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Interagindo com Foucault – Os arranjos

disposicionais e a comunicação

Interacting with Foucault – Dispositional arrangements and


communication

Resumo
José Luiz Braga O artigo argumenta, em quatro passos, que a “filosofia do dispositivo” de Foucault pede
jbraga@unisinos.br ajustes e derivações para ser acionada como heurística na pesquisa em comunicação. O
Professor Titular no PPG em Ciências da texto expõe a construção conceitual de “dispositivo” feita por Foucault em entrevista à
Comunicação – Unisinos. revista Ornicar. Mostra o contexto constituído pelos usos da expressão nas duas últimas
décadas do século XX – nas práticas sociais e na variedade de perspectivas debatidas na
revista Hermès, em 1999. A proposta foucaultiana, assim como algumas interpretações
desta, são tensionadas, em uma perspectiva voltada para o uso heurístico e não limitada aos
problemas investigados pelo autor. Finalmente, são propostas derivações requeridas por
questões comunicacionais.
Palavras-chave: Michel Foucault, dispositivos interacionais, arranjos disposicionais,
heurística.

Abstract
The paper argues, in four steps, that Foucault’s “philosophy of the dispositif” asks for
adjustments and derivations to be triggered as heuristics in communication research. The
text exposes the conceptual construction of “dispositif” made by Foucault in an interview
to Ornicar. It shows the context constituted by the uses of the expression in the last two
decades of the twentieth century – in social practices and in a variety of perspectives
discussed in Hermes, in 1999. Foucault’s proposal as well as some interpretations of it
are questioned in a perspective focused on heuristics and not limited to the problems
investigated by the author. Finally, the article proposes derivations required for
communication issues.
Keywords: Michel Foucault, interactional dispositifs, dispositional arrangements, heuristics.

A comunicação só se torna foco enfático de situações diversas das pesquisas em que foram gestadas.
atenção quando redirecionamos o olhar das coisas Em uma lógica de epistemologia evolucionária, é isto que
prontas para os processos que as produzem. sobretudo faz avançar o conhecimento.
É o que quero fazer com o conceito de “dispositivo”
de Michel Foucault. Trata-se de aprofundar seu exercício
Introdução heurístico no desentranhamento comunicacional – o que
explica o título deste artigo. Mas para fazer isso com
Não lemos um autor apenas para compreender o que pertinência, é preciso compreender bem o que o autor
ele propõe e aplicar ou recusar suas teorias. Queremos encaminha.
fazer alguma coisa mais: derivações ajustadas ao que esta- Sabemos que a noção de dispositivo, em Foucault, foi
mos investigando, transferências para outro contexto, desenvolvida na abordagem metodológica de suas pes-
fazendo rever seu teor e seu escopo. Queremos tensionar quisas, antes sequer de ser conceitualmente elaborada.
as propostas, testando sua potencialidade adaptativa para A entrevista dada à revista do campo freudiano de Paris,

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em 1977, pouco depois da publicação de La volonté de A proposição inicial, antes de entrar na substância do
savoir, é a primeira explicação sobre o sentido teórico da conceito, apresenta os componentes possíveis de um dis-
proposta (Foucault, 1994, p. 295-329). positivo. A tática cumulativa (e não categorizadora) con-
Diante da pergunta de A. Grosrichard – “Qual é, para cretiza a heterogeneidade: “tudo” pode fazer parte de um
você, o sentido e a função metodológica desse termo: dispositivo. Nota-se que não há elementos destacados a
‘dispositivo’?” (p. 298) – Foucault oferece uma resposta priori, como se fossem mais relevantes que outros. Assim,
aparentemente simples, organizada em apenas três a heterogeneidade alcança, além da grande diversidade
características. possível, a distribuição da relevância.
A partir da base foucaultiana e revisando interpreta- A abrangência de “elementos possíveis” vai ser subli-
ções feitas por outros autores, o presente artigo tem dois nhada um passo adiante: eles podem ser “discursivos ou
objetivos correlacionados: não”. E novamente, quando Grosrichard assinala a substi-
a) Expor minha própria interpretação da proposta tuição da ênfase em epistemes ou formações discursivas,
teórico-metodológica de Foucault na entrevista nas obras anteriores de Foucault, pela abordagem de dis-
– que constitui o que chamarei de um “modelo positivos, o entrevistado responde que
heurístico”.
b) Elaborar o ponto de encontro entre a proposta e [o] dispositivo é um caso muito mais geral que a episteme.
minhas reflexões a respeito do processo comunica- [...] a episteme é especificamente discursiva, enquanto o
cional – objeto não estudado por Foucault, o que dispositivo é discursivo e não discursivo, seus elementos
nos leva a acionar o conceito com outros objetivos, são muito mais heterogêneos (Foucault, p. 300-301).
tensionando seu enfoque original.
Esses dois ângulos são desenvolvidos em quatro pas- A outra proposição vai, de modo direto e com força
sos: a exposição do conceito em Foucault; uma contextua- sintética, à substância conceitual: “o dispositivo mesmo é
lização da expressão “dispositivo”; alguns tensionamentos; o sistema de relações que se pode estabelecer entre esses
e finalmente derivações para o campo da comunicação. elementos”. Uma rede de conexões não preestabelecidas,
que pode se formar entre os elementos, é a caracterização
básica do dispositivo.
1. Expondo
O segundo passo de Foucault (a terceira ação que per-
As exposições ternárias – como na organização ado- cebemos) refere-se à natureza do dispositivo – à lógica
tada por Foucault na entrevista – estimulam um enfoque básica do sistema de relações – explicitando o que antes
excessivo nos vértices expostos. Para compreender o que era implícito:
a entrevista oferece, devemos resistir à constringência da
forma triangular. O que quero enfatizar no dispositivo é justamente a natu-
É preciso, também, não se limitar a dizer o que diz reza do vínculo que pode existir entre esses elementos
Foucault, mas sobretudo mostrar o que ele faz, como cons- heterogêneos. [...] entre esses elementos, discursivos
trução de conceito, explicitando a tarefa de cada propo- ou não, há como que um jogo, mudanças de posição,
sição e seu resultado conjunto. Ao final deste item, um modificação de funções, que podem ser, elas tam-
quadro mostra falas e ações correlacionadas. bém, muito diferentes (Foucault, p. 299 – grifamos).
Para desmontar o triângulo, noto inicialmente que os
três vértices se desdobram. No primeiro, duas proposi- O que pode (ou não) se estabelecer se caracteriza
ções em sequência imediata fazem coisas diferentes: como um tipo de jogo, um arranjo que vai se organizando
entre os componentes. Por sua própria natureza, esse jogo
O que tento demarcar sob esse nome é, primeiramente,
é sujeito a modificações – as próprias regras do jogo não
um conjunto resolutamente heterogêneo, comportando
são predefinidas nem imutáveis.
discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
Essa caracterização (tão rapidamente exposta nesse
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
ponto da entrevista que pode ser despercebida por
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
Agamben2) é, entretanto, reforçada adiante (já fora do tri-
filantrópicas, em suma: tanto o dito como o não dito, aí
estão os elementos do dispositivo.
circulação com pluralidade de falas. Em Foucault, reseau indica re-
O dispositivo, propriamente, é o sistema de relações1
lações que formam sistema – o que pode ser expresso por “sistema
que se pode estabelecer entre esses elementos (Foucault, de relações”. Na tradução em inglês da entrevista (1980) também
p. 299). encontro “the system of relations”. Obs.: Todas as traduções de re-
ferências em outras línguas são nossas.
1 No original: “[...] le dispositif, lui-même, c’est le reseau qu’on 2 Agamben passa diretamente ao “terceiro” de Foucault como seu
peut [...]”. Mas a palavra “rede”, hoje, passou a significar qualquer segundo. Depois, reconstitui a forma ternária criando seu próprio

