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INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática Porto Alegre, v.11, n.2, jul./dez. 2008.

ISSN digital 1982-1654


ISSN impresso 1516-084X

Experiência de Si e Autoria:
articulações teóricas a partir de oficinas de fotografia

Self-experience and authorship: theoretical articulations based


on digital photography workshops in a mental health service

Resumo: Este artigo apresenta uma estratégia metodológica


baseada na produção de imagens fotográficas para estudar a
forma como sujeitos experienciam a si mesmos em um deter-
Vanessa Maurente
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
minado contexto político/institucional. Partimos da noção fou-
caultiana de que os sujeitos podem-se reconhecer de diferentes
modos em jogos de verdade que dizem respeito à sua condição
de vida. O interesse em estudar esta relação vem nos lançando Cleci Maraschin
em direção a diferentes metodologias, baseadas na construção Universidade Federal do Rio Grande do Sul
de um campo de estudos em contextos específicos, no presente
caso, o da saúde mental. No projeto Oficinando em Rede, do
qual fazemos parte atualmente, tal construção se materializa
em oficinas tecnológicas que buscam, entre outras coisas, pro-
piciar contextos favoráveis à experiência de autoria de crianças
e adolescentes em tratamento em um centro de saúde mental
em Porto Alegre. Uma destas oficinas é a de fotografia, onde os
1 Experiência de Si e Autoria:
jovens são convidados a produzirem imagens a partir de uma uma aproximação teórica
pergunta. A pergunta que temos feito é sobre a forma como eles
vêem o local. Consideramos que, através de propostas como
esta, ancoradas por recursos tecnológicos e produção de espa-
s formas tradicionais de produção de

A
ços de autoria, poderemos refletir sobre a experiência que estes
sujeitos fazem de si mesmos na especificidade desse contexto.
Neste artigo buscamos situar como chegamos a esta proposição
conhecimento acadêmico em psicologia
no que tange a sua parte teórica, ou seja, como aproximamos estão muito marcadas pela observação,
as noções de experiência de si (FOUCAULT, 2001) e autoria e
como a fotografia se constitui como estratégia peculiar nesse realização de entrevistas, aplicação de ques-
encontro. tionários, testes ou formação de grupos de
Palavras-chaves: Experiência de si. Autoria. Oficinas de Foto-
grafia. Centro de saúde mental. discussão focados em algum tema específico.
Abstract: This article presents a methodological strategy based Fora a primeira delas, as outras estão muito
on the production of photographic images to study the way in centradas na fala. Além disso, a maioria traz
which subjects experience themselves in a given institutional/
political context. We based ourselves on the foucaultian notion subentendida uma separação entre coleta de
that subjects can recognize themselves in different ways wi-
thin games of truth which relate to their life experience. The
dados, produção de conhecimento e aplicação
interest in studying this relationship has led us to the use of de conhecimento. Partindo de um forte pres-
different methodologies, based on the construction of a field of
study in specific contexts; in this case, mental health. In the suposto em Psicologia Social, que afirma que
Oficinando em Rede project, in which we currently participate, estas três categorias estão mais imbricadas
such a construction is materialized in technological workshops
which, among other goals, aims to build contexts which favor do que parecem, e do interesse no estudo
the experience of authorship by children and adolescents being
treated in a mental health service in Porto Alegre, Brazil. One sobre as formas como os sujeitos experien-
of these workshops is that of digital photography, in which au- ciam a si mesmos em determinados regimes
thors are invited to produce images based on a question. The
question we have been asking is the way in which they see the de verdade sustentados pelo contexto em que
place they are in. We consider that, through proposals such as
this, anchored in technological resources and in the production
vivem, buscaremos por em debate outras me-
of authorship spaces, we will be able to reflect on how these todologias de pesquisa e intervenção.
subjects experience themselves based on the specificity of this
context. In this article, we explain how we have arrived upon the A idéia de uma pesquisa-construção (MA-
theoretical aspects of this proposition, by discussing (a) how we RASCHIN; MAURENTE; DIEHL, 2007) aponta
have linked the concepts of self-experience (FOUCAULT, 2001)
and authorship, and (b) how photography consists in a peculiar para o entendimento de um campo fluido, onde
strategy in this link.
Key-words: Self-experience. Authorship. Digital photography os problemas e as possibilidades de transfor-
workshops. Mental health service. mação se constroem junto aos sujeitos, sendo
MAURENTE, Vanessa; MARASCHIN, Cleci. Experiência de Si e a produção de conhecimento um dos resulta-
Autoria: articulações teóricas a partir de oficinas de fotogra- dos destas práticas. Neste caso, o sujeito não
fia. Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre,
v. 11, n. 2, p. 39-46, jul./dez. 2008. é um indivíduo que contém uma interioridade

