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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ALESSANDRO LUÍS PIOLLI

Registro de ensaios clínicos e conhecimento:


experts como agentes

CAMPINAS
2011
ALESSANDRO LUÍS PIOLLI

Registro de ensaios clínicos e conhecimento:


experts como agentes

Exame de qualificação
apresentado ao Instituto de
Geociências da Universidade
Estadual de Campinas, para a
obtenção do título de doutor
em Política Científica e
Tecnológica.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Conceição da Costa


Co-orientador: Prof. Dr. Josué Laguardia

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SUMÁRIO

Introdução
CAPÍTULO 1 - REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO........................................................16
1.1 - Estado, democracia e liberalismo.........................................................................................17
1.2 - Expertise e política..................................................................................................................21
1.3 - Expertise e conhecimento......................................................................................................26
1.4 - Percepção e participação do público nas decisões............................................................28
1.5 - Pesquisa clínica e relações de agência................................................................................31
1.6 – Metodologia............................................................................................................................35
CAPÍTULO 2 - O DEBATE SOBRE O REGISTRO DE ENSAIOS CLÍNICOS.................................38
2.1 - Ensaio clínico enquanto ciência e publicização..................................................................38
2.2 - Legitimidade no debate..........................................................................................................40
2.3 - Conhecimento e extensão da participação..........................................................................46
CAPÍTULO 3 - INTERNACIONALIZAÇÃO DE ENSAIOS CLÍNICOS E COMPLEXIFICAÇÃO
INSTITUCIONAL: EXPERTS COMO AGENTES.............................................................................49
3.1 - Internacionalização e movimentos sociais...........................................................................52
CAPÍTULO 4 - EXPERTISE, PARTICIPAÇÃO E GESTÃO DE ENSAIOS CLÍNICOS
MULTICÊNTRICOS..........................................................................................................................54
4.1 - Aids e ativismo........................................................................................................................54
4.2 - Ensaios clínicos e participação do público no Brasil.........................................................56
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................................63
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................65
ANEXO 1...........................................................................................................................................74
ANEXO 2...........................................................................................................................................76
ANEXO 3...........................................................................................................................................79

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INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os sistemas de saúde, em todo o mundo, vêm


passando por um processo rápido e profundo de mudanças. A indústria
farmacêutica e toda a crescente rede de organizações envolvidas em pesquisa e
prática clínica passaram a ser centro de uma série de debates éticos, científicos e
políticos atuais. A noção de medicalização (ZOLA, 1972) é um possível ponto de
partida para se pensar os problemas decorrentes dessas mudanças, uma vez que
ela pode ser definida como “os processos através do qual aspectos da vida
previamente fora da jurisdição da medicina – como alcoolismo, homossexualismo,
aborto e abuso de drogas – passaram a ser construídos como problemas
médicos” (CLARKE, 2003, p.161). Esse processo de medicalização, na
perspectiva de Clarke, pode ser considerado uma das mais potentes
transformações sociais da última metade do século passado no Ocidente.
As inovações clínicas – e as novas transformações nos diagnósticos,
tratamentos e procedimentos de bioengenharia, genômica, proteômica, medicina
baseada em evidência, entre outros – tornaram o fenômeno social, inicialmente
chamado de medicalização, muito mais complexo no início do século 21 e com
implicações bastante distintas das originais. Por isso, Clarke criou o termo
biomedicalização, para designar “os processos crescentemente complexos,
multisituados, multidirecionais de medicalização, que hoje estão sendo alargados
e reconstituídos através das formas e práticas sociais emergentes de uma elevada
e crescente biomedicina tecnocientífica” (CLARKE, 2003, p. 162, tradução minha).
O "bio", em biomedicalização, designaria as transformações de humanos e não
humanos proporcionadas por tais inovações tecnocientíficas, como aquelas
derivadas da biologia molecular, biotecnologia, genômica, medicina de transplante
e outras novas tecnologias médicas.
Na segunda metade do século passado, o trauma gerado por milhares de
pessoas que nasceram com problemas de má formação ou ausência de membros
causados pela Talidomida (que era recomendada para enjôos do início de

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gravidez na década de 1960 e causava má formação dos embriões) chamou a
atenção para a necessidade de maior critério na avaliação de medicamentos
(CARPENTER, 1967, p. 119). Os órgãos reguladores – como o US Food and Drug
Administration (FDA) e o European Medicines Agency (Emea), passaram a exigir
ensaios clínicos mais criteriosos, com maior número de pessoas e diversidade
étnica. De acordo com a European Medicines Agency (EMEA), ensaio clínico pode
ser definido como:

Qualquer investigação em seres humanos, com objetivo de descobrir ou


verificar os efeitos farmacodinâmicos, farmacológicos, clínicos e/ou outros
efeitos de produto(s) e/ou identificar reações adversas ao produto(s) em
investigação, com o objetivo de averiguar sua segurança e/ou eficácia.
(EMEA, 1997).

O aumento da quantidade de pessoas envolvidas em ensaios clínicos


internacionais e uma série de escândalos envolvendo experimentação humana
levantaram diversas questões sobre a importância das ações, ao mesmo tempo
positivas e negativas, da indústria farmacêutica para a saúde pública e para a
própria concepção de saúde individual, sob a influência de um marketing
multimilionário. Apesar do esforço da indústria farmacêutica em associar seus
produtos à validação científica, Petryna (2006) defende que um estudo etnográfico
criterioso pode levar a crer que:

Ha muita magia na forma com que companhias farmacêuticas miram


indivíduos e seus corpos, influenciam o curso dos eventos terapêuticos, e
manipulam as necessidades e vontades coletivas, particularmente na área
de antidepressivos... Sob a égide de uma epidemia de transtornos de
déficit de atenção, por exemplo, a promoção da demanda e abuso dos
[antidepressivos] Ritalina e Adderal, em escolas secundárias americanas,
tornaram-se comuns (PETRYNA, 2006, p.9, tradução minha).

A banalização e o uso excessivo de antidepressivos são problemas que


resultaram em severos questionamentos acerca dos benefícios desses
medicamentos e as comprovações científicas de suas vantagens em relação a
outras possibilidades de tratamentos, como, por exemplo, os defendidos por

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alguns psicólogos e psicoterapeutas. Na perspectiva de Petryna (2006), o excesso
de confiança em produtos farmacêuticos nos permite evitar lidar com os
problemas da família, a falta de financiamento público para as escolas, a disciplina
escolar, a educação dos filhos. De acordo com essa autora, a farmaceuticalização
de certos transtornos seria, “às vezes, mais um produto da cultura popular (em
parte resultante de decisões da FDA para diminuir as restrições à publicidade
direta ao consumidor) do que um interesse profissional” (PETRYNA, 2006, p.9). E
essa publicidade encontra resultados exitosos para a indústria. “Notavelmente, os
pais, mais do que pediatras ou psiquiatras, buscam diagnósticos para seus filhos”
(Idem).
Dentre os vários escândalos envolvendo a Indústria farmacêutica e ensaios
clínicos – que foram centro de debates, conferências e declarações internacionais
– um caso deu notoriedade pública à discussão sobre a necessidade de
publicização dos ensaios clínicos e seu registro em repositórios públicos. Em
2004, o procurador geral de Nova York moveu uma ação pública contra a empresa
farmacêutica GlaxoSmithKline, por ocultação de evidências negativas envolvendo
seu antidepressivo paroxetina, comercializado com os nomes Paxil (EUA e Brasil)
e Seroxat (Grã-Bretanha) (KRLEŽA-JERIC, 2005). O procurador dispunha de
memorando interno da companhia, de 1998, que afirmava que seria
“comercialmente inaceitável admitir que a paroxetina não havia funcionado em
crianças [nos ensaios clínicos realizados pela empresa] e que a companhia
deveria gerenciar a disseminação desses dados para minimizar quaisquer
impactos negativos” (KRLEŽA-JERIC, 2005).
Esse episódio intensificou o debate sobre a necessidade de implantação de
uma base pública de dados de ensaios clínicos, cujo o registro se daria antes do
início do recrutamento de participantes, de forma a tornar obrigatória a publicação
de determinados dados sobre a pesquisa, independentemente de sua posterior
publicação ou não em revistas científicas. Entre as várias iniciativas após o
escândalo da paroxetina, destaca-se a da Canadian Institutes of Health Research,
que passou a exigir o registro de todos os ensaios por eles financiados e

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convocou uma reunião aberta em Ottawa. Nessa reunião – que teve como
convidados os interessados em contribuir na elaboração de um plano para o
registro global de ensaios clínicos – foi criado o Grupo de Ottawa, com o objetivo
de ampliar e internacionalizar o debate (OTTAWA GROUP, 2007;
CARVALHEIRO, 2007; KRLEŽA-JERIC, 2005).
Como resultado desses debates, em maio de 2007, a Organização Mundial
de Saúde (OMS) iniciou a rede internacional de registro de ensaios clínicos, com o
lançamento do Portal International Clinical Trials Registry Platform (ICTRP <
http://www.who.int>). Ele integrou as bases de dados da Austrália e Nova Zelândia
– o Australian Clinical Trials Register, o International Standard Randomised
Controlled Trial Number Register (ISRCTN), da Inglaterra, e o ClinicalTrial.gov,
dos Estados Unidos. Em julho de 2007, a China e a Índia se associaram ao
Sistema de Registros de Ensaios Clínicos. Em 2008, o Ministério da Saúde
(portarias MS/GM n° 1345 e 2448) criou uma comissão para elaborar o projeto de
Implementação do Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (Rebec) no formato web
flexível, open source e multilíngue. Em dezembro de 2010 o REBEC iniciou suas
atividades.
Além do debate internacional sobre a necessidade de registro de ensaios
clínicos, no Brasil, a migração de pesquisas biomédicas do Norte para o
hemisfério Sul, a Lei dos Genéricos e o crescimento da indústria nacional
proporcionaram um aumento da quantidade de ensaios clínicos, estimulando o
debate acerca da necessidade da constituição de um registro nacional de ensaios
clínicos.
No período entre a revisão da declaração de Helsinque de 1975 e a
implementação da ICTRP, em 2007, há uma intensificação dos debates
envolvendo os defensores da divulgação dos protocolos e resultados dos ensaios
clínicos – representados por editores de revistas médicas e membros do Grupo de
Ottawa – e os contrários à divulgação, em geral, representantes da indústria
farmacêutica. Em 2008, no artigo 30 da versão revista da Declaração de
Helsinque foi reiterado que autores, editores e publicadores têm obrigações éticas

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com respeito à publicização das pesquisas e seus resultados, sejam esses
positivos, negativos ou inconclusivos:

Autores, editores e publicadores têm obrigações éticas com respeito à


publicação dos resultados da pesquisa. Os autores têm o dever de tornar
público os resultados de suas pesquisas em humanos e devem ser
responsáveis pela integralidade e precisão de seus relatórios [...]
Resultados negativos e inconclusivos, bem como positivos, devem ser
publicados ou [...] tornados disponíveis ao público. As fontes de
financiamento, afiliações institucionais e conflitos de interesse devem ser
declarados na publicação. Relatórios de pesquisa que não estejam em
acordo com os princípios dessa Declaração não devem ser aceitos para
publicação.
A obrigação moral de reportar os resultados de todos os pacientes
envolvidos baseia-se nas noções de altruísmo e bem público comum.
(DECLARAÇÃO DE HELSINQUE, 2008)

Nesses debates, foi possível identificar, a partir das argumentações dos que
defendem o registro dos ensaios clínicos, dois importantes aspectos: alguns dos
motivos centrais que levaram à defesa do registro e as expectativas dos
defensores do registro com a sua implementação. Estes dois aspectos são
fundamentais para a construção do problema que está sendo discutido e pensado
no presente trabalho. Escolhi três pontos considerados centrais da argumentação
pró-divulgação, uma vez que apontam as pistas iniciais para pensar parte da
complexidade envolvida na realização de ensaios clínicos, bem como a
necessidade de ampliação do debate acerca de vários aspectos discutidos a
seguir.
O primeiro ponto é que, para os defensores do registro, ele garante a
publicidade e, com isso, transparência acerca dos procedimentos de ensaios
clínicos. Isso permitiria maior controle social da experimentação em humanos, do
ponto de vista da ética. No entanto, existe toda uma discussão sobre as
desigualdades e assimetrias de conhecimento que dificultaria ao público leigo
entender e controlar as decisões tomadas por experts1. Isso também remete a

1
Escolhi usar o termo ‘expert’ ao longo do texto, ao invés de traduções como especialista, perito
ou técnico, por três razões principais. A primeira é que qualquer possível tradução não traz a
complexidade das relações de autoridade que envolvem a expertise. A segunda razão é que as

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outras questões caras, quando se pensa em ética dos ensaios clínicos, como o
uso de placebo, em casos de doenças com alternativas de tratamento, e o
consentimento informado. Isso porque as desigualdades de conhecimentos entre
leigos e experts no assunto poderiam levar ao questionamento acerca da validade,
frente a assimetria de conhecimento, de um consentimento informado do sujeito
de pesquisa. Colocada em outros termos a questão poderia ser formulada assim:
o sujeito de um ensaio clínico é realmente capaz de avaliar, por exemplo, se
aceita participar de um ensaio clínico duplo cego com placebo (em que nem ele,
nem o médico sabem quem recebe tratamento e quem recebe o placebo)?
O segundo ponto considerado central pelos defensores da divulgação dos
ensaios clínicos é o viés de publicação. Ele pode ocorrer, por exemplo, pela
ausência das informações sobre experimentos realizados em decorrência da não
publicação ou publicação parcial dos seus resultados – viés no relato de
desfechos. Os estudos com resultados positivos ou favoráveis têm publicação
mais rápida, em periódicos com fator de impacto alto, maior número de
publicações (“efeito salame”), mais citação e maior chance de publicação na
língua inglesa (“viés de idioma”). Ao se comparar os resultados de ensaios clínicos
publicados e de ensaios registrados, pode-se chegar a conclusões diferentes
acerca da eficácia de determinados produtos e procedimentos.
O viés de publicação ocorre porque alguns ensaios clínicos não atendem
aos padrões exigidos pelas revistas médicas internacionais ou não há interesse
pelos patrocinadores e pesquisadores em publicá-los devido à ocorrência de
resultados inconclusivos ou negativos. Esta situação gera um desperdício de
recursos humanos e materiais, pois os conhecimentos e experiências geradas
nesses estudos não podem ser usados pelas ciências biomédicas e,
consequentemente, aumentam-se as chances de repeti-los. A divulgação

versões mais atuais de dicionários de língua portuguesa, como, por exemplo, o Houaiss, já trazem
as palavras expert e expertise. A expressão ‘expert’ também não será usada como um sinônimo de
cientista, mas sim em uma perspectiva mais ampla, a ser definida e discutida ao longo do texto,
abrangendo vários tipos de especialistas, como técnicos, engenheiros, advogados, cientistas e até
pessoas sem formação acadêmica que, por experiência, podem ser considerados experts em
alguns assuntos.

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compulsória de todas as pesquisas com medicamentos – inclusive as que
demonstram que a droga ou tratamento em questão são insatisfatórios – poderia
evitar, na perspectiva dos defensores da divulgação, a distorção de resultados
científicos, a má-conduta científica, a repetição desses ensaios em outros
contextos, danos aos pacientes, maior custo aos serviços de saúde, além de
promover uma efetiva contribuição dos ensaios clínicos para o conhecimento
médico na tomada de decisão de médicos e gestores.
No entanto, para se pensar os desafios da produção de conhecimento
biomédico, mais fatores podem ser adicionados, no contexto da biomedicalização
e farmaceuticalização, como, por exemplo, a reivindicação por aumento da
participação pública em decisões. A internacionalização dos ensaios clínicos e o
aumento do número e tipos de organizações e experts que participam do
planejamento, execução, regulação e fiscalização das pesquisas criam elementos
complicadores no tocante à questão da produção de conhecimento biomédico e
da argumentação pró-divulgação.
Para que um novo produto ou procedimento chegue ao mercado, podem
estar envolvidas inúmeros atores: indústria farmacêutica; empresas de consultoria;
hospitais; universidades; centro de pesquisas; empresas de logística
especializadas; empresas de biotecnologia; Organizações não governamentais
(ONGs); entidades de representação de usuários e ativistas; jornalistas, empresas
de publicidade e marketing; Organizações Representativas de Pesquisa Clínica
(ORPCs), que funcionam como um elo entre a indústria farmacêutica e os centros
de pesquisa hospitalares; órgãos governamentais (ministérios da saúde, por
exemplo); agências reguladoras e comitês de ética (Anvisa, FDA, Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa - Conep etc ); e, finalmente o público mais amplo
que precisa ou possivelmente pode a vir a precisar do produto de uma
investigação. Nessas organizações, em diferentes medidas, existem pessoas com
conhecimentos fundamentais para a tomada de decisões relacionadas, uma vez
que são partes essenciais do processo social que envolve a realização de ensaios
clínicos.

