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Avaliação Psicológica, 2003,1, pp.

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Inteligência: Avanços nos Modelos Teóricos e nos


Instrumentos de Medida
Intelligence: Advances in Theoretical Models and in Measurement
Instruments

Ricardo Primi
Laboratório de Avaliação Psicológica e Educacional (LabAPE)
Universidade São Francisco, Itatiba, SP.

Resumo
Este artigo procura discutir alguns avanços científicos na área da avaliação da inteligência contrapondo-os às idéias
que são divulgadas na mídia. Pretende-se abordar alguns mal entendidos que fazem a prática divergir da ciência.
Trata-se primeiro da evolução do estudo da inteligência, especialmente na abordagem psicométrica apresentando o
modelo de Cattell-Horn-Carroll (CHC). Trata-se em seguida de estudos mais recentes no sobre o construto
inteligência emocional integrando achados da psicologia e da neurociência falando sobre as relações entre a cognição
e a emoção.
Palavras chave: avaliação da inteligência, inteligência emocional, Teoria Cattell-Horn-Carroll, neurociência.

Abstract
This paper discusses some the recent scientific findings on intelligence testing and some misconceptions that are
presented by the current media. It discusses some misunderstandings that make the professional practice diverge
from science. In the first part it presents the evolution in the psychometric understanding of intelligence, particularly
the Cattell-Horn-Carroll (CHC) model of intelligence. In the second part it discusses the more recent studies on the
emotional intelligence construct integrating the findings of psychology and the neurosciences concerning the
relationship between cognition and emotion.
Key words: intelligence testing, emotional intelligence, Cattell-Horn-Carroll theory of intelligence, neuroscience.

Nos últimos anos a avaliação psicológica tem (Alves Filho, 25/09/2002) trazendo o problema da va-
recebido atenção crescente não só dos psicólogos, mas lidade de avaliações psicológicas em processos seleti-
também da sociedade em geral. Pode-se citar como vos, as medidas do CFP buscando inibir o uso de ins-
exemplo a anulação de duas questões sobre avalia- trumentos de má qualidade (dentre elas o processo de
ção psicológica do Provão de 2000 e 2001 por esta- avaliação da qualidade dos instrumentos), e a organi-
rem mal formuladas, uma reportagem da ISTOÉ zação de profissionais e pesquisadores em eventos da
área (ver: www.ibapnet.org.br). Tudo isso faz a ava-
liação psicológica ocupar uma posição de maior des-
Endereço para correspondência:
Ricardo Primi, Universidade São Francisco, Laboratório de taque na psicologia brasileira relativamente àquele que
Avaliação Psicológica e Educacional, LabAPE, Programa de tinha no passado. Este movimento traz consigo uma
Estudos Pós-Graduados em Psicologia, Rua Alexandre Rodrigues
Barbosa, 45, CEP 13251-900, Itatiba – SP, Fone (11)45348002,
série de desafios antigos que precisam ser enfrenta-
correio eletrônico: rprimi@uol.com.br dos e resolvidos para que a área efetivamente cres-
ça.
Nota do autor: Basicamente a resposta a estes desafios está na
Este texto é parte de um projeto de pesquisa financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
efetiva integração entre ciência e prática profissional.
e pelo Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq). Ele foi A avaliação psicológica é geralmente entendida como
adaptado da conferência de abertura do VI Encontro Mineiro de uma área aplicada, técnica, de produção de instru-
Avaliação Psicológica Teorização e Prática, proferida em 14 de
novembro de 2002, no Centro Universitário Newton Paiva em
mentos para o psicólogo, visão certamente simplista
Belo Horizonte. da área. A avaliação psicológica não é simplesmente
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uma área técnica produtora de ferramentas profissio- estão ultrapassados, que o sucesso pessoal não de-
nais, mas sim a área da psicologia responsável pela pende da inteligência e sim de outras capacidades.
operacionalização das teorias psicológicas em even- Mas o que dizem as pesquisas mais recentes sobre o
tos observáveis. Como isso ela fomenta a observação assunto? O exame da literatura revela que as antigas
sistemática de eventos psicológicos abrindo os cami- teorias vêm evoluindo gradualmente em um processo
nhos para a integração teoria e prática. Ela permite cumulativo e integrativo. Os testes de avaliação da
que as teorias possam ser testadas, eventualmente inteligência estão cada vez mais sofisticados. As con-
aprimoradas, contribuindo para a evolução do conhe- cepções sobre inteligência são mais balanceadas e não
cimento na psicologia. Portanto a avaliação na psico- tão extremas quanto aquelas veiculadas na mídia
logia é uma área fundamental de integração entre a (Primi, 2002b). Um exemplo disso é o modelo Cattell-
ciência e a profissão. Disso decorre que o avanço da Horn-Carroll da inteligência baseado na Psicometria
avaliação psicológica não é um avanço simplesmente que vem sendo considerado o “estado da arte” na área.
da instrumentação mas, sobretudo, das teorias A concepção de inteligência da abordagem
explicativas do funcionamento psicológico. psicométrica está sustentada na análise fatorial. A
Este artigo procura discutir alguns avanços cientí- análise fatorial por sua vez baseia-se nas diferenças
ficos na área da avaliação da inteligência contrapondo- individuais reveladas por uma centena de testes cri-
os às idéias que são divulgadas pela mídia e muitas ve- ados para avaliar as capacidades cognitivas. O pro-
zes por profissionais. Pretende-se abordar os mal en- pósito da análise fatorial é identificar subgrupos de
tendidos que fazem a prática divergir da ciência con- testes que avaliam uma mesma capacidade cognitiva.
