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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
HISTÓRIA DAS SOCIEDADES IBERICAS E AMERICANAS

A ESCOLA INDÍGENA E O PODER DE ESTADO: CONSTRUÇÃO DE UMA


IDENTIDADE ÉTNICA ENTRE OS MBYÁ GUARANI.

VANDERLISE MACHADO BARÃO

Orientadora: Dra. Maria Cristina dos Santos

Dissertação de Mestrado
Apresentada como Requisito
Parcial para Obtenção do Título
de Mestre em História Ibero -
Americana

Porto Alegre, julho de 2005.


AGRADECIMENTOS:

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para a


realização dessa pesquisa, no entanto nominá-las se torna quase impossível, pois foram
tantas....
Mas algumas foram imprecindíveis, como meu querido companheiro Gerson, que
agüentou desde o início, lá por volta de 1998, quando resolvi me aventurar numa pesquisa
junto aos Mbyá Guarani acampados na RS 040, e de lá pra cá, vem sendo compreensivo e
amigo em todas as empreitadas (inclusive servindo-me de motorista para fazer as pesquisas
nas aldeias).
A Patrícia Martins, colega e companheira das pesquisas iniciais, a Cida Bergamaschi,
pelas tantas conversas sobre educação indígena, ao pessoal do NIT/UFRGS, principalmente
aos professores José Otavio e Sergio Baptista, a Mariana Soares, por iniciar-me no amor
pela antropologia indígena.
Não poderia deixar de fazer um agradecimento especial a minha orientadora Maria
Cristina dos Santos, pois sem ela – e suas duras e benfazejas críticas – esse trabalho não
teria sido possível.
A CAPES, pela cedência da bolsa de mestrado, que possibilitou meu ingresso na
PUCRS, e assim desenvolver esta pesquisa.
A Carla, pela atenção e sorrisos, que sempre tranqüilizam a gente na Secretaria do
Pós, onde precisamos resolver os trâmites burocráticos que são sempre esquecidos pelos
pesquisadores mais “aluados”, como eu.
E finalmente, meu maior agradecimento aos meus amigos e interlocutores Mbyá
Guarani, todos aqueles citados neste estudo e também todos os que tive o prazer imenso de
conhecer, pois sem eles não teria sido possível qualquer pesquisa, e que ainda me
proporcionaram a aproximação de um mundo diferente e maravilhoso.

2
Um agradecimento especial a um professor e amigo que infelizmente não
está mais aqui, mas sei que onde ele está, ficaria contente de ver que este trabalho
se realizou, pois ele sempre acreditou nele.
Muito abrigado Oscar Agüero.

3
Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização.
Falamos a sua língua, mas não entendemos seu sermão.
Nós rimos alto, bebemos e falamos palavrão.
Mas não sorrimos a toa,
Não seguimos a toa.
(Arnaldo Antunes)

4
RESUMO

Palavras – chave: Identidade étnica; conhecimento


escolar; Mbyá Guarani; sociedade indígena; poder de Estado.

Este estudo visa ampliar os conhecimentos sobre as populações indígenas, no


âmbito de conhecer um pouco mais sobre a construção da identidade étnica de povos que se
apresentam numa sociedade proveniente da colonização. O grupo étnico em questão é o
Mbyá Guarani do sul do Brasil, onde a escolarização, conforme os moldes ocidentais, tem
sido foco de discussões internas e externas, entre os próprio Mbyá e tem apresentado fortes
influencias sobre a identificação étnica do grupo diante de seus “outros”, principalmente
diante da sociedade nacional.
A fim de explorar esse campo foi salientado o contexto histórico pelo qual passou a
referida sociedade indígena, e como ele se manifestou diante dos poderes de Estado.

ABSTRACT

Key – words: Ethnic identity; school knowledge; Mbyá Guarani;


indigene society; state powers.

This study intend amplify the knowledges across the indigenous populations, in the
scope of know a bit more across the construction of the ethnic identity of nations how are in
a society deriving from the colonization. The ethnic group in question is the Mbyá Guarani
in the south of Brazil, where the school knowledge, in conformity whit occidentals moulds,
is focus f the internals na externals discussions, among the Mbyá and have present
influences strongs across the ethnic identification of the group before of “others”,
inclusively before of the national society.
In order to search this camp gone accentuated the historic context at the crossed the
reported indigene society, and how the context manifested in front of the state powers.

5
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: ................................................................................................................... 7
CAPÍTULO I ...................................................................................................................... 24
1.1. CAMINHOS E DESCAMINHOS PARA ESCREVER UMA HISTÓRIA
INDÍGENA....................................................................................................................... 24
1.2. DA HISTÓRIA INDIGENA PARA UM OLHAR SOBRE INSTITUIÇÕES
DISCIPLINADORAS DO ESTADO MODERNO E SUAS IMPLICAÇÕES NO
MODELO ESCOLAR. ..................................................................................................... 36
1.3. A EDUCAÇÃO JESUÍTICA E DE OUTROS MISSIONÁRIOS NO PERÍODO
COLONIAL...................................................................................................................... 48
CAPÍTULO II. .................................................................................................................... 57
2.1. CULTURA E IDENTIDADE: A CRISE NAS TERRAS MBYÁ. ............................ 57
2.2. A EDUCAÇÃO NAS SOCIEDADES TRADICIONAIS.......................................... 70
2.2.1. O MITO E O ESPAÇO GEOGRÁFICO NAS REPRESENTAÇÕES CULTURAIS
DOS MBYÁ GUARANI................................................................................................. 70
2.2.2. A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PELOS MBYÁ GUARANI: O USO E A
TRANSFORMAÇÃO DE ÁREAS DESTINADAS A ALDEIAS E ACAMPAMENTOS. 84
CAPÍTULO III. .................................................................................................................. 95
3.1. A QUESTÃO FUNDIÁRIA E A POLÍTICA DA INTEGRAÇÃO: PONTOS
PERTINENTES DO CONTEXTO NACIONAL. ............................................................ 95
3.2. A INCLUSÃO DO ÍNDIO NA SOCIEDADE NACIONAL. .................................. 105
3.3. A ESCOLA INDIGENA DIFERENCIADA: O ESTADO E A POLÍTICA
EDUCACIONAL PARA OS INDIOS NOS DIAS ATUAIS ......................................... 116
CAPÍTULO IV.................................................................................................................. 127
4.1. ESCOLA EM CRISE / SOCIEDADE EM MUDANÇA. ........................................ 127
4.2. A INSTITUIÇÃO ESCOLAR PARA OS MBYÁ GUARANI: DIFERENÇAS
ENTRE O APRENDIZADO PRÓPRIO E A ESCOLA DOS BRANCOS..................... 131
CONCLUSÃO: ................................................................................................................. 148
BIBLIOGRAFIA:............................................................................................................. 157
ANEXOS ........................................................................................................................... 167

6
INTRODUÇÃO:
.
Para compreendermos a história indígena na historiografia é preciso ressaltar que esta
categoria foi por muito tempo excluída da história do Brasil como personagem, como mais
um agente dinâmico e ativo. Pois a história oficial, e que ainda povoa o senso comum, não
dava espaço para esses indivíduos se manifestarem e os historiadores por muito tempo os
esqueceu, deixando os índios aos cuidados da antropologia, que seria a ciência responsável
pelos estudos das sociedades autóctones.
Quase nada se conhece da história dessas populações, e assim como a legislação é
generalizada, a imagem do índio também o é para aqueles que não convivem ou trabalham
com a questão indígena.
Felizmente as novas tendências historiográficas vêm aumentando os estudos sobre os
povos ditos sem história. Hoje, novas metodologias e conceitos a respeito da história do
Brasil abrem espaço para se pensar numa história indígena, ou numa história antropológica,
que congregue conhecimentos a respeito desses povos e suas ações na construção histórica
da nação.
Para se desenvolver uma pesquisa sobre identidade étnica, história indígena e educação,
no âmbito das políticas públicas em que esses índios são referidos, cruza-se com a
necessidade de apreender conceitos e formas de pensar e fazer de áreas como a antropologia,
e a história propriamente dita. Tem-se de buscar as “relações de boa vizinhança” como
salienta Lilia Schwarcz (1994: 70), quando exalta essa aproximação entre as disciplinas como
sendo um avanço da historiografia, já que abre o diálogo com outras mentalidades,
mostrando outras falas, outras personagens para uma história mais abrangente. E dessa
forma, segundo a autora, a antropologia também se beneficia dos aportes históricos:

7
as duas disciplinas aparecem, nesse contexto unidas ou
mesmo irmanadas no sentido de abrir mão de antigas e
estabelecidas dicotomias e refletir sobre a contigüidade
dos fenômenos, a estrutura e a história, ou mesmo quando
“o mito é realidade e a historia vira metáfora”1.

Segundo a antropóloga Betty Meggers (1979), nós somos os únicos habitantes desse
planeta que desenvolvemos a capacidade de reconstituir o passado e que nosso futuro
depende muito da habilidade de compreendermos e aproveitarmos aquilo que aconteceu
através da história. Vemos então que as ciências humanas buscam uma complementação
metodológica, uma abrangência maior do conhecimento do homem em sociedade, visto que
a arqueologia e antropologia também têm papel ativo na busca desses novos conceitos e
experiências interpretativas. Tudo onde há evidencia de ação humana faz parte da história,
pois esta ciência tem um dever para com a humanidade, que é o de entende-la e tentar
interpreta-la, para que o homem possa se conhecer melhor.
Porém essas aproximações entre as disciplinas das ciências humanas não são tão
tranqüilas assim, pois segundo Souza Lima (1996: 129):

as aproximações e os intercâmbios entre as duas não


são fatos recentes, nem começaram com a década de
1950 ou mesmo com os Annales, mas são parte dos
seus mesmos dilemas fundadores. Contudo poderíamos
dizer que as relações de poder talvez sejam a mais
recente “descoberta” de ambas as disciplinas e de certo
uma das mais significativas.

Esse autor não vê com tanta tranqüilidade a união da antropologia com a história, e as
intenções de se fazer uma história antropológica ou etnohistória. Não que seja contrário às
trocas de informações e teorias entre ambas, mas observa os problemas conceituais que
geram um entendimento mal acabado pelos historiadores de conceitos antropológicos que
seriam empregados de forma superficial, ou vice –versa. O texto leva a entender que cada
disciplina domina o seu terreno, e no caso de uma interdisciplinaridade, deveria haver mais
cuidado, mais aprofundamento dos saberes e fazeres de cada disciplina, para que não
houvesse tantos equívocos no uso dos conceitos, que acabam sendo empregados de forma
superficial, para justificar o discurso do pesquisador, mas sem se aprofundar ou explicar

1
Esta frase é uma alusão que a autora faz ao um trecho do livro Ilhas de História, de Marshal Sahlins.

8
exatamente o que esse conceito quer dizer no âmbito da disciplina em que ele foi
desenvolvido.
Mas como escrever uma história indígena sem recorrer a antropologia? Essa
disciplina sempre dominou o tema, e é nela que se encontram os recursos para entender
esse “outro” tão distanciado na nossa história oficial.
No entanto, essa história nova, onde os saberes são compartilhados com outras
disciplinas, tem seus métodos, suas problematizações que são próprias da ciência histórica,
não pode fugir do compromisso de seu fazer histórico, mas deve saber lidar com os
conceitos da antropologia e da etnologia, com esse pensar antropológico, que Souza Lima
(1996) chama a atenção. Porém, não nos esqueçamos de que escrever sobre o “outro” é
tentar aproximar o discurso historiográfico da percepção que temos desse “outro”. Com
base no que De Certeau (2002:45) nos diz, “o discurso destinado a dizer o outro permanece
seu discurso e o espelho de sua operação”.
Isso quer dizer que mesmo fazendo uma história com fontes etnográficas, não estamos
traduzindo os acontecimentos nem a sociedade e o pensamento de nossos “nativos”, mas
produzindo um discurso sobre estes, no qual nos enxergamos como um reflexo nesse
discurso, e ao mesmo tempo refletindo no “outro” o discurso que ele produziu para a minha
pesquisa.
Fazendo uma reflexão das contribuições da antropologia para os estudos históricos, e de
como esse movimento fez surgir novos olhares sobre povos que antes eram tidos como objeto
excluído da história dando voz a grupos sociais sem escrita, devo salientar então o objetivo
geral deste estudo que é fazer uma reflexão sobre as instituições educacionais implantadas no
Brasil pelo colonizador europeu, com o propósito de aculturar e assimilar os povos
autóctones desse território pela disciplinarização de seus corpos aos modelos cristãos e
ocidentais, desde o período colonial até o século XX.
Dessa forma, tentar entender como se constrói a identidade Mbyá Guarani nos dias
atuais, levando em consideração o contexto histórico pelo qual passou esse grupo e como se
manteve diferenciado etnicamente como um grupo arredio às políticas públicas e a
interferência educacional dos “brancos”, sendo que hoje o discurso utilizado pelos Mbyá vai
ao encontro da necessidade de apoiar-se nas políticas para índios e na reivindicação de

9
escolas próprias, na medida que estas podem lhes ser úteis para a manutenção cultural e para
a organização política do grupo.
A escola é uma instituição criada pela sociedade ocidental européia, e conforme
ressalta Foucault (1987)2, tem uma íntima vinculação com a disciplina, já que visa uma
sociedade regrada e homogênea, com características específicas de uma sociedade com
Estado.
Segundo Áries (1988: 206):

a nova disciplina introduzir-se-á, sobretudo por meio da


criação já moderna de colégios e formas pedagógicas
onde o reitor e o regente deixam de ser primi inter
pares para se tornarem os depositários de uma
autoridade superior. É o governo autoritário e
hierarquizado dos colégios que permite, a partir do
século XV, o estabelecimento e o desenvolvimento de
um sistema disciplinar cada vez mais rigoroso.

O que nos leva a entender que a sociedade européia ocidental se organizava dessa
forma, criando suas leis e costumes, e com a expansão de seus domínios territoriais levaria
esse modelo para os povos conquistados.
A educação escolar do Antigo Regime, na Europa, vai ser ministrada, principalmente,
pelos religiosos, que dentro dessa lógica disciplinar rígida incorporam a catequização em
seus ensinamentos como a ordem a ser seguida.
Com a expansão européia através das conquistas de além – mar, os missionários,
principalmente os jesuítas, vão ter papel importantíssimo na organização e disciplinarização
dos povos conquistados, oferecendo à eles a catequese como forma de inserção na nova
sociedade que se criava, e que era um modelo da sociedade ocidental, com seus valores e
atributos, mas que nem sempre foram bem entendidos e aceitos nas sociedades tribais, já
que fugiam ao modelo conhecido e diferia totalmente das formas de aprendizado
conhecidas por essas sociedades3

2
FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis. In: Vigiar e punir: o nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes,
1987.
3
“Além da conversão do ‘gentio’ de um modo geral, o ensino das crianças, como se vê, fora uma das
primeiras e principais preocupações dos padres da Companhia de Jesus desde o início da sua missão na
América Portuguesa”. CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: DEL
PRIORE, Mary. Historia das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. No entanto, cabe lembrar que
jamais foram criados colégios nas Reduções Jesuíticas dos Guarani, não havia um sistema educacional

10
Quando o europeu chegou a esse território encontrou sociedades, que chamou de
indígenas, e entre eles estava a sociedade Guarani dividida entre suas famílias extensas, e
com a qual se estabeleceu contato, às vezes pacífico, às vezes nem tanto.
Os Guarani mantinham contato constante com outros grupos indígenas que viviam em
áreas contíguas, e estes podiam ser comerciais ou guerreiros, já que tradicionalmente aos
Guarani é associado o caráter conquistador.
Os europeus ao perceberem as guerras intestinas como cotidianas na relação dessas
sociedades classificadas como indígenas buscou aproveitar-se dessas circunstâncias, com
intenção de transforma-los em escravos. Essas ações escravagistas foram contidas pelas
ações missioneiras, que pretendiam evangelizar esses povos, já que a conquista fora
marcada por um caráter ibérico de cruzada contra os infiéis, e os missionários viram nos
indígenas a massa perfeita para modelagem de sua obra catequética4.
O intuito dos conquistadores europeus era domesticar o “gentio da terra” e deles
tomar o território, utilizando-os como mão de obra. Segundo Kern (1992: 10), os grupos
indígenas que viviam no território americano sempre mantiveram contatos entre si, de
forma direta ou indireta, no entanto o evento da conquista européia causou um grande
impacto sobre essas populações, que acabou por causar grandes transformações culturais e
sociais, por vezes de forma traumática, no seio dessas sociedades. De acordo com Kern
(1992: 10).

Jamais uma empresa de conquista tão extensa e uma


exploração econômica tão intensa, haviam sido
realizadas no passado desta América Indígena. Deste
complexo processo emergiu uma nova sociedade
colonial iberoindígena, a qual terminou sendo a base da
organização de nossa atual América Latina.

O que hoje vem a ser o Rio Grande do Sul fora ocupado por vários grupos indígenas,
entre eles estes horticultores itinerantes, que ocupavam territórios de forma descontínua,

intensivo ou extensivo, o que havia era o ensino de algumas noções básicas de aritmética e alfabetização,
basicamente para a elite dirigente, porém a disciplina era ministrada em todas as esferas da organização
social. Para maiores detalhes ver: KERN, Arno. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1982: 118 – 119.
4
Ver: ALVAREZ – URIA, Fernando. A conquista do outro: da destruição das índias ao descobrimento do
gênero humano. In; LARROSA, J. & LARA, N. P. de. Imagens do outro. Petrópolis: Vozes, 1998: 97 – 114.
TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

11
onde sua área de dispersão correspondia aos vales e leitos dos principais rios e de seus
afluentes.
Com o impacto da ocupação pelos europeus, os indígenas perderam áreas territoriais,
bem como foram cooptados para o trabalho braçal, necessário ao empreendimento colonial.
Aqueles que, a princípio, conseguiram escapar da administração provincial implantada na
região platina, com o sistema de encomiendas, foram, no século XVII, arregimentados
pelas Missões Jesuíticas, e arrebanhados pela ordem cristã – ocidental.
Apesar destas frentes colonizadoras, muitos grupos mantiveram-se livres da
conquista, e algumas famílias Guarani conseguiram manter-se fora dessas formas de
subjugação, afastando-se do domínio europeu, continuando a viver de forma aldeã –
tradicional, embrenhando-se nas matas que restavam no sertão da Província do Paraguai.
Esses grupos ficaram conhecidos como Caaiguás ou Cainguás5, ou ainda constam nos
documentos da época da conquista como os “índios brabos”.
O contato entre os índios reduzidos e esses que mantiveram seu modo de vida tribal,
acabava acontecendo, já que o território ocupado por ambas as partes era vasto e aberto, e
os Guarani sempre mantiveram o hábito de circular pelas suas áreas de domínio,
conhecendo todos os caminhos no mato, e realizando visitas aos parentes e parcialidades
com freqüência. Da mesma forma, a expansão da região missioneira e das cidades e vilas
espanholas, empurravam os grupos indígenas cada vez mais para dentro do mato, no
entanto a circulação destes por estas zonas ditas civilizadas, mesmo que na periferia, não
era incomum.
Durante e após a Guerra Guaranítica houve uma dispersão ainda maior dos
sobreviventes Guarani e guaranizados6, onde muitos voltaram a vida aldeã, enquanto outros

5
HOYOS, Maria de. Guaranies. Buenos Aires: A Z Editora, 1998. Esses dois termos aparecem na
documentação do século XVII – XVIII, referindo-se aos índios monteses, ou aos “índios brabos”, de quem se
deveria ter cuidado. Maria Hoyos (1998) classifica o termo “Caaiguá”, para designar os antepassados dos
Mbyá – Guarani, que seriam esses índios monteses. O termo Ka’ygua, também é usado para denominar os
Guarani rebeldes e monteses, segundo FOGEL, Ramón. La resistência a la dominación colonial. In: Mbyá
recové: la resistência de um pueblo indômito. ASUNCIÓN: Centro de Estúdios Rurales Interdisciplinarios
&Universidad Nacional de Pilar, 1998.
6
Muitos indígenas de outras etnias eram reduzidos e acabavam acatando o modo de vida Guarani. Esta não
era uma prática nova para a população Guarani que tinha o hábito de incorporar indivíduos de outras “nações
indígenas” ao seu convívio, através das guerras de conquista de novos territórios, como nos indica Hoyos
(1998).

12
permaneceram ligados as administrações portuguesa e espanhola, acabando por se
incorporar ao modo de vida colonial.
Nessas aldeias administradas pelos portugueses, conforme o levantamento
documental feito pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul7, durante o período
pombalino, existiam escolas para meninos e para meninas indígenas, onde as crianças eram
internadas, ficando proibidas de falar na língua nativa, assim como praticar qualquer tipo de
atividade religiosa tradicional. Nessas escolas havia um mestre ou uma mestra que vigiaria
todas as atividades das crianças e os orientaria dentro dos ensinamentos específicos daquela
sociedade colonial, visando educá-los para se tornarem cristãos, civilizados, conforme o
modelo europeu, e que não almejem posições sociais de alto teor, já que seriam educados
para serem subalternos aos administradores, e conseqüentemente ao modelo político em
vigor daquele período.
O sistema de aprendizado indígena é bastante diverso desse sistema educacional
escolar apresentado pelos europeus, pois não há uma instituição específica que vai educar
as pessoas, mas sim um aprendizado coletivo, que se dá durante toda a vida do indivíduo.
Segundo Meliá (1979:09),

o índio perpetua o seu modo de ser, nos seus


costumes, na sua visão de mundo, nas relações
com os outros, na sua religião. E isso com tal
firmeza, que desafia as explicações simplistas.

Dessa forma as constatações por parte de muitos ocidentais que tentam fazer os índios
se educarem conforme o ideal de educação capitalista e ocidental, culminam na amarga e
desesperada conclusão de que os índios não mudam, que mesmo recebendo e muitas vezes
aceitando novas formas de organização da sociedade, eles continuam índios, continuam
acreditando no seu mundo, nos seus mitos, na sua forma de organização social e nos seus
deuses.
Os atuais Guarani (Mbyá, Kaiová e Ñandeva) se reconhecem etnias diferentes do
Guarani missioneiro, auto-definindo-se como descendentes do “verdadeiro Guarani”, ou
seja, aquele que não se submeteu ao colonizador e manteve seus traços culturais, vivendo

7
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Os índios D’Aldeia dos Anjos: Gravataí século XVIII / AHRS –
Porto Alegre: EST, 1990.

13
como “os antigos viviam”. Principalmente os Mbyá, que reclamam para si a pureza étnica,
como sendo eles os verdadeiros e únicos Guarani, por não terem se “misturado com os
brancos” em nenhum momento8.
Estas circunstâncias de contato podem ser entendidas por meio da fricção interétnica9,
conforme a definição dada por Cardoso de Oliveira (1981), para situações semelhantes,
onde os grupos culturais até aqui comentados apresentam traços da cultura missioneira
bastante presentes no seu cotidiano atual.
Os Mbyá possuem seus próprios meios de aprendizado, que se dão no meio social,
através da transmissão dos conhecimentos simbólicos de suas representações, sejam elas
em forma da arte, das rezas e cantos rituais, do cotidiano de suas roças de milho e até
mesmo do território que ocupam e que traz elementos reconhecidos pela sua cosmologia
como uma terra para o Guarani viver. Segundo Mordo (2000: 26) a identidade dos Mbyá,
mesmo se confrontando com a sociedade moderna atual, se vê reforçada no seu cotidiano,
pela vigência dos mecanismos tradicionais que reforçam a coerência da existência coletiva,
sendo que a reprodução cultural funciona de forma ativa em todas as instâncias da vida
desses indivíduos10.
A escola aparece para os Guarani um pouco marcada pelo processo de destruição
cultural que ela manteve durante o período colonial, já que o interesse dos jesuítas era a
integração dos indígenas ao modelo colonial europeu, e depois, sob a jurisdição da coroa
portuguesa, esta pretendia assimila-los a esse mesmo modelo.
Com as mudanças políticas e a implantação da República brasileira os índios foram
um pouco esquecidos, não havendo políticas específicas para eles. A idéia de que a
assimilação desses povos pela sociedade brasileira era inevitável, fazia crer que o seu
desaparecimento era uma questão de tempo. E que em muitos lugares, como no Sul e

8
Essa afirmação é bastante controversa, pois observando as comunidades das aldeias Guarani, nota-se traços
ocidentais em muitos indivíduos, porém na sua autodefinição, eles se reconhecem apenas como Guarani,
negando qualquer miscigenação. Para maiores detalhes sobre esse assunto ver VIETTA, Katya. Mbyá:
Guarani de verdade. Porto Alegre: PPGAS/ UFRGS, 1992.
9
Ver: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Introdução: a noção de fricção interétnica. In: O índio e o mundo
dos brancos. Brasília: Editora da UNB, 1981. Aqui o autor ressalta a questão de que duas sociedades e seus
elementos se contrapõem, ele afirma que “não se trata de relações entre entidades contrarias, simplesmente
diferentes ou exóticas, umas em relação as outras; mas contraditorias, que a existência de uma tende a negar a
da outra.”
10
“La identidad étnica (...) no puede ser definida en términos absolutos, sino únicamente en relación a un
sistema de identidades étnicas, valoradas en forma diferente en contextos específicos o en sistemas
particulares (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976:09, apud, BONFIL BATALLA, 1986:15).

14
Sudeste do Brasil, esses povos já teriam se extinguido, pois se tratava de zonas de fronteiras
de expansão coloniais antigas, consolidadas, portanto há muito tempo.
Os indígenas que ainda sobreviviam, em geral no Norte e Centro Oeste do país, eram
tratados como se não passassem de empecilhos para o desenvolvimento nacional, ocupando
terras devolutas, que ainda não haviam caído no interesse dos brasileiros.
As escolas para índios só vão voltar a aparecer nos documentos oficiais do Brasil por
ocasião da constituição da FUNAI, em 196711, quando se implantam os postos indígenas
que mantém escolas em seu interior. Porém essas escolas também vão conter um caráter
assimilacionista, sendo que a situação de desamparo em que se encontravam os indígenas
brasileiros nesse período é evidenciado por vários estudos, tais como Santos (1975), Cabixi
(1984), Pacheco de Oliveira (1999), Cardoso de Oliveira (1981 e 1976) e Silva e Grupioni
(1998). Mesmo após os problemas enfrentados com o SPI12 nos últimos anos da existência
do órgão, a FUNAI não modifica a visão sobre essas sociedades e mantém uma postura
tutelar sobre esses indivíduos, continuando a considera-los incapazes de se auto-
ministrarem.
Conforme Silvio C. dos Santos (1975: 11 – 12) a escola indígena implantada nessa
época pela FUNAI, nada oferecia para as comunidades aldeãs, já que era baseada num
modelo de escola rural, e esta era aceita em decorrência das condições de submissão a que
estavam sujeitos os indígenas, sendo vistos como uma categoria inferior dentro da
sociedade nacional. Esse tipo de escola se enquadrava no modelo orientado a manter os
indígenas em estado de dominação, priorizando o ensino lingüístico da língua portuguesa e
não da língua própria do grupo. Este aspecto, entre outras características deste tipo de
escola, era uma forma de desintegração do aparato cultural indígena, já que acabando com a
fala da língua tradicional estes aos poucos iriam se integrar ao sistema nacional,
provavelmente ao modelo de campesinato, adquirindo conceitos ocidentais e deixando de
viver de forma tribal13.

11
A criação do SPI em 1910 tinha a orientação de integrar o indígena à sociedade brasileira, respeitando o seu
tempo, mas guiando-o para esse fim, com sua extinção em 1966 e a criação da FUNAI – Fundação Nacional
do Índio – essa orientação não mudou, exemplo disso é o conteúdo do Estatuto do índio (Lei 6001/73), que
tem como um dos seus principais objetivos a integração do índio à sociedade nacional.
12
SPILTN - Serviço de Proteção ao índio e Localização de trabalhadores Nacionais – quando de sua
formação em 1910, depois passou a chamar-se apenas SPI – Serviço de Proteção ao Índio.
13
Essa era a proposta da Escola de Chicago, para o problema da identidade entre os imigrantes. Se acreditava
que a educação escolar universalista iria acabar com as diferenças étnicas, e que a partir de um ensino

15
Muitos missionários também se integraram à empreitada de educar, conforme seus
conceitos do que é uma educação civilizada para os indígenas, implantando escolas no meio
de suas aldeias, seja na Amazônia, no Xingu, ou próximas às cidades, onde existiam Postos
Indígenas ou comunidades indígenas às beiras de estradas.
Essas escolas missionárias já vinham atuando há muito mais tempo do que as escolas
do Estado, visto que os jesuítas foram um dos primeiros grupos religiosos a se preocuparem
com a educação dos índios. Os salesianos também têm um papel importante na formação
escolar de indígenas, sendo que atuam com vigor na região do Centro – Oeste brasileiro, e
há ainda a atuação do SIL – Summer Institute of Linguistic – que chegou ao Brasil em
1956, com o intuito de conhecer e aprender as línguas indígenas, traduzindo a Bíblia nessas
línguas para serem lidas pelos índios. As escolas do SIL, sempre foram muito grandiosas, e
seu método difere um pouco dos métodos catequéticos de outras frentes missionárias, mas
os objetivos são exatamente os mesmos: civilizar os índios e encaminha-los para um novo
modelo de sociedade e de mundo, que difere dos seus próprios, já que estes são encarados
como atrasados, místicos e primitivos14.
As escolas missionárias continuam atuando dentro das áreas indígenas até o presente,
já que a demanda pelo ensino escolar entre os índios se tornou maior, inclusive a atuação
do CIMI foi, e ainda é, de grande vulto para as mudanças relativas à aceitação da diferença
étnica e cultural por parte da legislação brasileira. Com a implantação de novas leis que
constam na Constituição de 1988, na qual está determinado que a educação para os
indígenas deve levar em conta a língua materna e os padrões culturais do grupo, se passou a
ter um ensino bilíngüe obrigatório e currículos que se aproximassem mais da cultura local.
Apesar dos avanços jurídico – legais, ainda persiste o preconceito racial na sociedade
nacional. Os índios como um todo, estão lutando para adquirirem uma educação formal que
os possibilite interagir na sociedade brasileira, sem que isto lhes obrigue a deixar de serem
índios, ou melhor, de pertencerem a uma sociedade cultural diferente dentro daquela
sociedade, porém esta tarefa não é fácil, e pode-se dizer que ainda há muitos obstáculos

massificado as novas gerações não teriam mais nenhum traço de suas raízes étnicas, o que se mostrou ineficaz
empiricamente. POUTIGNAT, P. & STREIFF – FENART, J. O que é um grupo étnico? In: Teorias da
etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
14
SILVA, Marcio Ferreira e AZEVEDO, Marta Maria. Pensando as escolas dos povos indígenas no Brasil: o
movimento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre. In: SILVA, Aracy Lopes da. e
GRUPIONI, Luis Donisete Benz. A temática indígena na escola – novos subsídios para professores de 1º e 2º
graus. Brasília: MEC – MARI – UNESCO, 1995.

16
para serem transpostos até a aceitação da diferença cultural ser entendida pela população
brasileira.
Os Mbyá estão no momento inseridos nessas lutas pelos seus direitos a educação,
embora mais tardiamente do que outros povos, já que a escola não lhes parecia muito
confiável, e ainda não lhes é totalmente aceitável. As discussões sobre o caráter da escola
indígena são acaloradas dentro dessa sociedade, pois nem todos os membros dela estão de
acordo com as políticas educacionais implantadas.
As aldeias observadas para fins dessa pesquisa foram as da Estiva e Cantagalo, que se
localizam em Viamão, e a da Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Todas têm escolas em
seu interior, no entanto essas escolas estão em diferentes estágios de desenvolvimento. Na
Estiva se localiza a única escola Mbyá Guarani que possui o ensino fundamental completo,
tendo prédio escolar, funcionários não índios que administram a escola, bem como
professores não índios que se encarregam das disciplinas mais técnicas, que não são sobre
cultura e língua Guarani. As outras duas possuem as aulas ministradas na aldeia, porém não
há prédio para a escola na Lomba nem no Cantagalo, porém este último tem uma sala
destinada às aulas, sendo que a Lomba ministra suas aulas dentro da casa de rezas. No
Cantagalo há professores não índios, que ministram língua portuguesa, na Lomba só há
professor Guarani, sendo que estas duas escolas são ligadas a escolas estaduais, não sendo
autônomas e não tendo direção própria dentro da aldeia, como ocorre na Estiva.
Na verdade, a escola indígena atual ainda traz em si muito da bagagem antiga, pois
ainda tem um caráter de escola rural e mesmo com os integrantes da comunidade indígena
participando da confecção dos materiais didáticos e da forma de pedagogia a ser aplicada, a
própria instituição tem um caráter diverso dos modelos de aprendizagem indígena.
O próprio termo “Escola Indígena” é inapropriado, pois leva a crer que os povos
indígenas não possuem uma forma própria de educação. As escolas para índios,
implantadas ao longo da história brasileira, sempre mostraram um caráter disciplinador, de
acordo com a lógica da sociedade ocidental, não levando em consideração as lógicas
próprias das sociedades autóctones.
Porém os indígenas, de diferentes grupos étnicos, possuem um modelo educacional
muito mais integrativo do que o modelo ocidental. E esse modelo é o que sempre lhe
assegurou permanecer índio. A ação pedagógica indígena segue baseada na transmissão

17
oral dos conhecimentos, dos saberes coletivos e individuais do grupo, e estes saberes são
transmitidos através de mitos, histórias contadas em forma de brincadeiras, de rezas, dos
cantos e danças, onde toda a comunidade participa e é ativa.
No presente estudo, o material recolhido para a pesquisa foi fruto de entrevistas com
os professores indígenas, bem como com líderes políticos e religiosos15. Da mesma forma,
foram feitas observações das práticas cotidianas nessas três aldeias. Porém, também
incorporou-se ao material de pesquisa, além da legislação e dos documentos oficiais sobre
políticas educacionais para indígenas, documentos produzidos pelos próprios índios, bem
como suas falas e reivindicações em reuniões com o Ministério Público, SE/RS, e outros
órgãos públicos que administram as políticas para esses povos. Nessas reuniões pode-se
obter muitas informações sobre o modo dos Guarani procederem diante do Estado, e de
como se manifestava a sua identidade étnica como mediadora nas negociações.
Foi assim que me deparei com a etnohistória, já que queria fazer uma história que
envolvia antropologia, e um evento contemporâneo entre os indígenas, onde a implantação
e aceitação da escola entre os Mbyá Guarani, está relacionado a todo um movimento de
nível nacional e de construção de identidade indígena perante o Estado, que vem
acontecendo no Brasil.
Mas é necessário situar esse movimento e essa identidade latente no contexto
histórico em que esses indivíduos classificados como índios, identificam-se como Mbyá
Guarani, como eles percorreram os caminhos da construção do Estado nacional brasileiro.
Sendo importante saber sua trajetória, sua relação com outras experiências escolares no
passado, sua identificação (ou não) com o Guarani missioneiro, etc.
Portanto, descobri na etnohistória a possibilidade de encontrar um caminho para
construir meu discurso, minhas análises e interpretações desse evento, que se apresenta hoje
entre os Mbyá Guarani.
Com relação a forma como os Mbyá procuram afirmar-se como grupo étnico
diferenciado, a fim de obterem uma escola especifica para eles, está relacionada a um meio
de barganha, já que é um direito seu, como grupo indígena ter escolarização dentro da
aldeia, e esta escola deve obedecer as leis que a regem e ser bilíngüe, bem como orientada
pelos costumes do grupo. Portanto, eles querem que esta escola cumpra com estes

15
Ver anexo referente às atribuições dos interlocutores.

18
preceitos. No entanto é perceptível um certo desconhecimento por parte dos Mbyá do que
pode ser uma escola indígena propriamente, pois as experiências obtidas até então com a
escolarização, sempre foram muito distantes de sua forma própria de educar os filhos, e esta
diferença cria constrangimentos e receios com relação a “escola do branco”, como eles a
chamam, e nota-se a dificuldade da apropriação da escola como uma coisa indígena, que
tenha a sua marca, as suas características, pois a escola não é realmente deles, talvez possa
vir a ser algum dia.
Na educação dos índios, não há um transmissor de conhecimento especializado para
realizar a educação e esta não é fragmentada, distribuída em disciplinas, como no modelo
ocidental. A educação se dá na vida cotidiana, no saberes transmitidos em família, no
aprendizado prático da vida em comunidade. E todos são responsáveis por essa educação,
que visa formar indivíduos capazes de compreender o mundo em que vivem, adquirindo
independência e autonomia dentro desse mundo.16
A idéia inicial da escolarização, que seria a autonomia para as comunidades
indígenas, também não parece muito esclarecida entre os indivíduos das comunidades
Mbyá Guarani observadas. São percebidas atitudes muito ligadas ao paternalismo, histórico
entre os indígenas brasileiros, já que os pedidos de ajuda financeira e material como um
todo são cada vez mais freqüentes nas relações entre índios e brancos. E a escola tem se
apresentado, de alguma forma, como um veículo para obtenção de bens materiais e
alimentos para as aldeias.
A escola de modelo ocidental, por ser uma instituição social alheia ao esquema social
indígena, possui características organizacionais muito distintas das comumente usadas para
educar as crianças indígenas. A relação professor – aluno possui um caráter muito
diferenciado na escola indígena, onde as crianças têm o hábito de aprender fazendo junto
com os adultos. Na escola “do branco”, embora tenham surgido novas perspectivas para o
aprendizado e para a relação dos alunos com sua comunidade na área pedagógica, ainda
persiste uma relação professor –aluno bastante tradicional em muitas escolas, inclusive nas
escolas rurais, onde o quadro docente é bastante precário, e nesses casos ocorre uma

16
Ver: MELIÁ, Bartomeu. Educação indígena na escola. In: Caderno Cedes, ano XIX, n. 49, dez/99;
MELIA, Bartomeu, Educação indígena. In: Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979;
FREIRE, José Ribamar B. Tem índio no Rio. Rio de Janeiro: UERJ, abril/2002 (mimeo).

19
transmissão linear de conhecimentos, onde um indivíduo domina o processo de
aprendizagem de uma forma muito distanciada do cotidiano da comunidade.
Esse pressuposto se diferencia muito das formas de aprendizagem indígenas, onde
vigora o hábito de aprender fazendo junto com os adultos e brincando de ser adulto, ou seja
as tarefas do cotidiano e os conhecimentos são aprendidos na forma de brincadeiras entre as
crianças, que manipulam miniaturas de objetos que os adultos usam em suas tarefas diárias
e simulam atividades onde são empregados os conhecimentos de mundo e suas técnicas
cotidianas.
As adequações para que a escola tenha mais características indígenas do que não
indígenas não são fáceis de se conseguir. Em realidade a escola indígena está nos alicerces
de sua construção, pois muitas propostas que vem sendo implantadas nas aldeias são
provenientes das instituições que administram a escola. Isto implica que a escola vem do
Estado, e mesmo seus técnicos, como os professores índios que agora ministram as aulas,
são treinados pelo Estado, sendo que não há possibilidade de somente os próprios índios se
encarregarem do ensino escolar, já que lhes falta formação técnica para isso, em se tratando
de uma instituição escolar propriamente dita.
Portanto, ainda temos um misto de “escola de branco” com algum aprendizado
tradicional da comunidade misturado nos métodos pedagógicos aplicados nessa escola. E,
no entanto os Mbyá têm buscado na escolarização uma forma de sobrevivência enquanto
grupo cultural, e vendo na escola uma saída para conviverem com a sociedade nacional.
Analisando as políticas educacionais aplicadas aos indígenas da região sul, desde o
período colonial até os dias atuais, percebe-se que a escolarização foi uma das formas mais
utilizadas durante o processo de conquista do território brasileiro. E isso criou entre os
Mbyá Guarani, que preferiam manterem-se distantes da sociedade nacional, uma grande
aversão e até mesmo um medo de que a escola viesse a destruir seu controle cultural17.
Mas diante das atuais políticas públicas, e principalmente observando atitudes de
diferentes grupos Mbyá Guarani, percebe-se que a escola ainda é um ponto de discussão
muito sério, e que os poderes tradicionais das lideranças religiosas ainda tem relações muito

19 “Por control cultural entiendo el sistema según el cual se ejerce la capacidad social de decisión sobre los
elementos culturales”. (BONFIL BATALLA, 1986:19).

20
tênues e desconfiadas em relação aos novos poderes políticos que os professores vêm
adquirindo dentro das aldeias.
Enquanto a formação de uma identidade étnica vem sendo incentivada por
professores indígenas, que adquirem formação técnica através de cursos de magistério
dados pelo Estado, estes mesmos professores estão vendo na escola uma forma de
organização política que possibilite aos Guarani posicionarem-se diante da sociedade
nacional. Ao mesmo tempo, também é perceptível muitas fragmentações no modo de
aprendizagem das crianças indígenas, evidenciando uma escola que assume o papel de
filtro cultural, onde a cultura é mapeada e hierarquizada. É esta escola que parece estar
mostrando ao índio o que é e o que não é de sua cultura.
Em que medida entender o movimento que está se dando em torno da escola para os
indígenas, como elemento de organização étnica, sem entender o que é a identidade étnica e
como ela se manifesta dentro de um grupo, quando aparece e desaparece, em que
conjunturas o discurso indígena sobre a escola é ou não identitário, político e quando é
cultural.
A identidade étnica, conforme nos alerta Cunha (1987), Pacheco de Oliveira (1999) e
Poutignat e Streiff – Fenart (1998), é uma identidade politicamente construída, os indígenas
atuais não são retratos do que foram seus antepassados, mas buscam nesse passado e nas
práticas tradicionais reconhecidas pelo grupo, apresentarem-se como Guarani, como grupo
étnico diferente dos demais que compõem a sociedade brasileira. Dessa forma, independe
se eles são ou não descendentes dos Guarani coloniais ou pré coloniais, o que importa é
que são Guarani, já que assim se autodenominam.
O discurso indígena sobre sua identidade étnica é construído internamente no grupo,
já que há subsídios nas memórias locais, nos textos técnicos e acadêmicos produzidos sobre
eles e até na percepção de seu cotidiano em comparação com a sociedade envolvente. É
esse discurso que vai aparecer na escola, quando for contada sua história. Isto faz parte
dessa construção étnica e é totalmente legal, pois nossa própria sociedade o faz todo dia em
todo o momento. Os índios estão aprendendo a fazer, ou melhor, estão expressando agora
esses conhecimentos e essas intenções para fora de suas comunidades, para se fazerem
conhecer pela sociedade nacional.

21
A escola indígena tem trazido a possibilidade dessa história ser contada, já que há um
interesse em buscar na memória dos antigos os conhecimentos tradicionais. Os professores
índios estão dispostos a fazerem isso, já que são importantes para eles esses saberes
internos e a própria versão indígena da história, uma vez que a escola indígena tem por
objetivo integrar os conhecimentos tradicionais aos técnico-cientificos. Dessa forma,
muitas coisas estão sendo recriadas, os mitos estão se transformando em material didático,
e as práticas cotidianas em objeto de estudo para os próprios indígenas.
É importante mostrar que a proposta de escola para índios não é nova, e que os
Guarani participaram ativamente das primeiras experiências escolares feitas pelos jesuítas,
assim como foram os principais personagens das medidas pombalinas, já que documentos
apontam que os aldeamentos coloniais dessa região tinham em sua maioria índios Guarani.
No entanto os Mbyá não estão elencados nesse processo todo. Mas como Os Mbyá são, de
certa forma, os Guarani atuais, embora não descendentes diretos dos Guarani coloniais,
ficam com a tarefa de manterem viva a cultura, a sua língua e seu modo de ser junto com
uma bagagem histórica que ainda está por ser contada por estes indígenas.
A princípio é preciso situar a instituição escolar no Estado, é preciso entender porque
essa instituição foi criada e para que fins, já que é uma instituição moderna com objetivos
voltados à sociedade ocidental que se instrumentalizava para o desenvolvimento industrial do
que hoje conhecemos como sistema capitalista, sendo que o capitulo I tratará desse tema.
A educação sempre existiu nas suas diferentes formas, mas a escolarização formal é
algo muito mais ligado a homogeneização da sociedade, de um desenvolvimento tecnicista,
onde os indivíduos aprendem de forma fragmentada, elementos que os instrumentalizam para
o trabalho e para a vida citadina, urbana, na fábrica e no seu cotidiano. Dessa forma, também
a catequese utilizada pelos religiosos durante o processo de conquista da América, teve um
caráter disciplinador, e a longa trajetória de ações missionárias sobre os povos indígenas
deixou suas marcas no extrato cultural dessas sociedades.
No capitulo I, também é tratada a questão de como a etnohistória pode contribuir para o
esclarecimento social da categoria índio, pois este não deve ser visto como algo fossilizado
no tempo, mas como um personagem ativo da história e que, como qualquer grupo humano,
vai tendo sua cultura transformada ao longo do tempo, mas sem deixar de identificar-se com
uma cultura diferente de seus “outros”.

22
O capitulo II tenta mostrar um pouco do que é ser Mbyá Guarani para esses povos e
como se manifesta a educação indígena propriamente dita, sendo esta relacionada a visão de
mundo indígena, ao espaço físico ocupado por eles e a sua cosmologia. Neste capítulo a
questão da identidade étnica construída pelo grupo é discutida a luz das teorias sobre
etnicidade e de como esta se relaciona à terra Guarani, ao lugar que esses índios ocupam – ou
não – dentro do espaço geográfico. Porém sem deixar de mencionar que a relação, por vezes
hostil, entre os Mbyá e seus ‘outros”, tem características marcadas pelo contato proveniente
da guerra de conquista, onde estes, como outros grupos indígenas, perderam suas terras.
O próximo capítulo vai tratar da análise dos documentos sobre políticas educacionais
para índios, bem como das relações entre esses povos e os órgãos do Estado a partir do
século XX. Neste bloco, também é tratada a questão da visão que a sociedade brasileira nutre
sobre o indígena, que é fruto da construção histórica de um índio estereotipado e distante da
sociedade.
O capítulo IV, por sua vez, observa a atual situação em que se encontra a instituição
escolar no Brasil e a sua atuação sobre as sociedades indígenas. Aqui a pesquisa de campo
aparece com mais ênfase, pois é onde as falas dos Mbyá prevalecem como fonte informativa.
No entanto é impossível desvincular esse movimento pela escola das ações governamentais e
da presença marcante da identificação étnica que quer ser mostrada pelos índios.
Deve-se ficar atento para a relação que a escola está criando na manifestação da
identidade étnica entre os Mbyá, e como essa relação pode ser fluida, já que a escola aparece
como que contrapondo-se ao “bom modo de ser”, mas ao mesmo tempo é defendida como
um elemento passível de organizar os Mbyá para defender esse seu “modo de ser”. A posição
assumida vai depender do evento em que se encontram esses indígenas e do interlocutor que
fala sobre essa escola.

23
CAPÍTULO I

1.1. CAMINHOS E DESCAMINHOS PARA ESCREVER UMA HISTÓRIA INDÍGENA.

A revisão que vem sendo feita nas políticas indigenistas e na própria história dos
indígenas no Brasil, nas últimas décadas, vem mostrando o quanto esses atores históricos
tem contribuído para se pensar uma nova história do Brasil. Segundo Monteiro (apud
SILVA & GRUPIONI, 1998: 227),

...os historiadores e antropólogos passaram a adotar


como fonte de confiança outros gêneros de discurso
histórico, tais como os mitos e outras narrativas das
tradições orais. O conjunto desses estudos recentes,
enriquecendo o conhecimento do passado das
sociedades que vivenciaram a penetração da expansão
européia, ao mesmo tempo tem obrigado os
antropólogos e historiadores a reverem seus próprios
conceitos e preconceitos.

O autor ressalta que a revisão da história do Brasil e conseqüentemente dos índios no


Brasil, tem levado os próprios pesquisadores a reverem suas análises e teses, pois a idéia de
linearidade que sempre percorreu a história oficial, vem sendo posta a criticas, já que os
índios que deveriam desaparecer do cenário nacional em conseqüência da integração ao
âmbito nacional, que tem muito a ver com a escolarização ministrada para esses povos,
além de outras ações bem mais violentas, não aconteceu, e nem vai acontecer. É sabido que
nos últimos anos, a aparição dos índios na mídia e a compreensão de que eles estão aí para
ficar e tomar nas suas mãos os direitos que lhes cabem nessa sociedade, é indiscutível e se
faz presente nos trabalhos historiográficos das últimas décadas.