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constante, mas um produto e produtor de prá- sobre a relação entre o fotografar e a forma
ticas e saberes, que existe no campo político como os sujeitos experienciam a si mesmos
dos contextos em que vive. Sendo assim, ele nos discursos. Desta maneira, fomos nos
tem um papel ativo na construção de realiza- aproximando da discussão sobre autoria, que
ção de experiências de pesquisa. Desde 2004, se fez especialmente presente no contexto de
no projeto Oficinando em Rede, temos traba- jovens em tratamento em um centro de saúde
lhado com oficinas tecnológicas – internet, mental. Evidentemente, a forma como aproxi-
fotografia, escrita, robótica – com crianças e mamos teoricamente as noções de experiência
adolescentes em tratamento em um centro de de si e autoria exige situar alguns pontos da
saúde mental em Porto Alegre. Tais oficinas trajetória filosófica de Michel Foucault, para
buscam construir novas redes junto a estes um melhor entendimento das potencialidades
jovens, assim como explorar outros espaços das proposições que temos feito nas oficinas.
de autoria e produção de conhecimento. As Segue abaixo uma breve retomada de alguns
oficinas de fotografia têm como característica pontos que podem explicitar essa construção.
a busca de uma torção nas relações de visibili- Foucault (1997) traz a noção de discur-
dade, pois convidam os sujeitos a produzirem so como um conjunto de enunciados que se
imagens em um contexto onde, muitas vezes, materializa através de práticas articuladas de
eles são colocados em uma posição de objeto forma a responder às exigências de determi-
de um olhar e de um saber legitimado e espe- nado contexto histórico. Neste âmbito, as for-
cializado. Em algumas destas oficinas os ado- mações discursivas seriam os conjuntos de re-
lescentes são convidados a responderem uma gras, enunciados e objetos que responderiam
pergunta somente com imagens. Isto abre um a um regime próprio e autônomo de formação,
campo de exploração de outras sensibilidades efetuando-se mediante condições de possibi-
e singularidades e pode ser um caminho inte- lidade de surgimento, existência e transfor-
ressante para o estudo da noção de experiên- mação. A noção de formação discursiva nos
cia de si (FOUCAULT, 2001) e de autoria. permitiria falar em um discurso psiquiátrico,
A proposição aos sujeitos de pesquisa de médico ou psicológico, como articulações pas-
que fotografem vem de estudos anteriores síveis de reconfigurações pela coexistência
(TITTONI, 2004, MAURENTE, 2005, MAUREN- com outros discursos. Dessa forma, as for-
TE; TITTONI, 2007), que buscavam abordar mações discursivas perfilar-se-iam entre si,
a ética e a estética do trabalho, através dos transformando-se e definindo-se nos limites
modos como alguns trabalhadores informais daquilo que podem ser em cada momento.
se experienciavam em relação aos jogos de Ainda em relação ao entendimento da no-
verdade que definiam o que é um (bom) tra- ção foucaultiana de discurso neste momento
balhador. Em uma das pesquisas (MAUREN- (FOUCAULT, 1997) é importante ressaltar que,
TE; TITTONI, 2007) seis trabalhadores de apesar de alguns discursos tratarem do mes-
rua foram convidados a fotografarem durante mo tipo de objeto – como no caso da medicina
um dia a partir da questão: O que é o seu social, em determinado momento, da psiquia-
trabalho? As produções fotográficas traziam tria e da psicologia, que tratam da loucura
sempre uma ambigüidade, onde formas de – isto não significa que o objeto discursivo
trabalhar hegemônicas se encontravam com seja algo que pertença ao domínio das coisas
formas alternativas de sobrevivência realiza- existentes. Pelo contrário, o objeto discursi-
das no cotidiano pelos sujeitos da pesquisa. O vo é uma resultante lógica de certas regras e
exercício de fotografar trouxe à tona o campo práticas das quais emerge, ou seja, é um ob-
tenso e problemático que se tornou o trabalho jeto que existe pela materialização do discur-
com o aumento do desemprego e redefinição so. Quando Foucault (2005) escreve a história
das formas de produção capitalistas. Sendo da loucura ele busca compreender que gestos
assim, os fotógrafos-trabalhadores compar- causam a exclusão na era clássica e depois,
tilhavam suas construções sobre o trabalho na era moderna, a medicalização da loucura,
através de imagens que passavam pelas for- afirmando que a história da psiquiatria tenta
mas como eles experienciavam a si mesmos atribuir uma continuidade entre a experiência
em relação aos jogos de verdade instituídos social da loucura e o seu conhecimento cien-
sobre as formas de trabalhar. tífico pela psiquiatria. Entretanto, este autor
Aos poucos aprofundamos a discussão busca, entre outras coisas, desconstruir a no-