trastando-os com as idéias originadas de pesquisas re- A lógica deste procedimento é que, se dois testes
centes e com isso contribuir para a dissolução desses requerem uma mesma capacidade cognitiva, então
mal entendidos e para um movimento de maior conver- pessoas que tiverem esta capacidade desenvolvida
gência dos discursos dos cientistas e profissionais. tenderão apresentar escores mais altos nos dois tes-
Um primeiro aspecto diz respeito à evolução tes simultaneamente. Ao contrário, pessoas com
do estudo da inteligência, especialmente na aborda- menor desenvolvimento tenderão apresentar esco-
gem psicométrica. A psicometria começou elaboran- res baixos nos dois testes simultaneamente. Como
do instrumentos de medida sem saber bem o que se deseja descobrir quais são as capacidades que
eles mediam, ou melhor, sem uma compreensão teó- compõem a inteligência percorre-se o caminho in-
rica sobre a inteligência e evoluiu para formulações verso, isto é, aplica-se uma bateria de testes cobrin-
teoricamente mais sofisticadas. Outro aspecto refe- do uma diversidade de capacidades intelectuais,
re-se aos estudos mais recentes integrando achados emprega-se a análise fatorial para descobrir os agru-
da psicologia e da neurociência falando sobre as re- pamentos de testes e por fim, analisa-se estes gru-
lações entre a cognição e a emoção. No Brasil es- pos entendendo quais são as capacidades comuns
ses avanços ainda são pouco divulgados persistindo envolvidas na resolução dos testes dentro deles.
uma série de mal entendidos. Na primeira metade do século passado os estu-
dos fatoriais da inteligência debatiam a estrutura
Inteligência a partir da psicometria (quantas) e definição (quais) das capacidades intelec-
A Psicologia procura há décadas responder a tuais. Duas posições extremas existiam: a de Spearman
pergunta sobre a natureza da inteligência. Existem (1927) definindo que toda a atividade intelectual se
muitas respostas revelando uma multiplicidade de exprime num fator geral (g) e a de Thurstone (1938)
visões como pode ser constatado na imensa quanti- chamada Teoria das Aptidões Primárias defendendo
dade de publicações a respeito desse tema. Uma a inexistência de um fator geral e, no lugar disso, um
estimativa grosseira investigando a base de dados conjunto de habilidades básicas ou primárias.
PsycINFO da Associação Americana de Psicologia Na segunda metade do século passado esta
(www.apa.org) indicou que em pouco mais de um concepção polarizada evoluiu para um modelo inte-
século existem mais de 18.400 artigos com a palavra grado hierárquico chamado de Teoria Gf-Gc (inteli-
inteligência em seu título (Primi, 2002a). gência fluida e cristalizada) iniciada por Cattell (1941,
Ao lado dessa diversidade de teorias e opiniões 1971), desenvolvida e aprimorada por um de seus es-
existe o grande interesse da mídia por este tema. Este tudantes chamado Horn (1991). Mas foi recentemen-
interesse muitas vezes acaba divulgando idéias errô- te em 1993, que um dos mais importantes estudos foi
neas sobre o assunto. É muito comum ouvirmos que publicado: o livro de John B. Carroll Human Cognitive
as antigas teorias de inteligência e os testes de QI Abilities: a survey of factor analytic studies. Neste
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estudo Carroll fez um levantamento das pesquisas dos dos. O produto final desta análise foi publicado em
últimos 60 anos, selecionou 1500 artigos dos quais seu livro e é chamado a Teoria dos Três Estratos.
obteve 461 conjuntos de dados. Neste conjunto esta- Atualmente há um projeto sendo desenvolvido com o
vam incluídos quase todos os mais importantes e clás- objetivo de colocar os arquivos desta análise disponí-
sicos estudos da estrutura da inteligência feitos pela veis na internet e expandir este banco de dados com
abordagem psicométrica. Ele fez então uma reanálise estudos posteriores à publicação desta obra para que
utilizando métodos de análise fatorial mais avança- os pesquisadores possam realizar novas análises (ver:

Tabela 1. Definição dos dez fatores amplos da teoria CHC.


Fator do Estrato II Descrição
Inteligência Fluida (Gf) Capacidade ligada às operações mentais de raciocínio em situações novas
minimamente dependente de conhecimentos adquiridos. Capacidade de resolver
problemas novos, relacionar idéias, induzir conceitos abstratos, compreender
implicações, extrapolação e reorganização de informações (os testes psicométricos
do fator g geralmente avaliam a inteligência fluida tais como Raven, a maioria dos
testes da BPR-5, Colúmbia, R1, INV, etc...).
Inteligência Cristalizada (Gc) Extensão e profundidade dos conhecimentos adquiridos de uma determinada
cultura e a aplicação efetiva deste conhecimento. Capacidade de raciocínio
adquirida pelo investimento da capacidade geral em experiências de aprendizagem.
Primariamente baseada na linguagem. Está associado ao conhecimento declarativo
(conhecimento de fatos, idéias, conceitos) e ao conhecimento de procedimentos
(raciocinar com procedimentos aprendidos previamente para transformar o
conhecimento).
Conhecimento Quantitativo (Gq) Estoque de conhecimentos declarativos e de procedimentos quantitativos.
Capacidade de usar informação quantitativa e manipular símbolos numéricos.