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Devido a essa complexidade de organizações e atores envolvidos na
pesquisa clínica internacional, vários autores (PETRYNA, 2006; MINISTERIO DA
SAÚDE, 2010; NOVAES, 2011) apontam a dificuldade de gestão dos ensaios
clínicos multicêntricos. Para pensar em questões como a gestão, regulação,
execução, “fiscalização ética” e “relativismo ético” nos países pobres, trarei alguns
pontos da discussão sobre o papel político e cognitivo dos experts nas sociedades
atuais, como discutirei mais tarde.
O terceiro ponto a ser considerado, que deriva do segundo, é o argumento
pró-divulgação que se ancora no viés de publicação, ou seja, somente são
publicadas em periódicos científicos as pesquisas clínicas cujos resultados são
obtidos a partir de estudos com grandes amostras, metodologia quantitativa
ancorada em modelos estatísticos sofisticados e, principalmente, que não firam os
interesses dos financiadores (em geral, a indústria farmacêutica). O registro
obrigatório poderia contrabalancear esse viés, de acordo com os defensores da
divulgação compulsória.
Na prática, a exigência de publicação dos dados dos ensaios clínicos, bem
como dos seus resultados pelo FDA coloca-se como um desafio para a equipe
técnica do registro norte-americano (clinicaltrial.gov) porque passa por questões
problemáticas: o uso de linguagem acessível ao público leigo e a existência de
interesses econômicos dos grupos editoriais (primazia da publicação), da indústria
farmacêutica e demais organizações que, de alguma forma, lucram com a
realização de ensaios clínicos. Portanto, as expectativas iniciais de resultados
esperados com a divulgação – maior transparência, aproveitamento dos
conhecimentos gerados e fim do viés de publicação – não foram totalmente
alcançadas, mas, ao contrário, demonstram a existência de outros problemas para
que os objetivos iniciais do registro fossem atingidos e que não haviam sido
previstos.
Para pensar a divulgação dos ensaios clínicos, proponho colocar os
problemas que motivam a defesa do registro, bem como os dilemas que surgiram
após a implementação dos primeiros registros, na perspectiva dos processos de

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medicalização, biomedicalização e farmaceuticalização. Dessa forma, ao olhar as
relações entre diferentes organizações envolvidas – indústria farmacêutica,
instituições de pesquisa, sociedade civil e Estado, é possível deslocar as questões
que movimentaram a defesa do registro, para aquelas que podem ser analisadas
nas perspectivas dos problemas da expertise para as democracias e das relações
de delegação de poder, ou de agência, que se estabelecem entre Estado e
experts, movimentos sociais e experts, ativistas e experts, organizações e experts
e instituições e experts.
O ponto de partida teórico da análise serão os diferentes processos de
legitimação de experts, com suas peculiaridades políticas e cognitivas, e das
relações de agência, com seus conflitos de interesses e assimetria de
conhecimentos e poder de decisão característicos. A partir daí, está em
desenvolvimento o argumento que se será apresentado como tese, em 4 partes
descritas resumidamente a seguir.
No primeiro capítulo, será apresentado o referencial teórico metodológico,
de forma a colocar em jogo os conceitos e teorias que serão pano de fundo para
as discussões usadas no desenvolvimento do argumento. Serão usados artigos,
textos da mídia, sites, textos de debate, leis e outros documentos para a
movimentação de conceitos dos Estudos sociais da ciência e tecnologia (Esct),
mais precisamente o que Collins & Evans (2002) chamaram de Estudos de
expertise e experiência (EEE). Inicialmente, terão ênfase duas abordagens, a dos
aspectos políticos da expertise e da participação pública, a partir de Turner (2001,
2003) e a abordagem epistemológica. A segunda abordagem tem na proposta de
teoria normativa da expertise e experiência de Collins & Evans (2002) o início de
um debate que será usado para apresentar parte da diversidade de perspectivas
analíticas distintas nos estudos sobre os problemas da expertise para as
democracias liberais.
Como forma de ampliação do debate será trazida a perspectiva da
economia política, que Foucault coloca como mecanismo de legitimação e
racionalização dos Estados e ruptura com os modelos de Estado medievais e

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antigos. Argumentarei que a economia política e sua importância crescente nos
Estados democráticos liberais foi uma das portas de entrada para tornar a
racionalidade científica o elemento central para a ação do governo e para a função
do Estado. Nesse contexto, o conceito de agência – muito usado para analisar as
relações de delegação de poder entre donos e gestores de empresas ou entre
advogados e clientes – será usado para olhar a economia a partir de uma
perspectiva externa (TURNER, 2002), no caso, pelas relações de agência, em que
os experts são os agentes.
Nas relações clássicas de agência são estabelecidas interações com
conflitos de interesses, assimetria de conhecimentos, informações e poder de
decisão entre o principal, ou aquele que contrata e delega poder, e o agente, que
recebe o poder pactuado no contrato. Dessa forma, como metodologia, proponho
repensar alguns dos conceitos dos estudos de expertise e experiência, com
objetivo de criar um referencial de análise que consiste em uma espécie de
abordagem híbrida somando os aspectos do conhecimento, da política e das
relações de agência em que experts são os agentes.
Foram escolhidos três recortes para serem debatidos a partir da proposta
metodológica e desenvolver essa abordagem analítica híbrida (epistemológica,
política e econômica) para pensar os problemas gerados pelo fenômeno da
expertise e suas implicações aos ideais dos defensores da divulgação dos ensaios
clínicos. O primeiro recorte é uma apresentação do debate sobre o registro de
ensaios clínicos. O segundo será pensar o processo de internacionalização dos
ensaios clínicos e a consequente complexificação institucional, em que as
relações de conflitos de interesse permitirão aprofundar a noção de experts como
agentes. O terceiro recorte retoma questões decorrentes do fenômeno expertise,
para pensar a gestão das atividades relacionadas à pesquisa clínica internacional,
num contexto de busca por maior participação pública nas decisões acerca dos
ensaios clínicos. Esses recortes serão discutidos nos 3 capítulos do texto após o
capítulo teórico e apresentados brevemente a seguir.

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No segundo capítulo da tese, ‘O debate sobre o registro de ensaios
clínicos’, será discutido como os argumentos dos defensores e dos oponentes do
registro permitem pensar os mecanismos de legitimação e deslegitimação dos
experts envolvidos no debate, bem como as possíveis implicações da ausência de
atores interessados no debate, entre outros motivos, por não terem experts como
agentes. Os mecanismos de legitimação encontrados serão pensados a partir dos
modelos de expertise, de experts e das relações de agência.
No terceiro capítulo do texto, ‘Internacionalização de ensaios clínicos e
complexificação institucional: experts como agentes’, argumentarei que os debates
internacionais geram, por exemplo, parâmetros éticos (em declarações,
documentos finais, compromissos, atas de debates) importantes que poderiam
permitir, a partir do engajamento público, potencial de controle social, no complexo
corpo que os ensaios clínicos multicêntricos (internacionais) estabeleceram ao
redor do planeta. Como tentarei mostrar, no entanto, o controle social idealizado
pelos defensores do registro dos ensaios clínicos, no contexto das democracias
liberais, só seria possível indo muito além do trabalho feito pelas agências
reguladoras e comitês de ética locais e nacionais, a partir das informações do
registro. Em parte, isso poderia ser explicado porque, em muitos debates nesses
espaços, não existem experts como agentes representando todos os interesses da
sociedade.
No quarto e último capítulo, ‘Expertise, participação e gestão de ensaios
clínicos multicêntricos’, discutirei o caso dos testes clínicos para avaliação das
drogas anti-HIV, que pode ser usado como paradigmático para a compreensão do
possível papel do público não especializado na gestão da pesquisa clínica, uma
vez que existem vários estudos nos Estados Unidos (EPSTEIN, 1995; PETRYNA,
2006) e no Brasil (BIEHL, 2006; OLIVEIRA, 2001; BASTOS, 1999), que mostram
como grupos ativistas ligados à AIDS participaram ativamente do debate e da
gestão de ensaios clínicos e da saúde pública.
Para finalizar o texto, são retomados aspectos da teoria e da argumentação
dos três casos discutidos para tentar pensar possibilidades para que os problemas

14
discutidos pelos defensores do registro de ensaios clínicos possam ser, pelo
menos em parte, resolvidos.

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CAPÍTULO 1 - REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO

Epstein (1995) descreve o processo que ele chama de “construção da


expertise leiga” (“construction of lay expertise”) a partir de um estudo com grupos
ativistas engajados na melhoria das condições dos portadores de HIV, nos
Estados Unidos. O autor demonstra que os ativistas legitimaram sua participação
nas decisões da política de saúde e das pesquisas clinicas ligadas à AIDS por
meio do contato com as discussões científicas dos espaços formais ocupados por
cientistas, médicos, gestores e outros tipos de experts envolvidos.
Collins & Evans (2002) começam sua discussão sobre a importância da
criação de uma teoria normativa da expertise e da experiência com uma crítica à
noção de “expertise leiga” de Epstein (1995). Para eles, a própria definição de
pessoa leiga, como sendo “alguém que não é expert”, torna as expressões “leigo”
e “expert” como possuidoras de sentidos opostos que parecem se excluir
mutuamente. Por isso, embora tivessem como um dos focos o aumento da
participação nas decisões técnicas, os autores optam abandonar a expressão
“expertise leiga”, por considerarem-na um oximoro. “Se aqueles que não são
especialistas podem ter a expertise, que referência especial tem a expertise?
Pode parecer que qualquer um pode ser um expert” (COLLINS & EVANS, 2002, p.
235).
Os “experts leigos” descritos por Epstein são chamados, inicialmente, por
Collins & Evans de "experts baseados em experiência" (COLLINS & EVANS,
2002, p.). Segundo eles, embora a experiência desses experts não seja
reconhecida pela certificação, eles são encontrados em pequenos grupos de
especialistas. Os autores referem-se aos membros do público, que possuem
conhecimentos técnicos especiais em virtude da experiência que não é
reconhecida por diploma ou outros certificados. A partir da diferenciação dos tipos
de expertises existentes, esses autores defendem a possibilidade de diferenciar as
pessoas com algum tipo de expertise que permitiria contribuir com determinado
conhecimento ou decisão política, mesmo sem terem certificação, dos que não

16
possuem nenhum tipo de conhecimento acerca da questão, na situação chamada
de não expertise.
Ao defenderem a não participação de pessoas sem expertise nas decisões
públicas, Collins & Evans receberam uma série de críticas (JASANOFF, 2002;
WYNNE, 2003; RIP, 2003; KERR, 2007). Como destaca Kerr (2007) o objetivo de
uma maior participação do público, que atravessa muitas das nossas instituições
sociais, está longe de ser incontestável. Para a autora, “os críticos [como Collins e
Evans] têm sustentado que o público tem falado muito, não pouco, na organização
e aplicação da ciência e pode alterar a sua direção por razões infundadas” (KERR,
2007).
A polêmica gerada em torno da avaliação dos tipos de experiências que
permitiriam a legítima participação aponta a necessidade de adicionar na
discussão a questão da legitimidade política da participação de leigos e experts.
Para pensar essa polêmica – que passa pelos limites da legitimação da
participação do público –, os mecanismos que legitimam a autoridade dos
diferentes experts que emergem como atores centrais das decisões políticas
atuais serão discutidos. O problema da assimetria de conhecimentos entre leigos
e experts será colocado na perspectiva política, antes de ser colocado como
problema epistemológico e econômico.

1.1 - Estado, democracia e liberalismo


Não é, sem dúvida, a primeira vez que a questão da verdade e a questão
da autolimitação da prática governamental se colocam. Afinal de contas, o
que é que se entendia por sabedoria do príncipe, na tradição? A sabedoria
do príncipe era algo que fazia o príncipe dizer: conheço muito bem as leis
de Deus, conheço muito bem a fraqueza humana, conheço muito bem
minhas próprias limitações, para não limitar meu poder, para não respeitar
o direito do meu súdito. Mas vê-se bem que essa relação entre princípio
de verdade e princípio de autolimitação é totalmente diferente na
sabedoria do príncipe e no que está emergindo agora, que é uma prática
governamental que se preocupa por saber quais vão ser, nos objetos que
ela trata e manipula, as consequências naturais do que é empreendido. Os
prudentes conselheiros que outrora definiam os limites da sabedoria em
função da presunção do príncipe já não têm nada a ver com esses
especialistas econômicos que estão aparecendo e, por sua vez, têm por
tarefa dizer, na verdade, a um governo quais são os mecanismos naturais
do que ele manipula (FOUCAULT, 2008, p. 24).

17
A mudança da estreita ligação entre Estado e religião – que ocorria quando
os príncipes recorriam a Deus – para a complexa relação que os Estados atuais
estabelecem com a racionalidade científica, descrita por Foucault, resume o que
pode ser considerado o início de um processo de coevolução entre Estado e
ciência. Pensando o período mais intenso desse processo numa perspectiva
histórica, ao se colocar como alguém no futuro, Turner (2003) vê duas grandes
mudanças no século 20: a passagem para uma relação estreita entre ciência e
tecnologia e a mudança do sistema de governo de impérios para democracias
parlamentaristas. Para ele, uma possível interpretação da história do liberalismo é
a de que houve uma expansão contínua da cidadania e a participação crescente
do público nas decisões políticas. Por outro lado, essa ideia poderia ser pensada
também como uma redução absoluta da política para o exercício de cargos
públicos, o que se demonstra ser uma forma bastante incompleta de olhar para a
democracia liberal (TURNER, 2003).
Uma visão contrária a essa do aumento contínuo da participação é a de
Jürgen Habermas (1987). Esse autor, ao mesmo tempo, usa e critica a visão de
Carl Schmitt sobre o liberalismo clássico, que Turner chama de democracia liberal
1.0. O principal argumento de Habermas é que a noção de esfera pública
burguesa era uma forma de usurpação. Habermas apóia-se no argumento de que
o núcleo da ideologia do liberalismo clássico foi uma ficção: a de que os
proprietários dos meios de produção eram idênticos a todas as pessoas comuns.
Nesse raciocínio, os proprietários foram os únicos participantes no discurso
público e na formação da opinião pública, e a discussão liberal, no passado, foi
uma farsa. Ou seja, a democracia liberal 1.0 não seria propriamente marcada com
a democracia liberal, pois é um liberalismo de notáveis, o liberalismo clássico do
século 18.
Gradativamente, começou a ocorrer o reconhecimento da importância do
encontro de muitas vozes e da rejeição das exclusões no processo político. É isso
que Turner denomina democracia liberal 2.0. Pensada de uma forma extrema e

18
ampliada para novas direções, na política, a noção de democracia liberal 2.0
carrega uma quase ilimitada confiança na eficácia de duas coisas: o governo
representativo e a completa liberdade de discussão. Em alguns momentos, formas
extremas de se pensar a democracia liberal 2.0 foram chamadas, por muitos, de
populismo.
Ao olharmos a situação atual da maioria dos países industrializados, vemos
que estamos diante de um conflito na relação entre, de um lado, uma democracia
representativa com um persuasivo discurso liberal e, de outro, uma sociedade do
conhecimento com práticas, argumentos e justificativas racionais (TURNER,
2003). Nesse contexto, para Turner, seria possível comparar nossa situação com
a de monarquias européias que, mesmo nos países onde ainda existem
monarcas, elas foram substituídas pela democracia representativa. Da mesma
forma, apesar de não observarmos mudanças “oficiais” nas formas de governo,
passamos por um processo de liberalização da expertise e terceirização das
decisões do Estado para grupos de experts. Esses dois fatores caracterizam a
democracia liberal 3.0. Isso ocorre no contexto da democracia atual dos países
desenvolvidos, onde diferentes ativistas, movimentos, comissões, associações,
organizações não-governamentais e experts com papéis específicos participam de
processos extremamente complexos, que podem ser discutidos a partir de
diversas perspectivas.