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ção de que a loucura seria um objeto perma- produzem efeitos de verdade no interior dos
nente – e, assim, o que se modificaria seria discursos que não são em si nem verdadeiros
o conhecimento que se tem dela – afirmando nem falsos (FOUCAULT, 1993). Evidentemente,
que não apenas a percepção barroca da lou- este ver historicamente consiste em um modo
cura não é a mesma percepção clássica ou de análise peculiar que se opõe ao método
moderna, mas as próprias estruturas destas historiográfico tradicional, que se concentra
experiências não são as mesmas. Nessa obra na pesquisa da origem. O método genealógico
Foucault (1997) afirma que aquilo que é to- entende que “[...] o que se encontra no come-
mado como loucura pelos médicos dos sécu- ço histórico das coisas não é uma identidade
los XVII e XVIII não é a mesma coisa que preservada da origem, mas uma discórdia, um
aparece nas sentenças jurídicas, ou policiais, disparate [...]” (FOUCAULT, 1993, p. 18). Para
por exemplo, ou seja, que não se tratam dos dar conta da explicação deste método, o au-
mesmos loucos. Dessa forma, podemos en- tor invoca a noção de proveniência como esta
tender que a unidade dos discursos é feita no ruptura em relação à pesquisa da origem. O
espaço onde diversos objetos se transformam estudo da proveniência, como coloca, não fun-
e não pela permanência ou singularidade de da, muito pelo contrário, “[...] ele mostra a he-
um objeto . terogeneidade do que se imaginava em con-
Em determinado momento de sua trajetó- formidade consigo mesmo [...]” (FOUCAULT,
ria filosófica, Foucault irá propor uma espécie 1993, p. 22). Dessa forma, a genealogia, como
de método de estudo para estas formações análise da proveniência, produz uma quebra
de saberes: a arqueologia. Através dela, Fou- na noção de linearidade, estando atenta às
cault buscará fazer o estudo da história do rupturas que se produzem nos contextos de
pensamento a partir de um eixo de análise dominação, às resistências e às possibilidades
bem diferente daquele que a história tradi- de produção de novos sentidos.
cional propõe. Enquanto esta trata de apa- Esta proposta foucaultiana “[...] mais do
gar, em benefício das estruturas fixas, todas que analisar o poder do ponto de vista da sua
as perturbações da continuidade, o método racionalidade interna, consiste em analisar
que Foucault propõe, em meados da década as relações de poder através do antagonis-
de sessenta, pretende “[...] desalojar estas mo das estratégias [...]” (FOUCAULT, 1995,
forças obscuras através das quais se tem o p.240). Neste sentido, falar de poder é falar
hábito de interligar os discursos dos homens de relações de poder, onde as possibilidades
[...]” (FOUCAULT, 1997, p. 24). de resistência se colocam como uma espécie
Até este momento, pode-se considerar que de pré-requisito para que estas relações se
a centralidade dos estudos de Foucault era a efetuem. Quando não existe a alternativa da
análise histórica do saber, dos seus sistemas resistência, não se trata mais de uma relação
anônimos e mutáveis. Contudo, no início dos de poder, mas de um estado de dominação
anos setenta, este autor vai deslocar, de certa (FOUCAULT, 1995). Nestes estados, não exis-
forma, o eixo de seus estudos, afirmando que te a possibilidade que algo se modifique, de
todo conhecimento representa, antes de tudo, modo que as relações ficam bloqueadas, cris-
um ato de violência em relação às coisas e talizadas. As relações de poder, por sua vez,
que a verdade, compreendida como a riqueza implicam a noção de jogos de verdade, enten-
do pensamento, é uma “[...] prodigiosa ma- didos como os jogos do verdadeiro e do falso,
quinaria destinada a excluir [...]” (FOUCAULT, nos quais o sujeito se constitui historicamente
1996, p. 22). A partir de então, este autor irá como experiência (FOUCAULT, 2001). Os jogos
centralizar suas análises nas formas como a de verdade são os jogos pelos quais se pro-
interdição que atinge o discurso revela sua li- duzem efeitos de verdade em coisas que não
gação íntima com o poder, de modo que, por são, em si, nem verdadeiras, nem falsas. Esta
trás de todo o saber, de todo o conhecimento, noção do que é verdadeiro e do que é falso,
o que está em jogo é uma luta de poder (FOU- ocorre, então, em um processo de lutas, de
CAULT, 1996). confrontos e de resistências.
A partir de então este filósofo se lança em A partir das noções de jogos de verdade e
uma história política do conhecimento, que em um momento que se considera uma terceira
ganhará o nome de genealogia. Esse méto- fase da trajetória filosófica de Foucault, o eixo
do consiste em ver, historicamente, como se de análise será a forma como os sujeitos se