24
Porém essa idéia de progresso linear em vigor desde o século XIX, persiste ainda em
nossos dias, mesmo que de forma mais amena, pois há livros de história, principalmente
muitos livros didáticos, onde continua-se acreditando que os povos sem escrita, indígenas,
etc., eram primitivos e que chegariam a civilização moderna pela integração. Caberia aos
Estados direcionar os caminhos para esses povos e levar-lhes a civilização ocidental.
Portanto, era necessário educar indígenas para se adaptarem as normas e regras das
civilizações modernas. Os antropólogos temiam o desaparecimento dos indígenas diante da
“aculturação” (RIBEIRO, 1979). No entanto, como vemos, hoje está mais do que claro que
os índios não vão desaparecer e que suas culturas estão cada vez mais fortalecidas, mesmo
que modificadas pelo contato e pela sua própria história, porém sem deixar de ser indígena.
Procurar construir uma abordagem histórica onde os protagonistas são indígenas se
torna um desafio, já que será imprescindível recorrer aos métodos, teorias e conceitos de
outras disciplinas, como a antropologia e a etnologia, além da história, para desenvolver
uma interpretação pertinente sobre o objeto abordado.
Há de se levar em conta questões particulares do grupo analisado, o que obriga o
historiador a aventurar-se nas questões metodológicas da etnologia. Mas, assim como se
mostra um pouco hostil ao historiador, escrever uma história indígena através de um viés
etnográfico e/ou antropológico é bastante rico, já que trata-se de olhar para outras formas
de fazer história, e outro jeito de pensar sobre a história.
Dentro dessas outras formas, categorias e definições que se encontram no discurso
indígena, o próprio historiador vai definindo um discurso diferente, onde dialoga com
conceitos e teorias, modos de fazer e de pensar que não são próprios da sua disciplina, mas
que estão tão próximos, nas ciências humanas, e que basta uma aproximação maior para
perceber que os ganhos são bastante gratificantes para ambas disciplinas, já que se
debruçam sobre semelhantes objetos.
O uso de recursos diversos, além do documento escrito, leva o historiador a exercer
um papel mais diversificado em sua pesquisa, com o uso de imagens, memórias orais e
observação etnográfica, o que faz com que este pesquisador se abra a um universo de
teorias e métodos que não são comumente encontrados nas pesquisas historiográficas, mas
que estão acessíveis na vizinhança, basta abrir-se ao diálogo e buscar estes recursos para

25
escrever uma história indígena menos engessada no tempo e no espaço, como a que
oficialmente de cristalizou nos livros de história mais clássicos.
E como é possível pensar que não existe uma antítese entre história e estrutura, de
acordo com Sahlins (2003: 180) essas disciplinas não são excludentes, mas ao contrario se
complementam. De acordo com esse autor, a percepção consciente do evento leva a um
reconhecimento deste como algo concreto, e este inserido em categorias preexistentes passa
a ser entendido e historicizado. A história está presente na ação do evento, e isto também
está presente na estrutura do discurso que descreve o evento.
João Pacheco (1999), em um artigo onde aborda a questão dos índios misturados, trata
de um assunto bastante pertinente, onde a aproximação entre antropologia e história é
marcante no entendimento da identidade indígena, entre índios que foram englobados
radicalmente pelas frentes coloniais e que por isso encontram-se, atualmente, dentro de uma
categoria em muito preconceituosa e deslegitimadora da sua indianidade, que é a de “índios
misturados” ou negativamente aculturados.
O autor citado se propõe a discutir a questão dos índios do nordeste, mas essa situação
também é reconhecida no sudeste, centro - oeste e sul do país.
A idéia de enfocar exclusivamente a região amazônica como área primordial das
sociedades indígenas, já que lá se encontrariam os índios “puros”, é equivocada, mas para o
senso comum essa é a realidade, por isso tem sido dada pouca atenção aos índios do
nordeste e demais regiões que possuem situação semelhante.
No entanto, não é apenas o senso comum que ignora as particularidades e história dos
índios ditos “misturados”, mas os próprios pesquisadores mais antigos também os
deixavam em segundo plano, já que a sua indianidade seria controversa, e estes já estariam
num alto grau de integração não podendo ser vistos como estatuas do passado, tendo a sua
cultura se perdido no processo do contato. Então não poderiam contribuir devidamente aos
estudos etnográficos clássicos.
Segundo João Pacheco de Oliveira Filho (1999: 99), existe um certo preconceito entre
os pesquisadores, e ele diz que

para a perspectiva dos estudos americanistas, no


entanto, freqüentemente a pesquisa e a reflexão sobre as
sociedades marcadas por processos históricos de
mudança e por mecanismos de transferência, dominação

26
e integração sociocultural não oferecem, em geral,
muito interesse ou rentabilidade teórica.

É então aí que precisamos unir forças entre história e antropologia para que os estudos
dessas unidades sociais tenham seu lugar no tempo e no espaço, e se possa investigar os
processos políticos e socioculturais por onde passaram essas sociedades. E em que medida
a construção de uma identidade étnica foi se desenhando dentro desse atribulado processo
de conquista e perda de territórios e de domínios culturais. Esses “índios misturados” tem-
se mostrado um campo bastante fértil para estudos etnohistóricos.
O autor alerta para a desmistificação da procura do exótico como fonte etnográfica, e
busca dar atenção aos potenciais de pesquisa entre esses povos, onde se possa trabalhar
com vários conceitos e teorias intercambiados entre as disciplinas que congregam as
ciências humanas. Para isso um certo número de pesquisadores tem se debruçado sobre o
assunto e de suas pesquisas vêm surgindo um diálogo mais amplo na área de etnohistória,
que abre o leque de conhecimentos dando assim mais visibilidade aos movimentos étnicos
indígenas que estão fora dos padrões amazônicos.
Sua contribuição à discussão do assunto aborda idéias básicas e simples, mas que
podem muito contribuir para o aprofundamento da temática e para a construção de novos
conceitos e teorias possíveis de serem aplicados a uma realidade social que vem se
apresentando cada vez com mais força aos pesquisadores.
Nos estudos das sociedades indígenas do sul do país, a questão da mistura é bastante
corriqueira entre os historiadores mais clássicos, que se perguntam até onde estes povos são
indígenas de verdade, já que a situação em que se encontram é semelhante ao que acontece
aos índios do Nordeste e o processo de conquista e colonização do território também é
antigo e já se consolidou a muito tempo.
Esse tipo de discussão já é tão antigo quanto a colonização européia, mas ainda traz a
mesa muito preconceito e desconhecimento a respeito dessas populações, pois não
considera a identidade étnica desses grupos como algo em permanente construção e
continua buscando os índios fósseis do passado. Esse tipo de atitude só vem endossar os
velhos preconceitos e as tão fadadas leis de tutela, onde os indígenas são vistos como
indivíduos inferiores dentro da sociedade brasileira. Questões como essa estão marcadas na
política indigenista, e nas atitudes daqueles que manipulam essa política, como é o caso do

27
órgão responsável pelos indígenas no Brasil – FUNAI – que em muitas ocasiões trouxe a
discussão da participação ou não de indivíduos índios em determinados setores sociais, já
que este estaria “integrado” e não seria mais um “indígena”18.
Em primeiro lugar, João Pacheco nos alerta para o rompimento dos preconceitos, já
que como nos mostra Bachelard (1970: 22 apud OLIVEIRA FILHO, 1999: 102):
Quando ele se apresenta à cultura cientifica, o espírito
não é jamais jovem. Ele é de fato muito velho, pois tem
a idade de seus preconceitos. Ter acesso a ciência é
intelectualmente rejuvenescer, aceitar uma mutação
brusca que deve contradizer um passado.

Pois é comum se ver em pesquisas atuais o uso dos velhos jargões científicos,
carregados por conceitos novos, novas idéias e temas, mas que trazem no seu âmago as
velhas idéias e teorias sobre o fazer etnográfico e histórico. O que o autor alerta aqui, é para
que não sobrecarreguemos nossos trabalhos com esses modelos científicos, perdendo
muitas vezes, o fio condutor que nos levou a debruçarmo-nos sobre esses povos e suas
sociedades na atualidade e acabemos por criar um indígena idílico e distante da realidade
então presenciada.
Para romper essas barreiras teóricas, em primeiro lugar, deve-se fazer um exame
critico das teorias existentes, e a partir daí pensar numa área nova do conhecimento, como é
o caso da temática sobre os “índios misturados” – que pode ser chamada de antropologia
dos “índios misturados”. Dentro dessa lógica, há de pensar também em como as teorias e
conceitos da história poderão contribuir nesses estudos, já que se trata de um contexto em
que essas populações participaram de um processo de contato intenso, e mesmo sem
deixarem de “ser índios”, foram vendo suas sociedade e sua cultura sendo modificadas por
elementos contrastantes e assimilando novas formas culturais, muitas vezes atribuídas aos
caboclos e sertanejos, que convivem no mesmo espaço geográfico.
É preciso ficar atento aos discursos de cada pesquisador, pois estes não realizam
pesquisas homogêneas, nem tampouco, é possível aplicar um questionário e ter em minutos

18
Ver CUNHA, Manuela Carneiro da. Critérios de indianidade ou lições de antropofagia. In: Antropologia
do Brasil: mito, historia e etnicidade. São Paulo: Brasiliense: 1987: 109 – 112. Onde ela trata das questões
discutidas na década de 1980, sobre a emancipação de índios, que ficavam então destituídos dos direitos
indígenas e muitas vezes impedidos de atuarem em suas próprias comunidades, pelo órgão gerenciador desses
direitos, que é a FUNAI.

28
uma etnografia perfeita, ou fichar os documentos selecionados e ter uma análise geral do
objeto estudado. A pesquisa requer tempo, dedicação, e olhar clínico. Tal afirmação se
fundamenta em que cada período histórico tem seu próprio olhar sobre os acontecimentos, e
isto vai se refletir nas pesquisas anteriores, bem como nos documentos elaborados para
diferentes fins. Há de se ter em mente que nós próprios fazemos recortes e selecionamos o
que vamos escrever, então há de se fazer uma adequação às teorias vigentes, a fim de
conformar o conhecimento produzido, já que este não deve ser isolado.
Mas que deve ficar claro que os pesquisadores não são neutros ao escreverem, bem
como não é possível adequar tudo ao um modelo, este em geral não consegue dar vazão a
todo tipo de situação vivenciada.
Conforme nos coloca João Pacheco (1999:104 – 105), deve-se perguntar:

Será que para fazer etnohistória bastaria comparar esses


relatos, construindo uma trajetória imaginária entre
esses pontos, narrando naufrágios e navegações
triunfais, indicando causas (ou apenas levantando
hipóteses)? Ou seja, com base em registros tomados
como “protocientíficos”, o trabalho do analista seria
apenas o de transformar o descontinuo em continuo, e o
concebido em verossímil?

Pacheco de Oliveira (1999), então chama a atenção para o fato de que se assim for a
etnohistória se tornaria uma terra de ninguém, onde não se levariam em conta as rigorosas
críticas as fontes realizadas pelos historiadores, nem as contextualizações sociais de relatos
e interpretações feitas pelos antropólogos. Essa seria uma forma equivocada de fazer
pesquisas com essas populações indígenas, já que a crítica deve ser feita sobre a
observação, bem como deve ser levado em conta o processo histórico pelo qual passou o
grupo. Não se deve olhar de forma sincrônica para essas sociedades, elas passaram por
processos de mudança cultural no tempo, mas nada se preserva intacto, então para esse tipo
de pesquisa devem ser aplicados novos métodos, próprios para uma análise de grupos
“misturados”, que conservam sua indianidade, junto a todos os outros atributos culturais e
sociais em que estão inseridos.
Conforme Sahlins (2003: 184), as experiências humanas são traduzidas pelo
discurso de quem escreve, e “os objetos são mais particulares enquanto emblemas em um

29
espaço – tempo específico do que os signos, enquanto categorias ou classes conceituais ... é
impossível esgotar a descrição de qualquer objeto”.
Dessa forma podemos dizer que não há como absorver a totalidade e as
particularidades dos objetos, já que o sistema é arbitrário e é assim porque é histórico.
Estes não são grupos em que se possa procurar elementos chamados “tradicionais”,
como se estes estivessem congelados no passado, é o que George Stocking Jr. (apud
OLIVEIRA FILHO, 1999) chama de “vício do presentismo”, que é a busca do passado no
presente. Estes índios que conhecemos hoje, e não só os do nordeste, não existiram no
passado, eles existem hoje. Os do passado lá ficaram e vão permanecer, como antepassados
dos atuais, mas não como iguais. Este é o tipo de situação que muitas vezes se apresenta em
juízo, quando da disputa de terras, ou qualquer outra reivindicação legal, em que
legisladores e antropólogos entram em conflito na questão dos direitos tradicionais dessas
populações, já que o antropólogo tenta fazer os juizes entenderem que os índios mudaram,
mas não seus direitos a serem tratados como indígenas e os juizes insistem na busca do
passado como base para atender as demandas indígenas.
As manifestações públicas dessas identidades são bastante recentes, outras recaem no
século XVI e XVII, e essas são características comuns nesses processos, pois essas
populações estão se reestruturando permanentemente. As categorias são sempre criadas e se
transformam conforme o discurso que vão representar. De acordo com Sahlins (2003), as
alterações se dão cada vez mais quando se pensa que as coisas continuam iguais. Surgem,
então, novas categorias que asseguram a reprodução da cultura e a elas é dado um novo
conteúdo, que reifica as permanências, assimilando a novidade e integrando esta às
categorias já existentes. As categorias tradicionais são transformadas pela razão de quem as
observa.
Não é incomum classificar essas novas identidades como “emergentes” ou chamar o
fenômeno de “etnogênese”19, caracterizando processos socioculturais mais atuais, onde
foram realizadas descrições históricas densas. Mas isto não implica que os trabalhos mais
antigos pudessem marcar identidades étnicas como um fenômeno mais natural ou

19
“...el momento de ‘cristalización’ de la cultura autónoma como un punto histórico en el que también se
organiza plenamente el grupo y se define com toda precisión la identidad étnica. Em los pueblos colonizados,
esse momento pertenece al pasado. Sin embargo, el momento de ‘cristalización’ no es solo origen de un
proceso histórico sino también resultado de outro: el proceso de etnogénesis”. (BONFIL – BATALLA, 1986:
40)

30
espontâneo, como se confinassem a origem dos tempos. Todas essas classificações são
discursos que atendem as suas épocas e seus métodos. Toda história é um discurso sobre
alguma coisa, esta não dá as certezas, apenas o caminho escolhido para ser descrito e
contado.
Esse tipo de análise pode criar contradições dentro da pesquisa com essas identidades
emergentes, já que se não for bem entendida acaba levando a uma discriminação em
relação a essas populações, que coloca a sua legitimidade em suspeita, principalmente
dentro da opinião pública. Mas, a própria academia, que trabalha dentro de modelos
teóricos, vê dificuldade em especificar tais identidades, pois acaba compartimentando o
conhecimento de forma a seguir os modelos de conhecimento, então não se coloca em
cheque seus métodos e não se escutam os “silêncios” da etnologia, e nem os da história.
Dessa forma, fica impossibilitado pensar uma outra história indígena, que não as já
estudadas.
Daí surgindo a problemática de mostrar que a importância da terra para essas
sociedades está muito mais relacionada aos seus usos e costumes do que a uma antiguidade
histórica. Não é possível demarcar áreas que não tenham condições de sustento à esses
povos, mas também não se pode negligenciar as relações culturais e cosmológicas que
regem a reivindicação da área como terra indígena.
A legislação que rege a noção de território indígena é uma elaboração dos
“brancos”20, e mantém as prerrogativas que foram estipuladas a princípio para a
demarcação da área do Xingu, ainda em tempos do SPI. Nessa perspectiva fica difícil
incluir as terras indígenas destinadas aos “índios misturados”, já que estes fogem ao padrão
xinguano, bem como estão inseridos em áreas altamente povoadas por populações
coloniais. Dessa forma, as áreas são menores e muito diferentes da proposta estipulada pela
Constituição de 1988, que manteve o mesmo padrão da Emenda Constitucional de 1969.
O SPI não tinha nenhuma preocupação em fazer uma conexão entre território e cultura
indígenas, já que atendia a demanda de dar assistência a essas populações até que a

20
Ver RIOS, Aurélio Veiga. Terras indígenas no Brasil: definição, reconhecimento e novas formas de
aquisição. In: SOUZA LIMA, A. &BARROSO –HOFFMANN, M. (org.). Além da tutela: bases para uma
nova política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / LACED, 2002: 63 – 81. Neste estudo
encontra-se um levantamento histórico em torno da legislação sobre terras indígenas desde o período
colonial, mostrando que os interesses europeus iniciais firmaram a política indigenista que prevalece até hoje
como sendo uma elaboração arbitraria dos “brancos”.

31
integração fosse concluída. Este servia como um mediador nas questões de fronteira
econômica e povos indígenas, tentando amenizar os embates entre brancos e índios, mas
sem questionar os direitos a terra indígena, já que está deveria servir aos propósitos dos
brancos, ficando os índios com o direito a proteção assistencialista. Esta terra então deveria
ser distante das áreas de conglomeração populacional dos brancos, a fim de preservar o
índio, e não despertar interesse econômico para as frentes colonizadoras, e por último ser
aceita pelos indígenas. A FUNAI, quando implantada, não teve uma postura diferente, pois
a intenção de integrar os grupos à sociedade nacional permanecia, então o que existia era
um índio genérico, não eram ressaltadas as diferenças étnicas como algo relevante.
Com essa postura o SPI chegou a dar assistência aos povos com alto grau de contato,
porém aí sua ação era muito mais voltada a reparar os danos do contato e considerar esses
indígenas como integrados, porém mal integrados a sociedade, já que se encontravam em
situação precária, mostrando uma pobreza extrema, muita dependência e degradação social,
devido ao contato e a exclusão da sociedade em que viviam esses indivíduos.
A ação do SPI se voltava então em encaminhar famílias indígenas para glebas onde
pudessem desenvolver atividades de subsistência, quase transformando o índio num
pequeno agricultor. Não levando em conta a sua identidade étnica, mas sim a sua condição
de indígena. Dessa forma, não considerando sua relação cultural com o espaço geográfico
destinado a sua habitação.
Para essas etnias a sobrevivência se deu de duas formas: uma foi recuar enquanto
houvesse áreas disponíveis para abrigar esses povos; outra foi agregando-se a sociedade
emergente na forma de mão de obra desqualificada.
Ambas as formas foram paliativas a uma desintegração cultural, e esta cultura se
manteve fragmentada e redimensionada dentro das comunidades que abrigam povos
indígenas. Muitos desses índios se confundem com os caboclos e sertanejos locais,
inclusive no manejo cultural, já que muitos hábitos se confundiram entre índios e brancos
ao logo do tempo. E não só os hábitos se fundiram como a mestiçagem também é um fato,
que muitas vezes só mostra a diferença entre índios e brancos, na identificação étnica de
cada grupo.
Então, como vemos, não há território indígena nessas áreas de fronteira de expansão
antigas, o que há são índios históricos, que se reafirmam hoje como descendentes, mas que

32
não possuem áreas preservadas para serem demarcadas conforme a legislação vigente. A lei
não prevê esse tipo de indianidade, então acaba tendo que abrir brechas para a adequação
de tais situações, que em geral levam a muita discussão jurídica e de opinião pública a fim
de redimensionar a imagem que se tem do índio, e suas demandas atuais.
A Constituição de 1988 prevê que a terra indígena é aquela ocupada tradicionalmente
pelo grupo de modo estável e que nela se exerçam atividades segundo os “usos e costumes”
do grupo. Então se torna possível fazer uma identificação através do trabalho de campo e
dos processos históricos que levaram aqueles indígenas a ocuparem determinada área e se
apropriarem daquele território.
Neste ponto, é preciso chamar a atenção para mais um fator que envolve o fazer
história indígena, pois o historiador terá que lidar também com questões legais, de domínio
do Direito, além das práticas a que está acostumado, já que terá de analisar a própria
legislação e por em acordo, ou desacordo, com as práticas históricas e etnográficas, pelas
quais estão passando os indivíduos em questão, no caso os grupos indígenas que
reivindicam um território ou uma escola em sua aldeia.
João Pacheco de Oliveira (1999) recomenda aos antropólogos e historiadores buscar
entender os povos indígenas como eles se reconhecem hoje, e não ficar preso a busca de
elementos puros, de uma cultura originária, isentos da mácula do contato com as
instituições ocidentais. Isso é impossível de se ter. Em primeiro lugar nenhuma cultura é
totalmente estável e intocada, já que se constrói dentro do grupo social e se adapta a
situações diferenciadas e aos contatos com outros grupos. Em segundo lugar, dentro do
próprio grupo há culturas e formas simbólicas entendidas de maneiras diferentes pelas
diferentes camadas sociais. Então buscar uma cultura original é sonho, pois existem várias
culturas numa sociedade.
Voltando novamente ao que nos diz Marshal Sahlins (2003), em relação aos sujeitos
que atuam no evento, conforme seu sistema simbólico (signos) surgiram diferentes
interesses e sentidos para cada indivíduo, sendo que interesse e sentido são dois lados da
mesma coisa, mas o interesse não é igual ao sentido.
Os valores ao signo são dados pelo sujeito, que podem divergir de seu valor
convencional, e atuam de acordo com a ação da inteligência e consciência humanas. Dessa
forma, os poderes criativos não ficam suspensos, pois as pessoas têm uma cultura e sabem

33
identificar os valores de seu interesse, assim os signos são envolvidos em operações lógicas
e intencionais.
Essas culturas são intercambiáveis e podem envolver exclusão e conflito, bem como
indiferenças e ambigüidades. Não necessariamente vão coexistir com as sociedades
nacionais, mas podem se fazer valer dentro das normas dessas sociedades, fazendo valer a
sua condição de étnico, não que isso implique o ser étnico o tempo todo.
Essa variedade cultural leva a se pensar num trabalho onde haja processos de
circulação de significações, onde Barth (apud OLIVEIRA FILHO, 1999: 113) chega a falar
em “circulação das tradições culturais dentro ou através de diferentes unidades sociais”.
Hannerz (1996 apud OLIVEIRA FILHO, 1999: 100) fala em fluxos culturais, onde
enfatiza o caráter não estrutural, dinâmico e virtual que constitui a cultura.
Daí que Pacheco de Oliveira (1999) entra nas questões dos documentos etnográficos
produzidos pelos colonizadores europeus, que não tinham um caráter de entendimento do
outro, mas sim da descrição do exótico. Mas, como eles teriam outro tipo de visão
antropológica, já que a disciplina estava em vias de consolidar-se exatamente por que se
encontrava diante do impacto de uma expansão colonial que colocou dois mundos em
choque.
Esses documentos trazem a visão de uma época, um discurso do europeu sobre o índio
que ele interpreta com a visão de mundo do século XVII, por exemplo. Como Sahlins
(2003) salienta, a classificação é uma condição da ação simbólica e tanto o nativo quanto o
estrangeiro vai incluir os eventos em seu esquema classificatório e elaborar um discurso
sobre ele, tornando-o inteligível dentro da sua categorização simbólica.
Há de se ter em mente que o conhecimento cientifico também é algo datado, ele
possui épocas históricas e nelas age de acordo com os conceitos e teorias vigentes e
conhecidos dos cientistas. Na época dos contatos a antropologia se consolidava como
disciplina e buscava isolar-se das outras ciências sociais, afirmando que seu objeto era o
nativo, longe da situação colonial. E temos também a visão da Igreja, que é muito presente
nos relatos históricos sobre os nativos, e esta tem influência direta na idealização do índio
cordial ou bravio, porém dependente.
Dessa forma o que foi criado era um nativo idealizado, com uma cultura imaginada,
sem máculas e sem interferências européias. Em realidade era um exercício de abstração do

34
pesquisador. Essas práticas podem atuar como testemunho da profundidade em que se
encontrou o pesquisador em seu trabalho etnográfico, bem como funcionam como
atenuantes da culpa, já que fossilizam o nativo e silenciam sobre o processo colonizador e a
desestruturação cultural que a seguiu. É uma forma de mostrar a neutralidade do cientista
diante do objeto, mas acaba por esconder sua cumplicidade junto ao senso comum.
Esse tipo de produção científica se deu em toda a América, porém nas populações não
andinas o descompasso é ainda maior. No Brasil houve a busca de um resgate cultural,
como se as culturas indígenas tivessem todas sido raptadas, e bastava reencontra-las para
recompor as sociedades indígenas tal qual foram antes do contato. Para isso foram
incentivados pelos pesquisadores à produção da cultura material e de rituais tradicionais
perdidos para que as culturas indígenas fossem então descritas como originais.
Muitos equívocos foram cometidos e o medo da desaparição das sociedades indígenas
transparecia nos relatos dramáticos dos pesquisadores, sobretudo entre o final da década de
1960 e início de 1980, que percebiam a situação real em que se encontravam essas
populações. Daí começarem a surgir novos conceitos e teorias a respeito dos
questionamentos feitos pelos antropólogos, que insatisfeitos com as noções de cultura
vigentes buscavam saídas para o ofício do etnógrafo, que acabaria desaparecendo junto
com os índios. Eis que então a etnografia se vê envolvida em outros parâmetros que não a
busca do índio idílico, porém o senso comum permanece idealizando a imagem do índio.
Essa imagem idealizada é muitas vezes acionada na defesa dos direitos indígenas,
porém ela pode se voltar contra esses direitos, quando a questão trata de “índios
misturados”, já que pode ser levantada a suspeita de que haja manipulações de identidade
para beneficiar determinados grupos. Dessa representação idealizada podem surgir muitos
efeitos negativos sobre o grupo indígena em questão, ressaltando preconceitos, que levam a
acreditar numa primitividade latente nesses povos e quando estes não apresentam tais traços
morais e sociais passam a ser negativamente classificados de impuros, aculturados, etc.,
deixando então de ter direitos como indígenas.
O que deve ser feito é levantar questões sobre o conceito de aculturação, já que este
é bastante impreciso e genérico. O que quer dizer aculturado? Sem cultura? Mas nenhum
povo existe “sem cultura”, esta pode ser modificada ao longo do tempo e isso não é
nenhuma anomalia, mas a cultura existe.

35
Outra questão é a representação idealizada do índio como ser primitivo, que leva a
crer num individuo estagnado no tempo. Essa imagem vem de encontro com os modelos
científicos mais tradicionais ou clássicos, de um índio fóssil, que não muda nunca, e pode
ser encontrado desde os tempos imemoriais em seu habitat natural. Deve-se recusar esses
modelos e apontar para novas dimensões sobre a legitimidade das culturas indígenas, que
não são paradas no tempo, mas ao contrario bastante dinâmicas. Estas vivem sendo
ressemantizadas e como já foi dito antes, não se trata de uma cultura, mas de varias formas
de culturas que se manifestam dentro de uma sociedade, de acordo com o grupo social.
As mudanças culturais decorrentes do tempo em que estão em contato com outras
culturas, bem como de seu próprio tempo histórico não invalidam as identidades indígenas,
e ao contrário os direitos indígenas não são decorrentes da primitividade ou pureza do
grupo, mas sim da sua descendência reconhecida pelo Estado, como povos autóctones.
Sociedade indígena é uma categoria jurídica e é assim que deve ser tratada, não é através da
denominação de pureza cultural, ou de povos e nações originais que serão tratados os
assuntos indígenas quanto aos seus direitos e nem é assim que deve ser escrita a história
sobre os índios.
Mais uma vez é importante chamar a atenção para os cuidados que se tem de ter em
relação às simplificações analíticas em relação a esses povos, bem como o fato de se ter de
levar em conta a história do contato e suas singularidades para cada sociedade envolvida. E
por último fazer uma reflexão sobre as possibilidades de trabalho que se tem pela frente
usando novos modelos teórico-interpretativos, que balizariam outros estudos sobre povos
indígenas e abririam o leque de conhecimentos sobre essas populações em seus diferentes
espaços geográficos e modelos sociais adaptados.

1.2. DA HISTÓRIA INDIGENA PARA UM OLHAR SOBRE INSTITUIÇÕES


DISCIPLINADORAS DO ESTADO MODERNO E SUAS IMPLICAÇÕES NO MODELO
ESCOLAR.

Ao analisar as instituições de Estado, como escolas, hospitais e prisões, por exemplo,


dentro da visão weberiana, observou-se que essas instituições têm um caráter disciplinador

36
dos indivíduos, que se modelam a partir da ordem imposta por estas, adequando-se ao
modelo da sociedade ocidental, conforme suas normas e regimes.
Conforme afirma o próprio Weber ([1922]1994 p. 139):

...nenhuma dominação contenta-se voluntariamente com


motivos puramente materiais ou afetivos ou racionais
referentes a valores, como possibilidades de sua
persistência. Todos procuram despertar e cultivar a crença
em sua ´legitimidade´

O que consiste em dizer que as normas e regimes das instituições disciplinadoras são
legitimas, já que reconhecidas e aceitas pela sociedade que as comporta.
Esse é o caráter moderno da disciplina, pois em sua forma tradicional a sociedade não
deixava de ser disciplinada, porém essa disciplina era regulamentada pelo caráter pessoal do
senhor ou de um rei, e não de uma sociedade, ou seja, o indivíduo seguia regras pré –
estabelecidas por um poder superior, no entanto essas regras não faziam parte de um quadro
administrativo “legítimo”, se fossem infringidas, não era a sociedade que seria lesada como
um todo, mas a pessoa do rei ou do senhor local.
Foucault (1999) avalia a trajetória das instituições penais e os tipos de penalidades
impostas dentre os séculos XVII, XVIII e XIX, observando as mudanças ocorridas nos
sistemas punitivos, jurídicos e disciplinares, dos mecanismos da justiça criminal, desde
quando ele era imposto como uma vingança do rei até quando os códigos jurídicos passam a
fazer parte do sistema administrativo de um Estado.
É então que se tem a modernidade dos mecanismos de justiça criminal, que aos poucos
vão se distanciando dos suplícios em praça pública, onde o corpo do condenado era ao
mesmo tempo o elemento punitivo do próprio condenado, que sofria física e violentamente
até a morte, e o alerta ao povo que assistia a cena brutal do suplício como participante
passivo do espetáculo, onde o poder do rei ou senhor se fazia sentir e reafirmava-se.
Com a modernização dos códigos jurídicos, o corpo do condenado vai se transformando
em algo mais distante do olhar da sociedade, vai sendo enclausurado e submetido a disciplina
pré – estabelecida da sociedade moderna, começam a ser respeitadas hierarquias oficiais e
não mais a pessoa do rei será responsável pelo ato de punir, mas leis, códigos que obedecem
a normas jurídicas racionais.

37
Da mesma forma, podemos pensar as escolas que, de acordo com Foucault, surgem
como elementos doutrinadores da sociedade industrial que se iniciava no século XVIII. Essa
escola moderna vai se apresentar à população em geral, que passa a ter acesso a essas
instituições de ensino, que antes eram reservadas a uma elite clerical ou nobre, e terá um
caráter específico: regular e ordenar os indivíduos que irão caracterizar as classes operárias
européias. Esses indivíduos iriam aprender a “comportar-se devidamente” na escola,
conforme os moldes da sociedade vigente, aprendendo a obedecer ordens, e a seguir os
padrões morais e culturais dessa classe dominante, mesmo que sabendo seu papel na
sociedade, ou seja, se o aluno fosse filho de um operário, seguiria os passos do pai, se fosse
da elite, idem, sendo as escolas para a classe operaria àquelas destinadas a educar o individuo
para o trabalho na fábrica.
O modelo escolar e carcerário, bem como o modelo militar, podem ser vistos como
muito semelhantes, já que têm o mesmo berço, mas também aí veremos o desenvolvimento
da resistência que começa a transgredir esses modelos e essa resistência pode ser vista como
um aspecto político bastante antigo se pensarmos na Idade Média.

A partir do direito de resistir à perseguição de um tirano,


o qual se fundamentava na idéia de um contrato entre
governante e governados, o desenvolvimento levaria à
afirmação do direito do indivíduo á liberdade de
consciência. Assim, a liberdade de consciência constitui o
primeiro, cronologicamente, de todos os aspectos da
liberdade política e a raiz de todos os demais.
(DUMONT, 1989 p. 85 – 86).

Percebe-se que vai se rompendo, com a modernização do Estado e sua conseqüente


institucionalização, a hegemonia da Igreja Católica e o poder divino dos reis vai se
desarticulando, podendo a partir daí o governante ser visto como um homem, um indivíduo
igual aos outros membros da sociedade, embora dentro de uma hierarquia onde ocupa o cargo
superior, porém submetido às leis institucionais, e respeitante das instâncias hierárquicas que
lhe seguem.
A sociedade do indivíduo reina acima da sociedade holística, subordinada a leis
empíricas, reconhecidas pelos membros dessa sociedade. Ganha-se a consciência e perde-se a
realidade, pois esses grupos de indivíduos só ganham existência como grupo enquanto

38
estiverem sob a autoridade de um chefe, que os regulamentará não mais sob sua vontade, mas
sob leis de Estado. (DUMONT, 1989 p. 93)
É o modelo de dominação legal ressaltado por Weber, e que Foucault (1999: 125)
observa nas instituições do Estado, na disciplina, onde

os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define


pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o
separa dos outros. A unidade não é portanto nem o
território (unidade de dominação), nem o local (unidade
de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém
ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma
linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos
que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte
de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos
arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização
que não os implanta, mas os distribui e os faz circular
numa rede de relações.

É a disciplina do trabalho na fábrica, onde os operários cumprem horários, obedecem


aos superiores e possuem seus lugares pré – determinados a fim de cumprirem suas tarefas
sob uma disciplina regular, não como um trabalho voluntário, mas como um trabalho
compulsivo, onde há interesses em ambos os lados; na escola, onde os alunos também
obedecem as regras e a hierarquia da instituição, ficando vetado as insubordinações, sob risco
de punições, que podem ser a expulsão do indivíduo daquele meio social institucional; nos
hospitais, onde cada paciente tem uma ficha de registro e um número que o fará ser
encontrado nas recepções, quando necessário; das prisões, onde os condenados cumprem
suas penas sob tempo determinado e com horário marcado para trabalhar, para acordar e
dormir; a disciplina do exército, e dos monastérios em que os homens se submetem a
obrigações acima da vontade humana, enfim é a disciplina que regula a vida dos indivíduos,
estejam eles aonde estiverem. Até mesmo no seio da família há regras, horários, hierarquias a
serem respeitadas. Família esta que segundo Chaunu (1976: 129), entre o século XIV e XIX,
vai se tornando mais sólida e estável com os casamentos mais tardios e de livre escolha dos
parceiros, e a formação de comunidades administrativas, de trabalho e comunidade religiosa.
O tempo passa a ser medido e a ser pago, qualificando o trabalho do homem como algo
lucrativo, os produtos do seu trabalho passam a ser de ordem secundária, passam a fazer parte
de um sistema de produção capitalista, saem das mãos do artesão e passam às mãos do

39
operário, que é subordinado a um patrão. Aqui se vê a disciplina imposta ao operário,
exigindo dele o cumprimento de tarefas, a qualidade do serviço e a rapidez no seu
desenvolvimento, que deve seguir horários pré – determinados sob o controle dos relógios.
(FOUCAULT, 1999 p. 129 – 131) Os relógios, esses instrumentos criados a partir do século
XIV, numa Europa que se encontrava em princípios de uma modificação econômica, social e
política de grandes dimensões, vão regular o tempo, deixando o homem senhor do tempo
orgânico, criando a utilização comercial do tempo, transformando o tempo em dinheiro e
classificando-o dentro do sistema capitalista que então emergiria. (LE GOFF, 1993 p. 69 –
73)
Na escola o tempo também é medido e controlado, o período de aula é até nossos dias
respeitado, sendo dividido o conhecimento em pedaços, ou seja, em “disciplinas”, que serão
ministradas por mestres cumpridores desse tempo e de seus “pedaços” de conhecimento.
Mesmo nos dias atuais se torna impossível romper com as regras originais da escola, esta
continua cumprindo seu papel doutrinador quando regula os horários de atendimento aos
alunos, quando fecha-os em salas de aula, ou numa biblioteca onde a regra é o silêncio, e
onde seus saberes não são reconhecidos como elementos importantes de sua formação
(FREIRE, 1992).
A sociedade ocidental e sua disciplina controladora dos atos humanos, dos
pensamentos, das vontades. A dominação que faz parte do dia a dia de qualquer pessoa que
se enquadra nessa sociedade, pois aqueles que se desviam dela são marginalizados e muitas
vezes levados á alguma instituição reformadora a fim de remodelar o ser humano de acordo
com as regras vigentes.
Os monges desde muito tempo possuem a disciplina reguladora e foi baseada nela que o
Estado passa a enquadrar o cidadão numa ordem disciplinar rígida. Os militares são
subordinados a essas duras regras, que moldam o corpo do indivíduo e dominam a mente.
Corpo forte, resistente, saudável; mente obediente, subordinada, resignada. (FOUCAULT,
1999 p. 117 – 118)
Na escola as crianças aprendem a disciplina; a subordinação ao superior, a obediência, o
lugar marcado, a higiene, etc. Criam-se as modalidades do corpo social, e as regras são
distintas para as diferentes categorias desse corpo social. Cabe aqui fazer alusão as distinções
de classe, onde os indivíduos são classificados e disciplinados dentro das suas categorias,

40
aprendendo as regras e assimilando-as, para reproduzirem-nas ao longo de suas vidas, no
decorrer de suas atividades como indivíduos. (FOUCAULT, 1999 p. 126 – 130)
Desde que surge o Estado enquanto instituição desvinculada do poder pessoal de um
senhor ou rei surge a afirmação de que não existe uma lei natural, nem instituições, pois o
que existem são classificações criadas pelo próprio homem e a organização do mundo ao seu
redor, sendo essas categorias, criações de inspiração divina, fabricadas pelo homem,
existindo portanto o indivíduo. (DUMONT, 1989 p. 86 – 87) Essa é claro, uma tese
protestante da burocratização da sociedade, no entanto é um pensamento moderno, onde
vigora o individualismo e não o sentido holístico do social.
A partir de um pensamento concreto a respeito da administração social e da disciplina
aplicada, passa-se a se ter uma dominação não mais num sentido escravocrata ou servilista,
mas num sentido de vontade de obedecer, há um interesse na obediência, e isso que Weber
([1922] 1999: 188 – 191) ressalta: não há razão para o corpo social se contrapor a uma
disciplina que lhe é reconhecível como justa e fazendo parte integrante da sociedade. É essa
disciplina e seu corpo burocrático que faz o Estado funcionar, pois a dominação só existe
diante de uma administração, a qual fará funcionar o sistema através de uma organização.
Nesse quadro de dominação através da disciplina imposta pelo Estado, vê-se o corpo social
subordinado a essas leis empíricas, não há nada de material que lhes faça obedecer, não é
preciso partir para a violência, nem ameaçar de morte aqueles que fugirem as regras, pois o
corpo social se subordina, se adapta e sustenta a disciplina, que ele mesmo reproduz. Talvez
seja uma relação dialética, a criação de regras abstratas, reconhecíveis no patamar simbólico
de uma sociedade, e que vão regulamentar essa própria sociedade, através de instrumentos
burocráticos manipulados por indivíduos dessa sociedade, direcionados para esse fim.
Ao contrário das sociedades tradicionais, onde os próprios elementos regulares
simbólicos fazem parte da realidade mítica do corpo social como um todo, e daí se um
indivíduo interrompe as regras, rompe-se a estabilidade da coletividade e não apenas do
indivíduo. Como, por exemplo, quando um condenado, no século XVII ou XVIII, era levado
à praça para ser supliciado, todo o corpo social participava do suplicio e ao mesmo tempo era
penalizado com ele, já que esse ato era um elemento reafirmador do poder superior da pessoa
do rei. Aquele corpo supliciado então fazia parte de uma punição coletiva e um aviso ao
corpo social da magnanimidade do poder real.

41
Outro exemplo interessante é o poder dos “coronéis”, no Brasil da República Velha, em
pleno século XX, em que Faoro (2000: 253 – 254) descreve como:

O coronel municipal, delegado do governo estadual –


delegado sem vinculo hierárquico, insista-se, e no
exercício de funções com patrimônio próprio -, subordina
a si diversos subcoronéis, aos quais comanda e dos quais
é dependente. O coronel tem capangas, elementos sem
vontade própria, como os têm os subcoronéis. Entre os
coronéis e os subcoronéis, bem como entre os dois e os
não dependentes imediatos há um laço de amizade, que
atenua e ameniza a subordinação. Em regra o compadrio
une os aderentes ao chefe, chefe enquanto goza da
confiança do grupo dirigente estadual e enquanto presta
favores, com o domínio do mecanismo policial, muitas
vezes do promotor publico, não raro expresso na boa
vontade do juiz de direito.

Nota-se que o modelo tradicional vinculado ao poder dos “coronéis” comandava a


justiça local, que subordinava-se a autoridade pessoal do “coronel”, que nada mais era do que
um grande proprietário de terras, detentor de poder econômico e político a nível regional.
Dentro do modelo da sociedade moderna, esse “coronel” destoa completamente, no entanto é
preciso salientar que esse modelo, embora amplo, não pode ser visto como hegemônico nas
sociedades ocidentais, já que as localidades continuam existindo até os dias atuais. Esse
modelo tradicional é bastante semelhante ao modelo medieval, onde um senhor e seus
vassalos dirigiam as regiões e comandavam os indivíduos que nelas se encontravam, e onde
esses indivíduos dependiam desses senhores, bem como lhes deviam obediência e favores,
em troca de “proteção”, a diferença aqui é a já existência de Estado territorial definido, que
em tese deveria subordinar o povo a suas leis institucionais e ao chefe de Estado, que possui
o poder maior e é eleito pelo povo e não existir uma submissão a elementos com poder local
não institucional.
Pode-se perceber nesses atos o poder de dominação do chefe sobre os demais
indivíduos, que se submetem, e essa lógica, mesmo transformado em poder legal dentro da
sociedade moderna, se mantém. Ao invés da pessoa do chefe, os indivíduos se submetem as
leis, como diz Weber ([1922]1999: 191):

42
Por dominação compreenderemos, então, aqui, uma
situação de fato, em que uma vontade manifesta
(mandato) do dominador ou dos dominadores quer
influenciar as ações de outras pessoas (do dominado ou
dos dominados), e de fato as influencia de tal modo que
estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam
como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo
do mandato a máxima de suas ações (obediência).

É o que podemos chamar de subordinação racional da modernidade, onde essa


subordinação encaixa-se no modelo cultural da sociedade.
Chaunu (1976: 123 – 128) ressalta a importância da revolução científica na
implantação das novas formas de pensar da sociedade, ou seja uma sociedade de tipo
tradicional que aos poucos, com o impacto das novas visões cientificas, vai se enquadrando
numa estrutura moderna, com suas instituições e leis regulamentadas, transforma-se a
mentalidade do corpo social, a fim de serem aceitas as regras abstratas subseqüentes das
reformas no âmbito econômico, em primeiro lugar com a reforma religiosa – protestante,
depois com a revolução científica e por fim a partir da revolução industrial, transformando
com isso a cultura da população, que vai se adequando a novas necessidades, antes
inexistentes, que passam a fazer parte imprecindivel da sociedade moderna.
Embora esteja falando da sociedade do século XX, não é diferente das transformações
ocorridas, ao longo da história, nos séculos das luzes. Uma sociedade que passa por
transformações no âmbito econômico não escapa das mudanças reais que ocorrem no mundo
sócio – cultural e político, que se transforma de maneira tão drástica que pode ficar
irreconhecível ao longo do tempo.
Avaliando o modelo das escolas, por exemplo, percebe-se que o ensino formal é
construído de forma a garantir a obediência dos indivíduos, economizar o tempo do
professor, que numa sala de aula com vários lugares ocupados pelos alunos, transmite o
ensinamento de maneira mista e não individual, repassando os conceitos da sociedade
institucional e tornando comum e lógico o modelo social vigente.(FOUCAULT, 1999 p. 126
– 127). Em sociedades tradicionais, como a Mbyá Guarani, por exemplo, o ensino faz parte
do corpo familiar. As crianças aprendem a respeitar as leis sociais dentro do âmbito da
família, de forma individual e pessoal. Ou seja, é poder do chefe da família ou do chefe da
aldeia e dos anciãos, que se manifesta na transmissão de conhecimento, e não um funcionário

43
designado para esse fim, como na sociedade moderna. Pierre Chaunu (1976: 127) comenta
que:
Na transmissão tradicional, a transmissão é difusa,
fazendo-se no seio da família, de uma empresa na maioria
dos casos reduzida ao âmbito da família. Nas sociedades
industriais e pós – industriais, a transmissão é
essencialmente o fato de um sistema institucional, que
difunde, primeiramente pela escola, um conjunto de
técnicas de transmissão, começando pela escrita e pelos
idiomas básicos, às redes de referências que permitem a
rápida impregnação pelas técnicas de difusão de massa:
imprensa, rádio, cinema, televisão.

Essa formalização do ensino elementar faz parte integrante da burocratização da


sociedade e uma forma de massificação, dentro do sistema capitalista, onde o individuo deve
aprender a viver de forma individualizada, como ser social e não no âmbito coletivo, da
forma tradicional.
A própria estrutura arquitetônica dos centros urbanos distingue-se dos modelos
tradicionais, onde o âmbito familiar prevalecia. Numa sociedade moderna se têm os prédios
desenvolvidos para fins específicos, e pré – concebidos para abrigar as tarefas que lhes
caberá, bem como para criar a própria lógica do sistema. Um prédio de presídios, de
hospitais, de escolas tem caráter austero, fechado, reformador. Foucault (1999: 95 – 96)
chama a atenção para as formas das penitenciarias européias, onde era

...programado um grande edifício carceral, cujos níveis


diversos devem-se ajustar exatamente aos andares da
centralização administrativa. O cadafalso onde o corpo do
supliciado era exposto á força ritualmente manifesta do
soberano, o teatro punitivo onde a representação do
castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social,
são substituídos por uma grande arquitetura fechada,
complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo
do aparelho do Estado.

Da mesma forma o próprio caráter das cidades começa a se modelar a partir do


modelo do Estado Moderno, conforme a análise de Manuel Teixeira (2000), acerca do
modelo urbanístico iluminista do século XVIII no Brasil.

44
No século XVIII foram construídas cidades, quer em
Portugal quer no Brasil, com planos absolutamente
regulares, concebidos segundo traçados geométricos, a
maior parte das vezes ortogonais. Muitas das vilas e
cidades fundadas no Brasil neste século foram fruto da
política urbanizadora de Pombal. Esta acção situava-se
num contexto político preciso, em que eram questões
fulcrais a delimitação de fronteiras entre Portugal e
Espanha e a afirmação do poder do Estado sobre
territórios e populações até aí sob o domínio temporal dos
missionários. Este projecto urbanizador era uma
componente fundamental da estratégia de ocupação
efectiva do território.
Quer se tratasse da fundação de novas vilas e cidades ou
da refundação de aldeamentos missionários, existia uma
preocupação com o ordenamento do plano, com o
alinhamento de ruas e de fachadas e com a normalização
da arquitectura dos novos edifícios. Este ordenamento
urbano era expressão da cultura racional europeia que se
pretendia implantar. Nestas cidades, uma praça
habitualmente quadrada e localizada no centro da
povoação constituía o elemento gerador do plano da
cidade. Era a partir dela que se definia o traçado das ruas
e se estruturava o conjunto da malha urbana. Por vezes,
algumas destas cidades tinham mais de uma praça,
destinadas a funções distintas, afirmando a continuidade
da tradição das praças múltiplas nas cidades portuguesas.