O uso da sociedade civil como um ideal normativo, hoje, é visto por muitos
como retrógrado e populista, na perspectiva da sociedade do
conhecimento. A política é feita por pessoas que olham para o passado. A
Europa, por exemplo, que passa por uma substituição do governo das
pessoas pela administração das coisas é uma Comunidade Europeia que
rege, em grande parte, composta por comissões de experts. Mas se a
participação ampla e direta da sociedade civil, no sentido da democracia
liberal 2.0, não é mais vista como uma alternativa, em vez disso, vemo-nos
confrontados com as possibilidades apresentadas pelo liberalismo 3.0:
liberalização da expertise com controle democrático expressa através de
comissões e executada pelas burocracias especializadas (TURNER, 2003,
p. 143).

19
Esse processo descrito – a democracia 3.0 – aponta para uma mudança
sutil nas democracias liberais, que pode acabar por capturar, duplamente, a direita
e a esquerda, na busca de um modelo próximo do neoliberalismo norteamericano
(FOUCAULT, 2008), contexto em que se manifesta essa liberalização da expertise
que abre possibilidades para os ideais de aumento de participação. A
preocupação com o tamanho do Estado, que atravessa a história do liberalismo, é
colocada como ponto central para a compreensão do processo que Foucault
chama de ‘nascimento da biopolítica’. Para ele, biopolítica seria a maneira como
se procurou, desde o século 18, racionalizar os problemas postos à pratica
governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos
em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças (FOUCAULT, 2008,
231). Um dos pontos centrais na noção de biopolítica é que o Estado, no
pensamento neoliberal, deve ter um governo que se preocupa com sua população.
Por isso, aumentam os desafios políticos e econômicos ligados às questões de
saúde pública, inclusive os problemas medicalizados.

Enquanto num país como a França o contencioso dos indivíduos em


relação ao Estado gira em tomo do problema do serviço publico, o
contencioso nos [Estados Unidos] entre os indivíduos e o governo adquire,
ao contrário, o aspecto do problema das liberdades. E por isso que eu
creio que o liberalismo americano, atualmente, não se apresenta tanto
como uma alternativa política, mas digamos que é uma espécie de
reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à
esquerda. E também uma espécie de foco utópico sempre reativado. E
também um método de pensamento, uma grade de analise econômica e
sociológica (FOUCAULT, 2008, p. 301).

Há uma forte ligação entre essa reivindicação global por liberdades e as


possibilidades trazidas pela liberalização da expertise, entre elas a do aumento da
participação em decisões. No entanto, como argumentarei a seguir, a nova
democracia, mesmo com seus espaços institucionalizados de participação,
depara-se com os problemas da assimetria de conhecimentos entre especialistas
e leigos.

20
1.2 - Expertise e política
Epstein mostrou como a aquisição de conhecimentos da biomedicina por
parte dos ativistas da Aids funcionou para que eles legitimassem a participação
nas decisões científicas e de saúde pública. A discussão acerca da importância e
do papel da divulgação de ensaios clínicos no desenvolvimento científico e
tecnológico da saúde passa por argumentações que se legitimam a partir de
conhecimentos de experts, manifestados em debates públicos. Por isso, os
Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT) podem fornecer instrumentos
para analisar essa questão sob várias perspectivas, o que pode ser feito,
inicialmente, a partir dos cinco tipos de experts de Turner (2001) e dos três tipos
de expertise de Collins & Evans (2002).
A expertise passou a ser objeto de estudo nos ESCT após a percepção do
aumento da participação de cientistas em decisões públicas, especialmente na
resolução de controvérsias. Esta participação crescente de cientistas apontaria
dois problemas para o futuro das democracias liberais, do ponto de vista teórico.
Um dos problemas é o da convivência entre o fenômeno da expertise e o princípio
teórico da igualdade das democracias liberais. De acordo com esse princípio,
todos deveriam ser iguais, ou ter igual peso, nas decisões políticas. As
desigualdades de conhecimento geram assimetrias na participação de
especialistas e não especialistas, o que acabaria por passar por cima dos direitos
dos cidadãos, tornando a participação pública uma farsa. Nessa perspectiva, o
conhecimento especializado é visto como uma ameaça política, pois os experts
são tratados como detentores de conhecimentos que conferem um poder
incontrolável e inadquirível pelas outras pessoas. Essa idéia vem da suposição de
que o público não teria capacidade de compreender alguns assuntos e, portanto,
não teria controle sobre suas possíveis consequências.
Já o segundo problema ocorre quando o Estado – supostamente neutro
com respeito às diferentes opiniões – ao dar especial status à opinião de experts,
fere o princípio teórico da neutralidade da democracia liberal. Esse status
diferenciado entre as opiniões de leigos e experts pressupõe a incapacidade do

21
público não especializado em participar das decisões, devido ao fato desse
público não possuir conhecimento científico e técnico suficiente.
Pensados separadamente, esses dois problemas poderiam ser
solucionados nos caminhos da política: as desigualdades de conhecimento ou a
suposta “incapacidade pública” de participar das decisões seriam resolvidos com a
educação; já a questão da neutralidade, ou o suposto descontrole democrático do
conhecimento especializado poderia ser resolvido por meio de concílios de
cidadãos em tecnologia ou conselhos e comitês gestores com participação do
público.
Pensados juntos, no entanto, os dois problemas trazem uma questão mais
complexa: se os experts são o princípio do conhecimento público (uma vez que
geram e possuem esse conhecimento), e esse conhecimento não deveria ser
pensado como essencialmente superior à opinião do público leigo, que não detém
o certificado de especialista, o público seria, então, menos competente que os
experts e estaria (em maior ou menor medida) sob o controle cultural ou intelectual
dos especialistas (TURNER, 2001). Esse problema deriva da característica da
autoridade dos experts científicos, que funcionaria tanto na criação do discurso
científico, quanto na criação do discurso público e do uso e apropriação social do
discurso científico.
Para Weber (1972), existem, em princípio, três “tipos ideais” de dominação
(autoridade), com diferentes mecanismos de legitimidade. O primeiro é
denominado "patrimonialismo ou tradicional", exercido pelo patriarca ou senhor de
terras, por meio da autoridade do "passado eterno", ou seja, pelos costumes
santificados pela validez imemorial e pelo hábito. O segundo, o "poder
carismático", é legitimado pela devoção e confiança estritamente pessoais
depositadas em um indivíduo, devido a suas qualidades prodigiosas, heroísmo, ou
outras qualidades que fazem dele um chefe. O terceiro, o “poder racional”, ou
burocrático-racional, impõe-se pela "legalidade", fundamentado em leis e regras
estabelecidas racionalmente, pela crença na validez de um estatuto legal, ou de
uma competência positiva, tal qual é observado no caso do "servidor do Estado".

22
Nos três casos, existe, em última instância, um éthos, um conjunto de regras que
fundamenta a legitimidade da dominação.
Esse éthos, nos casos das autoridades tradicional (ancorada na tradição e
costumes) e racional (fundamentada no estatuto), implica em uma crença indireta,
intermediada pelos costumes e pelas regras formais, respectivamente. Já a
autoridade carismática implica em uma crença direta no líder carismático. A
autoridade cognitiva pode ser considerada análoga à autoridade carismática, visto
que existe uma crença de que os cientistas possuem um poder cognitivo especial
(TURNER, 2003). Ao pensar a autoridade dos cientistas, Turner observa que

‘autoridade’ é um conceito peculiar para ser usado em conjunção com


'conhecimento': em contextos políticos a autoridade é pensada em
contraste com a verdade, como, por exemplo, faz Carl Schmitt quando
parafraseia Hobbes dizendo que a autoridade, não a verdade, faz a lei. Por
autoridade Schmitt tem em vista o poder efetivo para tomar e forçar
decisões. Autoridade cognitiva é, nesses termos, um paradoxo. Se alguém
possui conhecimento, não precisa ter autoridade (TURNER, 2003, p. 24).

Apesar da existência da crença direta nos cientistas, a autoridade dos


experts científicos, ou a autoridade cognitiva, pode ser vista também como
corporativa. Os cientistas possuem autoridade quando falam como representantes
da ciência; já o público julga a ciência como fenômeno corporativo, isto é,
cientistas falam em nome da “ciência”. A autoridade, construída por meio da
legitimação democrática, e a autoridade de certos tipos de experts científicos
podem ser, em alguns casos, consideradas análogas. Na construção dos
conhecimentos científicos as teorias passam por instâncias de debate público
entre especialistas, por meio da avaliação por pares, como ocorre, por exemplo,
em requisições de financiamento, participação em congressos, defesas de teses e
seminários.
A partir dos três tipos ideais weberianos de dominação política, Turner
propõe uma teoria para examinar as diferenças nos processos de legitimação
entre diferentes tipos de experts, tendo como referência a comparação entre o tipo
“ideal” de expertise descrita por Robert Merton (que tem como caso paradigmático

23
os médicos) e os experts, ou a “cultura expert”, descritos por Habermas. Nesse
último caso, ao contrário do que acontece com os médicos, a autoridade do expert
que respalda a decisão política não passa, muitas vezes, por nenhum tipo de
processo democrático de legitimação. Já a autoridade cognitiva dos médicos – por
exemplo, os que recomendam aos pacientes uma dieta saudável e eles podem
refutar a recomendação – pode ser considerada um tipo de autoridade que passa
por um processo de legitimação democrática pelo público, da mesma forma que
outros processos de legitimação política, já que as pessoas podem refutar as
reivindicações dos experts.
Turner propõe uma tipologia para examinar as diferenças nos processos de
legitimação entre diferentes tipos de experts. Pressupondo que a legitimidade é o
processo que leva à autoridade política, ou à expertise, Turner (2001) lista cinco
tipos de experts, que variam de acordo com o processo de legitimação política da
autoridade do especialista. O objetivo da tipologia, de acordo com esse autor, não
é propriamente a criação de uma taxonomia, mas discutir os diferentes processos
de legitimação e as implicações políticas dos diferentes experts norte americanos
e da maioria dos países industrializados para as democracias liberais.
Na tipologia proposta por Turner, o expert tipo 1 é o tipo descrito por Merton
(usando o exemplo dos médicos), que tem sua expertise aceita amplamente fora
do seu contexto institucional, pelo público não especializado que, no entanto, tem
a possibilidade de não aceitar suas recomendações. O expert tipo 1 seria, dentro
desse modelo, aquele em que a legitimidade é construída de forma análoga a
outros processos democráticos, como ocorre na construção da autoridade política.
Os teólogos, apesar de terem autoridade enquanto especialistas, possuem
legitimidade apenas em determinados setores da sociedade. Eles não passam,
portanto, pelo mesmo processo de legitimação democrática que os médicos.
Esses especialistas, com autoridade restrita a um setor, são os experts tipo 2.
Com a separação entre Estado e igreja, que caracteriza as sociedades ocidentais
modernas, os teólogos perderam a exclusividade no subsídio às decisões
políticas, que começaram a ter relação mais estreita com consultores científicos.

24
Ao contrário dos dois primeiros tipos, que passam por um processo de
legitimação em audiências pré-estabelecidas, os experts tipo 3 criam seus
próprios seguidores. Autores de best sellers (por exemplo, de livros de auto-ajuda)
e massagistas terapêuticos seriam exemplos desse terceiro tipo. Eles criam sua
legitimidade por meio da crença de sua autoridade, a partir de sua atuação ou
obra, que ocorre em um grupo limitado de seguidores.
O quarto tipo da lista é subsidiado de forma direta ou indireta pelo Estado,
por meio de fundações e instituições filantrópicas, a falar como expert, convencer
o público e impelir uma determinada ação ou escolha política, tais como líderes de
ONGs e movimentos sociais norte americanos, que exemplificariam o expert tipo
4. Esse tipo de expert surge para atender as demandas de legitimação de
diferentes grupos que passam a ser atores nas decisões políticas com a
liberalização da expertise, característica da democracia liberal 3.0.
O expert tipo 5, fruto do desenvolvimento histórico do quarto tipo, é o
especialista que age diretamente junto à administração pública, sendo, no entanto,
desconhecido pelo público mais amplo. As relações entre consultores científicos e
gestores públicos, e os conflitos de interesses envolvidos nessa relação, muitas
vezes, não são explicitados nem divulgados amplamente. Muitas decisões
políticas são tomadas com subsídios e legitimação técnica desses experts tipo 5,
desconhecidos dos jornalistas e do público, o que torna impossível qualquer tipo
de controle democrático.
Por terem subsídio direto ou indireto do Estado, e agirem ativamente no
âmbito das decisões políticas (ao contrário dos autores de auto-ajuda e religiosos)
esses dois últimos tipos de experts (tipos 4 e 5) são os que poderiam, de acordo
com Turner, causar mais problemas para os ideais de democracia liberal, pois não
passam por audiências democráticas de legitimação por parte do público ou de
seus pares.

25
1.3 - Expertise e conhecimento
Uma vez que classificam o expert tipo I de Turner como um problema não
resolvido nos Estudos Sociais da Ciência, Collins & Evans (2002) propõem
avançar a análise deste tipo de expertise, tratando a expertise como uma
categoria analítica “real”. Na tentativa de discutir essa questão em sua proposta de
teoria normativa da expertise e da experiência, esses autores apresentam
categorias de expertise, como a “não expertise”, a “expertise interacional” e a
“expertise contributiva”.
Usando a idéia de comunidade científica como núcleo duro (core set),
Collins & Evans (2002) afirmam que a expertise conferida pela teologia e pela
astrologia, na maioria dos casos, é descontínua com a expertise contributiva do
núcleo duro da área de estudo científico envolvida em determinada discussão,
caracterizando uma não expertise. Estes autores consideram que a não expertise
em um determinado assunto de interesse público implica em uma razão para a
não participação deste cidadão em decisões públicas.
Já a expertise de pessoas não certificadas (pessoas sem diploma, mas com
experiência no assunto) poderia, em alguns casos, ser considerada contínua. Para
ilustrar, eles citam o exemplo da participação de fazendeiros de carneiros na
determinação das medidas a serem tomadas após o acidente de Chernobyl,
estudado por Brian Wynne (1989). Neste caso, mesmo sem diploma de
especialista, os criadores de carneiros se enquadrariam no modelo de expertise
contributiva, pois eles puderam contribuir de forma até mais precisa do que
técnicos do governo envolvidos na questão, para a determinação do tempo que
levaria para que o ambiente estivesse livre da radiação após o acidente nuclear.
Dentro dessa classificação, a expertise interacional seria resultante do
contato de um indivíduo com a cultura linguística de determinados grupos sociais,
sem pertencer a ele. Essa habilidade é relacionada a conhecimentos adquiridos
pela convivência com cientistas, ou outro grupo social, que pode resultar, por
exemplo, em um indivíduo capaz de se passar por um especialista de uma área do
conhecimento que não o é, mas tem contato amplo com a linguagem. Collins

26
(2006) demonstrou que um expert interacional pode ser apontado por um expert
como pertencente à mesma área, a partir de critérios estabelecidos pelo próprio
especialista em um questionário.
Para defender a importância e as características da expertise interacional,
Collins (2006) a descreve como o meio de comunicação na revisão por pares na
ciência, nas comissões de revisão e em projetos interdisciplinares. Também é
apontada por ele como meio de atuação de jornalistas especializados e dos
métodos de interpretação nas ciências sociais. Ele descreve um experimento para
tentar tornar a idéia de expertise interacional concreta (COLLINS, 2006). O
experimento consiste em colocar experts especialistas na área e experts
interacionais sob a avaliação de um especialista experiente, que irá julgar qual é o
expert pertencente ao grupo e qual seria o “impostor”, ou aquele que consegue se
passar por especialista, mas não é pertencente ao grupo. A partir dos resultados
do experimento, Collins defende que o desempenho linguístico dos bem
socializados na língua de um grupo de especialistas é indistinguível daqueles com
a socialização plena trazida pelo trabalho prático, mas distinguíveis daqueles que
não são bem socializados, ou seja, dos não experts.
Ao mesmo tempo, por não ser efetivamente um especialista, a pessoa com
expertise interacional não perde a condição de leigo e a capacidade de
comunicação direta com o público não especializado. A expertise interacional está
relacionada, portanto, a uma habilidade que pode ser considerada fundamental
para intermediar a participação pública em assuntos científicos, chamada tradução
(COLLINS & EVANS, 2002, p. 258). Por estar presente, por exemplo, em
jornalistas especializados e professores experientes – grupos que dominam
conhecimentos tanto dos pontos centrais da área de especialidade como da
linguagem adequada para diálogo com o público leigo – seu papel político pode
ser considerado fundamental, nas decisões sobre e que envolvem ciência.
Na tentativa de desenhar os limites da legitimação de contribuições nas
decisões públicas, a partir destes tipos de expertise, Collins & Evans levantam
duas formas de julgamento. A primeira seria o julgamento sobre quais tipos de

27
experiência seriam relevantes para a decisão. A segunda forma de julgamento
seria sobre a habilidade discriminatória, que consiste na capacidade de distinguir
as possíveis contribuições do ator (expert) para a decisão em questão (COLLINS
& EVANS, 2002). Nesse julgamento, considera-se que a categoria de não
expertise é a inexistência do grau de conhecimento especializado que o
investigador que trabalha na área define como necessário. Por isso, para esses
autores, a não expertise é insuficiente para realizar uma análise sociológica ou
participar de decisões que envolvem o assunto (COLLINS & EVANS, 2002, p.
254). Em outras palavras, segundo eles, quem não possui alguma forma de
expertise, que possa contribuir com o assunto ou permitir interação entre atores,
não deve participar de decisões técnicas, pois poderiam aceitar ou rejeitar idéias
sem uma base racional.