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reconhecem nestes jogos de verdade, ou seja, ciou situando algumas etapas da trajetória fi-
os processos de subjetivação. Em relação a losófica foucaultiana em razão de que a noção
isso, Foucault (2004) afirma que, ao contrário de função autor aparece em um texto (o que
de algumas interpretações que fazem de sua é o autor – 1969) na época em que a cen-
obra, o que sempre lhe interessou foi a cons- tralidade de sua discussão era a arqueologia
tituição histórica das diferentes formas do su- e, de certa forma, entendemos que podemos
jeito em relação aos jogos de verdade, sendo partir das idéias da função autor e sugerir um
que, neste momento, a centralidade dos seus deslocamento no eixo de análise em relação à
estudos passa a ser a forma como o sujeito noção foucaultiana de função autor para cons-
se constitui de uma maneira ativa, através de truir a presente discussão.
práticas de si. Entretanto, estas práticas não A análise que Foucault (2001) realiza, em
partem de uma interioridade do sujeito, mas 1969, sobre a função autor coloca que esta é
de sua relação com as regras, estilos e con- uma função característica do modo de exis-
venções do seu meio cultural. Neste sentido, tência, de circulação e de funcionamento dos
a noção de experiência de si remete às formas discursos no interior de uma dada sociedade e
como os sujeitos se reconhecem nos jogos de que, por esta razão, ela não se exerce da mes-
verdade que o constituem e são, ao mesmo ma maneira em diferentes contextos históri-
tempo, aquilo contra o que eles resistem. cos e discursivos. Além disso, ela não remete
A experiência no centro de saúde mental pura e simplesmente a um indivíduo real, mas
em questão se dá pela forma como alguns “[...] pode dar lugar simultaneamente a vários
discursos se confrontam e produzem relações egos, a várias posições-sujeitos que classes
de poder no campo da psiquiatria, em geral, e diferentes de indivíduos podem vir a ocupar
no local citado, especificamente, consideran- [...]” (FOUCAULT, 2001, p. 280). Da mesma
do que este contexto passa por um momento forma ela não remete a qualquer produção,
de rupturas de formas de saber únicas e he- mas a tipos de produções específicas que va-
gemônicas que passam a abrir espaço para riam de acordo com os contextos discursivos
novas articulações. Ao mesmo tempo, abor- que as fazem funcionar. Neste entendimento,
damos a forma como os sujeitos envolvidos a função autor é uma constituição discursiva
com estas práticas em saúde mental se re- que busca responder a uma exigência histó-
conhecem nos jogos de verdade que definem rica.
as relações entre eles, as noções de doença/ Entretanto, existem outras formas de
saúde mental e as formas de abordagem do abordagem da questão da autoria, que não
que consideram o sofrimento psíquico. Junto desconsideram o fato dela ser uma função
a isso, buscamos entender que re-elabora- do discurso, mas concentram-se em outros
ções são possíveis neste contexto e de que analisadores. O entendimento que buscamos
sujeitos estas re-elaborações podem partir. dar toma a função autor como uma possibi-
Desta forma, fomos delineando a proposta lidade de sustentar uma diferença em uma
da oficina de fotografia. Tal proposta consis- rede de sentidos compartilhada por uma co-
tia em solicitar aos sujeitos da instituição – letividade e ser reconhecido por esta mesma
trabalhadores e jovens em tratamento – que coletividade (MARASCHIN, 2005). Esta noção
respondessem, somente através de imagens, nos permite pensar em uma posição sujeito
o que era o local. capaz de questionar, apontar para rupturas,
Considerando esta proposição e que esta marcar os espaços de descontinuidade. Sendo
oficina de fotografia pode dar operatividade assim, o autor como entendemos pode rela-
ao exercício de uma autoria, buscamos ten- cionar-se de forma singular com os discursos
tar entender a tomada desta posição de autor que o constituem. A importância de abordar a
como uma forma de experiência de si, onde função autor neste trabalho se colocou como
os sujeitos poderiam-se colocar, dotados de um dos resultados das pesquisas anteriores
uma câmera e uma possibilidade de produção realizadas pelo projeto Oficinando em Rede
criativa, diante dos diferentes discursos que (DIEHL, 2007), nas quais observamos que as
definem as relações de poder no local. posições de saber encontravam-se cristaliza-
Para tanto, é necessário nos aproximarmos das na instituição, cabendo apenas a alguns
da noção de função autor, tanto para Foucault sujeitos a possibilidade de produzir verdades
quando para outros autores. Este artigo ini- no local. Do mesmo modo que tais sujeitos

