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e-ISSN: 2526-8848

LIBERA v. 3, n. 2, p. 203-218, jul.-dez. 2017


http://dx.doi.org/10.15448/2526-8848.2017.2.27981

Fragmentos de um discurso criativo:


notas para uma metodologia de composição da história
A creative’s discourse fragments: notes for a methodology of story composition

Marcelo Maldonado Cruz*


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

Resumo: Resultado de uma antiga necessidade de efabulação, o processo de contar


uma história requer do criador uma capacidade específica de reunir elementos
da vivência humana e dar-lhes um significado maior através da dramatização. No
entanto, uma história não surge na mente de um autor em sua forma acabada, mas,
sim, aos pedaços, em fragmentos. Tal como o enamorado, no discurso amoroso
de Roland Barthes, às voltas com o objeto de sua paixão, o autor promove uma
intensa investigação acerca dos elementos constitutivos da história que quer contar,
valendo-se muitas vezes de uma estrutura mítica para coordená-los. Este ensaio
reúne algumas anotações para uma metodologia do processo criativo, desde
a concepção da ideia original até a fase de estruturação da história, através da
análise de alguns princípios básicos e conceitos norteadores como “lei do conflito”,
“princípio da progressão”, “forças do antagonismo”, “jornada do herói”, entre
outros.
Palavras-chave: escrita criativa; processo de criação; mito; imaginário.

Abstract: As a result of an ancient human need, the process of telling a story


requires a specific ability to gather elements of human experience and give them
a greater significance through the drama. However, a story does not arise in the
mind of an author in its finished form, but in pieces or fragments. As in “A lover’s
discourse: fragments”, by Roland Barthes, seduced by the object of his passion,
the author promotes an intense investigation into the constituent elements of the
story he wants to tell, often using a mythic structure to coordinate them. This essay
presents notes for a methodology of the creative process, from the conception of the
original idea to the structuring phase of the story, by analyzing some basic principles
and guiding concepts such as “conflict law”, “progression principle”, “forces of
antagonism”, “hero’s journey”, among others.
Keywords: creative writing; creation process; myth; imaginary.

* Mestre em Letras (Escrita Criativa), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista CNPq.
<marcelo.cruz@acad.pucrs.br>.

Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional,
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação
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À guisa de manual de leitura para Pensar o processo criativo significa,


o bastante incomum volume intitulado para o próprio criador, reconhecer em
Fragmentos de um discurso amoroso, à suas figuras as múltiplas inferências e refe-
época de sua publicação, Roland Barthes rências responsáveis pela sua formulação
(1994, p. 1) afirmava a necessidade de e, com isso, recapitular (ou recapturar) o
se devolver o discurso amoroso à sua instante em que essas lufadas adquiriram
característica de enunciação, pondo em um espírito gregário, um sentido para
cena, isto é, no lugar de fala, o próprio ser além de uma abstração e rumo a uma
amoroso, o apaixonado, cujo debater-se representação. Não é partir da obra em
com a linguagem para tratar de seu tema si para decupá-la em unidades estru-
(o ser amado) seria empreendido em turais e compreender o seu funciona-
constantes idas e vindas, “démarches”, mento. Significa retroceder ao instante
“intrigas”. da explosão das figuras (em imagens, em
O criador, por sua vez, qual o ena- ideias) e de sua vibração em forma de
morado que corre para todo lado em sua movimento para proceder a uma reflexão
cabeça, sempre diligente, tecendo intrigas acerca de suas possibilidades signifi-
contra si próprio, exerce o discurso criativo cativas.
através de “lufadas de linguagem, que lhe
vêm no decorrer de circunstâncias ínfimas, Muitos artistas descrevem a criação
como um percurso do caos ao cos-
aleatórias” (BARTHES, 1994, p. 1). Essas
mos. Um acúmulo de ideias, planos
lufadas – ou frações de discurso, a que e possibilidades que vão sendo se-
Barthes vai denominar figuras – ora têm lecionados e combinados. As combi-
o poder de impulsionar a embarcação nações são, por sua vez, testadas e assim
capitaneada por ele para distâncias além, opções são feitas e um objeto com
organização própria é construído desse
jamais imaginadas ou apenas vislumbradas, anseio por uma forma de organização.
ora sequer o auxiliam a romper a calmaria (SALLES, 2013, p. 41).
de águas estagnadas. Barthes confere
ao termo figura um sentido que foge do A esse respeito cabe, aqui, transcrever
entendimento retórico e recai numa con- uma reflexão rabiscada num caderno de
cepção ginástica ou coreográfica. notas, feita em 31 de janeiro de 2015: A
história é uma massa. Ela surge fragmentada,
... enfim, no sentido grego: σχηµα, em pedaços, sem rumo, à deriva no tempo
não é o “esquema”; é, de uma maneira e espaço, sem grandes delineamentos.
muito mais viva, o gesto do corpo Como os aspectos técnicos da escritura
captado na ação, e não contemplado
(vistos como uma receita de bolo?) agregam
no repouso: o corpo dos atletas, dos
oradores, das estátuas: aquilo que é os pedaços soltos da história e criam um
possível imobilizar do corpo tensionado. sentido maior? Como, por exemplo, delinear
Assim é o enamorado apressado por conflitos filosóficos/ontológicos importantes
suas figuras: ele se debate num esporte (dor / solidão / paixão / loucura etc) através
meio louco, se desgasta como o atleta;
da manipulação dos fragmentos da história
fraseia como o orador; é captado,
siderado num desempenho, como uma dentro das técnicas de escritura e demais
estátua. A figura, é o enamorado em processos de forma a moldar um todo coeso
ação. (BARTHES, 1994, p. 1). e coerente?