1.4 - Percepção e participação do público nas decisões

“A extensão romântica e imprudente da expertise tem muitos perigos bem


conhecidos: o público pode estar errado” (COLLINS & EVANS, 2002, p.
271, tradução minha).

Várias críticas (JASANOFF, 2002; WYNNE, 2002; RIP, 2003; KERR, 2007)
foram feitas ao trabalho de Collins & Evans (2002). Uma delas, de Brian Wynne
(2002) relaciona-se com a noção de que o público não pode participar das
decisões de ciência e política que envolve ciência. Para Wynne, na proposta da
teoria normativa da expertise e da experiência, existe um risco envolvido na
análise de Collins & Evans bem como nos compromissos normativos que
reforçariam uma imaginação cultural antiliberal, baseada na aceitação não crítica
do cientificismo ocidental (Wynne, 2003).
Wynne defende a ideia de que as instituições científicas e políticas
reproduzem, há décadas, a visão de que a rejeição com relação às suposições
normativas científicas sobre inovações tidas como "boas", “valiosas” e “seguras” é

28
causada por ignorância e engano do público na interpretação do conhecimento.
Este é o chamado modelo do déficit público de conhecimento, da resistência ou da
desconfiança pública – o deficit model, da qual Wynne é crítico ferrenho. Isso
porque, segundo ele, essa idéia de ignorância ou o engano sobre a ciência na
refutação de propostas com base em conhecimentos científicos pode ser
considerada uma construção flexível. É também considerada crucial para invocar
aspectos da "racionalização do déficit público" que tentam explicar a origem das
falhas da política científica em conseguir a autoridade pública para seus
compromissos, feitos em nome da “ciência” (WYNNE, 2007).
O recuo oficial do modelo do déficit público ocorreu como resultado de
críticas das ciências sociais com relação à sua falta de evidência, ou na percepção
dos problemas que emergem ao se ignorar o conhecimento leigo na elaboração
de políticas públicas. Além disso, como ressalta Felt (2000), a qualidade e a
quantidade de conhecimentos que as pessoas deveriam ter para participar do
processo decisório, de acordo com o deficit model, são questões delicadas em
termos políticos e podem escapar ao controle democrático.
Na avaliação de Wynne (1993), nas pesquisas voltadas à compreensão
pública de ciência, o público é usualmente visto como incapaz de uma reflexão
crítica acerca das controvérsias epistemológicas e suas relações com o
conhecimento. Para analisar esse problema, ele usa uma forma própria para o
conceito de reflexividade2, diferente da usada normalmente nos ESCT. Para
Wynne, reflexividade é o processo de identificação, exame crítico e suposições
pré-analíticas que constroem o conhecimento; ou, simplesmente, capacidade de
reflexão crítica.
Por meio de revisão da bibliografia e estudos de caso em percepção pública
de ciência, Wynne defende em seus trabalhos que essa visão do público como
irreflexivo – usual na ciência – expõe a própria irreflexibilidade das construções
científicas acerca de como o público lida com o conhecimento científico. Isso
2
Nos ESCT, reflexividade é a noção de que os modelos explicativos dos estudos sociológicos dos
conhecimentos científicos devem ser aplicados à própria sociologia do conhecimento. O objetivo
desse princípio seria evitar que a análise sociológica se tornasse contraditória.

29
porque, por outro lado, a capacidade reflexiva do público em relação ao
conhecimento científico tem sido sistematicamente subestimada, por meio da
defesa do modelo do déficit público de conhecimento, que se mostraria “mais
como uma construção ideológica do que como um modelo propriamente científico”
(WYNNE, 1993). O público, nessa perspectiva, demonstrou-se mais reflexivo
acerca de sua apropriação de conhecimentos na resolução de situações práticas
do que os cientistas acerca do uso da ciência pelo público.
Os estudos de laboratório, em que se destacam os trabalhos liderados por
Bruno Latour, Michael Lynch e Karen Knorr-Cetina, propõem pensar os
conhecimentos científicos como uma construção sociotécnica. A idéia da ciência
como uma construção, derivada da negociação social e técnica, permite concluir
que os conhecimentos podem ser igualmente desconstruídos (JASANOFF, 1987).
Um exemplo desse processo de desconstrução dos conhecimentos ocorre, entre
outros casos, nos processos de participação pública nas decisões da política
científica. Posteriormente, esses conhecimentos desconstruídos podem, de
acordo com Jasanoff, passar por um processo de reconstrução pelos gestores,
para subsidiar a tomada de decisão, podendo encontrar legitimidade por meio de
uma racionalidade científica, bem como de outras racionalidades, como a
econômica e a legal, que respaldam a decisão.
Nesses processos particulares da política científica os limites entre ciência
e política se mostram tênues ou inexistentes. Weinberg (1972) deu um importante
passo na análise das relações entre cientistas e gestores. Ele chamou de “zona
cinzenta” a interface entre ciência e política científica, caracterizada por questões
que podem ser perguntadas à ciência e, no entanto, não podem ser respondidas
pela ciência (JASANOFF, 1987).
No contexto da gestão de substâncias com risco potencial de causar
câncer, nos Estados Unidos, conceitos relacionados à distinção entre ciência e
política científica têm diferentes formas de apropriações por parte de cientistas,
políticos e representantes dos interesses da indústria química (JASANOFF, 1987).
A autora defende que os movimentos de diálogo, desconstrução e reconstrução

30
de conhecimentos – que marcam os processos de participação pública em
assuntos científicos – têm suas disputas no âmbito da retórica. Além disso, as
noções de ciência e os conceitos dela extraídos podem ser usados para
propósitos políticos distintos, por meio de estratégias retóricas em consonância
com os interesses específicos envolvidos.
Por envolverem áreas na fronteira do conhecimento científico, os processos
de desconstrução e reconstrução na política científica desafiam a autoridade
cognitiva dos cientistas. Críticos mais ferrenhos da expertise, como os
ambientalistas e outros ativistas, tentam expor como os cientistas discordam entre
si, com freqüência, na interpretação de dados, o que revelaria que os experts
podem ter, virtualmente, qualquer leitura das informações em jogo e que a ciência
seria, em última instância, arbitrária e influenciada por interesses políticos. As
respostas dos cientistas sobre estes aspectos, no contexto descrito por Jasanoff,
baseiam-se na afirmação de que essas idéias são exageros e buscam reafirmar a
autoridade do expert científico na tomada de decisão. Para Turner (2003), é
justamente na defesa do status de expert pelos cientistas que a atividade científica
ganha seu caráter ideológico.

1.5 - Pesquisa clínica e relações de agência


Um exemplo de busca de reafirmação do status de experts é a noção de
‘medicina baseada em evidências’ (MBE), em que são lançadas propostas
metodológicas com a intenção de aumentar a aproximação com os estatutos das
ciências, como mecanismo de legitimação, por meio dos ensaios clínicos
(WAHLBERG & MCGOEY, 2007). De acordo com o site Centro Cochrane do
Brasil, cuja missão é elaborar, manter e divulgar revisões sistemáticas de ensaios
clínicos randomizados que contribuiriam ao melhor nível de evidência para as
decisões em Saúde, a MBE:

é uma abordagem que utiliza as ferramentas da Epidemiologia Clínica, da


Estatística, da Metodologia Científica, e da Informática para trabalhar a
pesquisa, o conhecimento, e a atuação em Saúde, com o objetivo de

31
oferecer a melhor informação disponível para a tomada de decisão nesse
campo. A prática da Medicina Baseada em Evidências busca promover a
integração da experiência clínica às melhores evidências disponíveis,
considerando a segurança nas intervenções e a ética na totalidade das
ações (Centro Cochrane do Brasil, Medicina Baseada em Evidências).

O idealizador da MBE, Archie Cochrane (1972), fez um apelo para um


registro internacional de ensaios clínicos randomizados (ECR), que permitiria aos
pesquisadores a capacidade de avaliar a eficácia das intervenções de saúde,
como parte fundamental para a MBE. Wahlberg & Mcgoey (2007) colocam esse
trabalho como a maior contribuição da carreira de Cochrane para a medicina, ou
seja, a criação de uma base para registro de ensaios clínicos proposta por
Cochrane, seria mais importante que a própria MBE.
Em uma entrevista de 1987, em que Cochrane refletiu sobre suas
realizações ao longo dos anos, lembrou:

A utilização de ensaios clínicos randomizados aumentou. A única tragédia


é que eles não tem se espalhado por todo o mundo. Muito poucos são
feitos na França e na Alemanha e nenhum [ocorre] na Rússia. São muito
limitados ao Canadá, Estados Unidos, Escandinávia e Reino Unido. Se
todos os países se juntassem, poderíamos obter as respostas muito mais
rapidamente. A atitude dos alemães é extraordinária. Eu estava lá apenas
cerca de três anos e meu alemão ainda não era muito bom, quando dei
uma palestra sobre o padrão de uso dos estudos randomizados
controlados na organização do tratamento de doenças cardíacas. Meu
Deus, eram rudes comigo, em alemão. Felizmente eu posso ‘lutar’ em
alemão e nós tínhamos uma verdadeira batalha. Consideraram-me
totalmente antiético e eu reclamei que eles foram antiéticos: eles não
foram verificar se estavam dando aos seus pacientes o melhor tratamento.
A palestra prolongou-se por quase três quartos de hora. Eu fiquei bastante
cansado. A história [mesmo] vem no final. O professor me tirou de lá, deu-
me o jantar e, a dada altura, em um inglês excelente disse, ‘Você sabe, Dr.
Cochrane, vocês parecem não entender sobre ensaios clínicos
controlados. Estudos controlados são feitos pela indústria farmacêutica.
Homens de bem não os fazem" (Cochrane, 1987, p. 14, tradução minha).

Com a internacionalização dos ensaios clínicos, provavelmente, a “tragédia”


da não disseminação dos ensaios clínicos ao redor do mundo pode ser em parte
superada. Porém, o financiamento da indústria farmacêutica para a realização de
vários desses ensaios clínicos internacionais gera outros problemas, além de
acrescentar um argumento em defesa da existência de um registro público. O

32
registro seria necessário para evitar uma série de problemas decorrentes das
relações estabelecidas entre, de um lado a indústria farmacêutica e seus
interesses econômicos e, de outro, os experts responsáveis pelo planejamento,
aplicação e avaliação de testes clínicos. Outra implicação do financiamento
privado é que ele coloca mais um ingrediente nas já complexas relações entre
Estado e sociedade civil na elaboração das políticas científicas de saúde: novos
tipos de conflito de interesse, entre indústria e experts, Estado e Indústria,
sociedade civil e experts.
Na economia e na administração as relações de conflito de interesse são
pensadas na perspectiva da teoria agente-principal. De acordo com Jensen &
Meckling (1976), embora a literatura da economia fosse repleta de referências à
"teoria da firma", esse título não constituía uma teoria da firma, mas uma teoria
dos mercados em que as empresas seriam atores importantes. No entanto, esses
autores apontam que a empresa aparece na literatura como uma "caixa preta",
que funciona de forma a satisfazer as condições pertinentes de entradas e saídas,
maximizando sua eficiência. Eles se propõem a formular uma teoria para explicar
como os objetivos conflitantes dos participantes individuais da empresa são postos
em equilíbrio de modo a superar as limitações trazidas por esses conflitos para o
ganho de eficiência, de forma a trazer alternativas à visão de empresa como caixa
preta.
Na teoria agente-principal, a relação de agência pode ser definida como
“um contrato onde uma ou mais pessoas – o principal – engajam outra pessoa – o
agente – para desempenhar alguma tarefa em seu favor envolvendo a delegação
de poder para a tomada de decisão pelo agente”. (JENSEN & MECKLING, 1976,
p. 308). Na empresa, o principal é o dono, ou o conjunto de acionistas, que delega
o poder de decisões da empresa para o gestor, que é seu agente. Como nem
sempre os interesses dos indivíduos apontariam para uma mesma decisão, o
principal tem custos para tentar perder o mínimo possível, os chamados custos de
agência. Na teoria agente-principal os custos de agência são pensados em
termos: dos custos de criação do contrato, dos custos de monitoramento das

33
atividades do gestor pelo principal e dos gastos do agente para mostrar ao
principal que realmente defende seus interesses. Ou seja, os custos de agência
são em grande medida decorrentes dos possíveis conflitos de interesses dos
envolvidos na relação de agência.
Além de ser útil para pensar a governança corporativa das empresas, a
teoria agente principal pode ser usada também para se pensar a governança do
setor público, ou do Estado (FONTES FILHO, 2003). Turner (2002) mostra que
parte das discussões geradas com a publicação do polêmico artigo ‘A note on
Science and democracy’, de Robert Merton (1942), pode ser útil para se pensar os
cientistas como agentes. Merton descreve o que, segundo ele, seriam quatro
normas da ciência moderna: universalismo, desinteresse, comunismo e ceticismo
organizado.
O desinteresse, em especial, é uma norma útil para pensar os conflitos de
interesse das relações de agência estabelecidas por experts nos ensaios clínicos.
Turner desconstrói o argumento de Merton de que o desinteresse é uma norma da
ciência, mostrando que o cientista está sempre, ao contrário, muito interessado.
Interessado, na medida em que vai, com dedicação, buscar os objetivos de seus
projetos, defender sua metodologia e tentar convencer sobre a importância e
necessidade de que os resultados da pesquisa sejam publicados em uma revista
científica.
Mulkay (1976) trata as normas mertonianas como uma espécie de
ideologia, ou uma mitologia política, criada junto com cientistas, por cientistas. Ele
também argumenta que não existem normas deste tipo fortemente
institucionalizadas na ciência. Turner mostra como a própria necessidade de
obtenção de certificação contínua na atividade científica – publicações apreciadas
por pares, aprovação para congressos, mestrado, doutorado – a torna uma
atividade complexa de mercado. A tese de Turner é que existe um mercado para
avaliadores e avaliações e esse mercado é ponto crítico para entender a ciência.
Seria impossível separar essa necessidade de certificação, que pode ser

34
comprada e vendida, dos interesses que movem a produção de conhecimento
científico.
Pensada no caso do conjunto de experts que participam de ensaios clínicos
a situação pode ser mais complexa do que em relação à ciência. No caso da
medicina, por exemplo, em geral, existe uma “instituição certificadora” de
expertise, por área de especialidade. Mas, as ciências apresentam formas mais
complexas de certificação, que envolvem a construção de um curriculum vitae,
que pode ser desenvolvido de diferentes maneiras, por diversas organizações.
Mais da metade (3,3 bilhões de dólares) dos 6 bilhões de dólares investidos
anualmente pela indústria farmacêutica em ensaios clínicos em todo o mundo vão
para pesquisadores norteamericanos. Nos Estados Unidos, setenta por cento do
dinheiro para os ensaios clínicos de medicamentos provém da indústria e não dos
institutos nacionais de pesquisa (National Institutes of Health) (BODENHEIMER,
2000).
O fato do financiamento para grandes pesquisas clínicas ser, em grande
parte, da indústria farmacêutica gera outros tipos de relações contratuais de
mercado e, portanto, de agência, que passam a fazer parte também do capital
profissional do cientista, ou, em outras palavras, vão compor seu CV. A forma da
publicação, ou não, dos resultados das pesquisas e a ênfase maior, ou menor,
dada a possíveis efeitos adversos ou a ineficiência do medicamento testado serão
influenciadas, no mínimo, ao mesmo tempo, por essas duas relações de mercado,
com a indústria e com a construção de seu capital profissional.