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ângulo), a partir de uma pergunta de G. Miller. Foucault gênese não se completa nesse desencadeamento. O “ter-
tinha falado sobre os objetivos setoriais que resultaram ceiro ponto” se desdobra:
em uma posição comum entre a magistratura e os psiquia-
tras, que acabaram elaborando uma visão punitiva da lou- Eu veria dois momentos essenciais nessa gênese. Um
cura – um dispositivo para disciplinar essa questão: primeiro momento que é aquele da prevalência de um
objetivo estratégico. Em seguida, o dispositivo se consti-
G. Miller: parecem benfeitas demais, essas estratégias tui propriamente como tal (Foucault, p. 299).
[...] eu me pergunto se não é preciso, no entanto, reco-
nhecer aí um espaço em que ocorrem ... trapalhadas?3 Passamos assim da urgência que desencadeia ações
M. Foucault – Estou inteiramente de acordo. A magistra- para o objetivo estratégico, fazendo iniciar a elabora-
tura e a psiquiatria acabam por se articular, mas através ção do arranjo – canhestra, feita de tentativas – até que
de que trapalhadas, que erradas! (p. 311). este se estabeleça. Esse ângulo cobre, em sua concisão,
uma processualística da gênese dos dispositivos: urgência
Fica evidente, aí, o aspecto tentativo, de ensaio-e- explicitada – objetivo estratégico – elaboração tentativa
erro, do jogo pragmaticamente construído até funcionar do arranjo. Apesar da formulação sintética, o processo
– e, portanto, sendo sempre, bem ou mal, um arranjo. pode implicar longos períodos históricos – como o evi-
A natureza tentativa do dispositivo (talvez apenas super- denciam os exemplos tratados por Foucault durante a
ficialmente referida no segundo tópico de Foucault) fica entrevista.
assim atestada. Essa perspectiva vai se reforçar em tópicos O desdobramento seguinte retoma a dinâmica dessa
subsequentes. constituição, para mostrar que a elaboração, a rigor, não
O terceiro ponto de Foucault se desdobra mais que tem fim:
o primeiro. A proposição de abertura deste ponto é a
seguinte: [O dispositivo] é lugar de um duplo processo: de uma
parte, processo de sobredeterminação funcional, pois
Em terceiro lugar, por dispositivo entendo uma espécie cada efeito, positivo e negativo, desejado ou indesejado,
– digamos – de formação, que, em dado momento histó- entra em ressonância ou em contradição com os outros,
rico, teve por função maior responder a uma urgência. O e pede uma retomada, um reajuste, dos elementos hete-
dispositivo tem, portanto, uma função estratégica domi- rogêneos que surgem aqui ou ali. De outra parte, pro-
nante (Foucault, p. 299). cesso de perpétuo preenchimento estratégico (Foucault,
p. 299).
Dois aspectos são sublinhados na gênese do dis-
positivo: uma urgência; e uma função estratégica. O Já não se trata apenas dos processos de gênese (que
momento em que o dispositivo começa a se preparar poderiam cessar uma vez constituído o dispositivo), mas
socialmente é a constatação de um problema. Não uma de um padrão de funcionamento: “perpétuo preenchi-
questão ideal ou universal para o ser humano, atemporal mento estratégico”. As soluções trazem novos problemas,
– mas questão constatada em um momento histórico, logo, novos encaminhamentos.
concreta, singular, vivida e não apenas “pensada”. Uma O processo não implica, no entanto, uma constante
urgência, justamente. instabilidade, um desmontar continuado do que se mon-
A gênese do dispositivo se realiza como função estra- tou na véspera. Lá adiante, na entrevista, outra proposição
tégica – enfrentar o que se considera como urgência4, desgarrada do triângulo explicativo oferece uma percep-
buscar soluções e encaminhamentos pertinentes. Mas a ção fundamental para completar a conceituação do dispo-
sitivo. Diz Foucault:

terceiro com outra referência: “É algo de geral [...] porque inclui em si Pouco a pouco se forma em torno disso tudo um discurso
a episteme” (Agamben, 2005, p. 10) – que lhe servirá de base, depois,
[...]. Depois, as experiências se generalizam, graças à
para afirmar que o dispositivo é “o que na estratégia foucaultiana
ocupa o lugar dos Universais” (p. 11). Voltaremos a essa questão. interveniência de instituições, de sociedades que pro-
3 Em francês: “[...] est-ce qu’il n’y a pas tout de même une place à põem, muito explicitamente, programas... (p. 306).
faire au ...bordel?” A expressão “bordel” é popularmente usada, na
França, para expressar processos desordenados.
Este é o processo de consolidação. O arranjo pode ser
4 Foucault não define “urgência” – utiliza a palavra no sentido, in-
tuitivo, de problema a resolver. Dado o contexto do uso, inferimos considerado estabelecido quando gerou um discurso está-
tratar-se de problemas para os quais não há soluções ou encaminha- vel, que diz e justifica suas lógicas. Nesse estágio, o dispo-
mentos canônicos. É com este sentido especificado que acionamos sitivo se torna uma “verdade”. Ou mais exatamente, na
a palavra.