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Com muito mais questões do que estudioso dos aspectos do processo criativo:
revelações, tanto quanto o próprio mo- a de tentar transpor a solidão na qual se
vimento criador, o pensar acerca do desenvolve o ato criador e percorrer os seus
processo criativo constitui-se num evento múltiplos meandros, os caminhos repletos
solitário. Tanto mais se comparado à démarches e intrigas que constituem seus
solidão de que nos fala Barthes a respeito processos experimentais e que conduzem
do discurso amoroso. Embora praticado por à concretização de uma determinada obra.
milhares de criadores que, nas tentativas de Ora, isso só é possível quando o criador
composição de suas obras, enfrentam idas e fornece rastros, pistas, documentos a partir
vindas constantes, por muito tempo não foi dos quais se pode refazer as idas e vindas e,
sustentado pelas linguagens que endossam por conseguinte, mapear as escolhas que o
o aparato de poder do conhecimento e conduziram da concepção da ideia à obra
seu ingresso no ambiente acadêmico como (supostamente) terminada.
objeto de estudo deu-se apenas a partir de Aqui, no entanto, tal como pretende
uma conjuntura de fatores que propiciou o Barthes em seu livro-ensaio (e livre ensaio,
surgimento da crítica genética, em fins dos pois), trata-se de se devolver à cena o
anos 1960, na França. próprio articulante do discurso criativo a fim
Com um rétard de cerca de 20 anos, de que se torne o primeiro a apontar e/ou
a crítica genética chegou ao Brasil, primei- descrever as diversas etapas percorridas no
ramente via Universidade de São Paulo, em processo de transformação deste discurso
meados dos anos 1980, e teve seus limites em obra. Para tal, a forma (e não fórmula)
de atuação estendidos com a criação do adotada foi semelhante: em lufadas de
Centro de Estudos de Crítica Genética em linguagem, figuras, cenas, verbetes, enfim,
1993, na Pontifícia Universidade Católica fragmentos, tento recuperar o prazer e o
de São Paulo. Debruçados sobre os encantamento de lidar com um universo
“documentos de processo” (manuscritos, dentro do qual orbitam serem tão distintos
diários, cartas, rascunhos, cadernos de quanto diversos, aos quais procura-se dar
notas etc), os pesquisadores passaram a vida.
compreender melhor os mecanismos de
produção de uma obra artística.
1 Começo com um formigamento
Se a obra de arte é tomada sob a
perspectiva do processo, que envolve IDEIA. Momento de lucidez, em meio
sua construção, está implícito já na ao caótico fluxo contínuo do pensamento,
própria ideia de documento o conceito em que algo se adensa, destaca-se e,
de trabalho. Os vestígios podem variar dotado de animação própria, reclama para
de materialidade, mas sempre estarão
si ações e desdobramentos.
cumprindo o papel indiciador desse
processo e, como consequência, do
trabalho artístico. (SALLES, 2013, p. 25). 1.1 Isak Dinesen costumava dizer:
“Começo com um formigamento, uma
É possível, neste ponto, fazer uma certa intuição acerca da história que vou
analogia entre a tarefa executada pelo escrever. Depois vêm as personagens, e
enunciador do discurso amoroso proposto elas assumem o controle, fazem a história”
por Barthes e aquela a que se pretende o (DINESEN, 1976 apud KOCH, 2008, p. 3).