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se legitimavam como detentores do saber, ou- uma delas tinha um objetivo específico e co-
tros eram colocados no lugar de objetos deste locava alguns analisadores em jogo. A última,
mesmo saber. Consideramos, entretanto, que realizada com os adolescentes da internação,
todos os sujeitos que compõem a instituição teve como ponto central a proposição de um
se relacionam com os discursos hegemôni- exercício de autoria ao colocar a estes jovens,
cos de uma forma singular, por um processo imersos no funcionamento instituicional pela
de resistência ao instituído. O que acontece, sua modalidade de tratamento, a seguinte
como um efeito das práticas dominantes, é pergunta a ser respondida somente com ima-
uma fragilização das possibilidades de susten- gens: Como você vê este lugar? Acreditamos
tação destas experiências no coletivo. Sendo que esta proposição contém em si dois ele-
assim, a problemática remete não apenas ao mentos importantes: que a relação de cada
estudo da experiência de si, mas da função sujeito com a instituição é singular – pois cada
autor, como um percurso do sujeito no qual um terá uma resposta – e que esta respos-
sua experiência ganha legitimidade. ta pode ser dada através de um acoplamento
A partir deste entendimento, a experimen- com uma tecnologia de produção de imagens
tação de uma função autor pelos sujeitos des- digitais. Este último ponto refere-se a uma no-
te centro através das oficinas de fotografia ção de fotografia como resultado do encontro
poderia não apenas nos aproximar da forma entre um sujeito e uma tecnologia específica e
como estes sujeitos vêm fazendo uma expe- não como réplica do referente a partir da luz.
riência de si em relação aos jogos de verda- Ao todo foram quatro encontros nesta ofi-
de que definem as práticas institucionais em cina e dela participaram sete adolescentes. No
relação à doença/saúde mental, mas, além primeiro foram levados livros de diferentes ti-
disso, produzir uma torção nas posições de pos de fotografia e foi introduzida uma discus-
produção/reprodução/afirmação instituídas, são sobre a autoria de imagens fotográficas.
avaliando um potencial de resistência e de No segundo foi proposto que eles fotografas-
criação. Sendo assim, propomos a compreen- sem livremente, experimentando a câmera.
são do o exercício da função autor como uma No terceiro foi solicitado que eles respondes-
forma de experiência de si, onde os sujeitos sem, somente através de imagens, como viam
especificam e sustentam um tipo de relação o lugar. Após isto, todas as fotografias foram
singular com os discursos que os constituem. passadas para o computador e as imagens
produzidas por cada um deles foram identifi-
cadas (os nomes foram colocados nos arqui-
2 Oficinas de Fotografia vos). No último encontro foram escolhidas as
fotografias para a exposição.
A experiência de fotografar colocou em
Sete modalidades de oficinas de fotografia questão a forma como os adolescentes se re-
foram oferecidas no serviço de saúde mental lacionam com a instituição. Em um primeiro
em questão desde o início do projeto oficinan- momento, só o fato dos jovens estarem se-
do em rede: 1) para as crianças da internação, gurando câmeras e produzindo imagens em
com a proposição de que fotografassem livre- um contexto em que são normalmente ob-
mente; 2) para os adolescentes da internação, servados e controlados, já produziu um certo
com a proposição de que fotografassem livre- estranhamento no cotidiano do serviço. Em
mente; 3) para adolescentes do ambulatório, um segundo momento, pode-se pensar que o
com a proposição de que fotografassem livre- exercício que os jovens fizeram de expressar
mente; 4) para adolescentes do ambulatório, o que vivem através de uma tecnologia inusi-
com a proposição de que fotografassem a par- tada pode colocá-los em uma posição de au-
tir de uma pergunta; 5) para a equipe técnica, toria. Tal posição pode ser observada no reco-
com a proposição de que fotografassem em nhecimento que os adolescentes fizeram das
grupo a partir de uma pergunta; 6) para os próprias imagens como uma produção singu-
auxiliares de enfermagem, com a proposição lar e no modo como as imagens entraram na
de que fotografassem individualmente a partir rede de sentidos do coletivo.
de uma pergunta; e, 7) para os adolescentes Quanto à temática das imagens, a maioria
da internação, com a proposição de que fo- delas trazia cenas de aprisionamento (grades,
tografassem a partir de uma pergunta. Cada janelas, cadeados). Além disso, este assunto