1.6 - Metodologia
Foram discutidas, pelo menos, três perspectivas possíveis de se pensar a
expertise: uma que parte do conhecimento (cognitiva), outra da autoridade
conferida pelo conhecimento (política) e a outra das relações de mercado
estabelecidas na atividade científica (econômica). Proponho como metodologia
pensar o debate sobre o registro dos ensaios clínicos relacionando as três
perspectivas apresentadas. As pistas iniciais sobre os problemas colocados por

35
cada perspectiva analítica para os ideais dos defensores da divulgação dos
ensaios clínicos estão sendo trazidas de artigos, sites, notícias, documentos e leis.
As lacunas detectadas a partir desses dados iniciais relacionadas, por exemplo,
aos conflitos de interesses envolvidos nos diferentes contratos serão
aprofundadas a partir de entrevistas semi estruturadas com atores de diferentes
organizações que participam do processo de elaboração execução, financiamento,
regulação, fiscalização dos ensaios clínicos.
As entrevistas e o trabalho de campo ainda não foram concluídos3. Foi
estabelecido apenas um contato inicial com entrevistados e foram feitas algumas
visitas de campo a uma empresa especializada na realização de ensaios clínicos4.
A proposta é fazer análises qualitativas das entrevistas, a partir dos conceitos e
abordagens discutidas neste capítulo. As entrevistas serão semi-estruturadas com
duas ou, pelo menos, uma pessoa de cada organização que eu aponto no texto
como parte dos processos de pesquisa e aprovação de medicamentos, a se
destacar: Anvisa (2); Universidade (1) e Centro de pesquisa público (1); Indústria
farmacêutica (1) e empresas de biotecnologia (1); ORPCs (2), empresas de
consultoria (1); movimentos sociais (1) ativistas (1); Ceps (2) e Conep (2).
Os três capítulos seguintes apresentam os três temas que serão usados
como pano de fundo para a análise na tese, com um esboço das possibilidades de
análise trazidas pelo assunto dentro da proposta metodológica. Os temas
pensados serão: o debate sobre o registro de ensaios clínicos, internacionalização
de ensaios clínicos, e expertise e participação na gestão de ensaios clínicos.
A partir desses temas, a proposta da tese é repensar a teoria dos estudos
de expertise e experiência, com objetivo de criar um referencial de análise que
consiste em uma espécie de abordagem híbrida somando os aspectos do
conhecimento, da política e das relações de agência em que experts são os

3
Apesar do trabalho de entrevistas não ter sido concluído, os contatos iniciais com representantes
de diferentes espaços envolvidos com a discussão do trabalho já foram estabelecidos e algumas
entrevistas já foram feitas. No entanto, o fato deste trabalho não ter sido concluído, permitirá o uso
das observações e comentários do exame de qualificação para a construção das entrevistas.
4
Os relatos das visitas de campo não foram usados diretamente no texto. No entanto, o relato de
uma das visitas está no Anexo 3.

36
agentes. Defendo que a partir dessa proposta metodológica – ou dessa
abordagem híbrida (epistemológica, política e econômica) usada para pensar os
problemas gerados pelo fenômeno da expertise e suas implicações para os ideais
dos defensores da divulgação dos ensaios clínicos – será possível apontar
possibilidades e mecanismos de ampliação do debate sobre ensaios clínicos.

37
CAPÍTULO 2 - O DEBATE SOBRE O REGISTRO DE ENSAIOS
CLÍNICOS

2.1 - Ensaio clínico enquanto ciência e publicização


A chamada ‘medicina moderna’ nasce no final do século 18, ao tornar
visível e expressa pela linguagem “a plenitude das coisas concretas, com o
esquadrinhamento minucioso de suas qualidades [que] fundaria uma objetividade
mais científica [...] do que as mediações instrumentais da quantidade”
(FOUCAULT, 1980). A partir dos trabalhos de Claude Bernard (1813-1878), a
terapêutica racional deveria estar sustentada por uma patologia científica e uma
ciência fisiológica (CANGUILHEM, 1982). Segundo esse autor, Bernard apoiava
seu princípio geral de patologia com argumentos controláveis, protocolos de
experiência e métodos de quantificação dos conceitos fisiológicos.
No entanto, do ponto de vista atual dos cientistas, até meados do século
passado, o valor terapêutico dos medicamentos ainda era avaliado somente pela
tradição de uso e pelo testemunho dos médicos. Em função disso, Moraes (2000)
considera que “a avaliação da descoberta e do aperfeiçoamento de novos
medicamentos teve como história um processo de risco e ineficiência”. Na visão
atual de pesquisa clínica, a medicina da época não era baseada em evidências
científicas, como se busca atualmente.
Os primeiros trabalhos de pesquisa clínica com métodos próximos aos
atuais foram iniciados em 1930, por Harry Gold. Em 1931, Amberson, MacMahon
e Pinner realizaram ensaios clínicos simples cegos, em que apenas os pacientes
não sabiam se recebiam medicamento ou placebo. Somente em 1950, Harry Gold
deu início aos ensaios duplos cegos, em que nem paciente nem o responsável
pelo tratamento sabem quem toma ou não o verdadeiro medicamento. Esses
passos são considerados fundamentais para que o uso de medicamentos
passasse a ter critérios considerados científicos.
A partir desse novo processo de legitimação de medicamentos e da
crescente medicalização de problemas (sociais, familiares, de opção sexual etc.) a

38
indústria farmacêutica passou a ter um papel cada vez mais importante nas
decisões acerca do desenvolvimento da saúde. Como principal financiador da
pesquisa clínica a indústria farmacêutica pode influenciar também os ensaios
clínicos enquanto atividade de pesquisa, desde a escolha de objetos de estudos
(drogas) com melhores perspectivas comerciais, passando pela forma de
publicação, até a publicação, ou não, dos resultados do ensaio.
Além do possível não interesse da indústria em publicar resultados de um
ensaio, a probabilidade de publicação de um ensaio clínico é ainda influenciada
pelo tipo, direção ou intensidade dos resultados do estudo. Quando publicados,
esses resultados ainda estão sujeitos ao relato seletivo (não integral), seja pela
restrição da análise aos sujeitos que permaneceram durante todo o estudo, à
seleção do desfecho primário em diferentes períodos de tempo, ou relacionados à
presença (ou não) de significância estatística. Como apresentado anteriormente,
começaram a ser apontados por profissionais da saúde uma série de problemas
decorrentes da não publicização de ensaios clínicos, que vão desde limitar a
possibilidade de influenciar a tomada de decisão de profissionais de saúde e
gestores, causar danos desnecessários aos pacientes, gerar custos mais elevados
dos serviços de saúde, até a perda de conhecimento gerado nas pesquisas não
divulgadas.
Em 1964, a Associação Médica Mundial (AMM), entidade reguladora de
associações médicas nacionais, instituiu a Declaração de Helsinque. Apesar de ter
gerado polêmicas e ser um documento sem poderes legais ou normativos, até
hoje, essa Declaração pode ser considerada a referência ética mais importante
para a regulamentação de pesquisas médicas envolvendo seres humanos (DINIZ,
2001). De acordo com Diniz, “a Declaração de Helsinque definiu uma base ética
mínima necessária às pesquisas e aos testes médicos com seres humanos”.
Depois de sua criação, essa declaração passou por algumas alterações, mas sem
modificar suas bases. Em 1975, na revisão da Declaração, ficou convencionado
que:

39
Toda pesquisa médica envolvendo seres humanos como sujeito de
pesquisa deve ser precedida de levantamento cuidadoso dos riscos e
inconvenientes previsíveis em comparação com os resultados esperados
para o sujeito e para outros [...] O desenho de todos os estudos deve estar
disponível publicamente (Declaração de Helsinque, 1975).

Dessa forma, a preocupação inicialmente apresentada por Cochrane (1972)


– ao fazer um apelo para um registro internacional de ensaios clínicos
randomizados – que era predominantemente metodológica, passou a ocupar
também, anos mais tarde, as discussões éticas em debates públicos
internacionais. A forma como diferentes experts, ou agentes, envolvidos nesses
debates tentam legitimar sua atuação e deslegitimar outros atores pode ser um
campo fértil para iniciar a discussão dos ideais dos defensores do registro.

2.2 - Legitimidade no debate


Apesar de não ser matéria de consenso, alguns agentes da indústria
contrários ao registro de ensaios fundamentaram-se nas teorias da inovação, ao
argumentar que a exigência do registro revelaria detalhes da droga entre as
empresas concorrentes e, com isso, inibiria o investimento em inovação. Este
debate aconteceu em várias instâncias. Entre elas, em abril de 2005, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) organizou uma consulta técnica para
julgamento das normas do registro de ensaios clínicos. O resultado desta consulta
incluiu uma ajuda à definição dos tipos de ensaios que precisam ser registrados, e
também a definição de 20 itens “mínimos" que deveriam ser registrados
(descrevendo 20 características do processo). A proposta era criar um regime
único de identificação e desenvolver um portal de pesquisas em todo o mundo
para registrar ensaios clínicos. Os agentes da indústria farmacêutica chegaram a
essa reunião com uma posição já estabelecida de que cinco itens, dos 20
considerados mínimos, seriam comercialmente sensíveis e, portanto, não
deveriam der publicados (KRLEŽA-JERIC, 2005).
Participaram desta consulta técnica três grupos. A Organização Mundial da
Saúde (OMS), o Grupo de Ottawa e representantes (agentes) de indústrias

40
farmacêuticas. Como apresentado anteriormente, de modo geral, os defensores
da divulgação dos ensaios clínicos, representados na consulta técnica pelo Grupo
de Ottawa, argumentam que a divulgação dos resultados desses estudos poderia
evitar a repetição de pesquisas com resultados malsucedidos. Além disso, ela
permite maior controle social da experimentação em humanos e uma efetiva
contribuição dos ensaios clínicos para o conhecimento médico. Outro argumento
pró-divulgação ancora-se no viés de publicação, ou seja, somente as pesquisas
clínicas cujos resultados são estatisticamente significativos, obtidos a partir de
grandes estudos, de boa qualidade e, principalmente, que não firam os interesses
dos financiadores – ou seja, da própria indústria com interesse direto – seriam
publicadas em periódicos científicos. Nesse sentido, o registro compulsório dos
ensaios em bases que permitam acesso público, anterior ao início das pesquisas,
contrabalançaria esse viés.
Dessa forma, o argumento pró-divulgação de ensaios clínicos mescla
argumentos do campo ético (transparência), social (controle social,
desenvolvimento da medicina e saúde pública), político (direito de participação,
liberdade de escolha entre tratamento convencional ou testado em um ensaio
clínico) e científico (maior possibilidade de acesso às informações e
conhecimentos da pesquisa clínica). Por outro lado, representantes da indústria
argumentaram que a exigência da divulgação de todos os itens no momento do
registro revelaria detalhes da droga entre as empresas concorrentes e, com isso,
inibiria o investimento em inovação e comprometeria o investimento competitivo
subjacente à criação de novas drogas. Além da resistência da indústria, a
ausência de financiamento, de mecanismos de aplicação e de conscientização da
importância do problema também são apontados como obstáculos enfrentados
para a efetiva divulgação de ensaios clínicos (GODLEE, 2006).
Para Godlee (2006), no entanto, o argumento dos agentes da indústria de
que a divulgação diminuiria o investimento em inovação não procede, uma vez
que a vantagem competitiva não seria seriamente afetada se todas as empresas
fossem obrigadas a registrar todas as experiências e as empresas geralmente

41
sabem do que se tratam as pesquisas de seus concorrentes. Ademais, o
crescimento nos registros de ensaios clínicos pelos patrocinadores, dentre os
quais grandes laboratórios farmacêuticos ao longo dos últimos anos, oferece outra
evidência importante na defesa da ideia de que a divulgação pública desses
estudos não compromete a competitividade nem a inovação na indústria.
Outro aspecto importante nessa discussão refere-se às leis de patente e as
implicações advindas do registro público dos ensaios clínicos. Entretanto, como
destaca Lemmens & Bouchard (2007), quando um novo produto ou uso são
testados em ensaios clínicos, geralmente já se encontram sob proteção de uma
patente ou estarão protegidos em breve. O pedido de patente é requerido quando
há expectativa de que um novo componente ou novo uso é patenteável e
comercialmente bem-sucedido, e isso ocorre no início do seu processo de
desenvolvimento, algumas vezes antes mesmo da realização de um ensaio.
Da mesma forma que vários integrantes da comunidade médica
argumentam com base em conhecimentos e na autoridade científica, os
representantes da indústria escolhidos como porta-vozes e defensores dos
interesses comerciais são detentores de status de cientistas na área médica, com
extensos currículos acadêmicos. Devido ao fato dos porta-vozes da indústria,
nesse debate, serem experts agentes de empresas farmacêuticas privadas
transnacionais, o que não foi pensado nos tipos de experts apresentados por
Turner (2001, 2003), discutirei a seguir se os mecanismos de legitimação desses
experts se aproximam dos modelos apresentados.
Como a resposta é parcialmente negativa, conforme argumentarei a seguir,
o ponto inicial da análise será pensar em que novos tipos de processos de
legitimação poderiam explicar a atuação e autoridade política desses experts.
Como aspecto fundamental para se pensar os processos de legitimação em
decisões de e com ciências, os problemas da assimetria de conhecimentos e do
julgamento acerca de quem pode ter voz nos debates são pontos de passagem
dessa questão, pensada na perspectiva da reivindicação por crescente
participação. Outra perspectiva que será trazida a seguir e ampliada no decorrer