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perspectiva foucaultiana, torna-se o critério da distinção consistente. Trata-se da recusa dos universais. Esse ângulo
entre verdade e falsidade, entre o que pode ou não pode aparece apenas indiretamente na entrevista à Ornicar –
ser dito. mas é uma posição conhecida do autor. Paul Veyne, em
Podemos perceber aí uma distinção entre discursos. sua obra sobre Michel Foucault, cita: “Não se trata de
Por um lado, as formações discursivas já disponíveis na passar os universais pelo ralador da história, mas de fazer
sociedade, desde antes da urgência a ser estrategicamente com que a história passe pelo fio de um pensamento que
enfrentada – e que podem comparecer na descrição da recusa universais” (Foucault, cit. ap. Paul Veyne, 2011,
urgência ou alimentar as tentativas estratégicas. E agora, p. 20). Essa tomada de posição implica, no que se refere
um “discurso do dispositivo”, que, tendo se estabelecido, ao dispositivo, que não há verdades a priori que deter-
se diz (fazendo a reinterpretação daqueles discursos minem os objetivos e os arranjos no enfrentamento dos
componentes, elaborando derivações, esquecimentos, problemas. Não se trata de um relativismo ontológico.
substituições). Mas não se trata apenas de uma revisão Paul Veyne mostra que Foucault apenas recusa “verdades
de discursos antes vigentes. Uma realidade foi elaborada gerais”, “trans-históricas” (p. 23). E ainda: “É claro que os
pelo arranjo entre os discursos, as práticas concretas, as livros de história e de física, que não falam por meio de
experimentações selecionadas. É a essa construção que ideias gerais, estão cheios de verdade” (p. 25).
Foucault chama de dispositivo – mais abrangente e com- A recusa dos universais é o lugar em que o dispositivo
plexo que a noção de episteme. O discurso do disposi- encontra seu sentido epistemológico e sua possibilidade
tivo, entendo, é uma emanação deste – que se propõe, no heurística, pois desloca as ideias universais como modo
entanto, como se fosse seu fundamento. de ocorrência da realidade histórica. Em vez de observar
Nessa fase, a sociedade “esquece” as confusões e as a realidade como decorrente de verdades universais que
trapalhadas – estas são re-historicizadas na forma de erros buscam seu caminho em meio às imperfeições do mundo,
e descaminhos, superados pelos mais esclarecidos, na permite abordá-la enquanto construção laboriosa (ainda
construção desejada do caminho – como para evidenciar que canhestra, dados os limites da ação humana) de solu-
uma “verdade” que apenas aguardasse ser exposta. ções ad hoc para problemas práticos postos pela natureza
Mas as estratégias não são desenvolvidas por um e pela convivência entre os seres humanos, movidos por
estrategista previdente – Foucault trata mesmo de estra- suas dinâmicas diferenciadas – sem critérios a priori para
tégias sem sujeito (“de que não se pode mais dizer quem dirimir entre essas diferenças.
as concebeu” – p. 306). Malgrado certa resistência dos Resta apenas um ponto a ser comentado nessa pri-
entrevistadores a essa proposição, a ideia é simples, pois meira parte: a perspectiva de Agamben, antes apontada,
aparece na lógica mesmo dos arranjos: experimentações de que o dispositivo seria o último dos universais. Agam-
se multiplicam (daí as trapalhadas). Os embates e arran- ben considera como dispositivo “qualquer coisa que tenha
jos decorrentes singularizam estratégias diversificadas – e de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determi-
os sujeitos destas, é claro. Depois, por uma espécie de nar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos,
“seleção espontânea”5 entre eficácias relativas, os setores as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”
participantes vão ajustando o “melhor arranjo”, no sentido (2005, p. 13).
de obter respostas aceitáveis para as urgências considera- Na sessão de debates da conferência “Qu’est-ce
das, um pouco por acordo, um pouco por pressões, bas- qu’un dispositif?”, de Deleuze, um participante, no
tante por experimentalidade dispersa, pós-selecionada na público, reage à proposição de que Foucault recusa uni-
prática. “Estratégias sem sujeito” caracterizam o arranjo versais, afirmando nele encontrar “toda sorte de univer-
estabelecido. Trata-se de estratégias sem projeto prévio sais: dispositivos, discurso, arquivos, etc., que provam
articulador das decisões – reiterando a característica de que a ruptura com o universal não é radical”. Em res-
ensaio-e-erro do dispositivo. posta a essa proposição, o compte rendu das discussões
Há ainda um elemento adicional, na composição do informa que Deleuze
modelo foucaultiano de dispositivo. Não é propriamente
um aspecto conceitual: corresponde à perspectiva epis- sublinha que a verdadeira fronteira é entre constantes e
temológica que dá sentido ao conjunto. Não apenas variáveis. [...] Pouco importa que se empreguem termos
fundamenta a elaboração do conceito, mas é relevante gerais para pensar os dispositivos: são nomes de variáveis.
para a compreensão da proposta e para um acionamento Toda constante é suprimida. As linhas que compõem os
dispositivos afirmam variações continuadas (in Deleuze,
5 Caracterizar a seleção como “espontânea” não significa ausência 1989, p. 193).
de interesses setoriais, de opressões, conflitos e expropriações –
mas apenas que a seleção não é direcionada por um projeto racional
que lhe sirva de critério de sucesso. Vejo aqui uma analogia com a O dispositivo não é, portanto, uma essência, uma ideia
seleção natural, de Darwin, reforçando a ideia de desenvolvimentos universal. Não é o que move os processos sociais – é o
sem projeto consciente.

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resultado instável e frequentemente canhestro dos arran- arranjos. É por isso que sua proposta pode ser acionada
jos pelos quais as urgências foram ou são enfrentadas. como um modelo heurístico de largo alcance para a obser-
Estudar dispositivos corresponde a examinar esse pro- vação de objetos da realidade, enfatizando a “dimensão
cesso tentativo – descobrir as lógicas internas e históricas disposicional” das coisas.
do arranjo elaborado. O quadro a seguir apresenta uma síntese articulada de
Foucault não elabora uma ontologia – ao tratar “do nossa interpretação. As ações da segunda coluna explici-
dispositivo” (assim especificado, no singular de aparência tam o que os dizeres da primeira coluna fazem, na elabo-
ontológica), está na verdade se referindo às estratégias ração do modelo, ao afirmar o que afirmam.
que, ao enfrentar uma urgência, levaram a determinados

A Construção Conceitual
Ângulos expostos por Foucault O que Foucault faz nessa fala
... um conjunto heterogêneo [...] tanto o dito como o não dito. Indica componentes
... discursivos ou não. (heterogeneidade)

... é o sistema de relações que se pode estabelecer entre esses elementos. Define a substância
(um sistema de relações)

... entre esses elementos [...] há como que um jogo ... Esclarece a natureza
... acabam por se articular – através de que trapalhadas! (um jogo, um arranjo; tentativas;
experimentalidade)

... em dado momento histórico, responder a uma urgência. Constata a gênese ...
... uma função estratégica dominante. (urgência > função estratégica)

... um objetivo estratégico. Em seguida, o dispositivo se constitui. ... e sua processualística


(objetivo estratégico > elaboração ad hoc)

... cada efeito entra em ressonância ou em contradição ... Mostra o funcionamento


... elementos heterogêneos que surgem aqui ou ali. (efeitos não previstos + elementos surgentes
... processo de perpétuo preenchimento estratégico. > reajustamento constante)

... pouco a pouco se forma em torno disso tudo um discurso. Evidencia a estabilização
... as experiências se generalizam [...] em rede de instituições. (justificativa e constituição de uma verdade)
... já não se pode dizer quem concebeu as estratégias.

