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Niterói
2018
Em seu ensaio intitulado “Os Canibais”, Montaigne utiliza uma série de exemplos para
se questionar a cultura do novo mundo, e a cultura de seu próprio mundo. Com exemplos
comparativos ele vai construindo uma narrativa que leva o leitor a questionar a si próprio,
questionar o sistema de verdades dadas, o ceticismo Montaigniano entra no campo da moral -
“o que significa certo ou errado?”, “quais são as estruturas culturais e porquê assim elas o
são?” - é essa a premissa básica para ler e compreender o texto/análise riquíssimo de
Montaigne. É preciso deixar de lado os preconceitos, ao mesmo tempo que existe uma
necessidade de abertura no campo das possibilidades de outros universos culturais;
completamente diversos, entretanto, que possuem suas semelhanças. Montaigne não está
preocupado em formular um estatuto ontológico de cultura, algo mais metafísico que
abrangeria todos os homens. Seu papel como filósofo-antropólogo é importantíssimo para a
sua época, o Renascimento. A história que se fazia na época contribuia para um pensamento
mais científico, e portanto, mais prático. E é por essa espécie de caminho que Montaigne vai
construindo sua narrativa.
No início de seu ensaio há algo interessante a ser notado: ele fala dos bárbaros que por
sua vez não teriam nada de bárbaros (em mais um de seus exemplos); ora, quando se pensa
em bárbaro logo aparece em nossa mente o conceito de quem é cruel ou desumano.
Entretanto esta era a denominação dada pelos povos da antiguidade a qualquer um que fosse
estrangeiro. Temos aí já a contraposição do significado do “eu” e do “outro”, sempre tratando
o outro com um certo desdém, e quando acontece de haver uma identificação, é executada,
então, uma admiração pelo outro - como um espelho de si próprio (um tanto quanto
egocêntrico nesse sentido, pois não se admira puramente o outro, o foco é em si, na verdade
de si - que, por sua vez, seria confirmada no outro).
No texto há a descrição do Brasil como país infinito - a ideia de território que não se
acaba, há sempre algo novo a ser descoberto, logo, como formular uma epistemologia que
abrangeria tudo e todos? Quem são todos e o que é esse tudo? Parece difícil realizar uma
espécie de tratado que consiga abordar cada região nele. No Renascimento, com a
“descoberta” das Américas, a noção de verdade fica abalada, é um mundo completamente
diverso e diferente do europeu, mas que Montaigne vai traçando algumas características que
atuam na formação de uma identidade cultural. O homem é um objeto de estudo, ao mesmo
tempo que é aquele quem realiza o estudo: há toda uma auto-reflexão em tudo isso.
Montaigne está atentando para que antes de olhar para o outro, olhe a si próprio.
Num trecho inicial do ensaio já é apontada uma moral montaigniana: “Temo que
tenhamos olhos maiores que o ventre, e mais curiosidade do que a capacidade que temos.”
(MONTAIGNE, p. 304). É uma espécie de advertência àqueles que buscam o conhecimento -
o que buscar ou para quê buscar? A favor de quem? Será que temos imbuídos em nós um
grande poder de análise que consiga abordar o todo absoluto? O trecho citado indica uma
norma de conduta, algo como “não faça mais do que deveria, não investigue aquilo que não
há porque ser investigado”.
Montaigne faz uma descrição de como o território pode ser questionado, e nunca, de
fato, ser apreendido por completo: sempre faltará uma parte do território, algo que pode ser
descoberto ou não. E não há nada de ruim nisso, apenas é o modo como as coisas são, como a
vida é: existem seus mistérios, o conceito universal de verdade torna-se impossível, algo
como uma loucura esquizofrênica numa busca desenfreada por algo que guie tudo e todos,
numa condição natural única. Contudo, o que se encontra na vida, é justamente o contrário
disto: é a diversidade.
Montaigne vai além e afirma que “deveríamos chamar de selvagens aqueles que com
nossa arte alteramos e desviamos da ordem comum” (MONTAIGNE, p. 307), pois bem
aqueles “selvagens” ameríndios assim não o seriam, quem está apto a conceber este conceito
é o próprio europeu. É como se a cultura europeia estivesse corrompida, ela mesma não teria
qualidades que seriam virtuosas, e sim coisas sobre as quais deveria se envergonhar. Porém,
na época, os relatos seguiam a tradição de considerar estranho e esquisito, um tanto
anti-natural aquelas culturas ameríndias.