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Vladimir Nabokov (citado por KOCH, justificar o atraso ao trabalho (ou para o
2008, p. 3) por sua vez, sugeria algo como orientador, com vistas a estender o prazo
uma pulsação. Ou um vislumbre. Isabel para entrega da dissertação).
Allende localiza a história “num lugar muito
sombrio e secreto ao qual ainda não tenho 2.1 No prefácio a Roderick Hudson, Henry
acesso. É algo que venho sentindo, mas que James assinala que, após reconhecida a
não tem forma, nem nome, nem som, nem ideia do romance, sobreveio-lhe o temor
voz” (ALLENDE, 1983 apud KOCH, 2008, dos desenvolvimentos: “Estes são da
p. 5, 6). Muito semelhante à reflexão que própria essência do processo do romancista
anotei em meu caderno: A história é uma e é fundamentalmente por meio deles
massa. Ela surge fragmentada, em pedaços, que a ideia toma forma e vive, ainda que
sem rumo, à deriva no tempo e espaço, sem imponham ao artista, graças ao princípio
grandes delineamentos. da continuidade que os conduz, uma
ansiedade proporcional” (JAMES, 2003,
1.2 Big Bang e Geleia Geral. Numa das p. 115). O desenvolvimento de uma ideia
primeiras aulas do curso de mestrado em em história implica na tessitura de uma
Escrita Criativa, na PUCRS, o professor intrincada rede de relações cujo principal
Luiz Antonio de Assis Brasil aludiu a esses (e refinado) problema para o artista,
termos para tornar reconhecíveis as duas segundo James, consiste em “traçar, por
principais manifestações de uma ideia, uma geometria própria, o círculo dentro do
numa mente criadora. Revejo as minhas qual elas parecem com felicidade fazê-lo”
anotações e lá encontro: Big Bang – (JAMES, 2003, p. 116).
Explosão – singularidade pela qual a ideia
se dá – surge originalmente difusa, mas 2.2 Recorro novamente às minhas
guarda uma precisão. Não posso me furtar anotações de aula e verifico que lá está,
a identificar essa definição com o que em outras palavras, o mesmíssimo dilema:
propõe Nabokov a respeito da pulsação ou o escritor cria um micromundo, da sua
do lampejo. A continuidade das anotações gênese ao apocalipse. No continuum da
de aula me traz a segunda manifestação: vida, dentro desse universo criado, cabe-
Há uma névoa, uma “geleia geral” que lhe selecionar dois pontos que assinalam
sugere um algo a ser escrito, que se organiza a partida e a chegada de sua história, que
e se encaminha para uma sistematização. se estabelecem num todo organizado por
Desta vez reconheço a similaridade com as relações de causa e efeito – e aqui cabe
reflexões de Isabel Allende e com minhas uma distinção feita pelo professor: mesmo
próprias considerações acerca da história. numa história fragmentada, o que se
fragmenta é a forma e não o conteúdo.
Os fragmentos são sempre organizados de
2 O gato no tapete do cachorro
maneira a formar um todo coerente (assim
HISTÓRIA. Aquela mágica que se como neste ensaio).
realizava em volta do fogo para que os
homens da pré-história vencessem o medo 2.3 O trabalho de retomada da origem,
da grande noite. Aquilo que, hoje em dia, do momento em que a ideia – imersa
se costuma contar para o chefe a fim de na geleia ou revelada pelo lampejo –

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tomou um molde distinto, é o que vai a consciência do conflito. E que, numa


dar ao criador o sentido da história e, história, vamos denominar personagem.
consequentemente, a primeira pista para
a sistematização dessa história num todo
3 Character is plot
orgânico. Essa origem determinará que tipo
de estrutura vai dar forma à história, como PERSONAGEM. Núcleo da unidade de
ela se organizará, porque deflagra, em seu conflito. Indivíduo existente em estado de
cerne, uma unidade de conflito. drama. Em cem por cento das vezes, é a
respeito de quem as crianças interrompem
2.4 Stephen Koch (2008) argumenta que a narração de uma história para perguntar
a chave para qualquer história é o conflito. se é bom ou mau.
“O gato deitou no tapete”, como diz [John]
Le Carré, “não é o começo de uma história, 3.1. De fato, uma vez que só pode existir
mas ‘O gato deitou no tapete do cachorro’, em estado de drama (no sentido dado pela
sim” (KOCH, 2008, p. 98). Robert McKee origem grega, ação), a personagem é a
(2006) estabelece uma Lei do Conflito e responsável por mover adiante a história,
lhe confere uma importância que vai além acionar a rede de relações de causa e efeito
do princípio estético, denominando-a a sobre a qual se estrutura o continuum da
própria alma da história. vida, dentro do micromundo fabricado
pelo criador. Dotada de um desejo, de
A estória é uma metáfora para a
uma vontade, a personagem é o ser sobre
vida, e viver é estar num conflito
aparentemente perpétuo. Como Jean- o qual recai a consciência da escassez, de
Paul Sartre expressou, a essência da que nos fala Sartre, o que faz com que, a
realidade é a escassez, uma falta eterna partir dessa percepção, aja no sentido de
e universal. Nada é suficiente nesse
buscar o que lhe falta.
mundo. Não há comida o suficiente,
amor o suficiente, justiça o suficiente,
e nunca tempo o suficiente. Tempo, 3.2 Renata Pallottini (2013) retoma o
como Heidegger observou, é a categoria conceito hegeliano de personagem:
básica da existência. Vivemos sob sua
sombra, que sempre está encolhendo, Ora, é essa pessoa moral, em ação,
e se conseguirmos alcançar qualquer em última análise, a personagem para
coisa em nossa breve existência que nos Hegel; em ação porque dinâmica,
deixe morrer sem o sentimento de que porque fazendo que se cumpram, no
desperdiçamos nosso tempo, teremos drama, sua vontade livre, sua escolha,
de entrar de cabeça em conflitos com as suas opções, seus sentimentos e suas
forças da escassez que negam os nossos paixões; pessoa moral que é o ser hu-
desejos. (MCKEE, 2006, p. 203). mano em sua plenitude, em seu relacio-
namento com os outros homens e com o
2.5 Ainda sobre Sartre, revejo em mundo, com suas crenças, convicções,
ética, princípios, mas também falhas e
anotação de aula o seguinte: O drama do dúvidas. (PALLOTTINI, 2013, p. 43).
ser humano contingente e o quanto ele
se reconhece em si mesmo – É através 3.3 Minhas anotações de sala de aula
da consciência humana que a matéria se complementam: As contradições lógicas
reconhece e, como tal, sabe-se finita. Um fazem parte do universo da personagem
ser sobre o qual, assim como na vida, recai para torná-la convincente. [A personagem

