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A legitimação teológica do sistema de escravidão negra no Brasil, p.

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A LEGITIMAÇÃO TEOLÓGICA DO SISTEMA DE


ESCRAVIDÃO NEGRA NO BRASIL: CONGRUÊNCIA COM
O ESTADO PARA UMA IDEOLOGIA ESCRAVOCRATA1

Ivan Bilheiro*

RESUMO
Durante o período compreendido entre meados do século XVI e fins do século
XIX, esteve em uso, no Brasil, a mão-de-obra negra sob o regime de escravidão. A
mentalidade de então era fortemente influenciada pela teologia católica, a qual,
em congruência com o Estado, formou uma ideologia escravagista, conferindo
legitimidade ao sistema. Este é o foco do presente trabalho. São abordadas as
formas como esta legitimação ocorreu, suas origens e sua construção, além
do modo como se deu a aproximação Estado-Igreja que culminou na referida
construção ideológica. São apresentadas as fundamentações à escravidão
interpretadas sob a égide da Bíblia, bem como os objetivos que fizeram com
que fosse moldada a mentalidade escravagista brasileira.
Palavras-chave: Escravismo. Legitimação teológica. Brasil escravista. Igreja
Católica.

ABSTRACT
During the period comprehended from the middle of XVI to XIX centuries, it
was used, in Brazil, slave sort of work. The mentality was strongly influenced
by catholic theology, which, together with the State, formed a kind of slavery
ideology. This ideology awarded legitimicy to the system. This is the focus in
this research. We study here the ways through which this legitimicy occured, its
origins and constructions, besides of to think about the conditions in which the
approach between Church and State (responsable for this ideology) happened. It
is exposed the interpretation of slavery groudings by the Bible as well as the main
points responsable for the slavery mentality in Brazil.
Keywords: Slavery. Theology of legitimacy. Brazilian slavery. Catholic Church.

* Graduando em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF).


1
Registro agradecimento ao professor e amigo José Luiz de Paula, egrégio mentor de minha graduação, pelo
incentivo para produção/publicação deste trabalho.
91
Juiz de Fora, 2008
Ivan Bilheiro

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo tem por foco as justificativas dadas pela teologia


católica ao sistema de escravidão negra, especificamente ao que vigorou no
Brasil, entre meados do século XVI e o ano de 1888, quando foi promulgada
a Lei Áurea, dando fim ao referido sistema. Sobre tais justificativas, colocam-
se questões acerca de suas origens e do contexto de construção, das variadas
configurações, bem como da colaboração das questões para a construção de
uma ideologia2 escravocrata no Brasil.
Nesse sentido, serão mencionados certos fatores da cultura brasileira
do período colonial – os quais permaneceram no período pós-independência,
enquanto perdurou o sistema escravista –, bem como da cultura católica
européia e suas adaptações quando da implantação nas Américas, para que
se dê o embasamento teórico necessário que proporcione a compreensão dos
três problemas supracitados, concernentes às justificativas teológicas dadas pela
Igreja Católica ao escravismo – aqui, válido ressaltar, especificadas no escravismo
brasileiro que submetia os negros de origem africana.
De princípio, ao abordar tal temática, faz-se mister dar-se destaque à
qualidade de imprescindibilidade da relativização histórica. Os riscos de se
incorrer em anacronismo nas abordagens históricas de instituições arraigadas,
como a Igreja Católica e até mesmo de sistemas ora superados como o escravista,
são imensos e fazem-se constantemente presentes. Por tal constatação, é preciso
que se tenha em mente a impossibilidade de serem tecidos julgamentos de fatos
do passado em relação à situação do presente, o que seria o pleno exercício do
anacronismo. À História cabe o estudo, e não o julgamento, da história3.
No presente artigo, há a pretensão de elucidar pontos da trajetória histórica
do Brasil e da Igreja Católica presente no país em determinado período, dando-
se ênfase ao fato de estarem, as análises presentes, centradas em um tempo de
características diferentes das atuais.
Não se ignora, contudo e naturalmente, a ligação e a contribuição que o
2
Aqui e alhures, dentro deste trabalho, fez-se a adoção do conceito de ideologia como um sistema de
idéias predominantes em uma sociedade, e não daquele diretamente ligado à questão da luta de classes
do marxismo. Trata-se da acepção mais ampla do termo, a qual é utilizada atualmente, conforme apresenta
Pérsio Santos de Oliveira no Dicionário Básico de Sociologia. OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à
Sociologia. 25. ed. São Paulo: Ática, 2004. (Série Brasil).
3
Sobre esta diferenciação, ver CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma introdução à História. 2. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1981. (Primeiros Vôos). Em dado ponto desta obra, o autor aponta História (com inicial
maiúscula) como a disciplina e, em síntese, história (inicial minúscula) como o processo histórico.
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passado legou ao presente; mas alerta-se para que sejam evitados os julgamentos
do passado baseados em idéias posteriores. Em síntese, um chamado para a
compreensão histórica dos fatos4.
Feitas tais considerações, é possível partir para a análise do tema central:
as fundamentações construídas pela Igreja Católica ao escravismo e utilizadas
no Brasil. Primeiramente, portanto, será abordada a aliança Estado-Igreja
do período colonial brasileiro, para que se possa, depois, apontar a origem
das fundamentações ao escravismo no seio da congruência entre as duas
instituições. Em seguida, será tratada essa aliança de uma maneira mais ampla, a
fim de proporcionar a construção do contexto para elucidar. Depois, a conexão
ideológica concernente à questão escravista mais especificamente.
Será feita, também, uma breve abordagem da visão da Igreja, enquanto
instituição, sobre a questão do escravismo. Assim, será possível mostrar que a
fundamentação teológica ao escravismo negro do Brasil não teve um surgimento
súbito quando se fez necessária, tampouco em decorrência, simplesmente, da
proximidade da instituição cristã com um país que via a mão-de-obra escrava
como fundamental.
Adiante, será posta a relação das explicações teológicas, objetivando
mostrar as variadas configurações de legitimação teológica presentes no Brasil
escravocrata e, após, serão feitas as considerações no que tange à construção,
no país, de uma ideologia escravocrata com embasamento teológico da Igreja
Católica.