Fica manifesto aqui o que chamamos de urbanização da sociedade. Esta vai se


tornando algo real dentro da cultura do corpo social através da materialização de suas formas
concretas explicitadas no modelo arquitetônico. Assim como no modelo do funcionalismo,
onde as pessoas passam a fazer parte do corpo burocrático, e a trabalhar dentro desses
prédios e não mais em suas residências, que passam a ter também um caráter mais
individualista, deixando o modelo tradicional do espaço comunal para se inserirem num
modelo de espaço privado ou de Estado.
Weber ([1922] 1999: 193 – 196) coloca a dominação no patamar de administração,
deixando claro que a institucionalização dos cargos públicos, bem como dos privados,
passam por um critério de subordinação ao superior, e devem ser encarados como algo fora
do caráter privado do funcionário, ou seja ele não é mais dono de seu ambiente de trabalho,
nem de seu equipamento, mas apenas um trabalhador, que cumpre funções para outro

45
homem, que se encontra num patamar hierárquico superior ao seu. No entanto o próprio
chefe deve ser respeitante dos funcionários que lhes são subordinados, pois estes não podem
ser vistos como propriedade, ou seja, o caráter servilista se esvai, e o homem não mais
domina outro homem no sentido corporal, ou físico, mas no sentido legal, abstrato, pois esse
funcionário segue regras, que são administradas pelo chefe.
Da mesma forma nas escolas, mesmo respeitando a disciplina desta, os alunos não se
aquietam diante de um ato desrespeitoso de um professor ou mesmo da direção da escola, há
regras a serem seguidas de ambos os lados, mesmo quando a ordem é rígida. Nos dias atuais,
cada vez mais se tem alunos exaltando sua liberdade de expressão dentro das escolas, e as
vezes a falta de espaço para essas atitudes mais arrojadas ou para manifestarem sua
insatisfação para com a sociedade podem gerar conflitos no ambiente institucional, e suas
atitudes passam a ser vistas como insubordinadas, indisciplinadas, dignas de punição.
Concluindo essa análise, creio que podemos entender a sociedade moderna como uma
sociedade de ordem disciplinar, hierárquica e individualista. As instituições de Estado que se
desenvolvem junto a um modelo capitalista da economia moderna, vão integrar os indivíduos
dentro de lógicas abstratas e ao mesmo tempo dominadoras, fazendo com que o corpo social
se molde sem grandes resistências a uma estrutura urbana concreta, em que a administração
do poder público seja suprema, e o desvio dessas leis e desse regime seja visto como ilógico
e passível de readequação, por parte das instituições reformadoras.
O Estado burocrático, desvinculado do poder pessoal de um rei ou senhor, agora passa a
ser o supremo mandatário da vontade humana, através das leis e códigos jurídicos e morais.
No entanto essa lógica é espalhada pelos setores privados da sociedade, onde as empresas
passam a ordenar seu funcionamento através da lógica da administração burocrática. Um
Estado que passa a ser organizado dentro dessa lógica administrativa e onde o chefe passa a
ser um homem, eleito ou não pelo povo, mas de caráter não mais divino, mas material,
passível de ser enquadrado nas leis que o regem, tanto quanto qualquer outro individuo.
Podemos até mesmo falar que esse Estado é que aos poucos vai criar o caráter de cidadão
assim como o das diferenciações de classe que vemos se desenvolver junto do sistema
econômico e da ascensão da burguesia.
A instituição escolar nasceu com o Estado, antes disso a educação se dava na família e
nos moldes escolásticos das Igrejas e das universidades. Mas é com o surgimento do Estado

46
moderno que a escolarização começa a ser expandida para outras classes sociais até chegar à
população mais geral, com escolas públicas que começam a preparar o individuo para o
trabalho assalariado, para uma sociedade que deixa de ser domiciliar e passa a ser proletária.
Onde meios de produção e produtores são separados e os patrões, donos desses meios,
precisam administrar os lucros e garantir sua soberania.
Nesse sentido, pensarmos em como as instituições disciplinadoras do Estado
Moderno surgem e como estas se manifestam no modelo escolar se torna importante para
entendermos o seu papel na educação dos indígenas, a princípio como forma de educar o
índio para a sociedade colonial que se apresenta, depois para uma integração na já
consolidada sociedade nacional, a fim de que deixem sua identidade indígena e seus
territórios, onde as frentes de expansão de colonização internas estão avançando.
A mão de obra passa a se especializar e é preciso treinar essa nova sociedade para o
desenvolvimento econômico, político e social em que ela se insere. A responsabilidade
passa a ser da escola, para onde são enviadas as crianças, que enquanto não estão aptas ao
trabalho, aprendem o funcionamento da sociedade em que vivem e onde exercerão suas
funções no futuro. Segundo Lê Goff (1986: 36), quando se refere à difusão das ciências é
que:
muitos parecem inexplicavelmente propensos a
esquecer é que isto é um fenômeno que é uma criação
da Idade Media. Em particular a partir do fenômeno da
urbanização o sistema escolar e universitário ganha as
suas raízes.

Le Goff ainda afirma que a transmissão de saberes é algo presente em todas as


sociedades humanas, desde as pré – históricas até as atuais, e que existem mecanismos
próprios para a execução dessa transmissão de saberes, resta saber qual mecanismo é
aplicado e como, e para quem, pois a escola ocidental foi feita a partir dos mecanismos e
visão de mundo dessa sociedade, aplica-la a outras visões de mundo e com outras formas
educacionais é impor violentamente um mecanismo repressivo, pois esse vai anular o
modelo próprio de educação da sociedade em questão.
Essas ações humanas, onde se tenta anular uma cultura diferente e implantar a própria
cultura fazem parte das sociedades ocidentais, que tem como argumento o seu próprio
etnocentrismo. O processo colonial, a guerra de conquista aplicada à América, trouxe essa

47
bagagem etnocêntrica e esta foi repassada através do ensino formal nas escolas dos novos
Estados nacionais que precederam a colônia.
Mas, embora a ação das escolas, e da educação jesuítica a princípio – a catequização –
e todas as ações do Estado tenham afetado as populações indígenas e transformado seu
aparato cultural, temos que levar em consideração o alerta feito por Sara Ribeiro (2002:
54), que diz que:

considerar as ações do Estado como determinantes ao se


configurarem contatos com povos nativos, relegando o
papel deste nas relações instituídas a um segundo plano,
é passível de questionamento. Este ponto de vista pode
ter como decorrências, dentre outras, a uniformização
desses coletivos, além de lhes subtrair seu papel de
sujeitos históricos.

De acordo com a autora e com o que Monteiro (1998), Cunha (1998) e Oliveira
Filho (1999) vêm ressaltando sempre para se escrever história indígena, é que os índios,
essa categoria jurídica que o Brasil assumiu, têm sua própria história e a transforma dentro
do espaço e do tempo. O contato trouxe mudanças, mas essas mudanças são integradas aos
próprios movimentos culturais e étnicos desses grupos, seus mitos dão conta de absorver as
mudanças e redimensiona-las, não há como entender a história de qualquer grupo indígena
sem estar atento às suas mudanças culturais internas, não é só o Estado que muda e faz
mudar as coisas, mas a própria dinâmica do grupo e suas significações para o novo.

1.3. A EDUCAÇÃO JESUÍTICA E DE OUTROS MISSIONÁRIOS NO PERÍODO


COLONIAL.

Os Guarani historicamente, possuem uma relação de alianças com outros povos, criando
redes de parentesco, através de casamentos interétnicos. Esses casamentos faziam com que a
cultura e o modo de vida se transformassem com inovações que iam sendo incorporadas e
assimiladas dentro do grupo. Assim, se pode dizer que os Guarani são um povo que constrói
sua cultura de fora para dentro, guaranizando elementos que lhe são aprazíveis e rechaçando
o que não lhes parece agradável ou útil. Não foi diferente a relação que manteve no contato
com o europeu colonizador e algumas alianças iniciais entre alguns grupos guarani e

48
europeus foram cruciais para a entrada do colonizador nos territórios ocupados por esses
povos. No entanto, logo as intenções dos conquistadores se manifestaram e as alianças se
tornaram nocivas aos Guarani. O apresamento para trabalhos forçados, as reduções
missionárias, as encomiendas e tantas táticas de aproveitamento da mão de obra indígena,
bem como a ocupação intensiva de suas terras com o inevitável confinamento de seus grupos
a pequenos espaços não ocupados, sempre em disputa, e a educação para a integração ao
modelo colonial e abandono de seu modo de ser, mostraram que a empreitada colonial agia
de forma diferente de outros grupos indígenas que mantiveram relações recíprocas ou de
guerra com esses Guarani.
O processo de guerra de conquista que Souza Lima (1995) enfatiza teve um caráter
avassalador sobre essas populações aldeãs, e estes últimos Guarani, que se mantiveram fiéis a
sua etnicidade, tiveram de aprender com os conquistadores a viver em um outro tempo e
espaço, a aprender outros valores, como o de território e domínio, que antes não eram
percebidos21.
Já desde os primórdios da colonização os padres e missionários assumiram para si o
cuidado dos índios, como se estes fossem infantes, ingênuos, que sem sua proteção estariam
perdidos. E estariam mesmo diante da ganância e da necessidade de escravos que os
conquistadores leigos tinham para estabelecerem-se nesta terra. Porém os religiosos também
auxiliaram e muito a ocupação das terras indígenas, pois os retiravam de seus territórios e os
aldeavam, nas reduções, ou relocavam essas pessoas como serviçais nas casas de colonos
com o intuito de catequiza-los, civiliza-los, e dessa forma serviam a empreitada colonial
liberando terras para as frentes de expansão que se aceleravam sertão adentro.
Em uma carta ao rei de Portugal D. João IV, em 1653, Pe. Vieira pede auxilio na forma
do envio de mais religiosos para dar conta dos males que abarcam a nova terra. Entre suas
eloqüentes reclamações percebe-se o quanto os índios da Capitania do Maranhão vinham
sofrendo em mãos dos portugueses que não os conseguiam catequizar e que então viviam
aprisionados e em estado miserável. Da mesma forma eram apresados e mantidos cativos

21
Ver GARLET, Ivori. Mobilidade Mbyá: história e significação. Porto Alegre: PPGH / PUCRS,
dissertação de mestrado, 1997 – Cap. I.

49
sem motivo aparente22, e os aldeados eram explorados e se consumiam nas lavouras alheias,
tendo as suas casas e roças abandonadas. Ou seja, uma miséria só e todos submetidos aos
colonos ou aos padres.
Acho interessante para ilustrar essa idéia de que os índios necessitam da
administração de alguém, mas, no entanto fazia-se notório que sem eles os portugueses não
sobreviveriam nas terras conquistadas, essa frase de Pe. Vieira (1653):

Destes que vivem entre os portugueses, uns são livres,


que estão em suas aldeias; outros são parte livres, parte
cativos, que moram com os mesmos portugueses, e os
servem em suas casas e lavouras, e sem os quais eles de
nenhuma maneira se podem sustentar.

Os jesuítas acreditavam que somente com a catequização das almas indígenas se


poderia salvar essas gentes do poderio colonial e ao mesmo tempo cumprir a missão que se
atribuíam, de conquistar cristãos para a Igreja e para Deus. Para esse fim empregaram todos
as suas forças, mesmo percebendo o quanto era difícil penetrar na alma inconstante do
indígena. Segundo Santos (2002: 222)

...a palavra de Deus era acolhida alacremente por um


ouvido e ignorada displicentemente pelo outro; o inimigo
aqui não era um dogma diferente, mas uma indiferença ao
dogma, uma recusa de escolher.

Dessa forma podemos atentar para o fato dos indígenas tomarem a sua história nas
mãos, eles são sim obrigados a ouvirem as palavras do padre, mas o que fazem com ela não
necessariamente é o que o padre deseja, mas aquilo que lhes parece melhor, na conjuntura em
que estão vivendo.
Segundo Kern (1985: 23 - 24),

no século XVII a bacia platina foi palco de um processo


histórico de transformações culturais intensas, onde
envolveu-se atores indígenas e coloniais de várias
instancias e atividades variadas, com interesses e

22
Segundo Pe. Vieira, os motivos que poderiam levar ao aprisionamento dos indígenas seria a guerra justa,
para aqueles que fossem tidos como selvagens, insubordinados, e que causassem algum tipo de perigo para os
colonos.

50
propósitos também divergentes, mas, destes todos os
jesuítas foram os que mais se destacaram como agentes
do processo de mudança sócio – cultural porque passaram
as comunidades indígenas. Sua ação civilizadora não se
resumiu na tarefa evangelizadora, mas foi igualmente
responsável pela implantação de valores e elementos
materiais da sociedade ocidental européia da época.

Mais uma vez aqui se percebe a ação externa sendo apreendida pelo aparato cultural
interno dessas sociedades, mas não deixando de criar certas dependências, principalmente no
sentido material, onde objetos de fora do domínio tribal passam a se tornar necessários para a
comunidade. Essas ações tem um caráter educativo, que vai sendo apreendido pela ação
jesuítica de ensinar técnicas e tarefas provenientes da sociedade ocidental aos Guarani
reduzidos.
Essas ações educativas visavam desde o início congregar às práticas econômicas já
existentes entre os Guarani, às práticas econômicas e sociais européias, para a partir daí
disciplinar os indígenas de acordo com a mentalidade cristã – ocidental. Houve então uma
pressão externa para incrementar as mudanças não só tecnológicas entre os Guarani e outros
índios aldeados, mas também para mudar a visão de mundo desses povos, e essa pressão se
exerceu através do conhecimento que os jesuítas iam adquirindo dessa visão de mundo
indígena, e que passavam então a combater usando os meios eficazes buscados nas próprias
crenças indígenas, nos hábitos cotidianos das famílias. Ainda, segundo Kern (1985: 38)

a educação pela prática, típica da aldeia Guarani,


continuou a ser um elemento importante no povoado
missioneiro, acrescida entretanto por um ensino básico de
rudimentos de ciência européia para os filhos de cacique,
fornecida pelo jesuíta no interior da Igreja, juntamente
com o ensino da língua espanhola.

As danças cantos, musica e artesanato, que já eram atividades comuns praticadas pelos
Guarani, foram incentivadas, embora tenham sido direcionadas para a arte cristã – ocidental,
mas preservando o seu caráter festivo e religioso. E a inovação nesse palco de transformações
e preservações foi a implantação da imprensa entre os Guarani reduzidos, que passaram a
editar livros escritos, numa passagem marcante da história de um povo ágrafo que começa a

51
desenvolver as letras e a escrita da sua própria língua, já desde o período colonial. (KERN,
1985: 38 – 39).
Esse movimento para civilizar e cristianizar os indígenas – entenda-se por indígenas
todos aqueles povos fora da Europa, que sofreram o impacto da conquista – está dentro da
idéia disseminada pela Bula Veritas Ipsa de Paulo III, datada de 1537, onde se reconhecia a
humanidade dessas gentes e, portanto, havia a necessidade de torna-los “iguais”, sendo então
uma obrigação cristã levar-lhes a educação civilizada e ao batismo cristão, lhes tirando
daquilo que era considerado a ignorância e a perdição. Essas idéias, totalmente etnocêntricas,
eram tidas como “generosas ações desses benfazejos padres” e se perpetuou até os dias de
hoje no senso comum, que mesmo diante de um discurso em prol das diferenças, as ações
ainda são marcadas pela idéia da assimilação, que levará os índios ao desenvolvimento
“verdadeiramente” humano.
O espírito de cruzada que motivava os religiosos a buscarem nas terras distantes da
Europa, almas para converter ao cristianismo permaneceu por muito tempo na educação
civilizatória do indígena, até porque essa educação deveria conformar o índio à conquista,
enquadra-lo nos novos moldes da sociedade que se instalava e aos novos territórios políticos
que se configuravam. Onde esse índio conquistado não deveria almejar postos de alta
hierarquia, mas ser subalterno, obediente e colaborador de seus senhores. Segundo Kern
(1992:12), a busca das novas terras pelos europeus eram provenientes de muitos objetivos e
atores sociais, mas, “todos pretendiam a conquista, seja do ouro e da prata, seja das almas dos
índios”23.
O desejo dos jesuítas de acabar com o que acreditavam ser a descrença e os rituais
pagãos, os quais eram atribuídos a um desvio de conduta daqueles “pobres homens”,
conforme a mentalidade da época, era motivo suficiente para a aplicação de métodos
disciplinatórios repressivos, já utilizados na Europa e agora aplicados no Novo Mundo.
Eles trouxeram seus demônios e seus deuses para os índios, mas acreditavam estar
destruindo os demônios autóctones, acreditavam estar trazendo “a cultura” para povos
incultos e se escandalizavam com as dificuldades encontradas para transformar esse indígena
em um verdadeiro cristão. Ele aprendia o que lhe ensinavam e desenvolvia com presteza e

23
Para um melhor entendimento dessas praticas de conquista, ver: TODOROV, T. A conquista da América:
a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

52
inteligência as artes e as técnicas novas que lhe eram apresentadas, e até rezava e cantava
para o Deus Cristão dos jesuítas, mas no fundo não havia mudado nada na sua alma.
Essa educação religiosa iniciada pelos jesuítas trouxe uma bagagem de
aperfeiçoamentos técnicos e culturais, que se disseminaram mesmo fora das reduções, onde
outros povos indígenas, Guarani ou não, se encontravam ocupando áreas de mata onde os
colonos ainda não haviam chegado. Mas os indígenas reagrupam essas inovações às suas
próprias tradições e ressignificam aquilo que lhes parece útil, e lhes interessa, descartando
solenemente o que não é interessante.
O discurso jesuítico sobre o Guarani se desenvolveu pelos moldes cristãos e europeus,
embora a percepção das práticas tradicionais de educação e sociedade tenham sido
registradas pelos padres, com conotação horrorizada de que os índios não sabiam educar seus
filhos, pois não lhes empregavam castigos corporais e lhes davam liberdades que os padres
consideravam exageradas para os padrões europeus, acostumados ao jugo e a disciplina
rígida exercida sobre o corpo e a alma do individuo, como forma de socialização civilizada.
Essas idéias deturpadas sobre a ignorância dos indígenas e a necessidade que estes
tinham da orientação dos “civilizados” europeus podem ser vistas também pelos colonos, que
se assentavam sobre territórios, agora, brasileiros. Quando os índios viviam com eles, na
forma de servos ou escravos, ou seja, subjugados ao domínio estrangeiro, eram vistos como
“bons selvagens”, que precisavam da educação civilizada e generosa dos colonos e padres.
Quando lutavam contra a ocupação e usurpação de suas terras e de suas almas, eram “feras,
selvagens, vingativos e maus”, deveriam ser eliminados fisicamente, já que não se
enquadravam, eram “bárbaros”, “vândalos”, não tinham civilidade nem religião.
Para os “índios mansos e bons”, a misericórdia e falsa generosidade, para os “maus”, a
morte.
Seria interessante verificar que esse discurso perpassou os séculos XVII, XVIII e XIX,
chegando inclusive ao inicio do século XX com muita força ainda, só sendo abrandado, em
partes, pelo trabalho do SPI, que inicia um novo discurso pela integração, um pouco menos
feroz em relação a eliminação física dos índios “maus”. Mas esse discurso fazia entender que
todos os índios são bons por natureza e devem ser “salvos” para integrar-se à nação
brasileira.

53
No século XIX, no Mato Grosso, durante a Guerra do Paraguai, os relatos de um
português chamado Joaquim Ferreira Moutinho, que viveu 18 anos em Cuiabá e registrou o
modo de vida da população que começava a compor a região, e também fez menção a
inúmeras populações indígenas que se mesclavam nessas novas frentes de expansão, são
interessantes para pensarmos no como esses colonos viam e pensavam os índios que
conviviam com eles24.
As referências que ele faz aos indígenas são contundentes para entender a preocupação
dessas frentes coloniais com a educação dos índios, para fins de mão de obra e como um
meio de tira-los da “miséria humana”, que era considerado o seu modo de vida tribal, no
entanto via uma certa aura de inocência nos índios, que poderia ser até mesmo invejada pelos
colonos, que enfrentavam serias dificuldades para instalar-se e desenvolver uma vida urbana
nos sertões do Brasil. Segundo esse português referido acima (MACHADO, 1999: 09):

não sabemos dizer se esse estado de ignorância e


barbarismo é para elles uma felicidade ou uma
infelicidade. A vida do homem civilizado é tão cheia de
amarguras, que às vezes chegamos a ter inveja d’esses
entes que nascem, vivem e morrem sem conhecer as
milhares de necessidades que nós procuramos augmentar
para tormento nosso, nos poucos instantes que vão do
berço ao túmulo, pela escabrosa vereda da vida.

Segundo Maria Machado (1999), que escreveu sobre a vida desse português, Moutinho
ficava penalizado com a situação dos índios de Mato Grosso, embora em sua fala perceba-se
uma certa angústia com relação a vida civilizada, ele sabia que a vida tribal não era digna de
um “homem de bem”, e dessa forma ele acabava classificando os índios como “pobres almas
inúteis”, já que viviam a espera de missionários ou colonos que empreendessem projetos
onde absorveriam aquela mão de obra barata e abundante. Para ele os índios eram um
problema de administração pública.
Esse discurso sobre a necessidade de educar e preparar o indígena para adequar-se a
sociedade brasileira, que se expandia, mas vinculada a idéia de que essa categoria deveria ser
administrada e não ocuparia mais que um lugar secundário nessa sociedade, também eram

24
A vida desse português e seus feitos em Cuiabá são contados no estudo histórico realizado por Maria
Fátima Roberto Machado (1999).

54
noções indiscutíveis. E isso pode ser exemplificado pelo que Machado (1999: 10) fala sobre
os Guarani Kaiová, os Terena, os Laiana e Quiniquinau, aldeados por missionários no
aldeamento de Bom Conselho, que dançavam num baile em 1862. Aqui a autora descreve o
que Moutinho havia escrito sobre esses índios aldeados:
As índias eram afilhadas da “bondosa e caritativa”
baronesa de Vila Maria. No aldeamento, havia escola de
primeiras letras e música para os homens e de costura
para as mulheres. Os índios aprendiam vários ofícios,
trabalhavam em olarias, no comércio, nas fazendas, eram
remeiros e pilotos das canoas que transportavam gêneros
de Corumbá a Cuiabá. Exceto os velhos “que seguiam
ainda os seus costumes selvagens”.

Para o português os hábitos indígenas não passavam de atos bárbaros e selvagens, no


entanto a atitude da baronesa em “educar e apadrinhar” as índias era tido como um ato de
bondade e generosidade, já que ele via nesses povos uma “gente de atos brutais”, mas ao
mesmo tempo defendia que era necessário empregar mais verbas para a catequese e que o
governo deveria fazer um estudo serio para saber como empregar melhor a mão de obra do
índio. Ele via nessas ações formas mais humanas de absorver esses povos, sendo que
acreditava que a educação do indígena seria mais eficaz do que o emprego da força contra a
resistência indígena de ir para os aldeamentos e trabalhar para os colonos.
Para finalizar as exposições sobre a importância vista pelos missionários e pelos
colonos, no inicio da formação do Estado brasileiro, cabe esta frase do português Moutinho
(apud MACHADO, 1999: 12), que mostra claramente a idéia que os colonizadores tinham da
função da educação escolar e catequizadora para os indígenas:

Ao contrário, deixal-os no erro, não opor-se às suas


vontades brutais, procurando de pouco em pouco infiltrar-
lhes melhores sentimentos, até que elles mesmos
conhecendo a vantagem, procurem o beneficio que se
busca fazer-lhes conhecer.

Esse adestramento do indígena, previsto pelas administrações coloniais portuguesas,


seguia os mesmos caminhos percorridos já pelos jesuítas, que em realidade foram os
primeiros grandes responsáveis pela “educação” do índio. Mas os religiosos mesmo de outras
congregações continuaram sendo os grandes e reais mestres dos índios nesse período inicial

55
da formação do Estado brasileiro, e mesmo depois da implantação da República e até nossos
dias, pois eles tinham adquirido já a prática de lidar com esses povos e aldea-los de forma a
reestruturar sua educação própria para aceitarem a educação ocidental que lhes era
ministrada.

56
CAPÍTULO II.

2.1. CULTURA E IDENTIDADE: A CRISE NAS TERRAS MBYÁ.

Alguns dados gerais sobre os Guarani podem ser elucidativos para se entender o papel
da escola nessas comunidades e porque a apreensão desse povo quanto ao tipo de educação
que lhes trará a escola ocidental, nos moldes em que a conhecemos.
Os Guarani somam, aproximadamente umas trinta mil pessoas em território brasileiro,
que ocupam o litoral e interior dos estados do Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de
Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, sabendo-se que também foi contatado um grupo
que se encontrava no Maranhão. No eixo Cone Sul ocupam áreas na Argentina, Paraguai e
Bolívia, sendo que já teve grupos ocupando áreas no Uruguai. Tais regiões estão associadas
ao seu território tradicional, constituindo-se as áreas ocupadas em São Paulo, Rio de Janeiro
e Espírito Santo, bem como algumas outras mais ao norte do país, áreas de ocupação recente,
decorrentes de um fluxo migratório iniciado no século XIX25. No Brasil os Guarani dividem-
se em três subgrupos ou parcialidades, que de acordo com a identificação étnica de cada
parcialidade apresentam seu modo de ser – teko – específico. São estes grupos os Kaiová
Guarani, os Ñandeva ou Chiripá e os Mbyá.
Os Kaiová estão distribuídos num território que ocupa a região de Mato Grosso do Sul e
Paraguai oriental, os Ñandeva vivem distribuídos ao sul do Mato Grosso do Sul, Paraná,
Paraguai, norte do Rio Grande do Sul e ainda no interior e litoral de São Paulo e os Mbyá
ocupam áreas localizadas na parte central do Paraguai estendendo-se hoje no norte da
Argentina, mais especificamente na região de Missiones, e pelos estados brasileiros de Rio

25
Para um melhor entendimento sobre a territorialização dos Mbyá Guarani ver: GARLET, I. Mobilidade
Mbyá: historia e significação. Porto Alegre: PPGH / PUCRS, dissertação de mestrado, 1997.

57
Grande do Sul, litoral de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e
há alguns grupos Mbyá identificados que passaram pelo Maranhão junto à reserva indígena
dos Guajajara, no Mato Grosso, na região do Araguaia e no Tocantins, sendo que o grupo
encontrado neste último estado consistia em quatro pessoas, que viviam na aldeia Karaja do
Norte, na Terra Indígena Xambioa.
De acordo com relatos históricos a ocupação do litoral norte do estado do Rio Grande
do Sul pelos conquistadores europeus aconteceu no século XVI, quando os Guarani
ocupavam a porção do litoral compreendida entre a Cananéa (SP) e o Rio Grande do Sul. A
partir deste local estendem-se para o interior até os rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Da
confluência entre os rios Paraguai e Paraná as aldeias indígenas distribuíam-se ao longo de
toda a margem oriental do Paraguai, pelas duas margens do Paraná, ocupando parte do atual
território do Uruguai. Tal região ficou conhecida na época da conquista como Província do
Tape, possivelmente um subgrupo Guarani, cuja população era da ordem de 60.000 índios,
mais ou menos26.
Os grupos Guarani que viviam neste território eram variados, mas fica difícil, pelos
vestígios arqueológicos determinar a diferença que havia entre eles, sendo classificados
somente pelo termo Guarani, já que é praticamente impossível determinar etnicidade através
de vestígios materiais, mas de acordo com a documentação histórica e com vasta bibliografia
sobre o tema, esses grupos foram sendo classificados pelos conquistadores europeus,
portugueses e espanhóis, e embora ainda com muita dificuldade para obter uma diferenciação
étnica precisa da época da conquista, se pode perceber algumas diferenças entre os grupos de
Guarani contatados.
Segundo Garlet (1997) e Fogel (1998) os Mbyá Guarani estavam entre os grupos que
não se enquadraram no sistema de reduções. No entanto sua antiguidade na região não é
possível de ser determinada, sabe-se que viveram durante o período missioneiro e se
mantiveram parcialmente excluídos do projeto jesuítico, por vontade própria, já que
escapavam às investidas dos missionários. Mas a denominação dada à esses índios que
viviam nas matas era Kainguá, termo que possivelmente tenha determinado mais de um
grupo étnico.

26
Para uma melhor compreensão da história dos Mbyá propriamente ditos, e dos primeiros contatos destes
com o europeu e as reduções, ver GARLET, I. Mobilidade Mbyá: história e significação. Dissertação de
mestrado, Porto Alegre: PPGH / PUCRS, 1997, CAP I.

58
De acordo com Rubem Thomas de Almeida (1985), os Guarani que sobreviveram à
pressão dos bandeirantes, às guerras de conquista dos limites territoriais e posteriormente à
influência e decadência da missões jesuíticas, refugiaram-se nas florestas da região do rio
Uruguai, reproduzindo seu modo de vida ancestral. Os que se submeteram à educação
missionária foram sendo progressivamente incorporados como força de trabalho na economia
dos Estados que nasciam na América conquistada.
As primeiras notícias da presença de índios Mbyá no Rio Grande do Sul, no século XX,
foram por volta de 1908, na região norte do estado, e em 1912 constam no Relatório da
Secretaria dos Negócios e Obras Públicas do Rio Grande do Sul. Nas décadas de 1930 e
1940, se acentua o abandono de áreas ocupadas pelos índios Mbyá, em decorrência da
pressão colonial nas regiões do norte do estado, as migrações vindas do Paraguai meridional
e de Missiones seguem atravessando o Rio Grande do Sul a caminho de São Paulo.
Os medos que vivenciam os Mbyá, não são à toa, as terras lhes foram sendo tomadas ao
longo de sua história e hoje lhes resta apenas frangalhos de espaços territoriais que já foram
vastos e ricos.
A memória e esta história triste, onde a luta pela preservação de sua identidade
guerreira, de um povo indômito, como os chama Fogel (1998), foi sempre marcada por fugas,
expropriações, tentativas de dominação e encurralamento. Por isso sempre foram tão avessos
a negociações com os “brancos”, esses “outros” que “dominam tudo e de tudo tomam conta”,
segundo a forma que os próprios Mbyá se expressam sobre os atos dos Juruá (brancos).
A idéia de que os “outros” são maléficos e degenerativos está presente na percepção
dos Mbyá. Há um medo da degeneração pela mestiçagem, pois acreditam que o sangue vai se
tornar impuro, e as conseqüências serão drásticas. Não podendo assim atingir a perfeição que
seus antepassados atingiram, já que não se vive mais o “bom modo dos antigos”.
Esse discurso é fruto de um aprendizado duro sim, mas elucidativo. Foi “guaranizando”
o discurso colonial do século XIX. A preocupação com a mistura de raças e a degeneração do
povo brasileiro era uma constante nos círculos científicos e popularizou-se. Sendo que os
índios e negros eram tidos como raças sujas, que empobreciam a prole e a degeneravam. As
notícias sobre extermínio de povos indígenas, ataques a aldeias inteiras sob a luz dos olhos
do Estado e a intenção de faze-los desaparecer pela ação da natureza, como anunciava
Herman Von Ihering, em 1911, enquanto diretor do Museu Paulista, chegavam as distantes

59
povoações Mbyá, pois estes sempre se mantêm bem informados do que se passa ao seu
entorno, e ressignificam essas informações através de seus sonhos, de seus mitos.
Essas práticas genocidas e etnocidas exercidas sobre os povos indígenas criaram não só
no Mbyá, perspectivas que despertam o medo da aproximação, as desconfianças, as certezas
de que seu fim está atrelado a aceitação do domínio do “branco”, do remédio, da bebida, da
imoralidade, da maldade que esse juruá, enquanto “outro” detém, e que só a sua repulsa e
distanciamento de suas instituições e leis pode salvar o indígena.
As estratégias podem ser variadas, mas as certezas de que o mal reside no “branco” é
unívoco.
O trabalho de Garlet (1997), sobre a reterritorialização (mobilidade territorial) dos
Mbyá Guarani, já apontava algumas transformações econômicas, sócio – culturais e políticas
do grupo, alertando que a própria história dos Mbyá mostrava que seu controle cultural era
baseado nessas possibilidades de transformar para continuar sendo ele mesmo. A
fragmentação sócio – política que ele apresenta em seu início, após a ruptura do grupo entre
vários líderes políticos, denominados caciques, e não mais detidos na pessoa do Mburuvichá
original, que congregam poderes locais dentro de cada comunidade e não mais abarcando o
reconhecimento na totalidade do povo Mbyá, hoje é um fato consumado. Embora a idéia de
organização em torno de um líder geral ainda seja almejada por alguns, como é o caso do
cacique José Cirilo, da Aldeia da Lomba do Pinheiro27, em Porto Alegre, mas não é um
consenso, portanto sua autoridade não consegue romper as barreiras de cada comunidade e de
seus líderes.
Como já foi dito antes, a história Guarani foi sendo desenvolvida pelo contato com o
europeu e se percebe isso através de vasta documentação, em geral escrita pelos jesuítas, mas
também por viajantes do século XVI ao XIX, que visitavam o Brasil a fim de descrever suas
gentes e suas paisagens para uma Europa que se mostrava curiosa diante das novidades que
essas terras traziam, para o desenvolvimento de teorias científicas que pululavam entre os
pensadores da época. E mesmo entre as teorias desenvolvidas pela arqueologia atual, que
colocam o fato de que havia uma troca interétnica entre os Guarani e outros povos, que por
via de alianças de casamento ou guerras, trocavam parceiros, principalmente mulheres, e
dessa forma aparatos culturais que se “guaranizavam”, pode-se inferir que então os Guarani

27
Ver anexo referente ás atribuições dos interlocutores.

60
não eram de todo avessos a miscigenação, mas viam nela até mesmo uma forma de interação
cultural positiva e até mesmo comercial e tecnológica, havendo trocas entre os grupos
envolvidos.
Hoje em dia o discurso dos Mbyá vai bem ao contrário dessas práticas. Já desde muito
tempo esse discurso da pureza do sangue Mbyá é proferido e visto como moralmente correto
para ser um Guarani autêntico - de verdade, como diria Kátia Vieta (1992). Mesmo
atualmente, onde os Mbyá estão buscando nas instituições ocidentais e num comportamento
mais aberto com a sociedade envolvente, esse discurso sobre a negação da mistura continua
presente e bem marcado, embora possa-se perceber que essa pureza do sangue seja apenas
um discurso, pois os casamentos interétnicos acontecem, entre Mbyá e Ñandeva, entre Mbyá
e Kaingang e até entre Mbyá e os Juruá (brancos). Isso quando a miscigenação não é
proveniente de relações fora do casamento, frutos em muitos casos da prostituição das
mulheres Mbyá, que geram crianças mestiças e sem pai, causando um desequilíbrio social
mais grave dentro do grupo.
Não se pode dizer que esse discurso adquirido pelos Mbyá não seja inclusive produto do
contato, já que a idéia de raça é proveniente das ciências européias. E daí, pode-se até
levantar a hipótese de que esse discurso foi adquirido e “guaranizado” através das práticas
exercidas sobre os índios pelos europeus, que afirmavam que a solução para eliminar as raças
tidas como “inferiores”, no Brasil, seria a miscigenação com os brancos. Ou seja, o mito do
branqueamento pode ser um dos motivos da recusa e até da xenofobia que os Mbyá têm em
relação à outras etnias, para evitar o seu desaparecimento. Dessa forma devemos pensar sobre
o que Seyferth (1996) diz sobre a ideologia que se cristalizou no Brasil no final do século
XIX, onde o “racismo científico” chegava à um país de mestiços, que até então não só tinha
assimilado essa constituição, mas também incentivado essas alianças, principalmente entre
índias e brancos, para dessa forma destituir as culturas indígenas e integra-los à colônia.
O Brasil assumiu o mito das três raças e da miscigenação, como forma de apresentar um
discurso de democracia racial, pregando o branqueamento do povo e não uma miscigenação
cultural, já que era corrente a crença na inferioridade genética dos índios e negros, que dentro
dessa concepção jamais ascenderiam à civilização, sem que a mistura de genes “brancos”
poderiam fazer a seleção natural e da mesma forma social desses indivíduos através da
eliminação, a longo prazo, dos caracteres genéticos dessas raças tidas como inferiores.

61
Conforme Seyferth (1996: 56):

essa desigualdade social de base racial existe a despeito


do ideário da democracia racial e de duas de suas
premissas básicas; a ausência de preconceito e
discriminação e a possibilidade de ascensão social para
todos, independentemente da raça. Na prática a cor da
pele é um indicador de classe e de status a partir do qual
se exerce a discriminação e se evoca o preconceito.

Seguindo o raciocínio da autora, também é sugestivo lembrar que muitas minorias


étnicas, para se preservar, buscam na afirmação da raça pura uma identificação positiva para
não sucumbirem ao preconceito de seus “outros”. Creio que seja uma característica visível
entre os Mbyá Guarani.
Na mesma direção é possível pensar numa ligação da idéia de pureza racial ter sido
assumida pelos Mbyá em função da própria ideologia produzida pelo colonizador, deve-se
levar em conta as teorias de Weber ([1922]1994), sobre as idéias de pertencimento a um
grupo com destino comum e originário de um mesmo mito fundador, onde características
marcantes de sua diferença em relação a um “outro” são acentuadas em função de afirmar
que existem afinidades que unem o grupo e heterogeneidades entre este e os outros, que são
“de origem” e esta relação cria o sentimento de repulsa pelo que não é seu, de seu próprio
grupo, marcando dessa forma o divisor de águas, ou de sangue, que impede a miscigenação e
até o convívio íntimo entre as partes envolvidas.
Pode ser interessante relatar uma situação que mostra um pouco essas relações entre os
Mbyá e seus “outros”. Na aldeia de Itapuã, em Viamão – RS, residem hoje, num pequeno
pedaço de terra de 27 hectares, dois líderes religiosos e seus parentes próximos.
A área é bastante erodida, não há mata nativa, nem animais de caça e nem água28. Trata-
se de um antigo mato de eucalipto, que fora cortado pelos Mbyá para vender a madeira e
plantar “árvores boas”, que significam árvore nativas, muitas com significado simbólico para
os Mbyá. Na área a terra é pobre para a agricultura, devido ao esgotamento que o eucalipto
provoca. Essa área foi doada pelo Governo do Estado em 2002, para assentamento das

28
Agora o problema da água foi resolvido, pois a CORSAM cumpriu o que havia prometido e fez chegar
água na aldeia, mas é água encanada, pois não há rios ou córregos perto. Para uma amostra do lugar ver fotos
1 e 2 no anexo, onde é possível ver a entrada da reserva e o banhado que fica fora da área indígena, onde os
Mbyá tomam banho e lavam roupa.

62
famílias Mbyá, a pedido desses atuais moradores, que queriam se instalar na área onde hoje é
o Parque Estadual de Itapuã, onde antigamente, mais ou menos na década de 1970, residiram
famílias Mbyá Guarani – inclusive referidas nominalmente por Seu Turíbio (82 anos) e Seu
Adolfo (86 anos)29 – e que era vista como Mbyáretã – verdadeira terra de Mbyá – por esse
grupo30.
Diante da impossibilidade de ocupar definitivamente a área do Parque, por ordem da
Secretaria de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, foi então acertado entre os Mbyá
requisitantes e órgãos públicos – Governo do Estado, CEPI, FUNAI e Emater, entre outros –
que o assentamento se daria na área descrita acima, que se localiza dentro de um
assentamento de Sem Teto.
Os conflitos gerados entre os Mbyá e os vizinhos foram os mais diversos, já que á área
ocupada pelos índios vinha sendo almejada por um comerciante que queria fazer ali um
mercadinho, bem como os vizinhos deixavam seus animais de criação – galinhas, porcos e
vacas – entrarem nas terras indígenas, invadindo as roças e destruindo a plantação, já que os
índios não possuíam cercas ao redor da área.
Nesta área, pelo que se pode perceber, não há como desenvolver o “bom modo de ser”
Guarani, pois se distancia muito da terra almejada por eles. Inclusive a pouca água que há nas
redondezas – fora da aldeia – é proveniente de um banhado próximo à outras casas, que só
serve para lavar roupa e esporadicamente tomar banho31. A água que estavam consumindo
para beber e cozinhar, até então, provinha de um poço de um vizinho, que cobrava R$22, 00
(vinte e dois reais) por mês aos índios, por seu consumo.
Essas duas lideranças que vivem hoje em Itapuã com suas famílias, são provenientes de
outras duas aldeias. Seu Turíbio e Dona Laurinda, com parte de sua família (mais umas sete
pessoas), vêm da Estiva; Seu Adolfo, Dona Angelina e seus dois netos vêm da Lomba do
Pinheiro.

29
Ver referencias no anexo sobre os interlocutores.
30
Ver Garlet (1997), sobre a ocupação da área do Parque Estadual de Itapuã, que foi perdida pelos Mbyá, e
oficio encaminhado ao Ministério Público Federal, pelo NIT / UFRGS, em 05 de setembro de 2003, onde o
caso é referido com detalhes – no anexo.
31
Seu Adolfo, ao se referir ao banhado (foto 2 no anexo) onde lavam roupas, disse estar muito triste com a
situação em que estão vivendo, já que ali não poderia nem mesmo tomar banho sossegado, pois têm vizinhos
olhando o tempo inteiro e ele tinha vergonha de tirar a roupa para banhar-se naquelas águas. Assim disse estar
querendo ir embora pra outro lugar, que ele até já tinha sonhado com esse lugar (o lugar referido era o Morro
do Coco).

63
Normalmente seria impensável duas lideranças religiosas dividirem o mesmo Teko’a,
mas diante da fragmentação do grupo, onde cada comunidade vem se auto- determinando
ultimamente, esse episódio pode ser ilustrativo. Essas duas lideranças não convivem
tranqüilamente e a área é marcada por tensões entre os dois lados, da mesma forma que as
tensões são vividas entre eles e os vizinhos Juruá, que segundo eles não respeitam as “leis do
Guarani”. Então, porque esses dois anciãos e suas famílias foram viver neste lugar?
Primeiro: o lugar desejado não era esse em que estão, mas o Parque, onde as condições
geográficas e territoriais são mais condizentes com o tipo de território almejado pelos Mbyá,
e onde teriam mais espaço para separarem os Teko’a, vivendo cada um com seu grupo na
mata.
Segundo, e principalmente, esses dois líderes queriam sair das aldeias onde estavam em
busca de um “isolamento espiritual” – está foi a alegação para a mudança – que é melhor
entendido pela tensão criada entre eles e as lideranças políticas das comunidades em que se
encontravam.
No caso do Seu Turíbio, a relação dele com as famílias Kaingang e com os Ñandeva que
moram na Estiva estava cada vez mais complicada, já que as relações entre Guarani e
Kaingang não são tranqüilas, estes dois grupos tem um histórico de animosidades bastante
marcado e a família de Seu Turíbio, sendo Mbyá, entende os Kaingang como um povo
inferior, “aculturado”, que “se deixa levar pela mão do branco” e de hábitos agressivos e
contrários àqueles designados pelos Mbyá como corretos e moralmente aceitos. Enfim, há aí
uma relação de repulsa entre o grupo de origem e seu “outro”, a ponto de procurarem o
afastamento. Embora seja pertinente relatar que a família de Seu Turíbio se aliançou com
uma família que tem parentes Kaingang, já que Talcira, a filha mais velha, é casada com
Juarez, cacique da Estiva, que é filho de Seu Valdomiro, que é Mbyá, com uma mulher
Kaingang. Foi devido a esse parentesco que os Kaingang vieram morar na área da Estiva,
pois estes se compõem dos irmãos de Juarez, que vieram com suas famílias, da área da
Guarita, onde antes moravam todos, inclusive a família nuclear de Juarez – pai, mãe, irmãos,
cunhados, sobrinhos, filhos, etc.
Além disso, Seu Turíbio se intitula cacique Karaí e sua esposa Dona Laurinda é Kuña
Karái, ambos são lideres religiosos, sendo que Dona Laurinda ainda orienta espiritualmente
os moradores da Estiva, indo lá em visitas para presidir as rezas e orientar os jovens e

64
crianças nas ñe’e porã – as boas palavras – portanto eles têm grande influência nas decisões
gerais da comunidade, são conselheiros, e a autoridade maior do grupo. Na Estiva também
mora Seu Valdomiro, pai de Juarez, que também é Karaí das ervas do mato – ou seja,
curandeiro – instalou-se na área uma certa disputa de poderes entre essas lideranças, e como
a área em que se instala a aldeia é bastante pequena, são apenas 7 (sete) hectares onde
residem mais ou menos 107 (cento e sete) pessoas, as famílias vivem bastante apertadas lá, e
os conflitos interétnicos são visíveis e latentes. Além das dificuldades econômicas da
comunidade dificultarem as relações de reciprocidade que são imprescindíveis para o bom
convívio32.
No caso de Seu Adolfo e Dona Angelina, estes são avós do cacique geral da Lomba do
Pinheiro, José Cirilo Silveira. A área da Lomba conta com 10 hectares de terra, dentro da
rede urbana de Porto Alegre, que mesmo sendo mais retirado das zonas centrais, não
comporta um verdadeiro Teko’a no seu sentido pleno, por não ter mato, nem animais de caça,
e a água que abastece a área ser proveniente de um açude construído pela Prefeitura de Porto
Alegre, após muitas lutas e movimentos em favor dos indígenas.
Essa família é proveniente de Misiones, na Argentina, e Seu Adolfo como Karaí que
quer “levar sua vida do jeito dos antigos”, não se adaptando ao modo de vida tão urbano
levado na aldeia da Lomba do Pinheiro. Portanto o constante contato com os “brancos” que
ocorre na aldeia da Lomba, bem como as aspirações dele de buscar o lugar que havia
sonhado na terra de Itapuã, onde antes já moraram os Mbyá, os fez partir para o sonhado
Teko’a. Não conseguindo se instalar no Parque Estadual de Itapuã, acomodou-se nos
arredores, nesta área doada pelo Estado que mencionei.
Francisco Witt, técnico da FUNAI, acompanhou e ajudou na mudança dessas famílias
para a área, mesmo informando os Mbyá das dificuldades que encontrariam naquela terra,
mas os índios insistiam que a terra era boa e que a queriam assim mesmo. No entanto, logo
os conflitos internos começaram a surgir e é comum Seu Adolfo acusar que os problemas

32
Segundo Garlet (1997: 152), “sem produtos cultivados e sem os recursos da mata o Mbyá se tornou pobre,
não que isto lhe possibilitava o acumulo de bens, mas porque já não lhe é mais possível estabelecer uma
comunicação de bens. Sente-se pobre porque, agora, as condições o compulsionam ao egoísmo: “ore ropyta
vy rakate’ÿ” – estamos nos tornando tacanhos, repetem os dirigentes espirituais. O individualismo levou a
terra ao esgotamento e a sociedade também está contaminada pelo cansaço.” Pode-se inferir desse episódio
que a reciprocidade, importante para manter o bom convívio entre os membros da comunidade, está
esfarelada diante da miséria em que estão vivendo os Mbyá.

65
maiores que tem são pelo fato de Seu Turíbio ser aparentado “daqueles kaingang, aqueles
índios brabos”, que ele julga não respeitarem nada.
Esses problemas mencionados são provenientes do fato da área não atender as demandas
Mbyá, e quando essas famílias, tentaram explorar os recursos do Parque, indo pescar na
Lagoa Negra, ou tentando armar armadilhas na mata para caçar, foram barrados e ameaçados
pela polícia ambiental. Da mesma forma, como se encontram cercados por vizinhos não
índios, e não costumam cercar seus terrenos, tiveram suas roças destruídas pelos animais dos
vizinhos, sem falar no comerciante que queria ocupar o terreno, onde pretendia instalar um
armazém, chegando a levar material de construção para lá, a fim de invadir a área com os
índios dentro mesmo.
Esses atos mostram o quanto é latente o preconceito da vizinhança em relação aos
índios, criando uma série de relações negativas entre os Mbyá e seus “outros”, pois para o
Mbyá esses “brancos” são desrespeitosos e gananciosos, incorporando todo o sentimento de
repulsa e antagonismo em relação a si mesmos. Eles são os maus, os sem cultura, os
bárbaros, para os Mbyá que são os verdadeiros seres humanos, que respeitam as leis divinas,
inclusive de origem, de ocupar aquele lugar33.
Essa tensão externa, no entanto, agrava a situação interna e as tensões da disputa dos
dois líderes, quando as acusações de “estar se entregando pro branco, porque tem parentesco
com o Kaingang”, vem do lado de Seu Adolfo, ou quando Seu Turíbio acusa Seu Adolfo de
achar-se mais Mbyá do que ele, e no entanto a situação não se resolve, por que até agora eles
não conseguiram deixar a área, e nem querem, pois tem medo de perder o que conseguiram34.
No entanto, ambos já pronunciaram o desejo de mudar-se, e até já sonharam com outros
lugares, mas se mantém ali a fim de resolverem os impasses burocráticos que os impedem de
utilizar o Parque, bem como querem preservar “a terrinha que têm”, se saírem sabem que vão
perder o lugar, como já perderam outros lugares. Um exemplo claro disso é o Parque
Estadual de Itapuã, que na década de 1970 era terra de Mbyá, e hoje é área proibida para eles.

33
Os Mbyá acreditam que a terra foi dividida entre os Juruá e os Mbyá, quando Ñanderu designou que os
campos seriam terra de Juruá e as matas Mbyáretã (terra de Mbyá), e que isto foi feito para que não
houvesse mais brigas, e que cada povo vivesse no seu território, mas os Mbyá reclamam que eles obedeceram
as leis divinas, mas os “brancos” desrespeitaram, e invadiram as terras dos Mbyá, derrubando as matas.
34
Se deixarem a área perderão a terra, e sabendo disso os Mbyá estão com medo de saírem de lá, estão então
esperando a resolução do Ministério Público em relação ao uso dos recursos do Parque de Itapuã, para ver se
melhoram as condições de vida, pois não querem perder “mais uma terrinha”, como dizem.