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deve ser] Dotada de uma vontade, de uma interior do seu personagem começa
intenção. [A personagem] Deve simular desde o nascimento até o momento em
que o filme começa. É um processo que
uma presença consistente e que dê ao forma o personagem. A vida exterior
leitor a impressão de que tudo decorre do do seu personagem acontece desde
fato dela existir. Essas notas encontram eco o momento em que o filme começa
nas reflexões de Robert McKee referentes à até a conclusão da história. É um pro-
cesso que revela o personagem. (FIELD,
função da personagem, que, segundo ele...
2001, p. 19).
(...) é trazer à estória qualidades de
caracterização necessárias para fazer 3.6 Encontrar a voz da personagem. Esse
escolhas convincentes. De forma foi um dos tópicos de uma das aulas do
simples, um personagem deve ser
Assis, que gerou 7 etapas/questões bási-
crível: jovem o suficiente ou velho o
suficiente, forte ou fraco, mundano cas para auxiliar nessa tarefa:
ou ingênuo, educado ou ignorante, a) Listar 3 ou 4 coisas que a persona-
generoso ou egoísta, esperto ou bobo, gem mais valoriza;
nas proporções certas. A combinação de b) Listar 3 ou 4 coisas que a persona-
qualidades deve permitir que o público
acredito que o personagem poderia gem mais teme;
agir, e agiria, de maneira que age nas c) O que a personagem considera co-
tela. (MCKEE, 2006, p. 110). mo a melhor coisa que pode lhe
acontecer?
3.4 Pallottini, por sua vez, arremata: “Os
d) O que a personagem considera co-
acontecimentos do drama, diz o filósofo,
mo a melhor qualidade a ser encon-
não devem parecer fruto de fatos exteriores,
trada nas outras pessoas?
mas sim da vontade das personagens. É o
e) Em quais características a persona-
seu caráter, são os fins que esse caráter
gem é conservadora?
persegue que dão sentido à ação, que a
f) Em quais características a persona-
motivam” (PALLOTTINI, 2013, p. 43).
gem é progressista?
O melhor modo de desenvolver uma g) Como a personagem é vista pelas
personagem é, sem dúvida, contar outras pessoas?
a história dela. E o melhor modo de
desenvolver uma história é, com toda a
certeza, contar o que suas personagens 4 Afinal de contas, o que diabos
fazem. Afinal, as histórias são o que as você quer?
personagens fazem, e as personagens
são o que elas fazem nas histórias. DESEJO. Quero que todos os dias do
Diferentemente dos seres humanos, ano / todos os dias da vida / de meia em
as personagens não têm vida fora das
meia hora / de 5 em 5 minutos / me digas:
páginas. (KOCH, 2008, p. 111).
Eu te amo.1
3.5 Syd Field (2001), em seu Manual do
4.1 É necessária uma pausa para acom-
roteiro, ensina:
panhar o desenvolvimento da ideia até o
Primeiro, estabeleça o personagem presente estágio:
principal. Depois separe os componen-
ANDRADE, Carlos Drummond de. Quero. In: ______. As
1
tes da vida dele/dela em duas catego- impurezas do branco. São Paulo: Companhia das Letras,
rias básicas: interior e exterior. A vida 2012. p. 44.

