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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Patrícia da Silva Lima Moreira

UMA ANÁLISE DO ENSAIO DE MONTAIGNE “OS CANIBAIS”

Trabalho final para a disciplina de Filosofia da


Natureza II

Niterói
2018
Em seu ensaio intitulado “Os Canibais”, Montaigne utiliza uma série de exemplos para
se questionar a cultura do novo mundo, e a cultura de seu próprio mundo. Com exemplos
comparativos ele vai construindo uma narrativa que leva o leitor a questionar a si próprio,
questionar o sistema de verdades dadas, o ceticismo Montaigniano entra no campo da moral -
“o que significa certo ou errado?”, “quais são as estruturas culturais e porquê assim elas o
são?” - é essa a premissa básica para ler e compreender o texto/análise riquíssimo de
Montaigne. É preciso deixar de lado os preconceitos, ao mesmo tempo que existe uma
necessidade de abertura no campo das possibilidades de outros universos culturais;
completamente diversos, entretanto, que possuem suas semelhanças. Montaigne não está
preocupado em formular um estatuto ontológico de cultura, algo mais metafísico que
abrangeria todos os homens. Seu papel como filósofo-antropólogo é importantíssimo para a
sua época, o Renascimento. A história que se fazia na época contribuia para um pensamento
mais científico, e portanto, mais prático. E é por essa espécie de caminho que Montaigne vai
construindo sua narrativa.

No início de seu ensaio há algo interessante a ser notado: ele fala dos bárbaros que por
sua vez não teriam nada de bárbaros (em mais um de seus exemplos); ora, quando se pensa
em bárbaro logo aparece em nossa mente o conceito de quem é cruel ou desumano.
Entretanto esta era a denominação dada pelos povos da antiguidade a qualquer um que fosse
estrangeiro. Temos aí já a contraposição do significado do “eu” e do “outro”, sempre tratando
o outro com um certo desdém, e quando acontece de haver uma identificação, é executada,
então, uma admiração pelo outro - como um espelho de si próprio (um tanto quanto
egocêntrico nesse sentido, pois não se admira puramente o outro, o foco é em si, na verdade
de si - que, por sua vez, seria confirmada no outro).

No texto há a descrição do Brasil como país infinito - a ideia de território que não se
acaba, há sempre algo novo a ser descoberto, logo, como formular uma epistemologia que
abrangeria tudo e todos? Quem são todos e o que é esse tudo? Parece difícil realizar uma
espécie de tratado que consiga abordar cada região nele. No Renascimento, com a
“descoberta” das Américas, a noção de verdade fica abalada, é um mundo completamente
diverso e diferente do europeu, mas que Montaigne vai traçando algumas características que
atuam na formação de uma identidade cultural. O homem é um objeto de estudo, ao mesmo
tempo que é aquele quem realiza o estudo: há toda uma auto-reflexão em tudo isso.
Montaigne está atentando para que antes de olhar para o outro, olhe a si próprio.

Num trecho inicial do ensaio já é apontada uma moral montaigniana: “Temo que
tenhamos olhos maiores que o ventre, e mais curiosidade do que a capacidade que temos.”
(MONTAIGNE, p. 304). É uma espécie de advertência àqueles que buscam o conhecimento -
o que buscar ou para quê buscar? A favor de quem? Será que temos imbuídos em nós um
grande poder de análise que consiga abordar o todo absoluto? O trecho citado indica uma
norma de conduta, algo como “não faça mais do que deveria, não investigue aquilo que não
há porque ser investigado”.

Montaigne faz uma descrição de como o território pode ser questionado, e nunca, de
fato, ser apreendido por completo: sempre faltará uma parte do território, algo que pode ser
descoberto ou não. E não há nada de ruim nisso, apenas é o modo como as coisas são, como a
vida é: existem seus mistérios, o conceito universal de verdade torna-se impossível, algo
como uma loucura esquizofrênica numa busca desenfreada por algo que guie tudo e todos,
numa condição natural única. Contudo, o que se encontra na vida, é justamente o contrário
disto: é a diversidade.

O informante de Montaigne é descrito como um homem simples, e é por sua


simplicidade que ele acredita em seus testemunhos. Não há o que impressionar, seria apenas
uma descrição do que seus sentidos atestaram. Porém essa é uma das grandes questões de
uma disciplina que se formaria muitos anos depois, a Antropologia. Há a possibilidade de dar
um testemunho sem alterar algo daquela realidade observada? Você como “descobridor” está
completamente passivo neste processo? A objetividade na Antropologia não é possível de
existir, qualquer descrição está banhada na própria subjetividade do sujeito que observa, ele é
passivo, mas também é ativo no processo, ele também está alterando o meio em que se insere
- assim como é alterado pelo mesmo meio. Nisto temos que a troca é um fator importante
quando se fala de cultura, e outros termos como absorção, preconceitos, e criação também se
fazem presente no discurso. Outro fator importante a ser destacado é que quando se fala em
“realidade observada” o que se tem por realidade? Poderia se construir uma metafísica que
não fosse universal, mas completamente subjetiva?
Há uma passagem no escrito de Montaigne que é interessante para a inversão dos
lugares: aquele que é o bárbaro e o selvagem, pode ser você mesmo, pode ser aquele europeu
que se sente mais evoluído. A barbaridade não existe, ela não é uma coisa em si, um conceito
metafísico onde se tem uma base de apoio sólida. A barbaridade e a selvageria é construída
socialmente, o que é considerado bom ou mau depende da cultura.
[...] acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me
contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu
costume; como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a
verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e usos do país em
que estamos. Nele sempre está a religião perfeita, a forma de governo perfeita, o uso
perfeito e cabal de todas as coisas. (MONTAIGNE, p.307)