2 ALIANÇA ESTADO-IGREJA

A instituição do Padroado, forma objetiva de aliança entre o Estado e a


Igreja, que vigorou no Brasil colonial, precisa ser vista não como uma forma de
o Estado (Portugal) usurpar o poder espiritual da Igreja, mas como uma forma de
compromisso entre estas duas instituições. A Igreja comprometeu os monarcas
portugueses com a missão da evangelização das novas terras (as Américas, mas,
no caso específico, o Brasil), através do Padroado. O professor Riolando Azzi
(2004) exprime bem como a questão se colocava: “O monarca tornava-se,
4
Esta questão foi muito bem abordada em BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, o ofício de historiador.
Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. No capítulo sobre a análise histórica, o autor
inicia suas falas com uma passagem, que foi intitulada “Julgar ou compreender?”, na qual coloca bem,
para a atividade do historiador, o que seria a questão da compreensão do outro, presente nas teorias da
antropologia cultural.
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portanto, uma espécie de delegado pontifício plenipotenciário para a colônia


brasileira. Os portugueses, por sua vez, passavam a ser considerados como um
povo encarregado de difundir a fé cristã [...]” (AZZI, 2004, p. 50).
Para além da instituição do Padroado, a qual dava ao rei de Portugal –
também grão-mestre da Ordem de Cristo desde que, em 1522, o papa Adriano
conferiu este título a D. João III e a seus sucessores de trono – o dever de levar
a bandeira da Igreja Católica para suas novas terras. Havia um compromisso
subjetivo, cultural entre o povo lusitano e o catolicismo.
A fundação do reino português estava, na visão de seu povo, carregada
de legitimidade divina. O poder do rei advinha do próprio Deus, não podendo
ser questionado de forma alguma. Além desta crença na fundação da monarquia
ligada a Deus, era presente a crença na legitimidade divina, também, do povo
português: “Ao fundar o trono, Deus escolhera o próprio povo. [...] Dessa forma,
os lusos consideravam-se também como o povo eleito para conservar e expandir
a fé católica [...]” (AZZI, 2004, p. 23-24).
A consideração dessas ligações (tanto objetivas, quanto subjetivas) do
povo luso com o catolicismo é necessária para que se compreenda a forma
como a segunda acabou por legitimar a escravidão negra posta em prática no
Brasil colonial, sendo continuada em um breve período pós-independência. A
legitimação não se deu, contudo, de uma instituição isolada a outra, mas em
um contexto de mescla de ambas. Essa mescla da cultura lusa com o catolicismo
chegou ao Brasil quando da vinda dos portugueses para a colonização das novas
terras.

