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Universidade de São Paulo

FFLCH – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Trabalho de conclusão do curso de Literatura Brasileira


IV

Docente: Prof. Dr. Alcides Celso Oliveira Villaça


Discente: Ana Luísa Manfrin Teixeira
No USP: 7613080

São Paulo
Dezembro de 2013
A partir da leitura aprofundada dos contos machadianos escolhidos, a saber
“Pai contra mãe” e “Conto de escola”, algumas características tipicamente
machadianas são claramente apercebidas. Após uma leitura superficial já pode
ser encontradas diversas críticas sociais sem que estas pareçam críticas em si.
Explico: Machado possui o dom de constatar fatos corriqueiros da vida na
sociedade brasileira como quem conta sem muita pretensão uma história
vulgar. Não toma partidos ou faz julgamento de valor perante as mais
horripilantes atrocidades que narra. Assim como a sociedade que o envolve
trata os fatos com uma ironia cruel.

Augusto Meyer define essa ironia machadiana como proveniente de uma


consciência aguda e quase dolorosa da unidade moral, constantemente
desmedida pelas quebras das percepções que o indivíduo tem do real. Diz
ainda que a ironia corta pela raiz qualquer movimento de espontaneidade
emotiva que procura ligar o indivíduo ao mundo daqueles que o cercam. Essa
percepção de Meyer sobre a ironia diz muito a respeito de como Machado a
constrói em toda a sua obra.

Em “Pai contra mãe” a presença da ironia característica machadiana é


latente. O conto se inicia com uma breve descrição de um tempo presente que
tem como ponto de narração um acontecimento descrito em um passado;
passado este onde a abolição da escravatura ainda não havia sido assinada.
Candido Neves, um homem sem habilidades profissionais aparentes, faz seu
nome sendo “caçador de escravos fugidos” profissão que viria a desaparecer
com a escravidão (do tempo em que a narrativa se inicia). Se casa e depois de
algum tempo se vê perante o desafio da paternidade. O filho nasce e o dinheiro
escasseia. A falta de recursos o leva a deixá-lo na roda dos engeitados. Ao
levar o filho na roda, encontra uma escrava fugida grávida. Diante dos
clamores da escrava pelo filho em seu ventre, Candido é frio e indiferente.
Devolve a escrava, recebe o dinheiro e graças a violência da captura a cativa
perde a criança. Diante disso, Candido justifica com um simples “nem todas as
crianças vingam”.
O tema do conto por si só já se trata da violência que permeia a sociedade
brasileira. A escravidão por sua definição é uma das muitas situações
moralmente inaceitáveis aceitas pela sociedade capitalista pelo mero motivo de
que constitui uma atividade lucrativa em termos econômicos. Ao narrar os
acontecimentos de forma branda e sutil, Machado transmite uma violência
enormemente gritante. Suas sutilezas, ironias e eufemismos criam em meio a
sua aparente fragilidade, sentidos hiperbolizados.

Ao tratar da questão sob esse viés, o autor torna possível a transposição do


tema para a atualidade. Não só presentes na escravidão moderna como em
todo e qualquer tipo de violência explícita aceita pela sociedade em prol do
lucro. A escravidão é o exemplo máximo, mas há a possibilidade da situação
de mesmo cunho na exploração infantil de trabalho por exemplo (ainda que
este não seja tão evidente).

Por sua vez “Conto de escola” narra parte de dois dias na vida de Pilar, um
estudante do que hoje chamamos de primário. Pilar não se dava muito às
atividades escolares e em determinado dia quer desistir de ir à aula, mas por
conta de se lembrar da surra que levara do pai da última vez que matara aula,
resolveu seguir para a escola. Chegando lá sentou-se ao lado do filho do
mestre que apresentava dificuldades com a lição. Como sabia que apanharia
do pai caso não soubesse a lição do dia pediu para Pilar lhe ajudar em troca de
uma moedinha. Diante disso, Pilar sede e dá aula ao colega. A figura do mestre
já havia sido apresentada de forma bastante severa e cruel. Enquanto Pilar
passa seus conhecimentos, um terceiro aluno se apercebe-se da situação e
querendo tirar vantagem de alguma forma delata-a ao mestre. O mestre,
furioso, castiga ambos e joga a moedinha pela janela. Pilar promete a si
mesmo se vingar no dia seguinte, mas neste decide seguir a fanfarra e acaba
nem se vingando, nem indo às aulas.
A temática da corrupção é claramente perceptível neste texto. Temos o
corrupto (aquele que procura obter algum ganho ou vantagem por formas
ilícitas), que se personifica na figura de Raimundo, filho do professor, o
corrompido (a pessoa que realiza o ato ilícito na maior parte das vezes em
troca de dinheiro), que é Pilar, e o delator (aquele que não ganha nada com a
situação de corrupção por isso busca uma forma de ganhar algo junto às
autoridades) que seria Curvelo.