Montaigne vai além e afirma que “deveríamos chamar de selvagens aqueles que com
nossa arte alteramos e desviamos da ordem comum” (MONTAIGNE, p. 307), pois bem
aqueles “selvagens” ameríndios assim não o seriam, quem está apto a conceber este conceito
é o próprio europeu. É como se a cultura europeia estivesse corrompida, ela mesma não teria
qualidades que seriam virtuosas, e sim coisas sobre as quais deveria se envergonhar. Porém,
na época, os relatos seguiam a tradição de considerar estranho e esquisito, um tanto
anti-natural aquelas culturas ameríndias.

As culturas ameríndias ainda não estavam em contato com a maior questão tida como
ponto de partida para a filosofia, o objeto filosófico desta: a razão. A separação e o dualismo
encontrado em Platão é fundamental para o desenvolvimento da sociedade renascentista
europeia, onde haviam disputas religiosas (inclusive o neoplatonismo caminha muito
próximo da Igreja Católica), e ao mesmo tempo existia a ascensão científica. Alma e corpo, o
ente supremo metafísico, a verdade inabalável acerca da vida: tudo isto entra numa espécie de
colapso quando acontece o descobrimento. Pode-se haver uma universalização desses
conceitos? Como aplicá-los em culturas tão distantes daquelas do mundo europeu? Com esses
questionamentos, fica evidente que não há como realizar este tipo de exercício; a vida tão
diversa não deixa de abrir inúmeros caminhos para serem seguidos - existem inúmeras
verdades, virtudes e naturalidades. A dureza dos conceitos e precedentes ontológicos
universais deveriam ser revistos.
A filosofia do período helênico é focada em possuir uma vida feliz. Esses povos
“descobertos” possuíam essa vida feliz e simples mesmo sem estar em contato com a filosofia
europeia. E talvez, por isso mesmo, eram felizes em sua simplicidade. É como se o discurso
banhado na razão corrompesse o homem, fazendo-o dividir o mundo em dois, o mundo das
ideias e o mundo das sombras, e nisto estaria intrincada uma ideia de mundo melhor e mundo
pior, verdadeiro e falso, bem e mal. Todas as concepções morais surgem dos dualismos. E
desse dualismo vem a desvalorização da vida em si, pois sempre há algo metafisicamente
maior e melhor.

Os canibais comem a carne de seus inimigos-prisioneiros como forma de uma elevação


máxima da vingança. Entretanto com a chegada dos estrangeiros europeus, o terror havia sido
tão grande que eles inventaram uma nova forma mais cruel de se vingar. Mas, ainda assim,
salienta Montaigne, os canibais não eram tão cruéis quanto aqueles homens brancos que
chegaram em suas terras. A corrupção do homem belo e virtuoso, seu exemplo de
barbaridade na Idade Média (conhecida também como Idade das Trevas), leva-nos a fazer
uma autocrítica do que se entende por maldade. Seriam os nativos maus? Ou seríamos nós?
Acima disso tudo, nos faz refletir sobre os conceitos de bem e mal, mais uma vez a moral
aparece neste fundo de autocrítica: “Não me aborrece que salientemos o horror barbaresco
que há em tal ação, mas sim que, julgando com acerto sobre as faltas deles, sejamos tão cegos
para as nossas.” (MONTAIGNE, p. 313)

O impulso do desejo por algo mais é tipicamente da sociedade européia, a ganância e o


olhar acima de todas as coisas. Não há aqui uma virtude, um contentamento com o pouco ou
com o mundano, e nisto está impregnada toda a barbárie: no ato de querer mais para si,
deve-se retirar algo de outrem, logo fica estabelecida uma forma de hierarquia: mais evoluído
para o menos evoluído; aquele que é apto para governar e aquele que é apto para obedecer.
Muitos estatutos morais se valem de sistemas hierárquicos, e Montaigne em seu método
descritivo, nos faz atravessar caminhos nos pensamentos fazendo-nos questionar o tempo
todo o que seria o melhor, talvez, o mais virtuoso, o maior bem de todos. Entretanto é aqui
que o pensamento não pode avançar, a não ser que tente-se ao máximo extinguir de tudo
aquilo que se aprendeu, livrar-se de seus preconceitos, e estarmos abertos a conhecer as novas
culturas, tentando não fazer julgamentos (ou se, ainda assim, os fizermos, observemos em nós
mesmos também).
Há um discurso descrito por Montaigne dos prisioneiros de guerra das tribos canibais
muito interessante para se pensar a alteridade e a assimilação das relações inter-tribos, e da
aproximação destes modos de ser humanos com os europeus:
Estes músculos, diz ele, esta carne e estas veias são os vossos, pobres loucos que
sois; não reconheceis que a substância dos membros de vossos ancestrais ainda se
conserva neles: saboreai-os bem e encontrareis neles o gosto de vossa própria carne.
(MONTAIGNE, p. 317)