... um pensamento que recusa universais (segundo Paul Veyne, 2011). Adota perspectiva epistemológica
(o dispositivo como resultado de estratégias,
não de verdades universais)
A segunda coluna explicita a construção conceitual realizada por Foucault e expressa na entrevista.

2. Contextualizando requerimento prático por uma organização das coisas ou


das palavras, especificamente adequada a este fim.
Sverre Raffnsøe observa que Foucault constrói seu O sucesso e a diversificação da expressão decorrem da
conceito de dispositivo a partir de referências comuns em percepção de que determinadas características daqueles
áreas especializadas: “O dispositivo não é um neologismo objetos podem ser transferidas para outros objetos refe-
fortuito em Foucault, mas ao contrário a reinterpretação rindo, nestes, seu modo disposicional, seu agenciamento,
de um conceito generalizadamente aceito em francês” suas estratégias para atender a objetivos específicos:
(Raffnsøe, 2008, p. 46). modos de dispor as coisas.
No contexto militar, a palavra aparece no sentido de Nos anos 70, o termo “dispositivo”, antes acanto-
uma organização com fins estratégicos. No campo jurí- nado nas lógicas assumidas por aquelas áreas especializa-
dico, refere-se à expressão que dispõe uma decisão legal. das, recebeu, a partir de Jean-Louis Baudry e de Michel
No domínio das engenharias, trata-se da articulação de Foucault, uma oportunidade metodológica.
partes que vão compor um aparato, para obter um deter- Os dois autores acionaram o termo de modo indepen-
minado funcionamento, com seus modos de ação. O que dente. Há, porém, certa sintonia em alguns aspectos das
interessa, em todos esses dispositivos, é atender a um duas propostas – ambas fazem ampliações de abrangência,

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a partir de sentidos práticos presentes nos campos espe- Foucault para explicitar o conceito são sempre referidas a
cializados referidos. Quando Baudry trata do dispositivo exemplos práticos tirados de sua pesquisa.
“cinema”, não refere apenas aspectos técnicos, o aparato Deleuze observa que “a filosofia de Foucault se apre-
de registro ou de projeção, nem apenas a organização senta frequentemente como uma análise de ‘dispositivos’
envolvida. Observa o desenvolvimento de uma concerta- concretos” (1989, p. 185). Essa percepção de um ângulo
ção entre aparatos e ações humanas, sociais ou psicológi- filosófico faz apreender o alcance do modelo, que vai
cas, percebendo o agenciamento, com lógicas singulares, além da abordagem estrita dos dispositivos estudados por
entre a sala escura, os espectadores, o filme, o imaginário, Foucault.
o inconsciente freudiano (Baudry, 1975).
A subsequente diversidade de adoções do termo levou
em 1998 o GReMS, da Université Louvain-La-Neuve (Bél- 3. Tensionando
gica), a organizar o colóquio “Dispositivos & Mediação de
Saberes”, para debater os novos usos acadêmicos da noção A questão, agora, é refletir sobre essa possibilidade
e sua referência a práticas sociais diversificadas. Domini- de alcance para além dos dispositivos estudados por
que Wolton propôs acolher resultados em um número da Foucault, e particularmente para desentranhar caracterís-
revista Hermès (nº 25, 1999), que publicou 18 artigos ticas do fenômeno comunicacional. Para isso, é preciso
derivados das apresentações e debates. tensionar o modelo e algumas de suas interpretações cor-
Peeters e Charlier (1999, p. 15-23) mostram, no texto rentes, direcionar a atenção para seu uso como heurística
de apresentação, alguns traços principais que, ora uns, ora e assinalar a possibilidade de transferências e derivações
outros, são enfatizados nos artigos. A expressão “estraté- adequadas ao comunicacional.
gia” aparece como central – trabalho de busca de eficácia Para esse trabalho de tensionamento e transferências,
em vista de uma finalidade prática. São feitas referências vamos tratar (a) da existência de tipos diferentes de dis-
a Michel de Certeau, para quem o dispositivo dá acesso positivos; (b) de abrangências variáveis dos sistemas de
à reflexão sobre práticas sociais “mudas”, consideradas relações (micro e macro); (c) do risco de ênfase excessiva
menores, mas atuantes no espaço social – relativizando a no “dispositivo pronto”; e (d) da necessidade de ir além
ênfase disciplinar do dispositivo foucaultiano. das regras de funcionamento do dispositivo, chamando a
Aparece aí a diversidade de campos de conheci- atenção para os processos inferenciais, para ajustes que
mento em que os enfoques se inscrevem, de perspectivas continuam a se exercer nos arranjos.
segundo as quais os objetos são esquadrinhados enquanto
“dispositivos”, assim como a variedade de tipos de objetos a) Diversidade de tipos de dispositivos
tratados. Encontramos artigos sobre o dispositivo psicana-
lítico; de circulação do saber; de gestão de tráfego urbano; Como vimos na referência à revista Hermès, há uma
de formação profissional; dispositivos midiáticos; sobre o grande variedade de abordagens de objetos e situações
uso de materiais de sala de aula na educação de base – sociais segundo uma visada “de dispositivo”. Podemos
entre outros. considerar que cada dispositivo é sui generis. Isso não
Alguns autores referem diretamente Foucault, mas impede, porém, que determinadas variações se reconhe-
nem todos. Apesar disso, vários aspectos do modelo fou- çam mais ou menos próximas, podendo ser tratadas como
caultiano parecem ressoar aqui e ali, postos a serviço de conjuntos e caracterizadas como tipos de dispositivos.
objetivos de conhecimento especificados. Em alguns dos Tais conjuntos se distinguem pelas urgências de
artigos, às vezes nos parece que o autor deriva suas pers- que tratam; pelos objetivos que a sociedade se dá para
pectivas diretamente dos campos especializados mais tra- enfrentá-las; pelas estratégias desenvolvidas; e certa-
dicionais, entretanto se autorizando extrapolações, dada a mente, também, pelas perspectivas de conhecimento que
difusão do termo. sejam adotadas para esquadrinhar as situações, pelo pro-
A variedade não implica nem ausência de referências blema investigativo que o pesquisador pretenda trabalhar
em comum nem a necessidade de um conceito unificador. em sua pesquisa.
Não se trata de buscar uma definição ontológica que cap- Nas pesquisas em que Michel Foucault desenvolveu
ture a essência da coisa “dispositivo”, como critério para sua abordagem, concentrava-se em uma ordem especial
decidir o que, na realidade, corresponderia ou não a uma de urgências: aquelas decorrentes do desencontro entre
tal categoria – mas sim de uma analítica das lógicas internas experiências sociais de organização abrangente e uma
de situações que se arranjam por processos pragmáticos. diversificação florescente da subjetividade – sobretudo a
O modelo foucaultiano apresenta vantagens metodológi- partir do século XVII. A estratégia que prevaleceu, para
cas e heurísticas justamente em decorrência de seu nível esse tipo de questões, caracterizou-se como sendo princi-
de elaboração pragmática, no próprio trabalho investiga- palmente disciplinar. Ao mesmo tempo, é o que interes-
tivo, como se evidencia na entrevista: as proposições de sou ao pesquisador esquadrinhar, percebendo como aí se