Leitura e Escrita (Grw) Conhecimento adquirido em competências básicas da compreensão de textos e
expressão escrita. Inclui desde habilidades elementares como decodificação em
leitura e ortografia até habilidades mais complexas como a compreensão de textos
e a composição de histórias.
Memória de Curto Prazo (Gsm) Capacidade associada à manutenção de informações na consciência por um curto
espaço de tempo para poder recuperá-las logo em seguida.
Processamento Visual (Gv) Capacidade de gerar, perceber, armazenar, analisar, e transformar imagens visuais,
isto é, os processos cognitivos específicos de processamento mental de imagens
(geração, transformação, armazenamento e recuperação).
Processamento Auditivo (Ga) Capacidade associada à percepção, análise e síntese de padrões sonoros.
Capacidade discriminativa de padrões sonoros (incluindo a linguagem oral)
particularmente quando apresentados em contextos mais complexos como, por
exemplo, a percepção de nuances em estruturas musicais complexas.
Capacidade e Armazenamento e Extensão e fluência que itens de informação ou conceitos são recuperados da
Recuperação da Memória de memória de longo prazo por associação. Está ligada ao processo de
Longo Prazo (Glr) armazenamento e recuperação posterior por associação. Capacidade de recuperar
os itens de informação da base de conhecimentos por meio de associações. Este
fator agrupa os testes psicométricos criados de avaliação da criatividade sendo
muitas vezes chamado de domínio da produção de idéias.
Velocidade de Processamento (Gs) Capacidade de manter a atenção e realizar rapidamente tarefas simples
automatizadas em situações que pressionam o foco da atenção. Está geralmente
ligado a situações em que há um intervalo fixo definido para que a pessoa execute
o maior número possível de tarefas simples e repetitivas (sustentabilidade).
Rapidez de Decisão (Gt) Rapidez em reagir ou tomar decisões envolvendo processamentos mais complexos.
Refere-se à reação rápida a um problema envolvendo processamento e decisão
(imediaticidade).
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www. iapsych.com/chchca.htm). desenvolvimento de novas baterias oriundas do Mo-


Esta teoria é muito semelhante à concepção delo CHC que representem mais equilibradamente
moderna da teoria Gf-Gc de Horn (1991). Esta se- os vários fatores cognitivos (McGrew, 1997;
melhança é importante e necessária já que ambos McGrew & Flanagan, 1998).
estudos procuram descrever o mesmo fenômeno. Por Por exemplo, na Escala de Inteligência Infantil
isso em 1998 McGrew e Flanagan (1998) propuse- de Wechsler (Wechsler, 1991) os subtestes Infor-
ram uma integração das teorias Gf-Gc e dos Três mação, Semelhanças, Vocabulário, e Compreensão
Estrados criando-se a Teoria de Cattell-Horn-Carroll são medidas de fatores específicos da inteligência
- CHC das Habilidades Cognitivas. Este modelo con- cristalizada, o subteste Aritmética do fator Conheci-
siste numa visão multidimensional com dez fatores mento Quantitativo. O subteste Dígitos mede o fator
ligados a áreas amplas do funcionamento cognitivo. memória de curto prazo. Os subtestes Completar
Estas capacidades associam-se aos domínios da lin- Figuras, Arranjo de Figuras, Cubos e Armar Objetos
guagem, raciocínio, memória, percepção visual, re- medem o processamento visual. Os subtestes Códi-
cepção auditiva, produção de idéias, velocidade go e Procurar Símbolos são medidas específicas de
cognitiva, conhecimento e rendimento acadêmico Velocidade de Processamento. Portanto o QI total
(Carroll, 1997). A Tabela 1 apresenta uma definição WISC-III reflete principalmente três fatores amplos:
geral desses dez capacidades (mais informações inteligência cristalizada (Gc), processamento visual
sobre este modelo podem ser encontradas em: (Gv) e velocidade de processamento (Gs).
www.iapsych.com). A WISC-III tem sido criticada por não avaliar
Estas dez capacidades são chamadas de fato- áreas importantes como a inteligência fluida, a capa-
res amplos e organizam-se no segundo nível de uma cidade e armazenamento e recuperação da memó-
hierarquia de três níveis. Em uma camada abaixo ria de longo prazo e o processamento auditivo. Por
deste nível existem aproximadamente 70 fatores es- outro lado possui um número maior de subtestes do
pecíficos subdividindo os dez fatores amplos. Estes que o necessário para avaliar o processamento visu-
fatores estão ligados às capacidades específicas ava- al e a inteligência cristalizada e apresenta um agru-
liadas pelos testes de inteligência. Acima dos fato- pamento confuso denominado resistência à distra-
res amplos existe o fator g de Spearman represen- ção cuja existência enquanto fator cognitivo é
tando existência de uma associação geral entre to- questionável (Flanagan, McGrew & Ortiz, 2000).
das as capacidades cognitivas. O movimento do ní- A nova versão WISC-IV não resolve estes pro-
vel mais alto da hierarquia (fator g) ao nível mais blemas por razões econômicas descomprometidas
baixo (fatores específicos) indica o progressivo au- com os avanços científicos. Uma atitude mais razo-
mento da especialização das capacidades cognitivas ável seria operacionalizar nos instrumentos de medi-
(McGrew & Flanagan 1998). da os avanços científicos da área como tem ocorrido
com outros instrumentos tais como o SBV e o WJIII
Desfazendo algumas confusões sobre a inteli- mas tem sido negligenciada nas escalas Wechsler.