66
Hoje se fala em educação diferenciada, em saúde diferenciada, respeito à cultura, e se
tem a esperança de que os índios venham, embalados pelas novas leis, gozar de plena
cidadania no Brasil. A pergunta é: O que é gozar de plena cidadania num país que não
consegue superar suas desigualdades, onde as classes empobrecidas não têm plenos direitos
que lhes proporcione um bem estar social; onde não sofram com a fome e a violência
doméstica no seu dia a dia?
Os índios são uma categoria a mais de marginalizados, pois o Brasil comporta uma
parcela bem maior de excluídos que não são étnicos, não são “diferentes” perante a lei, mas
que são tudo isso de fato, porque são pobres e vivem a margem da sociedade e sua cultura
dominante.
A emergência de grupos étnicos, organizações dentro do Estado é um fato, já que não
só no Brasil os grupos indígenas se organizam a partir de movimentos que ressaltam a
diferença étnica e cultural como elemento dinamizador para exigir direitos e participação na
política desse Estado. E no Brasil, embora tenha havido pressão por parte da própria
sociedade nacional e internacional, que nos anos de 1970 e 1980 emergiam para uma nova
dinâmica de relações com o sistema capitalista e os Estados nacionais, fizeram com que os
grupos e comunidades indígenas produzissem representantes ou organizações que os
representassem, como forma de atuarem dentro dessa dinâmica, embora carregassem nessa
indianidade a forma genérica da categoria jurídica que lhes havia sido aplicada pelo poder
público. (RICARDO, 1998: 47).
Dessas representações iniciais várias outras vão surgir pós 1988, com a mudança na
Constituição brasileira, e essas organizações, que são mecanismos puramente políticos, se
apresentam nos moldes ocidentais, para poderem assim lidar com o discurso e o mundo
institucional, público e privado, desse Estado que os congrega.
Vendo esses movimentos e pensando no movimento atual dos Mbyá Guarani em
favor da Escola, mesmo não sendo um consenso dentro do grande grupo, mas um evento
restrito a algumas comunidades, pode-se ficar alerta para o que Verdery (In: VERMEULEM
& GOVERS, 2003: 70) nos aponta, dizendo que:

as identidades não são necessariamente essenciais e fixas,


que são situacionais, que o que conta são as fronteiras em
vez do seu conteúdo, que a etnicidade é antes de mais
uma forma de organizar a vida social e não uma

67
característica inata ao ser humano. Apesar de eu já ter
sugerido que os processos de formação de Estados no
mundo real poderão ter subestimado o “situacionismo”
em alguns locais, penso que será preferível enfatizar o
situacionismo, a invenção e as fronteiras em vez do
conteúdo, ao invés de aderir ao novo racismo e sexismo
implícitos em inúmeras políticas de identidade.

O âmago da questão é que existem as desigualdades sociais, que estão calcadas nas
diferenças culturais. Embora o senso comum remeta a compreender as diferenças através de
conceitos marcadamente racistas e a entender o progresso como algo cumulativo que
pertença ao homem moderno, Levi Strauss (1970) mostra através de vários exemplos que o
determinismo geográfico ou a raça não são fatores relevantes para explicar as diferenças
entre culturas ou segmentos sociais. Estes podem influir, assim como as especificidades do
meio em que se encontram os indivíduos, mas que as sociedades não estão isoladas e,
portanto não se pode pensar que elas não interagem entre si, e que mesmo as sociedades do
passado se desenvolveram e construíram sua história, baseadas em suas experiências,
necessidades e interação com outros grupos diferenciados. As culturas não se diferenciam do
mesmo modo, mesmo que aplicando técnicas semelhantes ou trocando informações, a
diversidade é muito mais rica do que se pode conhecer e muito mais dinâmicas são as
transformações culturais que estas sociedades podem desenvolver.
É interessante perceber como o autor coloca o fato da sociedade ocidental usar termos
como “selvagem” para designar os grupos sociais que seriam tidos por primitivos, atrasados
em relação ao progresso moderno, etc., e que esse tipo de designação é uma das atitudes
marcantes das sociedades indígenas, para designar aqueles que não são do seu grupo. Ou
seja, quando os chamamos de não humanos, estamos refletindo o mesmo sentido que eles nos
dão, quando nos chamam por alguma designação local. Lembro aqui do que nos fala Viveiros
de Castro (2002), quando fala do “nativo relativo”, aquele que nos avalia e nos coloca no seu
discurso, da mesma forma como fazemos com ele.
É como diz Levi – Strauss: (1970: 60):

a humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do


grupo lingüístico, por vez mesmo, da aldeia...

68
É o paradoxo do relativismo, e assim pode-se pensar como é equivocada a idéia de
evolucionismo cultural, como se cada sociedade não tivesse sua própria história, sua própria
rede de significados. Pensar uma sociedade, uma cultura, como antepassado de outro é
perigoso e até pernicioso, já que as culturas e as sociedades não evoluem de forma linear e a
ordem de grandeza do passado de cada grupo social e cultural depende de sua rede de
significados.
Na perspectiva etnocêntrica as coisas só podem ser explicadas se tiverem relação com a
rede de significados ocidental, por isso somos nós que classificamos as culturas, as raças, as
sociedades. São os nossos valores que estão intrínsecos ao observar o outro; e então
discorremos nossas explicações cientificas e fazemos valer nosso discurso.
Há de se admitir que a cultura ocidental se impõe, mas não se pode menosprezar os
avanços tecnológicos que a humanidade criou ao longo da sua existência, e que não foram
obra de mero acaso, como muitos tentam afirmar. Levi – Strauss (1970: 84) afirma que as
descobertas do fogo, do cozimento, da agricultura, etc., só puderam acontecer porque houve
mentes pensantes para elaborar as técnicas, o acaso não poderia por si só resultar no
progresso tecnológico, por que este não se cria sozinho. Como o próprio autor diz que a
genialidade independe da raça ou cultura, mas de condições que estão fora da consciência dos
homens.
Dizer que este ou aquele modo de ser é o correto depende do ponto de vista de quem vê
e vive neste modo de vida. Se o olhar do “nativo”, desse “outro” que se relaciona conosco, vê
outros elementos como importantes para a sua história e significação, isto não quer dizer que
ele seja mais ou menos inferior a mim, ao modelo de vida ocidental que tenho em mente, mas
sim que é diferente e que a maneira que ele vê e age sobre sua sociedade resolve seus
problemas.
Temos que atentar também para os outros pontos salientados por Levi – Strauss 1970): a
cultura, assim como a história, se dá por combinações, trocas. Quando há a interação entre
sociedades diferentes, seja da forma que for (comercio, guerra, aliança, etc.) há trocas
culturais inevitáveis. Portanto não poderia haver culturas superiores, senão essas trocas não
seriam validas. E esse suposto progresso ditado pela sociedade ocidental, está de certa forma
inteiramente ligado à essas trocas, ele está envolto nesse duplo sentido entre os dominantes e
dominados, entre a unificação e a diversidade e ele só acontece por que há a diversificação

69
cultural, infelizmente esse progresso acabou sendo entendido pelas classes dominantes não
como algo dinamizador das interações sócio - culturais, mas como o criador das
desigualdades sociais.

2.2. A EDUCAÇÃO NAS SOCIEDADES TRADICIONAIS.

Nas sociedades tradicionais a educação se dá no seio da família e da comunidade, não


havendo uma instituição responsável pela educação propriamente dita, por que esta acontece
no dia a dia, nas práticas cotidianas e não desvinculada do aparato simbólico e do espaço em
que essa comunidade desenvolve sua sociedade e seu modo de ser.
Por isso é importante entender as relações que os Mbyá tem com esse espaço
simbólico e com o seu modo próprio de entender o mundo e transforma-lo, para entender o
significado da escola que está sendo implantada no interior de suas aldeias, com um aparato
burocrático e institucionalizado que difere de sua visão de mundo, mas que acaba sendo
buscada na atual conjuntura sócio – política, como uma forma de amenizar os impactos
interétnicos que o grupo vem vivenciando.
Nesse sentido, é importante fazermos um sobrevôo sobre os significados desse
aparato simbólico que os Mbyá preservam e que ao mesmo tempo tem sido resignificado no
comércio, com a venda do artesanato indígena, que comporta a transformação de sua cultura
material em objetos comercias, e também a transformação de áreas territoriais estranhas ao
que seria o ideal para formar um Teko’a, mas que acabam sendo transformadas e adequadas a
atual situação em que vivem essas comunidades.

2.2.1. O MITO E O ESPAÇO GEOGRÁFICO NAS REPRESENTAÇÕES CULTURAIS


DOS MBYÁ GUARANI

Os Mbyá Guarani vêem o mundo em que vivemos atualmente como uma imagem do
mundo real. Este mundo real, onde a terra era boa de se viver, a água era limpa, no mato
havia caça em abundância e os Guarani moravam em uma grande aldeia junto de Ñande Ru -
Kwrahy, filho de Ñanderuvusu, que vivia nesta terra. Isto foi há muito tempo, depois da

70
formação do primeiro mundo, pois hoje vivemos num segundo mundo, depois que Tupã
destruiu o primeiro mundo, através de um grande temporal, onde só os Mbyá sobreviveram35.
Depois teve a guerra entre os Juruá – homem branco - e os índios, onde os Guarani
foram levados pelo Kechuita – entidade mística - para um lugar seguro e que só retornaram
quando a Guerra havia acabado e Ñande Ru – entidade mitológica - se retirado para a Terra
sem Mal – Yvy marã’ey - lugar mítico e ideal para onde todos os Guarani, que viverem nesta
imagem de mundo, neste reflexo da terra ideal, de maneira correta, no seu modo de ser,
seguindo as prescrições do Paí - Karaí – líder religioso - e de Ñanderu. Esta terra pode
inclusive ser alcançada antes da morte, desde que o Guarani seja o mais autêntico e
respeitador das regras sociais possível, porém isso é um grande desafio já que neste mundo
torto e desregrado é difícil seguir o modo de vida sem desvios de conduta.
Essa e outras relações míticas, como acabo de relatar partindo das informações
obtidas com representantes do grupo étnico, fazem parte do cotidiano dos Mbyá, com
algumas variações entre as áreas de ocupação territorial, assim como de tantas outras
populações indígenas, pois essas populações recriam seus mitos e sua história através da arte
que produzem e do espaço que ocupam e exploram.
Segundo Mircea Eliade (1992) a ação simbólica sempre esteve presente na mente
humana, apresentando-se de diferentes formas, mas sendo praticada através de arquétipos que
são reconhecidos pelo grupo que os detém. O homem reconhece seus atos através da
repetição de atos praticados pelos heróis fundadores, sendo estes sempre repetidos nos
rituais, onde se manifestam as ações dos mitos, e nos elementos da cultura material que
compõem o cotidiano de suas sociedades.
A cosmologia indígena é sua filosofia, é ali que se encontram as explicações para o
mundo e para a organização social. E o homem, conforme nos salienta Geertz (1989), só
existe enquanto ser cultural, sendo que a cultura depende do homem, os símbolos e seus
significados, que são específicos em cada cultura, são criações desta e dos homens que a
construíram. A busca das variações culturais leva ao conhecimento do homem, enquanto ser
construtor de suas próprias leis, e padrões de vida.

35
O relato desse fim do mundo, e da Guerra que foi travada entre os brancos e os índios, foi contada pelo Seu
Turíbio e por Dona Laurinda, em 15 de novembro de 2003, embora esses elementos já tenham sido coletados
entre outros Mbyá e narrados por vários pesquisadores.

71
O artesanato conta um pouco dessa história, já que traduz em seus desenhos e em suas
formas artísticas esse mundo místico que em geral existe na mentalidade indígena, em suas
memórias ancestrais, em sua oralidade, mas que é o motor que faz essas sociedades
continuarem vivas e atuantes. Percebendo isto concordamos com Lux Vidal (1992:13, apud
SILVA, 2001:28) ao dizer que:

os atuais estudos sobre arte indígena têm “aportado


evidências importantes para a análise das idéias
subjacentes a campos e domínios sociais, religiosos e
cognitivos”

E que seguindo ainda esse raciocínio, devemos atentar para as

“manifestações simbólicas centrais para a compreensão


da vida em sociedade”, como concepção da pessoa
humana, sua caracterização social e material, expressão
da ordem cósmica, são comunicadas por este sistema
altamente estruturado, que são as manifestações estéticas
de uma sociedade indígena. Em outras palavras, a arte
“materializa um modo de experiência que se manifesta
visualmente”, principalmente na decoração do corpo e no
sistema de objetos, permitindo que os membros de uma
sociedade vejam-se ao olhar seus grafismos e objetos
(VAN VELTHEM, 1994:86, apud SILVA, 2001: 28).

Até mesmo o espaço territorial se identifica através das imagens mitológicas. E isto
não se reduz ao modelo Guarani de ocupação espacial, pois todos os povos possuem
estratégias cosmológicas para designarem espaços geográficos e territoriais que são ocupados
e manejados de acordo com justificativas relacionadas a sua filosofia de vida36.
Entre os Mbyá Guarani, tudo indica que a área da aldeia é dividida conforme a
divisão do mundo em quatro extremidades, sustentadas por esteios de madeira, que
correspondem à árvores sagradas. Estas extremidades são guardadas por divindades, de
acordo com os pontos cardeais – leste (Karaí Ambaré), oeste (Tupã Ambaré), norte –
noroeste (Yvytu Porá), sul (Ára Yma). A palmeira jerivá (Pindo - vy), se erguia no centro do

36
Como exemplo: “Foi em nome de Jesus Cristo que os conquistadores espanhóis e portugueses tomaram
posse das ilhas e continentes que descobriram e conquistaram. O levantamento de uma cruz era um ato
considerado e equivalente a uma justificação, e á consagração do novo território, isto é, a um ‘novo
nascimento’, repetindo dessa maneira o batismo (ato de Criação)”. ELIADE, 1992: 22.

72
mundo, que é visto pelos Mbyá como sendo o Paraguai, e o cedro (ygary) e o laurel (aju’y),
estariam sustentando o mundo recém criado, como colunas indestrutíveis. (MORDO, 2000).
E estas árvores são importantíssimas para a produção da cultura material desse povo, assim
como estão presentes na alimentação, no caso do pindó, de onde são feitos vários pratos,
como uma espécie de sopa do coração da palmeira37, e ainda é nesta árvore que se produzem
as larvas de mariposas (coro), que são alimentos importantes para os Guarani38. Nos
grafismos desenhados na cestaria se encontram representações da mariposa, em forma das
asas do animal, que são representadas por triângulos que se encaixam nas extremidades.
A representação da cruz (kurusú), está ligada à estas escoras da Terra (yvÿ itá), a
destruição do mundo pelo dilúvio e a seres antropomorfos, e esta é representada nos desenhos
gráficos dos cestos e em alguns cachimbos (opygua), bem como a própria cruz é feita em
trançado de taquara, geralmente para ser comercializada
Do cedro é feito um bastão ritual (yvyra’i), que nem sempre está presente entre os
objetos rituais dos Mbyá do Brasil, usado pelos caciques, assim como seria a madeira
preferencial para construir as estruturas da casa de rezas (Opÿ). Está madeira e a palmeira
estariam ligadas a sacralidade e ao fazer cotidiano, sendo árvores de alma dócil, já que os
Guarani consideram as árvores e os animais revestidos de atributos positivos e negativos,
relacionados a caracteres da índole humana, mostrando que aos seus olhos a natureza não é
estática, mas interativa com a natureza humana. (MORDO, 2000).
Nas populações indígenas, a imagem é a forma de diálogo mais compreensível
existente, pois eles traduzem tudo a seu redor em símbolos, em ícones. As pinturas corporais,
naqueles que ainda a preservam, são códigos que podem representar várias coisas, como clãs,
hierarquia social, parcialidades, etc.
Os desenhos, que para nós ocidentais modernos podem parecer apenas estéticos, têm
uma função social importante na sociedade indígena, são representações da sociedade e do
mundo divino possíveis de transferir do espaço psíquico para o espaço físico. Entre os
37
Em visita a um grupo Mbyá que está assentado em Itapuã – RS, no dia 23 / 10 / 2003, onde vivem duas
famílias lideradas por senhores idosos, que são Karaí reconhecidos por toda a parcialidade Guarani, um deles
- Sr Adolfo (86 anos) – comentou a falta do pindó na área que ocupam e se queixou de não poder fazer a
referida sopa do miolo da palmeira, de que tanto gosta, assim como disse ser muito triste não ver essa árvore
plantada em suas terras, pois esta seria muito importante para a sua identidade e para preservar o modo de ser.
38
Os Nukak, que são um grupo caçador coletor da Amazônia colombiana, também se alimentam de larvas
que são depositadas no tronco de palmeiras, muitas vezes derrubadas propositalmente na floresta, a fim de
cultivar essas larvas, que além de nutritivas tem um aspecto simbólico relacionado a sua ingestão como
alimento. (POLITIS, 1996)

73
Guarani há a indicação de que as antigas pinturas corporais das mulheres foram transferidas
para os cestos, inclusive existe um mito sobre a criação do ajaká – o cesto cargueiro, que é
construído pelo marido para uso da mulher39 – que fala sobre este cesto ter sido criado por
Kwarahy para ser a mulher do Diabo – Aña - sendo exatamente a representação da mulher
com suas pinturas corporais40.
Segundo Silva (2001), a arte indígena é um sistema de signos compartilhado pelo
grupo, que através das expressões estéticas representam sua identidade étnica e cultural,
porque a arte significa e não apenas representa. (LEVI – STRAUSS, 2002).
Ainda segundo Levi-Strauss (2002: 41), concordamos que:

ela permite compreender melhor por que os mitos nos


aparecem simultaneamente como sistemas de relações
abstratas e como objetos de contemplação estética; com
efeito, o ato criador que engendra o mito é inverso e
simétrico àquele que se encontra na origem da obra de
arte.

O que nos leva a compreender que a arte indígena traduz o mito, que por sua vez
conta a história, na sua totalidade, partindo de uma estrutura (filosófica, cosmológica, mas
real), que dará origem a um conjunto de interpretações representados na arte, já a arte
ocidental moderna parte do conjunto, do conhecimento do objeto e do fato, e daí seguindo a
descoberta de sua estrutura e de sua interpretações.
Em geral os mitos indígenas de diferentes grupos podem ter aproximações em seu
corpo, mas grupos de mesmo tronco lingüístico possuem mitos muito parecidos, como no
caso os Guarani da região sul do Brasil que possuem mitos muito semelhantes aos mitos
amazônicos de grupos tupi, já que são de mesmo tronco lingüístico, e sabe-se que os Guarani
migraram da região amazônica para o sul em época remota, trazendo elementos culturais
consigo, que se preservaram e se adaptaram aos novos ambientes.
Não é incomum nos mitos de criação do mundo a mulher ou o ser que a representa
desaparecer ou transformar-se em algum elemento da natureza, através da morte ou da
mutação, após dar a luz.

39
“Solamente cuando el cesto carguero de la mujer, el ajaka ete, queda inutilizado para el uso, su marido
procede a confeccionarle uno nuevo, com diseños vinculados com el ciclo vegetal, para que ella pueda
utilizarlo em la recolección” (comunicação pessoal de Dionisio Duarte – Misiones). (MORDO, 2000: 24).
40
Ver Tese de doutorado de Sergio Baptista da Silva (2001), onde se encontra a transcrição do mito

74
Entre os Guarani o parto é precedido de muitos cuidados, sendo que o pai depois do
nascimento do filho se resguarda, não podendo caçar nem pescar, até ser liberado pelo Karaí,
após a proteção da criança ter sido realizada. A mãe, em geral, não possui restrições de
trabalho, mas assim como o pai da criança, ela deve atender um período de restrições
alimentares que estão relacionadas a boa saúde da criança, e fica impedida de comer muitos
alimentos, como a carne do tatu por exemplo. E haveria pinturas corporais impressas no
rosto, nas mãos e nas articulações da parturiente, do pai da criança e na própria criança ao
nascer, que seriam símbolos de proteção contra os espíritos maus que podem atacar nesse
período frágil da vida.41 (SCHADEN, 1974; MORDO, 2000).
O nascimento das crianças está relacionado ao crescimento do milho, por isso muitos
Mbyá sempre dizem que enquanto houver milho haverá Guarani e que as crianças são o seu
futuro e é para elas que eles lutam para preservar sua cultura. O ritual de nomeação das
crianças, que passam por um longo período de rezas, danças e cantos na Opÿ - casa de rezas –
coincide com a colheita do milho.
As danças e cantos também são representações culturais e simbólicas muito
importantes nas sociedades indígenas. O canto e a dança não são vistos apenas como lazer e
recreação, mas, como princípios rituais ligados aos espíritos e divindades. Entre os Navajo,
norte – americanos, existem danças rituais que podem acelerar o fim do mundo, ou levar para
uma terra paradisíaca, assim como restaurar a saúde da terra e curar os doentes, que por
estarem ligados a terra só ficariam doentes por que esta também o estaria42 (ELIADE, 1992:
68; McLUHAN, 1986).
Entre os Mbyá Guarani a crença em que a Terra está doente e que morrerá em breve,
também existe, e eles acreditavam que até o ano 2000 este mundo teria seu fim. A destruição
do mundo seria através de um grande fogo que queimaria tudo e todas as pessoas, e então os
Guarani que vivessem conforme o Ñandereko (modo de ser tradicional), iria para a Yvy

41
Segundo Schaden (1974), o nascimento de uma criança, assim como a morte de alguém, seria um período
de crise dentro da sociedade, já que remete a uma mudança na rotina, uma transformação da ordem. Esse tipo
de análise também é vista, em âmbito mais geral, por Eliade (1992).
42
Essas crenças entre os Navajo e outros indígenas norte americanos foram registradas no século XIX, e podem
estar relacionadas ao processo de conquista da América, onde a degeneração das sociedades indígenas e a
destruição das suas aldeias e de sua cultura foi massiva. E também entre os Guarani Kaiowá, Schaden (1974),
registrou um fato interessante, onde na iminência da ocupação de suas terras por colonos assentados pelo
governo do Mato Grosso, os Kaiowá fizeram dias e noites de danças e cantos (raivosos) a fim de acelerar o fim
do mundo e a tão sonhada passagem dos Guarani para a Terra sem Males.

75
Marã’ey, viver com os deuses e com os antepassados, longe dos males do mundo atual, onde
não há doenças, nem fome. Onde a terra produz alimentos sem precisar cultiva-la, e os rios
são piscosos e limpos, enfim onde o “sistema de Guarani” pode ser produzido por completo e
todos são felizes. Esta seria a Terra verdadeira e onde vivemos é apenas uma imagem da
Terra43.
Muitos grupos indígenas possuem mitos que falam do barro como elemento presente
na criação do mundo e do homem, tendo no cozimento da argila a representação da passagem
da forma crua para o cozido que mitológicamente significa a passagem da natureza para a
cultura (MONTICELLI, 1995). Entre os Guarani a fabricação de vasilhas cerâmicas já foi
muito empregada no passado, hoje com as mudanças sociais e a modernidade, as panelas
para cozinhar e utensílios de armazenamento foram sendo deixadas de ser fabricadas para dar
lugar ao uso de panelas de ferro e potes plásticos, mas a fabricação de cachimbos de barro
nunca foi abandonada, e pelo contrário, é uma tarefa empregada e valorizada no grupo, pelo
caráter simbólico e ritualístico que possuem esses cachimbos.
Eles são modelados em argila, que é coletada em barreiros, ou quando não é possível
conseguir o barreiro em barrancas de rios, se produz esse barreiro na área onde moram e só
em último caso se irá comprar a argila comercializada44, estes são decorados com motivos
referentes à natureza, geralmente ao mundo animal, representando o jaguar ou cobras na sua
maioria. Estes desenhos feitos nos cachimbos são gráficos, seguindo o padrão estético que os
Guarani e a maioria dos grupos indígenas usa para exteriorizar suas imagens mentais dos
elementos naturais45.

43
“Pouco importa se as fórmulas e imagens através das quais o homem primitivo expressa a ‘ realidade’
pareçam infantis e até mesmo absurdas para nós. É o profundo significado do comportamento primitivo que
consideramos revelador; esse comportamento é governado pela crença numa realidade absoluta, oposta ao
mundo profano das irrealidades’; em última análise, este último não constitui um ‘mundo’, propriamente
falando: ele é o ‘irreal’ par excellence, aquele que não foi criado, o não existente: o vazio”. (ELIADE, 1992:
81).
44
No Brasil o uso de materiais industrializados para a fabricação do artesanato é muito mais comum do que
no Paraguai e na Argentina.
45
Entre os Nukak, que são grupos caçadores coletores da Amazônia, Gustavo Politis (1996) encontrou vários
elementos representativos da cosmologia regendo as práticas cotidianas, como a caça, por exemplo, que
restringia o consumo de carne do jaguar, do veado e da anta, já que estes animais povoam o mundo mitológico,
e eles acreditam que estes residam no mundo de baixo – eles crêem que a terra é plana e que existem três
mundos sobrepostos, o mundo de baixo onde vivem Nukaks e estes animais que vivem como gente, o mundo do
meio que é o deles e o mundo de cima, onde moram os espíritos dos antepassados e os deuses. Porém fabricam
flautas rituais com a tíbia de veado, bem como usam caninos de jaguar como contas de colar, e esses objetos
representam prestígio dentro do grupo.

76
Entre os Mbyá o Jaguar, nossa onça pintada, é um animal muito importante na
cosmologia, ele está ligado á força bruta, a selvageria, aquilo que seria primitivo e ainda não
humano. Assim como a cobra também tem atributos relacionados à sexualidade e a
ambientes selvagens. A cobra, assim como o jaguar são animais presentes em vários mitos
indígenas do alto Xingu e da Amazônia, compondo uma infinidade de atributos relacionados
a organização social dessas comunidades, desde a criação do mundo onde estes animais
comporiam aldeias, conforme as aldeias dos homens, até a miscigenação entre estes animais
e seres humanos, através de atos sexuais tanto dentro como fora de alianças de casamentos.
Um caso curioso aconteceu na aldeia da Varzinha, no município de Maquine – RS, e
me foi relatado pela enfermeira da FUNASA, que tratou do caso.
Uma senhora muito idosa faleceu nessa aldeia, e como ela vinha se mostrando doente
fazia alguns meses, a enfermeira já conhecia o caso dela e alertava aos familiares que estes
deveriam cuidar mais de sua parenta, mas estes se mostravam reticentes e diziam que ela já
tinha vivido demais, estava na hora de ir embora deste mundo.
A senhora morreu e os funcionários da FUNASA foram atender o caso e dar os
encaminhamentos legais a fim de liberarem o corpo para os rituais de enterramento,
conforme os costumes Mbyá. Chegando na Varzinha encontraram a aldeia vazia, apenas um
rapaz se encontrava lá para entregar o corpo da velha senhora46 para os enfermeiros, e este
logo se ia embora alegando que a mulher “ia virar tigre”. Todos os outros moradores da
aldeia estavam em Barra do Ouro, esperando que o corpo fosse retirado da área indígena.
A enfermeira responsável não sabia o que fazer e tentou convencer o rapaz de que
eles tinham que enterrar a sua parenta na aldeia, onde ela morava, conforme os costumes
deles. Mas este alegou que ela iria se transformar num tigre (onça), e atacaria a todos na
aldeia, por isso não iam enterra-la, e dizendo isso foi-se embora deixando o corpo da falecida
nas mãos dos enfermeiros da FUNASA, que depois de muito custo conseguiram convencer
os moradores da aldeia do Cantagalo, em Viamão, a lhe darem um enterro digno nesta

Este grupo também costuma fazer pinturas corporais, que são diferenciadas entre homens e mulheres, usando
uma tintura natural extraída de folhas de uma planta chamada eóro, que é processada pelas mulheres dando
origem a uma pasta que é guardada por cada indivíduo como artigo pessoal e usada freqüentemente.
Infelizmente o autor não analisa os desenhos já que seu trabalho não possui esta proposta (POLITIS, 1996).
46
Cabe notar aqui que a mulher estava paramentada para ser enterrada conforme os costumes indígenas, com
seus adornos corporais, e uma espécie de trançado com desenhos gráficos que lhe cobria o corpo, que seria
então depositado no caixão de madeira levado pela FUNASA.

77
comunidade. Sabe-se que isto aconteceu e que depois de vários dias de rezas e cantos para
expulsar o espírito do tigre da velha senhora, está descansou em paz47.
Podemos retirar deste episódio o entendimento de como essas imagens ligadas aos
princípios da natureza cosmológica são influentes no cotidiano indígena. Entre os Guarani
acredita-se que o ser humano possui entre duas e três almas, e que estas teriam diferentes
destinos após a morte.
Ao nascer, uma criança recebe a alma vinda de Ñanderu, que vai consagrar-se quando
do ritual de nomeação, realizado pelo Karaí na Opÿ, conforme mencionei acima. A outra
alma seria uma alma ligada ao mundo animal, selvagem, e esta designaria o lado mais
instintivo da pessoa, e conforme o animal relacionado a esta alma, seria a personalidade
dessa pessoa, no caso dessa senhora, a alma dela era o jaguar, e esta alma animal deveria ser
dominada durante o crescimento, espiritual e físico, da pessoa. Sendo que se a pessoa não
leva uma vida conforme os ensinamentos Guarani, desviando-se do ñandereko, esta pessoa
corre o risco de ao morrer liberar a alma animal que vai ficar na terra atormentando os vivos
de sua comunidade, já que esta alma fica onde o corpo foi enterrado, ela vai morar no
cemitério e sai durante a noite para assustar os vivos. Há também a crença em feitiçaria, onde
pessoas que são acusadas de praticarem feitiçaria são mal vista dentro da comunidade e
quando morrem podem causar muitos danos aos seus parentes.
Essa é uma crença comum entre outros povos amazônicos, os Nukak também
acreditam nas várias almas humanas, com uma elaboração mítica muito semelhante à dos
Mbyá, assim como alguns grupos xinguanos também crêem nos espíritos dos mortos que
ficam vivendo na terra dos vivos e atormentando suas antigas comunidades48.
Os mitos de retorno ao princípio de tudo são revividos nos rituais, nos cantos, nas
danças e no artesanato, na cultura material produzida pelos grupos tribais. Dessa forma eles

47
É possível ter uma idéia mais aprofundada da relação que os Mbyá tem com a morte e a doença, no trabalho
de GARLET (1997), onde o autor alerta para a concepção de que os mortos causam mais medo do que a
morte em si, já que ao morrer o individuo torna-se um outro no grupo, que é capaz de trazer doença e maus
augúrios para os vivos, e que este vai assombrar a área onde morava, o perigo que este Mbogua – que é como
chamam esse fenômeno – pode causar não sai de sua área de domínio, então é comum a família do morto se
mudar depois do enterro de seu parente.
48
Ver: POLITIS, Gustavo. Nukak. Colómbia: Instituto Amazónico de Investigaciones Científicas – SINCHI,
1996, para conhecer os mitos sobre a morte e os espíritos que vem “assombrar” os acampamentos, fazendo
com que os Nukak nunca ocupem o mesmo lugar onde acamparam antes para evitar esse espíritos; e os livros
de Orlando e Cláudio Villas Boas, sobre os mitos indígenas e a arte dos pajés na região do Xingu, onde os
Mamaés – espíritos dos mortos que ficam vivendo na floresta e atacam os homens a noite, são fortemente
temidos e controlados pelos rituais xamanicos.

78
podem recriar a imagem do caos e reafirmar a imagem da ordem (ELIADE, 1992). Para
grupos que, como os Guarani, passaram e passam, por um processo de fricção interétnica,
essas imagens ganham novos contornos, e vão surgindo outros elementos para povoar o mito.
Estes se misturam aos mitos originais dando origem a novas interpretações das imagens já
conhecidas.
Mas os mitos e as histórias traduzidas no desenho gráfico da cultura material desses
povos também podem ser vistos como um elemento de resistência ao próprio processo de
fricção interétnica, pois mesmo recebendo novas influências da sociedade de atrito, estas são
recriadas, acabando por reforçar o mito e muitas vezes remodelar o rito, mas não chegam a
destruir a visão de mundo e filosofia da sociedade autóctone49. (CUNHA, 1986).
Os mitos são interpretações que os povos indígenas fazem do mundo em que vivem, e
essas interpretações ganham formas materiais nos objetos criados a sua imagem, são
significados que são armazenados através dos símbolos, dramatizados nos rituais e relatados
nos cantos e nas danças. Segundo Geertz (1989: 93), tornam-se assim padrões estéticos
repetidos e valorizados pelas novas gerações que vem recebendo essa educação e convivendo
com esses símbolos. Isso faz parte da preservação do ethos, da maneira de ser, que é diferente
da visão de mundo, mas que carrega na filosofia expressada na arte indígena o cerne do ethos
que o identifica com sua cultura, já que:

ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua


vida, seu estilo moral e estético, e sua disposição é a
atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu
mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse
povo tem é o quadro que elabora das coisas como elas são
na simples realidade, seu conceito de natureza, de si
mesmo, da sociedade.

Quando Eliade (1992) fala dos rituais que imitam o arquétipo divino da criação, está
aí falando da necessidade da constante recriação do mundo primevo como base para a
manutenção do ethos, já que este é o esteio que sustenta o controle cultural e que faz

49
Ver: CUNHA, Manuela Carneiro da. Lógica do mito e da ação: o movimento messiânico canela de 1963.
In: Antropologia do Brasil: mito, historia, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986. Aqui a autora faz uma
análise da transformação do mito de criação de Auke (que seria o homem branco), relacionado aos mitos e
ritos de origem da sociedade Rankakomecra-Canela , que geraram um movimento visto como messiânico por
um pesquisador britânico, mas que em realidade estavam sendo redimensionados dentro da nova realidade em
que vive este grupo de tradição lingüística Jê.

79
compreensível a visão de mundo dessas populações. Entre os Mbyá Guarani esse tipo de
ritual é diariamente elaborado, pois as rezas na Opÿ são sistematicamente realizadas todos os
dias, ou melhor todas as noites. Ali o Karaí, orienta as rezas, os cantos e as danças, que
começam ao entardecer, no pátio da aldeia, onde as crianças cantam e dançam alegremente e
com entusiasmo, e estas são depois encaminhadas para dentro da casa de rezas, já numa
atitude mais reservada e concentrada, junto dos outros participantes adultos50.
Na Opÿ o clima criado pelos rezadores, cantores e dançarinos é de sacralidade, como
de um lugar fora do plano profano, como se todos se tivessem lançado num plano divino. Ali
o Karaí solta uma fumaça de seu opyguá – um cachimbo de barro – sobre todos os
participantes, deixando a casa coberta por essa “neblina”, que representa a neblina original –
tatachima – que Ñanderu teria lançado sobre a terra e os homens a fim de lhes dar vida.
(MORDO, 2000: 147).
As rezas de cada pessoa são recebidas através de sonhos - que não necessitam
acontecer durante o sono – enviados pelas divindades. Cada pessoa recebe um número
infinito de rezas e estas são pessoais, mas também existem as rezas coletivas que são
cantadas em conjunto com o Karaí nos rituais diários, e aquelas que são destinadas a
objetivos diretos como a cura de uma doença, por exemplo, e que será recebida pelo Karaí
para aquela ocasião especifica ou já ser conhecida e reutilizada pelo rezador a fim de trazer
novamente a ordem e saúde àquela pessoa enferma51.
Os grafismos representados na cestaria e nos cachimbos também são recebidos por
cada indivíduo através dos sonhos. Estes são compartilhados com suas esposas ou maridos, e
até mesmo com os outros familiares, já que não é incomum copiarem os grafismos uns dos
outros, principalmente nos dias atuais em que o artesanato ganhou espaço comercial entre os
Guarani.
Mas há restrições em relação aos tipos de desenhos que podem e os que não podem
ser comercializados. Aqueles que representam o mito primordial, e estão relacionados a
criação do mundo e dos homens dificilmente são reproduzidos para fins de comércio, pois

50
Segundo relato de Seu Sebastião, da Aldeia do Cantagalo, em 20 de dezembro de 2003
51
Entre os Navajo a cura de uma doença só pode ser realizada durante uma cerimônia e esta deve esperar que
o xamã receba a ‘reza’, que compreende vários desenhos que são representados no chão, na areia. Somente
quando os deuses enviam todas as palavras (desenhos na areia) é que o xamã vai iniciar o ritual de cura e isto
pode levar dias até o desenho gráfico (que se assemelha a uma mandala) estar completo.

80
não seria correto o seu manuseio por pessoas que não o reconhecem e não lhe vão dar o
destino a que lhes cabe.
Há duas designações para os desenhos gráficos Guarani, um relacionado ao mundo
profano – angá – e outro que designa o mundo espiritual – ipará -, os desenhos que não
podem, ou não devem estar nos objetos a serem comercializados são do tipo ipará.
Na realidade a própria língua Guarani possui essa variação, existe a língua profana,
que é falada cotidianamente e a língua sagrada que é de uso ritualístico. Os Mbyá falam
fluentemente as duas e ainda o português e espanhol, na maioria das vezes.
Os índios tem uma relação de afetividade mística com a palavra. Na sua cultura, tanto
grupos do Tronco Jê como do Tupi, acreditam que cada vogal vibra uma nota do espírito, que
para os Guaranis é chamada de angá-mirim. Todos os sons produzidos têm vibrações que
comportam a ligação do espírito com o corpo físico e com a natureza, no qual estão inseridos,
em pé de igualdade com os outros seres vivos.
É o fato de articularem sons compreensíveis entre a comunidade que os diferencia do
resto dos animais, tornando-os homens, capazes de interagir na natureza, de manuseá-la.
(JECUPÉ, 1998).
Consens (1998) diz que a relação de um povo com os seus símbolos, se dá,
geralmente, de forma afetiva. A compreensão dentro da comunidade, do cognitivo
relacionado a ela é algo único, e só é compreensível à outros povos com a colaboração dos
donos dessa cultura52.
No Brasil, como em outros lugares do mundo, os índios ainda hoje expressam seus
conhecimentos através de símbolos que são gravados na cerâmica ou na cestaria. Esses
símbolos podem representar categorias sociais, identidade grupal, ou podem ter uma relação
de representação do meio ambiente, assim como fotografias, etc.
A linguagem encontra-se dentro desse sistema cognitivo, e de acordo com a análise de
Nietta Lindemberg Monte (1994), professora responsável pelo Projeto de Educação da
Comissão Pró-Índio do Acre, a passagem do conhecimento no âmbito oral

está construído socialmente na consciência


metalingüística desses indivíduos como uma ordem de

52
Comunicação pessoal durante um curso sobre Interpretação de condutas sociais préhistóricas: arte rupestre
e artefatos líticos, no NUPArq / Ufrgs, em 1998.

81
fatos e conceitos de natureza distinta e descontínua em
relação a escrita. É que esta condição dicotômica da
compreensão do que é oral e do que é escrito é um fator
importante na construção de suas práticas de
alfabetização bilíngüe nas escolas indígenas.

Esse tipo de relação entre o escrito e o falado deve ser trabalhado nas comunidades
indígenas respeitando a ligação da palavra com o indivíduo, dentro de um sistema
psicolingüístico próprio, ou seja, devem ser respeitados os diferentes processos de
desenvolvimento da mente em relação aos novos signos adquiridos, para que a compreensão
destes se dê de maneira gradual e construtiva, sendo aderidos pela comunidade, não apenas
decorados e repetidos.
O fato de termos uma educação bilingüe, ou seja na língua indígena e em português,
mostra a necessidade de construção de dois sistemas cognitivos interligados. É necessário
que o aluno índio compreenda os símbolos da língua portuguesa com a mesma relação
afetiva que tem com a língua materna, que é mais falada, porém há a necessidade de criar
uma gramática das diferentes línguas indígenas, e esse trabalho requer essa mesma ligação
afetiva, para que produza o mesmo efeito psicológico da passagem do conhecimento por via
oral.
Os indígenas, de maneira geral, têm demonstrado interesse em aprender a escrever e ler,
tanto em português, como na língua materna, porém com muito mais ênfase na língua
portuguesa para poderem entender o funcionamento da sociedade dos “brancos”.

O estudo do português serve para ler as escrituras


passadas de uma hora, uma semana, 20, 80 ou 100 anos
atrás. Serve para escrever nomes de gente, pássaro, peixe,
caças e nomes de árvores, terras, praias, pedras, nomes de
cobras, plantas, sol, lua, estrelas, nomes de abelhas ....
(Kiã-Kaxinawa apud Monte, 1994).

Como vivem em contato direto com a sociedade não-índia é necessário saberem como
ela funciona, para não serem enganados. E também eles querem deixar registrada sua
história, seus conhecimentos, sua maneira de ser, sua filosofia, para que as próximas gerações
possam ter acesso. Eles sabem que, para que o “branco” os conheça melhor e possa respeitar

82
sua cultura, eles têm de compreendê-la, e a melhor maneira de fazer isso é escrevendo sobre
ela, em português.
Este é um trabalho que ainda é bastante recente. A educação bilíngüe tem muito que
ser aprofundada, a compreensão das sociedades indígenas também. Já existem muitos
técnicos, colaboradores, estudantes, pesquisadores, que estão engajados nessa questão, mas
ainda falta a compreensão de boa parcela da sociedade, que ignora a existência de culturas
tão ricas, de pessoas lutadoras, que vivem mais de 500 anos de exploração, de
marginalização, de violência e preconceito.
A palavra é um elemento fundamental na cultura Guarani e seu uso é muito cuidadoso
e respeitado, já que ela representa o tom divino. Falar para um Guarani é um dom que vem
dos deuses, e por isso as palavras não devem ser colocadas em vão, o discurso de um líder
político e /ou religioso está diretamente ligado ao discurso divino, por isso esse povo é tão
eloqüente para o uso da palavra. Elas representam o ser Guarani, e por isso eles são
conhecidos como bons oradores53.
Louis Marin (1996), em seu artigo sobre a carta de Poussin em 1639, diz que a
imagem é um quadro gravado e o texto escrito um quadro falante. Se pensarmos que o
artesanato indígena e principalmente os grafismos da cestaria podem representar a idéia
gravada na imagem, já que não existia palavra escrita na cultura indígena, até a implantação
da escola, apenas a palavra falada e sonhada dos Guarani como uma tradução do mundo
cosmológico54, poderíamos tentar “ler” esse texto imagético na cultura material desses povos,
já que essa cultura só tem significado quando inserida no contexto da sociedade em que ela
foi produzida.
As imagens representadas nos animais esculpidos em madeira são interpretações do
meio ambiente em que se vive, da mata, dos rios e dos animais que os povoam, e que servirão
de alimento para o corpo ou para o espírito do indígena, fora desse meio são meras
representações estéticas, mas na cultura em que foram criadas e destinadas a suas funções são
muito mais educativas e profundamente filosóficas.

53
Ver: JECUPÉ, Kaka Verá. A terra dos mil povos: historia indígena contada por um índio. São Paulo:
Peirópolis, 1998. Aqui o autor, um índio Txucarramãe, que foi criado por uma familia Guarani, descreve
como cada som emitido pela voz humana e reconhecido pelo seu caráter divino e explica a diferença entre as
palavras divinas, a fala sagrada – ñe’e porã – e fala cotidiana, onde e como ela deve ser pronunciada.
54
Atualmente os Mbyá tem recebido instrução escrita através das escolas indígenas, mas culturalmente a
escrita é um atributo da sociedade moderna ocidental, não é reconhecida como atributo cultural tradicional, e
não tem o mesmo peso que a palavra oral.

83
Quando adquirimos um animalzinho de madeira ou um cesto Guarani ou até mesmo
um colar de sementes, não reconhecemos de imediato seu significado simbólico, pois não
participamos da cultura que o produziu, se quisermos nos aproximar desse significado somos
obrigados a questionar o artista que o fez ou alguém de sua comunidade, a fim de obtermos
alguma referencia, mas mesmo assim, aquele objeto nunca passará de um mero objeto para
nós, o que dentro da cultura própria ele jamais seria: um objeto. Lá ele é o mito, ou a
representação deste, que guarda em si a ordenação do mundo. No entanto o objeto que é
passível de venda já não carrega esses significados, sendo destituído de sua simbologia para
poder ser comercializado.
Pelo que foi exposto sucintamente até aqui, se pode perceber que o espaço ocupado
por essas populações está intrinsecamente ligado a sua cultura e é a partir desse espaço que as
imagens do cosmos e do sagrado são construídas, fazendo com que os limites entre o sagrado
e o profano sejam tênues linhas que dividem esses dois universos igualmente presentes na
vida indígena. Por isso a arte indígena não pode ser vista apenas como arte, ela concentra em
si a ordenação do modo de vida e da visão de mundo que essas populações criaram para si e
que representam o que chamamos cultura e identidade.

2.2.2. A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PELOS MBYÁ GUARANI: O USO E A


TRANSFORMAÇÃO DE ÁREAS DESTINADAS A ALDEIAS E ACAMPAMENTOS.

Os indígenas assim como qualquer outra população humana sofreu e sofre mudanças
em sua cultura, recriando dessa forma novas identidades e novos valores culturais de acordo
com as relações interétnicas a que está sujeito bem como às próprias mudanças internas que
ocorrem com a aquisição de novas tecnologias criadas e/ou adquiridas, sem, contudo
deixarem de pertencer ao grupo étnico ao qual se identificam55.

55
Isto se dá devido ao controle cultural que o grupo possui, conforme nos indica Bonfil – Batalla: el control
cultural, en torno al cual me parece posible la construcción de un modelo más global en el que el grupo, la
cultura y la identidad se relacionan internamente (dentro de la propia unidad étnica) y, al mismo tiempo,
pueden entenderse em su relación com otros grupos, sus identidades y sus culturas.

84
Porém, seguindo as teorias de Oliveira (1999:08), os índios continuam índios sim, só
que não se pode esquecer que são elementos ativos dentro do processo histórico56, portanto
não estão estagnados no tempo e no espaço, e muito menos são passivos diante das mudanças
sociais e, mais ainda, o autor afirma que:

pesquisadores diferentes não realizam uma descrição


homogênea das realidades que observaram. Uma
etnografia não resulta da aplicação mecânica de um
questionário; a sua simples existência e unidade supõe um
esforço sintético e interpretativo, bem como uma
experiência narrativa. (OLIVEIRA, 1999: 104)

Portanto, analisar descrições etnográficas de outros pesquisadores é analisar a


interpretação feita por eles, e mesmo quando são analisados nossos próprios relatórios de
campo, se está fazendo esta interpretação de acordo com a nossa experiência narrativa.
Os estudos arqueológicos que comprovam a antiguidade de ocupação de territórios
indígenas têm sido recorrentes para os laudos antropológicos que dão andamento ao processo
demarcatório de terras indígenas57. Porém, esses estudos, embora solicitados em muitos casos
pelos próprios indígenas, nem sempre correspondem às expectativas destes, já que a
ocupação tradicional exigida por lei, nem sempre pode ser comprovada pela análise
arqueológica, assim como a terra escolhida pelo grupo para ser reivindicada como área
propicia para ocupação indígena e desenvolvimento do seu modo de vida nem sempre possui
vestígios arqueológicos daquele grupo que a reivindica.
Temos que ter em mente que tanto o arqueólogo quanto o antropólogo estão
trabalhando com interpretações e não com a realidade dos fatos, portanto ao analisarmos uma
sociedade indígena seja através de vestígios da cultura material, deixada por essa sociedade,
como através da observação etnográfica de sociedades indígenas contemporâneas, sempre
estaremos escrevendo os nossos textos conforme as interpretações das impressões que
obtivemos diante do outro, pois nunca conseguiremos nos despir de nossa condição de

56
... uma compreensão das sociedades e culturas indígenas não pode passar sem uma reflexão e recuperação
críticas de sua dimensão histórica. Caminhando contra o senso comum, que sempre focaliza os indígenas
como relíquias vivas de formas passadas de humanidade, a proposta aqui é de considera-los como sujeitos
históricos plenos. O que significa que devem ser inseridos em eixos espaço – temporais e relacionados a
conjuntos específicos de atores, com valores e estratégias sociais bem determinados (OLIVEIRA, 1999: 08).
57
Conforme Decreto nº 1.775, de 08 de janeiro de 1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas de ocupação tradicional.

85
ocidentais modernos para adentrar na realidade e na visão de mundo de sociedades diferentes
da nossa58.
Em realidade trabalhamos com a imaginação simbólica dessas populações e com a
nossa própria, pois analisamos seus costumes e sua cultura através dos símbolos que os
representam e os interpretamos através do próprio código simbólico que nos é conhecido ou
dado a conhecer pelos donos da cultura que estudamos59.
No caso dos Mbyá, que procuram áreas florestadas, e que se forem recorrer aos
vestígios arqueológicos na maioria dos casos iriam encontra-los em áreas de campo e
lavouras, pois suas antigas terras foram ocupadas pela colonização e hoje estão sob as
cidades e/ou transformadas em áreas de agricultura de grande porte sob domínio da
propriedade privada. Dessa forma não servindo mais para ocupação indígena, que além de
não terem os recursos necessários para o desenvolvimento de uma sociedade que pratica
caça, coleta e agricultura de subsistência, precisaria ser desapropriada, o que não é uma tarefa
fácil. E mesmo, nem os Mbyá querem enfrentar uma luta judicial para obter a terra, já que
evitam confrontos com os “brancos”, preferindo a negociação pacífica.
Uma medida adotada para assentar grupos Mbyá que estavam vivendo nas beiras de
estrada no Rio Grande do Sul foi a compra de terras para a criação de reservas indígenas, já
que a demanda por áreas maiores e que possam comportar o grande número de famílias
Mbyá que vêm migrando para o Brasil é caso urgente.
Há áreas indígenas com aldeias – Tekoá – já bem antigas no Rio Grande do Sul, mas
muitos ainda vivem nas estradas, até por que, os acampamentos temporários fazem parte do
modo de vida, é ali que as famílias em curso durante as suas caminhadas ficam, e esses
lugares nas estradas estão dentro do ambiente cosmológico dos Mbyá, sendo por eles
reconhecidos como território. Da mesma forma, os acampamentos nas estradas proporcionam
a venda do artesanato, que nas áreas das aldeias fica muito mais difícil, já que são mais
afastadas do meio urbano e do movimento turístico.