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predominava nos comentários dos jovens so- Outra imagem que gerou discussões foi
bre as fotos. A fotografia que mais teve re- a de MX, que fotografou a vista da janela ao
percussão foi a imagem1 (fig. 1), de Fe1, que lado de seu leito – imagem3 (fig. 3). O ado-
traz a cena do banheiro dos usuários do servi- lescente disse que esta é a cidade que ele vê
ço com uma cueca e um calção pendurados. do lado de dentro do hospital.

FIGURA 3 – Imagem3

FIGURA 1 – Imagem1 (Fe) Quando a imagem foi mostrada por MX


aos outros jovens e aos auxiliares, todos per-
Os jovens comentaram que a fotografia pa- guntavam de onde ele havia produzido esta
recia haver sido tirada de um presídio e que era foto. Então ele mostrou o local de onde tinha
assim que eles percebiam o local. Após verem a vista. Isto parece indicar a potencialidade
a imagem de Fê no computador, quatro outros da fotografia de materializar a singularidade
jovens buscaram fotografar o banheiro. Varias do olhar do fotógrafo. No caso em questão,
imagens de um mesmo local apontam para algo este olhar faz parte da relação do jovem com
que é compartilhado pelos adolescentes na re- a instituição e pode ser compartilhado e reco-
lação com a instituição, mas também para algo nhecido pelos demais neste momento.
singular – pois a imagem de Fe teve como efei-
to a produção de novos e diferentes olhares. 3 Discussão
Cada foto traz um ponto de vista diferente. A
imagem2 é composta por uma foto de cada
jovem após a apreciação da foto de Fe (fig. 2). Nosso ponto de análise foi a oficina como
um todo – a proposta, a forma como foi re-
cebida pelos jovens e pelos profissionais, as
discussões sobre fotografia realizadas nos pri-
meiros encontros, o exercício de fotografar li-
vremente e com uma pergunta, a escolha das
fotos para impressão e exposição. Aqui abor-
daremos alguns dos pontos analisados, mais
especificamente os que se referem às noções
de experiência de si e autoria.
As imagens trazidas ajudam a pensar de
que forma o dispositivo da oficina de fotogra-
fia possibilita exercícios de autoria, que podem
ser entendidos como uma forma de experien-
cia de si. A imagem1 foi produzida em um es-
FIGURA 2 – Imagem2 (da esquerda para a direita, de cima
para baixo: Ale, Manu, MX e PC).
paço muito particular do serviço: o único onde
as marcas singulares dos jovens – inscrições
nas paredes, no caso – podem-se manter. Nos
1
Pseudônimo criado pelo autor, por recomendação do comitê
de ética. Todos os jovens estão designados por pseudônimos
outros espaços, estas marcas são apagadas,
no texto. seja por uma mão de tinta na parede, seja