gência As escalas de Wechsler têm uma posição de desta-
Como pode ser notado a Teoria CHC enfatiza que no lucrativo mercado de testes americano ocu-
a natureza multidimensional da inteligência ao invés pando o primeiro lugar em vendas. Com medo de
da visão unidimensional que dominou o início do de- perder esta fatia do mercado a editora americana
senvolvimento dos testes psicométricos. Ao mesmo não deseja fazer as mudanças necessárias para torná-
tempo reconhece a existência do fator g, mas, em la mais condizente com as modernas teorias da inte-
termos práticos, enfatiza as capacidades amplas. A ligência. Satirizando estes eventos McGrew (1994)
Teoria CHC vem sendo usada para analisar os prin- diz que Moisés subiu as montanhas para pegar os
cipais instrumentos e baterias existentes para enten- dez mandamentos mas onde está escrito que ele trou-
der melhor a natureza das funções cognitivas que xe também os 12 subtestes para avaliar a inteligên-
eles avaliam (Flanagan & Ortiz, 2001). Ela vem gra- cia (ver também o programa de recuperação de doze
dualmente sendo usada como uma nomenclatura passos do The Wechsler’s Anonymous Twelve Step
padrão entre profissionais e pesquisadores no enten- Program em http://www.iapsych.com/
dimento da inteligência. Essa revisão indica que ne- wechanon.htm).
nhuma das baterias disponíveis no mercado apresenta Essa análise da WISC ilustra um ponto impor-
uma avaliação completa dessas dez capacidades tante que consiste no uso do termo QI como se ele
amplas. Sendo assim o avanço da área depende do significasse sempre a mesma coisa. Mas os QI´s de
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testes diferentes nem sempre dizem respeito exata- um procedimento chamado “Composição ou Cruza-
mente às mesmas capacidades das pessoas. As ba- mento de Baterias” (Cross Battery Approach) que
terias são compostas de subtestes avaliando vários propõe a seleção de subtestes de baterias diferentes
fatores específicos da inteligência e a partir dos quais guiada pelo modelo CHC propiciando uma otimização
se calcula uma nota global o QI. Entretanto um QI da avaliação dos fatores amplos (Flanagan & Ortiz,
de um teste A não é necessariamente igual ao QI de 2001). Este procedimento é interessante mas só é
um teste B já que as duas baterias podem ser com- possível quando existem testes com padronização
postas de subtestes diferentes. O QI é simplesmen- nacional. Como no Brasil isto é escasso este proce-
te uma escala numérica padronizada e seu significa- dimento se torna difícil de ser implementado. Estamos
do dependerá da combinação de fatores específicos trabalhando na pós-graduação da Universidade São
avaliados pela bateria Francisco dando os primeiros passos em direção a
Outra confusão que se faz é a distinção testes isso analisando os testes publicados segundo a teoria
de inteligência e testes aptidão supondo que o pri- CHC para no futuro desenvolver estudos que possi-
meiro mede o fator g o os testes de aptidão medem bilitem o emprego deste procedimento.
capacidades específicas. Estritamente falando para Este modelo será muito importante para aju-
medir o fator g deveríamos aplicar uma bateria com- dar-nos a entender o que os testes criados pela
posta por pelo uns 60 testes cobrindo todas as capa- psicometria avaliam. Ele consiste em uma taxonomia
cidades do nível III do modelo CHC. Essa bateria para os testes de inteligência, um mapa dos construtos
não existe e talvez nem existirá tão cedo. Mesmo os avaliados pelos testes. No entanto ele não esgota a
testes de inteligência fluida que estão mais próximos definição de todas as possíveis maneiras que a inte-
do fator g (Raven, G36, D48, por exemplo) medem ligência pode se manifestar. Ele pode ser entendido
um fator específico do nível III. Ou seja não existe a mais como uma teoria para os testes existentes. En-
distinção entre testes de inteligência e de aptidão. A tretanto, a inteligência humana abarca outras dimen-
rigor todos os testes medem alguma capacidade es- sões ainda desconhecidas além daquelas que os tes-
pecífica da inteligência. O conceito de aptidão na tes indicam. Seguramente existem capacidades ain-
verdade refere-se a uma combinação ótima de fato- da mal conhecidas que tem motivado a expansão dos
res específicos procurando prever um determinado estudos e teorias sobre a natureza da inteligência
critério como, por exemplo, leitura, desempenho como se verá a seguir.
matemático, desempenho no trabalho (Flanagan,
Ortiz, Alfonso, & Mascolo, 2002). Inteligência emocional: a interação cognição-
Ainda outra confusão refere-se à nomenclatura emoção
testes não-verbais. Como foi visto não existe um fator Recentemente uma série de estudos procu-
de inteligência não-verbal como a proposição do início rou expandir o construto inteligência integrando as-
do século passado que aparecia nas primeiras ver- pectos da cognição com a emoção. Estes estudos
sões das escalas Wechsler. Toda atividade cognitiva estão sendo feitos sob o conceito de inteligência
envolve o uso da linguagem com mais ou menos in- emocional. Mas o que é inteligência emocional?