58
Ver GEERTZ, Cliford, Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. Principalmente a Parte I.
59
Temos que estar atentos a estes conceitos, já que segundo Durand (1988), a imagem simbólica é
transfiguração de uma representação concreta através de um sentido para sempre abstrato. O símbolo é,
portanto, uma representação que faz aparecer um sentido secreto; ele é a epifania de um mistério.

86
Mas o Governo do Estado, em 2001, resolveu comprar três lotes de terras,
devidamente escolhidos e vistoriados pelos índios, junto de uma equipe técnica, para
acomodar algumas famílias Guarani que se encontravam nas estradas60.
Digamos que esse procedimento vai de encontro ao processo legal de demarcação de
terras indígenas, que deve ser comprovado pela tradicionalidade da terra junto ao grupo que a
requer, mas conforme os relatos dos próprios Mbyá, se estes forem exigir sua terras conforme
a lei esta seria praticamente toda a região platina, ou no mínimo o território missioneiro, da
antiga província do Paraguai. Então a compra de terras é vista como uma solução possível
para esta sociedade, que passou a requerer a posse de suas terras nos últimos anos, já que
para eles isso era desnecessário, já que a terra é um bem comum, que não deveria pertencer a
ninguém, já que foi criada por Ñanderuvusu para uso dos homens61.
As aldeias Mbÿá Guarani trazem muitas informações a respeito do uso dos espaços da
paisagem e também das transformações que esses indígenas fazem nas áreas que ocupam,
para que estas se aproximem o máximo daquilo que eles consideram um lugar ideal para se
viver. Bartolomeu Meliá já dizia que os Mbÿá tem o dom de transformar os lugares em matos
de Guarani, aproximando os lugares habitados por eles com os espaços amazônicos. Foi
observado por ele que em pleno São Paulo, os Mbÿá transformaram um matinho próximo a
cidade, onde implantaram seu Tekoá, num mato de guarani, com suas roças, o pátio, as
fogueiras, as casas e todas as características da terra ideal para os Mbÿá viverem do seu jeito,
a Mbyáretã, e que entrando lá sentia-se como se estivesse em algum lugar da Amazônia62.
Essas informações obtidas etnográficamente podem ser muito úteis na análise de um
sitio arqueológico, sendo levado em consideração todos os cuidados já salientados
anteriormente para que não se faça uma analogia direta dos dados obtidos etnograficamente e
os elementos arqueológicos observados.
Em se tratando de sítios Guarani, por exemplo, percebe-se a busca de informações, ou
de material arqueológico em abundância, dentro das manchas pretas, o que nos leva a
acreditar que o interior das casas seria amplamente utilizado, a fim de desenvolverem ali

60
Ver laudo técnico NIT – LAE / UFRGS/01-2001, de 09 de março de 2001, contendo Relatório
Antropológico Circunstanciado sobre as áreas contíguas à Coxilha da Cruz, à água Grande e ao rio
Inhacapetum, RS, de autoria de José Otávio Catafesto de Souza e Valeria S. de Assis.
61
Ver Informação nº 004/DEID/DAF, contendo proposta de Demarcação de terras indígenas Guarani (Mbyá),
da FUNAI – Ministério da Justiça – Brasília 23 de março de 1998.
62
Comunicação feita numa palestra no Congresso Internacional de Estudos Ibero Americanos – PUC/RS,
setembro de 2003.

87
inúmeras tarefas, no entanto ao observar aldeias Mbÿá, se percebe que o uso do pátio é algo
muito corrente, as vezes muito mais que o interior das casas, já que o espaço de
sociabilização é o pátio. Ali se faz a comida em um fogo de chão, com as panelas
acomodadas sobre ele, ali também é feita a refeição, que não possui horário definido, “o
Guarani come quando tem fome”63. No pátio estão dispersos objetos de uso cotidiano, como
panelas, talheres, facas, bacias, enxadas e outros utensílios que os Guarani usam em suas
funções diárias e que são de uso comum a todos os moradores da casa e até do acampamento
ou da aldeia.
O que se percebe é que não há problemas em esses materiais estarem espalhados pelo
pátio, assim como estes podem estar encostados às paredes das casas e não propriamente
guardados dentro da casa. Mas também podem ser encontrados guardados em jiraus dentro
da casa, e estes se estiverem lá, é por que tem algum valor afetivo ou importante para o seu
possuidor, já que a idéia de coletividade entre os Guarani é algo indispensável ao grupo. Mas
como eles possuem seus utensílios pessoais, estes podem estar guardados no interior das
casas, sendo que aqueles de uso comum ficam a mão de quem os quiser usar.
Geralmente os guardados na casa são documentos, por se tratar de material perecível,
roupas, que ficam dentro de cestos grandes - ajaká – fotos, desenhos em papel, e outros
objetos desse tipo. Mas as panelas da dona da casa também podem estar lá, ou encostadas às
paredes da casa64. Sendo sua utilização por outra mulher feita sob empréstimo diante do
pedido à dona da panela65.
As áreas ocupadas pelos Mbÿá Guarani para acampamentos temporários, como os de
beira de estrada por exemplo, tem um tipo diferenciado de utilização e dispersão de objetos e
casas no espaço, que como são temporários não possuem uma organização muito definida.
Esses acampamentos são elaborados para venda de artesanato e como paradouros, já que os
próprios Mbyá que estão morando neles os identificam como lugar de passagem, dizendo-se
que estão em viajem.

63
Marcos Verá – professor Mbÿá Guarani da aldeia do Cantagalo - RS, informação pessoal, em campo –
abril de 2001.
64
Ver fotos 3, 4 e 5, onde é possível ver os objetos encostados à parede da casa, bem como D. Angelina
preparando o almoço no pátio.
65
Não foram observados o uso de panelas de barro, as Mbyá usam panelas de ferro com alça, dizendo que as
panelas de barro antigas foram abandonadas por que não há mais “barro bom” para fabrica-las e que são
muito pesadas e quebram fácil, dificultando o transporte.

88
Os que são destinados a aldeias permanentes tem outro caráter e sua utilização é mais
ampla e organizada de forma diferente. Nas aldeias existem os espaços destinados a roça de
cada casa e à roça comum. Ali também se encontram as casas ligadas por caminhos que
formam uma rede dentro da aldeia, já que as casas não são dispostas lado a lado e sim
construídas aleatoriamente de acordo com o interesse de seus moradores e da destinação dada
pelos deuses, que encaminham a direção em que deve ficar a porta da casa. Essas
informações divinas são recebidas através dos sonhos e os Mbyá quando se deslocam em seu
território ou em territórios que vão passar a ocupar, já trazem a informação de onde e como
deve ser construída a moradia.
Essa sociedade se organiza primordialmente através do universo cosmológico sendo
que até mesmo o espaço territorial se identifica através das imagens mitológicas. E isto não
se reduz ao modelo Guarani de ocupação espacial, pois todos os povos possuem estratégias
cosmológicas para designarem espaços geográficos e territoriais que são ocupados e
manejados de acordo com justificativas relacionadas a sua filosofia de vida, só que esses
modelos se manifestam com mais eficiência nas sociedades aldeãs, já que as sociedades
ocidentais modernas têm outros padrões funcionais.
A educação das crianças passas por esses padrões culturais e cosmológicos que regem
o espaço da aldeia e o seu entorno, porém com as mudanças culturais advindas da relação
com a sociedade moderna, esses padrões têm se modificado bruscamente. Mesmo com o
aprendizado tradicional sendo proferido pelos Karaí e pelas próprias famílias, os jovens
começam a se afastar dos antigos costumes em razão do trabalho assalariado, que vem
crescendo dentro das aldeias em função das dificuldades econômicas e da falta de lugares que
comportem o antigo padrão econômico baseado na agricultura, caça e coleta66.
Aliás, percebe-se que as representações artísticas são muito importantes na cultura
indígena já que é através delas e de objetos simbólicos e representativos da cultura material
tradicional que se afirma a identidade cultural e étnica do grupo, neste sentido, Vidal (1992
apud SILVA, 2001: 33) lembra que:
o contato interétnico intenso pode resultar em estímulo
ao desenvolvimento de manifestações gráficas por parte
de sociedades indígenas, uma vez que “estes povos
66
Ver MORDO (2000: 173), que diz: “Los jovenes comiezam a apartarse levemente del sistema em el
momento de acompañar a sus mayores para desempeñarse em los trabajos estacionales, momento a partir Del
cual se acentua el contacto com la sociedad blanca.

89
necessitam mais do que nunca da afirmação de sua
identidade cultural”.

As casas tradicionais, feitas em madeira, xaxim, folhas de palmeira e barro, estão


desaparecendo, já que o material necessário para sua construção não está disponível em
qualquer lugar e muitas vezes se torna difícil de conseguir transporta-lo para as aldeias.
Porém a construção dessas casas criava uma relação entre a comunidade de grande
reciprocidade e mobilização para trocas de informações e festejos, sendo tradicional a
escolha do lugar para a fabricação da casa quando a família chegava na aldeia, assim como
todos os integrantes da família extensa se comprometiam a ajudar na construção, e quando os
moradores saiam da casa para seguirem em suas caminhadas, a casa era abandonada e caia,
não podendo ser reaproveitada por outros Guarani. Hoje em dia com a construção de casas de
alvenaria ou madeira, mais resistentes, este hábito tem se modificado e casas são reocupadas.
Embora tendo sido observado em várias ocasiões a construção de uma barraca de lona
plástica ao lado da casa, sendo que esta fica desocupada. Ao serem questionados sobre esta
atitude, os Mbyá simplesmente respondem que não gostaram da casa, preferindo morar na
barraca e logo mudam de assunto.
O habito de viajarem constantemente, leva os Mbÿá a ficarem morando nas aldeias
por tempo relativamente curto, chegando em média a cinco ou seis anos de ocupação de um
mesmo lugar. Nada impede que aquele que se mudou volte à mesma comunidade de onde
saiu algum dia, mas essa circulação é constante e está ligada ao próprio modo de ser, ao ethos
Guarani e sua cosmologia67.
Salientando que os hábitos dos atuais Mbyá foram sendo construídos a partir do
antigo modo de vida dos Guarani pré coloniais mesclando-se aos adquiridos durante o
processo de conquista da América e depois de todos os contatos interétnicos a que foi
submetido, hoje eles possuem um ethos próprio, característico de sua identidade étnica que
não pode ser vista como estática mas sim algo em permanente construção, como qualquer
sociedade humana.
Os Guarani, desde a chegada do europeu, vinham sendo empurrados cada vez mais
para zonas de difícil acesso e para dentro da mata, ainda não transformada em povoado

67
Ver GARLET, Ivori J. Mobilidade Mbyá: história e significação. Porto Alegre: PUCRS, dissertação de
mestrado, 1997.

90
colonial. Muitos saiam em busca da Terra sem males (Yvy marane’y), arregimentados pelos
pajés ou Karaí (Ñanderu’i), e estes, viam no processo colonizador a realização das profecias
de destruição do mundo, necessitando então orientar os Guarani para a sua salvação nesse
mundo místico. Esses Karaí eram contrários a formação das reduções pelos padres jesuítas,
mas contrariando suas predições, muitos Guarani aceitaram a incorporação a esses povoados,
diante da situação caótica que se encontravam, tendo o Tekoá (aldeia) desestruturado e
vulnerável ás investidas dos bandeirantes.
Esse processo intenso de desestruturação cultural, política, econômica e social a que
foram submetidos durante as guerras de conquista levaram os Guarani, tanto quanto os
demais indígenas do território americano, a reestruturarem suas crenças e a incorporarem
novos elementos à cosmologia já existente.
Segundo Cunha (1987), é comum entre os povos indígenas a resignificação dos mitos
e nunca o seu abandono. Isto é, se alguma profecia não se realiza conforme a mitologia
previa, isto seria por motivos alheios, ou seja algo estranho que interferiu no andamento
natural do universo, mas que não pode mudar as leis divinas, que serão reinterpretadas e
continuarão guiando os passos da sociedade indígena, muitas vezes sendo reforçados pelos
processos aculturativos68.
Santos (1988), também salienta como o processo colonizador serviu como acelerador
das práticas messiânicas entre os Guarani. A autora revela três pontos que devem estar entre
o desenvolvimento do Guarani colonial se transformando no Guarani atual, como sendo
intrinsecamente ligados aos valores religiosos em contraposição a pressão cultural em que se
encontravam durante a conquista e posteriormente à consolidação da colônia e do Estado
brasileiro69.

68
Ver por exemplo, o artigo: Lógica do mito e da ação: o movimento messiânico canela de 1963. In:
CUNHA, Manoela Carneira da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense,
1987.
69
Desde o século XVI até hoje o Guarani tem mantido e desenvolvido a dimensão profética de sua
religiosidade. O período colonial, com suas modalidades de conquista, contribuiu de forma marcante no
desenvolvimento dos movimentos de resistência. Estes apelam aos valores tradicionais ameaçados e,
agregam reinterpretações cristãs às concepções mitológicas.
Enquanto as condições histórico-geográficas permitiam, os Guarani desenvolveram migrações em busca
de uma plenitude subsistencial na qual estão implícitos os valores religiosos tradicionais do seu ethos. Com a
pressão espacial e cultural imposta a partir do período colonial e até hoje, a plenitude se torna mais
transcendente e o significado da ‘Yvy maran’ÿ’ parece ter configurado os elementos de uma crença
milenarista, conforme apontou E. Schaden. Sendo que o aspecto transcendente é mais acentuado em alguns
grupos.

91
O abandono de uma casa e / ou a saída de uma comunidade pode estar associada à
vários fatores, principalmente ao sonho de algum karai ou de alguém da família. Esses
sonhos são associados a “mensagens” enviadas por Ñanderu e pressagiam alguma coisa, que
pode ser boa ou ruim, e isso leva os Guarani a estarem sempre em movimento.
As migrações de aldeias inteiras de Guarani são tradicionais em sua cultura há
séculos, já nos relatos dos viajantes após a conquista, existem informações sobre essas
caminhadas e mesmo os vestígios arqueológicos indicam o hábito dos Guarani de
conquistarem novos territórios, sobrepondo-se às outras culturas ali existentes.
Seja em busca de novos territórios propícios a desenvolver seu modo de vida,
conquistado muitas vezes pela guerra contra outras tribos, seja pela busca da Terra sem
males, que seria um paraíso místico, ocupado pelas divindades, onde os Guarani poderiam
entrar, mesmo sem estarem mortos, desde que mantivessem em sua vida diária certos
critérios identificados como um modo de viver tipicamente Guarani70. E essa terra ficaria no
oriente, do outro lado do oceano Atlântico, por isso eles sempre migram para o leste. E seu
caminho seria revelado ao Karaí durante sonhos e/ou as rezas, então este xamã daria as
orientações à aldeia, e as famílias juntas ou em parcelas, o seguiriam, deixando para trás suas
casas, suas roças, levando consigo apenas o necessário para a viagem.
Segundo Hoyos (1988), muitas vezes esse êxodo acabava em tragédia, sendo o grupo
dizimado por outras tribos onde entravam em conflito, ou pelas próprias condições naturais
da peregrinação, onde enfrentavam mau tempo, doenças, fome, etc. Mas nunca perdiam a
confiança no Karaí, que os conduziria através do universo cosmológico do grupo.
Schaden (1974) traz a informação de que em 1912, Nimuendajú encontrou e
acompanhou um grupo de Guarani que vinham do Paraguai a caminho da costa atlântica para
passarem à Terra sem males. Estes ficaram noites a fio na Praia Grande, em São Paulo
dançando para acelerarem o fim do mundo e tornarem seus corpos leves o suficiente para

Assim, ao que tudo indica, os Guarani mantiveram o profetismo sem que o profeta Guarani se transformasse
em ‘messias’, e desenvolveram uma concepção milenarista de um tempo e um lugar em que possam alcançar
a perfeição. A circunstância histórica do contato, desenvolveu uma ‘consciência messiânica’ nos Guarani,
mas não a configuração de uma ‘espera messiânica’ em um redentor, para instaurar uma nova ordem social.
(SANTOS, 1988: 211 – 212).
70
Kátya Vietta, em sua dissertação de mestrado, nos descreve o Yrovaiguá (Terra sem males), como sendo “o
mundo usufruído pelas divindades e pelos antepassados. Não existe nenhuma possibilidade de acesso a
qualquer outro individuo que não pertença ao universo social ou sobrenatural Mbya. Nele, existe uma grande
aldeia, inserida em uma imensa área de mata, onde é possível vivenciar, na plenitude, o sistema de Guarani,
sem as limitações enfrentadas no Mbya reta”. (VIETTA, 1992:129)

92
poderem voar até a terra prometida. É claro que não houve êxito em sua empreitada e estes
índios ficaram por demais decepcionados, pois atravessaram a pé desde o Paraguai, passando
por dificuldades e até mesmo a morte de uma criança, que não resistiu a viajem71.
Mas percebe-se que mesmo enfraquecida em momentos como o descrito acima, a
crença na terra sem males se mantém até os dias atuais, porém cada vez mais os Mbyá vêem
suas profecias não sendo realizadas, porém os mitos se recriam e se reconstroem para
permanecerem vivos dentro do controle cultural do grupo.
A própria localização da casa de reza - Opÿ - ou da casa dos Mbyá está relacionada a
esses sonhos e a cosmologia, quando é escolhido um lugar na aldeia para a construção da
casa este em geral se posiciona com a porta voltada para o leste, o lugar de Ñanderu, ou o
caminho da Terra sem Males – yvy maraney.
Os relatos dos Mbyá, principalmente de lideranças religiosas, são bastante ricos
nessas informações, porém a própria observação da ocupação faz refletir. Em acampamentos
de beira de estrada a ocupação do espaço é mais restrita, portanto esses posicionamentos
ficam prejudicados, no entanto esses acampamentos estão dentro da lógica Guarani de
ocupação territorial, a estrada também faz parte do modo de vida, mas é um espaço
reconhecido como transitório, de quem está em viajem, ou para a atividade do comércio, que
enfim está hoje em dia fortemente enraizado na cultura indígena72. Mas o que se percebe é
uma relação diferenciada com esse comércio, não é algo nos moldes capitalistas, mas sim
uma transformação de hábitos antigos de trocas e reciprocidades, em atividades
contemporâneas. O comércio se faz necessário para a subsistência das famílias, já que nos
dias atuais os Mbyá, assim como a maioria dos povos indígenas, não conseguem mais
sobreviver somente do que produzem em suas aldeias. Para os Guarani a comercialização, ou
troca de mercadorias por outros bens produzidos por outros povos, é algo historicamente
comprovado, não havia problemas no período pré – colonial, assim como nos registros
coloniais, de se fazer trocas entre produtos que interessavam ao grupo e eram produzidos por
outro. Mas essas trocas entram num complexo relacionamento cultural de reciprocidade e
dádiva, comum em sociedades tribais.

71
Conforme NIMUENDAJU, Curt. As lendas da criação e destruição do mundo. São Paulo: HUCITEC -
EDUSP, 1987, P. 10.
72
Ver fotos 6, 7 e 8, no anexo, onde pode ser vista a diferença entre os acampamentos na estrada e numa
aldeia, bem como a prática do comércio na beira da estrada.

93
Dessa forma o comércio Guarani atual ainda mostra indícios dessa lógica, vê-se isso
pelo fato de que os produtos não têm um preço único, assim como a negociação de preços é
não só possível como prática comum, já que não há uma margem nítida desses preços. Os
produtos ficam expostos na estrada, numa relação de comercio, mas quando se está nas
aldeias estes também são oferecidos aos visitantes numa proposta de relação recíproca. Algo
interessante é que o destino do dinheiro ganho com a venda do artesanato é quase imediato,
assim como ele entra, ele sai rápido, pois serve para as compras diárias de produtos
alimentícios, roupas, e artigos de consumo em geral. Não há uma preocupação em guardar
dinheiro, é assim uma relação de troca imediata.
Diante da breve exposição aqui de algumas características culturais dos Mbyá
Guarani, ligadas à ocupação do espaço de suas aldeias e território reconhecido como
Mbyáretã, concluo ser importante para aprofundar o conhecimento sobre esta sociedade
indígena, procurarmos conhecer seu mundo cosmológico, assim como observarmos seus
hábitos atuais para compararmos aos vestígios deixados por seus antepassados. Mas creio ser
mais importante ainda reconhecermos como a identidade cultural e étnica de um povo vai
sendo construída ao longo da história desse povo.
Essa identidade vem sendo gradualmente reformulada e reatualizada conforme as
necessidades com as quais essa sociedade se depara, e mesmo hoje, em pleno século XXI, o
universo cosmológico Mbyá continua regendo seus atos e suas crenças, estando presente nos
seus mitos, nas rezas, nos sonhos, na palavra dos Guarani e transposto como antes na sua
arte, no seu cotidiano através da cultura material por eles produzida.
Embora, na atualidade tenham acesso a escolarização e a palavra escrita esteja sendo
incorporada ao grupo, a memória e a oralidade continuam sendo as verdadeiras palavras dos
Guarani, já que é ali que se encontra sua história, seu verdadeiro “sistema de Guarani”, e a
palavra escrita é sempre vista como “coisa de branco”, mas que é útil ao Mbyá para interagir
na sociedade brasileira. Essa identidade étnica, atual, onde o Guarani que participar
politicamente das ações do Estado dizendo quem ele é e o que quer, não é novidade, e sim
mais uma vez a forma como essa sociedade reconstrói sua cultura, e garante o controle
cultural que o tem mantido vivo como grupo e com identidade própria, preservando a língua
e seus costumes através do tempo.

94
CAPÍTULO III.

3.1. A QUESTÃO FUNDIÁRIA E A POLÍTICA DA INTEGRAÇÃO: PONTOS


PERTINENTES DO CONTEXTO NACIONAL.

É pertinente colocar que esse debate sobre identidade étnica e sociedades indígenas
foi por mim ressaltado para que possamos entender que a idéia de assimilação e integração
dessas populações pela sociedade nacional faz parte de um contexto mais geral, mas, no
entanto existem as particularidades e os interesses estatais que englobam as ações sobre os
povos indígenas e seus territórios. A assimilação e integração nacional estão diretamente
relacionadas a questões de terra.
O principal problema para os índios no Brasil é a questão da terra. Expropriados de
seus territórios e marginalizados pela sociedade nacional, essas populações se encontram
ocupando reservas pré - estabelecidas pelo Estado, ou áreas devolutas, beiras de estrada,
áreas privadas, quando os proprietários permitem que fiquem em troca de trabalho
temporário, etc.
O índio, de forma geral, não dá importância a lógica da propriedade privada da
mesma forma que a sociedade capitalista. Para eles a terra é um bem comum, e embora
tenham noção do processo de compra e venda, assim como da lógica de organização da
sociedade nacional que os envolve, com suas leis e instituições disciplinares, não costumam
respeita-la e muitas vezes a classificam como estranha e sem sentido.
No período compreendido entre o Estado Novo e o Golpe Militar de 64, houve uma
reafirmação desse poder institucional do governo brasileiro sobre a sociedade, e sobre os
povos indígenas, que dentro da lógica deste sistema deveriam ser absorvidos e/ou
eliminados, enquanto etnias, para fazerem parte da nacionalidade brasileira.

95
Com o Golpe de 64, os interesses econômicos se voltaram para o capital estrangeiro e
para a exploração das riquezas das últimas reservas de terras deste país de dimensões
continentais, onde alguns poucos grupos mais isolados ainda sobreviviam, de certa forma,
escapando da ganância desse poder institucional.
O Brasil durante o período do Milagre Econômico, que se deu entre 1969 e 1973,
sofreu um desenvolvimento acelerado, no que diz respeito à implantação de “grandes obras
desenvolvimentistas”, que tinham por objetivo abrir caminho à entrada de capital
estrangeiro que beneficiaria o “progresso” do país, o qual se enquadrava na conjuntura
econômica internacional. Esse período caracterizou-se por uma política de arrocho salarial,
que o sustentou, bem como uma política cambial que favoreceu a entrada desse capital
estrangeiro, na condição de empréstimos, e numa política fiscal de incentivo e isenções, de
acordo com um sistema de crédito subsidiado para a produção de crédito fácil para o
consumo de bens duráveis.
As populações indígenas foram largamente atingidas por esse sistema econômico em
todo o Brasil. Veremos que o órgão responsável pela sua segurança e preservação, a
FUNAI, pouco fez em defesa dessas populações, muitas vezes trabalhando a favor dos
empresários e de suas empresas na liberação de terras interessantes aos seus negócios e
mesmo agenciando indígenas para trabalharem para o grande capital73.
As populações indígenas foram quase dizimadas com a implantação desses projetos74,
pois acabaram sendo expulsas de suas terras, havendo casos de intoxicação por meio de
produtos químicos utilizados para favorecer o desmatamento de áreas florestais75, que
facilitavam o trabalho das madeireiras. E essas técnicas também serviam para afugentar
possíveis defensores do seu habitat, como ilustra Shelton Davis (1978) no caso dos
Waimiri-Atroari, que por defenderem seu território pela força foram vítimas de um

73
Ver SANTOS, Silvio Coelho dos. Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento/UFSC, 1975.
Capitulo III.
74
O grande exemplo dessa negligência com as populações indígenas foi a construção da Transamazônica,
que, dentro do Plano de Integração Nacional (PIN), implantado no governo Médici, tinha como objetivo
“ocupar” a Amazônia, como se esta já não fosse ocupada, integrando o plano a construção de 18 estradas na
região. Além da Transamazônica houve ainda os projetos Jarí e Carajás, entre outros, que da mesma forma
iriam beneficiar o grande capital e as empresas privadasVer: SCHWARTZMAN, Steve. Desenvolvimento ,
meio ambiente e povos indígenas. In: Tempo e Presença. Rio de Janeiro: Revista mensal do CEDI, n. 330,
maio de 1988: 11 - 13.
75
COTA, Raymundo G. Carajás: A invasão desarmada. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 36 e DAVIS, Shelton.
Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Onde há
informação do uso do Agente Laranja como desfolhante na Amazônia.

96
verdadeiro genocídio durante a construção da Transamazônica76, com direito a incêndio de
aldeias, e intoxicação por elementos químicos que eram jogados de aviões sobre o seu
território.
A região sul do país não ficou imune aos planos de desenvolvimento, e as populações
indígenas que habitam essa região sofreram, mais uma vez, inúmeras perdas com a
implantação de empresas e obras públicas de grande porte. Segundo Santos (1989), o
exemplo dos índios Xokleng do Vale do Ibirama, em Santa Catarina, é ilustrativo: a
construção de uma barragem de contenção de cheias, na barra do Dolmann, que deveria
conter as cheias do Vale do Itajaí, de responsabilidade do Departamento Nacional de Obras
e Saneamento (DNOS), se localizava muito próxima da reserva indígena, sendo que o lago
que se formaria nos períodos de cheia atingiria o interior da reserva. Durante a construção
da dita reserva, parte da área já vinha sendo inundada por que a empresa construiu uma
barragem de terras (ensecadeira) para desviar o curso do rio.
A FUNAI nada fez em termos de protesto junto ao DNOS, e ainda contribuiu para a
desapropriação das terras ser aceita junto ao governo federal, não realizando nenhuma
indenização, nem um trabalho de preparação dos Xokleng para a nova realidade. O
resultado desse infeliz empreendimento foi a expulsão desses índios de suas terras, já que
não mais poderia produzir para a agricultura, pois suas roças foram inundadas, e uma
indenização pelas perdas só foi conseguida em 1982, quando esses índios já viviam há
muito nas estradas completamente destituídos de recursos77.
Salienta-se que essa indenização só ocorreu por que a OAB/SC, a ANAI-RS e
antropólogos abriram uma ação contra a FUNAI e o DNOS. Então este último repassou a

76
DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
77
O caso dos Xokleng não está isolado, poderia-se listar uma infinidade de situações semelhantes, mas apenas
citarei o caso do Projeto Calha Norte onde, em nome da segurança nacional e do desenvolvimento se
tensionou e invadiu o território dos Yanomamö, tentando inclusive impedi-los de circular em sua terras, que
compreendem áreas no Brasil e na Venezuela. O Projeto Jarí, que junto a varias empresas multinacionais
tomou o território de nove reservas indígenas, inclusive no Parque do Xingu e para finalizar o caso da aldeia
de Mangueirinha no Paraná, onde os Kaigang tiveram suas terras inundadas pela Eletrosul (Barragem Salto
Santiago), sendo que a FUNAI foi quem tratou da obra com a empresa, sem nenhuma conversação com os
índios. Melhores detalhes ver: Documento síntese dos posicionamentos aprovados pelo Comitê
Interdisciplinar de Estudos sobre o Projeto Calha Norte a partir do Seminário: “O Projeto Calha Norte: As
políticas de ocupação de espaços no país e seus impactos ambientais” realizado pelo Comitê Interdisciplinar
de Estudos sobre o Projeto Calha Norte, nos dias 26, 27 28 de agosto de 1987, na Universidade Federal de
Santa Catarina – Florianópolis / SC; discurso proferido perante a Assembléia Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul, em 1979, pelo Dep. Algir Lorenzon – PMDB, sobre a ‘Exploração da Amazônia – Projeto
Jari’ e Documento da Comissão Regional de Atingidos por Barragens – Erexim – RS, agosto de 1984.

97
indenização para a FUNAI entregar aos Xokleng, os quais infelizmente não puderam se
beneficiar com o dinheiro, pois nenhuma ação de esclarecimento para a utilização da verba
foi feita, e o estado de miserabilidade da população só contribuiu para que esse dinheiro
fosse repassado para o comércio local, onde esses índios se viam endividados.78
Esse exemplo é apenas um entre milhares de casos ocorridos nos Estados de Santa
Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, etc., onde as
populações indígenas são menos visíveis pelos órgãos governamentais e por organizações
internacionais do que no Xingu ou na Amazônia. No Rio Grande do Sul, havia populações
Kaingang, do tronco Jê, e Guarani, do tronco Tupi, porém nos arquivos da FUNAI da
década de 70, somente constavam, os Kaingang como indígenas; os Guarani simplesmente
não existiam. O que acabou ocorrendo foi a acomodação de grupos Guarani dentro dos
Postos Indígenas, junto dos Kaingang, subordinados a liderança deste grupo, o que
desagradava muito os Guarani.
Mas a maior parte dos Guarani perambulavam pelas beiras de estrada por toda a
região sul e como não havia um esclarecimento ao público sobre essas populações, o
preconceito prevalecia, e ainda hoje é sentido, já que esses índios ficavam sendo
submetidos ao desprezo da sociedade envolvente, que os via como “cachaceiros e
preguiçosos”, pois viviam esmolando pelas ruas, ou prestando algum serviço não
especializado nas terras alheias, assim como os Kaingang também o faziam, só que os
órgãos governamentais preferiam não lhes prestar atendimento, ficando então a cargo de
ONGs, ou de missionários procurar ajuda-los, o que nem sempre era fácil devido ao
fechamento dessas populações à sociedade ocidental79.
As áreas ocupadas pelos Guarani, como as aldeias de Cantagalo, Pacheca e Barra do
Ouro, que desde o inicio da década de 70 vinham recebendo mais famílias de Mbyá-
Guarani, não eram reconhecidas como área indígena pelas autoridades80. Estes buscavam

78
SANTOS, Silvio C. Os povos indígenas e a Constituinte. Florianópolis: Ed. da UFSC/ Movimento, 1989,
p. 18.
79
Esta é uma situação que não mudou muito; porém, como a luta dos índios pelos seus direitos os colocou na
mídia nacional e internacional, os Guarani ainda perambulam pelas estradas, até por que faz parte de suas
tradicionais caminhadas. A população envolvente tem se mostrado menos intransigente com relação a eles,
porém não se extinguiu o preconceito e os problemas de convivência em algumas localidades permanecem.
80
É preciso salientar aqui que os próprios Guarani eram contrários a demarcação de espaços específicos para
eles se acomodarem, já que essa prática vai de encontro a sua lógica de que a terra é um bem comum e
ninguém é dono dela, bem como temiam que o Estado brasileiro viesse a subjuga-los sob as suas leis. Os
Guarani nunca gostaram quando os brancos vieram interferir em seu modo de vida.

98
reinstalar-se em uma área reconhecida como “tradicional” para o grupo, dentro de sua
lógica identitária, porém, aos olhos da sociedade envolvente e dos órgãos governamentais,
eram índios que vinham de outro país, portanto estrangeiros. Foi-me relatado por Rodrigo
Venzon81, que inclusive a circulação de Mbyá Guarani nas fronteiras do Rio Grande do Sul
com os países vizinhos muitas vezes era barrada pela Polícia Federal. Então como saída
para poderem continuar atravessando a fronteira sem problemas, muitos indivíduos
masculinos voltaram a perfurar o lábio inferior e a usar o tembetá, que consiste num adorno
em forma de “T”, feito em madeira (antigamente eram de pedra), que fica inserido por
dentro do lábio. Dessa forma eram reconhecidos como Guarani e os policiais não os
importunavam quando queriam ir e vir. Mas, essa maneira de se auto-identificar, que por
um lado parece positiva, tinha uma carga de negatividade, pois assim, eram reconhecidos
como “os índios do Paraguai ou da Argentina”, e não como tendo direitos a ocuparem o
território brasileiro, como eles gostariam.
Porém essa questão das terras ainda hoje se encontra complicada, pois essas áreas
reconhecidas e ocupadas pelos Guarani nem sempre correspondem a áreas com antiguidade
de ocupação por parte dessa população, e muitas vezes é reconhecida pela sua utilidade
para o desenvolvimento de seu modo de vida.
Dentro da política do governo militar não se questionava esses hábitos e práticas
indígenas, por que o objetivo era exatamente assimilar os povos indígenas. O próprio
Estatuto do índio, prevalecente até hoje, traz essas premissas82, bem como a Lei nº 5371/67,
que regulamenta a implantação da FUNAI83.
Desde a década de 1910, quando implantou-se o SPI, os objetivos eram amenizar os
conflitos existentes entre índios e imigrantes, assim como dar assistência aos chamados
trabalhadores nacionais livres, que eram caipiras, caboclos, sem – terra, pequenos
posseiros, enfim todo trabalhador rural de pequeno porte ou marginalizado. Os índios eram

81
Rodrigo Venzon é antropólogo, na época em que o entrevistei (2000) ele era responsável pelo Núcleo de
Educação Indígena da SE/RS.
82
“Art. 1º. Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o
propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, á comunhão nacional”.
Art. 2º. VIII – Utilizar a cooperação, o espírito de iniciativa e as qualidades pessoais do índio, tendo em vista
a melhoria de suas condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento”.
83
“Art. 1º. I. d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se
processo a salvo de mudanças bruscas;
V- promover a educação de base apropriada do índio visando á sua progressiva integração na sociedade
nacional”.

99
o alvo perfeito para os nacionalistas positivistas, já que não eram atendidos pelas classes
dominantes e faziam parte de uma espécie de substrato primitivo da nação, algo mais
próximo da natureza, o que criava uma certa ilusão de que essas populações se integrariam
à nação de forma mais pura, sem os vícios das elites.
Sabe-se da antiguidade da presença Guarani no território rio–grandense desde
períodos bastante remotos, e sobre os grupos Mbyá Guarani, se tem registros que remontam
ao inicio do século XX na região nordeste do Estado. Conforme Garlet (1997), por volta de
1910 havia grupos Mbyá Guarani residentes na região nordeste, mais precisamente onde
hoje são os municípios de Santa Rosa e Santo Cristo, sendo que em 1920 chegou a haver
uma área demarcada na região de Santa Rosa, para este grupo. No entanto, em função de
sua mobilidade territorial, o grupo acabou saindo da área e esta foi rapidamente ocupada
pela colonização alemã que vinha se expandindo na região desde 1914.
Atualmente, os Mbyá Guarani continuam freqüentando a região, acampando na
cidade de Santa Rosa e comerciando no centro da cidade, nas praças locais e estradas,
mesmo sem terem áreas definidas nos limites do município. Porém as relações entre índios
e “brancos” neste caso são bastante conflituosos, já que a expansão colonial ocupou áreas
que eram indígenas de direito muito recentemente, e esse tipo de conflito causa tensões
bastante acirradas nas relações interétnicas, sendo os indígenas o lado mais enfraquecido na
disputa por espaços.
A relação entre os órgãos do Estado e os Mbyá Guarani sempre fora muito difícil,
sendo o diálogo entre as lideranças e os técnicos da FUNAI pouco freqüente. Francisco
Witt, técnico da FUNAI que a mais ou menos vinte anos trabalha com os Mbyá Guarani,
me forneceu informações sobre sua entrada na instituição, que são bastante interessantes
para entendermos as relações existentes entre o órgão e os índios.84
Witt havia tido contato com os Mbyá Guarani quando era adolescente, por volta de
1978, em sua cidade natal, São Francisco de Assis. Com eles aprendeu a língua Guarani e
assim criou-se uma relação de amizade entre ele e alguns membros dessa etnia, que mesmo
quando os índios foram embora daquela cidade, e Witt veio para Porto Alegre, tornavam a
se encontrar.

84
Conforme entrevista com Francisco Aureliano Dornelles Witt, 48 anos, cedida em 8 de novembro de 2003.

100
Quando já fazia faculdade em Porto Alegre, em 1985, Witt foi procurado pela FUNAI
para que viesse a prestar um concurso para ser técnico do órgão, a fim de trabalhar junto as
comunidades Mbyá Guarani, já que ele tinha um contato pessoal com o grupo que facilitava
a aproximação do órgão, o que outros técnicos não haviam conseguido. Assim Witt inicia
os primeiros contatos entre a FUNAI os Mbyá Guarani no Rio Grande do Sul, levando a
criação de um GT onde pessoas como Rubens Thomas de Almeida são incorporados para
tratar das demarcações de terra, iniciando pela identificação das áreas de Barra do Ouro e
Pacheca, que já eram ocupadas pelos Mbyá a muito tempo, mas não identificadas como
áreas indígenas.
Witt é ainda hoje funcionário da FUNAI, sendo técnico responsável pela área de
Barra do Ouro, no município de Maquiné.
Colocar os Guarani sob as mesmas leis que regulavam os Postos Indígenas foi
impossível, já que estes nunca aceitaram intromissões de qualquer governo nacional na sua
estrutura social e política. Eles não se enquadravam na comunhão nacional da forma como
gostaria a política indigenista da época analisada, ficando então, por conta própria, alheios
ao projeto brasileiro. O fato de muitos Guarani terem vivido, por algum tempo, dentro dos
Postos Indígenas onde estavam os Kaingang e os Xokleng, no Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, não mudou a opinião do grupo quanto a sua integração, ficando estes, em geral
vivendo nas fronteiras do posto, interagindo apenas o necessário junto as outras duas
sociedades que ali estavam.
No entanto nestas áreas mistas, enquanto os Guarani estivessem ali residindo,
acabavam sendo incorporados aos serviços prestados para os colonos que ocupavam as
terras indígenas, como mão de obra em capinas e mesmo em trabalhos na lavoura. Porém
sua participação nas decisões era nula, o que os incomodava, chegando a criar muitos
conflitos, já que mesmo os Kaingang eram submetidos aos projetos do governo e não
interferiam como gostariam na sua elaboração e aplicação nas áreas ocupadas.
Ainda hoje existem áreas mistas, e os conflitos perduram já que é dificil o convívio
dos dois grupos, que possuem divergências históricas. Os problemas sempre foram muitos,
principalmente por que se refazem diante de uma política indigenista deficiente, que não
era capaz de perceber os problemas que essa agregação causava, e pouco preocupada em
assentar legalmente cada grupo em suas próprias terras, deixando-os viver com autonomia,

101
demarcando-as como exige a Lei nº 6001 de dezembro de 1973, que dava como prazo final
para a demarcação das terras indígenas o ano de 197885.
Durante um diálogo com um professor indígena Mbyá-Guarani86, da aldeia do
Cantagalo, que morou durante muito tempo numa aldeia Kaingang, em Cacique Doble, no
Rio Grande do Sul, me foi relatado que os problemas de uma convivência mista eram
gerados a partir do encaminhamento dos projetos, que só passavam pela liderança
Kaingang, ignorando o cacique Guarani e as necessidades desse grupo, o que confirma a
informação mencionada acima.
Como a FUNAI não reconhecia os Mbyá – Guarani como indígenas no território
brasileiro, e de fato desconsiderava as diferenças entre os grupos indígenas, não levava em
consideração o fato de esse grupo estar migrando para o Rio Grande do Sul por considerar
este território propicio para o desenvolvimento de seu modo de vida, e em realidade ser um
grupo “transnacional”, como os Yanomamö e tantos outros, que originalmente ocupam
territórios diferentes dos geopolíticos atuais. Ou seja, resultado do processo colonialista
europeu, que rompeu com a territorialidade tradicional de grupos étnicos que ocupavam as
terras americanas.
Os Guarani já vinham sendo empurrados pelo desenvolvimentismo paraguaio, que
desde o final do século XIX, vinha “colonizando” as terras dos Mbyá, que começaram a
migrar para o norte da Argentina, mais precisamente para a província de Misiones, onde
havia ainda áreas florestadas e de difícil acesso á população argentina, mas que também
impossibilitava o comércio, que é uma das fontes econômicas dos Guarani. Hoje muitas
áreas que eram de ocupação Mbyá no Paraguai, estão sob a administração de brasileiros
que desenvolveram suas empresas nesses lugares, expulsando, dessa forma a população
Guarani, que não quis ou não pode ser absorvida como mão de obra por essas empresas87.
Essa transnacionalidade Guarani se dá entre os países do Cone Sul, onde há relações
de parentesco entre famílias que moram no Brasil, Paraguai e Argentina, principalmente,
havendo uma grande circulação de pessoas que visitam os parentes nos países vizinhos,

85
Lei nº 6001 de 19 de dezembro de 1973: Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Título VII Art. 65, publicado no
Diário Oficial da União de 21 de dezembro de 1973.
86
Professor Marcos Verá Miranda, 22 anos, filho de Dario Tupã, que é Ñandeva, casado com uma mulher
Mbyá Guarani, mãe do Marcos, Mario e da Silvana, todos professores, conforme referencias no anexo.
Entrevista realizada em 20 de julho de 2002, na aldeia do Cantagalo, Viamão – RS.
87
Muitas dessas empresas são agropecuárias, tendo como atividade principal a plantação e beneficiamento de
erva mate, atividade tipicamente indígena.

102
reconhecidos como territórios tradicionais desse grupo. Essa circulação é uma característica
do grupo e faz parte de seu modo de vida. As visitas podem durar meses e serem realizadas
migrações de aldeias inteiras para outro território, independente da fronteira política88.
Essas fronteiras são fluidas, e tornam difícil a concentração dessas populações em uma
reserva do tipo “colônia agrícola” como as que foram implantadas pela FUNAI, na década
de 70, que caracterizava a área indígena pelo desmembramento da terra em quantias de 100
ha. por família89.
A FUNAI se desonerando da responsabilidade de compreender o modo de vida
Guarani, bem como impossibilitada de congregar essa população num modelo de Posto
Indígena, ou de Colônia Agrícola, conforme a política vigente, e ao mesmo tempo vendo-os
como não-brasileiros já que vinham do Paraguai e Argentina, deixou-os a margem da
política indigenista da época, largados a sua própria sorte, ocupando as beiras de estradas,
ou quando muito os deixava ficar em áreas Kaingang, que vinham sendo constantemente
ocupadas por colonos, com o aval da própria FUNAI.
Os índios do Brasil inteiro sofreram, mais uma vez, o impacto do desenvolvimento
capitalista. Na década de 70, diante da situação caótica que o PIN e o governo Médici
colocavam os índios brasileiros sob a proteção da FUNAI, eram subjugados e expropriados,
mesmo diante das denúncias de indigenistas e sertanistas do próprio órgão. O próprio
presidente, o general Bandeira de Mello, que esteve na FUNAI de 70 a 74, afirmava:

Nesse período, um novo modelo de política indigenista


foi institucionalizado no Brasil. Seus principais
objetivos eram: (1) integrar os índios, o mais rápido
possível, á economia de mercado em expansão e á
estrutura de classe do Brasil; e (2) garantir que os índios
não ofereceriam obstáculos á ocupação e colonização da
Amazônia. (DAVIS, 1978:87).

Surge, em 1972 o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão da CNBB, que


visa atender os povos indígenas, auxiliando-os em suas lutas por seus direitos. Em 1977

88
Ver: GARLET, Ivori José. Mobilidade Mbyá: história e significação. Porto Alegre: PUCRS / PPGH,
dissertação de mestrado, 1997.
89
Documento síntese dos posicionamentos aprovados pelo Comitê Interdisciplinar de Estudos sobre o Projeto
Calha Norte a partir do Seminário: “O Projeto Calha Norte: As políticas de ocupação de espaços no país e
seus impactos ambientais” realizado pelo Comitê Interdisciplinar de Estudos sobre o Projeto Calha Norte, nos
dias 26, 27 28 de agosto de 1987, na Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis / SC.

103
surge a ANAI, Associação Nacional de Apoio ao Índio; e a União das Nações Indígenas
(UNI), em 1980, órgão não governamental, organizado por lideranças indígenas das nações
Terena, Bororo, Pataxó e Tuxai, que estudavam em Brasília.
Os indígenas se organizavam, aquém das diretrizes da FUNAI. Começavam a
perceber que a luta armada e a fuga não mais podiam salva-los da destruição completa.
Teriam de unir forças independentes de serem de grupos e línguas diferentes, já que a luta
pela terra e pelos direitos a usufruir de sua própria cultura e modo de vida era uma luta de
todos. A partir de 1974, apoiados pelo CIMI e outras instituições missionárias e não
missionárias, os chefes de diferentes nações indígenas passam a se reunir periodicamente
para discutirem assuntos pertinentes à política brasileira e à situação de suas comunidades.
Aos poucos as nações indígenas de todo o país começaram a agregar-se na luta pelos seus
direitos, forçando os órgãos governamentais a repensarem e reelaborarem as leis que
regulamentavam a situação indígena do país90.
Esses movimentos em defesa dos direitos indígenas, tanto realizados pelos índios
como pelos não índios, não passavam tranqüilos pela política nacional, pois os agentes
governamentais envolvidos numa política expansionista e capitalista viam com maus olhos
a organização de minorias étnicas que ganhavam espaço principalmente na imprensa
internacional.
A assistência da FUNAI ainda prevalece nos dias atuais, sendo este órgão responsável
pelas populações indígenas brasileiras, mas a atuação dele dentro das áreas ocupadas é
dividida com outras instâncias dos governos estaduais e municipais. As áreas da saúde e
educação tem tido maior atenção por parte da política indigenista atual, marcada pela nova
legislação e pela atenção aos parâmetros já institucionalizados nos documentos anteriores à
Constituição de 1988, que não eram respeitados como deviam, visto que, agora, a
participação dos próprios indígenas nas questões que lhes dizem respeito seja bem mais
ativa, pois estes vêm tomando para si a autonomia de suas próprias comunidades.
Em documentos atuais produzidos pelos indígenas, como o que foi elaborado em
Coroa Vermelha, na Bahia, em 21 de abril de 200091, os indígenas vêm reclamando uma
serie de direitos, a fim de regularizarem as terras que ocupam, terem acesso à escolarização

90
Melhores detalhes Ver: Encarte sobre questão indígena em Retrato do Brasil, vol. 1 p. 145 – 149 e vol. 3 p.
73 – 78 e Revista de Cultura Vozes, Ano 70, Vol. LXX, n. 3, abril, 1976.
91
Ver documento no anexo.

104
em todos os níveis, aprovação de leis que ainda tramitam no Congresso Nacional, um
atendimento melhor a saúde indígena respeitando a cultura de cada povo, entre outras
coisas. Portanto vejo que as lutas dos índios têm colhido seus frutos e atualmente o espaço
por eles ocupado na ordem nacional não poderá mais ser usurpado.