3 O ESCRAVISMO VISTO PELA IGREJA – BREVE EXPOSIÇÃO

Considerada a proximidade já explicitada, faz-se mister, também, relatar


a abordagem feita pela Igreja Católica no que concerne ao escravismo. Então,
de uma maneira bem ampla,

Desde suas primitivas origens, a Igreja católica aceitou e promul-


gou a escravidão como uma prática institucional que se considera-
va justa, necessária ou inevitável. As Escrituras não a condenavam
e esse fato facilitou aos cristãos fazerem uso dela sem problemas
de consciência. (BADILLO, 1994, p. 59-60)

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Historicamente, portanto, desde os primeiros tempos de existência da


Igreja Católica – como se nota na passagem – encontra-se uma série de formatos
que, em síntese, são a expressão da base teológica dada à escravidão.
Contudo, durante a Idade Média, a escravidão reduziu-se
consideravelmente na área que abrange a Europa norte-ocidental, conservando-
se na região do Mediterrâneo. “Na Itália, Espanha, Portugal e norte da África,
manteve-se a escravidão em conseqüência das numerosas guerras que por
motivos econômicos e religiosos se sucederam [...]” (BADILLO, 1994, p. 60).
Neste contexto belicoso, a justificativa católica centrava-se, basicamente,
na defesa da propagação da fé. Conforme pensamento de Badillo (1994)
supracitado, esta era uma forma de autenticar a escravidão enquanto prática
institucional justa. Bulas papais do período das guerras com os muçulmanos
davam este caráter à escravidão dos mouros.
É possível encontrar aí, também, uma das bases da construção de uma
imagem do negro como raça inferior, haja vista que foi se tornando cada vez
mais arraigada nas mentes cristãs a identificação do cristianismo com a Europa
– com recíproca verdadeira. Essa idéia foi, dessa maneira, potencializada em
contextos de luta contra correntes religiosas divergentes daquela defendida pela
Igreja Católica, enquanto instituição. (JOHNSON, 2001, p. 486).
É válido acrescentar, outrossim, nesta breve exposição, que a Bíblia traz
a narração de vários acontecimentos que remetem à escravidão. Nos fatos,
conforme será visto logo à frente, quando da abordagem das diversificadas
roupagens das fundamentações teológicas, buscou-se a legitimação para este
sistema.

4 A ORDEM: OBJETIVO COMPARTILHADO

Postas as considerações acerca da visão da Igreja sobre a escravidão (para


que – é válido ressaltar – evite-se o risco de uma leitura equivocada de que o
assunto passou a ser tratado pela instituição tardiamente), é possível volver o
foco à escravidão no Brasil.
Conforme diz, o professor Riolando Azzi (2004), os lusitanos que
administraram o Brasil viam a fé católica também como um elemento de
manutenção da ordem social. Considerada a questão da aliança que se fazia
entre o Estado e a Igreja, já abordada, percebe-se a congruência, ou seja, a
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aproximação do laico com o teológico a fim de alcançarem, juntos, objetivos


em comum.
Como a busca da Igreja nas novas terras era a de propagação da fé, natural
que contribuísse para a manutenção de um cenário no qual pudesse haver a
difusão da religião. Para tal, juntava-se com o Estado para garantir a bonança
social (leia-se: garantir a ordem, isenta de contestações).
Todos os elementos até aqui abarcados construíram o cenário e deram
a base para a construção do que, neste trabalho, optou-se por denominar
congruência da Igreja com o Estado na construção de uma ideologia escravocrata
no Brasil.