tensidade. Mesmo na resolução de testes de Um primeiro ponto que precisa ficar claro é
processamento visual a linguagem faz parte do que não foi Daniel Goleman quem criou este concei-
processamento. Os testes não verbais de inteligência to (Goleman, 1995). Este conceito foi criado por Peter
diferem dos testes puramente verbais (de inteligência Salovey, John Mayer e David Caruso (Salovey &
cristalizada) por não exigirem uma língua específica Mayer, 1990; Mayer & Salovey, 1999). A concep-
na sua resolução como, por exemplo, inglês, francês ção divulgada por Goleman difere da concepção ori-
ou espanhol. Já um teste de vocabulário em inglês ginal desses autores incluindo aspetos muito mais
exigirá o conhecimento de uma língua específica e, amplos do que originalmente foi proposto como inte-
portanto, dependerá muito mais das capacidades que ligência emocional. Além disso, algumas afirmações
a pessoa possui na língua do país de origem do teste. como a que diz que o a inteligência emocional é mais
De modo geral hoje não existe uma bateria que importante do que a inteligência tradicionalmente
avalie todos os fatores amplos da inteligência. Dos medida pelos testes psicométricos não é verdadeira.
testes publicados nos EUA o que mais se aproxima Os próprios autores questionam esta afirmação de
disso é o Woodcock Jhonson III avaliando Goleman dizendo que não há evidência documenta-
equilibradamente sete fatores amplos (Woodcock, da apoiando-a (Mayer, 2001).
McGrew & Mather, 2001). Diante disso foi sugerido Atualmente existem duas abordagens na defi-
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nição da inteligência emocional. Uma definição mais cognitivas ocorrem em um vácuo afetivo. De fato as
popular proposta de Goleman (1995) que se afastou visões mais antigas encaram as emoções como fa-
da idéia original dos autores e incluiu características tores desorganizadores da atividade cognitiva trazen-
tradicionalmente estudadas nas teorias fatoriais da do falta de clareza ao raciocínio. No passado predo-
personalidade. Este modelo não traz nada de novo minou um modelo antitético entre emoção-razão
embora seja vendido como algo revolucionário princi- como duas entidades competindo pelo controle da
palmente no mundo dos negócios (Mayer, Caruso, & mente. Segundo esta visão quando as emoções pre-
Salovey, 2002). A segunda é a definição original da dominam a lógica desaparece e os pensamentos se
inteligência emocional chamada inteligência emocio- tornam irracionais (Greenberg, 2002).
nal como capacidade cognitiva. Essa é menos conhe- Recentemente, principalmente por causa dos
cida pelo público pois está sendo divulgada principal- estudos da neurociência, esta visão das emoções
mente em periódicos científicos. É interessante notar perdeu força. As emoções têm efeitos importantes
que Goleman, embora mais famoso, não publicou ne- na adaptação e tem poderosos efeitos na cognição,
nhum artigo em periódicos da área expondo sua teo- tanto nos processos de pensamento, isto é, no como
ria ao escrutínio dos pares. Por outro lado muitos pes- pensamos, quanto no conteúdo do pensamento, isto
quisadores só conhecem a visão popular da inteligên- é, no quê pensamos (Forgas, 2001). É óbvio que a
cia emocional e por isso atribuem um total descrédito psicologia sempre disse isso e portanto não há novi-
a essas idéias. Portanto é fundamental ficar claro que dade nessas idéias. O que há de novo, no entanto,
há uma série de pesquisas sérias com resultados im- são os experimentos sobre a interação cognição-
portantes que contribuem para a expansão de nosso emoção e as descobertas sobre as bases neurais
entendimento da inteligência. Essas idéias são bem destes eventos que passaram a ser publicados prin-
diferentes da visão que acabou se popularizando por cipalmente a partir da década de noventa.
meio do livro de Goleman (1995). Levenson (1999) e Mayer e Salovey (1991)
A definição da inteligência emocional depende definem emoção como fenômenos psico-fisiológicos
da definição da inteligência, emoção e sobre sua que organizam o comportamento em maneiras efici-
interação. Uma definição bastante ampla diz que a entes de adaptação às exigências dinâmicas do am-
inteligência é a capacidade de se adaptar ao meio. biente. As emoções consistem em um pacote orga-
Os fatores cognitivos discutidos anteriormente indi- nizado de respostas de vários subsistemas do orga-
cam áreas mais especializadas do funcionamento nismo. No nível cognitivo as emoções alteram o foco
cognitivo que favorecem a adaptação. Por exemplo, da atenção para aspectos mais importantes e ativam
a inteligência cristalizada elevada está associada ao lembranças relevantes nas redes neurais da memó-
maior conhecimento de informações sobre a cultura ria de longo prazo. No nível fisiológico as emoções
o que por sua vez facilita muito a adaptação. A inte- preparam o organismo criando um meio ótimo para
ligência fluida elevada está associada à capacidade uma resposta efetiva e condizente com a demanda
de resolver problemas por meio da descoberta de ambiental. Esta preparação envolve a organização
relações entre várias informações disponíveis. Isso da expressão facial, tonalidade da voz, tônus muscu-
faz com que a pessoa tenha uma maior compreen- lar, do sistema nervoso autônomo e do sistema
são dos eventos complexos que a rodeiam trazendo endócrino. No nível comportamental as emoções
uma vantagem adaptativa. Alta capacidade de produzem comportamentos expressivos veiculando
processamento auditivo na criança facilita a com- informações às outras pessoas e também impulsio-
preensão dos padrões sonoros complexos que com- nam comportamentos instrumentais.
