entre as suas produções, destacam-se a organização do livro
Filosofia da Educação (UFSC-LED, 2002) e a publicação de Merleau-Ponty acerca da
expressão (EDIPUCRS, 2001) e Fenomenologia e Gestalt-terapie (Summus Editorial,
2007), este último em co-autoria com Rosane Muller-Granzotto.

Miriam Rabelo
(mcmrabelo@uol.com.br)

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1985),


doutorado na Universidade de Liverpool, Inglaterra (1986-1990) e pós-doutorado
na Universidade de Toronto, Canadá (2002-2003). Atualmente é professor adjun-
to do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal da Bahia, onde leciona desde 1992. Tem se dedica-
do ao estudo de questões sócioculturais relativas à religião e à saúde e tem interes-
se especial no desenvolvimento de abordagens fenomenológico-hermenêuticas no
campo das ciências sociais, particularmente nas discussões contemporâneas sobre
corporeidade, experiência e vida cotidiana. É pesquisadora do Núcleo de Estudos
em Ciências Sociais e Saúde (ECSAS) da Universidade Federal da Bahia. Entre suas
produções destaca-se a organização dos livros Antropologia da Saúde: Traçando iden-
tidade e explorando fronteiras (Relume Dumará/Editora Fiocruz, 1998) e Experiência
de doença e narrativa (Editora Fiocruz, 1999), com Paulo César Alves.

243 |
Monclar Valverde (Org.)

Monclar Valverde
(monclar@ufba.br)

Possui graduação em Física pela Universidade Federal da Bahia (1975), mestrado em


História pela Universidade Estadual de Campinas (1986), doutorado em Filosofia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996) e pós-doutorados em Teoria da Comuni-
cação (Paris V, 2001) e Filosofia (UFPR, 2007). Atualmente é professor adjunto da Uni-
versidade Federal da Bahia. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Comunicação, com
ênfase em Estética da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: sensi-
bilidade, experiência, estética, arte, sentido e comunicação. Lidera o Grupo de Pesquisa
em Estética e Existência e é também músico e pesquisador da canção popular. Em sua
produção, destacam-se os cds Word Music (2003) e Cinema Imaginário (2004) e os livros
Objetos de Papel (Letras da Bahia, 2000) e Estética da Comunicação (Quarteto, 2007).

Pascal Dupond
(Pascal.Dupond@wanadoo.fr)

Ex-aluno da École Normale Supérieure – Ulm, é “agrégé de philosophie”, atuando


na Universidade de Toulouse. Tem orientado diversas pesquisas no campo da fenome-
nologia e tem destacada atuação na preparação de professores de filosofia para o ensino
médio. Foi membro do Comitê Regional de Ética Bio-Médica (Midi-Pyrénées) e publi-
cou importantes livros, como Raison et tempotalité – Le dialogue de Heidegger avec Kant
(Ousia, 1996), Le vocabulaire de Merleau-Ponty (Ellipses, 2001) e La réflexion charnelle
– La question de la subjectivité chez Merleau-Ponty (Ousia, 2004).

Stéphanie Ménasé
(stephanie.menase@free.fr)

Doutora em filosofia, pela Universidade de Paris I – Sorbonne (1999), tem traba-


lhado com Claude Lefort na transcrição dos manuscritos de Merleau-Ponty. Editou,
especialmente, as Notes de cours au Collège de France – 1959 e 1960 (Gallimard) e Cause-
ries 1948 (Seuil). Em 2003, publicou o livro Passivité et création – Merleau-Ponty et l’art
moderne (Puf), fruto de seus estudos filosóficos e da reflexão sobre seu próprio trabalho
como pintora.

| 244
Merleau-Ponty em Salvador

Agradecimentos

O êxito do Ano Merleau-Ponty em Salvador deveu-se ao apoio de várias instituições


e à contribuição de diversas pessoas: autoridades diplomáticas e universitárias, profes-
sores, servidores e estudantes, além daqueles que prestigiaram as reuniões quinzenais
do grupo de estudos, as sessões bimestrais do Teatro de Idéias ou a densa atividade
do Colóquio Merleau-Ponty, concentrado na última semana de agosto.
Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), tivemos o decisivo apoio do rei-
tor e do vice-reitor, Naomar Monteiro de Almeida Filho e Francisco José Gomes
Mesquita, bem como dos professores Antônio Alberto da Silva Lopes (pró-reitor
de pesquisa), Eugênio de Ávila Lins (pró-reitor de extensão), Giovandro Marcus
Ferreira (diretor da Faculdade de Comunicação), Acylene Cabral Ferreira (coor-
denadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia), Miriam Rabelo (coor-
denadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais), Maria Hermí-
nia Oliveira Hernandez (Coordenadora do Mestrado em Artes Visuais), Roaleno
Ribeiro Amancio Costa (diretor da Escola de Belas Artes), Horst Karl Schwebel
(diretor da Escola de Música) e dos servidores Carlos Alves e Fátima Abreu (Ni-
com-Facom).
Na Aliança Francesa de Salvador, várias pessoas estiveram ativamente envol-
vidas na homenagem a Merleau-Ponty: Jean-Jacques Forté (diretor), Gina Leite
(coordenadora cultural), Walter Bispo dos Santos (responsável pelo Teatro Moliè-
re), Mahal Pita (designer responsável pelos cartazes e pelo site do evento) e a pro-
fessora Chantal Durpoix (que deu apoio estratégico à tradução das conferências
pronunciadas pelos convidados franceses).
A Universidade do Estado da Bahia (UNEB), através do seu reitor, o professor
Lourisvaldo Valentim da Silva, concedeu uma generosa contribuição para viabili-
zar o deslocamento de alguns dos colegas que vieram de outros estados. Do mes-
mo modo, Jean-Pierre Courtiat, adido de ciência e tecnologia da embaixada da
França, teve um papel decisivo na viabilização da viagem dos dois pesquisadores
franceses que estiveram conosco.
A Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior (CAPES)
forneceu o restante do apoio financeiro necessário à realização do Colóquio e à
edição do presente livro.
Quanto aos expositores presentes ao Colóquio Merleau-Ponty, contamos com a
participação de expressivos representantes da pesquisa universitária, seja na con-