5 DIVERSAS FORMAS DE LEGITIMAR5

Em conformidade com a idéia já citada, os relatos bíblicos formaram a


base para a construção de uma legitimidade teológica à prática da escravidão.
Como lembra Blackburn (2003, p. 96-97), houve a possibilidade de maior
dispersão dessa idéia nos séculos XVI e XVII em conseqüência de uma maior
disponibilidade de Bíblias.
As justificativas teológicas apresentadas à época que o presente trabalho
remete apareceram sob variadas configurações6, a saber: a principal delas
era a da doutrina da guerra justa. Segundo essa idéia, os negros poderiam ser
escravizados desde que submetidos mediante um combate, objetivando a
promoção da verdadeira fé (leia-se: fé católica) no continente africano ou a
defesa das bases coloniais lusitanas na África.
Tomando por base o pressuposto teológico da vida como um dom de
Deus, fazia-se clara a idéia de que, se o inimigo foi submetido, a fortiori – isto
é, com mais razão – deveria ser escravizado, haja vista que é a opção pela
manutenção da vida daquele que foi submetido. Em síntese, escravizar o inimigo
nessas condições equivalia ao exercício da justiça perante Deus, ao passo que
matá-lo seria dar fim ao dom de Deus que lhe era de direito. Sob essa ótica, a
5
O presente estudo perderia toda e qualquer proficuidade que pudesse alcançar caso fosse feita a análise
apresentada sem explicitar as facetas variadas do eixo central, isto é, a legitimação teológica à escravidão.
Isto posto, vale observar que esta parte do trabalho – que fique claro – serve de base indispensável para as
considerações históricas, ainda que, porventura, possa aparentar um tênue afastamento destas.
6
Para estas explicitações de formas de legitimação, ver AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação
da Sociedade Brasileira. Aparecida: Santuário, 2008. (Cultura e Religião). e, do mesmo autor, A teologia
católica na formação da sociedade colonial brasileira. Petrópolis: Vozes, 2004.
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escravidão não era – de forma alguma – uma atitude de agressão à vida humana,
mas, ao contrário, uma maneira de preservá-la frente à possibilidade de mortes
em eventos bélicos.
Entretanto, existia uma imensa dificuldade e, em certos casos, até mesmo
a impossibilidade da verificação de um contexto de conflito em defesa da fé ou
em defesa das bases coloniais portuguesas na captura dos negros comercializados.
Efetivamente, o paradoxo dessa justificativa era claro para alguns teólogos, os
quais percebiam a utilização da justificativa de guerra justa e da conversão dos
negros para camuflar o interesse econômico que realmente fazia vívido o fluxo
mercatório escravista.
Já em um patamar mais popular, e com maior amplitude, havia a difusão
de uma outra justificativa teológica à escravidão negra: a idéia da maldição divina,
tomada sob três aspectos diferenciados que, por fim, compeliam à mesma noção
de inevitabilidade, legitimidade e retidão do regime escravocrata.
Um dos três aspectos era o de que a escravidão era fruto do pecado de
Adão e Eva, primeiros pais dos homens segundo a teologia7. Assim, transformava-
se a escravidão em uma realidade característica à humanidade, evidenciando a
presença da maldição divina carregada pelos homens desde o princípio (a partir
do Pecado Original). Das três formas de relacionar o escravismo a um castigo
divino, este é o mais amplo, justificando a escravidão sem fazer referência a um
determinado grupo.
Uma outra face da justificativa da maldição divina era aquela que apontava
os africanos como descendentes de Caim. Este personagem bíblico, que matou
o próprio irmão por ciúmes – sendo considerado pela teologia católica como o
primeiro homicida da história – recebeu de Deus, ao ser amaldiçoado, um signo
na carne para que não morresse e pudesse viver em constante expiação de seu
pecado. Ligou-se, a posteriori, a negritude dos africanos à marca cutânea imposta
por Deus a Caim, fundamentando a escravidão como sendo uma penitência a
ser praticada por parte dos tidos descendentes do primeiro homicida, os negros
africanos.
A terceira linha da maldição divina segue, igualmente, a idéia de impor aos
negros uma ascendência de pecado, a qual destinou a eles a praga da escravidão
como castigo próprio de Deus. Nesta, porém, os africanos são descendentes
7
Como suporte às explicações dos personagens bíblicos citados neste subtítulo do presente trabalho,
tomou-se por base a obra SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado das religiões. Tradução de Pe. Clóvis
Bovo. Aparecida, SP: Santuário, 2001.
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de Cam, outro personagem bíblico cujo pai, Noé, o amaldiçoou (e também a


toda sua descendência). O pai proferiu a maldição sobre o filho por ele ter feito
chiste de sua nudez, em certa ocasião, enquanto os demais filhos o auxiliaram,
trazendo algo com o que se cobrir. Essa maldição, segundo a teologia que
justificava e dava manutenção à escravidão brasileira, foi aprovada e ratificada
pelo próprio Criador.
As duas últimas facetas da maldição divina, como é possível observar,
relacionam-se diretamente à questão do negro, e têm suas fundamentações
históricas no processo de construção da premissa da ligação direta entre o povo
europeu e o cristianismo.