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através de apagamentos simbólicos como o seu olhar se tornava particular para ele e para
uso de roupas coletivas e o recebimento de um as pessoas. Ao retomarmos a idéia de autoria
diagnóstico que passa a ser mais importante como o reconhecimento de uma diferença em
do que o próprio sujeito no contexto institu- uma rede de sentidos, podemos propor que a
cional. Este espaço onde marcas particulares foto de MX provocou esse exercício. A imagem
são possíveis é também o único que resguar- produzida pelo menino ganhou reconhecimento
da a privacidade e é geralmente associado no fato de que ninguém imaginava o seu ponto
com o que há de sujo e limpo no corpo. Nesse de vista. Dessa forma o seu olhar se fazia par-
sentido a imagem do banheiro é também uma ticular e, ao mesmo tempo, compartilhável.
imagem de intimidade, especialmente na foto
em que aparece uma cueca pendurada. O que 4 Conclusões
foi realizado por Fe pode ser considerado uma
inscrição sobre inscrições, a materialização de
um olhar singular sobre as linhas de fuga dos As produções em campo nos levam a pen-
sujeitos em tratamento psíquico no serviço. O sar que as oficinas de fotografia podem ser-
impacto da fotografia passa pela relação que vir como estratégia na construção de modos
estes sujeitos tem com a instituição, ou seja, de expressão e exercícios de autoria. Quan-
pela forma como eles se fazem existir em um do se trata de um campo tenso, como o de
local que pouco considera suas particularida- um serviço que funciona dentro de um hospi-
des, suas marcas. tal psiquiátrico, a possibilidade dos usuários
Os comentários que a imagem produz nos produzirem sentidos acerca do contexto de
remetem também a isso. A idéia da foto pare- tratamento pode, por si só, produzir efeitos
cer ter sido tirada de um presídio aponta para interessantes para a instituição, na medida
a forma como os jovens sentem os efeitos do em que dissolve as linhas fixas que definem
funcionamento institucional. Isto parece ser quem tem o saber. Na experiência relatada,
um tipo de relação compartilhada que apare- no momento em que os jovens são convida-
ceu na forma de discussão. Neste mesmo dia dos a expressar como percebem a instituição,
eles já sabiam que poderiam escolher duas fo- muitos retornam um olhar sobre as possibili-
tografias para imprimir e todos escolheram a dades de escapar à ordem instituída. Nesse
imagem1. Entretanto, no dia seguinte, quan- jogo, eles expressam as relações de poder no
do os jovens foram convidados a fotografar local e podem experienciar a si mesmos como
novamente – mas, desta vez, a partir de uma parte ativa deste campo de tensões.
pergunta – quatro deles fotografaram o ba- As imagens evidenciam uma estética pri-