põem a comunicação oral que os adultos tem entre Um primeiro aspecto importante é o caráter
si e com ela. Por isso, traz uma vantagem adaptativa funcional e adaptativo das emoções. As emoções
já que a criança adquirirá com maior rapidez capaci- são um conjunto organizado de reações programa-
dade de se comunicar. das evolutivamente no cérebro para enfrentar situa-
Por muito tempo a psicologia cognitiva adotou ções-problema que ameaçam a sobrevivência do
um enfoque frio da cognição procurando entender organismo. Elas fazem parte de sua sabedoria
como ocorre o processamento de informação sem evolutiva (termo criado por Ledoux, 1996).
prestar muita atenção nos aspectos afetivos (Ledoux, Um segundo aspecto é que os diferentes tipos
1996). Este enfoque simplifica a análise permitindo emoções estão associados a diferentes temas ou
a visão detalhada de uma faceta de cada vez, entre- enredos padrão ligados à sobrevivência. As reações
tanto implicitamente assume que as funções disparadas pelas emoções são condizentes com o
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enfrentamento destas situações específicas. Por mais complexo do estímulo.


exemplo nos deprimimos quando perdemos ou pen- Resumindo as idéias até aqui discutidas, a in-
samos que perdemos algo importante e valioso, ao teligência pode ser definida como uma capacidade
contrário sentimos prazer e felicidade quando ganha- geral de adaptação. As emoções estão envolvidas
mos algo que favoreça nossa sobrevivência. Senti- na adaptação a um conjunto de situações fundamen-
mos raiva quando nos vemos injustiçados e trapace- tais ligadas à sobrevivência do organismo. As emo-
ados, sentimos medo quando percebemos uma ame- ções estão também ligadas às estruturas evoluti-
aça, sentimos aversão quando estamos muito próxi- vamente mais primitivas e não precisam da inter-
mos de algo aversivo não digerível. As emoções, venção da consciente para ocorrer. Fica claro então
portanto, estão sempre funcionalmente ligadas a o elo entre inteligência e emoção. Tanto inteligência
eventos ambientais internos e externos principalmente como emoção são funções adaptativas do organis-
às interações sociais. mo associadas a comportamentos do cérebro que
Um terceiro aspecto é que uma parte do auxiliam o organismo a se adaptar ao meio. Talvez a
processamento da emoção, basicamente o proces- principal diferença entre emoção e cognição é que
samento inicial, ocorre em estruturas mais primitivas as emoções constituem em uma inteligência cristali-
do cérebro e de maneira automática e inconsciente. zada pré-programada no cérebro para tratar de pro-
Neste sistema há uma unidade de avaliação que é blemas existenciais fundamentais. Entretanto estes
sensível às mudanças ambientais ligadas aos temas programas têm uma relativa flexibilidade e interagem
fundamentais da sobrevivência. Se algo for percebido com capacidades superiores de raciocínio mais fle-
esta unidade dispara o pacote de reações emocionais. xíveis e abertas às influências ambientais.
A partir daí tomamos consciência de que algo impor- Nesse sentido uma idéia importante observada
tante ocorreu e então os processos cognitivos superi- por Gohm e Clore (2002) é a concepção de afeto-
ores entram em ação. Com eles procuramos enten- como-informação. Nosso cérebro está continuamen-
der melhor a situação e moldar a resposta. te engajado na avaliação do ambiente. Esta avalia-
Esta idéia vem principalmente dos estudos de ção é feita inconscientemente. Quando nota algo
Joseph Ledoux que estudou o funcionamento da existencialmente importante (que poder legítimo ou
amídala estrutura cerebral responsável pelo não dada a natureza grosseira deste processamento
processamento do medo e pela produção da respos- automático) ele dispara uma reação emocional re-
ta luta-ou-fuga (Ledoux, 1996). Ledoux demonstrou crutando as funções conscientes superires
que os estímulos aversivos percorrem um caminho redirecionando a atenção ao aspecto notado. Como
subcortical dos órgãos sensoriais para o tálamo sen- diferentes emoções indicam diferentes situações sig-
sorial e do tálamo diretamente para a amídala ati- nificativas, a análise do tipo de emoção experienciada
vando seu funcionamento fazendo-a produzir as res- pode nos informar sobre a natureza do evento que
postas ligadas ao medo. Ao mesmo tempo há uma foi notado. Estas informações podem então ajudar
outra via que vai do tálamo ao córtex que permite no processo adaptativo. Nos caberá usar ou não esta
uma análise mais complexa com a participação das informação de maneira efetiva. Portanto as emoções
funções conscientes. Há também uma série de co- trazem informações potencialmente úteis sobre nos-
nexões entre a amídala e o córtex pré-frontal e o so ambiente (interno ou externo) que podemos usar
hipocampo que são a base neural das influências para nos adaptar mais ou menos efetivamente a ele.
mútuas entre o processamento primitivo e os pro- Esta é a idéia do afeto-como- informação.
cessos de raciocínio e memória a longo prazo. En- As pessoas possuem maior ou menor capaci-
tretanto a via subcortical é duas vezes mais rápida dade para lidar com as informações emocionais no
que a via cortical e predomina no início do processo adaptativo. Isso é precisamente o que está
processamento de estímulos aversivos e na produ- na base inteligência emocional. Uma definição bem
ção das respostas corporais do medo. ampla é que a inteligência emocional é a capacidade
Estes estudos mostraram que o processamento de processar as informações emocionais e usá-las
emocional ocorre paralelamente em dois níveis. Um favoravelmente no processo adaptativo (Salovey &
deles é mais veloz, automático, sensorial, não muito Mayer, 1990).
preciso que avalia os estímulos do ambiente e dispa- Em 1997, Mayer e Salovey, apresentaram uma
ra as reações de medo. Outro é mais conceitual e definição da inteligência emocional dividida em qua-
associativo que modula posteriormente a reação que tro níveis (ver Figura 1): a capacidade de perceber
foi disparada e que também faz um processamento as emoções, a capacidade de usar as emoções para
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facilitar o pensamento, o conhecimento emocional a ta. A alexitimia está associada a distúrbios


e capacidade de regulação emocional (Mayer & psicossomáticos, ao abuso de drogas e à anorexia
Salovey, 1999). nervosa (Taylor & Bagby, 2002).