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constituem relações entre poderes e saberes no agencia- macrodispositivo, na medida em que a expressão remete a
mento da ordem social com as questões de subjetivação; uma invenção da sociedade (Castoriadis, 1982) que atra-
e como determinadas “verdades sociais” se relacionam vessa milênios como questão político-social mantendo sua
com decisões articuladoras dessas categorias. A questão, urgência. Esse macroarranjo vai inseminar múltiplas situa-
no caso, não é a de simplesmente pretender que a disci- ções e seus microarranjos específicos.
plina prevalece; mas sim – quando prevaleceu – como se Podemos, partindo do outro extremo, estudar
organizou. “memes” como um microdispositivo específico de um
Com alguma frequência, características específicas momento histórico definido, mas que pode ser observado
desse tipo de dispositivos – disciplinares – são tomadas, também como parte de um conjunto de dispositivos, jun-
em interpretações da proposta foucaultiana, como parte tamente com provérbios, frases feitas, chavões, slogans,
do modelo geral, fazendo supor que o dispositivo (gené- máximas – cada qual um arranjo específico de objetivos
rico) se caracterizaria antes de mais nada como uma rela- e estratégias comunicacionais em que se faz circular uma
ção de forças. O próprio Foucault parece afirmá-lo6. Mas mesma formulação que pode ser acionada em diferentes
lembramos que seu trabalho assumido na entrevista não é situações.
o de uma conceituação abstrata do dispositivo, e sim o de Observamos também situações sincrônicas que
explicar a abordagem constituída para os objetos que estu- comportam um macroarranjo complexo (um sistema
dou. Sublinhamos, então: “dispositivo” não é o nome de educacional; o estado da democracia em uma sociedade
uma classe de objetos sociais – mas sim uma percepção do nacional; o sistema jurídico de um país; a organização
modo de construção do social, para compreender diferen- normativa e econômica da mídia). Ou concentramos a
tes coisas que são aí elaboradas. É uma visada epistemoló- atenção em microssistemas de relações, que vão carac-
gica, e não uma teoria propositora de categorias fechadas. terizar experiências abordáveis por suas singularidades
Assim, é fundamental distinguir entre uma caracte- pontuais (uma aula, um curso, um partido político, um
rização abrangente do modelo proposto e aspectos que caso jurídico, um programa de televisão, um blog).
são específicos dos dispositivos estudados por Foucault. Dada a complexidade social, não cabe imaginar que
Por isso mesmo, na primeira parte deste artigo, não entrei pudéssemos isolar dispositivos como se fossem situações
na consideração dos aspectos sobre poder e saber referi- objetivamente distintas, com fronteiras demarcadoras dos
dos por Foucault durante a entrevista, e sim no presente elementos heterogêneos relacionados em um conjunto
tópico. fechado. As distinções são feitas, antes, pelo enfoque do
Isso não significa omitir questões referentes a poderes pesquisador no problema de investigação que elabora.
e saberes. As relações humanas evidentemente compor- Foucault estuda macrodispositivos que, no longo
tam tais componentes. Mas estes não podem ser tomados tempo histórico, foram elaborados, diversificadamente,
a priori, na análise de dispositivos interacionais, como eixo sobre determinados problemas sociais e humanos de
principal. Devem ser contados entre os elementos hetero- grande envergadura, conforme estes foram percebidos
gêneos na medida de sua efetiva presença na situação, nas e enfrentados em cada conjuntura singular. Todos os dis-
formas e com a ponderação efetiva que apresentem. positivos estudados por Foucault se referem a questões
pragmaticamente básicas e de longo fôlego para a socie-
b) Diversidade de abrangência dade humana: as potencialidades e tensões relacionadas a
corpo-e-sexo; os sistemas de punição do crime; a loucura
Além da diversidade de dispositivos conforme urgên- como desvio de comportamento, por contraste com uma
cias e objetivos de sociedade, podemos constatar grande normalidade psicológica culturalmente definida. Uma
variação de abrangência e complexidade. atenção especial foi dada aos modos como estes dispositi-
Quando tratamos da abrangência de dispositivos vos foram organizados para disciplinar a diversidade subje-
no tempo, percebemos questões problemáticas para tiva – essa é, também, uma questão abrangente, dadas as
a sociedade que atravessam longos períodos históri- tensões decorrentes das idiossincrasias de uma subjetivi-
cos, assim como experiências e arranjos singulares para dade criativa, mas eventualmente caotizante.
urgências pontuais. “Democracia” aparece como um É preciso reconhecer, com Foucault, a especificidade
de cada tipo de “solução” socialmente elaborada na forma
de seus dispositivos: a sequência de arranjos dispositivos
6 “O dispositivo é então sempre inscrito em um jogo de poder,
não se caracteriza como uma evolução contínua. Os pro-
mas sempre ligado também a uma ou mais demarcações de saber,
que nascem desse jogo, mas igualmente o condicionam” (Foucault, cessos sociais não são um longo caminho evolutivo, con-
1977, p. 300). Entretanto, logo depois vai dizer: “O poder, isso não tinuamente aperfeiçoado a partir dos passos anteriores.
existe. [...] o poder é na realidade um feixe mais ou menos [...] Essa impressão resultaria do fato de que determinados
coordenado de relações” (p. 302). Poderes concretos são exercidos
problemas humanos e sociais são reiterados através dos
segundo estratégias sempre diferenciadas, a elucidar em sua singula-
ridade: o poder não é uma constante, mas uma variável. múltiplos avatares que tentativamente se constroem para