O argumento audacioso do prisioneiro para com o seu algoz, não é meramente


metafórico, constitui uma cosmologia real: nos processos canibais, estariam sim comendo
seus antepassados, a antropofagia é de si mesmo. E podemos ir mais adiante, saindo um
pouco do contexto Montaigniano, pensando que o aniquilamento dos índios pelos europeus,
não foi apenas físico, como foi também cultural. Entretanto, o que observamos hoje no caso
do Brasil, por exemplo, é a miscigenação, o que deveria fazer cair todo tipo de preconceito,
umas vez que todos nós “comemos” um pouco uns dos outros. Nada em nós é inteiramente
nosso, o processo de crescimento nos faz entrar em contato com as mais diversas
informações, e com isto nos alimentamos de diversas culturas. Há ainda uma antropofagia no
mundo atual, no caso, ela é cultural. E, infelizmente, culturas que tentam se sobrepor à outras,
deslegitimizando-às, colocando-as como marginais. Como é o caso brasileiro dos territórios
indígenas e a tentativa de re-territorialização.

Montaigne termina seu ensaio com uma frase de humor um tanto irônica: “Tudo isso
não está muito mal; mas, ora, eles não usam calças!” (p. 320). A admiração pelos selvagens
se vai quando se atesta que eles não usam calças, como se esta últimas fossem o motivo que
separa os “civilizados” dos “não-civilizados”. Não usar calça significa não se tapar, ficar
inteiramente nu, e assim também é sua natureza: crua, nua, talvez o estado perfeito ainda não
corrompido do homem. Enquanto aqueles que usam as calças, se envergonham de si, se
vestem com as mais elaboradas descobertas científicas e filosóficas, se distanciam cada vez
mais daquilo que de fato importa: que é viver a própria vida.

Colocar em desconfiança aquilo que lhe é próprio é uma forma de método, do qual
Montaigne se aproveita e adequa a seu estilo literário. Aqueles dualismos se servem aqui
também: o individual e o mundo, isto não pode ser separado, o indivíduo está no mundo,
assim como o mundo forma o indivíduo. Realizar a auto-análise é também realizar uma
análise de estruturas sociais mais abrangentes. A retórica de Montaigne não é metafísica, ela
vai para o campo prático, onde devem ser observadas também as ações. O conhecimento puro
nunca será encontrado pois ele não existe, conhecer é se relacionar com algo ou alguém,
conhecimento parte de perspectiva, portanto é subjetivo. O desejo é por uma filosofia que se
questione mais, e que seja prática.

Há uma importante observação acerca dessa antropofagia cultural, é impossível ser


você mesmo sem encontrar uma ponta de outrem em si, como seres sociais estamos fadados a
isso:
O “eu”, como toda natureza, sofre influência do tempo em seu ser mesmo; e não é
possível, dada a nossa condição, nem mesmo distinguir nitidamente nossa própria
mudança e movimento do fluxo das coisas. Não poderia haver isolamento do
sujeito: pois, por sua natureza relacional, ele está aberto ao fluir da realidade desde
dentro. (AZAR FILHO, p.26, 2009).

Para concluir este trabalho, faço uma citação de Santiago Castro-Gomez (p. 83, 2005),
acerca do conceito de colonialidade do poder, que está de acordo com uma autocrítica
Montaigniana - que tardou a chegar à Antropologia, aquela perspectiva de ver o nativo como
outro de si:
As noções de “raça” e “cultura” operam aqui como um dispositivo taxonômico que
gera identidades opostas. O colonizado aparece assim como o “outro da razão”, o
que justifica um exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador. A
maldade, a barbárie e a incontinência são marcas “identitárias” do colonizado,
enquanto que a bondade, a civilização e a racionalidade são próprias do colonizador.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZAR FILHO, C. M. ​A filosofia de Montaigne - Introdução ao pensamento


renascentista​​. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 2009.

AZAR FILHO, C. M. ​O ensaio como método: Montaigne​​. In: II Colóquio sobre Ceticismo -
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ywWnoRsuthg>. Acesso em: 01 dez. 2018.

CASTRO-GOMEZ, S. Ciências Sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do


outro”. In: LANDER, Edgardo (Org.). ​A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais – Perspectivas latino-americanas​​. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 80-87.

MONTAIGNE, M. Capítulo XXXI - Dos canibais. In: ____________. ​Os ensaios - Livro I​​.
Tradução: Rosemary Costhek Abílio.. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 303-320.

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