42
desta pesquisa, dentro da proposta metodológica deste trabalho, é das relações
de mercado estabelecidas de diferentes maneiras, entre diversos atores
interessados em ensaios clínicos.
Da mesma forma que os aspectos fundamentais das relações políticas e
econômicas das firmas eram vistas como caixas pretas com entradas e saídas,
em ciência também existe uma dificuldade (talvez até maior que nas empresas) de
se avaliar os custos, saldos e a eficiência econômica das transações. Segundo
Turner (2002), parte do problema decorre do fato das análises partirem da ideia de
que existe um investimento em ciência pura e aplicada, e, de forma pouco ou nada
linear, o conhecimento pode direta ou indiretamente gerar riquezas. A
complexidade dos caminhos e processos envolvidos na transformação do dinheiro
investido na ciência em riqueza faz com que a situação teórica da análise da
economia da atividade científica esteja próxima da noção de caixa preta. No
entanto, uma caixa preta que estabelece múltiplas relações em diferentes sentidos
e de diferentes naturezas de forma a praticamente inviabilizar uma análise ou a
captura desses caminhos e relações na totalidade.
Proponho, de forma análoga a que Turner (2002) fez para pensar a
atividade científica em suas relações de mercado, ampliar o uso do modelo da
teoria agente-principal para olhar as relações de mercado que envolvem o
fenômeno da expertise. A aplicabilidade da teoria agente-principal no caso
particular dos ensaios clínicos como atividade científica pode abrir possibilidades
analíticas para outros usos em estudos de ciências. Isso porque o caso dos
ensaios clínicos – em que existe uma clara intenção de retorno do investimento,
feito, em geral, pela indústria farmacêutica, e isso é previsto contratualmente com
os cientistas envolvidos – torna mais evidente a possibilidade de pensar contratos
estabelecidos em termos de relações de agência.
No entanto, as relações de conflitos de interesse dos experts agentes da
indústria não ocorrem somente entre agente e principal, mas estão inseridos em
uma rede complexa de diferentes interesses do Estado, da sociedade civil, dos
possíveis usuários, da indústria farmacêutica e de todo o complexo de empresas

43
envolvidas com ensaios clínicos, denominado por Petryna (2009) como a indústria
dos ensaios clínicos.
Carpenter (1967) começa seu longo tratado sobre reputação e poder da
FDA (e das agências reguladoras de forma geral) colocando a questão em termos
práticos. Se um cidadão necessita de um remédio, precisa da prescrição de uma
autoridade médica licenciada e qualificada para tal, em geral um médico. Mas
antes de qualquer médico poder prescrever o remédio, a agência reguladora
precisa aprová-lo (Carpenter, 1967). No entanto, antes de poder ser apreciado
pela agência reguladora, o remédio teve que ser desenvolvido pela rede de
experts agentes das indústrias. Isso confere um poder especial a esses experts,
tendo em vista a importância crescente dada aos produtos farmacêuticos como
resposta aos problemas de saúde e outros problemas biomedicalizados.
À primeira vista, os experts agentes da indústria poderiam se enquadrar
dentro do modelo de expert tipo 1, uma vez que passam pelos rituais da
construção de uma carreira científica e poderiam ter sua expertise rejeitada
durante esses processos, ou mesmo pelo público, que pode rejeitar o tratamento
ou medicamento proposto. No entanto, esse poder especial – advindo das
realizações tecnológicas e potencial de resolução de problemas considerados
centrais – possui uma legitimidade que antecede as possibilidades de atuação de
outros experts. Essa é uma primeira diferença desses experts agentes da indústria
com relação aos tipos de experts descritos por Turner: sua autoridade antecede a
autoridade do médico, caso paradigmático de expert tipo 1.
A segunda diferença vem do contexto político. Turner cria seus modelos de
expertise pensando na discussão de suas implicações para os Estados
democráticos liberais. O alcance global das indústrias farmacêuticas, o âmbito
internacional dos debates pertinentes aos ensaios clínicos e a necessidade de sua
divulgação fazem com que a atuação desses experts transcenda a noção de
Estado.
Outra diferença que implica da internacionalização dos ensaios clínicos e
da atuação comercial das indústrias de medicamentos é que, de forma distinta dos

44
5 tipos de experts do modelo de Turner, os agentes da indústria têm mecanismos
de legitimação mais complexos do que os pensados do ponto de vista
democrático, já que eles atuam em redes de pesquisas internacionais e cada
Estado tem formas particulares de se relacionar com outros Estados, indústrias
estrangeiras, saúde e participação. Além disso, ambiguamente, os agentes da
indústria carregam, ao mesmo tempo, a autoridade de comandarem o
desenvolvimento de novos medicamentos e tratamentos (legitimada pelas
realizações da pesquisa biomédica, formação e atuação em pesquisa clínica e
experiência gerencial em pesquisa e desenvolvimento de remédios), mas
carregam o estigma do conflito de interesse ao falar, ao mesmo tempo, como
autoridade das ciências médicas e da indústria farmacêutica.
Por defenderem os interesses da indústria como agentes, a autoridade
desses experts se torna muito mais complexa, o que os diferencia definitivamente,
como tentei argumentar, não só do primeiro, mas de todos os 5 modelos de
Turner: da legitimidade completa dos médicos (expert tipo 1), do poder com
legitimidade parcial dos líderes religiosos (expert tipo 2), da autoridade construída
pelos autores de autoajuda (expert tipo 3), de líderes de ONGs e movimentos
sociais que atendem demandas específicas de legitimação da sociedade civil e do
Estado (expert tipo 4), e dos especialistas que agem diretamente ou como
consultores do Estado (expert tipo 5).
Portanto, a autoridade desses agentes, enquanto experts que subsidiam a
decisão pública, tem mecanismos próprios de legitimação, mais fortes, amplos, e
inseridos em uma complexa rede internacional de relações de mercado e de
trocas de conhecimentos, que permitem refutar a hipótese de analogia com os
tipos de legitimação apresentados pela literatura. O expert agente da indústria
poderia, dessa forma, ser chamado de expert tipo 6. Essa legitimação ampliada do
expert 6, pensada nos ideais dos defensores da maior divulgação de ensaios
clínicos, indica a necessidade de se discutir os limites de legitimação e de
participação impostos a estes e aos demais atores em decisões públicas, com

45
base nos tipos de conhecimentos, poder político e conflitos de interesses dos
participantes dos debates.

2.3 - Conhecimento e extensão da participação


Se pensarmos inicialmente com base nas discussões geradas a partir da
publicação da teoria da expertise e experiência de Collins & Evans (2002), é ponto
pacífico que os agentes da indústria devem ter voz no debate. Mas a forma de
participação desses atores e por quem e como poderiam ser julgadas as
reivindicações dos experts da indústria é ponto polêmico entre os autores que
discutem o tema. O tipo de participação, de acordo com Collins & Evans deve ter
limites da legitimação de contribuições, nos debates e nas decisões públicas,
traçados a partir de características epistemológicas de sua expertise.
Como discutido no capítulo anterior, para isso, Collins & Evans levantam
duas formas de julgamento: das experiências relevantes para a decisão e das
possíveis contribuições de cada ator para o debate. No entanto, os critérios para
definição do desenho dos espaços de decisão pública dessas formas de
julgamento, a partir de uma análise sociológica, não ficaram claros (RIP, 2002) e
são pontos polêmicos na literatura (TURNER, 2003; JASANOFF, 2002; WYNNE,
2003; RIP, 2003; KERR, 2007). Por isso, estabeleci que os julgamentos propostos
serão pensados de forma a permitir um debate mais amplo possível, o que
aproximaria dos ideais de publicização dos defensores do registro dos ensaios
clínicos.
Na primeira forma de julgamento proposta, o de que tipos de experiência
seriam relevantes para a decisão, certamente, médicos, pesquisadores da área e
representantes da indústria deveriam estar presentes no debate sobre a forma de
divulgação dos ensaios clínicos. No entanto, representantes do público mais
amplo, dos usuários e possíveis usuários dos medicamentos ficaram de fora de
várias das instâncias de debates. Entidades ligadas aos interesses de portadores
de doenças negligenciadas, por exemplo, poderiam participar como experts
contributivos, mesmo que estes não tivessem formação acadêmica, a experiência

46
de participação em ensaios clínicos e em esforços para o desenvolvimento de
novos fármacos seria útil para fornecer informações para a tomada de decisão,
como defende Epstein (1995; 2008).
Mesmo sem resolver totalmente o problema da ausência de representantes
de diversos atores, pode-se dizer que o fato dos representantes da OMS
concordarem com o aumento da divulgação proposto pelo Grupo de Ottawa os
aproxima do papel de representante do público. Isso porque, de certa forma, ao
defenderem a proposta de divulgação de todos os itens em discussão, os
interesses do público foram defendidos, pelo menos na perspectiva dos que
defendem a divulgação. As propostas que visam mais transparência, ética e
aproveitamento das informações de ensaios clínicos que não seriam divulgados
em revistas científicas seriam uma forma de defender os interesse do público.
Portanto, pode-se dizer que no debate da OMS sobre os 20 itens a serem
publicados foi estabelecida uma espécie relação de agência – não consentida ou
contratual – entre público (interessados e possíveis interessados) e
representantes da OMS e do Grupo de Ottawa, no debate sobre as informações
dos ensaios clínicos a serem divulgadas.
A segunda forma de julgamento, que distingui as possíveis contribuições do
ator (expert) para a decisão em questão, é ainda mais complexa e polêmica,
nesse caso. Não seria possível dar o mesmo peso a contribuições dos diferentes
atores e a assimetria de conhecimentos poderia gerar problemas de interpretação
e julgamento. Na proposta original de Collins & Evans, a primeira distinção a ser
feita é com relação ao tipo de conhecimento (expertise) dos atores.
Seria esperada dos representantes da OMS uma expertise, por terem
conhecimentos sobre o fenômeno social de forma mais ampla, o que abrange
conhecimentos sobre interesses e necessidades de pacientes, médicos, mercado
e indústria farmacêutica. Eles tinham um papel de intermediar as opostas
reivindicações da indústria e do Grupo de Ottawa. Deveriam ter, para tanto,
expertise interacional. Representantes do Grupo Ottawa teriam sua expertise
contributiva centrada no contato com diferentes atores internacionais da pesquisa

47
clínica e participação na construção da proposta de divulgação dos ensaios
clínicos.
Agentes da indústria seriam experts contributivos capazes de discutir as
dificuldades que as mudanças propostas poderiam trazer para a pesquisa, modelo
de inovação e desenvolvimento de novos fármacos com investimento da indústria.
No entanto, os interesses econômicos da indústria farmacêutica e o fato dos
experts em ensaios clínicos serem agentes da indústria mostram que o
conhecimento não pode ser a única forma de subsidiar o julgamento dos modelos
dos espaços de decisões públicas que se propõem a ser democráticos.
Para que esses espaços de decisão sejam pensados, é necessário discutir
o processo de internacionalização da pesquisa clínica, pois ele consiste em um
fator fundamental para a análise das relações políticas, sociais e econômicas da
expertise envolvida. Para uma discussão acerca das implicações da
internacionalização para os ensaios clínicos para os problemas do fenômeno da
expertise, serão apresentados no próximo capítulo alguns pontos que permitem
pensar as novas configurações políticas, epistemológicas e econômicas geradas
com o processo de internacionalização da pesquisa clínica.

48
CAPÍTULO 3 - INTERNACIONALIZAÇÃO DE ENSAIOS CLÍNICOS E
COMPLEXIFICAÇÃO INSTITUCIONAL: EXPERTS COMO AGENTES

Na verdade, há uma considerável confusão sobre como os novos


jogadores e iniciativas se encaixam em uma arquitetura global de saúde e
há um debate em curso sobre se esse tipo de arquitetura pode realmente
ser construída e por quem. Os interesses e preocupações dos
financiadores e não dos beneficiários tendem a predominar, e as
operações das organizações internacionais tendem a reforçar as relações
de poder existentes e desiguais entre os países. Por exemplo, a
sustentabilidade em longo prazo de algumas destas iniciativas continua
incerta e questões cruciais permanecem: o que fazer para politizar a busca
pela saúde entre os mais pobres? Como integrar os governos e sistemas
nacionais de saúde como parceiros efetivos na saúde global?” (PETRYNA,
2009, p. 193, tradução minha)

Ao longo de sua história “a pesquisa clínica, mudou de uma atividade


amadora no século 18 e universitária no século 19 para uma atividade industrial no
século 20” (GARRAFA, 2008). Este autor aponta a aceleração do processo de
globalização dos mercados, nos últimos tempos, como responsável pela
internacionalização da pesquisa clínica, o que influenciou tanto as formas de
financiamentos como o desenvolvimento das práticas de pesquisa clínica. As
exigências de ensaios maiores e mais criteriosos, aliadas às novas oportunidades
de negócios para a indústria farmacêutica, são alguns dos fatores que também
podem ser apontados como responsáveis pela rápida internacionalização da
pesquisa clínica, por meio da realização de ensaios clínicos multicêntricos.
Os ensaios clínicos multicêntricos são realizados e geridos por uma
complexa rede de organizações. Atender as exigências para obtenção de
autorização para comercialização de medicamentos, com necessidade de
realização de testes clínicos multicêntricos, requer uma ampla variedade de
diferentes experts, sem as quais seriam inviáveis as autorizações necessárias. A
assimetria de conhecimentos entre realizadores de ensaios clínicos, usuários
finais e sujeitos humanos da pesquisa clínica faz com que seja possível usar a
teoria agente-principal como ponto de partida para se pensar a economia política
da ciência e da tecnologia, no caso particular dos ensaios clínicos, dentro do

49
contexto de reivindicação e necessidade de aumento da participação pública nas
decisões de ciência e tecnologia.
Nesse contexto de internacionalização, o uso da teoria agente-principal
mostra-se duplamente útil para discutir ensaios clínicos. A assimetria de
interesses e conhecimentos – características da relação de cliente e advogado ou
de acionistas de uma empresa e seu gestor principal, de que trata a teoria agente-
principal – são marcas tanto das relações entre especialistas e diversas
organizações envolvidas na pesquisa clínica, quanto das relações entre
pesquisadores e usuários finais.
Antes que um novo medicamento chegue ao mercado, inúmeras
organizações estão envolvidas em complexos processos científicos, políticos e
econômicos internacionais: indústria farmacêutica; empresas de consultoria;
hospitais; universidades; centro de pesquisas; empresas de logística
especializadas; empresas de biotecnologia; ONGs; entidades de representação de
usuários e ativistas; Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (ORPCs);
órgãos governamentais; agências reguladoras; comitês de ética; e, finalmente o
público mais amplo que precisa ou possivelmente pode a vir a precisar do
medicamento. Essas organizações, em diferentes medidas, têm experts como
agentes, com conhecimentos fundamentais para a tomada de decisões
relacionadas, uma vez que são partes essenciais dos processos científicos,
políticos e econômicos que envolvem a realização de ensaios clínicos.
Nesse complexo contexto de internacionalização da pesquisa biomédica,
países como o Brasil – com estrutura composta por universidades, hospitais
centros de pesquisa e cientistas com expertise em ensaios clínicos, além de uma
população geneticamente heterogênea – tornaram-se atrativos para as indústrias
farmacêuticas e de ensaios clínicos5. Cada vez mais pesquisadores brasileiros,
entre eles boa parte de instituições públicas, passaram a participar e coordenar
ensaios clínicos multicêntricos realizados aqui por multinacionais.
5
Para ver mais detalhes acerca desse assunto, ver Anexo 2, no qual uma empresa de consultoria
em ensaios clínicos, a Eurotrials, aponta as vantagens da escolha do Brasil como local para a
realização de ensaios clínicos.