A segunda capacidade está ligada ao uso das
emoções para facilitar o pensamento. Diz respeito à
utilização da emoção como um sistema de alerta que
dirige a atenção e o pensamento para as informações
(internas ou externas) mais importantes. Diz respeito
também à capacidade de gerar sentimentos em si
mesmo como uma espécie de ensaio para ajudar na
tomada de decisões nos processos de adaptação.
As emoções interferem em vários aspectos do
funcionamento mental, influem no que prestamos
atenção, no que aprendemos no que lembramos e
influem nos julgamentos e decisões que tomamos.
Joseph Forgas (2001) chama isso de infusão afetiva.
Por exemplo, os afetos positivos geralmente favore-
cem a atenção aos estímulos internos. Eles facilitam
Figura 1. As quatro facetas do construto inteligência a predominância de pensamentos e disposições in-
emocional. ternas e a assimilação dos eventos externos a esses
conhecimentos preexistentes. O afeto negativo, ao
A primeira faceta refere-se à capacidade de contrário, favorece a acomodação da atenção aos
identificar emoções em si mesmo e em outras pesso- estímulos externos. Isto ocorre porque os afetos ne-
as e a capacidade de expressar essas emoções. Re- gativos fazem parte de um sistema de alarme que
fere-se ainda a capacidade de avaliar a autenticidade indica perigo potencial no ambiente externo que me-
de uma expressão emocional, detectando sua veraci- rece ser focalizado.
dade, falsidade ou tentativa de manipulação. A per- Os afetos negativos, não muito intensos, contri-
cepção de emoções está relacionada à capacidade de buem para uma visão mais precisa da realidade. Al-
introspecção e formulação de idéias coerentes com guns fatos corroboram isso. Por exemplo em men-
seu o estado emocional. Esta abertura às experiênci- sagens persuasivas pessoas em estado de humor mais
as emocionais abre portas para a compreensão das positivo parecem ser mais influenciadas por deta-
informações veiculadas por elas e sobre os eventos lhes superficiais do comunicador como aparência fí-
importantes que eventualmente ocorrem no meio. sica e status. Já pessoas em estados mais negativos
Conseqüentemente abre portas para o uso dessa in- de humor tendem a examinar as informações com
formação no processo de adaptação. Ela também fa- mais cuidado procurando ver sua qualidade. As pes-
cilita a compreensão empática do outro já que a pes- soas deprimidas são também geralmente mais rea-
soa se torna capaz de experienciar os sentimentos das listas (Forgas, 2001). A infusão afetiva muitas vezes
outras pessoas em si mesmo e com isso entender mais ocorre de maneira automática, espontânea e sub-
profundamente os comportamentos das pessoas. consciente. Portanto a inteligência emocional envol-
A alexitimia é um conceito ligado a falta desta ve a percepção destes efeitos sobre o funcionamen-
capacidade. Alexitimia está ligada à dificuldade de to mental para poder usá-los maneira favorável à
identificar sentimentos e de discriminar entre os di- nossa adaptação.
ferentes tipos de sentimentos, dificuldades em A terceira capacidade diz respeito ao conheci-
descrevê-los para outras pessoas, restrição nos pro- mento emocional. Esta capacidade está ligada ao
cessos de imaginação e fantasia e um estilo cognitivo vocabulário conceitual sobre as emoções, à identifi-
voltado para detalhes mínimos de eventos externos cação de diferenças e nuances entre as emoções, e
ao invés de eventos da vida interior. De modo geral ao entendimento de emoções complexas que são
a alexitimia está associada à dificuldade em integrar compostas de emoções básicas. Segundo Plutchik
os vários níveis de representação físicos e simbóli- (1997) as emoções primárias são: tristeza-alegria,
cos das emoções. Isso pode gerar um potencial es- surpresa-expectativa, aversão-aceitação, medo-rai-
tado de desregulação afetiva já que a influência de va. Emoções secundárias são constituídas por com-
vias corticais superiores sobre a amídala fica restri- binações dessas emoções primárias. Por exemplo:
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culpa = medo + alegria, susto = medo e surpresa; bem podemos indiretamente alterar nosso humor cri-
remorso = tristeza + aversão, vergonha = medo + ando aquelas situações (ouvir música, conversar com
aversão. As emoções também ocorrem em cadeias um amigo, etc...). Entretanto por meio das drogas as
mais ou menos padronizadas e portanto a compre- pessoas ganham um poder de regular diretamente os
ensão das transições entre emoções é muito impor- afetos por um determinado tempo. Disto resulta o que
tante para a adaptação. Todos estes conceitos fa- Gohm e Clores (2002) chamam de inflação hedônica.