6 A IDEOLOGIA ESCRAVOCRATA CONSTRUÍDA

Ao falar da institucionalização de uma organização especificamente


religiosa, sob o aspecto sociológico, O’Dea (1969) opta pelo caso cristão por
oferecer o melhor exemplo documentado do processo. O autor, então, fala
da exigência de “[...] mudanças internas no movimento religioso e, ao mesmo
tempo, um ajustamento da organização religiosa à sociedade global” (O’DEA,
1969, p. 75). Com esse pensamento, aponta para o que chama de processo de
adaptação por colocar a Igreja em contato e em relação com o mundo. Também
afirma, ao falar da relação religião-sociedade, que “[...] diferentes grupos da
sociedade apresentarão diferentes tipos de necessidades religiosas [...]” (O’DEA,
1969, p. 79).
Essas idéias, ainda que não concernentes à Igreja na fase sobre a qual
o presente artigo concentra seu foco, corroboram para a compreensão da
legitimação teológica à escravidão, haja vista que é, também, uma forma de
adaptação da religião à sociedade.
Como já dito, a religião católica era tomada como auxiliar na manutenção
da ordem social. A teologia contribuía para que não ocorressem contestações
ao regime vigente. O regime de escravidão negra era, por sua vez, tomado
como necessário para o desenvolvimento do país. O braço escravo negro fez-se
presente no Brasil desde meados do século XVI, objetivando, a priori, cumprir os
objetivos da colônia, mas a escravidão arraigou-se nas terras brasílicas.
Ao abordar a temática escravista, Sérgio Buarque de Holanda (2004)
apresenta grupos que defendiam a escravidão – especificamente o tráfico
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negreiro –, mesmo quando do processo abolicionista em seu auge. Fala, em


especial, dentre outros, dos

[...] partidários eternos do status quo [...] que, temerosos do


futuro incerto e insondável, só querem, a qualquer custo, o
repouso permanente das instituições. Estes eram, natural-
mente, do parecer que, em país novo e mal povoado como
o Brasil, a importação de negros, por mais algum tempo,
seria, na pior hipótese, um mal inevitável, em todo o caso
diminuto, se comparando à miséria geral que a carência de
mão-de-obra poderia produzir. (HOLANDA, 2004, p.75)

Percebe-se, assim, a permanência da ideologia escravista mesmo no


período de discussões acaloradas, tangenciando a temática da abolição.
Continuidade notória da mentalidade constituída ao longo do período de prática
escravista.
Assim, a ideologia8 escravocrata tinha suas origens no âmago do Estado,
bem como no da Igreja do Brasil. Contudo, para além do auxílio dado pela
teologia católica à necessidade do Estado de dar manutenção à escravidão,
também a Igreja possuía negros escravos sob sua tutela. Como observa Badillo
(1994), “A posse de escravos pelo clero, por sua vez, convertia-se no melhor
exemplo de legitimidade da prática. Assim, a Igreja, tanto doutrinalmente, como
exemplarmente, defendeu a existência da escravidão [...]” (BADILLO, 1994, p.
60).
O professor Riolando Azzi (2008), falando também da posse de escravos
pelos representantes da Igreja, ratifica com a assertiva de que “[...] a instituição
católica justificava o regime escravocrata, pois os próprios clérigos religiosos
beneficiavam-se do trabalho dos negros [...]” (AZZI, 2008, p. 28).

