You are on page 1of 4

698

FAUSTO WOLFF: O LOBO QUE NÃO SE RENDE

Antônio Carlos Pimentel Jr.

O acrobata caiu. Sem pedir desculpas, matou o cantor e chamou o garçom. Tomou

umas duas dúzias de chope regulamentares (é o peso da idade), pingando de boteco em

boteco da Lapa ao Leme, antes de seguir para o Caju, na zona portuária do Rio de Janeiro,

num 7 de Setembro, Dia da Independência (quanta ironia!). No fogo alto, o gigante teuto-

brasileiro dos pampas de quase dois metros de altura, o cronista mais fiel do Brasil da

ditadura, o revolucionário comunista, ainda que sessentão, o jornalista furioso, o poeta

talentoso, o escritor atormentado, o homem revoltado, camusiano, virou cinzas. Fausto

Wolff está morto.

Faustin von Wolffenbüttel (Santo Ângelo -RS, 8 de julho de 1940 – Rio de Janeiro,

5 de setembro de 2008) foi um jornalista e escritor brasileiro. Internado em 31 de agosto de

2008 com hemorragia digestiva, morreu por disfunção de múltiplos órgãos, no Rio de

Janeiro, em 5 de setembro de 2008. Já está assim na Wikipédia desde a noite de sexta-feira,

5, tão logo a notícia se espalhou. Como é rápida, mesmo, essa internet.

Fausto Wolff era pseudônimo. Claro. Seria difícil sobreviver no Brasil com nome

tão complicado, pobre e descendente de imigrantes alemães. Houve um dia, no passado

medieval, em que os Wollfenbütel atravessaram gerações pelos reinos da Europa. A história

da nobreza ancestral, transformada em saga no premiado romance “À mão esquerda”,

Antônio Carlos Pimentel Jr.


699

legou a Wolff um título perdido no tempo e a honra, que essa não se pode deixar escapar.

Só.

O dinheiro, razão de tantas maleficências, segundo o ideário wolffiano, ele

começou a ganhar aos 14 anos, como repórter policial - “depois da crônica policial, só a

literatura”, dizia o poeta Ruy Barata -, e nunca mais do que o necessário para se manter

vivo (bom, é certo que sobrava algum para a cachaça, espécie de marca registrada, na vida e

na obra). Exilado depois de 1968, ensinou literatura brasileira em universidades de Nápoles,

na Itália, e Copenhague, na Dinamarca. Era autodidata.

Wolff adotou o jornalismo como missão. Talvez por isso, sua passagem pela grande

imprensa escrita tenha sido tão tumultuada. Havia incompatibilidade de gênios. Parcial no

estilo - dele também se dizia que era um doce temperamental na convivência -, pulou de

redação em redação. Brigou muito. Bateu e apanhou. Na TV Educativa, como “O

advogado do diabo”, cumpriu à risca o papel do jornalista: perguntou, fustigou, provocou

entrevistados famosos e colecionou inimizades. Sobre o volume de crônicas “A Imprensa

Livre de Fausto Wolff (L&PM, 278 páginas)”, debochava: “É uma defesa da imprensa

livre, mas também quer dizer que a imprensa está livre de mim, já que eu fui demitido de

todos os jornais em que trabalhei nos últimos tempos”. Todos, exceto um: ao morrer,

Fausto Wolff publicava uma coluna no Jornal do Brasil.

Houve também O Pasquim, a trincheira que acolheu a inteligência brasileira por

mais de 30 anos. Foi de lá que Fausto Wolff mergulhou na literatura. Escreveu pelo menos

duas dezenas de livros. Escreveu como viveu: com a raiva dos insurretos, com o humor

dos sátiros, com a ternura dos apaixonados.

Antônio Carlos Pimentel Jr.


700

Homem e escritor tiveram bom trânsito no território das mulheres. As relações,

porém, jamais foram de quietude. Na vida real, acumulou casamentos e deixou duas filhas.

Na ficção, Fausto Wolff encarou as complexidades do universo feminino. Achou na

mitologia grega que tão bem conhecia as personagens adequadas para exaltar a beleza e o

desprendimento da mulher-amante e enlouqueceu as feministas em artigos de jornal ou

pelas vozes de suas personagens: “Comi algumas das mulheres mais ricas do mundo e

nunca lhes pedi um puto”, afirma Joel/Jeová/Wolff em “Olympia”.

Entender Fausto Wolff requer um pouco de tempo. Ler seus livros é bem mais

fácil. O texto escorre, as palavras caminham sem tropeções. Na resenha de sua seleção de

contos, o crítico André Seffrin avisa: “A literatura de Fausto Wolff é dura, contundente e

detesta as boas maneiras. Está repleta de palavras de revolta, de pragas, de palavrões. E de

situações equívocas. O escritor fala, sem volteios ou metáforas, de suas preocupações

pessoais e sociais que, numa escala ascendente (ou descendente, quem sabe!), vão da ânsia

pela bebida à sem-vergonhice que domina a política do país. A maneira direta de afirmar,

sem papas na língua, como se dizia nos velhos tempos, fez de Fausto Wolff uma espécie de

escritor maldito, olhado meio de lado pelos bem-pensantes, talvez aqueles que as suas

farpas possam atingir. A repulsa de tal gente é quase uma consagração. Vale a pena

conhecê-lo, para se encantar ou se chocar, amá-lo ou detestá-lo. Em suma, tomar uma

atitude radical, como é de gosto do autor. O importante é que ninguém sai de suas páginas

como entrou.”

Julio Cortázar disse, de Edgar Allan Poe, que se trata “de um dos grandes porta-

vozes do homem, pelas imagens dos pesadelos, pelas dimensões da natureza profunda do

Antônio Carlos Pimentel Jr.


701

homem e também pela busca de certos sonhos e ideais”. O mestre argentino sentencia:

“Há em nós uma presença obscura de Poe, uma latência de Poe”. O mesmo se pode

afirmar de Fausto Wolff. De deus ao diabo, do ministro corrupto devorado pelo povo

faminto aos generais da opressão, dos poderosos e dos tiranos sanguinários espalhados

pelo mundo afora, da política suja e dos políticos sujos, dos milionários esnobes aos

miseráveis das calçadas, dos colunistas hipócritas aos jornalistas lambeteiros, ninguém

passou impunemente pelas páginas de Wolff.

O lobo deixou sua marca. Em cada artigo, conto, poema ou romance que escreveu.

Nos mundos paralelos que criou, Olympia e a Terra do Antes. E, sobretudo, neste nosso

planetinha insignificante e ao mesmo tempo encantador que de suas idéias e de sua

indignação se socorre, vez por outra, para resistir à estupidez humana.

Antônio Carlos Pimentel Jr.

You might also like