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a) Surgimento da ideia: em sua forma ponham em movimento, em busca de seus


embrionária, tem-se a constituição objetivos. Segundo McKee, “na busca de
de um núcleo dramático através qualquer desejo, em qualquer momento
da sugestão de uma cena dada da estória, [a personagem] sempre tomará
por um processo de indução (Big a ação mínima, a mais conservativa no seu
Bang / Geleia geral), e, portanto, ponto de vista” (MCKEE, 2006, p. 142,
conotativo. grifo do autor). A ela cabe a decisão
b) Esse núcleo é composto por uma que, de acordo com o seu modo de agir
personagem, seu conflito e meta e pensar, lhe permitirá obter aquilo que
iniciais, matérias primas a partir das deseja da maneira mais eficiente e sob o
quais o criador será capaz de construir menor dispêndio de energia. Porém, “em
um universo ficcional distinto, ao pro- vez disso, o efeito de sua ação é provocar
ceder de acordo com um método de as forças do antagonismo. O mundo do
dedução, ou, ainda, denotativo. personagem reage diferente do esperado,
c) Esse procedimento é o responsável ou mais poderosamente do que o esperado
pelo conjunto de perguntas e hipó- ou ambos” (MCKEE, 2006, p. 143).
teses que norteou os dados acerca
da personalidade, das motivações 4.4 Há sempre uma brecha que se
psicológicas e antecedentes biográ- abre entre as atitudes que as personagens
ficos da personagem principal. As tomam para conseguir aquilo que querem
respostas a essas questões também e a resposta a essas ações. Os desejos da
serviram de base para moldar a personagem tornam-se tão mais complexos
rede de relações estabelecidas em (e por vezes desconhecidos para si mesma)
decorrência da interação dela com quanto mais profundo for o entrelaçamento
as demais personagens. entre as suas vontades e as das personagens
d) A expansão do nível de complexidade com as quais ela interage. Muito mais do
dessa rede de relações contribui que coincidências, esse entrelaçamento
para a construção do sentido da vai provocar divergências que estabelecem
história e de seus desdobramentos. uma tensão crescente nessas relações
4.2 A partir da personagem principal, e, consequentemente, aprofundam os
do seu conflito e meta iniciais, as de- conflitos de cada uma das partes envolvidas.
mais personagens vão surgindo e são de-
senvolvidas segundo o mesmo processo: 4.5 Segundo Robert McKee (2006,
enquanto organismos autônomos, dotados p. 144), existem três níveis de manifestação
de antecedentes biográficos, motivações do conflito:
psicológicas, contradições lógicas, vontades a) Interno – deflagrado pelo fluxo de
e metas que devem se entrelaçar às do consciência e pelas questões com
protagonista para gerar as tensões e conflitos as quais a personagem se debate
imprescindíveis à progressão dramática da em seu íntimo, com as emoções e o
história. próprio corpo;
b) Pessoal – deflagrado pelas relações
4.3 As vontades, os desejos são o com- diretas com as demais personagens
bustível vital para que as personagens se de um dado universo, com as quais

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é preciso uma negociação para se dificuldade para o cumprimento da tarefa.


que se resolvam diferenças (família, Uma brecha se abre. A personagem terá,
amantes, amigos); então, de empreender uma nova ação, um
c) Extrapessoal – deflagrado pelas di- pouco mais arriscada do que a anterior,
ficuldades causadas por um am- para conseguir alcançar a sua meta. É o
biente físico hostil e inóspito ou pela princípio da progressão em ação.
impessoalidade das instituições.
4.8 Tramar as urdiduras entre esses
4.6 Da mesma forma, os desejos e níveis de conflitos de uma personagem
vontades das personagens se organizam e relacioná-las com os correspondentes
conforme os níveis de conflito que elas existentes nas demais personagens é o que
experimentam. Dadas as múltiplas e enriquece as possibilidades de significação
complexas formas de organização da e, portanto, de leitura de uma obra. É o que
natureza e da mente humanas, ao lidar vai gerar cenas de grande força dramática,
com os conflitos em seus diferentes níveis, capazes de mover adiante a história.
as personagens se equivocam quanto aos
próprios desejos e objetivos. Não raro
5 O esqueleto no armário
tomam atitudes que as afastam daquilo que
julgam ser a sua meta principal. É muito ESTRUTURA. Conjunto formado,
comum que vontades e desejos não se natural ou artificialmente, pela reunião
configurem com muita nitidez dentro das de partes ou elementos, em determinada
percepções das personagens, o que causa ordem ou organização. A minha dificuldade
hesitação, dúvidas e o medo de agir. Por em terminar de montar as 5 mil peças
outras vezes, aquilo que a personagem daquele quebra-cabeças de uma paisagem
quer não é exatamente do que ela precisa dos alpes suíços.
para seguir adiante, transpor um obstáculo
ou amadurecer. 5.1 Conflitos geram desejos / Desejos ge-
ram ações / Ações geram consequências /
4.7 Todas essas falhas de percepção, Consequências geram mudanças / Mu-
de comunicação e de conhecimento danças geram novos conflitos / Novos
são importantes no desenvolvimento da conflitos geram novos desejos (ou o reforço
progressão de uma história, pois que geram do querer original) / Novos desejos geram
tensões entre as personagens e provocam novas ações... ad aeternum.
as forças do antagonismo, como definiu
Robert McKee (2006, p. 146). Há sempre 5.2 Este é o ciclo da história. Os eventos
um acontecimento, um incidente (de são gerados por uma força de natureza
ordem interna, pessoal ou extra pessoal) conflituosa, que, por sua vez, exige que
que provoca a personagem a buscar aquilo uma ou mais atitudes sejam tomadas
do que ela sente falta para restaurar o para solucioná-la. A cada novo evento,
equilíbrio do seu cotidiano. Ao tentar uma uma ação é requerida para resolver uma
ação conservativa, a personagem aciona as brecha deixada pela ação anterior. Esses
forças do antagonismo, que, por sua vez, eventos, selecionados e compostos “em
respondem de forma a aumentar o grau de uma sequência estratégica para estimular