3.2. A INCLUSÃO DO ÍNDIO NA SOCIEDADE NACIONAL.

De acordo com os estudos sobre etnicidade em voga nas décadas de 50 e 60, pela
Escola de Chicago, a assimilação de imigrantes pela sociedade de acolhimento seria a
forma mais otimista de enfrentar as diferenças culturais, quebrando a hegemonia étnica que
congregava os núcleos imigrantes. A idéia de que as novas gerações iriam ter sua
etnicidade enfraquecida pela miscigenação, pela cultura de massas e pela escolarização,
faziam crer que em pouco tempo as etnicidades seriam dissipadas e se encontrariam
diluídas pelas forças universalizantes.
Essa idéia percorreu a América, e mesmo tendo sido desenvolvida pensando no
imigrante americano, pôde ser aplicada aos povos autóctones do continente, já que estes,
mesmo não sendo imigrantes, não pertenciam ao modelo de Estado nacional vigente na
época. Portanto, o Estado brasileiro, em voga com as idéias assimilacionistas e
nacionalistas, passa a pensar no indígena como um indivíduo a ser integrado à sociedade
nacional, deixando assim de ser um empecilho para as novas frentes de expansão, e gerando
uma mão de obra barata para as novas colônias.
A escola, assim como para os imigrantes americanos, poderia ser um dos meios de
integração dessas etnias.
Na década de 1970, as evidências de que as etnicidades não estavam se diluindo no
modelo nacional americano, levou os pesquisadores a pensar sobre o modelo
assimilacionista, porém no Brasil continua-se mantendo a idéia de integração como única
via de manutenção das populações indígenas, que então se transformariam apenas em
brasileiros, acirrando os meios para desintegrar a etnicidade dos grupos.
A discussão que está se dando nos Estados Unidos sobre etnicidade tem a ver com
grupos tipicamente europeus e brancos, contra as reivindicações dos negros, latinos e
índios, mas principalmente dos grupos negros. E a discussão leva a entender que:

105
...longe de ver na etnicidade uma identidade social
essencial e universal, a maioria dos pesquisadores
americanos analisavam-na como um comportamento
estratégico de atores racionais que deve ser situado nas
condições de competição próprias das sociedades
modernas ou como uma forma de organização social
que deve ser relacionada às mudanças estruturais
macrossociais do mundo contemporâneo, tais como a
derrubada de outras entidades como a classe ou a nação.
(POUTIGNAT & STREIFF – FENART, 1998: 75 –
76).

Como no Brasil a questão da integração abrangia grupos de não imigrantes, mas sim
de ditas sociedades tradicionais ou primitivas, havia uma certa adaptação das idéias
assimilacionistas. No entanto, é preciso ressaltar que a própria antropologia da década de
70 e 80, vem discutindo o uso desses conceitos – sociedade primitiva, tribos, etnias, etc. –
sendo Leach (1989, apud POUTIGNAT & STREIFF – FENART, 1998: 80) um dos mais
ferrenhos críticos da idéia de sociedade ou cultura tradicional, e que tanto ele quanto
Amselle (1990, apud POUTIGNAT & STREIFF – FENART, 1998: 80) classificam esses
conceitos como produto da imaginação do etnógrafo, que acabaram sendo incorporados
através da ordem colonial.
Em realidade, não há cultura ou sociedade estática, e as sociedades ditas indígenas
seguem sua dinâmica tanto quanto qualquer outra. Se formos observa-las pensando na
etnicidade como uma forma de impor-se politicamente, pode-se pensar em uma identidade
construída e negociada dentro do jogo de poderes do Estado, mas não como algo
distanciado dessa rede e existente por si só.
Como foi colocado no item acima, o Estado nacional cria leis e ações institucionais
para acomodar as populações indígenas em Postos e reservas, visando retira-los das frentes
de expansão e impedindo que atrapalhem o progresso e o desenvolvimento de obras
públicas de grande porte. Essas ações geraram reações por parte dos indígenas e de adeptos
de suas causas e direitos. Essas reações, no entanto foram as mais diversas, e tiveram
repercussões bastante polêmicas, no entanto colocaram as questões indígenas como pauta
de organizações internacionais e direitos humanos.
A construção de uma nação como o Brasil, que passou pelo processo de conquista e
colonização por parte de povos europeus, até adquirir sua independência e status de Estado

106
nacional, foi uma tarefa árdua para os europeus, a princípio, e depois, para os luso-
brasileiros, sendo ao mesmo tempo destruidora. Nesse processo os povos autóctones
sofreram o impacto do desaparecimento, seja ele físico ou ideológico, já que não seria
possível à infante nação brasileira admitir o negro passado genocida, que exterminou
fisicamente varias sociedades nativas para abrir espaço às colônias européias.
Bergmann (1978: 144-145), em um estudo antropológico que analisou o surgimento
da população brasileira, ressalta que a historiografia brasileira costuma apresentar o
confronto entre estes dois mundos, o indígena e o europeu, como tendo sido de um
convívio pacífico, quase amigável, já que os indígenas se beneficiaram muito com a
mistura racial, que os transformou em povos civilizados, acabando com um estado de
selvageria primitiva em que viviam.
Os indígenas dessa forma compunham um elemento de disputa entre as coroas
espanhola e portuguesa, que desejavam dispor dessa mão de obra para o trabalho e para
compor as forças militares que defenderiam as fronteiras92.
A integração dos indígenas constava na pauta das políticas pombalinas, mas não
estava nessa pauta a inserção dos valores culturais indígenas nessa integração, o que era
aceito era o indivíduo proveniente de sociedades indígenas que abandonasse seus hábitos e
costumes e passasse a viver como um cristão europeu.
No século XIX, com a independência do Brasil e a implantação de leis imperiais o
ideal para inserção dos indígenas no contingente populacional era mais uma vez o uso da

92
Ver, por exemplo, alguns aspectos da política de Pombal (1750 – 1777), que visava assegurar as fronteiras
brasileiras para Portugal, e dessa forma achou por bem integrar indígenas de alguns grupos étnicos
considerados amigáveis, como os Tape, ao povoamento, mas com restrições como nos indica o trecho da carta
emitida por ele em 1751 ao comissário português no território das missões, Gomes Freire de Andrade:
“Primeiro, abolir V. Exª toda a diferença entre portugueses e Tape, privilegiando e distinguindo os primeiros,
quando casarem com filhos do segundo, declarando que os filhos de semelhantes matrimônios serão
reputados por naturais deste Reino e nele hábeis para ofícios e honras, conforme a gradação em que o puser o
seu procedimento... Segundo, escolherem-se os Governadores, Magistrados e mais pessoas do governo destas
novas povoações de sorte que sejam homens de Religião, Justiça e Independência, isto é, em suma, daqueles
que se costuma buscar para fundadores e que, edificando todos com a regularidade de seu procedimento,
mantenham o respeito das leis e conservem a paz pública entre os novos habitantes das referidas fronteiras,
sem permitirem que haja na administração e ainda nas matérias de graça a menor diferença a favor dos
portugueses, aos quais deve ser muito especialmente proibido, debaixo de pena que se execute
irremissivelmente, ridicularizem os referido Tape, e outros semelhantes, chamando-lhes bárbaros, Tapuia e a
seus filhos mestiços e outras semelhantes antonomásias de ludíbrio e injúria. O que se pode também, acautelar
explicando-se aos Prelados e Párocos o grande prejuízo que de tais fatos resulta ao serviço de Deus, no
impedimento da conversão das almas, da propagação e multiplicação dos vassalos, para que os ditos Párocos
e Prelados contribuam para os mesmos fins cooperando para eles em causa comum com os Governadores e
Magistrados respectivos” (apud: BERGMANN, 1978: 149)

107
catequização para a civilização das sociedades aborígenes, e é aí novamente que se vê o
papel marcante da Igreja católica na conversão e integração do indígena à sociedade
brasileira, mas não aceitando as diferenças e sim desconstruindo sua estrutura social e
massificando os índios de forma genérica.
Mas é nesse período que a imagem do Bom Selvagem vai começando a ganhar forma,
pois não é mais interessante e nem necessário, visto que os indígenas estão em condições de
submissão e minoria diante do Estado, que se faça guerras aos bárbaros ou que se escravize
os gentios da terra, então a imagem negativa do indígena vai sendo substituída pelo seu
oposto, mas que carrega um caráter da mesma forma mitificado, já que esse “bom
selvagem”, é carregado de características européias, desde seu comportamento até as
formas físicas que os desenhos da época vão representar.
A literatura vai ter um importante papel na transformação desse indígena, e ao
mesmo tempo vai promover a invisibilidade do verdadeiro indígena que circula pelo
território brasileiro.
E esse Estado assim como não podia exaltar o passado sangrento, composto de
confrontos entre conquistadores e autóctones, bem como admitir em seu seio a existência
malograda de sociedades nativas remanescentes desse processo colonizador, que ainda
mantinha sua memória e conseqüentemente sua história, criava o Bom Selvagem, aquele
índio dócil, amigo dos portugueses, que ajudou a constituir as bases de uma nação
miscigenada e livre de preconceitos.
Embora o texto de Bergmann (1978), também esteja dentro de um ideal de
miscigenação entre as três raças que constituiriam a população brasileira, ele ainda traz
alguns indícios de que essa mistura não foi pacifica e que não é homogênea.
Muito se escreveu sobre o Brasil nesse momento de consolidação da ideologia
nacionalista, e essa afirmação durou anos para se concretizar, e ainda hoje é exaltada como
a historia oficial do Brasil. O discurso foi eficaz, atingiu seus objetivos, propagando a
invisibilidade social do indígena, tornando-o de conhecimento comum, para o povo, que
acabou incorporando essa historia como verdadeira e a reproduzindo no seu cotidiano.
Com a implantação da República e seus ideais positivistas, os índios são esquecidos,
não constando absolutamente nenhuma menção a eles na Constituição de 1891. Embora
tenha surgido em debates da Constituição uma proposta para que os indígenas obtivessem o

108
direito a serem considerados nações livres e soberanas, dentro do Estado brasileiro, o que é
claro foi vetado e considerado uma utopia93.
Mas a idéia de que o índio era distante da sociedade continuava vigorando
plenamente, principalmente nas áreas urbanas, onde a sua invisibilidade era não só
ideológica como muitas vezes física, já que mesmo aqueles que viviam próximos às
cidades, não residiam nelas, circulando esporadicamente de forma marginal.
Os índios, que pretendiam preservar seu modo de vida, que já estava bastante
modificado pela constante intervenção cultural ocidental, buscavam se distanciar o máximo
que pudessem do convívio com a sociedade nacional, circulando nas cidades apenas o
necessário ou quando eram trazidos pelos agentes do SPI para exposições, ou fotografias,
onde geralmente apareciam sob o titulo de “índios mansos ou pacificados”, que
representavam o bom convívio com a sociedade envolvente.
Caberia aqui salientar, com base nas discussões sobre etnicidade do início deste
capítulo, que culturas não são imóveis e que identidades são constantemente construídas,
mas, essas mudanças não necessariamente destroem a “indianidade”, ou seja, não destrói
completamente a identificação com o seu meio e com o seu grupo de origem. Conforme nos
aponta Sahlins (2003: 180), a cultura funciona como uma síntese de estabilidade e
mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia, sendo que toda mudança prática
também é reprodução cultural. Da mesma forma Ramos (1989: 91) chama a atenção para
os casos específicos das mudanças culturais dos índios brasileiros, apontando que o uso de
objetos ocidentais não os transforma em brancos, nem tampouco a visão de mundo se
destrói facilmente, portanto as culturas podem parecer desfiguradas, mas a identidade
étnica permanece, pois a tradição não é fossilizada, mas sim é um conjunto dos significados
que um povo construiu e foi modificando ao longo das gerações.

93
“A solução proposta é humanitária e justa, mas não assenta na realidade dos fatos e é inexeqüível. Digo que
não assenta na realidade dos fatos porque, nem mesmo empiricamente existe na atualidade espírito de
federação entre as raças selvagens e a civilizada, nem daqueles entre si, e menos relações amistosas que
possam ser manutenidas. A triste verdade é de um permanente conflito entre uma raça invasora impelida pela
necessidade ou pela ambição e as tribos nômades, vivendo da caça e pesca e defendendo até a morte vastas
áreas de território, que lhes ministram os elementos da vida. Se, porém, o sistema indicado não pode ser
absolutamente observado, e se é força optar entre a catequese e a guerra, ministra, todavia, base para sobre ele
calcar-se regime mais humanitário, um modus vivendi menos incompatível com o sentimento humano, com a
moral cristã e com o culto da justiça. Em meu conceito é fatal a solução do problema etnológico pela
assimilação do aborígene ao gênero civilizado”. (A. F. de S. Pitanga, apud AZANHA e VALADÃO, 1991:
41).

109
No entanto, a intenção do Estado em integrar esses povos ao todo nacional prevalecia,
e o próprio órgão responsável pelos índios, desconhecia outro discurso. Para o indigenismo
nacional a integração era a melhor solução para os índios, mesmo quando eles próprios
perceberam, após longos anos de aproximação e pacificação de povos indígenas, que este
não era o caminho, eles não saberiam qual seria esse caminho, e seguiram pregando a
integração como solução a marginalização e destruição dos povos indígenas. Mas como o
próprio Darcy Ribeiro (1979) nos indica, não houve a tão esperada assimilação dos povos
indígenas, mas ao contrário:

a maioria deles foi exterminada e os que sobreviveram


permanecem indígenas: já não nos seus hábitos e
costumes, mas na auto – identificação como povos
distintos do brasileiro e vítimas de sua dominação.
(RIBEIRO, 1979: 08).

Porém, a idéia de integração das raças94 foi sendo incorporada pela história brasileira,
sendo repassada através do ensino escolar, onde a existência indígena fica restrita ao
passado do Brasil, nos princípios da ocupação humana e depois foram desaparecendo
dando lugar à civilização e ao progresso, sendo extintos, embora alguns poucos
sobreviventes tenham ficado confinados na “selva amazônica”, como exemplos de um
passado atrasado, como elementos exóticos dos tempos primitivos, mas estes estavam bem
distantes da população, e nada ou muito pouco haviam contribuído para a cultura brasileira,
embora fizessem parte do substrato populacional, ainda que com pequena participação.
Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda (1995), traz uma proposta menos
positivista que muitos autores do inicio do século XX, mas ainda assim o elemento
indígena pouco aparece como contribuinte a formação cultural dos brasileiros e, tampouco
como elemento diferenciado, que vive dentro de outra cultura e fala outra língua, embora
esteja presente em terras brasileiras.
Esse livro foi escrito, a princípio, na década de 1930, onde o nacionalismo era a
bandeira do momento, não se poderia esperar que os intelectuais da época lançassem um
94
Levi – Strauss (1970) chama a atenção sobre a idéia de que há raças humanas, e estas não são determinantes
para o modo de vida de alguns grupos sociais, refutando esse conceito em favor de uma noção cultural,
dizendo que há uma confusão entre a noção biológica de raça e as diferenças culturais. Há muito mais culturas
humanas do que tipos raciais. Porém esse tipo de confusão acaba fazendo parte da bagagem das políticas
sobre identidade que vem sendo desenvolvidas nos últimos anos, e criando, muitas vezes um novo tipo de
racismo que Verdery (2003) questiona.

110
olhar sobre as diferenças sociais e culturais do território brasileiro, pois era o momento da
consolidação do sentimento de nação para o povo, que deveria abraçar o Brasil como pátria
homogeneizando as características que o definiam, mesmo que estas não fossem totalmente
identificadas com a realidade e com a variedade de culturas existentes no país.
Essas idéias homogeneizadoras em relação às sociedades indígenas são provenientes
do pensamento eurocêntrico que marcou a formação do Brasil desde o principio, quando os
conquistadores desembarcaram em suas praias em 1500.
Os índios, em realidade, não existem, nem nunca existiram. Esse termo foi adaptado
pelos europeus aos grupos sócio-culturais que viviam na terra conquistada, a qual
denominaram Brasil. Essas sociedades eram, e ainda são, diferentes entre si, com línguas,
culturas e territórios próprios, que diferem das fronteiras políticas atuais.
Muitos destes chamados índios constituíam cidades, impérios, como no caso dos
Incas, Maias e Astecas, que tinham populações maiores do que muitas cidades européias.
Estas sociedades não eram do tipo aldeão, como as que vivem no Brasil, porém, mesmo as
sociedades ditas tribais possuíam sua organização interna e suas relações com o meio e com
os outros povos que aqui viviam e estas características foram ignoradas pelos
conquistadores, que viam nesses povos um retrato do passado da humanidade e não como
povos de culturas diferentes. Por isso a intenção de faze-los avançar no tempo, progredir
para chegar ao estagio de civilizados que seria o europeu.
O termo “índio”, assim como “tribos” e outras denominações conhecidas para nos
referirmos aos grupos autóctones, são construções de um discurso dominante, que acabou
por se tornar corrente na historia brasileira, a ponto de serem usados pelos próprios
autóctones para se autodenominarem diante da sociedade nacional.
Este discurso foi sendo incorporado até atingir seus fins, onde não se vêem mais as
sociedades autóctones com suas características distintas, mas sim uma massa indígena
generalizada, onde não há diferenças entre si e as ações sobre ela podem ser homogêneas.
A intenção desse tipo de discurso e a aplicação de políticas assimilacionistas sempre
levaram a extinção dessas culturas diferenciadas que eram vistas como primitivas e
atrasadas, sendo então papel do europeu, civilizar o “selvagem” e transforma-lo em
homens, mesmo que para isso precisasse escraviza-lo. Um bom exemplo dessas idéias pode
ser observada no discurso do Pe. Anchieta, citado em Monteiro (1994), onde ele diz:

111
Não se pode portanto esperar nem conseguir nada em
toda esta terra na conversão dos gentios, sem virem para
cá muitos cristãos, que conformando-se a si e a suas
vidas com a vontade de Deus, sujeitem os índios ao
jugo da escravidão e os obriguem a acolher-se à
bandeira de Cristo. (MONTEIRO, 1994: 41)

Essa frase foi dita em um momento de desespero e frustração, em que Anchieta, que
sempre foi um defensor da liberdade dos índios, desde que aceitassem a cristianização,
escreve a Loyola que seus esforços junto ao Tupiniquim de Piratininga não surtiam o
resultado esperado, mas Monteiro (1994: 233), em nota, ressalta que a escravização dos
índios propriamente dita, não era o objetivo dos jesuítas, no entanto, para os colonos essa
mão de obra indígena continuava a ser cobiçada e utilizada, embora as orientações da
Coroa portuguesa e da Igreja católica fossem contrárias a escravização, decretando ser
interesse dominante a integração desses povos à colônia, como vassalos e cristãos.
Embora toda a política assimilacionista empregada sobre os indígenas, essas
sociedades que sobreviveram ao massacre inicial da conquista e depois ao extermínio pelo
choque cultural, mantiveram seu ethos cultural, não sem alterações, já que o contato
causado entre dois tipos de sociedades tão diferentes não poderia deixar de marcar ambas as
sociedades com elementos externos uma da outra.
Porém, como as sociedades indígenas sabem lidar muito bem com as diferenças,
incorporando os elementos novos aos seus mitos e adaptando-os ao seu próprio mundo,
conforme nos indica Viveiro de Castro (2000), quando analisa os mitos indígenas
pesquisados por Lévi-Strauss95, onde este percebe o desequilíbrio que sustenta o sistema
mitológico e dessa forma maleabiliza a dinâmica das histórias indígenas, não permitindo a
destruição do seu entendimento de mundo diante das oposições com que se deparam essas
sociedades em contato com outras.

95
Desse desequilíbrio dinâmico depende o bom funcionamento do sistema, que sem ele se veria
constantemente ameaçado de cair em estado de inércia. O que esses mitos proclamam implicitamente, é que
os pólos entre os quais se ordenam os fenômenos naturais e a vida em sociedade – céu e terra, fogo e água,
alto e baixo, perto e longe, índios e não – índios, concidadãos e estrangeiros, etc. – jamais poderão ser
gêmeos. O espírito se esforça em emparelha-los, mas não consegue estabelecer sua paridade. Pois são tais
afastamentos diferenciais em cascata, tais como concebidos pelo pensamento mítico, que põem em marcha a
máquina do universo” (LEVI-STRAUSS, 1991 apud VIVEIROS DE CASTRO, 2000: 50)

112
Não se pode dizer que não houve transformações bruscas, resultado da fricção
interétnica, mas que os indígenas de diferentes etnias se mantiveram índios, isso não há
dúvidas96.
Aliás, ao final da década de 1970 e inicio da de 1980, se começa a ouvir vozes
indígenas, depois de tantos anos de silêncios e derrotas, em busca de seus direitos na
legislação brasileira97.
E desde então os indígenas vêm se reunindo, aparecendo na mídia e se fazendo
presente na sociedade que os invisibilizou, porém, essa sociedade ainda tem dificuldade de
enxerga-los, mesmo que alguns discursos preguem a igualdade e o respeito às culturas
diferentes, ainda se ignora o que sejam essas culturas. Então, como respeitar o que se
desconhece?
A ação do Estado para aniquilar as culturas indígenas passou por vários estágios,
como sabemos, desde a catequização junto aos missionários de diversas facções da Igreja
Católica, até ações de Estado propriamente ditas, como foram os aldeamentos sob
administração portuguesa implantados na época de Pombal98, onde os indígenas eram
colocados em aldeias e podiam ser alugados para serviços diversos, sob administração
provincial.

96
“Apesar disto, permanecem índios, porque sua aculturação não desembocou numa assimilação, mas no
estabelecimento de um modus vivendi ou de uma forma de acomodação. Isto significa que a gradient da
transfiguração étnica vai do índio – tribal ao do índio – genérico e não do indígena ao brasileiro. Significa,
também, que as entidades étnicas são muito mais resistentes do que se supõe geralmente, porque só exigem
condições mínimas para perpetuar-se, e porque sobrevivem à total transformação do seu patrimônio cultural e
racial. Significa, ainda, que a língua, os costumes, as crenças, são atributos externos a etnia, suscetíveis de
profundas alterações, sem que esta sofra colapso ou mutilação. Significa, por fim, que as etnias são categorias
relacionais entre agrupamentos humanos, compostos antes de representações recíprocas e de lealdades morais
do que de especificidades culturais e raciais”. (RIBEIRO, 1979: 446).
97
“Vou apresentar a vocês as palavras dos meus irmãos, dos que somos chamados ‘índios’. Não sei se por
ignorância, por desprezo ou simplesmente, para dar um nome as coisas, pois para muita gente nós somos
apenas uma coisa. Essas palavras vão contar para vocês a última parte do drama, que nós estamos vivendo,
desde que os homens de outra raça, de outra cultura, de outro mundo puseram os pés em nossas terras. O
Homem Branco, aquele que se diz civilizado, pisou duro não só na terra, mas na alma do meu povo e os rios
cresceram e o mar se tornou mais salgado porque as lágrimas da minha gente foram muitas”. (trecho do
discurso de Txibae Ewororo, publicado na Revista Vozes n. 3, 1976)
98
Ver documentos referentes ao aldeamento da Aldeia dos Anjos, por exemplo, onde as indicações de como
deveriam ser os recolhimentos para meninas Guarani, seguiam rígido sistema de internato, onde eram
proibidos qualquer manifestação que denunciasse atos indígenas, como falar sua língua ou cantar e dançar
conforme seus ritos religiosos. Ali as crianças seguiriam os costumes cristãos e europeizadores, devendo
transformar-se em cristãos honrados, e depois de voltarem ao convívio com a sua família, já não seriam mais
índios, e da mesma maneira, as outras instruções da administração das aldeias seguia a mesma ideologia.
(Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Os índios da Aldeia dos Anjos: Gravataí século XVIII. Porto
Alegre: AHRGS / EST, 1990).

113
A catequização, como já vimos, foi o aparelho mais usado para a conversão dos
índios, mesmo quando o Estado intervem, a Igreja continua presente, sendo a cristianização
a forma mais ativa de mudar os costumes dos povos indígenas. Muitas dessas sociedades se
mantém a distancia das frentes de expansão, fugindo para o interior das matas, já que o
território brasileiro é vasto e a colonização lenta. Até mesmo para fora das fronteiras
brasileiras se percebe a incursão de tribos fugidas, que buscam distanciar-se das redes
civilizatórias. Em 1910, após a implantação do SPI, é quando várias frentes indigenistas
vão procurar o contato com tribos que ainda permaneciam distanciadas da sociedade
nacional.
O que se pode perceber é que mesmo com tanto empenho para integrar esses povos,
extermina-los culturalmente, isto não ocorreu de forma geral. Muitos indivíduos se
invisibilizaram e miscigenaram com a população local, porém muitos fugiram para lugares
mais distantes dos núcleos urbanos e de expansão colonial, e mantiveram seu modo de vida
o seu controle cultural99 resguardados.
A FUNAI, quando implantada em 1967, assume o papel de tutora dessas populações,
já que o Estado os considera inaptos para se auto-administrarem.
Após muitas lutas, a legislação brasileira reconhece as diferenças culturais e assume
respeita-las, fornecendo educação, saúde e assistência diferenciada para esses povos100, mas
a opinião pública pouco sabe a respeito dos indígenas brasileiros, e a própria FUNAI e
órgãos responsáveis pela aplicação das leis e direitos para os indígenas, sofre de um
desmantelamento e falta de pessoal para o trabalho, bem como incorre em corrupções,
roubos e alienações típicos de instituições públicas mergulhadas na política de interesses
brasileira.
Nas escolas ainda se ensina que “os índios do Brasil foram assim...” ou “os índios
viveram ...”, são sempre termos empregados no passado, já que a lógica é de que os índios
pertencem ao passado. Não é por má vontade dos educadores, mas muito mais por
desconhecimento e falta de recursos para aprender mais sobre eles.

99
“Por control cultural entiendo el sistema según el cual se ejerce la capacidad social de decisión sobre los
elementos culturales”. (BONFIL BATALLA, 1986:19).
100
Ver Art. 231, 232, 210 E 215 da Constituição brasileira de 1988 e no anexo pode ser vista um resumo da
legislação geral sobre questão indígena.

114
É bastante comum pessoas confundirem os índios com mendigos nas cidades, e
tampouco saberem distinguir entre uma etnia e outra. Para a população todos os índios são
iguais e possuem uma imagem pejorativa, onde logo vem o preconceito e as denominações
de que índios são vagabundos, bêbados, marginais, ladrões, deflagrando o total
desconhecimento e o desprezo a respeito dessas populações e de suas culturas.
A situação precária e de miserabilidade a que foram submetidos esses povos, bem
como a consciência da perda de seus territórios, da dignidade, de sua autonomia, do
orgulho de ser um guerreiro, e o desespero de ver seus filhos nascerem em uma terra
arrasada, num mundo que não mais reconhecem, que no seu conceito está se destruindo, e
eles submetidos a categoria de “relativamente incapazes” pela legislação da nação que os
engoliu, os faz cair numa atitude desesperada, onde não vêem saída, além da morte.
As sociedades indígenas estão buscando melhorar sua situação, não sem a ajuda de
“brancos”, já que a intervenção junto aos órgãos competentes requer mediações, e ainda
que os próprios índios interajam nos processos, não podem faze-los sozinhos.
Mas o espaço conquistado nessa sociedade nacional ainda está muito longe do
desejado por eles, pois a integração como planejou o Estado brasileiro já se mostrou
inadequada, agora tenta-se amenizar os males, dando espaço para a manifestação pública
dos costumes e culturas indígenas.
Porém o que se percebe é que a opinião pública mantém-se distante dos índios, não
reconhecendo, nem tampouco sabendo dos seus direitos ou da sua história, e continua a
reproduzir a velha história do Bom Selvagem, quando este está quietinho e distante, longe
da vista da sociedade. Pois quando os índios estão por perto, ou reclamando assistência e
direitos legais, a população os olha com maus olhos, entendendo que estes índios não
podem ser índios, devem ser marginais, não podem estar por perto, não podem causar mal
estar. E daí o Bom Selvagem se transforma no índio bárbaro novamente, naquele que deve
ser exterminado para não impedir o progresso, para não incomodar a suntuosa elite da
nação brasileira.

115
3.3. A ESCOLA INDIGENA DIFERENCIADA: O ESTADO E A POLÍTICA
EDUCACIONAL PARA OS INDIOS NOS DIAS ATUAIS

É difícil compreender o universo das civilizações


indígenas. Comparar, estabelecer paralelos, traduzir
para nossos esquemas culturais os costumes e as
tradições indígenas, é o caminho mais próximo para
jamais entender o seu universo. (MARTINS, 1982: 35).

Até aqui este estudo buscou apresentar um quadro geral da política indigenista
nacional, pincelando situações em que a expansão territorial das frentes coloniais se
impunha a permanência das comunidades indígenas em seus territórios, bem como foi feito
um balanço da criação de um indígena generalizado e praticamente extinto na sociedade
brasileira.
A questão da escolarização dos indígenas em geral, sempre esteve ligada a esse
processo integracionista e de extinção das diferenças culturais e étnicas. Hoje ela se
apresenta como uma forma não só de manutenção cultural, mas como uma forma de
reelaboração da cultura e identidade indígena.
A partir disso é possivel pensar o que é uma educação de qualidade para um indígena
e analisar as propostas legais que se colocam na pauta da criação das escolas diferenciadas
para índios, bem como ficar atentos para o tipo de ensino e conhecimento que esta sendo
ministrado para as crianças das diferentes etnias indígenas. Em que medida as práticas
pedagógicas aplicadas e os ensinamentos ministrados nas escolas indígenas estão realmente
dando conta das expectativas a respeito da educação formal que essas populações estão
buscando?
Se falarmos de ensino de qualidade, podemos pensar no sentido de prepará-los para a
convivência positiva na inter-relação social, com a sociedade ocidental. Neste sentido
percebemos que faltam elementos integradores de, com os indígenas e por eles, definirem o
que é qualidade de ensino na construção de uma educação a partir de seus parâmetros
culturais, históricos e de lutas de resistência nestes quinhentos anos. A não participação dos
sujeitos interessados na construção de uma instituição educacional que possa lhes propiciar
a autonomia acaba por assemelhar-se às concepções que impõe sobre os dominados uma
única versão, um pensamento único.

116
Usar o termo educação indígena, significa deixar de lado o fato de que o índio tem um
sistema próprio de educação, baseado na transmissão oral do saber coletivo e dos saberes
de cada indivíduo. A educação que a sociedade envolvente tem dado para estas populações
deveria lhe ser complementar, e não substituta . O termo mais adequado seria a educação
para o indígena.
É importante destacar que as escolas indígenas existentes estão em fase de construção,
tanto pedagógica como em sua organização, pois a mudança de objetivos implica
necessariamente uma mudança de conteúdos, bem como da metodologia a ser
desenvolvida.
Não faltam documentos que pretendam assegurar aos índios seus direitos, e embora os
indígenas de diferentes etnias estejam sendo ouvidos e fazendo parte da elaboração dos
mesmos, ainda é perceptível a grande influência do Estado nas decisões finais a serem
tomadas com respeito a implantação das escolas e seus conteúdos.
Além da Constituição podemos citar a LDB, Plano Nacional de Educação do MEC,
Plano Nacional de Educação do CONED, Portaria Interministerial nº 559, de 16 de abril de
1991, Cadernos Educação Básica Volume 2 - DIRETRIZES PARA A POLÍTICA
NACIONAL DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - DE 1994. Estes documentos
entre tantos outros incorporam o leque de direcionamentos que a educação escolar indígena
deve seguir para formar indivíduos capazes de interação na sociedade nacional, embora na
prática isso não aconteça, pois as escolas indígenas são bastante precárias na formação de
indivíduos autônomos e com conhecimentos suficientes para essa integração.
Conforme nos aponta Marcio Ferreira da Silva (1994: 48), houve muitos avanços na
legislação indigenista, principalmente no tocante a educação escolar, na esfera jurídica, no
entanto na prática tudo se parece como antes, não se percebe muitas mudanças
significativas nas ações que são desempenhadas nas escolas para índios, nem na postura de
professores que ministram essas aulas, mesmo quando estes são indígenas.
O Ensino Fundamental preconiza a formação básica do cidadão, o desenvolvimento
intelectual mediante o “pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo”, tendo uma
duração mínima de oito anos.
Ocorre que isso não pode ser verificado: pelo depoimento de professores e pais de
alunos, a escolaridade dos professores é, em geral de 7ª série; e o tempo de escolarização

117
das crianças indígenas geralmente não passa de quatro anos. O idioma português é utilizado
como auxiliar pelos professores, mas sem o grau de correção que permita realmente o
aprendizado simultâneo de duas línguas. Os processos de aprendizagem também poderiam
aproximar-se mais da realidade dos indígenas, pois parece carregado demais de elementos
da cultura ocidental.
Também parece haver por parte do MEC e da FUNAI um esforço para proporcionar
a reafirmação das identidades étnicas, apenas com a valorização da língua e da arte
indígenas, como danças e cantos.
Do mesmo modo, se tem conhecimento de programas específicos para a formação de
professores especializados; porém esses programas são bastante marcados pela lógica
ocidental de aprendizagem e disciplina. E até mesmo a elaboração e impressão de material
didático específico e diferenciado é orientado por técnicos e acadêmicos, enfim por
indivíduos da sociedade ocidental, sendo que é praticamente impossível escapar dessas
praticas, já que a escola é ocidental.
Apesar do esforço local e individual de alguns professores, nem todos os programas
de ensino são “planejados com audiência das comunidades indígenas”, como prevê o §1º do
Artigo 79 da LDB101.
Observando as prescrições da LDB, é possível concluir que as demandas indígenas
mais prementes em relação à preservação da sua cultura estão presentes na legislação. Mas
é enorme a distância entre o texto legal, com conteúdo satisfatório, e a realidade das aldeias
e de suas escolas.
O alheamento do mundo oficial em relação aos indígenas (técnico, financeiro,
pedagógico) nada parece ter de casual. Distantes das instancias de poder e não
representando um grupo de interesse para a elite, as comunidades são obrigadas a enfrentar
enormes dificuldades até mesmo para fazer cumprir os poucos recursos que lhes destinam
os órgãos federais.
Ao analisarmos o Plano Nacional de Educação - MEC /Relator Marchezzan
percebemos, no item diagnóstico que é reconhecida interferência histórica da educação no
processo de aculturação servindo de instrumento de imposição de valores da sociedade

101
Ver no anexo os artigos 78 e 79 da LDB, Título VIII – Das Disposições Gerais.

118
branca / ocidental. Entretanto, as diretrizes do documento do MEC são voltadas para o
desenvolvimento do que assegura a Constituição e normas da nossa sociedade.
Este documento foi elaborado visando o que o Governo entende por benefício e
direito dos indígenas.
Não é um documento que assegure plenamente o direito indígena de ter sua
educação e cultura diferenciados. Um exemplo claro está no item 4 (quatro) dos objetivos e
metas inclusos no documento, que diz:
4. Ampliar, gradativamente, a oferta de ensino
da 5ª à 8ª série à população indígena, quer
integrando os alunos em classes comuns nas
escolas próximas, ao mesmo tempo que se lhes
ofereça o atendimento adicional necessário
para sua adaptação, a fim de garantir o acesso
ao ensino fundamental pleno102.

Quando analisamos este documento, podemos perceber que o sujeito da questão não
foi interrogado, não participou da discussão para a elaboração do mesmo. Em algumas
comunidades indígenas há bastante resistência a educação nos “moldes dos brancos” pois
temem “perder sua cultura”, conforme nos relatam os próprios indígenas103, mas a maioria
percebe que é necessário ter estes conhecimentos para poder sobreviver no Brasil. O fato
de terem consciência deste fato não significa que não desejem uma educação diferenciada
visando questões específicas de cada comunidade como seus costumes, tradições e o mais
importante, sua história.
Conforme nos indica Daniel Cabixi (1984), que é professor indígena em sua aldeia, o
processo de aprendizagem escolar pode desarmonizar o sistema tradicional de educação
indígena:

O sistema de valores das sociedades indígenas sofre


ruptura no momento em que entra em contato com a
sociedade envolvente. Como eu disse noutro trabalho,
os contatos trazem conseqüências dissociativas e, na
degeneração dos valores tribais, o sistema educativo
102
Ver documento no anexo.
103
Os termos moldes dos brancos e perder sua cultura, são termos ditos por várias vozes indígenas,
principalmente Mbyá Guarani, que temem a interferência escolar na manutenção de suas tradições e no seu
modo de ser e viver. Hoje muitos Mbyá querem a escola na sua aldeia, mas não querem que esta modifique
sua visão de mundo, seu ethos, mas que colabore para fortalecer suas raízes étnicas e seus direitos
constitucionais como etnia diferenciada dentro da sociedade nacional.

119
indígena é afetado de forma crucial, pois os símbolos
éticos e morais vão perdendo sua força como
instrumento de harmonia e estabilidade do
comportamento social indígena. (CABIXI, 1984: p.21).

É necessário que se perceba que apesar do Brasil ser uma nação as diferenças
culturais são enormes, e quando se trata de sociedades indígenas, estamos tratando de
grupos culturais que não possuem Estado, nem reconhecem as leis que regem esse tipo de
organização social. Embora estejam aprendendo a conviver com as “leis dos brancos”, pois
precisam interagir na sociedade envolvente.
Respeitando as diferenças e estabelecendo com os indígenas o que eles entendem
por qualidade de ensino poderemos nos aproximar de uma igualdade de direitos a todos os
brasileiros como consta na Constituição, porém esta tarefa requer um empenho na mudança
da imagem do indígena para a sociedade nacional, muito mais do que proporcionar
educação formal para os índios.
No Plano Nacional de Educação, consolidado no CONED, em 1997, a sociedade
brasileira definiu como metas a luta pela educação pública, gratuita e de qualidade para
todos. O objetivo deste PNE é a instituição de um sistema nacional de educação para
garantir a partir do esforço organizado e autônomo do governo e da sociedade brasileira um
padrão unitário e de qualidade para as instituições educacionais.
Assim sendo quando comparado ao PNE do governo que estabelece como deve ser
a educação indígena sem que estes tenham sido consultados, este PNE (II CONED) trata
superficialmente as questões da educação indígena, definindo:
1) Na introdução: Os índios enquanto um grupo minoritário, resgatando a necessidade de
sua inclusão social, tanto quanto outros grupos minoritários. (p15)
2) No diagnóstico: Em que pesem a tutela governamental, o maior ou menor isolamento
geográfico, os diferentes níveis de dificuldades derivadas da demarcação de terras e as
barreiras lingüísticas, os povos indígenas do Brasil devem ter assegurado o direito, como
cidadãos do país, a uma educação escolar de qualidade, na perspectiva, simultaneamente,
de sua inserção social e política na vida nacional e do respeito a cultura e organização
social de cada nação indígena. É dever do estado assegurar todas as condições necessárias -
humanas, lingüísticas, financeiras, materiais e técnico-pedagógicas para que esta educação
ocorra na perspectiva assinalada, devendo as ações governamentais estar articuladas com o

120
trabalho desenvolvido por agentes dos movimentos e entidades que congregam a luta destes
povos. (p. 33)
3) Organização da educação brasileira: Garantir a organização de currículos que assegurem
a identidade do povo brasileiro, o desenvolvimento da cidadania, as diversidades regionais,
étnicas, culturais, articuladas pelo sistema nacional de educação. Incluindo, nos currículos,
temas específicos da história, da cultura, das manifestações artísticas, científicas, religiosas,
e de resistência da raça negra, dos povos indígenas, e dos trabalhadores rurais, e suas
influências e contribuições para a sociedade e a educação brasileiras. (p.47)
4)Níveis e modalidades de educação: Prever formas mais flexíveis de organização escolar
para a zona rural, bem como a adequada formação profissional dos/as professores/as,
considerando a especificidade do alunado e as exigências do meio. Idêntica preocupação
deve orientar a educação de grupos étnicos, como os negros e os indígenas, que precisam
ter garantia de preservação da identidade e da cultura. Nesse sentido, as experiências
pedagógicas acumuladas pelos respectivos movimentos sociais organizados(Movimento
Negro, Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra, Conselho das Nações Indígenas)
devem ser contempladas como referências fundamentadoras de proposta pedagógicas
específicas. ( p83)
5) Formação dos profissionais de educação: Incluir nos currículos e programas dos cursos
de formação de profissionais de educação, temas específicos da história, da cultura, dos
conhecimentos, das manifestações artísticas, religiosas e de resistência dos povos
indígenas, e sua influência e contribuição na sociedade e na educação brasileiras. (p116)
O plano se preocupa em garantir a participação dos indígenas, em respeitar seus
costumes. Porém não vai no sentido de definir como deve ser a educação para estes, bem
como engloba os indígenas entre as minorias étnicas brasileiras e não apresenta caminhos
possíveis para uma educação adequada que respeite as diferenças étnicas. Em realidade as
propostas do CONED / 1997 não diferem muito das propostas estatais de décadas
anteriores, no que se refere a integração do indígena assim como de outras etnias, na
totalidade nacional, ainda que se refira ao respeito as diferenças étnicas e na formação de
profissionais na área da educação que tenham conhecimento dessas diferenças e de sua
contribuição para formação da sociedade brasileira.

121
A portaria Interministerial n.0 559, de 16 de abril de 1991 procura garantir aos
indígenas o acesso ao conhecimento da sociedade nacional respeitando o direito de defesa
dos seus interesses e corrigindo as distorções históricas à imagem dos indígenas.
Esta portaria procura ser o mais abrangente possível, mas no art. 09, ao garantir aos
alunos indígenas a continuidade da escolarização no sistema nacional de ensino quando não
for oferecido o ensino de 20 grau no interior das áreas indígenas, ela abre um precedente,
pois não obriga que existam escolas de segundo grau nas reservas indígenas fazendo com
que os jovens adolescentes venham a interagir de forma mais freqüente com a sociedade
envolvente, processo esse que pode trazer boas e más influências para a comunidade
indígena, já que não se propõe a orientar as escolas comuns e seu quadro docente para
receber esses alunos índios.
Em uma proposta do Governo Itamar Franco para a elaboração de uma política de
Educação indígena com tratamento diferenciado, de forma a se adequar às suas
especificidades, surgem as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar
Indígena.
Neste documento consta que é responsabilidade do Estado fornecer subsídios para a
implantação de escolas indígenas, baseado nos direitos constitucionais do índio, onde
consta o respeito as especificidades e diversidade interna desses grupos culturais
De acordo com este documento, houve apoio do MEC e da FUNAI para que a questão
da educação indígena fosse descentralizada e passasse às mãos dos Estados e Municípios.
Da mesma forma consta a urgência da formação de professores indígenas, especializados,
para ministrarem as aulas em suas escolas. Porém, neste documento fica claro que o
professor índio só se encarregará da alfabetização e de rudimentos da aritmética, ficando o
resto dos conteúdos a critério de professores não-índios.
Fala-se em educação fundamental, mas nota-se que os currículos são feitos por não-
índios e colocados à aprovação dos indígenas, sem que estes estejam participando
diretamente na sua confecção.
Este documento refere-se à educação bilíngüe, respeitando as especificidades
culturais de cada grupo indígena. Aqui também há referência a práticas esportivas que
devem ser incorporadas ao currículo escolar de acordo com a demanda ou interesse da
comunidade indígena. Além disso, busca-se afirmar que mesmo dentro das disciplinas

122
oferecidas, comuns às oferecidas à escola não-indígena para o ensino fundamental, devem
ser respeitadas as especificidades culturais de cada grupo.
No entanto este mesmo documento salienta o fato de que é necessário preparar
profissionais indígenas para atuarem dentro das aldeias, compactuados com o processo de
educação, saúde, manejo do meio ambiente, enfim profissionais capacitados para atender à
demanda das questões indígenas.
O Conselho Nacional de Educação elaborou, um parecer que orientou o projeto de
resolução que institucionalizou questões referentes a criação da categoria “Escolas
Indígenas” e as regulamentações procedentes.
Este projeto elaborado pela Câmara de Educação Básica trata da criação da
categoria Escola Indígena a partir dos direitos assegurados pela Constituição da República
Federativa do Brasil (Art. 231), a LDB (Art. 78 e 79) e a portaria 55196. Neste sentido faz
um bom diagnóstico da questão, são definidas preocupações pertinentes com relação ao
respeito as diversidades culturais indígenas, porém para a institucionalização e
regulamentação fica definido que: é responsabilidade da União traçar diretrizes e políticas
para a educação escolar indígena; cabe ao Estado e Municípios, em alguns casos, a
execução das políticas relacionadas à educação escolar indígena.
Cabe dizer que apesar das diretrizes com relação a educação indígena estarem bem
definidas, a execução e implementação dessas políticas deixam a desejar, pois as
necessidades são muito urgentes, e os processos muito lentos.
Este documento foi homologado em 14 de setembro de 1999 e compõe-se de 16
artigos que visam estabelecer uma estrutura para o funcionamento das Escolas Indígenas
que se diferencie das escolas normais de ensino fundamental, para que se preserve a cultura
de cada povo indígena através de um currículo intercultural e bilingüe. Essas escolas
deverão situar-se dentro dos territórios indígenas e serão exclusivas para as comunidades
indígenas, sendo o ensino ministrado em língua materna, dentro de uma organização
escolar própria.
Consta que a comunidade envolvida deverá participar da organização da escola para
preservar elementos étnicos e atender as necessidades dessa comunidade no âmbito da sua
maneira de ser, respeitando suas diferenças culturais e sócio-econômicas.

123
As escolas indígenas deverão respeitar os preceitos constitucionais e legais para o
funcionamento como uma escola reconhecida dentro do Estado Nacional, porém serão
respeitados diferenciações temporais que se enquadrem as especificidades próprias de cada
comunidade, bem como será específico o projeto pedagógico de cada escola, orientado
pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, assim como a formação dos professores,
específicos para esta escola, sendo eles índios ou não-índios.
Esses professores deverão ser especializados através de um curso próprio que lhes
dará embasamento para trabalhar com essas diferentes culturas, para que possam assumir
tanto a sala de aula, quanto a direção da escola, sendo que fica claro que prioritariamente a
atividade docente deverá ser exercida por professores índios, provenientes daquela
respectiva etnia.
A União deverá criar meios estruturais e financeiros para o desenvolvimento dessa
escola, através da formação de profissionais especializados, de programas pedagógicos que
envolvam as comunidades indígenas para que estas participem da formação desses
programas acompanhando e avaliando os mesmos dentro das suas exigências e
necessidades.
O Estado deverá organizar-se no sentido de regulamentar as escolas e os professores
indígenas, reconhecendo esses títulos como magistério, sendo admitidos através de
concurso público, bem como “promover a formação inicial e continuada de professores
indígenas.”
E assim como a União, o Estado deverá responsabilizar-se pelo material didático
específico, provendo as escolas de recursos humanos, materiais e financeiros.
A Resolução reza ainda que os Conselhos Estaduais de Educação deverão:

• Estabelecer critérios específicos para a criação e regularização das escolas


indígenas e dos cursos de formação de professores indígenas;
• Autorizar o funcionamento das Escolas Indígenas, bem como reconhecê-las;
• Regularizar a vida escolar dos alunos indígenas, quando for o caso.”

Os municípios envolvidos com a educação indígena deverão trabalhar em conjunto


com o Estado e em caso de não atendimento as necessidades da comunidade indígena,

124
deverão, num prazo de três anos, transferir as responsabilidades ao Estado, depois de
ouvidas as comunidades interessadas.
O planejamento da educação escolar indígena deverá dar-se com a participação de
representantes índios e não-índios envolvidos na questão indígena.
Os recursos financeiros destinados a essa escola são provenientes de verba pública,
que poderão ser diferenciadas de acordo com os artigos 2º e 13º da Lei 9424/96.
Nas escolas temos professores índios e não índios, mas os professores índios atuam
apenas até a 4a série, ministrando o aprendizado da língua materna. A preparação destes
professores índios está restrita a curtos períodos em que são ministrados cursos, geralmente
de férias, por técnicos e professores que irão orienta-los para a prática pedagógica conforme
o aprendizado da cultura ocidental. Mas falta especialização para estes professores, e
melhor preparo para lidar com suas realidades.
O objetivo principal das Escolas Indígenas deve ser a conquista da autonomia sócio -
econômica de cada povo, contextualizada na recuperação de sua memória histórica, na
reafirmação de sua identidade étnica, no estudo e valorização da própria língua e de seus
conhecimentos empíricos, sintetizada em seus etnoconhecimentos, bem como no acesso às
informações e aos conhecimentos técnicos e científicos da sociedade majoritária ( branca) e
das demais sociedades indígenas e não indígenas.
O Estado brasileiro possui uma legislação bastante minuciosa em relação a questão
indígena mas não consegue cumprir com que estabelece em decretos, leis etc. Na prática,
porém, não se observa um atendimento satisfatório, seja por falta de recursos financeiros,
seja por negligência ou por falta de informação.
Necessita-se, então aplicar o quanto antes essas Leis para que possamos resolver
problemas que vêm se arrastando há anos.
Capacitar técnicos, profissionais, que compreendam essas sociedades, para logo
capacitar os próprios índios e para que possam trabalhar com autonomia e liberdade, de
forma a prosseguirem vivendo neste país sendo respeitados e usufruindo o direito de
cidadania, conforme consta no Documento do Povo Guarani resultante do encontro dos
Povos Guaranis em Massiambu de novembro de 1999104.