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o enfrentamento dos modos concretos e variáveis pelos dos processos históricos e antropológicos específicos da
quais esses problemas se manifestam. gênese singular de cada dispositivo. Isso é importante
Os grandes problemas não são ideias gerais cons- mesmo no caso de dispositivos longamente estabilizados
tantes. A cada momento histórico, em cada cultura que – o que não significa trans-históricos – tanto para recupe-
lhes dá forma e sentido, ressurgem concretamente como rar sua história sem recair necessariamente em sua auto-
urgências singulares. Ao mesmo tempo, a recorrência per- história como para perceber, aí, o que ainda se apresenta
mite comparar estas urgências em sua diversidade. como dinâmica e como ajuste, ainda que sutil, a realidades
cambiantes, ou como cristalização estagnante.
c) A ênfase excessiva no “dispositivo pronto” Com maioria de razão, isso é relevante quando nos
encontramos em situações históricas – estimulantes
Observamos no modelo foucaultiano, malgrado o ou distópicas – em que os dispositivos mais variados se
“processo de perpétuo preenchimento estratégico”, o encontram sacudidos por novas urgências. Como é o caso
momento de estabilização – demarcado pelo discurso da midiatização contemporânea.
que explicita, justifica e se diz fundamento do dispositivo
socialmente instalado e reconhecido. d) O arranjo como centro do dispositivo
Essa instância social, que estamos chamando de “dis-
positivo pronto” por facilidade de referência (e talvez um Na sequência do item anterior, é preciso perceber,
pouco de ironia), tende a ser percebida como o principal então, que o que caracteriza um dispositivo não é simples-
objeto de interesse – no senso comum, mas também na mente um conjunto de regras que este organiza. As regras
academia. Talvez isso ocorra porque o dispositivo aparece, (expressas ou culturalmente exercidas) não conseguem
aí, em sua realidade concretizada, acessível à vivência informar completamente o arranjo desenvolvido. Lem-
social, dando a impressão de que as regras determinaram brando a expressão usada por Foucault (“há como que um
o arranjo – quando este é que as elabora. jogo”, p. 299), não seria sequer preciso referir o futebol
É necessário, então, fazer emergir, ao lado desse para constatar que um jogo não é inteiramente apanhado,
ângulo – das regras mais ou menos estabilizadas –, uma nem de longe, pelas regras a que apenas parcialmente
ênfase nos processos de elaboração de suas lógicas, nas obedece7.
tentativas de obtenção do arranjo feito, na experimenta- As regras fazem parte certamente do arranjo, mas
lidade social de que decorre o objetivo hoje atendido no também e necessariamente todos os ajustes e previsões
“dispositivo pronto”. requeridos para seu exercício: os objetivos diferenciados
Devemos observar os deslocamentos – às vezes sutis dos participantes que o exercem, os graus de incorpora-
– que vão se produzindo na exigência de preenchimento ção do sentido do jogo (Bourdieu, 2004, p. 79), as fron-
estratégico, malgrado a estabilidade obtida. É exatamente teiras deste com outros jogos socialmente imbricados, o
isso, aliás, que faz Foucault, como fica evidente nas obras enfrentamento constante com os efeitos não previstos
em que abordou dispositivos disciplinares – mostrando dos próprios lances, os elementos que incessantemente
como estes se constituíram historicamente, no encontro se agregam ou são perdidos no caminho. Regras sociais são
de urgências e de desenvolvimentos estratégicos que for- estruturalmente incompletas.
jaram o jogo. Mas, na recepção dada ao autor, notamos Aqui podemos perceber que as condições de gênese
às vezes um interesse excessivamente concentrado nos do dispositivo não são informações secundárias – encon-
“dispositivos prontos”. tram-se presentes tanto nas regras como nas estratégias
Quando isso ocorre, o modelo foucaultiano é tomado que continuam a dinamizar os dispositivos. É por isso que,
como teoria explicativa pronta e generalizada da realidade em vez de referir apenas regras do sistema de relações
– sem se dar atenção a sua força heurística. Dado que estabelecidas pelo dispositivo, prefiro tratar das “lógicas
Michel Foucault estudou dispositivos disciplinares e que do dispositivo”.
nestes observou uma confluência de lógicas disciplinado- As lógicas do sistema não são feitas apenas de regras,
ras que fizeram a sociedade limar determinados espaços formalizadas ou não. Compõem-se também de microes-
de subjetivação, simplesmente se assume que “o dispo- tratégias, de tentativas a serem geradas ad hoc, na prática
sitivo” seja um processo inexoravelmente disciplinador, social das competências a serem incorporadas, de insights,
de controle, de exercício incontrastável “do poder”, cons- de desvios menores ou maiores, de reinvenções, ainda que
tringente da subjetividade. É a isso que caracterizo como micrométricas – enfim, de tudo o necessário para ajustar
ênfase excessiva no “dispositivo pronto”. Até porque,
considerado o “perpétuo preenchimento estratégico”, não
existem dispositivos prontos senão provisoriamente. 7 Ver a relação que Bourdieu faz entre regras e estratégias (2004, p.
Quero reafirmar a necessidade de dar atenção expressa 77-95). Acrescentamos, porém, que enquanto Bourdieu trata apenas
de estratégias que tensionam regras (o que já é interessante), perce-
ao ângulo investigativo da proposta de Foucault, que trata bemos também estratégias que criam e transformam regras.