zem parte do conhecimento emocional ou a inteli- Isto é, as emoções provocadas pelas drogas são mui-
gência cristalizada sobre as emoções. to mais intensas que aquelas produzidas pelas experi-
O conhecimento emocional é uma parte essen- ências naturais. As emoções positivas produzidas em
cial da Psicologia mas apesar disso as teorias clássi- situações naturais perdem seu valor (inflação) e a
cas não avançaram muito na definição dos vários pessoa fica obcecada buscando os afetos produzidos
tipos de emoções. Por exemplo a Psicanálise focali- pelas drogas. Gradualmente este poder vai sendo re-
zou muito na ansiedade. Melanie Klein expandiu um duzido levando a pessoa a consumir mais drogas que
pouco mais falando da raiva e da inveja. Mas muito por sua vez produzem mais inflação e danos à saúde
pouco se falou sobre outras emoções principalmente perpetuando um ciclo de auto destruição e um colap-
as emoções positivas (Greenberg, 2002). so na economia afetiva.
A quarta e última faceta refere-se ao Em resumo a inteligência emocional é definida
gerenciamento das emoções. Esta capacidade refe- pela capacidade de identificar e perceber emoções,
re-se ao controle reflexivo das emoções para pro- de usá-las para facilitar o pensamento, usar o co-
mover o crescimento emocional. O processo de nhecimento emocional e de regular as emoções em
regulação da emoção envolve o monitoramento, a si e nos outros. A inteligência emocional está associ-
avaliação e a utilização do conhecimento dos própri- ada ao uso destes processos em nosso benefício na
os humores, para mantê-lo ou modificá-lo conforme adaptação aos desafios impostos pelos eventos de
as necessidades. O conhecimento sobre as situações nossa vida. Por isso esta definição é bem diferente
que desencadeiam humores agradáveis e desagra- da definição popular já que fala dos processos
dáveis nos permite escolher com maior precisão as cognitivos envolvidos no processamento emocional.
situações prazerosas e a evitar e/ou abreviar as situ- As pesquisas mais recentes vêm buscando
ações desprazerosas. Com isso conseguimos de for- construir instrumentos para medir estes quatro com-
ma indireta regular nossos próprios humores. Isto é ponentes. Há uma série de inventários de auto relato
chamado meta experiência do humor. criados para avaliar algumas facetas da inteligência
Um outro aspecto associa-se à regulação dos emocional. Entretanto sabemos pelos estudos sobre
humores em outras pessoas. Isto está ligado ao a inteligência que a opinião das pessoas sobre suas
monitoramento das reações dos outros em relação capacidades não se correlaciona com a sua capaci-
ao próprio comportamento o que nos permite ter idéia dade verdadeira. Se quisermos avaliar a inteligência
de como nossos comportamentos afetam os outros precisamos de testes de desempenho nos quais a
possibilitando uma maior controle dessas reações. pessoa demonstre sua capacidade de processar as
Também é possível produzir, regular e/ou manter as emoções (Ciarrochi, Chan, Caputi & Roberts, 2001;
emoções desejáveis em outras pessoas atuando di- Mayer, Caruso, & Salovey, 2002b; Salovey, Mayer,
retamente sobre elas. Caruso, & Lopes, no prelo).
Uma parte do efeito benéfico da psicoterapia Existem dois testes de desempenho o
tem a ver com o desenvolvimento de estratégias de Multifactor Emotional Intelligence Scale (MEIS)
manipulação das próprias emoções. Também está e uma versão mais recente chamada Mayer,
associado ao entendimento das maneiras automáti- Savoley e Caruso Emotional Intelligence Test
cas de regulação efetivadas pelos mecanismos de (MSCEIT). Já desenvolvemos pesquisas com es-
defesa para eventualmente mudá-los para outros mais tudantes de psicologia usando o MEIS (Bueno &
adaptativos (Greenberg, 2002). Primi, 2001, no prelo) e descobrimos que alunos
O abuso das drogas exemplifica um problema com maior capacidade de identificar emoções ti-
associado aos mecanismos reguladores das emoções. nham também uma avaliação mais positiva de seus
As pessoas não podem de alterar seus estados emo- supervisores em itens indicando o estabelecimento
cionais voluntária e diretamente. Os afetos aparecem de vínculos positivos com os pacientes e indicando
em decorrência de certas interações significativas com competências e habilidades para atuação profissio-
o ambiente. Conhecendo as situações que nos fazem nal em psicologia clínica. O mais interessante foi
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que as medidas de personalidade e inteligência não derivadas diretamente desta teoria. É preciso ainda
estavam associadas ao desempenho. Portanto a expandir os estudos para áreas da inteligência pouco
inteligência emocional medida pelo MEIS parece investigadas no passado. É preciso finalmente bus-
captar algo diferente e útil. car cada vez mais a elaboração de visões integrativas
Este artigo procurou abordar os novos estudos da inteligência levando em consideração os estudos
sobre as medidas de inteligência e os estudos que da psicologia cognitiva e da neurociência.
buscam descobrir novas formas de inteligência. Reforçando o que foi dito no início os avanços
Pode-se concluir que para o avanço da área é preci- que a avaliação psicológica traz para a psicologia
so uma atualização no entendimento teórico sobre a não se restringem à instrumentalização da observa-
inteligência levando em consideração o modelo CHC ção mas também se estendem às teorias psicológi-
para que se saiba exatamente que capacidade cas sobre a personalidade. Isso faz a avaliação psi-
cognitiva cada instrumento disponível avalia. É pre- cológica muito mais importante do que se considera
ciso investir no desenvolvimento de novas provas habitualmente.

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