104
Ver anexo o Documento do Povo Guarani.

125
Sem dúvida, o processo para se chegar a uma educação diferenciada, específica,
intercultural e bilíngüe é lento, havendo progressos, mas também muitos retrocessos. Tentar
englobar todas as comunidades indígenas num único termo “índio” é persistir na idéia de
que todos os índios são iguais. Porém cada comunidade tem uma cultura diferenciada, e isto
deve ser considerado em primeiro lugar. Em muitos lugares, felizmente, o material didático
é elaborado junto às comunidades em forma de oficinas, é desta forma que se pode atingir
esta educação diferenciada. A Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, através do
Núcleo de Educação Indígena vem desenvolvendo um bom trabalho no sentido de preservar
as culturas indígenas regionais, mas isto só não basta é necessário um investimento maior
nesta questão, o Governo Federal, o Governo Estadual e os Municípios devem se
conscientizar que são necessárias muito mais verbas, mais interesse em custear este
trabalho para que a sociedade ocidental deixe de ser paternalista com os indígenas e passe a
respeita-los como cidadãos.
Construir com os indígenas os currículos de suas escolas, estabelecer seus conteúdos e
metodologias é caminhar em direção a autodeterminação e a liberdade dos povos indígenas
das relações de tutela e paternalismo a que estão acostumados e que não lhes proporciona
uma real autonomia diante da sociedade envolvente, fazendo-os sentirem-se sempre
menores e marginalizados diante dessa sociedade.
Todos estes documentos falam de educação bilíngüe, mas o termo bilíngüe é muito
limitado, pois muitas populações indígenas falam mais de uma língua indígena e esse
bilingüismo está relacionado a fala tradicional e o português.
Portanto, para se alcançar uma educação escolar para o indígena que realmente lhe
proporcione a autonomia diante da sociedade nacional e o prepare para conviver nessa
sociedade sem deixar de ser ele mesmo, será preciso muitas discussões e desconconstruções
de preconceitos há muito tempo enraizados.

126
CAPÍTULO IV.

4.1. ESCOLA EM CRISE / SOCIEDADE EM MUDANÇA.

A instituição escolar passa por uma crise em sua estrutura já desde finais dos anos 1970,
quando o próprio sistema capitalista busca reestruturar-se mundialmente. Dentro dessa crise
encontram-se emergentes movimentos étnicos, raciais, de gênero, enfim, onde as diferenças
sociais e culturais dos povos alocados em Estado – nação buscam terreno dentro dessas novas
conjunturas econômicas. E conforme Barth (In: VERMEULEN & GOVERS, 2003: 41)
salienta:

é o discurso global que dá forma à arena, podendo tal


acontecer apenas como último recurso, quando as vítimas
da violência colectiva desejarem ‘que o mundo possa
saber’, ou quando este funciona como uma poderosa
alavanca para exercer pressão, como, por exemplo,
quando os povos aborígenes nacionalizam ou globalizam
os seus esforços para renegociarem a sua posição na base
de princípios de auto – determinação, ou, pelo menos, de
participação.

Daí, perceber-se que só existe a diferença étnica porque existem os Estados, seus
poderes legais e um sistema econômico internacional, que perpassa pelo cultural e pelo
político de cada Estado. Esses grupos só são étnicos porque necessitam enfrentar as barreiras
culturais com seus “outros”, para sobreviverem dentro do sistema, já que dele não conseguem
se excluir de forma definitiva. Emergir como étnico, como diferente, como indígena, lhes dá
garantias na atual conjuntura, para expor seus problemas, para ganhar visibilidade, para
barganhar direitos e participação dentro desse Estado e do sistema econômico que o rege.

127
A educação faz parte desse sistema e desse Estado. O poder dessas estruturas está na
instituição, impregnado, e esta vem ao longo de décadas se debatendo para vencer suas
crises, se desenrolar de suas próprias amarras, já que foi forjada pelo próprio sistema que
hoje vem tentar combater. A idéia de modelar os corpos, disciplinar a sociedade para um
quadro econômico que nascia para o capital, hoje vem tentando “nadar contra a maré”, já que
a escola ao longo de sua trajetória e das lutas sociais ganhou campo dentro de uma sociedade
heterogênea, cheia de contradições e desigualdades, passando assim a se tornar instrumento
de luta contra aquilo a que foi criada.
Mas os impasses são muitos e o reconhecimento de que suas funções devem ser
diversificadas e que a instituição deve mudar seus rumos não resolve o problema burocrático
por um lado e sócio – econômico por outro, pois a escola não está aparelhada com suficientes
recursos técnicos e pessoais para dar conta do papel que então a sociedade lhe atribuiu. Saber
as diferenças, lutar por um ensino mais igualitário, criar novos parâmetros curriculares e
práticas educativas que amenizem as desigualdades e dêem suporte aos educandos para
enfrentarem os problemas sociais, vem sendo implantados e discutidos fervorosamente pela
academia, porém, na prática a instituição não tem conseguido alcançar tamanhas mudanças,
por que independe dela apenas transformar o mundo. A sociedade, desmantelada pela
desigualdade social, não passa apenas por dentro da escola, e as outras instancias, como a
comunidade e a família, precisam também ser reestruturadas para que a educação formal
consiga lhes dar suporte.
A idéia que a própria sociedade têm, principalmente as categorias marginalizadas, de
que a escola é um local de passagem, instrumental para cada indivíduo, e que não foge a
função primordial que sempre lhe coube, dificulta as mudanças na ordem da transformação
dessa instituição em um elemento dinamizador das lutas sociais, pois:

[...] se ao mesmo tempo a escola básica se puder


constituir como um espaço e tempo de orientação
profissional, permitindo um encontro sério e responsável
com o mundo do trabalho, poderá então contribuir para
ultrapassar a actual visão fechada acerca do valor da
escola exclusivamente como caminho / local de passagem
e não enquanto verdadeira instancia de permanência e de
vida. (SÁ – CHAVES et all, 2003:32).

128
Pensar em como essa escola se insere numa comunidade indígena, que vive dentro de
padrões aldeões de organização social105 e como salienta Balandier (1969:164) possui uma
dificuldade muito grande de ajustamento entre o poder aldeão e o sistema de administração
do Estado moderno, já que:

no seio dessas comunidades surge uma cisão entre o


domínio da vida interna – dominado pela tradição no
estado presente - e o domínio da vida externa, que
organiza as múltiplas relações agora estabelecidas com o
‘exterior’ – onde se impõem os agentes e forças da
modernidade.

Nesse sentido, as relações entre tradição e modernidade se confundem e se dissociam


conforme os confrontos vão aparecendo dentro das relações sociais, no entanto torna-se cada
vez mais difícil separar-se das estruturas de um Estado moderno estando sob a dominação do
mesmo e tendo seus regimentos internos interferidos pela legislação externa dessa
comunidade aldeã.
Essas comunidades indígenas comportam essas divergências e a escola formal que vem
sendo implantada atualmente tenta amenizar os conflitos já existentes historicamente entre
essa instituição e os povos autóctones de áreas colonizadas.
Seria interessante frisar essa capacidade de reelaboração cultural que os índios têm, que
os faz permanecer índios mesmo quando as pressões são muitas e dessa forma creio ser
interessante citar a resposta de Manuela Carneiro da Cunha à pergunta do jornal Zero Hora,
de sábado, 15 de abril de 2000, no Caderno Cultura, em função das comemorações dos 500
anos do Brasil, que questiona se os índios brasileiros e suas culturas têm chance de
sobrevivência no século XXI. Cunha (2000: 05). responde que:

Os índios brasileiros sobrevivem a tudo, até as profecias


ditas cientificas de que iriam desaparecer. Há algumas
décadas ainda se dizia que seu desaparecimento era
inelutável, que obedecia a uma lei da história. Lei da
história coisa nenhuma. As políticas de expropriação de

105
Entendendo – se como comunidade aldeã a definição dada por Balandier (1969: 164) que diz: “Constitui
uma sociedade reduzida, de fronteiras precisas, em que se apreende com nitidez a defrontação do tradicional e
do moderno, do social e do histórico. É no interior de seus limites que se realizam transformações radicais,
não sem resistência e sem mal entendidos e, nesse sentido, os inquéritos que lhe dizem respeito são os mais
pejados de ensinamentos”

129
territórios, de concentração, de guerra, de escravização e
as epidemias encarregaram-se de reduzir drasticamente a
população indígena. Calcula-se que, dos milhões de
índios que moravam no que hoje é o Brasil, restam
apenas uns 300 mil. Para se ter uma idéia, basta dizer que,
quando aqui aportaram os portugueses, a população da
Europa e a da Amazônia eram mais ou menos da mesma
monta. Das cerca de mil etnias que possivelmente aqui
havia, hoje restam umas 210. Isso significa que 210 etnias
diferentes, apesar de terem perdido grande parte de sua
população, conseguiram ainda assim sobreviver. Significa
que há pelo menos 210 maneiras diferentes de ser
brasileiro, Hoje ainda se falam umas 180 línguas
indígenas no Brasil. Isso é uma riqueza extraordinária e
uma prova da teimosia dessas sociedades em querer
sobreviver. Não há dúvida, a meu ver, de que elas farão
parte do nosso futuro. Resta saber em que condições.

Buscando entender melhor esses movimentos étnicos, essas relações entre grupos
sociais diferenciados, a história sai de seus muros, pois vai precisar o aporte das outras
ciências sociais para enriquecer seu discurso e transformar o “fazer histórico” com a
perspectiva do pensamento antropológico e sociológico, pois de outra forma continuaríamos
nos esquivando da tentativa de escrever “outras” histórias, com protagonistas que não
tiveram o privilegio de ocupar os bancos da história oficial nacional.
Conforme se pode perceber a idéia de que índios e negros devem ocupar um lugar
secundário na construção da nação brasileira é algo enraizado pela história nacional e mesmo
com o esforço de pesquisas atuais que revisam esses paradigmas, o senso comum tem o
estereotipo dos índios e dos negros bastante marcado, e como as pesquisas acadêmicas
demoram a chegar – quando chegam – no público mais geral, esse estereótipo permanece
forte e resistente na mentalidade social.
Segundo o que Oliveira (1998) sempre salienta em seus textos sobre questões indígenas
e as relações interétnicas:

a sentença de morte é dada de forma indireta,


mas absolutamente inápelavel, uma vez que já
vem calçada em fatos tidos como óbvios ou
consensuais: os índios são efetivamente um
componente do Brasil e de cada brasileiro (...), só
que isto corresponde a uma historia passada.

130
Hoje a sua presença já é algo insignificante (...)
ou então é “forjada”, resultado da simples busca
por vantagens individuais. (OLIVEIRA, 1998:
63).

Se pensarmos que esses movimentos étnicos são fruto da própria crise do Estado
consigo mesmo e com as desigualdades sociais e econômicas que existem em seu interior, e
que a construção de memória histórica de um povo está dentro da lógica de manutenção do
Estado, e que esses discursos se criam em razão da não solução dos problemas de interação
interétnicos e sociais, pode-se pensar que há riscos de segregação social, se o discurso
histórico sobre a questão dos índios e os direitos adquiridos junto a sociedade nacional não
elucidar as mentes de índios e não índios, pois a interação interétnica sempre houve, o que
não há é um entendimento real e concreto das sociedades envolvidas sobre os problemas do
contato.
Como ressalta Oliveira (1998: 70):

pensar o “problema indígena” nessa conjuntura exige um


aprofundamento das soluções legais e administrativas,
pois em muitos casos o conflito mais direto dos grupos
indígenas é com iniciativas oficiais, que decorrem de
metas e prioridades de políticas públicas, em que o
Estado intervém seja como executor, patrocinador ou
simplesmente por aprovação ou omissão.

Dessa forma podemos dizer que o problema não é indígena, mas administrativo, é um
problema que se encontra no seio do Estado e da sua burocracia, de seus segmentos e frações,
onde os indígenas e suas culturas encontram barreiras de interlocução, eles não entendem o
funcionamento da burocracia estatal e o Estado não entende suas leis e regras sociais, e nem
faz um esforço muito grande para entende-las, pois classifica o índio como um ser
inferiorizado e, portanto, ignora as suas estruturas, considerando como válidas apenas as
estruturas do Estado.

4.2. A INSTITUIÇÃO ESCOLAR PARA OS MBYÁ GUARANI: DIFERENÇAS ENTRE


O APRENDIZADO PRÓPRIO E A ESCOLA DOS BRANCOS.

131
Santos (2003), observa que o discurso religioso que visa converter os índios Guarani do
período colonial a fé cristã, está relacionado a “falta de fé” que os padres julgavam ter esses
índios, já que consideram suas crenças como equivocadas. E cabe salientar que o período em
que se dão essas conversões, conforme o texto de Santos, é quando esses índios já estão
bastante desestruturados socialmente, já que o primeiro impacto da conquista está
consolidado, e os embates bélicos, o trabalho forçado e as doenças já haviam dizimado boa
parte dessas populações, que agora contavam com um menor numero de gentes. Estes índios
então passavam a “necessitar” da conversão e da boa vontade dos padres que os iriam
civilizar.
Como podemos ver, a ação de muitos programas missionários para conversão dos
indígenas, no século XX, ainda trazem muito do discurso colonial, como justificativa para
integração dos índios na sociedade nacional, dando-lhes a chance de deixarem a “vida
selvagem e miserável” e passarem a ser “bons cristãos e trabalhadores”106.
Levando–se em consideração que estes indígenas que foram arregimentados pelas
escolas do Projeto Anchieta ou por outras escolas missionárias ou do Estado, estão passando
por um estado de desestruturação social e cultural, bem como econômica, já que confinados
em uma reserva e sem perspectivas muito concretas de sobrevivência no atual Estado
Nacional. E considerando que um dos incentivos que levavam as crianças, principalmente, a
permanecerem na escola era a merenda escolar, já que ali eles tinham a garantia de uma
alimentação que em suas casas já não é tão abundante. Podemos pensar que o discurso dos
religiosos sobre a “necessidade” dos índios em receber a fé e salvar a alma, assim como se
transformar em “civilizado”, está baseada nesse estado de miserabilidade visível do grupo, e
não numa vontade expressada por eles de se integrarem a sociedade nacional.
Porém a educação recebida nessas instituições é contraditória a educação indígena
própria, onde o indivíduo interage na sua comunidade de forma global e não parcial como na

106
Basta ver a ação dos Salesianos junto as comunidades Bororo e Xavante do Mato Grosso, que acabaram
por destruir as formas de organização das aldeias, que se davam em circulo, respeitando um espaço simbólico
no grupo, e onde a visão de mundo indígena era reconhecida. Os Salesianos implantaram vilas com casas e
ruas paralelas, fazendo com que os indígenas perdessem a noção do espaço e criassem assim muito mais
vínculos assistenciais com os missionários. Da mesma forma, na aldeia Terena de Limão Verde há um
grande conflito interno depois que nove igrejas diferentes se acomodaram dentro da área, congregando cada
uma delas um grupo de Terena na sua religião. A s disputas e brigas em função de dogmas diferentes, e
pastores diferentes, acaba criando rupturas que só vem enfraquecer o grupo diante das dificuldades que
enfrentam.

132
educação ocidental. E ela não é somente utilitária, nem técnica, ela é também cultural,
preparando o individuo para viver, não apenas para trabalhar107.
Não foram somente os jesuítas que atuaram junto aos grupos indígenas, há também o
SIL (Summer Institut of Linguistic), que é um programa vindo dos EUA, onde pastores
evangélicos fizeram experiências de alfabetização entre os indígenas de diversas aldeias, para
isso eles traduziam o evangelho na língua nativa, tornando mais fácil à conversão.
Cabixi (1984: 12) classifica a ação do SIL como nefasta, assim como inclui todas as
ações das instituições religiosas como perniciosas, já que condenaram os “sagrados valores
religiosos dos povos indígenas”, a extinção, classificando-os de satânicos, mostrando o
desconhecimento a respeito dessas culturas, e como esses valores possuem fundamental
importância para manter a força de união entre os indivíduos, que dessa forma conseguem
resistir “às investidas da sociedade nacional”. O autor classifica os evangélicos como mais
perigosos do que os católicos.
Embora admita que o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), tem tido um papel
importante nas discussões sobre meios alternativos para uma pedagogia de ensino nas
comunidades indígenas, sendo que esta deve proporcionar não apenas o aprendizado da
escrita, mas:

elementos de estudo e reflexão sobre a realidade em que


vivemos, como também de compreendermos melhor a
atual conjuntura política, econômica e social do país e
suas interferências no nosso sistema de vida (dos índios).
(CABIXI, 1984: 14).

Ao observar principalmente as comunidades Mbyá Guarani das áreas indígenas da


Estiva, Cantagalo e Lomba do Pinheiro, que se localizam próximas e dentro de Porto
Alegre, no Rio Grande do Sul, e que possuem escolas em sua comunidade, percebi o quanto
a figura do professor indígena tem influenciado nas relações entre essas comunidades e a
sociedade dominante, ou seja, junto de órgãos governamentais e mesmo comunidades
vizinhas.

107
“Também se pensou com freqüência, que a educação indígena é simplesmente utilitária, orientada somente
à sobrevivência, sem tempo, nem interesse para a cultura. Mas a convivência dentro de uma sociedade
indígena mostra bem o contrario: que o índio está educado para o prazer de viver e que seu ‘tempo de
cultura’, dedicado a rituais, jogo ou simples gracejos, é mais extenso e intenso do que aqueles das sociedades
modernas que trabalha para comer. O índio trabalha para viver”. (MELIÁ, 1979: 10)

133
A escola para os Mbyá Guarani, há alguns anos atrás, ainda era algo não reconhecido
e nem aceito por essa sociedade tradicional, e mesmo hoje ela ainda causa muita polêmica
interna entre os membros mais conservadores e seus poderes sobre a organização social e
os novos poderes advindos do professor indígena, que tem tido uma grande aceitação entre
as comunidades que possuem escolas. Porém, sua interferência na vida comunitária e
dentro do sistema tradicional é muito discutida, pois esta categoria tem servido como uma
ponte entre as duas sociedades que se relacionam, ressaltando suas diferenças, mas também
criando laços com atividades e objetos de consumo que não são comuns ao grupo.
A Constituição de 1988 e as leis que asseguram os direitos indígenas, afirmam que a
escola indígena deve atender as necessidades das comunidades sendo construída a partir
dos parâmetros educacionais e culturais do grupo que a utiliza, seguindo normas e costumes
desse grupo, e respeitando os poderes internos da comunidade, bem como sua maneira de
ser. Porém, não é possível dissociar a atuação das políticas públicas nas áreas indígenas de
muitas políticas já empregadas anteriormente, principalmente no que diz respeito à
escolarização, já que esta sempre esteve presente no processo de conquista, com sua
imposição de normas e regras provenientes da sociedade dominante.
No que diz respeito a formação de profissionais das áreas da saúde e educação dentro
das comunidades indígenas e que adquirem um poder político e uma certa liderança dentro
dessas comunidades, aderindo para si valores da sociedade ocidental, reproduzindo esses
valores em sua comunidade e muitas vezes criando atritos com os poderes tradicionais dos
líderes religiosos mais conservadores.
Pois a escola traz em si, como instituição, a ideologia do sistema capitalista, seu modo
de produção e organização social (SILVA & BONIN, 2002), e como visto nos capítulos
anteriores, esta é uma instituição disciplinadora da sociedade ocidental capitalista e deve
ordenar os corpos e as mentes de seus indivíduos para se adequarem na sociedade moderna.
Como, então, uma instituição com essas características pode auxiliar na obtenção de
autonomia de povos marginalizados como os indígenas americanos, que sofreram o
processo de conquista e ainda sofrem o preconceito da sociedade envolvente?
Seria interessante aqui definir que a identidade étnica dos Guarani está
intrinsecamente ligada as suas relações sociais e suas representações em contrapartida com
a sociedade externa, conforme nos salienta os estudos de Barth (1998) e que a reclusão

134
dessa etnia para dentro de si mesma, aparece aqui como uma forma de preservar-se contra
as pressões da sociedade ocidental (GEERTZ, 1989) - o “branco” -, que é vista como
inimigo e deturpador do modo de ser (ñanderekó) Guarani e de seu habitat (mbyáretã).
A escola indígena força essa aproximação, que nos dias atuais se torna necessária
para a sobrevivência física desse povo, pois eles precisam interagir na sociedade nacional a
fim de defenderem seus direitos como povos autóctones, assim como outros povos estão
fazendo. Os Guarani vêm buscando esses direitos e têm buscado na escolarização meios
para entender o funcionamento da sociedade brasileira com a intenção de encontrarem na
formação escolar a autonomia que tanto querem para reger sua sociedade dentro da lógica
de seus costumes, mas vivendo em paz com as nações onde possuem seus territórios.
O que podemos ver neste caso, para os indígenas do Sul do país é que houve uma
forte tentativa de assimilação108 ao longo da história colonial, onde, muitos indivíduos se
enquadraram e hoje, embora fenotípicamente se pareçam com indígenas, não se identificam
como tal. Porém, retornando a idéia de etnicidade como ato político, de resistência à
dominação, podemos perceber que os Guarani, embora sejam um grupo indígena baseado
no modelo de famílias extensas e não reconheçam para si o conceito de nação tem
reclamado politicamente esse reconhecimento pela sociedade envolvente do status de
“nação indígena”, independente de uma integração com o Estado nacional.
Devemos entender aqui, que como etnia, essa sociedade mantém sua cultura própria
através do tempo, sua organização social, política e econômica, reconhecida e ativa dentro
do grupo, mas não possui uma efetiva participação na sociedade nacional, como Laraia
(1976: 173) nos apresenta como sendo uma verdadeira integração109, mesmo porque é
perceptível no contato com eles, a sua desconfiança e receio com os “brancos”, sendo
muitas vezes difícil à aproximação do pesquisador de certas lideranças internas.
Da mesma forma, nos últimos tempos tem havido uma certa abertura e os Guarani
tem buscado seus direitos na política indigenista nacional, embora para isso se valham
muito do discurso construído sobre eles e de mediadores inseridos na questão indígena,

108
Entende-se aqui por assimilação uma total incorporação do grupo tribal à sociedade nacional, com a
adoção de grande parte dos costumes e práticas tecnológicas desta, com a perda quase total de sua
peculiaridade cultural e principalmente de sua identidade étnica, conforme Laraia (1976:173).
109
“Integração, como uma efetiva participação do grupo tribal na sociedade nacional, com a adoção de
diversos costumes e práticas tecnológicas, mas sem perder os aspectos que consideram importantes de sua
cultura e, principalmente, sem perder a sua identidade étnica”. (LARAIA, 1976:173).

135
como antropólogos, advogados, políticos, missionários, etc., mantendo muito do seu modo
de ser resguardado ao conhecimento alheio.
Mas, pode-se afirmar que, baseando-se nas teorias de etnicidade vigentes e aceitas
para nossa sociedade, os Guarani são um grupo étnico diferenciado, que se reconhece
enquanto tal, e vem reivindicando essa identidade a fim de afirmar-se dentro da sociedade
envolvente, que deverá respeitar suas especificidades, principalmente no que diz respeito ao
reconhecimento de seus territórios, já que estão sentindo a necessidade de terem suas terras
demarcadas legalmente, o que até então não se fazia necessário, já que para os Guarani a
terra é um bem coletivo e não deveria ter um proprietário; isto é visto como uma atitude dos
brancos que “querem tudo para si, não respeitam o que o deus deu para os homens
usarem”110.
Muitas dessas conquistas se deram porque índios de diversas etnias eram
alfabetizados e conheciam as leis, podendo então organizar suas comunidades e explicar-
lhes seus direitos. Por isso ao observar comunidades indígenas brasileiras que possuem
atualmente escolas no interior de suas aldeias pode-se perceber que esta instituição passa a
ocupar um lugar de destaque sócio – cultural para estes grupos que a priori não teriam
nenhum vínculo com a educação de forma escrita, já que são povos de tradição oral. No
entanto, como as etnias e culturas não são estáticas no tempo e no espaço é perceptível que
as relações de poder que permeiam essas instituições estão bem presentes nas áreas
indígenas e que o professor – índio da comunidade acaba assumindo um status diferenciado
nesta sociedade, que antes não havia entre as lideranças dessas etnias.
Em estudo anterior foram analisados os parâmetros constitucionais e a documentação
legal que legitima a implantação de escolas diferenciadas e bilíngües para comunidades
indígenas e a didática aplicada em algumas dessas escolas (BARÃO, 2003). Ali, observei
que muitos professores não índios não estavam preparados para enfrentar a realidade de
seus alunos índios, e que muitos professores índios traziam traços marcantes da sociedade
branca ocidental para a sala de aula, repetindo assim o velho modelo educacional, com
alguma maquiagem, que é utilizado para assimilar os povos autóctones desde a guerra de
conquista.

110
Palavras do cacique Juarez, da aldeia da Estiva, em Viamão – abril de 2002.

136
Meliá (1979), já salientava a questão de que os indígenas têm seu próprio modelo
educacional, ligado as suas tradições, mitologia e principalmente a língua, já que a
oralidade é a base desta educação, e novamente, em palestra proferida em 18 de setembro
de 2002, na UCDB em Campo Grande, durante o Seminário Fronteiras étnico-culturais e
fronteiras da exclusão: o desafio da interculturalidade e da equidade, assim como durante
conferência no Congresso de Estudos Ibero Americanos, realizado na PUCRS, em 2003, o
autor tornou a tocar no assunto da oralidade e da língua, salientando que a forma de pensar
esta relacionada a forma como se entende e codifica a língua falada ou escrita, e que
transformar a oralidade em escrita implica em mudança na forma de pensar.
Essa educação escolar que vem sendo aplicada para os povos indígenas tem seus
pontos positivos e negativos, pois modifica varias práticas dentro da estrutura social,
cultural, política e econômica dessas sociedades, e pesquisadores vêm se debruçando sobre
o tema a fim de elucidar questões relativas a transformações étnicas e culturais que estão no
cerne do aprendizado escolar para os indígenas, desde o contato com os europeus e as
primeiras manifestações de ordem catequética que foram impostas as populações
autóctones. Inclusive foi tema bastante discutido no seminário citado acima, não só por
pesquisadores acadêmicos que se atem sobre a questão indígena, mas pelas próprias
lideranças indígenas que tem discutido os caminhos que essas mudanças e essas relações de
poder irão tomar dentro de suas comunidades.
É perceptível entre os Mbyá Guarani, por exemplo, que o professor da escola
funciona como um mediador entre a sociedade guarani e os brancos. E este professor
também apresenta um consumo de bens que não são acessíveis a outros membros da
comunidade.
Valores da sociedade envolvente acabam sendo incorporados por esses professores e
como eles são reapropriados dentro da comunidade? Como se dá a transferência de um
conhecimento técnico, por uma sociedade baseada em elementos transcendentais?
Essas questões estão latentes nas discussões sobre escolas indígenas, principalmente
por que as próprias sociedades indígenas se preocupam com os valores ocidentais que
acabam sendo trazidos pelos professores e assumidos pelos alunos. As populações

137
indígenas do Brasil, vêm sofrendo interferências culturais massivas desde a conquista111, e
as escolas tiveram papel fundamental nas transformações culturais que esses povos
passaram, porém o controle cultural foi mantido o que garantiu a existência de etnias
indígenas até os dias atuais, contrariando as premissas dos governos coloniais e pós
coloniais, que esperavam assimilar essas populações ou extermina-las fisicamente.
O que se percebe é que houve uma promoção da invisibilidade desses povos, bem
como um acelerado processo de deculturação por parte dos próprios órgãos responsáveis
pela sua segurança, a fim de desintegrar essas populações tornando-os cada vez menos
identificados como indígenas para que deixem de possuir direito à terra e aos demais
direitos constantes na legislação brasileira. E mesmo as organizações missionárias acabam
defendendo os direitos indígenas constantes nessa legislação, mas aplicando a catequese
sobre esses grupos étnicos e repetindo o processo iniciado pela ordem jesuítica colonial.
Na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, há cursos de formação de professores indígenas para as diferentes etnias daquele
território, porém observei que por ser uma instituição salesiana, possui muitos traços
cristianizadores, que estão presentes na postura desses índios professores e demais
profissionais da educação que atuam nas aldeias Terena, Xavante, Kaiová – Guarani e
Bororo112. Deve-se pensar os cursos ministrados para professore indígenas, a fim de ver se
nossas instituições locais estão ou não sendo adequadas as necessidades de comunidades
que vivem no sul do Brasil e se nesses outros territórios as práticas exercidas pelas
universidades e instituições de ensino tem sido atenciosas as necessidades das populações
indígenas e tem respeitado a etnicidade e a diferença dessas populações de forma concreta.
Em realidade, devemos pensar na instituição escola e ver se ela é ou está adequada a
uma realidade de vida diferente da sociedade capitalista, pois nossa sociedade ainda é
deficiente de um ensino realmente libertador que desperte a consciência dos povos para um
mundo mais justo e igualitário.

111
Veja: MONTEIRO, John Manuel Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999. e Os Índios da Aldeia dos Anjos – Gravataí – século XVIII. EST –
AHRS.
112
Ver: CARVALHO, Ieda M. de. Professor indígena: um educador do índio ou um índio educador.
Campo Grande: UCDB, 1998. e MANFROI, José. Qual a função da escola indígena diferenciada na
construção do futuro do povo Kaiová – Guarani? Um estudo a partir das lideranças, rezadores, pais e
professores indígenas. In: Multitemas, n. 12, novembro, Campo Grande: UCDB, 1998.

138
Os atuais Mbyá Guarani passam mais uma vez por um processo de reestruturação sócio
– cultural, já que ao longo de sua história vêm se submetendo a transformações drásticas em
busca da manutenção de seu ethos, fugindo, esquivando-se do contato com o “branco”, que é
visto, e não sem razão, como nocivo ao seu modo de vida e a boa saúde da terra e do
ñandereko (modo de ser).
Os Mbyá há muito custo mantiveram-se isolados do convívio com a sociedade
ocidental113, buscando um confinamento nas últimas reservas de mata no Paraguai, Argentina
e Brasil, principalmente. Caracterizando-se dessa forma, como um grupo bastante arredio, de
comportamento reservado e receoso do contato cultural proveniente das relações interétnicas,
já que mantinham-se ligados aos seus costumes e ao modo de vida que os antigos lhes
ensinaram como sendo correto e moralmente aceito para manterem-se autênticos Guarani,
saudáveis e livres.
Hoje é impossível evitar esse contato e como diz Garlet (1997:66):

a convivência com o mundo e a cultura


ocidental passou a ser inevitável. O espaço
geográfico cada vez menos proporcionava
isolamento e distanciamento. Sendo as fronteiras
geográficas cada vez mais tênues e frágeis, os
Mbyá vão reforçar suas fronteiras culturais,
delimitando espaços – sobretudo religioso e
lingüístico – para fortalecer e preservar sua
etnicidade.

No entanto essa etnicidade já não é a mesma de alguns anos atrás, quando os


deslocamentos ainda proporcionavam um certo distanciamento. Hoje as áreas demarcadas, ou
melhor dizendo ocupadas e identificadas, que vem sendo reivindicadas são uma necessidade
de sobrevivência física para alguns grupos, embora seus acampamentos permaneçam nas
estradas, é visível que muitos Mbyá, como o próprio José Cirilo (2005) – Cacique geral dos
Mbyá da aldeia da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre – vem afirmar, que:

não é nada boa a vida na estrada, ali é difícil criar


os filhos, não tem terra para plantar milho, não
tem conforto nenhum, não tem nada, e a estrada

113
Ver, entre outros, GARLET (1997), VIETA (1992), FOGEL (1998) e MORDO (2000).

139
é perigosa para as crianças que não tem onde
brincar, onde estudar...114.

Então, entende-se que as áreas fixas onde possam ter “conforto” e “escola” vem sendo
almejadas.
Para quê? Quais seus objetivos no momento? Fixar-se?! Pouco provável, pois as
visitações são constantes, e mesmo as mudanças para outros tekoa acontecem
freqüentemente. É possível dizer que, como já previa Garlet em 1997, as áreas fixas seriam
um lugar seguro para viverem, para garantirem seus espaços. Quando estivessem cansados do
lugar se mudariam para outro que também já estaria garantido, de forma que não perderiam
mais terras como já acontecera no passado. Mas e a escola? O que ela tem a ver com isso? O
que ela tem a ver com o “conforto” referido por Cirilo?
O que se percebe é que essas populações estão passando por transformações culturais e
étnicas, já que a necessidade de apresentarem-se diante da sociedade nacional como um
grupo socialmente e culturalmente diferenciado está sendo uma demanda recorrente, não sem
atentar para a conjuntura atual que tem dado espaço político para esse diálogo e não está
passando desapercebido pelos Mbyá Guarani, que dentro de suas atuais perspectivas
culturais, vem buscando os benefícios deste espaço.
Muitos alunos dessas escolas têm demonstrado a vontade de saírem da aldeia para irem
trabalhar, e a escolarização se torna uma necessidade. A possibilidade de virem a se tornar
professores também é um objetivo recorrente entre os adolescentes. No entanto a
escolarização e essa procura por profissões ocidentais, que vão acabar tirando os Mbyá de
dentro das aldeias para “trabalhar fora e ganhar dinheiro”, pode ser vista com apreensão por
líderes religiosos e até por alguns pais mais receosos do contato que seus filhos venham ter
com “os brancos”.
Esse trecho da fala de Seu Valdomiro (2003), da aldeia da Estiva pode ser ilustrativo:

Eu já faz 50 e poucos anos que eu lido com remédio. Eu


sou Karaí das ervas do mato. Antigamente aí é... nós já,
(como sou, eu já tou com oitenta e três anos. Sou de
1920, né? E tou com oitenta e três anos). E naquela época
então, meio difícil ter colégio, a escola assim. Não tem
meio de pessoal fazer e nem também nós índio Guarani

114
Relato feito por José Cirilo Silveira, em 09 de abril de 2005.

140
também não tem interesse de estudar assim, e ir na escola
e botar o filho na escola – naquela época não tinha
mesmo. Mas naquele tempo de antigamente, já de 1940
pra cá, nunca tiveram colégio, a escola, não bota filho
porque não tem meio, não tem meio naquela época. Tem
colégio assim, só que é longe assim talvez vario, variado,
várias coisas que tem, onde tiver colégio então, os
Guarani... E naquela época a gente vivia muito melhor do
que agora. Eu acho bom, melhor, o tempo que nós vivia,
porque naquela época que nós vivia muito melhor porque
nós não fomo na aula, não fomo no colégio, nós
aprendemo com nossos avô e nossos pai também ensinô
nós como que a gente respeitar os outros. Não precisava
ter colégio pra nós naquela época. Então nós vivia
melhor, depois a família, a comunidade também vivia
melhor tem mais liberdade de viver que vai por onde eles
querem, que vão pescar, vão caçar, vão... então nosso
antigo, nossos, nós vivia muito melhor mais de pescá,
melá e caçá. Nossa vida, nosso pais era assim. Então
naquela época nós vivia tão bem porque não tem como
agora. Nessa época que nós temo indo, que já tem dali pra
cá, de sessenta pra cá, de setenta pra cá, já o pessoal, já
mudaram. Mudaram o jeito de viverem, o índio. Como
agora a senhora ta vendo aí, as casa. Nunca morei assim
nessa casa, em casa de madeira, de tábua. Sempre
moremo nessa casa aí [apontou mostrando a Opÿ que é
feita de barro e pau a pique] ainda que nós temo... a casa
do índio, moremo nossa casa de barro. Naquela época,
então, vivia... e agora não, agora a gente ta morando,
numa casa, coberta, tudo mais... Mas nós temo
acompanhado já a lei, a lei de fora. Só que nós não temo
acompanhado tudo a lei de fora. Porque se nós vamo
acompanhar tudo, nós ia perder a nossa tradição. Daí a
nossa cultura vai cair. Então, como agora tem muito os
aluno que tão aqui e tão aprendendo, sempre que vai ter
que ter um professor índio, índio Guarani, ou se é tribo de
Guarani, tem que ser sempre, tem que ter sempre o
professor índio Guarani pra ensinar é... ensinar a falar em
Guarani, escrever em Guarani, pra que ele não perde a
cultura nós, da gente, a tradição do índio. Agora se vai ter
só o branco que vai ter dando aula aí, no fim as criança
perde, perde de falar, perde de ver como é a cultura, como
é que era. Como agora, a maioria, a maior parte já temo,
já óóó... temo ocupando o que dos, as coisa que é já,
agora é o branco já. Só que nós não temo perdendo nossa
cultura, nosso idiome, ensinando nosso filho ainda isso aí.
Enquanto nós temo vivo, os véio (eu sou o mais velho da

141
turma aqui) eu sempre tou falando que não... é de ensinar
o filho falar no idiome nosso, ocupar o que é nosso ainda.
Mas muitas coisas já tão deixando.

Se pensarmos cultura de acordo com o que Sahlins (2003: 61) nos indica, talvez
possamos definir o que é uma cultura, no seu enfoque simbólico e / ou tecnológico, e então
definir um conflito entre utilitarismo e cognição, pois:
se a ordem cultural tem de ser concebida como
codificação da ação intencional e pragmática real do
homem, ou se, ao contrário, a ação humana no mundo
deve ser compreendida como mediada pelo projeto
cultural, que ordena imediatamente a experiência prática,
a prática ordinária, e o relacionamento entre as duas. A
diferença não é simples, nem será resolvida pela feliz
conclusão acadêmica de que a resposta se encontra em
algum lugar no meio das duas ou mesmo em ambas as
parte (isto é, dialeticamente). Afinal, nunca há um
verdadeiro diálogo entre o silêncio e o discurso: de um
lado, as leis e forças naturais “independentes da vontade
humana”, e de outro o sentido que os grupos de homens
conferem variavelmente a si mesmos e ao mundo.

O que podemos perceber é que o movimento em favor da escola indígena dentro das
comunidades Mbyá Guarani, tem levado a uma discussão sobre a própria cultura do grupo
dentro dele, pois essa escola tem como premissa a diferenciação cultural e étnica, em que o
próprio grupo deve orientar os métodos pedagógicos e conseqüentemente os métodos
didáticos através de sua cultura. Esta questão vem sendo debatida entre os professores
indígenas dessas comunidades e em reuniões maiores onde o grupo como um todo se
manifesta a fim de definirem o que seria essa cultura própria e como ela estaria manifesta na
escola.
Dessa forma podemos perceber que não existe um consenso sobre a cultura Mbyá, e
sim um modo de vida que se manifesta no cotidiano, e que não é igual em todas as aldeias,
mas que não é pensado como uma “cultura”. Os Mbyá ao se depararem com essa questão
acabam buscando nessas práticas diárias ações que possam ser denominadas como culturais e
assim tentam regular essas práticas para poderem ser inseridas como modelos didáticos. Em
realidade eles estão construindo essa cultura para a escola indígena.
A formação de professores aptos para lecionarem nas escolas indígenas, que deve
acatar um modelo diferenciado, respeitando a cultura da etnia em questão, e sendo as aulas

142
ministradas em língua indígena, conjuntamente com o português, deve levar em conta a
necessidade do conhecimento do ethos do grupo em questão, sendo que esses professores
devem, ou melhor deveriam, ser provenientes da própria comunidade indígena.
Há cursos de formação para esses professores – índios aqui no Rio Grande do Sul, estes
cursos são ministrados de forma descontinua por algumas universidades, como a Unijui, que
foi pioneira nos cursos de formação de professores Kaingang, UPF, UFRGS, e outras
instituições de ensino também contribuem para a formação desse quadro docente
diferenciado, sendo que no Mato Grosso já existem cursos de formação de professores índios
para várias disciplinas à nível de terceiro grau, na UNEMAT. Ressalto que durante a
Conferencia da União das Nações Indígenas, ocorrida em 2000, em Coroa Vermelha – BA,
foram solicitadas vagas nas universidades destinadas aos índios, bem como uma ampliação
da escola bilíngüe à nível de segundo grau, já que as Diretrizes para a Política Nacional de
Educação Escolar Indígena, do MEC, refere-se apenas a responsabilidade governamental à
nível de ensino fundamental.
Os Mbyá e a implantação da escola, com todo o seu aparato burocrático e técnico, vem
passando dentro dessa crise de identidades e culturas. Percebe-se que professores, pais,
alunos e anciãos, de diferentes comunidades, vivem atualmente um conflito em função da
interculturalidade e das perspectivas que essa escola vem trazendo em seu bojo. Cada uma
dessas categorias têm expectativas diferentes em função da escola e das funções sócio –
econômicas que se instituíram dentro da aldeia, ao redor dessa instituição. Como essas
comunidades vêm vivenciando dificuldades econômicas graves, e o confinamento cada vez
mais acelerado á pequenos pedaços de terra, onde a alimentação tem sido precária, a escola
aparece como uma saída para sanar problemas imediatos, onde a merenda escolar é um
atrativo bem vindo aos alunos e pais que passam a ver aí um paliativo para a fome, e os
salários dos professores que vem se mostrando como uma boa fonte de renda e de melhoria
para suas famílias.
Ao que parece, não há uma definição, um entendimento muito claro de que escola é
essa e para que vai servir no futuro. Embora os professores tenham uma postura defensiva da
escola como instituição que poderá organizar as comunidades para defender seus direitos, me
parece que ainda não sabem muito bem como fazer isso. O que se apresenta é a imediata
solução dos recursos financeiros que a escola vem proporcionando às comunidades. Recursos

143
esses, escassos, mas que num quadro de miséria, onde as famílias têm problemas com a fome
que se agrava a cada dia, a escola aparece como uma auxiliar bem vinda, já que traz a
merenda escolar que alivia a fome das crianças e alguns recursos materiais que atenuam a
vida das famílias. Os pais e alunos se encaixam nesse bojo, buscando uma saída para que
seus filhos melhorem de vida. Os anciãos têm medo, mas sucumbem às mudanças por não
encontrarem mais espaços de fuga e resistência à pressão da sociedade de entorno. As
queixas sobre a falta de terras boas para plantar, matas e água limpa são constantes em suas
falas, e a demarcação das terras, que sempre foi controversa aos Guarani, hoje é uma
demanda geral, em vista das necessidades de garantir seus espaços, já que o velho modo de
ser, ocupando os espaços de território Mbyá, alheio aos cercamentos e a “lei do branco” não
são mais possíveis.
Enfim, a escola e seus aparatos – entre eles os professores – surgem como uma saída e
ao mesmo tempo um perigo, nos dias difíceis que vivem esses povos, onde a tradição e a
modernidade se embatem e essas pessoas vivem com um pé em cada lado do abismo, sem
entender muito bem como sobreviver num mundo que definitivamente não é o seu, mas que é
real e os está engolindo.
Mas isso não é nada fácil, pois há séculos os índios são empurrados para assumirem
esse sentimento de impossibilidade diante da sociedade nacional, um sentimento de
derrocada onde percebem-se fracos e um tanto perdidos num mar de modernidades e novos
direitos adquiridos que ainda não sabem manipular.
Em uma pesquisa junto a comunidade Mbyá Guarani da Terra Indígena da Estiva, em
Viamão – RS, Ângela Hoffmann (2004:84) relata a dificuldade que teve em relação ao
entendimento de seus entrevistados quanto a algumas expressões em português, as quais não
haveria tradução em guarani, e o fato dela, pesquisadora, não falar a língua do grupo que
pesquisava e perceber o quanto é complexo a pesquisa intercultural. Essa pesquisadora é
educadora e procurava compreender o sentido da escola para aquela comunidade, trabalho
que julgo de suma importância para a discussão sobre a escolarização indígena
contemporânea.
Diante das dificuldades observadas por Hoffmann quanto ao entendimento da língua
indígena, dificuldades que qualquer um de nós enfrentaria diante da mesma situação, eu
mesma tenho essa experiência e sinto essas angustias durante a pesquisa, creio que caberia

144
comentar as discussões levantadas por Nascimento (2003: 44-45) com relação à oficialidade
da língua indígena – ou materna, conforme a legislação brasileira – não ser abrangente, já que
o direito legal, constitucional, de ter aulas ministradas na escola indígena diferenciada em
língua materna, não significa que essas línguas indígenas serão reconhecidas no país como
línguas oficiais, já que a língua oficial é somente o português.
Dessa forma, percebe-se que a língua de cada grupo será oficiada apenas dentro de seu
próprio meio, sendo necessário a aprendizagem do português por todos os indígenas, não
ocorrendo o contrário com a sociedade envolvente que não é obrigada a conhecer as línguas
indígenas dos grupos que estão em seus entorno.
A vivência que os Mbyá têm, assim como a maioria das populações indígenas da
América, com a escolarização sempre foi a do domínio da cultura branca / ocidental sobre a
cultura local / indígena, vista está como inadequada a civilidade esperada pelos padrões
europocêntricos.
O que se pode observar entre os Mbyá Guarani no Rio Grande do Sul, é que a aceitação
de escolas no interior de suas aldeias, bem como de postos de saúde e até mesmo a demanda
pela demarcação de terras próprias para eles, vem mostrando que esses grupos vêm passando
por mais um momento de transição na sua história conturbada de resistência à integração.
Eles mudam para se preservar, mudam para continuar sendo os mesmos.
Mas essas mudanças são sempre carregadas pelo dilema, onde se apresentam o discurso
da tradição, propostos pelos anciãos, que pregam a manutenção dessas tradições, do bom
modo de ser, ligados às praticas religiosas, alimentação equilibrada nos padrões do grupo e
comportamento regrado pela tradicionalidade, onde a cultura deve ser preservada no modo de
vida que siga os padrões dos antigos; e a modernidade que vem nos discursos de lideres e
professores indígenas jovens, que almejam desenvolvimento das aldeias com moldes mais
modernos, onde a manutenção cultural continuará sendo cuidada pela religião e pelos hábitos
internos, pelo reconhecimento étnico, sem no entanto impedir a entrada de utensílios e bens
de consumo duráveis, assim como alimentos que são vistos primeiramente como elementos
da cultura “branca”, e principalmente tornando-se visíveis aos seus “outros”, só que de
maneira marcada pela diferença.
Alguns jovens, ultimamente, têm estudado em escolas públicas, ou tem um contato
maior com os órgãos do Estado e circulam com maior freqüência “no meio dos brancos”,

145
portanto tem em mente os discursos sobre autonomia e economia autosustentável que
algumas instituições, tanto leigas quanto missionárias, querem desenvolver nas aldeias. Eles
almejam ganhar salários, ter dinheiro para manterem melhor suas famílias, nos atuais dias
difíceis que vivem, onde a economia de subsistência de suas comunidades aldeãs não mais
comportam suas necessidades básicas, até porque o plantio, a caça e a coleta não são mais
viáveis nas áreas em que se encontram, e as pessoas da aldeia estão necessitando cada vez
mais os recursos financeiros para comprar alimentos e roupas, bem como outros objetos que
foram sendo incorporados ao cotidiano desses grupos.
As áreas em que estão vivendo são em geral pequenas demais para desenvolver sua
economia tradicional, as matas já não existem mais, e com ela também se extinguiu a caça, os
rios já não tem peixes suficientes, ou as águas estão poluídas ou estão dentro de propriedades
privadas onde o dono – fazendeiro – já não permite a entrada e a pesca, nem a extração de
matérias primas para confeccionar o artesanato está fácil de encontrar, muitas vezes recorrem
a trocas com outras comunidades ou uma difícil negociação com proprietários de fazendas
para extrair material. Dentro dessa lógica, os Mbyá tem de se reorganizarem constantemente
para continuarem sobrevivendo e sendo eles mesmos.
Nas aldeias maiores também há muitos conflitos, e vai depender muito do tipo de
liderança que está no poder, para que esses conflitos se atenuem. Na área do Cantagalo
houve muita dificuldade para que se erguesse a casa de rezas, e enquanto ela não ficava
pronta, os Mbyá realizavam seus rituais noturnos na casa do cacique. No entanto o material
estava lá, tinha sido levado pela FUNAI, com auxilio da EMATER. A madeira estava já
apodrecendo e os Mbyá não entravam em acordo para construírem a casa.
Esse tipo de situação pode ser provocada pela falta de incentivo do grupo, pois no
Cantagalo há muitos casos de alcoolismo, e as lideranças são fracas, não há um controle dos
problemas pelo cacique, que em geral é muito novo e comandado pelo Dario e sua família115.
Os problemas internos nessa aldeia se intensificaram quando essa família, vinda de Cacique
Doble, se estabeleceu nessa área. Dario Tupã trouxe consigo a vontade de implantar uma
escola na área. Foi então que houve uma dissidência e o líder religioso Anúncio, que era
contrario a essa instituição foi embora da área, já que o grupo que apoiou Dario e Teófilo,
que era o vice – cacique na época, derrotou o grupo de Anúncio.