nheiro imagem2. Isto nos permite reconhe- sional por um lado, e um retorno à cidade, por
cer que os jovens no local compartilham uma outro. Essa divisão é congruente com as práti-
rede de sentidos composta, entre outras coi- cas em saúde mental na instituição, que ora se
sas, pelas práticas institucionais. Tal compar- atualizam em um modelo manicomial de tra-
tilhamento se atualiza em uma sintonia com tamento, ora buscam fortalecer outras redes
a imagem1 de Fe. Entretanto, também apa- de convivência aos jovens. A discrepância das
recem experiências singulares em relação a imagens produzidas evidencia como os jovens
esta rede, na medida em que os outros jovens experienciam tais práticas: reconhecendo-as,
foram inspirados pela imagem1 a produzirem porém ainda sem uma implicação para a ação
novas fotografias. Poderíamos pensar nes- que possa por em exercício uma cidadania ati-
te movimento como um exercício de autoria, va. Esse resultado revela a potencialidade do
onde a experiência de si se coloca em jogo fotografar de colocar em evidência sentidos
através da produção de uma imagem capaz de que são vividos, mas que nos modos de ex-
ser compreendida em uma coletividade. pressão instituídos não encontram espaço. A
A produção da imagem3 também nos tomada de uma posição de autoria neste pro-
leva a pensar na potencialidade da fotografia cesso pode ser considerada uma forma de ex-
de colocar em cena diferentes olhares. Assim periência de si na qual rupturas são possíveis.
como as pessoas estranharam a fotografia de Entretanto, sabemos que a experiência de si
MX – de onde ele a havia tirado –, ele mesmo ultrapassa os exercícios de autoria na ampli-
também estranhou que elas não soubessem. O tude das experiências do sujeito.

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INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática Porto Alegre, v.11, n.2, jul./dez. 2008. ISSN digital 1982-1654
ISSN impresso 1516-084X

A experiência analisada revela virtualida- ser percorrida, essas experiências fomentam


des que podem se atualizar ao modificarmos micropolíticas que podem indicar caminhos
as modalidades de intervenção. Embora sai- para outros trabalhos que potencializem os
bamos que de um exercício de autoria a um próprios técnicos a criar diferentes modalida-
exercício de cidadania exista uma distância a des de expressão.

Referências

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Recebido em julho de 2008


Aceito para publicação em agosto de 2008

Vanessa Maurente
Doutoranda em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul(PPGIE/UFRGS), bolsista da CAPES.
vanessamaurente@yahoo.com.br
Cleci Maraschin
Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
clecimar@orion.ufrgs.br

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