50
Essa participação de cientistas de instituições públicas brasileiras em
pesquisas financiadas pelas multinacionais do setor farmacêutico cria um caso
particular de relação de agência multilateral. Por trabalharem em instituições
públicas, têm estabelecido um contrato, ou uma relação de agência, com o Estado
e, indiretamente com a sociedade, que investem o dinheiro dos impostos em
ciência, na expectativa de diferentes tipos de retorno, que respeitem, como
previsto no contrato, os princípios de autonomia das instituições de pesquisa. Ao
mesmo tempo, as relações de conflitos de interesse desses experts ganham mais
complexidade, na medida em que estabelecem relações contratuais com a
indústria, que podem envolver, concomitantemente com salários e benefícios
recebidos do Estado, diferentes formas de remuneração, benefícios e
financiamentos para projetos.
Com o estabelecimento das Organizações Representativas de Pesquisa
Clínica (ORPCs) no Brasil, que se tornaram concorrentes das universidades e
centros de pesquisas públicos na realização de testes clínicos, as relações entre
indústria farmacêutica e universidades passaram a apresentar problemas (ZAGO,
1994; BODENHEIMER, 2000). Apesar da possível confusão de conflitos de
interesses entre cientistas de instituições públicas, indústria e a sociedade, surgiu
uma reivindicação por parte dos pesquisadores brasileiros de que as pesquisas
clínicas multicêntricas trazem benefícios para a ciência, para a sociedade e para
as universidades envolvidas, e, por isso, essa perda de espaço das universidades
para as ORPCs resultaria em sérios prejuízos para a qualidade dos ensaios
clínicos.
A relação de dependência que existia entre as multinacionais e a
comunidade científica local foi rompida com o crescimento do número de ensaios
realizados por ORPCs. Na busca por ganhar a confiança da classe médica e
superar os concorrentes, a indústria apostava, entre outras coisas, em publicações
científicas de renomados pesquisadores de universidades locais mostrando as
vantagens de seus produtos. Outra aposta era de que, a partir dessa visibilidade
de experts – e por meio de conferências, mesas-redondas e cursos de atualização

51
ministrados por eles – seria possível ajudar a convencer seus colegas a
prescrever determinado medicamento (ZAGO, 1994). De acordo com Zago:

Este é o ponto em que o interesse da indústria se superpõe aos interesses


de parcela dos membros das instituições acadêmicas (especialmente
médicos de departamentos clínicos e cirúrgicos, e de hospitais
universitários), que controlam os serviços que dispõem de melhores
condições de diagnóstico e seguimento de pacientes, e eram participantes
privilegiados do processo de planejamento dos testes. Mais recentemente
esta dependência da indústria farmacêutica em relação às instituições
acadêmicas reduziu-se, uma vez que surgiram empresas médicas
especializadas em testar medicamentos [as ORPCs], quer no ambiente
hospitalar como na comunidade. Também as empresas passaram a
contratar especialistas que fazem todo o planejamento dos testes,
restando aos [demais] participantes um papel operacional. (ZAGO, 2004).

O fato das ORPCs contratarem para ensaios clínicos pesquisadores de


instituições públicas gera um novo problema de conflito de interesses, que envolve
de um lado o Estado, que contrata em nome da sociedade, o pesquisador, com
seus interesses próprios e a indústria, que contrata financia a pesquisa e espera
maximizar o lucro. A discussão sobre essa questão será aprofundada no texto
final da tese, a partir das entrevistas e do conjunto de artigos e documentos.

3.1 - Internacionalização e movimentos sociais


Ao olhar a busca internacionalizada por sujeitos humanos de pesquisa,
Petryna (2009) mostra que as grandes desigualdades permanecem entre países
ricos e os pobres demais para comprar medicamentos de alto custo. No
desenvolvimento e avaliação de drogas, um número crescente de ativistas e
cientistas de diferentes áreas do conhecimento passa a reivindicar participação,
tendo em vista essas desigualdades.
Segundo um expert da indústria, que recebeu o nome fictício ‘Frank’ na
etnografia de Petryna, a indústria farmacêutica busca se adaptar aos direitos
humanos e aos quadros da justiça social que tiveram acesso politizado de
sucesso aos tratamentos e cuidados de saúde no passado recente. Referindo-se,
por exemplo, à luta, então em curso, pelo acesso contínuo ao estado-da-arte da

52
terapia antiretroviral no Brasil, ele disse, “sem rodeios, que sua empresa havia
cooptado o papel do ativismo: ‘Vocês não precisam dos ativistas, basta
comprarem as nossas drogas’" (PETRYNA, 2009).
Mas esse processo de cooptação dos ativistas pela indústria é anterior ao
processo de comercialização das drogas. A própria participação como objeto de
pesquisa em ensaios clínicos que testam novas drogas, para pessoas com
doenças sem tratamento satisfatório, tornou-se um benefício e uma questão ser
reivindicada (EPISTEIN, 1995, p. 421). Esses processos de cooptação em
diferentes níveis da pesquisa, desenvolvimento e comercialização de fármacos
evidenciam a necessidade de uma discussão mais ampla a respeito do papel dos
ativistas, dos movimentos sociais e da participação pública em discussões que
envolvem a tecnociência.
Apesar desse processo de cooptação, a análise do sucesso dos ativistas
internacionais e brasileiros da Aids, em muitas de suas reivindicações, pode
responder, em parte, às perguntas colocadas por Petryna, no início deste capítulo:
“o que fazer para politizar a busca pela saúde entre os mais pobres? Como
integrar os governos e sistemas nacionais de saúde como parceiros efetivos na
saúde global?”

53
CAPÍTULO 4 - EXPERTISE, PARTICIPAÇÃO E GESTÃO DE ENSAIOS
CLÍNICOS MULTICÊNTRICOS

4.1 - Aids e ativismo


As pesquisas clínicas realizadas para definir o melhor tratamento para a
Aids tiveram participação de pessoas interessadas, que se engajaram nas
decisões científicas e de saúde pública com voz ativa, nos Estados Unidos
(EPSTEIN, 1995), no Brasil (OLIVEIRA, 2001) e no âmbito das discussões
internacionais (BASTOS, 1999; BIEHL, 2006). Uma das dificuldades que os
ativistas enfrentaram para legitimar sua participação, diz respeito à eficiência da
ciência em insultar pressões externas, descrita por Bourdieu (1975). Nessa
perspectiva, a ciência é vista como uma instituição com uma espécie de barreira
de entrada para certas discussões. As particularidades das ciências médicas, no
entanto, podem torná-las mais permeáveis à participação de não especialistas do
que outros domínios menos públicos da tecnociência (EPSTEIN, 1995).
Ativistas gays norteamericanos, que mais tarde se tornaram ativistas por
tratamento anti HIV, promoveram nas últimas décadas uma redefinição singular de
seu status social, desafiando a visão de homossexualismo como doença ou
imoralidade, reconstituindo-se como legítimo grupo de interesse na luta por
direitos e liberdades civis. Nesse contexto, a Aids teria intensificado a luta pela
desmedicalização do homossexualismo e da identidade gay (EPSTEIN, 1995).
Outro aspecto particular e sem precedentes dos movimentos gay e da Aids é sua
diversidade política, onde convivem anarquistas libertários, republicanos
conservadores e todos os tipos de ideologias e teorias (BASTOS, 1999).
De acordo com Epstein, o capital cultural da comunidade gay – proveniente,
em grande medida, da presença de médicos, cientistas, educadores, enfermeiros
e outros intelectuais – proveu aos ativistas da Aids uma capacidade incomum de
contestação das reivindicações dos experts. A descrição feita por esse autor da
capacidade adquirida pelo convívio de ativistas sem formação acadêmica com
esses grupos de intelectuais da própria comunidade gay serviu de ponto de

54
partida para a criação da noção de expertise interacional de Collins & Evans, que
facilita a comunicação entre leigos e experts, por meio do engajamento de alguns
atores com a discussão científica. No caso dos ensaios clínicos, essa expertise
seria útil, por exemplo, para que o termo de consentimento de participação em
uma pesquisa clínica seja compreendido em todas as suas possíveis implicações
pelo público leigo.
No entanto, por pertencerem a um grupo específico do conjunto de pessoas
com HIV, Epstein questiona se os ativistas realmente representam toda a
diversidade de pessoas com Aids. Ele mostra como os ativistas, ao se tornarem
experts, monopolizam a capacidade de dizer “o que os pacientes querem”. Dessa
forma, alguns ativistas se constituíram como ponto de passagem obrigatório
(LATOUR, 1999) para as decisões de pesquisa clínica e saúde pública, mas,
como relatado na reflexão de um ativista que estava completando seus estudos
em medicina:

Eu nunca representei pessoas com Aids. Eu representei os ativistas. E


eles são pessoas diferentes, você sabe. Eles são um subgrupo das
pessoas com Aids (EPSTEIN, 1995, p. 420, tradução minha).

A partir dessa percepção e de argumentos que mesclavam aspectos


epistêmicos e políticos, o movimento de ativistas passou a reivindicar maior
diversidade nas populações que tinham acesso aos ensaios clínicos. Dessa forma,
os ativistas argumentaram em favor do acesso aos ensaios clínicos por parte de
usuários de drogas injetáveis, brancos e minorias, hetero e homossexuais,
pessoas com hemofilia, homens e mulheres. Esse argumento apresentado, no
entanto, não foi uma criação feita exclusivamente por ativistas engajados, mas já
era usado em discussões recorrentes entre cientistas. Essas discussões passam
pela tensão entre poder controlar as variáveis, com amostras homogêneas de
população, ou ter amostras heterogêneas mais representativas da população
como um todo, ou seja, com o máximo possível de sua diversidade.

55
No Brasil, os ativistas engajados no desenvolvimento de novos tratamentos
chegaram a conquistas que foram muito além de sua influência nas decisões
acerca de ensaios clínicos. Ativistas gays, da Aids e experts em Aids tiveram
papel crítico em forçar o governo federal brasileiro a manter suas obrigações
constitucionais na área de saúde, com a distribuição gratuita do coquetel de
drogas para tratamento anti Aids. Além disso, ativistas brasileiros também
coordenaram esforços que contribuíram para que a ONU reconhecesse, em 2001,
o acesso a medicamentos como ingrediente fundamental para os direitos
humanos à saúde. Esses ativistas brasileiros, em aliança com organizações
internacionais, politizaram as patentes como questões de trocas justas globais e
justiça social (BIEHL, 2006, p. 218).

4.2 - Ensaios clínicos e participação do público no Brasil


Nas últimas décadas, os formatos e extensão da participação pública nas
decisões políticas têm passado por constantes processos de mudanças e re-
configurações no Brasil. Com a abertura política após a ditadura militar,
principalmente após a Constituição de 1988, movimentos sociais de contestação e
de luta por diretos civis passaram a conviver com uma crescente
institucionalização de espaços de participação nas decisões públicas. Essa
Constituição previu instrumentos concretos de participação pública em decisões,
por meio, por exemplo, da criação de conselhos gestores com participação de
organizações da sociedade civil.
Por um lado, a criação desses espaços de participação pública é
considerada pela literatura como uma forma de descentralização do poder
demandada pela população. Por outro, esses espaços também podem ser
considerados como:

frutos da crise das instituições públicas e parte constitutiva das reformas


estatais que implicam em diminuição de custos e transferência de
responsabilidade de solução dos problemas locais para os cidadãos,
tratados como usuários ou clientes dos serviços públicos (GOHN, 2000, p.
183).

56
Essa visão trazida da literatura por Gohn constitui uma crítica direta ao
processo de liberalização da expertise, que seria parte de um conjunto mais amplo
de reformas do Estado, de diminuição do âmbito de atuação do governo, por meio
de concessões, privatizações e terceirizações dos serviços oferecidos
anteriormente pelo Estado, preconizadas pelo neoliberalismo. Outra discussão a
ser levada em conta para se pensar a institucionalização da participação pública
nas decisões é o próprio conceito de participação. Isso porque o

termo 'participação' acomoda-se a diferentes interpretações, já que se


pode participar ou tomar parte em alguma coisa, de formas diferentes, que
podem variar da condição de simples espectador, mais ou menos
marginal, à de protagonista de destaque (MACHADO, 2003, p. 25).

Na literatura sobre participação pública no Brasil também é discutida a


polarização feita entre, de um lado, a democracia representativa e, de outro, a
democracia participativa. A maioria dos espaços de participação do público nas
decisões políticas se dá por meio de alguma forma de representação. Com
exceção dos referendos, das assembléias e dos plebiscitos, todos os espaços e
instituições que propõem a participação funcionam por meio da representação.
Por isso, Lüchmann (2007) focaliza o fenômeno da representação no interior da
participação, ou do que ela chama de práticas de participação e representação
(P&R), em sua análise sobre duas das principais experiências de democracia
participativa no Brasil: os conselhos gestores e o orçamento participativo.
De acordo com essa autora, o desenho institucional dos espaços
democráticos de decisão,

ou as diferentes configurações entre participação e representação, bem


como os diferentes tipos de políticas públicas são, entre outros, elementos
centrais para o entendimento das diferentes dinâmicas de P&R entre os
modelos analisados (LÜCHMANN, 2007, p.161).

57
Ao analisar as experiências de P&R nos Conselhos Gestores de Saúde e
no Orçamento Participativo, Lüchmann conclui que os conselhos gestores têm
mecanismos de legitimação centrados, entre outros fatores, na expertise,
enquanto que o orçamento participativo tem uma possibilidade mais ampla de
participação popular, de pessoas provenientes de classes menos favorecidas. No
entanto, os conselhos gestores são regulamentados por lei, enquanto que a
existência do orçamento participativo no município é dependente do projeto
político partidário no poder municipal local.
O processo de institucionalização da participação pública na saúde nos
moldes atuais teve seu início desenhado na reformulação do Conselho Nacional
de Saúde (CNS) de 1990. Na época de sua criação, pela Lei n. 378 de 1937, o
CNS tinha atuação somente interna ao Ministério da Saúde Pública. Durante a
abertura política pós-ditadura militar, na década de 1980, o CNS promoveu uma
série de Conferências de Saúde, com debates que geraram contribuições para a
elaboração da Constituição Federal de 1988 e na criação do Sistema Único de
Saúde.
Em 1990, o Decreto n. 99.438 redefiniu novas atribuições do CNS e as
entidades e órgãos participantes, com 30 membros. A partir desse decreto, a
composição do CNS foi fixada entre representantes dos usuários, trabalhadores
da saúde, gestores (governo) e prestadores de serviço de saúde. Cinquenta por
cento das vagas passaram a ser de usuários e os outros cinquenta divididos entre
trabalhadores, gestores e prestadores de serviço.
Após uma série de debates sobre o papel do CNS, uma nova estrutura foi
estabelecida em 2006, com a publicação do Decreto Presidencial n.5.839/2006.
Seguindo deliberações da 11ª e da 12ª Conferência Nacional de Saúde, o CNS
passou a escolher seus membros a partir de processo eleitoral e eleger seu
Presidente, cargo que era ocupado pelo Ministro de Estado da Saúde. O Conselho
Nacional de Saúde passou a contar com 48 conselheiros titulares representados
por usuários, profissionais de saúde, gestores e prestadores (CNS, 2011).

58
Com a função de implementar as normas e diretrizes regulamentadoras de
pesquisas envolvendo seres humanos aprovadas pelo Conselho CNS, foi criada
em 1997 a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). O Conep é uma
comissão do Conselho Nacional de Saúde com funções consultiva, deliberativa,
normativa e educativa. A atuação do Conep se dá em conjunto com uma rede de
Comitês de Ética em Pesquisa (Ceps), que ficam distribuídos e organizados nas
instituições onde as pesquisas se realizam (CNS, 2011).
De acordo com a resolução 246/1997, Conep e os Ceps têm participação
de pesquisadores, estudiosos de bioética, juristas, profissionais de saúde, das
ciências sociais, humanas e exatas e representantes de usuários. O Cep
institucional tem a função de revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo
seres humanos, cabendo-lhe a responsabilidade primária pelas decisões sobre a
ética da pesquisa a ser desenvolvida na instituição, de forma a garantir e
resguardar a integridade e os direitos dos voluntários participantes nas pesquisas.
O Cep também possui papel consultivo e educativo, de fomentar a reflexão em
torno da ética na ciência e de receber denúncias e requerer a sua apuração.
Já a Conep tem o papel de examinar os aspectos éticos de pesquisas
envolvendo seres humanos em áreas temáticas especiais, encaminhadas pelos
Ceps das instituições. O Conep atua também na elaboração de normas
específicas para essas áreas como genética humana, reprodução humana, novos
dispositivos para a saúde, pesquisas em populações indígenas, pesquisas
conduzidas do exterior e aquelas que envolvam aspectos de biossegurança.
Dessa forma, a institucionalização da participação pública na saúde, que
veio a partir das mudanças de 1990 no CNS, passou a existir também para a
questão específica da ética na pesquisa clínica, por meio da criação dos Ceps e
do Conep. Apesar de sua importância histórica como instrumentos de participação
pública e de todo o potencial de contribuírem para um maior controle social da
pesquisa em humanos, a necessidade de aprovação dos Ceps e do Conep para a
realização de pesquisas clínicas no Brasil tem gerado uma série de críticas por
parte de pesquisadores e da indústria farmacêutica (ELIASCHEWITZ, 2010).