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Interagindo com Foucault – Os arranjos disposicionais e a comunicação 89

as regras e o funcionamento do dispositivo às realidades relações entre participantes, desde o início de sua elabo-
concretas variáveis em que este é acionado. ração, constitui o próprio problema que solicita estratégias
Pretendo demonstrar, no próximo item, que as lógicas tentativas.
do dispositivo são de natureza comunicacional.
b) Macro e microdispositivos de comunicação
4. Derivando No enfrentamento desse problema central para a
humanidade, que é a necessidade de reinventar reite-
Os quatro tópicos do item anterior mostram a poten- radamente modos para ação articulada, foram sendo
cialidade metodológica da abordagem para a investigação desenvolvidos agenciamentos que aparecem como macro-
empírica de diferentes situações sociais. No presente dispositivos comunicacionais. Expressam modos diversifi-
item, propomos derivações correspondentes àqueles tópi- cados de lidar com diferentes problemas de relações entre
cos – conforme o objetivo expresso no início do artigo, os humanos e destes com a natureza, modos especiais de
de redirecionar a heurística para a pesquisa em comu- interação para lidar com ângulos específicos da necessi-
nicação, a serviço do desentranhamento do fenômeno dade comunicacional: narração, informação, persuasão,
comunicacional. debates, aprendizagem, negociação, dialética, retórica, fic-
ção, fofoca, geração de opinião... O que são esses proces-
a) Dispositivos interacionais sos senão modos diversos de agenciar conexões desejáveis
ou possíveis entre seres humanos, grupos e sociedade?
Um primeiro passo é observar que, dentre todos os Não são nomes de essências nem de categorias ontologi-
dispositivos em que a sociedade se arranja, alguns se camente fechadas – são inventados em modo pragmático
concentram perceptivelmente em urgências comunicacio- para resolver problemas. Mas são estratégias abrangentes,
nais. Reconhecendo as diferenças entre seres humanos, com grande variação interna de táticas, para urgências e
e constatando que somos desprovidos de um “instinto objetivos diversificados.
equalizador” entre espécimes (de que dispõem os animais Terão sido historicamente desenvolvidos no atendi-
sociais) que viabilize diretamente nossas ações integradas, mento a necessidades mais ou menos específicas – por
estaríamos condenados ao desencontro de idiossincrasias, exemplo, organizar a caçada; contar suas peripécias; con-
levando-nos a uma incompetência adaptativa na seleção flitos entre tribos; falas da tribo ao redor da fogueira. Mais
natural. A competência comunicacional parece ser a con- tarde: os sofistas, a agonística na filosofia grega, o teatro
traprestação dessa lacuna, viabilizando a articulação de grego, a peripatética. E mais tarde, ainda, as escolas, a lite-
diferenças em modos experimentais8. ratura, as artes em geral, o jornal, a publicidade, o marke-
Trata-se, então, de dar atenção à presença de modos ting, a midiatização. Desde sempre, a política. E assim por
pelos quais se relacionam as diferenças entre os próprios diante, indefinidamente.
participantes e entre estes e outros setores da sociedade. A partir de estratégias experimentadas em situações
As urgências que solicitam esse enfoque são aquelas em variadas, através da história humana, esses agenciamentos
que a própria diversidade humana se apresenta como foram praticados, modelizados – e transferidos para outras
questão a ser enfrentada, para viabilizar uma ação articu- situações. Mantida a referência abrangente consolidada
lada. Interessa, aí, perceber que objetivos – certamente em sua denominação, vão se especificando em exercícios
complexos e raramente harmônicos – os participantes se concretos diferenciados. Pensar “informação”: na política;
dão, se cobram mutuamente, ou vão constituindo, ainda no jornalismo; na espionagem; na teoria matemática; na
que aos trancos e barrancos, para encaminhar as ques- biologia; no big data. Persuasão (com ou sem agonística):
tões postas por aquela diversidade. Em Braga et al. (2017), na academia; nos negócios; nos movimentos sociais; na
nosso grupo de pesquisa estuda lógicas internas de dife- política; na publicidade. Aprendizagem: nas mais variadas
rentes arranjos empíricos com tais características. situações, para além do ambiente escolar.
No modelo foucaultiano – nos ângulos em que o Não surpreende que alguns desses macroagencia-
assumimos válido para qualquer tipo de dispositivo – a mentos tenham se tornado o eixo de profissões da comu-
substância é o sistema de relações entre os elementos nicação. Mas estas profissões não esgotam a totalidade
constituintes do dispositivo. Em um dispositivo que se dos arranjos pontuais que se elaboram. Os arranjos estão
perceba como interacional, a construção do sistema de sempre presentes, transversalmente a outras ordens de
objetivação social, distintos ou imbricados, singularizados
em seus objetivos específicos. Há, portanto, uma grande
8 Essa hipótese não implica um direcionamento biológico da comu- diversidade de microdispositivos, que referem, em com-
nicação – mas justamente o contrário: viabiliza um processo comu- posições variadas, àqueles macroagenciamentos de ordem
nicacional menos dependente do biológico e mais diretamente ela-
borado nas práticas da organização sociocultural (ver Braga, 2015). comunicacional.

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90 José Luiz Braga

Na analítica de tais microarranjos, relacioná-los d) As lógicas do sistema de relações como processo