Uma questão interessante com relação aos dois textos apresenta-se na


presença da criança em sua constituição. Em ambos a criança aparece como
motivação de todo desenvolvimento textual. Em “Pai contra mãe” a narrativa
gira em torno do filho de Candido Neves, em “Conto de escola” as personagens
principais se tratam de crianças. Machado esconde entrelinhas uma metáfora
acerca do futuro. Pilar constitui a geração que tomará o país nas mãos e tem
desde muito pequeno contato com a corrupção e com a malandragem.
Enquanto que o filho de Candido teve sua trajetória marcada de modo muito
mais contundente e significativo. Ele só viveu com seus pais às custas da vida
de um e da liberdade de outra. A metáfora configura a visualização que o autor
tinha sobre a forma de organização da sociedade moderna (que ainda vigora
nos dias atuais).

Mais uma vez Machado discorre sobre temas universais com maestria os
trazendo para a atualidade de forma indiscutível. Ao tratar da questão do modo
como o fez, retira as características temporais imprimindo em toda a situação
somente a discussão concissa e coerente do tema em si. Não há nenhuma
forma de resumir o caso de corrupção brasileira denominado “Mensalão” com
melhores colocações. O autor como sempre consegue interiorizar o intrínseco
sentimento do brasileiro dentro da sociedade que o cerca e que este forma.

Ambos os textos tratam da imoralidade e herança histórica brasileira. Desde


a formação de nosso país a noção de povo brasileiro é vaga e difusa. Nunca
conseguimos aceitar ou construir ao certo uma identidade nacional. Somos
hoje fruto de uma miscigenação brutal e muitas vezes forçada dos tempos
coloniais. O povo brasileiro nunca teve cor, raça, religião ou rosto. Mas como
toda nação estabeleceu hábitos, regras de conduta,educação e até mesmo
caráter próprios de forma um tanto quanto homogeneizada. E é o caráter desse
personagem que surge com a nação brasileira que Machado consegue muitas
vezes dar vida em seus contos e romances.

Esse personagem é confuso, sem metas ou objetivos aparentes e em muitas


vezes oportunista. O motivo principal de seu foco é a sobrevivência e a auto
preservação. O egoísmo e o egocentrismo também se fazem vigentes em meio
a personalidade desse personagem “tipicamente brasileiro”. Até o fazer bem ao
próximo pode ser denotado como questão egoísta se lido entrelinhas. É muito
raro que se faça bem ao próximo sem esperar um favor de volta ou palavras
afáveis e elogios de outrem. Se o favor não é devolvido, a boa imagem que fica
é a vitória permanente do ajudador. O Brasil deveria ser reconhecido como o
país dos favores, do “uma mão lava a outra” bem como Machado já o pintava
durante o século XIX.

A caracterização desse personagem antes personificado na figura do índio


forte e guerreiro de forma muito caricata com as obras do romantismo
brasileiro, é apresentada em ambos os contos de forma muito mais realista,
sincera e profunda. Roberto Schwartz em sua obra “Ao vencedor as batatas”,
apresenta com muita sabedoria sua ideia acerca das narrativas românticas de
José de Alencar como cheia de sutilezas europeias e, dessa forma, narrativa
que se transpõe de modo quase tragicômico e conturbado quando se encontra
em terreno brasileiro. Machado consegue desconstruir toda essa adaptação
europeia presente na literatura brasileira em uma verdadeira tragicomédia
nacional.

Tendo em mente essa questão da construção do personagem brasileiro


pode-se encontrar um vínculo profundo entre os dois textos discutidos. Pilar
possui características em comum com Candido Neves. É muito possível
visualizar um círculo envolvendo os contos – Pilar pode crescer e se
transformar em uma pessoa como Candido, bem como o filho de Candido pode
se tornar uma criança como Pilar.

Conclui-sa portanto que Machado de Assis, mais uma vez com grande
maestria estabelece nos dois contos discutidos ao longo desse pequeno
estudo, uma análise precisa e profunda acerca das contradições da alma
humana em meio a sociedade que criamos apoiada nessa intrínsecas
contradições que gera indivíduos amorais, egoístas e sem compromisso para
com o futuro.

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