As culturas ameríndias ainda não estavam em contato com a maior questão tida como
ponto de partida para a filosofia, o objeto filosófico desta: a razão. A separação e o dualismo
encontrado em Platão é fundamental para o desenvolvimento da sociedade renascentista
europeia, onde haviam disputas religiosas (inclusive o neoplatonismo caminha muito
próximo da Igreja Católica), e ao mesmo tempo existia a ascensão científica. Alma e corpo, o
ente supremo metafísico, a verdade inabalável acerca da vida: tudo isto entra numa espécie de
colapso quando acontece o descobrimento. Pode-se haver uma universalização desses
conceitos? Como aplicá-los em culturas tão distantes daquelas do mundo europeu? Com esses
questionamentos, fica evidente que não há como realizar este tipo de exercício; a vida tão
diversa não deixa de abrir inúmeros caminhos para serem seguidos - existem inúmeras
verdades, virtudes e naturalidades. A dureza dos conceitos e precedentes ontológicos
universais deveriam ser revistos.
A filosofia do período helênico é focada em possuir uma vida feliz. Esses povos
“descobertos” possuíam essa vida feliz e simples mesmo sem estar em contato com a filosofia
europeia. E talvez, por isso mesmo, eram felizes em sua simplicidade. É como se o discurso
banhado na razão corrompesse o homem, fazendo-o dividir o mundo em dois, o mundo das
ideias e o mundo das sombras, e nisto estaria intrincada uma ideia de mundo melhor e mundo
pior, verdadeiro e falso, bem e mal. Todas as concepções morais surgem dos dualismos. E
desse dualismo vem a desvalorização da vida em si, pois sempre há algo metafisicamente
maior e melhor.
Montaigne termina seu ensaio com uma frase de humor um tanto irônica: “Tudo isso
não está muito mal; mas, ora, eles não usam calças!” (p. 320). A admiração pelos selvagens
se vai quando se atesta que eles não usam calças, como se esta últimas fossem o motivo que
separa os “civilizados” dos “não-civilizados”. Não usar calça significa não se tapar, ficar
inteiramente nu, e assim também é sua natureza: crua, nua, talvez o estado perfeito ainda não
corrompido do homem. Enquanto aqueles que usam as calças, se envergonham de si, se
vestem com as mais elaboradas descobertas científicas e filosóficas, se distanciam cada vez
mais daquilo que de fato importa: que é viver a própria vida.
Colocar em desconfiança aquilo que lhe é próprio é uma forma de método, do qual
Montaigne se aproveita e adequa a seu estilo literário. Aqueles dualismos se servem aqui
também: o individual e o mundo, isto não pode ser separado, o indivíduo está no mundo,
assim como o mundo forma o indivíduo. Realizar a auto-análise é também realizar uma
análise de estruturas sociais mais abrangentes. A retórica de Montaigne não é metafísica, ela
vai para o campo prático, onde devem ser observadas também as ações. O conhecimento puro
nunca será encontrado pois ele não existe, conhecer é se relacionar com algo ou alguém,
conhecimento parte de perspectiva, portanto é subjetivo. O desejo é por uma filosofia que se
questione mais, e que seja prática.
Para concluir este trabalho, faço uma citação de Santiago Castro-Gomez (p. 83, 2005),
acerca do conceito de colonialidade do poder, que está de acordo com uma autocrítica
Montaigniana - que tardou a chegar à Antropologia, aquela perspectiva de ver o nativo como
outro de si:
As noções de “raça” e “cultura” operam aqui como um dispositivo taxonômico que
gera identidades opostas. O colonizado aparece assim como o “outro da razão”, o
que justifica um exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador. A
maldade, a barbárie e a incontinência são marcas “identitárias” do colonizado,
enquanto que a bondade, a civilização e a racionalidade são próprias do colonizador.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZAR FILHO, C. M. O ensaio como método: Montaigne. In: II Colóquio sobre Ceticismo -
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ywWnoRsuthg>. Acesso em: 01 dez. 2018.
MONTAIGNE, M. Capítulo XXXI - Dos canibais. In: ____________. Os ensaios - Livro I.
Tradução: Rosemary Costhek Abílio.. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 303-320.