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emoções específicas, e para expressar um montar a história de acordo com um todo


ponto de vista específico” (MCKEE, 2006, organizado por relações de causa e efeito,
p. 45), formam a estrutura da história. dentro do continuum da vida do mundo
criado, da gênese ao apocalipse, é a hora
A função da ESTRUTURA é criar de transformar em ação dramática as
pressões progressivamente construídas
vontades expressas pelas personagens.
que forcem o personagem a enfrentar
dilemas cada vez mais difíceis, fazendo
escolhas de risco e tomando atitudes 5.5 Que elementos são esses? Per-
cada vez mais difíceis, gradualmente sonagens com vontades e metas; um
revelando a sua verdadeira natureza, ponto de partida para a trama e alguma
até mesmo chegando ao seu eu
intuição acerca de como deve terminar;
inconsciente. (MCKEE, 2006, p. 110,
grifo do autor). o entrelaçamento das relações entre as
personagens de modo a aprofundar os
5.3 Os eventos são expressos pelo que níveis de conflito e, com isso, gerar tensão
acontece na história, que, por conseguinte, o bastante para mover a história adiante,
é representado numa cena. “A cena é o numa jornada particular.
elemento isolado mais importante de seu
roteiro. É onde algo acontece – onde algo 6 A jornada
específico acontece. É uma unidade de
ação – e o lugar em que você conta a sua ARQUÉTIPO. Padrão, exemplar, mo-
história. (...) O propósito de uma cena é delo, protótipo. Termo utilizado pelos
mover a história adiante (FIELD, 2001, filósofos neoplatônicos (Plotino, por
p. 112). A noção dinâmica da cena é dada exemplo) para designar as ideias como
pela intensidade com que os seus elementos modelos de todas as coisas existentes. Na
causam uma mudança significativa nas Psicologia Analítica, corresponde à forma
vidas das personagens, em virtude de suas imaterial à qual os fenômenos psíquicos
escolhas naquele determinado instante. tendem a se moldar.
Essa intensidade também deve se refletir
nos seus efeitos sobre o público: 6.1 Contar uma história é lidar com a
antiquíssima necessidade de efabulação do
Mas as cenas não ficam estáticas; homem. É dar continuidade ao ancestral
a intensidade dos sentimentos do
espectador tem de aumentar e con-
ofício de recolher toda a sabedoria vital
centrar-se. Essa ideia de uma ação de uma vivência profunda e moldá-la à
crescente envolvendo cada vez mais forma de exemplos capazes de causar uma
esperança e mais medo é a essência forte impressão e, ao mesmo tempo, de
mesmo daquilo que mantém o público ser assimilados e passados adiante com
envolvido durante a história. (HOWARD
e MABLEY, 1996, p. 109, 110). facilidade.

5.4 A criação das cenas segue a ne- 6.2 Os mitos, por sua vez, são uma
cessidade de se estabelecer os elos entre espécie de repositório primordial dessa
as personagens por meio de suas ações. vivência profunda, no qual jazem as
No momento em que o criador tem em experiências primordiais do homem em
mãos os principais elementos de modo a sua tentativa primeira de se organizar