245 |
Monclar Valverde (Org.)

dição de conferencistas (Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Creusa Capalbo, José


de Anchieta Corrêa, Pascal Dupond e Stéphanie Ménasé) ou na condição de par-
ticipantes das mesas redondas (Alberto Andrés Heller, Acylene Cabral Ferreira,
Débora Morato Pinto, Iraquitan de Oliveira Caminha, João Carlos Salles, Lean-
dro Neves Cardim, Marcos José Muller-Granzotto, Miriam Rabelo e Monclar Val-
verde). A maioria deles permaneceu durante todo o evento, o que estabeleceu um
ambiente favorável ao bom convívio e ao bom debate.
O Colóquio foi aberto pelo pianista Alberto Andrés Heller, que apresentou um
belo recital combinando música francesa e música brasileira, no Palácio da Rei-
toria da UFBA, e foi encerrado, no Teatro Molière (AF), com o cativante dueto
de Marilda Santanna e Marquinho de Carvalho (voz e piano), homenageando o
cinquentenário da Bossa Nova. Durante todo o evento, permaneceu montada, na
Escola de Belas Artes da UFBA, a bela exposição trazida especialmente pela pin-
tora Stéphanie Ménasé.
Nas sessões do Teatro de Idéias dedicadas a Merleau-Ponty, contamos com
preciosos interlocutores, como Márcio Ferreira Barbosa (UCS), Miriam Rabelo
(UFBA), Alan Sampaio (UNEB) e Rosa Gabriela de Castro Gonçalves (UFBA).
Além dos diálogos, contamos também com a música de Simone Motta (voz),
Chico Oliveira (guitarra acústica), Cristiana Koser (voz), Tonzé Amora (violão) e
Paulo Martins (bandolim), e com os trabalhos audiovisuais de Danilo Scaldaferri.
Na equipe de organização, contamos com a dedicação e a competência dos pro-
fessores Alan Sampaio (UNEB), na secretaria geral, e Renata Pitombo (UFRB),
na coordenação de divulgação. Os estudantes Cleide Vilela, Rafael Raña, Davi
Boaventura, Wendell Wagner Silva, Alan Silva dos Santos, da UFBA, e Elton
Vitor Coutinho, da UFRB, asseguraram diligentemente a produção e o registro
fotográfico dos eventos.
O presente livro, por sua vez, não existiria sem a adesão do editor Primo Mal-
donado, a coordenação editorial de sua filha Luana Maldonado e o empenho de
Carlos Vilmar Oliveira Souza, na elaboração da capa e no trabalho de editoração.

A todos expresso o meu mais profundo e caloroso agradecimento!

O organizador.

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GRUPO DE PESQUISA
ESTÉTICA E EXISTÊNCIA

EMENTA: Em seu movimento em direção à linguagem, o projeto filosófico concebi-


do originalmente como uma fenomenologia hermenêutica acabou deixando escapar
a dimensão estética, que deveria estar presente em suas considerações, não só como
explicação do juízo de gosto, analítica do belo ou filosofia da arte, mas como fenome-
nologia da expressão e hermenêutica da sensibilidade. Dito de outro modo, a progres-
siva redução da hermenêutica filosófica a uma teoria da interpretação do texto tendeu
a limitar a compreensão da experiência ao âmbito estritamente semântico, mantendo
em segundo plano aspectos igualmente decisivos, como a forma e o valor e reiterando,
desse modo, e num terreno inesperado, a desqualificação das sensações e dos senti-
mentos, frente a uma idéia cognitivista de sentido. O objetivo do Grupo de Pesquisa
sobre Estética e Existência é acolher investigações que restabeleçam o lugar da teoria
estética no âmbito da fenomenologia hermenêutica.

LINHAS DE PESQUISA:

1. Fenomenologia da Expressão

2. Hermenêutica da Sensibilidade

3. Estética da Comunicação

COORDENAÇÃO:

Prof. Dr. Monclar E. G. L. Valverde (monclar@ufba.br)


Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Universidade Federal da Bahia
Livro: capa fosca e verniz Gloss, localizado, 4x0 cores,
formato 15x21, com orelha, papel Supremo de 250gr.
Miolo em 1x1 cores, nº de páginas 250, orelha e capa costurada a linha.
Papel off-set de 80gr e Fotolitos
Tiragem: 1.000 exemplares.

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