115
Ver anexo com referencia dos interlocutores.

146
Este último era bastante rígido com as regras morais que os Guarani deviam seguir, e
era mais duro nas punições daqueles que infringiam as “leis”. Hoje o convívio com a
população local, que mora nos arredores da aldeia é comum, e até campeonatos de futebol
acontecem dentro da área, com os vizinhos, e às vezes regado a muita cachaça.
A escola no Cantagalo trouxe muitos benefícios financeiros, embora siga sendo uma
escola precária no sentido de dar conta de um ensino abrangente. Ela funciona apenas até a 4ª
serie e segue os moldes de uma escola rural, com todos os alunos congregados numa mesma
sala de aula independente de sua série escolar.
As falas de Seu Valdomiro (83 anos), Karaí das ervas do mato e pai do cacique Juarez
da Aldeia Nhundy (área indígena da Estiva em Viamão – RS), são contundentes, quando
demonstra sua preocupação com o que a escola dentro da aldeia pode trazer da “cultura do
branco” e dissipar a “cultura do Mbyá”. A preocupação dele é compartilhada com outros
anciãos e até mesmo entre alguns pais e mães mais novos das comunidades que tem escola.
Os professores não estão tão tranqüilos com relação a essas influências, mas defendem que a
escola bilíngüe pode amenizar os males, já que é diferenciada, e seria muito pior as crianças
terem de estudar fora da aldeia onde teriam de se deslocar correndo perigo nas estradas, e
ainda estudariam somente na língua portuguesa. Sem falar na despesa que é “manter um filho
numa escola ‘de brancos’, onde tem de comprar caderno, usar roupas melhores e ainda
sofrem com o preconceito” (palavras de uma mãe de aluno da Lomba do Pinheiro).
As respostas em como lidar com as transformações que a escola provoca no “modo de
ser” do Guarani ainda estão por serem encontradas, mas o que se percebe é que essas
categorias estão em disputa, ou melhor, tentando achar saídas para uma situação que se
apresenta palpável e ao mesmo tempo obscura dentro de seu mundo, de sua cosmovisão.

147
CONCLUSÃO:

Trabalhar com identidades indígenas é sempre uma empreitada bastante complexa e


ousada, já que essas populações possuem um intrincado modo de organização de suas
sociedades onde é difícil separar os aspectos econômicos, políticos e sociais do mundo
simbólico, da religiosidade cosmológica, que em geral abrangem todas as esferas da sua
cotidianidade.
Para buscar aspectos identitários entre os Mbyá Guarani foi preciso adentrar, até onde
me foi possível, na esfera cosmológica desse grupo indígena e, também, nas interpretações
políticas que esse grupo vem fazendo das políticas públicas sobre o indigenismo no Brasil.
Por meio de suas interpretações do mundo místico e do mundo real, fazer as minhas
interpretações científicas e acadêmicas.
Fazer uma conclusão de um evento que está acontecendo torna-se difícil, no entanto é
possível chegar a algumas considerações finais, de acordo com a experiência vivenciada
nesta pesquisa.
Como disse a escola está sendo construída, não havendo um consenso entre os
indígenas que se autodefinem como Mbyá Guarani. Ela não tem um aspecto homogêneo,
mesmo nas áreas em que está em funcionamento. Não há uma só forma de expressar
gramaticalmente a língua Mbyá, assim como não há uma só forma de escrita, nem materiais
didáticos suficientes que componham recursos para ministrar as aulas nessas escolas, em
língua Mbyá e na forma adequada a sua cultura, como consta nas leis.
Eles estão se mostrando à sociedade nacional, contrariando uma postura muito mais
reservada que os caracterizava até poucos anos atrás. Essa necessidade de mostrar-se Mbyá
é fruto do entendimento que esse grupo adquiriu de que só assim poderão sobreviver

148
enquanto grupo étnico e mesmo como indivíduos, pois a necessidade que estão tendo de
preservarem seus territórios de domínio, através da demarcação legalizada pelo órgão
responsável, é fruto das mudanças e das ocupações de áreas por frentes de expansão.
Não há mais áreas devolutas, onde os Mbyá possam se instalar, não há mais como se
sustentar e a suas famílias sem a mata, sem os peixes do rio e a caça. Os Mbyá estão
vendendo há anos sua mão de obra para “os brancos”, estão vendendo artesanato e até
algum produto da roça, para sobreviverem, pois precisam de produtos alimentícios, roupas
e sapatos, ferramentas, etc, que só são adquiridos mediante compra. Precisam então do
dinheiro, estão envoltos na economia de mercado dos “brancos”, não há como fugir disso, e
então parecem assumir esta posição atualmente, buscando compreender esse mercado e
essa economia. A escola aparece como um veículo para esclarecer o mundo dos “brancos”,
coloca-los a par das regras da sociedade ocidental, mas sem transforma-los em “outros”,
pois continuam Guarani, e sempre serão Guarani.
O comportamento político demonstrado diante do Estado, mostra uma identidade
étnica marcada pela tradicionalidade, ou melhor num discurso sobre essa tradicionalidade,
pois os Mbyá têm apresentado “seu modo de ser”, como forma de visibilizarem-se diante
das demandas por direitos territoriais e em função disso apropriarem-se dos direitos legais
oferecidos aos indígenas. Esse comportamento nada tem de incomum, pois o que fazem
nada mais é do que defenderem os seus direitos a serem um grupo social presente no Estado
e dessa forma, como qualquer outro grupo social, procurar bem viver dentro desta Nação,
tendo respeitados seus direitos e cidadania.
E essas atitudes são visíveis para todas as populações indígenas, não só as do sul do
Brasil que como outras, estão em contato mais direto com a sociedade dominante.
Como em casos de grupos que foram confundidos com uma população cabocla, e que
com a eminência de um reconhecimento étnico pela sociedade a partir da Carta Magna de
1988, onde fica reconhecido os direitos culturais aos povos indígenas, tornaram a
reivindicar sua pertença étnica e a reelaborar sua cultura própria, trazendo de volta seus
ritos ancestrais e a sua língua materna buscando a auto-afirmação. E aí se vê como a
memória coletiva é resguardada, ela perdura no interior do grupo a que pertence e quando
se vê livre para ser divulgada aparece, sai do interior do grupo para ser visualizada pelos
“outros”. Já que esses grupos indígenas não são “novos” como muitas vezes foram

149
classificados (referencia aos grupos indígenas do nordeste brasileiro que são muito
confundidos com os caboclos), eles nunca deixaram de existir, apenas resguardavam-se,
mantendo seus hábitos e costumes internamente e que agora com o incentivo ao turismo e
ao comércio vêm trazendo ao público algumas danças e cantos assim como o artesanato
para ser vendido aos “brancos” (BARBOSA, 1999).
Nos dias atuais tornou-se impossível às populações indígenas, principalmente àquelas
que convivem próximas à rede urbana, evitarem a comercialização do artesanato, como
forma de obtenção de recursos financeiros, já que o antigo modo de vida foi bruscamente
afetado pela diminuição das áreas tradicionais, onde obtinham recursos alimentares e
manufatureiros, bem como da expansão urbana e da conseqüente influência nos hábitos
gerais (hoje em dia os Mbyá, por exemplo, precisam comprar roupas e calçados, bem como
utensílios domésticos).
Essas mudanças vêm crescendo cada vez mais e as gerações mais novas, embora
procurem preservar e até mesmo recuperar as tradições do grupo como forma identitária,
não negam as influências e seu interesse na sociedade de consumo em que vivemos. Em
contrapartida, as lideranças mais tradicionais abominam tais práticas e procuram, sempre
que possível, separar muito bem os elementos que fazem parte da tradição Mbyá e àquelas
que não fazem, que seriam influências dos “brancos” e responsáveis pela degeneração da
cultura e da organização dos grupos de parentela.
Em relação à venda do artesanato, vêem como necessário, mas distinguem as peças
que serão destinadas ao comércio daquelas usadas em seu cotidiano, sendo as últimas
“benzidas” pelo Karaí e produzidas de forma mais próxima dos padrões tradicionais
(MORDO, 2000).
Esses conflitos internos nas comunidades indígenas estão seguindo as transformações
históricas causadas pelo processo de fricção interétnica à que essas populações estiveram
sujeitas ao longo do período de conquista e colonização da América, e que ainda hoje se
refletem no seio da sociedade nacional.
Nessa conjuntura, hoje mais do que nunca, a antropologia brasileira deve se
aproximar da história para poder cumprir seu papel científico (ECKERT, 1994). O caso é
que a contextualização histórica é elemento chave para a análise etnográfica, sem ela a
compreensão das culturas indígenas brasileiras e americanas se torna nebulosa, assim como

150
a visão do próprio pesquisador diante da compreensão deste contexto deve estar clara e
explícita, para que não se criem “visões do paraíso” em relação ao estereótipo indígena,
mas que também não se destrua a existência real de culturas indígenas contemporâneas, que
vivem de acordo com seu modo de ser, mas que também participam ativamente das
transformações sociais.
Nesse tipo de afirmação do grupo étnico para o pesquisador percebe-se a intenção de
mostrar-se como “puros”, ou seja de legitimar a sua existência e autonomia cultural diante
do fato de serem diferentes da sociedade envolvente e de não se submeterem a ela em
nenhuma hipótese. Mas, aí está o problema: o que vê o pesquisador? E o que é revelado a
ele pela fala do indígena? É claro que houve contato, e que nas próprias manifestações
culturais estão presentes os elementos provindos desse contato, mesmo que ressignificados
dentro da cultura própria, porém o discurso indígena se contrapõe a esse contato e afirma o
distanciamento de sua cultura daquela trazida pelos colonizadores e conquistadores. Para
medir o peso do discurso e dos elementos percebidos no cotidiano, pois a cultura própria da
sociedade indígena é aquela reconhecida pelo grupo, então se esses elementos alheios a
uma sociedade guarani pré-colonial estão hoje incorporados ao cotidiano dos Mbyá e por
eles reconhecidos como parte da sua própria bagagem cultural é porque foram aceitos e
redimensionados para se tornarem cultura.
Exercício esse, difícil de ser efetuado. Estima cuidado para que no nosso discurso
acadêmico não venhamos a transformar tudo o que é dito pelo indígena em traço cultural
próprio, bem como não venhamos a cair nas armadilhas de ouvir o que queremos ouvir e
ver o que queremos ver, para assim “criarmos” o índio que queremos.
Manuela Carneiro da Cunha (1987), nos aponta que a identidade étnica muitas vezes
passa a ser reforçada a partir de infortúnios, ou seja, as diásporas de populações ou as
tentativas de aculturação ou catequização de grupos culturais distintos como as que foram
implantadas no processo de conquista do continente americano, geram um fortalecimento
da identidade étnica como forma de resistência ao elemento dominador, de forma que essa
identidade se manifesta como um ato político, gerando organizações eficientes de
resistência e conquista de espaços. Da mesma forma Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-
Fenart (1998), vêem a etnicidade como um produto da desigualdade social e do
desenvolvimento capitalista, como uma estratégia de reivindicação de recursos ou como

151
uma forma de resistência organizada ao processo de modernização. E este processo leva as
etnias a estarem sempre em transformação, criando uma dinâmica interna no grupo, que se
reorganiza continuamente a fim de manter uma unidade política e ideológica diante da
sociedade a que se contrapõem.
Porém, quando trouxemos o conceito de identidade étnica para a observação das
comunidades Mbyá Guarani, se percebe que existe, atualmente, uma identificação perante a
sociedade dominante, ressaltando a diferença entre eles e os outros e principalmente
reivindicando direitos culturais como indígenas, mas que se apresenta como forma de
reação política somente, pois no interior das aldeias a vida de cada grupo de parentela
continua mantendo sua própria organização tribal e familiar sem se preocupar com uma
identidade maior, ou com um reconhecimento étnico pela nação brasileira.
Nessa pesquisa realizada junto às escolas indígenas, pude verificar que havia entre os
Guarani uma preocupação com relação ao ensino da língua portuguesa logo nas séries
iniciais, já que as crianças acabariam aprendendo “a cultura do branco e esqueceriam a
cultura do Guarani”, por isso algumas lideranças reclamaram da implantação das escolas
nas suas áreas, achando que era melhor deixar os Guarani com seu próprio sistema
educacional. Cabe relembrar, conforme o que foi discutido no Capítulo II, que os Guarani
possuem um complexo sistema de educação social, onde as crianças são educadas dentro da
ordem do “sistema de guarani”, sendo que todos eles participam dessa educação de uma
forma ou outra, onde os Karaí tem papel fundamental nessa formação. A casa de rezas, que
é chamada de opÿ, é um elemento importante, que deve estar presente em todas as aldeias,
mesmo quando eles estão arranjados dentro das áreas dos Kaingang, ou numa beira de
estrada, deveria haver uma opÿ improvisada onde os Karaí realizassem os rituais, as rezas,
as reuniões políticas, etc.
Porém, isso não é o que percebemos. As comunidades envolvidas como estão na
miséria, fome e alcoolismo, têm deixado de construir as casas de reza conforme as
prescrições dos Karaí. Nas áreas mistas ou nos acampamentos de beira de estrada, onde os
conflitos são muito intensos, dificilmente se encontram esses locais, até porque não há
material para construí-las, as próprias moradias são precárias.
A questão mais problemática para os Mbyá Guarani é a questão da terra. Eles
necessitam para viver da sua maneira de uma terra fértil para o plantio de roças, sendo que

152
normalmente utilizam o método da coivara (embora nos dias atuais, em muitas áreas, como
o Cantagalo, por exemplo, tenham trabalhado a terra com trator pago pela FUNAI), que
tenha mata onde possam extrair matéria prima para a fabricação de seu artesanato e coletar
frutos e mel, bem como plantas medicinais, essenciais para o exercício de sua medicina.
Hoje parece que eles estão buscando uma forma alternativa para continuarem
reproduzindo seu modo de vida, os Guarani sempre foram contrários a demarcação de
terras, eles preferiam ir vivendo ao seu modo nas terras que reconheciam como tradicionais,
sem uma regularização. Pode-se entender que se consideravam descendentes desse
território, não haveria porque registrar a posse desta terra, já que em sua cosmologia, a terra
é um bem comum e “toda a terra com mato é terra do Guarani”, independente de onde ela
estiver e de quem se diga dono dela. Mas, na prática esses elementos são vagos e os
Guarani passam sendo enxotados pelos fazendeiros, que acham muito complicado ter índios
nas suas terras, já que a legislação atual prevê a regulamentação das terras indígenas que
podem ser desapropriadas por lei se a ocupação for reivindicada e aceita como
tradicional116.
Com relação as políticas públicas que são aplicadas nas área indígenas, como escola e
demarcações de reservas, por exemplo, se pode perceber que não existe uma identidade
única, interesses comuns bem estruturados como forma de organização e resistência de
grupo como um todo. O que existe é a autoidentificação como Mbyá, que é motivo de
orgulho para seus membros, indiscutivelmente, mas que internamente vivem de acordo com
as leis de parentela, pois cada área indígena dos Mbyá obedece às normas colocadas pela
liderança – ou pelas lideranças – que a compõem.
Dessa forma, é possível dizer que a escola indígena pode apresentar diferentes
objetivos para cada grupo de parentela, e ela vai aparecer como um elemento congregador
dos objetivos comuns diante de uma negociação com o Estado, mas isso não significa que
dentro das comunidades essa escola não adquira outros significados ou vise diferentes
escolhas para os Mbya.
Esses indígenas como já foi colocado ao longo desse estudo, são atores sociais
históricos e têm diferentes formas de interagirem na sociedade. Sua cultura não é estática e
nem homogênea, ela se constrói cotidianamente dentro do grupo e principalmente, dentro

116
Decreto nº 1775, de 08 de janeiro de 1996.

153
de cada comunidade, de acordo com as vivencias que esse grupo teve com seus “outros”, ao
longo de sua história.
E fazendo uso das palavras de João Pacheco de Oliveira (1999):

mostrar que uma compreensão das sociedades e culturas


indígenas não pode passar sem uma reflexão e
recuperação críticas de sua dimensão histórica.
Caminhando contra o senso comum, que sempre
focaliza os indígenas como relíquias vivas de formas
passadas de humanidade, a proposta aqui é de
considera-los como sujeitos históricos plenos. O que
significa que devem ser inseridos em eixos espaço –
temporais e relacionados a conjuntos específicos de
atores, com valores e estratégias sociais bem
determinados (OLIVEIRA, 1999: 08).

Os Mbyá fazem parte da construção histórica da região platina, e ainda hoje estão aí
construindo a história deles mesmos, do Brasil, da Argentina e do Paraguai, assim como
todos os outros grupos autóctones sobreviventes do continente americano.
É sabido que os grupos indígenas do Brasil, mesmo sofrendo a pressão do elemento
europeu para que abandonassem seus costumes e se incorporassem aos hábitos ocidentais,
continuavam a sustentar seu modo de vida117, mesmo que clandestinamente, através da
manutenção da língua, de rituais, de mitos que eram transmitidos aos descendentes e dessa
forma constituíram e ainda constituem bastiões resistentes à hegemonia cultural.
O que podemos ver neste caso, para os indígenas do Sul do país é que houve uma
forte tentativa de assimilação ao longo da história colonial, onde, muitos indivíduos se
enquadraram e hoje, embora fenotipicamente se pareçam com indígenas, não se identificam
como tal. Porém, se tomarmos a idéia de etnicidade como ato político, de resistência à
dominação, podemos perceber que os Guarani reclamam para si o reconhecimento pela
sociedade envolvente do status de “povo indígena”, independente de uma integração com o
Estado nacional, mas é perceptível que esse discurso é apenas político, e geralmente

117
“Em parte alguma, a sociedade Guarani contemporânea chegou a constituir organização de tipo estatal;
tem desenvolvimento rudimentar, na cultura da tribo, a idéia de autoridade civil e política. Segundo os
padrões tradicionais, a chefia política do grupo coincide com a liderança carismática do sacerdote ou
rezador”. (SCHADEN, 1974: 97).

154
orientado pelos órgãos de assistência pública para que assim possam recorrer aos seus
direitos como povos autóctones diante da legislação nacional.
Quando no Brasil imperava a busca por um nacionalismo hegemônico, o SPI tentava
assimilar as populações indígenas e transforma-las em nacionais os Mbyá souberam
resguardar sua cultura, os demais Guarani também mantinham os elementos mais
importantes obscuros aos olhos da fiscalização e assistência estatais. Sem se exporem,
mantendo-se alheios às mudanças nacionais, aos envolvimentos sócio - políticos, viviam
em seu mundo, buscando a sua “perfeição”, sem querer se “misturar”, mas também sem
“brigar”, porque não é da índole Mbyá enfrentar com violência à sociedade que se
contrapõem a seus interesses, sempre recorrem às leis e buscam àqueles que podem ajuda-
los (técnicos, advogados, etc.), para assim continuarem sobrevivendo aos impactos da
sociedade envolvente e mantendo seu modo de vida.
Podemos então dizer que a etnia Guarani contemporânea pode ser identificada como
uma “etnia recente”, produto de uma série de interferências sociais, que seguindo o
conceito de controle cultural, trazido por Bonfil Batalla (1986), mantém ativa uma cultura
autônoma e a capacidade de autodeterminar-se como unidade sócio - política diferenciada
da sociedade envolvente, embora as características da etnia que lhe originou, que seria o
Guarani pré-colonial, mantenham-se ativas, mescladas a elementos provenientes da fricção
interétnica que lhe deu origem, podendo dessa forma exigir seu reconhecimento com esse
passado, como sendo parte de sua cultura própria.
Buscando compreender o processo histórico pelo qual passaram as populações
indígenas do Brasil e América como um todo, se torna impossível ao etnólogo ou ao
historiador que querem adentrar nesse mundo indígena trabalharem isoladamente, como já
foi comentado acima. Mas que esse trabalho deve ser cuidadoso, pois o pesquisador deverá
saber explorar as fontes etnográficas e documentais de forma detalhada, criando a partir
delas uma rede densa de informações que irão ser analisadas e decodificadas para assim dar
origem a um texto científico. Isso requer habilidade em ambos os campos e um trabalho
conjunto entre antropólogos e historiadores que vejam a ciência não como campos isolados
e hierárquicos, mas que as vejam como complementares e de igual valor cientifico.

155
Dessa forma é possível dizer que essa identidade e essa escola são formas encontradas
pelos Mbyá Guarani, na atual conjuntura política em que se encontram no Brasil, para se
tornarem visíveis ao Estado e para barganhar seus direitos políticos junto a essa sociedade.

156
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Vol 2.

166
ANEXOS

167
DOCUMENTO DO POVO GUARANI

Nós, caciques, lideranças e comunidades indígenas, representantes do grande


povo Guarani, presente nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná,
São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Espírito Santo, reunidos na aldeia
de Massiambu, município de Palhoça, SC, entre os dias 05 a 09 de Novembro de 99,
estivemos discutindo as principais questões que afetam o nosso povo.
O problema principal apresentado, que afeta quase todas as nossas
comunidades, é a falta de terras. A maioria de nossas comunidades não tem terra
demarcada; muitas terras são pequenas que não dá para sobreviver culturalmente e
nem fisicamente. Uma outra parte de nossas comunidades vivem em terras de outros
povos, ou tem suas terras invadidas por fazendeiros e agricultores. Essa situação é
muito grave, porque para sobreviver. dignamente, nosso povo precisa de terra boa,
que sem ela nossos filhos estão padecendo muito.
Um segundo problema que discutimos foi com relação a saúde. Achamos
que o atendimento não está de acordo com as nossas necessidades, porque a doença
não tem hora pra chegar, enquanto que o médico ou a enfermeira trabalham com
horário. Muitas pessoas que prestam atendimento às nossas comunidades estão
despreparadas e não entendem o nosso jeito de ser, acham que o atendimento do
pajé é feitiçaria, não dão valor e não respeitam nosso sistema. Também enfrentamos
dificuldades de locomoção, de transporte, pra levar os doentes para os hospitais
quando precisam.
Na educação escolar também enfrentamos muitos problemas. Sabemos que a
lei garante uma educação escolar diferenciada, que é mais do que ter um professor
bilíngüe. Temos problemas também em algumas de nossas comunidades, por ser
pequenas, não tem escola, nossos filhos tem que estudar em escolas de brancos.
Enfrentamos problemas também com a agricultura e alimentação. Muitas de
nossas comunidades tem problema sério com a falta de alimentos por causa da falta
de terra pra plantar, dependem das doações de outras pessoas. Na agricultura
enfrentamos problemas com a falta de sementes, a falta de um atendimento

168
diferenciado, querem nos tratar como se fossemos famílias de agricultores brancos,
e isso nós não aceitamos.
Por isso precisamos nos organizar, para juntos encontrar as saídas. É pra isso
que fizemos essa assembléia e queremos fazer muitas outras, porque só conversando
todos juntos conseguiremos reunir forças para enfrentar os problemas.
Dessa assembléia apareceram bastante propostas que queremos apresentar a
todos:
Primeiramente queremos dizer que toda a região onde se encontra as nossas
comunidades sempre foi terra Guarani, desde muito tempo, de nossos ancestrais, de
nossos avós e queremos deixar para nossos filhos. São nossas terras tradicionais que
precisam ser demarcadas, reconhecidos nossos direitos. Não vamos aceitar a compra
de terras, porque elas já nos pertencem.
Queremos terras grandes, com rio, mato, que produza bastante alimento. Não
vamos mais concordar com a demarcação de terras pequenas,
Queremos que a Funai crie imediatamente GT para identificar as 56 terras
que estão sem providência, e que regularize as que já estão identificadas.
Queremos também que a Funai junto com os estados e comissão das
comunidades criem grupos para localizar terras boas para nosso povo, que possam
servir as nossas comunidades, porque quanto mais o tempo passa menos terras com
mato estão sobrando.
Para a saúde, propomos que a Funai desenvolva mais formação para os
agentes de saúde e também para os brancos que prestam atendimento, para que
entendam e saibam nos respeitar. Também precisamos discutir bastante com os
responsáveis todo o tipo de atendimento que é prestado e as políticas de saúde.
Para a educação, estamos conversando bastante sobre a escola. Precisamos
organizar cursos para capacitar nossos professores e criar uma escola diferenciada,
de acordo com a nossa cultura nossos costumes. Onde tem poucos alunos para a
escola é preciso discutir formas de unir com outras comunidades, evitando que
nossas crianças estudem em escolas de brancos.
Pra finalizar, também queremos dizer que conversamos bastante sobre o que
o branco está chamando de 500 anos de Brasil, que para nós é 500 anos de invasão,

169
Fazem 500 anos que nosso povo vem sofrendo e resistindo. Queremos que mude a
relação que o estado sempre nos tratou, que respeite o que está na Constituição
Federal, do reconhecimento do nosso jeito de ser e viver, porque queremos
continuar vivendo como nossos pais, nossos avós, que viveram aqui a muito mais de
500 anos. Por isso essas comemorações nos traz lembranças tristes.
Massiambu, 09 de Novembro de 1999.

Quadro da Situação Fundiária de nossas terras:

Sem Providência 56 aldeias


Em Identificação 06 aldeias
Identificada 12 aldeias
Demarcada 05 aldeias
Homologada 06 aldeias
Registrada 33 aldeias
Reservada 01 aldeia

Reservada
1%

Registrada
28%

Sem Providência
47%

Homologado 5%

Demarcada 4%

Identificada
10% Em Identif icação
5%

170
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais - NIT
Av. Bento Gonçalves, 9.500 - Prédio 43.322 - Sala 212 - Campus do Vale Bairro
Agronomia 91540-000 - Porto Alegre / RS – Brasil - E-mail: nit@ifch.ufrgs.br
Telefones: (51)3316.7167 / 3316.6636 Fax (51)3316.7306

De: Equipe Técnica do NIT


Para: Procurador Marcelo Beckhausen – Procuradoria da
República / Ministério Público Federal.
Assunto: Situação precária dos Mbyá-Guarani em Itapuã.

Porto Alegre, 05 de setembro de 2003.

Senhor Procurador

Vimos por meio deste fazer representação sobre a situação precária em que se
encontram as famílias Mbyá-Guarani assentadas junto ao Parque Estadual de Itapuã,
município de Viamão.
Tal situação foi relatada pelas liderançasTuríbio Gonçalves (82 anos) e Adolfo Verá
Silveira (86 anos), durante a III Reunião Geral dos Karaí, Caciques e Lideranças Mbyá-
Guarani sobre o Uso abusivo de Bebidas Alcoólicas e Alcoolismo, realizada entre os dias
21 e 25 de julho de 2003, na Reserva Indígena da Coxilha da Cruz, município de Barra do
Ribeiro. O encaminhamento dado neste momento foi a realização de uma reunião urgente
prevista para o dia 4 de agosto de 2003 (data já vencida) a ser repassado pelo Conselho
Estadual dos Povos Indígenas ao Ministério Público Federal, a atribuição de chamar e
coordenar a discussão junto as demais instituições envolvidas na questão: FUNASA,
FUNAI, CEPI, Emater, RS-Rural, Prefeitura Municipal de Viamão, Prefeitura Municipal
de Porto Alegre (Saúde Indígena), Administração do Parque Estadual de Itapuã/Secretaria
Estadual do Meio Ambiente, NIT/UFRGS.
Na constatação sobre o agravo da situação relatada, a equipe do NIT viu-se na
obrigação de acompanhar o assunto e obter mais dados de campo, a fim de encaminhar a
tomada de iniciativas capazes de ultrapassar os problemas enfrentados pelos referidos
índios. Ainda mais considerando tratarem-se de quatro famílias (13 pessoas) lideradas por
velhos, que são referência da tradição para todos os Mbyá-Guarani do sul do Brasil.
Embora a presença indígena recue à década de 1970 na região, há um ano estão
assentados na área atual, que compreende vinte e sete hectares ocupados por um
reflorestamento de eucaliptos. Eles foram removidos para lá por iniciativa do Governo do
Estado, que se comprometeu em criar condições mínimas de sobrevivência para os índios,
incluindo abastecimento de água. Até hoje, as quatro famílias não dispõem deste
abastecimento, necessitando suprir sua necessidade trazendo água em recipientes plásticos
por diversas vezes ao dia desde um vizinho, que cobra vinte e dois reais (R$22,00) mensais
por esse fornecimento. Os índios expressam indignação por esta situação, exigindo

171
providências imediatas no cumprimento do acordado, executando projetos já elaborados
(FUNASA, EMATER) de fontes de água no local.

O problema ali, o nosso lá é água. A água sai puxada da Corsan , como vai ser feito
aquilo? Artesiano ou não? Como é que é? Já foi projetado! Eu acho que durante que
estou lá, já por 3 vezes foi projetado aquilo, mas nunca sai. Impossível o índio todos
os meses estar comprando água. Eu estou comprando água. Pago 22 por mês pra
Corsan. Não tem água aonde ir lá pra tomar uns banhos. Aonde nós vamos tomar
um banho tem quase 20km, lá na lagoa, fora da Lagoa Negra. Lagoa Negra e Lagoa
dos Patos nem a formiga não entra. Esses tempos o Adolfo foi lá pescar, fazer uma
pescaria lá. Ai os guardas chegou lá disse: e aí?! Assustou ele já, arrancou o
revólver... – Sai ou não? Por bem ou por mal! Ah! Ele teve que sair quieto. Lá me
falta água. Tá! Nós cheguemos lá no lugar, quem fez foi o Francisco (mudança), foi
dia 10 de setembro, está quase fazendo um ano agora dia 10, mês que vem vai fazer
um ano. Nós temos um ano que eu vou paga água” (Turíbio, III Reunião dos karaí).

Afora o problema da água, a área apresenta outros problemas sérios. Os índios estão
residindo junto a uma vila de posseiros, vivenciando constantes litígios, tensões e
enfrentamentos característicos do preconceito étnicos. Diversos fatos demonstram isso. Até
agora encontra-se dentro da área um material de construção de um comerciante que
pretendia estabelecer um armazém dentro da área reconhecida aos índios. Os Guarani
tiveram que enfrentar o branco invasor, destituindo-o de seu propósito, que chegou a usar
do subterfúgio de propor uma troca da terra por uma motocicleta. De acordo com a
Coordenadora do CEPI Ivoneti Campregher,

(...) eu estive lá em Itapuã, uma tarde com eles e o S. Turíbio me mostrou o


material lá. Era um cara que estava construindo um mercadinho lá dentro da área, né S.
Turíbio? [Ele] botou aquele material que ia fazer um mercado, uma coisa dentro da área
lá. (...) Ai o S. Turíbio viu, puxou a documentação e ele [o cara] não tinha direito de
propriedade, nada. Quando o cara se deu conta que ele não tinha direito nenhum, ele até
tentou fazer uma proposta de uma moto ali para o S. Turíbio” (III Reunião dos Karaí).

A criação de galinhas dos índios é constantemente ameaçada pelo furto, já que as


casas estão localizadas junto a uma estrada municipal.
Outro problema é a inadequação do espaço (porque eles alegam que a terra é boa)
para a prática de cultivo, tão característica e importante aos Guarani, para a sua
sobrevivência física e cultural. O eucalipto está sendo retirado para a abertura de áreas para
cultivo, mas é necessário cercar as roças, já que os animais dos vizinhos invadem a aldeia e
comem os cultivares (mandioca, batata, melancia etc.). Para evitar o problema, os índios
fizeram custoso investimento no cercamento da área, trabalho perdido, já que o material foi
furtado mesmo depois de instalado. Assim, as roças continuam vulneráveis.

“E, outra coisa, eu chamei a turma do Juarez lá da Estiva, pra me ajudar esticar o
arame para cercar a nossa terrinha lá. Eles foram me ajudar um dia. Estiquemos arame.
Parece que foi 4 rolo de arame. Botamos um pedaço até aqui. Pra esticar o arame que o
pessoal foi lá, eu vendi um pouco de lenha, tirei dinheiro pra vê se comprava pra eles
comer. (...) Daí botamos a cerca. Foi 4 rolos de arame. Ai estiquemo. No outro dia, fazia

172
15 dias, quando fui lá vi: o arame está espedaçado! Tiraram tudo! A sorte que ainda
sobrou 6 rolos de arame, 7-8-9 arame está lá em casa. Eu queria fazer de novo, mas
colocar como? Já tem um mês que eu tentei colocar lá e é capaz de eles arrodear e cortar
tudo de novo. O que vocês acham?” (Turíbio, III Reunião dos Karaí).

O que ainda agrava mais a situação ora relatada, é que o mato de eucalipto onde eles
estão não dispõe dos animais silvestres tão importantes ao padrão de abastecimento
guarani, não havendo também localmente recursos de pesca. Isso os tem obrigado a
extrapolar os vinte e sete hectares, usando as matas limítrofes e a Lagoa Negra como fontes
de proteína animal. No entanto, essa prática foi violentamente cerceada pela Patrulha
Ambiental do Parque Estadual de Itapuã, que abordou ostensivamentre um dos velhos
(Adolfo) que pescava, confiscando-lhe o material de pesca (caniço e anzol) e três peixes
pegos (traíras). As armadilhas indígenas também têm sido destruídas, quando colocadas
fora da área reservada.
Não bastasse tudo isso, a administração do Parque também proíbe a presença dos
Mbyá vendendo artesanato no portão de acesso aos visitantes.
A situação criada é muito crítica, ao ponto, dos índios consideram-se espremidos “a
mesma coisa como porco no chiqueiro, não tem aonde sair, só tem uma porta” (Turíbio).
Eles estão ameaçando sair dali rapidamente, caso o abastecimento d’água não seja
resolvido e caso nada seja feito, pois estão sobrevivendo “de teimoso” (Adolfo).

“Eu vou ter que me retirar um pouquinho de certo de lá né, deixa o governo fazer
os negócios dele lá com aquela terra e me arranja outra. Isso é o meu dizer também. Mas
antes de me arrumar as terras, não posso fazer planta. Eu quero resolver, negociar terra
primeiro pra colocar essa planta. E água suficiente. E mato” (Turíbio).

Considerando a urgente necessidade de se tomerem iniciativas capazes de


superarem os inúmeros problemas referidos, foram veiculadas as seguintes alternativas na
III Reunião dos Karaí:
a) Segundo Inácio Kunkel, a Secretaria da Agricultura e Abastecimento tem duas
máquinas que poderiam ser utilizadas na perfuração do poço artesiano em Itapuã,
entretanto o combustível necessário para tanto teria que ser providenciado por
outros setores do Governo: município ou FUNAI . Por fim, o revestimento do poço
e a bomba deveriam ser providenciados também por outros setores governamentais:
ou pelo Programa RS-Rural ou pela FUNASA;
b) Inclusão de presença indígena no plano de manejo do Parque Estadual de Itapuã;
c) Ampliação da área ou assentamento em outras áreas mais propícias, já apontadas
pelos próprios índios, tanto fora (o Morro do Coco) quanto dentro do Parque, na
área que ocuparam os Mbyá Benito e Cremaco – Aparício Timóteo, entre o Morro
da Pedreira e a Praia do Araça, na década de 1970 (existindo inclusive um cemitério
indígena no local, onde está enterrado o sogro do Cremaco);

173
INFORMAÇÕES SOBRE OS PRICIPAIS INTERLOCUTORES:

José Cirilo Silveira: Cacique geral da aldeia da Lomba do Pinheiro – Porto Alegre. Ex –
professor de cultura e língua Guarani na escola da aldeia.

Sr. Adolfo Silveira (86 anos): Avô de Cirilo, Karaí (líder religioso). Mora atualmente na
aldeia de Itapuã. É proveniente de Misiones, Argentina.

Dona Angelina: Esposa de Seu Adolfo, também é proveniente de Misiones e mora em


Itapuã, com o marido e dois netos pequenos.

Santiago: Irmão de José Cirilo, também mora na aldeia da Lomba do Pinheiro, onde é
agente de saúde.

Francisco: Filho de Santiago, também mora na Lomba do Pinheiro e estuda na escola


indígena, já que é um adolescente. É artesão, faz peças em madeira. Não gosta muito de
falar em português, e quase não conversa com os pesquisadores.

Sérgio: Filho de Cirilo, ainda é um garoto de mais ou menos 11 anos, costuma acompanhar
o pai quando este vai fazer palestras em escolas ou universidades. É pouco falante da língua
portuguesa, e bastante tímido. Ele está sendo educado para atuar como intermediário entre
as sociedades “branca” e Mbyá. Estuda na escola indígena da Lomba do Pinheiro.

Seu Turíbio (82): Mora na aldeia de Itapuã com parte da família nuclear. É pai de Talsira,
esposa de Juarez que é cacique da Aldeia da Estiva, em Viamão. Exerce a função de Karaí
na Estiva, é conselheiro e muito respeitado pelos Mbyá.

Dona Laurinda: Esposa de Seu Turíbio e mãe de Talcira. É Cuña Karaí, também mora em
Itapuã, embora visite freqüentemente a Aldeia da Estiva para dar conselhos e presidir rezas
junto aos jovens, na Opÿ.

Juarez: Cacique da Aldeia da Estiva, em Viamão. Genro de Seu Turíbio e Dona Laurinda.

Talcira: Filha de Seu Turíbio e D. Laurinda, esposa de Juarez, mãe de alunos que estudam
na escola indígena da Estiva.

Seu Valdomiro (83): Pai de Juarez, casado com uma mulher Kaingang. Mora na Aldeia da
Estiva, com sua família nuclear, é Karaí das ervas do mato.

Eloir: Professor indígena na aldeia da Estiva. É filho de mãe Mbyá com um Juruá (branco).
Estuda nos cursos de formação para professores indígenas e numa escola próxima a aldeia,
faz o curso de magistério. Estudou em escola pública comum até a quinta série.

Marcos Verá Moreira: Professor indígena na escola do Cantagalo, filho de Dario Tupã, que
é Ñandeva e mãe Mbyá. Nasceu em Cacique Doble, tendo estudado em escola da FUNAI,

174
até a quinta série. Depois fez curso para professor indígena, fornecido pelo FUNAI, e atua
como professor bilíngüe. Atualmente mudou-se para Santa Catarina com sua família.

Mario Moreira: Professor indígena, fez curso de verão com o SIL, irmão de Marcos e
Silvana, filho de Dario Tupã. Foi professor na Estiva, hoje está ministrando aulas no
Cantagalo, onde mora atualmente.

Silvana Moreira: Professora indígena, ministra aulas para o EJA no Cantagalo. É casada
com Paulino, e filha de Dario Tupã. Além de dar aulas noturnas para os adultos da aldeia, é
artesã junto com o marido e os filhos, indo aos domingos para o Brique da Redenção,
vender artesanato.

Dario Tupã: Pai de Marcos, Mario e Silvana, veio de Cacique Doble com a família, por
volta de 1995 – 96 para o Cantagalo. É casado com uma mulher Mbyá, o que lhe garantiu
que os filhos fossem Mbyá. É liderança política, porém não é cacique, nem quer esse cargo.

Seu Sebastião: Mora no Cantagalo desde que a área foi ocupada pelos Mbyá, mediante a
doação pela prefeitura de Viamão. É Capitão da aldeia, e responsável por mostrar a área e
fazer o bom relacionamento com os “brancos”.

Francisco Witt: Técnico da FUNAI, cuida do Posto Indígena de Barra do Ouro, Foi
procurado pelo órgão para trabalhar junto aos Mbya´guarani, em 1985, pois falava a lingua
Mbyá e tinha um bom relacionamento com os índios desde a sua adolescência. Hoje é
muito amigo de vários líderes políticos e religiosos do grupo e está sempre envolvido em
suas questões, auxiliando-os naquilo que é possível.

Isabel: Enfermeira da FUNASA, trabalha com os Mbyá Guarani de todo o litoral do Rio
Grande do Sul, e auxilia os agentes de saúde indígena.

175
LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL - LDB

No texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a educação


para os indígenas é abordada na seção que trata do Ensino Fundamental. No artigo 32, item
IV, § 3º, podemos ler que:
O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada as
comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem.

De modo mais específico, o tema reaparece no Título VIII - Das Disposições


Gerais, precisamente nos artigos 78 e 79. Vale a pena transcrevê-los para melhor comparar
o quadro legal com as situações que se verificam de fato.
“Art. 78 - O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais e
fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino
e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas,
com os seguintes objetivos”:
I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas
memórias históricas a reafirmação de suas identidades étnicas, valorização de suas línguas
e ciências;
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações,
conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e
não-índias.”
Art. 79 - A união apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no
provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas
integrados de ensino e pesquisa.
§ 1º - Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.
§ 2º - Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de
Educação, terão os seguintes objetivos:
I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade
indígena;
II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação
escolar nas comunidades indígenas;

176
III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos
culturais correspondentes às respectivas comunidades;
VI - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado.

177
Foto 1

Entrada da aldeia de Itapuã

Foto 2

Banhado nas redondezas da aldeia de Itapuã

178
Foto 3

Dona Angelina e seu neto, aldeia de Itapuã

Foto 4

Casa do Seu Adolfo com os utensílios encostados na parede, aldeia de Itapuã

179
Foto 5

Pátio da casa do Seu Adolfo

Foto 6

Casa do Seu Turíbio, aldeia de Itapuã

180
Foto 7

Acampamento em beira de estrada, RS-040

Foto 8

Venda de artesanato em beira de estrada, RS-040

181
Plano Nacional de Educação do MEC – Relator Marchezzan

182
183
184
185
186
187
LEGISLAÇÃO BÁSICA EM VIGOR SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA

ATO DATA RESUMO OBSERVAÇÃO


Constituição Federal 05.10.1988 Define como bens de domínio da União
do Brasil (Art. 20:XI) as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios.
Idem (Art. 22:XIV) idem Define como competência exclusiva da União
legislar sobre populações indígenas.
Idem (Art. 48:V) idem Define como atribuição do Congresso
Nacional, com sanção do Presidente da
República, dispor sobre limites do território
nacional, espaço aéreo e marítimo e bens de
domínio da União.
Idem (Art. 49:XVI) idem Define como competência exclusiva do
Congresso Nacional a autorização para
exploração e aproveitamento de recursos
hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas
minerais em terras indígenas.
Idem (Art. 109:XI) idem Define como competência dos juízes federais
processar e julgar a disputa sobre os direitos
indígenas.
Idem (Art. 129:V) idem Estabelece como função institucional do
Ministério Público a defesa judicial dos
direitos e interesses das populações indígenas.
Idem (Art. 176::§1º) idem Estabelece condições para a pesquisa e a lavra
de recursos minerais e o dos potenciais de
energia hidráulica quando essas atividades se
desenvolverem em faixa de fronteira ou terras
indígenas.
Idem (Art. 210: § 2º) idem Garante o uso da língua materna no Ensino
Fundamental para as comunidades indígenas.
Idem (Art. 215: § 1º) idem Garante a proteção pelo Estado das
manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e dos outros
grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
Idem (Art. 231: § 1º § idem Reconhece aos índios sua organização social,
2º § 3º § 4º § 5º § 6º § costumes, línguas, crenças e tradições, e os
7º) direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam; determina que a
União demarque, proteja e faça respeitar todos
os bens das terras indígenas; define o que são
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;
garante aos índios o usufruto exclusivo de suas
terras, bem como define as situações e
condições de excepcionalidade deste usufruto
exclusivo.
Idem (Art. 232) idem Garante aos índios, às suas comunidades e
organizações o ingresso em juízo na defesa de
seus direitos e interesses, com a intervenção do

188
Ministério Público em todos os atos do
processo.
Ato das Disposições idem Estabelece o prazo para a conclusão da
Constitucionais demarcação das terras indígenas.
Transitórias (Art. 67)

Decreto nº 58.824 14.07.1966 Promulga a Convenção nº 107 da Organização Diário Oficial da


Internacional do Trabalho (OIT) sobre as União, de
populações indígenas e tribais. 20.07.1966
Lei nº 5.371 05.12.1967 Autoriza a instituição da Fundação Nacional do
Diário Oficial da
Índio e dá outras providências. União, de
06.12.1967
Lei nº 6.001 19.12.1973 Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Diário Oficial da
União, de
21.12.1973
Lei nº 8.080 19.09.1990 Estabelece a organização e o funcionamento Diário Oficial da
dos serviços correspondentes à saúde, lei União, 24.09.99
nº9.836, 23.09.99

Portaria 16.04.1991 Garante uma educação específica e Diário Oficial da


Interministerial nº diferenciada para as comunidades indígenas, União, de 17.04.91
559/MJ/MEC com acesso aos conhecimentos e o domínio dos
códigos da chamada sociedade nacional;
assegura o respeito aos processos próprios de
aprendizagem; garante o ensino bilíngüe nas
escolas indígenas; cria a Coordenação Nacional
de Educação Indígena, no âmbito do MEC,
para coordenar, acompanhar e avaliar as ações
do governo nesta área, bem como prevê a
criação de núcleos de educação escolar
indígena no âmbito das secretarias estaduais de
educação.
Decreto nº 564 08.06.1992 Aprova o Estatuto da Fundação Nacional do
Diário Oficial da
Índio e dá outras providências. União, de
09.06.1992
Portaria nº 542/MJ – 21.12.1993 Aprova o Regimento Interno da Fundação Diário Oficial da
GM Nacional do Índio. União, de
22.12.1993

Decreto nº 1.141 19.05.1994 Dispõe sobre as ações de proteção ambiental, Diário Oficial da
saúde e apoio às atividades produtivas para as União, de
comunidades indígenas. 20.05.1994
Decreto nº 3.799 19/04/2001 Altera o Dec. 1.141 que dispõe sobre as ações Diário Oficial da
de proteção ambiental, saúde e apoio às União, de
atividades produtivas para as comunidades
indígenas.
Decreto nº 1.479 02.05.1995 Altera os artigos 2º e 6º do Decreto nº 1.141, de Diário Oficial da
19.05.1994, que dispõe sobre as ações de União, de
proteção ambiental, saúde e apoio às atividades 03.05.1995
produtivas para as comunidades indígenas.
Decreto nº 1.775 08.01.1996 Dispõe sobre o procedimento administrativo de Diário Oficial da
demarcação das terras indígenas. União, de
09.01.1996

189
Portaria nº 14/MJ – 09.01.1996 Estabelece regras para a elaboração do relatório Diário Oficial da
GM circunstanciado de identificação e delimitação União, de 10.01.96
de terras indígenas a que se refere o § 6º do art.
2º do Decreto nº 1.775 de 08.01.1996.

Decreto nº 1.904 13.05.1996 Institui o Programa Nacional de Direitos Diário Oficial da


Humanos (PNDH), contendo diagnóstico da União, de
situação desses direitos no País e medidas para 14.05.1996 (ver
a sua defesa e promoção, com vistas na item sobre
redução de condutas e atos de violência, sociedades
intolerância e discriminação e, indígenas)
conseqüentemente, a observância dos direitos e
deveres previstos na Constituição Federal,
especialmente em seu art. 5º.
Lei nº 9.394 20.12.1996 Estabelece as diretrizes e bases da educação Diário Oficial da
nacional (Art. 78 e 79). União, 23.12.96
Lei nº 9.475 22.07.1997 Dá nova redação ao art. 33 da lei nº 9.394, que Diário Oficial da
estabelece as diretrizes e bases da Educação União, 23.07.97
Nacional (Art. 33 ).
Decreto nº 83 12.12.1997 Aprova o texto do acordo constitutivo do Diário Oficial da
Fundo para o desenvolvimento dos Povos União, 15.12.97
Indígenas da América Latina e do Caribe
(Parágrafo Único).
Lei nº 9.610 19.02.1998 Altera, atualiza e consolida a Legislação sobreDiário Oficial da
direitos autorais e dá outras providências. União, de 20.02.98
Decreto nº 26 04.02.1991 Dispõe sobre a Educação Indígena no Brasil. Diário Oficial da
União, de 5.02.99
Decreto nº 3.156 27.08.1999 Dispõe sobre as condições para a prestação de Diário Oficial da
assistência à saúde dos povos indígenas. União, 27.08.99
Decreto nº 3.108 30.06.1999 Promulga o Acordo Constitutivo do Fundo Diário Oficial da
para o desenvolvimento do Povos Indígenas da União, de 1.07.99
América Latina e do Caribe, concluído em
Madri (Parágrafo Único).
Lei nº 9.836 23.09.1999 Dispõe sobre as condições para a promoção, Diário Oficial da
proteção e recuperação da saúde indígena União, de 10,05,00
Decreto nº 3.450 09.05.2000 Aprova o Estatuto e Quadro Demonstrativo de Diário Oficial da
Cargos em comissão e das Funções União, de 10,05,00
Gratificadas da Funasa.
Decreto nº 3.203 08.10.1999 Dispõe sobre a Câmara de Relações Exteriores Diário Oficial da
e Defesa Nacional do Conselho de Governo União, de 11.10.99
(Art. 1º III).
Resolução nº 3 10.11.1999 Diretrizes Nacionais para o funcionamento das Diário Oficial da
escolas indígenas. União, de 14.12.99
Medida Provisória 23/08/2001 Dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, Diário Oficial da
2.186-16 a proteção e o acesso ao conhecimento União, de
tradicional associado.
Decreto nº 3.945 28.09.2001 Define a composição do Conselho de Gestão Diário Oficial da
do Patrimônio Genético e estabelece as normas União de 03.10.01
para seu funcionamento.
Decreto 3.382 14.03.2000 Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro
Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das
Funções Gratificadas do Ministério da Justiça,
e dá outras providências .

190
Fundação Nacional do Índio – FUNAI
Departamento de Documentação – DEDOC
Serviço de Informação Indígena - SEII

191

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