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Ivan Bilheiro*
RESUMO
Durante o período compreendido entre meados do século XVI e fins do século
XIX, esteve em uso, no Brasil, a mão-de-obra negra sob o regime de escravidão. A
mentalidade de então era fortemente influenciada pela teologia católica, a qual,
em congruência com o Estado, formou uma ideologia escravagista, conferindo
legitimidade ao sistema. Este é o foco do presente trabalho. São abordadas as
formas como esta legitimação ocorreu, suas origens e sua construção, além
do modo como se deu a aproximação Estado-Igreja que culminou na referida
construção ideológica. São apresentadas as fundamentações à escravidão
interpretadas sob a égide da Bíblia, bem como os objetivos que fizeram com
que fosse moldada a mentalidade escravagista brasileira.
Palavras-chave: Escravismo. Legitimação teológica. Brasil escravista. Igreja
Católica.
ABSTRACT
During the period comprehended from the middle of XVI to XIX centuries, it
was used, in Brazil, slave sort of work. The mentality was strongly influenced
by catholic theology, which, together with the State, formed a kind of slavery
ideology. This ideology awarded legitimicy to the system. This is the focus in
this research. We study here the ways through which this legitimicy occured, its
origins and constructions, besides of to think about the conditions in which the
approach between Church and State (responsable for this ideology) happened. It
is exposed the interpretation of slavery groudings by the Bible as well as the main
points responsable for the slavery mentality in Brazil.
Keywords: Slavery. Theology of legitimacy. Brazilian slavery. Catholic Church.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
passado legou ao presente; mas alerta-se para que sejam evitados os julgamentos
do passado baseados em idéias posteriores. Em síntese, um chamado para a
compreensão histórica dos fatos4.
Feitas tais considerações, é possível partir para a análise do tema central:
as fundamentações construídas pela Igreja Católica ao escravismo e utilizadas
no Brasil. Primeiramente, portanto, será abordada a aliança Estado-Igreja
do período colonial brasileiro, para que se possa, depois, apontar a origem
das fundamentações ao escravismo no seio da congruência entre as duas
instituições. Em seguida, será tratada essa aliança de uma maneira mais ampla, a
fim de proporcionar a construção do contexto para elucidar. Depois, a conexão
ideológica concernente à questão escravista mais especificamente.
Será feita, também, uma breve abordagem da visão da Igreja, enquanto
instituição, sobre a questão do escravismo. Assim, será possível mostrar que a
fundamentação teológica ao escravismo negro do Brasil não teve um surgimento
súbito quando se fez necessária, tampouco em decorrência, simplesmente, da
proximidade da instituição cristã com um país que via a mão-de-obra escrava
como fundamental.
Adiante, será posta a relação das explicações teológicas, objetivando
mostrar as variadas configurações de legitimação teológica presentes no Brasil
escravocrata e, após, serão feitas as considerações no que tange à construção,
no país, de uma ideologia escravocrata com embasamento teológico da Igreja
Católica.
2 ALIANÇA ESTADO-IGREJA
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escravidão não era – de forma alguma – uma atitude de agressão à vida humana,
mas, ao contrário, uma maneira de preservá-la frente à possibilidade de mortes
em eventos bélicos.
Entretanto, existia uma imensa dificuldade e, em certos casos, até mesmo
a impossibilidade da verificação de um contexto de conflito em defesa da fé ou
em defesa das bases coloniais portuguesas na captura dos negros comercializados.
Efetivamente, o paradoxo dessa justificativa era claro para alguns teólogos, os
quais percebiam a utilização da justificativa de guerra justa e da conversão dos
negros para camuflar o interesse econômico que realmente fazia vívido o fluxo
mercatório escravista.
Já em um patamar mais popular, e com maior amplitude, havia a difusão
de uma outra justificativa teológica à escravidão negra: a idéia da maldição divina,
tomada sob três aspectos diferenciados que, por fim, compeliam à mesma noção
de inevitabilidade, legitimidade e retidão do regime escravocrata.
Um dos três aspectos era o de que a escravidão era fruto do pecado de
Adão e Eva, primeiros pais dos homens segundo a teologia7. Assim, transformava-
se a escravidão em uma realidade característica à humanidade, evidenciando a
presença da maldição divina carregada pelos homens desde o princípio (a partir
do Pecado Original). Das três formas de relacionar o escravismo a um castigo
divino, este é o mais amplo, justificando a escravidão sem fazer referência a um
determinado grupo.
Uma outra face da justificativa da maldição divina era aquela que apontava
os africanos como descendentes de Caim. Este personagem bíblico, que matou
o próprio irmão por ciúmes – sendo considerado pela teologia católica como o
primeiro homicida da história – recebeu de Deus, ao ser amaldiçoado, um signo
na carne para que não morresse e pudesse viver em constante expiação de seu
pecado. Ligou-se, a posteriori, a negritude dos africanos à marca cutânea imposta
por Deus a Caim, fundamentando a escravidão como sendo uma penitência a
ser praticada por parte dos tidos descendentes do primeiro homicida, os negros
africanos.
A terceira linha da maldição divina segue, igualmente, a idéia de impor aos
negros uma ascendência de pecado, a qual destinou a eles a praga da escravidão
como castigo próprio de Deus. Nesta, porém, os africanos são descendentes
7
Como suporte às explicações dos personagens bíblicos citados neste subtítulo do presente trabalho,
tomou-se por base a obra SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado das religiões. Tradução de Pe. Clóvis
Bovo. Aparecida, SP: Santuário, 2001.
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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A força da teologia acabou por criar uma ideologia na qual – de acordo com
as bases bíblicas da escravidão, dando caráter de praga divina– os mercadores
e senhores de escravos se tornavam imunes a qualquer imagem de antiéticos.
Pelo contrário, eram tomados (e se consideravam) como instrumentos de Deus
na execução de seus desígnios com os negros.
Além de tudo e ampliando a imagem de instrumentos dos desígnios de Deus
dos escravocratas, havia a noção de que os negros eram privilegiados por serem
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Válido frisar que, neste artigo, o significado mais amplo de ideologia é o utilizado, como já posto.
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REFERÊNCIAS
BADILLO, Jalil Sued. Igreja e escravidão em Porto Rico no século XVI. In: PINSKY,
Jaime et al. (Orgs). História da América através de textos. 5. ed. São Paulo:
Contexto, 1994.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à sociologia. 25. ed. São Paulo: Ática,
2004. (Série Brasil).
PAULA, José Luiz Oliveira de. A escravidão negra nos livros didáticos de
História de Ensino Médio. 2004. 143 f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Severino Sombra, Vassouras, RJ.