59
Os argumentos dos críticos giram em torno de que, no caso de ensaios
multicêntricos, por exemplo, diversos outros órgãos de ética já apreciaram os
protocolos da pesquisa. A apreciação por instâncias locais seria, nessa
perspectiva, redundante e desnecessária (ELIASCHEWITZ, 2010). Outra questão
levantada é da suposta demora por decisões do Conep, quando comparado a
entidades de outros países. As respostas a essas críticas, passa pela noção de
que os Ceps e Conep:

foram propostos para ser verdadeiros laboratórios de discussão ético-


política das tecnociências emergentes, que efetivariam o controle social
sobre as práticas científicas, qualificando-as do ponto de vista da ética,
buscando evitar indução, imposição, exploração dos mais vulneráveis na
sociedade, exposição a riscos inúteis e a danos previsíveis (FREITAS,
2010).

Existem, portanto, tentativas de deslegitimar a atuação e papel dos comitês


de ética, bem como uma constante reafirmação da importância desses comitês.
Esses movimentos são fundamentais para a compreensão do processo de
participação pública em ensaios clínicos. Por isso, essa questão será explorada
minuciosamente no texto final da tese, a partir das entrevistas, atas do Conep,
artigos, leis e documentos.

4.3 - Aids e ativismo no Brasil


Oliveira (2001) descreve as relações entre ativistas, cientistas e indústria
farmacêutica em três momentos históricos. No primeiro momento, ativistas que
buscavam melhores opções de tratamento, pesquisadores e indústria,
consensualmente, promoveram e defenderam a realização dos ensaios clínicos de
acordo com o protocolo estabelecido. A busca por acesso a medicamentos,
prestígio científico e evidências científicas para a comercialização do Indinavir6
uniram os interessados e viabilizaram o ensaio clínico. Num segundo momento,
com a entrada de novos atores e produção de novos discursos, emerge a

6
O Indinavir estava sendo testado isoladamente (monoterapia) e de forma combinada com outra
droga, o AZT, na tentativa de avaliar qual o tratamento mais eficiente para a Aids.

60
controvérsia científica, que passa pela discussão em torno da manutenção ou não
da monoterapia com antiretrovirais, mesmo com o fato do tratamento com duas
drogas combinadas ter demonstrado ser mais eficiente durante o desenvolvimento
dos ensaios (OLIVEIRA, 2001).
O terceiro momento teria sido marcado pela controvérsia em que:

a questão ética, inicialmente apreendida nos limites do código profissional, é


expandida para a regulação das pesquisas em sujeitos humanos,
constituindo-se no principal argumento dos ativistas, que, nesse momento,
passam a reivindicar a suspensão do ensaio (OLIVEIRA, 2001, p. 872).

Os ativistas deslocaram a controvérsia do debate exclusivamente científico


para um campo essencialmente da ética. De acordo com eles, a monoterapia com
o Indinavir não oferecia aos participantes a melhor alternativa disponível, conforme
é preconizado pelas normas internacionais das boas práticas da pesquisa clínica
(WHO, 1995). Dessa forma, os ativistas argumentaram que a continuação do
ensaio clínico, anteriormente defendido por eles, era antiética (OLIVEIRA, 2001).
Esse pode ser considerado um primeiro passo para que o foco das reivindicações
dos ativistas mudasse da luta por realização de pesquisa clínica para avaliar as
alternativas de tratamento para a luta por distribuição gratuita dos medicamentos
para tratamento de toda a população com Aids.
E essa conquista dos ativistas e de parte da comunidade médica foi
efetivada com a assinatura da Lei 9.313/1996. Em seu artigo primeiro, essa lei
determina que “os portadores do HIV e doentes de Aids receberão, gratuitamente,
do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento”.
Além disso, a lei garante que “a padronização de terapias deverá ser revista e
republicada anualmente, ou sempre que se fizer necessário, para se adequar ao
conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no
mercado”.
Se por um lado, a lei brasileira representou uma importante conquista para
os ativistas e para os portadores de HIV, por outro, ela representou uma mudança
no conceito de saúde pública. Essa mudança consiste na passagem da lógica da

61
prevenção e cuidado clínico para o cuidado baseado na comunidade e em drogas
da indústria farmacêutica, num processo chamado por Biehl (2006) de
farmaceuticalização da saúde pública. Apesar de todas as possíveis implicações
dessa mudança conceitual, o Brasil teve uma redução drástica na mortalidade
causada pela Aids e significativa melhoria na qualidade de vida dos pacientes com
a doença. Por isso, a política brasileira tornou-se inspiração para o ativismo
médico internacional (BIEHL, 2006, p. 236).

62
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como perspectiva futura de pesquisa, para pensar caminhos de ampliação


do debate, algumas das questões que foram apresentadas superficialmente como
exemplos serão aprofundadas na elaboração da tese. A primeira delas é a
discussão acerca dos conflitos de interesses dos pesquisadores de instituições
públicas contratados pelas ORPCs e dos impactos dessas organizações para os
sistemas públicos de pesquisa. Outra questão a ser aprofundada passa pelos
debates acerca do papel dos Ceps, Conep e outros espaços institucionalizados e
iniciativas de participação pública nas decisões.
Os críticos da ampliação da participação pública argumentam que ela
poderia acarretar erros nas decisões políticas porque o público não entende do
assunto. Essas críticas, muitas vezes, usam exemplos extremos, onde a
“ignorância” acerca dos debates científicos poderia gerar decisões desastrosas.
Um desses exemplos é o caso do não uso do AZT em mães grávidas HIV
positivas na África, baseado em uma falsa controvérsia resultante da leitura de um
texto na internet, por um gestor não especialista. Na maioria dos países
desenvolvidos o uso do AZT nessa situação era, na época, a regra e não havia
nenhuma discussão científica a respeito do assunto. Várias crianças nasceram
com Aids, o que poderia ter sido evitado, caso o erro não fosse cometido.
Eu, ao contrário, optei por uma outra escolha. Ao invés de procurar
somente onde a participação do público leigo falha, tento construir minha tese a
partir de exemplos que mostram possibilidades de se pensar a ampliação dos
debates, a partir de experiências de participação pública que geram resultados
positivos.
Nessa perspectiva, que tento argumentar ao longo do texto, os dilemas
daqueles que tentam pensar formas de – por meio do registro dos ensaios clínicos
– criar possibilidades para ampliação da democracia passam, em boa medida,
pelos mesmos dilemas apresentados nas discussões sobre o fenômeno da
expertise. Nesse sentido, tento neste texto – e tentarei com mais profundidade na

63
tese – usar a metodologia proposta para potencializar as situações onde a
participação funciona, mas sem abandonar a preocupação em discutir seus
inúmeros problemas e tensões.
O exemplo do ativismo da Aids mostra, nos seus aspectos políticos,
epistemológicos e econômicos que alguns dos caminhos para a construção de
uma participação legítima por parte do público leigo estão colocados. Cabe agora,
como desafio de pesquisa e daqueles que defendem a divulgação dos ensaios
clínicos, propor e criar um conjunto de condições para que as informações,
conhecimentos e discussões gerados a partir dos ensaios clínicos, possam
circular de maneira a permitir uma ampliação do debate, melhoria da saúde
pública e das condições dos sujeitos de pesquisa. Mas a tarefa não é fácil. Para
isso, a discussão deve ir muito além dos 20 itens publicados em um registro. Mas
as análises e os debates gerados acerca do registro dos ensaios clínicos podem
ser vistos como um bom começo.

64
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73
ANEXO 1

LEI Nº 9.313, DE 13 DE NOVEMBRO DE 1996.

Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e


doentes de AIDS.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta


e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de


AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do
Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.

§ 1° O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os


medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da
doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema
Único de Saúde.

§ 2° A padronização de terapias deverá ser revista e republicada anualmente, ou


sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico
atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no mercado.

Art. 2° As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas


com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento.

74
Art.3° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4° Revogam-se as disposições em contrário.

Brasília, 13 de novembro de 1996; 175º da Independência e 108º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO


José Carlos Seixas

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 14.11.1996

75
ANEXO 2
Informações do site da Eurotrials consultoria
http://www.eurotrials.com

Em Julho de 2008, o órgão regulamentar Brasileiro, a Anvisa, mudou o processo


regulamentar para permitir que os patrocinadores e CROs possam solicitar
aprovações, a várias Comissões de Ética, em simultâneo com a submissão à
Anvisa, e não sequencialmente. O processo de aprovação acelerou, reduzindo o
tempo desde o Protocolo Final até à primeira visita do primeiro doente.

Mesmo antes destas alterações, os Patrocinadores, reconheciam que o Brasil,


com a sua grande população de doentes, é não só um mercado importante mas
também um lugar excelente para estudos clínicos. Ter, pelo menos, um centro
Brasileiro num estudo global, garante que o recrutamento de doentes não será um
problema.

O Brasil é um país menos complexo do que muitos outros mercados emergentes.


Ao contrário da Europa e Ásia, todos os doentes Brasileiros falam a mesma
língua, pelo que a tradução em vários idiomas não é um problema.

Outra vantagem do Brasil é a sua localização no Hemisfério Sul, que o torna ideal
para permitir que estudos sazonais continuem todo o ano, quando combinados
com centros do Hemisfério Norte.

A Pesquisa Clínica está a prosperar no Brasil

Em 2008, o custo por doente para testes no Brasil foi, aproximadamente, 30%
inferior ao custo nos Estados Unidos da América. Mais importante, o Brasil possui
uma grande vantagem no recrutamento de doentes para oncologia, sistema
nervoso central, doenças cardiovasculares e diabetes. Devido a isso, espera-se
que o Brasil venha a receber grande parte dos ensaios clínicos realizados fora dos
Estados Unidos da América.

Graças à diversidade étnica, ao heterogéneo perfil epidemiológico e há vontade de


participar em programs de ensaio clínico, o Brasil é um mercado extremamente
atraente para a investigação clínica. Acresce a isso, a sua taxa de crescimento de
mercado, que se espera seja de aproximadamente 12% em 2009, e temos um
país emergente com potencial para contribuir com um grande número de doentes,
que estão ansiosos para participar em pesquisas clínicas, num mercado que se
espera supere o crescimento nos Estados Unidos da América em quase 10%.

Patrocinadores de todo o mundo reconhecem a importância do mercado Brasileiro


e a crescente oportunidade para realizar estudos no Brasil.

76
Capacidade e diversidade

O Brasil é o 5º país mais populoso do mundo e está ainda a crescer, com uma
estimativa de 190 milhões de pessoas. Oitenta por cento dessas pessoas estão
localizadas na proximidade de uma grande área metropolitana, tornado-se mais
fácil para eles ter acesso a um ensaio clínico. A população Brasileira também é
muito diversificada, incluindo jovens e idosos. Estima-se que 25% da população
está abaixo dos 14 anos de idade, tornando-se um excelente local para os ensaios
pediátricos.

O Brasil tem a maior população de origem étnica Japonesa, fora do Japão, e os


dados dos estudos realizados no Brasil são aceitáveis para o Ministério da Saúde
Japonês, fazendo do Brasil um local excelente para estudos "bridging". O Brasil
tem, também, uma elevada incidência em certas doenças raras e tropicais,
permitindo a investigação em áreas como o dengue e a malária.

Por causa do interesse em receber o melhor cuidado médico possível, a preços


acessíveis, os doentes estão ansiosos em participar em ensaios clínicos e a
Eurotrials tem uma taxa de retenção de doentes superior a 90%.

Experiência terapêutica

A Eurotrials Brasil concentra-se principalmente em estudos nas seguintes áreas


terapêuticas:

* Oncologia: pâncreas, pulmão, mama, próstata


* Sistema Nervoso Central e Neurologia: AVC, Alzheimer, demência, epilepsia
* Cardiovascular: AVC, insuficiência cardíaca, angina, hipertensão
* Outras áreas com experiência relevante: Endocrinologia, Dermatologia,
Oftalmologia, Doenças Tropicais, Doenças Pulmonares, Doenças Genéticas,
Pediatria

• Desenho do Estudo
• Protocolo / Desenvolvimento de CRF
• Selecção de Investigadores / Qualificação de centros
• Gestão de Projecto
• Assuntos Regulamentares / Importação de Fármacos
• Monitorização

77
• Gestão de Dados
• Formação de Monitores
• Armazenagem de medicação e materiais de estudo
• Qualidade - Consultoria e Auditoria
• Epidemiiologia / Health Outcomes Research
• Gestão de Risco

Profissionais Qualificados

A equipa Brasileira, não só é multilingue, como possui diferentes aptidões e


experiências, sendo um grupo exclusivo de profissionais com amplo conhecimento
e experiência.

• 4 MDs
• 18 Elementos do Corpo Clínico
• 5 Colaboradores em Assuntos Regulamentares
• 1 Exportação / Importação Associate
• 1 Business Development Manager

Devido à experiência e aos conhecimentos da equipa da Eurotrials, somos


capazes de assumir e desenvolver, com sucesso, qualquer etapa do processo de
investigação clinica.

78
ANEXO 3
Relato bruto de pesquisa de campo
O texto abaixo é um relato bruto de pesquisa de campo realizada em
empresa de pesquisa clínica, que realiza testes de dermatologia em cosméticos.
Os nomes são todos fictícios e de voluntários de um teste para produto para
caspa.

Na sala de espera, Sérgio e Tamires diziam já ter participado de ensaios


clínicos para Amanda, que estava sentada à frente. Todos aguardavam na sala de
espera o primeiro cadastro para participar de testes clínicos com cosméticos.
Amanda logo contou aos dois que conhecia o lugar, um hospital “mal
assombrado”, em que os homens, principalmente, costumavam ouvir sons do
além. Lá, ela participou de testes de um medicamento para o coração. Sérgio
tratou de detalhar que comiam sempre a mesma refeição: almoço igual ao jantar e
café e lanche da tarde, com o mesmo bolo. Fora as “vozes do além”...
Perguntei quanto haviam recebido pela empreitada. “Seiscentos reais”,
respondeu ela, em vale de compras numa grande rede de supermercados. Mas
não haviam recebido nada ainda, após duas semanas de conclusão do ensaio.
Sérgio ponderou, no entanto, que garantiram pagamento antes do natal, além de
que “o dinheiro é fácil”, se comparado a outras atividades econômicas. Também
brincou com a idéia de ser cobaia: “Só estou tendo umas convulsões, de vez em
quando, mas isso, com certeza vai passar. Eles garantiram”.
Tamires lembrou que saiu com forte sensação de fraqueza. Estava certa de
que não era efeito da droga para hipertensão que estava sendo testada no ensaio.
“Tiraram umas sessenta amostras de sangue”, disse. Ela não ouvia as tais vozes,
o que intrigou o companheiro. De acordo com ela, só os homens escutavam.
Contou que viram outras pessoas, na ocasião, que também estavam bem
assustados com as vozes. Várias explicações foram propostas. Acabaram
concordando que eram espíritos. Sérgio passou-me o contato da empresa
recrutadora de ensaios clínicos com medicamentos.

79
Na terceira sala de espera, Danilo, que havia apenas ouvido a conversa
anterior, perguntou se eu já havia feito algum ensaio com remédios, ou só com
cosméticos. A resposta foi negativa. Danilo, desempregado, acompanhava a
esposa e a filha, que participavam de ensaios e aproveitou para fazer seu
cadastro e, quem sabe, tirar também quatrocentos reais em compras. “Com
remédio eu não faço. Isso é loucura. Com cosmético é mais tranquilo”.
A conversa foi interrompida por uma enfermeira que passou um cotonete
diferente em cada lado das narinas dos dois. Ninguém comentou do quê se
tratava, ou para quê servia o produto. De repente, entra uma médica, que passou
pelo corredor com um grupo de pessoas que eram instruídas sobre detalhes de
cada ambiente, faziam perguntas, anotavam. O recrutamento e os ensaios eram
feitos em uma empresa privada, a algumas centenas de metros de uma das
principais universidades da região.

80
Corredor entre a segunda e terceira sala de espera

Equipamento em uma das salas de espera.

81

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