aos macrodispositivos, sem perder de vista sua sin- comunicacional
gularidade pontual, é uma atitude produtiva para o
desentranhamento de características do fenômeno Duas observações são ainda necessárias para comple-
comunicacional. tar essa reflexão sobre a centralidade do arranjo, na pes-
quisa em comunicação.
A primeira é que estamos inscritos em um momento
c) Arranjos disposicionais vs. “dispositivo pronto” histórico em que a midiatização generalizada da sociedade
Os espaços em que a comunicação aparece hoje como se articula com outros macrofenômenos, compondo um
questão e urgência se mostram em situação de experimen- canteiro de instabilidades. Ao lado da busca de compreen-
talidade social. É o que podemos observar nos estudos são das questões na genealogia histórica, é preciso acom-
sobre a crescente midiatização da sociedade. A simples panhar a experimentalidade social desencadeada.
atenção à institucionalidade estabelecida não nos ofere- Um só exemplo: a proliferação das fake news, viabi-
cerá uma melhor compreensão do problema – porque faz lizadas por novas tecnologias e novos arranjos sociais de
com que as questões sejam vistas como dependentes de geração e circulação de informações (que buscam, por sua
dispositivos assumidos “prontos” – instituídos. vez, responder a urgências difusamente surgidas na socie-
Considerar as variações do fenômeno comunicacional dade), parece instabilizar todos os processos – políticos,
a partir de tais padrões seria tomar a comunicação como jurídicos, informativos e culturais da sociedade. Como
epifenômeno. É nesse aspecto que uma ênfase excessiva se compreendem as estratégias a que se dá o nome de
nos “dispositivos prontos” é constringente para o estudo fake news? Quais as suas “lógicas”? Que tentativas, nego-
comunicacional. Correlacionado a essa percepção, que ciações, estratégias – seja para enfrentamento, seja para
criticamos em item anterior, tenho sentido um descon- explorar a situação – estão sendo feitas no espaço social?
forto crescente com o termo “dispositivo” – por duas Que urgências levaram a essa situação?
razões. A primeira, de ordem prática, decorre do fato de A segunda observação é epistemológica, para os estu-
que a palavra passou a designar, em nossa área, os dispo- dos da comunicação. Se os arranjos, as lógicas do jogo
sitivos técnicos. Mesmo que sejam articulados a outros (com seus objetivos, suas regras de funcionamento e suas
elementos, de ordem social, tendem a ser vistos como táticas de ajuste) são a dinâmica central do dispositivo – e
determinantes. aqui, de qualquer dispositivo social assumido na lógica do
A segunda é mais crucial: mesmo quando estamos modelo foucaultiano –, então devemos perceber a centrali-
referindo dispositivos em perspectiva foucaultiana, o subs- dade da comunicação em todo e qualquer processo social.
tantivo tem uma atração reificadora. O termo concentra a Arranjos disposicionais são, em si mesmos, exercícios prá-
atenção no dispositivo “pronto”, nas regras estabelecidas ticos da potencialidade comunicacional do ser humano.
e no discurso justificador. Os participantes de qualquer arranjo, estabelecido ou
O modelo heurístico de Foucault não se concentra no em desenvolvimento, são evidentemente diferenciados
dispositivo pronto, e sim no processo estratégico continu- entre si – e frequentemente divergentes. A comunicação
ado – a ser desvelado na pesquisa. Malgrado a “imagem é o único que temos como modo de fazer relacionar tais
de marca” que torna a expressão “dispositivos” uma refe- diferenças – seja em consenso, em equilibrações tenta-
rência direta ao pensamento de Foucault, o desvio inter- tivas ou em franco desacordo. É preciso lembrar que a
pretativo prejudica seu entendimento. Minha perspectiva política não é apenas relação de forças – mas sobretudo
é ensaiar outras expressões, que afastem a interpretação negociação entre diferenças. Os arranjos assim como as
reificadora. É por isso que adoto no título deste artigo a estratégias sociais que os elaboram, em qualquer área da
expressão “arranjos disposicionais”, dando ênfase à subs- prática ou do conhecimento, são exemplos do processo
tância do conceito e à sua natureza. Não se trata de outro comunicacional em ação.
objeto, distinto do observado por Foucault, mas sim do
ângulo mais pertinente para observá-lo.
Conclusão
A expressão sublinha apenas que nosso objeto de pes-
quisa é a singularidade dos arranjos e as estratégias que
Não propomos substituir a ênfase disciplinar dos dis-
os elaboram. O esquadrinhamento das regras é relevante
positivos foucaultianos por uma ênfase comunicacional.
porque estas compõem o arranjo obtido e não porque
Trata-se apenas de sublinhar a potencialidade heurística
sejam o fundamento das ocorrências sociais. A apreensão
do modelo, desprendido de um enfoque exclusivo nos
das estratégias é básica, porque sem estas as regras são
objetos sobre os quais seu autor os desenvolveu, para esti-
abstratas.
mular uma analítica das mais diversas situações sociais.
Uma heurística se demarca pelas perguntas que viabiliza.

Questões Transversais – Revista de Epistemologias da Comunicação Vol. 6, nº 12, julho-dezembro/2018


Interagindo com Foucault – Os arranjos disposicionais e a comunicação 91

Os participantes sociais se arranjam, nas condições Ana Lúcia; Benevides, Pedro; Klein, Eloísa; Xavier, Monalisa Pon-
de entorno, para atender aos objetivos que se deram, no tes; Dornelles Pares, André. 2017. Matrizes Interacionais – a
comunicação constrói a sociedade. Campina Grande, EDUEPB,
enfrentamento das urgências solicitadoras de ação inte- 449 p.
grada. Longe de pretender explicar essas ocorrências CASTORIADIS, Cornelius. 1982. A instituição imaginária da socie-
segundo critérios e categorias apriorísticas, o modelo per- dade. São Paulo, Paz e Terra.
mite esquadrinhar os elementos efetivamente presentes, DELEUZE, Gilles. 1989. Qu’est-ce qu’un dispositif? In: Rencontre
as experiências e as estratégias em que se elaboram as Internationale Michel Foucault philosophe. Paris 9 à 11 janvier
lógicas internas de cada arranjo disposicional. 1988. Paris, Éditions du Seuil, p. 185-195.
Considerando que tais lógicas – e seu próprio desen- FOUCAULT, Michel. 1994 [1977]. Le jeu de Michel Foucault.
Entrevista dada à revista Ornicar? In: Michel FOUCAULT, Dits
volvimento tentativo – são de natureza comunicacional,
et écrits, Tome III. Paris, Gallimard, p. 298-329.
pela interação requerida em sua elaboração, a investigação
FOUCAULT, Michel. 1980 [1977]. The confession of the flesh.
empírica que observa tais dimensões oferece uma aber- Interview. In: Colin GORDON (ed.), Power/Knowledge: selected
tura para a compreensão de características do fenômeno interviews and other writings. New York, Pantheon Books, p.
da comunicação aí ocorrente. 194-228.
Cabe sublinhar que há uma mudança de escala entre GReMS, Centre de Recherches sur l’Education aux Médias, du
a proposição de dispositivos interacionais (como um tipo Département de Communication Université catholique de Lou-
vain (Belgique). 1998. Présentation du colloque Dispositifs &
entre outros de tal sorte de arranjos) e a afirmação de Médiation des Savoirs. Disponível em: http:/www.comu.ucl.
que os processos e as lógicas de quaisquer arranjos dis- ac.be/reco/grems/agenda/dispositif/presentation.htm
posicionais, na sociedade, caracterizam-se basicamente ORNICAR? 1977. Bulletin périodique du champ freudien, 10:62-93,
como de ordem comunicacional. Na primeira, afirmamos juillet. Le jeu de Michel Foucault. Entretien avec D. Colas, A.
a presença de arranjos voltados para viabilizar interação; Grosrichard, G. Le Gaufey, J. Livi, G. Miller, J. Miller, J.-A. Mil-
ler, C. Millot, G. Wageman.
na segunda, propomos que a comunicação se encontra na
PEETERS, Hugues; CHARLIER, Philippe. 1999. Contributions à une
base de todo e qualquer arranjo disposicional.
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8018_1975_num_23_1_1348 VEYNE, Paul. 2011. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de
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pos.org.br/e-compos/article/view/1161/833 Artigo submetido em 04-07-2018
Aceito em 29-11-2018
BRAGA, José Luiz; Calazans, Regina; Rabelo, Leon; Casali, Caroline;
Machado, Michelli; Melo, Paula; Zucolo, Rosana C.; Medeiros,

Vol. 6, nº 12, julho-dezembro/2018 Questões Transversais – Revista de Epistemologias da Comunicação

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