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A força da teologia acabou por criar uma ideologia na qual – de acordo com
as bases bíblicas da escravidão, dando caráter de praga divina– os mercadores
e senhores de escravos se tornavam imunes a qualquer imagem de antiéticos.
Pelo contrário, eram tomados (e se consideravam) como instrumentos de Deus
na execução de seus desígnios com os negros.
Além de tudo e ampliando a imagem de instrumentos dos desígnios de Deus
dos escravocratas, havia a noção de que os negros eram privilegiados por serem
8
Válido frisar que, neste artigo, o significado mais amplo de ideologia é o utilizado, como já posto.
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tirados da África, considerada terra do demônio, e trazidos para novas terras, as


quais viviam sob os auspícios da Igreja e do próprio Deus. Se permanecessem
em sua terra natal, sob esse aspecto, os negros estariam destinados ao inferno,
inevitavelmente. Contudo, ao serem inseridos na Cristandade – pelos escravagistas
–, tornavam-se beneficiados pela garantia de salvação.
Percebe-se, portanto, que a Igreja Católica, em congruência com o Estado,
contribuiu para a construção de uma ideologia escravocrata no Brasil. Por se aliar
às necessidades e aos planos econômicos de Portugal, a princípio, e aos de uma
classe que se beneficiava do sistema escravista (a qual estava intimamente ligada
com o Estado); e também por defesa de seus próprios interesses, acabou por
concorrer para a montagem de uma escravocracia brasílica, evitando, pela força
da teologia, contestações ao regime.
Para além, como bem observou o professor José Luiz de Paula (2004),
em seu estudo acerca da escravidão nos livros didáticos, os autores perdem
muito ao não abarcar as questões que ligam a religiosidade à escravidão e às
construções ideológicas. Perde-se uma excelente fonte com potencial para gerar
debates interessantes. Acrescenta-se que, além de enriquecer os diálogos, lançar
luz sobre pontos como esse, de construção ideológica, permitiria uma maior – e,
quiçá, melhor – compreensão do processo histórico, da História mesmo, fugindo
da simplificação sobre grandes fatos e personagens do positivismo.
Por fim, conclui-se que houve, no Brasil escravocrata (compreendido no
período de meados do século XVI até o século XIX), uma congruência da esfera
espiritual (representada pela Igreja Católica) com a laica (o Estado), a fim de
justificar a prática da escravidão, gerando benefícios a ambas. A teologia católica
de legitimação do sistema escravista configurou-se com diferentes aparências,
diferentes imagens que, de uma forma ou de outra, concorriam com o objetivo
de construção ideológica.
Para encerrar, ratifica-se que não se deve pensar que a Igreja Católica
colocou-se na qualidade de instrumento da ideologia escravagista formada pelas
classes que a defendiam. De recíproca verdadeira, também deve-se evitar o
risco de pensar que o surgimento da referida ideologia é obra do catolicismo e,
devido a isso, colocou-se em prática no Brasil. Como o presente trabalho buscou
demonstrar, o que ocorreu, na verdade, foi uma aproximação, uma congruência
que permitiu a constituição da mentalidade de justa escravidão.

Artigo recebido em: 08/09/2008


Aceito para publicação: 20/10/2008

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REFERÊNCIAS

AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial


brasileira. Petrópolis: Vozes, 2004.

______. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida:


Santuário, 2008. (Cultura e Religião).

BADILLO, Jalil Sued. Igreja e escravidão em Porto Rico no século XVI. In: PINSKY,
Jaime et al. (Orgs). História da América através de textos. 5. ed. São Paulo:
Contexto, 1994.

BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo: do Barroco


ao Moderno (1492-1800). Tradução de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro:
Record, 2003.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, o ofício de historiador. Tradução de


André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma introdução à história. 2. ed. São Paulo:


Brasiliense, 1981. (Primeiros Vôos).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia
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JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Tradução de Cristiana de Assis Serra.


Rio de Janeiro: Imago, 2001.

O’DEA, Thomas F. Sociologia da religião. Tradução de Dante Moreira Leite. São


Paulo: Pioneira, 1969. (Série Fundamentos da Sociologia Moderna).

OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à sociologia. 25. ed. São Paulo: Ática,
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PAULA, José Luiz Oliveira de. A escravidão negra nos livros didáticos de
História de Ensino Médio. 2004. 143 f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Severino Sombra, Vassouras, RJ.

SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado das religiões. Tradução de Pe. Clóvis


Bovo. Aparecida: Santuário, 2001.
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