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enquanto animal social para garantir a 6.4 A linguagem vai se tornar a instância
sobrevivência do grupo, ao mesmo tempo organizadora das experiências sensoriais
em que nele suscita a consciência de seu desse homem primitivo em sua rede
lugar no mundo e a necessidade de dar de interações com o mundo físico,
sentido aos fenômenos naturais. codificando-as em função de uma realidade
fundadora e capaz de se perpetuar em sua
Porque se dirige à essência das coisas
exemplaridade. Ora, isso só é possível na
e desperta no homem o sentimento
de unidade com o universo, o mito é medida em que a linguagem inaugura a
a palavra que dá sentido ao existir e, forma narrativa, como, de fato, elucida
assim, aproxima-se do sagrado. Ao Durand: “Entenderemos por mito um
atingir a essencialidade da existência, sistema dinâmico de símbolos, arquéti-
o dizer mítico propicia a comunhão do
homem com o mundo, coloca-o em
pos e esquemas, sistema dinâmico que,
contato com o Ser ou deixa-o disponível sob o impulso de um esquema, tende a
a tal contato. Nessa perspectiva, a lin- compor-se em narrativa” (DURAND, 2002,
guagem atinge a sua dimensão essencial, p. 62, 63). E Eliade complementa:
conforme Heidegger, que consiste em
sua capacidade de revelar a verdade do O mito conta uma história sagrada;
Ser. (MELLO, 2002, p. 31, 32). ele relata um acontecimento ocorrido
no tempo primordial, o tempo
6.3 O filósofo, sociólogo e antropólogo fabuloso do "princípio". Em outros
francês Gilbert Durand (2002), influencia- termos, o mito narra como, graças às
do sobremaneira pela obra de Gaston façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma
Bachelard, filósofo da fenomenologia da realidade passou a existir, seja uma
realidade total, o Cosmo, ou apenas
imaginação que valorizava “a potência um fragmento: uma ilha, uma espécie
poética da imagem, da palavra que emerge vegetal, um comportamento humano,
do inconsciente coletivo, constituindo-se uma instituição. É sempre, portanto, a
ao mesmo tempo como pensamento e narrativa de uma "criação": ele relata de
que modo algo foi produzido e começou
linguagem” (MELLO, 2002, p. 13), em-
a ser. (...). Os mitos revelam, portanto,
preendeu uma profunda investigação a sua atividade criadora e desvendam
respeito da imaginação simbólica à luz da a sacralidade (ou simplesmente a
antropologia, a partir da qual os símbolos "sobrenaturalidade") de suas obras. Em
correspondem à “incessante troca que suma, os mitos descrevem as diversas,
e algumas vezes dramáticas, irrupções
existe no nível do imaginário entre as
do sagrado (ou do "sobrenatural") no
pulsões subjetivas que emanam do meio Mundo. É essa irrupção do sagrado
cósmico e social” (DURAND, 2002, p. 41). que realmente fundamenta o Mundo
Para Durand, o processo de simbolização e o converte no que é hoje. E mais: é
é importante no tocante à relação do em razão das intervenções dos Entes
Sobrenaturais que o homem é o que é
homem com questões fundamentais como hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.
a morte, a temporalidade, cabendo ao (ELIADE, 1972, p. 9).
símbolo o poder de figurar essas noções
de transcendência numa representação 6.5 Para fazer sentido em sua figuração
concreta, dando materialidade a um mais significativa, essa narrativa estrutura-
sentido por vezes secreto, misterioso e/ou se numa lógica na qual a realidade é
abstrato. representada a partir de imagens nascidas

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no seio da coletividade e que encerram 6.7 David Sheppard (2009) acrescenta:


em si características de uma determinada
These archetypal images come and go
experiência primordial: maternidade,
of their own will and are transcendent
nascimento, morte etc. São os arquétipos. to the world of sense. Archetypes
“No mito, o molde arquetípico manifesta- are viewed as the primary forms that
se em imagens simbólicas, provenientes da govern the psyche, and thus, archetypal
psique coletiva” (MELLO, 2002, p. 37). psychology is linked with culture and
the imagination, rather than the medical
and empirical psychologies of Freud and
6.6 Carl Gustav Jung foi o principal Jung. (…) This is of crucial importance
articulador do conceito de inconsciente to the novelsmith because to glimpse an
coletivo, do qual o arquétipo, enquanto imagined reality, which is exactly what
he does during the creation of stories that
unidade básica da psique humana (e,
are all actually myths, requires methods
portanto, irredutível), faz parte e funciona and perceptual faculties different from
como uma espécie de modelo, padrão das those used to see the sensual world.
experiências existenciais. Segundo Ángel The writer must become sensitive to
Zapata: the imagined realities emanating from
the collective unconscious and develop
the skills to handle them. (SHEPPARD,
De acuerdo con Jung, nuestro pen-
2009, p. 159, 160).
samiento dirigido está orientado hacia
fuera, hacia los objetos y el mundo
exterior. Se desarrolla por medio de 6.8 O norte-americano Joseph Camp-
las palabras, y tiene un carácter princi- bell, um aficionado pelas questões rela-
palmente social (de hecho, cuando tivas às religiões e aos mitos, após anos
empleamos este tipo de pensamiento,
imerso nos estudos das culturas nativas
hablamos con nosotros mismos como
le hablaríamos a otra persona). El americanas, dedicou-se às teorias de Jung
pensamiento dirigido, pues, copia la e, inspirado por elas, escreveu O herói de
realidad, sus leyes, sus relaciones, y mil faces, obra em que analisa o mito do
tiene como fin actuar sobre ella. (…) herói e o articula em termos narrativos
Pero al lado de esta actividad mental
volcada hacia las cosas, hacia lo real, de acordo com a jornada que ele realiza
Jung detecta otra clase de pensamiento em prol de seus objetivos, através de
diferente: el pensamiento fantasea- diversos e bem definidos estágios. Outros
dor. Orientado hacia dentro, hacia las arquétipos, reconhecidos por Campbell
tendencias y los deseos subjetivos, el
(2005), juntam-se ao herói nessa jornada:
pensamiento fantaseador no maneja
tanto conceptos y palabras, como puras mentores (ou sábios), arautos, aliados,
imágenes. Funciona con contenidos pícaros (ou bufões), vilões ou sombras
inconscientes y motivos caprichosos e entrelaçam seus próprios destinos aos
inventados. Se desarrolla en nosotros de dele, cada qual buscando, igualmente, um
una manera involuntaria y no requiere
esfuerzo alguno. No tiene como función objetivo próprio.
adaptarse a la realidad ni actuar sobre ella,
sino liberar deseos, fantasías, invencio- 6.9 Christopher Vogler (2015) adaptou
nes de todo tipo. Tampoco nos propor- as ideias de Campbell ao que chamou
ciona una imagen objetiva de las cosas
a Jornada do escritor: um guia de ele-
– como el pensamiento dirigido –; y no
obedece a la lógica, sino a la mera asocia- mentos formadores da narrativa para
ción de ideas. (ZAPATA, 1997, p. 204). escritores.

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“O conceito de arquétipo é uma fer- a) Herói: aquele que se dispõe a


ramenta indispensável para entender sacrificar-se para suprir as necessi-
o objetivo e a função dos persona-
dades de outrem ou atingir um
gens em uma história. A compreensão
do arquétipo que um personagem objetivo específico. Em termos
específico expressa pode ajudar a de- psicológicos, é o EU, o ego, e re-
terminar se o personagem está fazendo presenta a busca da própria iden-
sua parte a contento na história. Os tidade. Sua função dramática é a de
arquétipos são parte da linguagem uni-
versal da narrativa, e um domínio de sua
portar o conflito da história e, com
energia é tão essencial para o escritor isso, mover adiante a narrativa. Com
como respirar. (VOGLER, 2015, p. 62). isso, ele é aquele capaz de captar
a simpatia do leitor ou do público,
6.10 A principal percepção, nesse pro- que passa a torcer para o seu
cesso, consiste em não considerar os sucesso. Outra função do herói é a
arquétipos como papéis rígidos a serem de crescimento (amadurecimento).
desempenhados pelas personagens da Em sua jornada, os heróis agem,
narrativa, mas como funções que eles lidam com a morte, expõem-se
ocupam por um determinado tempo com a perigos, têm defeitos e falhas,
a finalidade de alcançar um determinado frequentemente recusam à primeira
objetivo ou efeito. Ou, ainda, como facetas vista a missão dada, podem ser
de uma mesma personalidade. Afinal de gregários ou solitários e até mesmo
contas, do ponto de vista de um vilão, ele anti-heroicos.
é o herói de sua própria jornada. b) Mentor (velho ou velha sábios):
aquele serve de orientador ou refe-
Olhar para os arquétipos dessa forma, rência para o herói. Geralmente
como funções flexíveis de caráter em
oferece presentes, amuletos ou
vez de personagens rígidos, pode liberar
sua arte da narrativa. Essa visão explica conselhos para auxiliá-lo em sua
como um personagem numa história tarefa. Sua função psicológica é a
pode manifestar as qualidades de mais de representar o self, simbolizando
de um arquétipo. Os arquétipos podem um espelho daquilo que o herói
ser pensados como máscaras, usadas
pode atingir se persistir na jornada.
pelos personagens temporariamente,
quando a história precisa avançar Geralmente confunde-se com as
(VOGLER, 2015, p. 62, 63). imagens paterna e materna. Sua
função dramática é a do ensina-
6.11 Em seu livro, Vogler descreve as mento, preparação ou treinamento
características gerais dos principais arqué- para a jornada.
tipos que empreendem a jornada do herói c) Guardião de limiar: representa um
e adapta para o número de 12 os diversos obstáculo pelo qual o herói precisa
estágios especificados anteriormente por passar para avançar na jornada.
Campbell. Pode ser físico ou imaterial, pode
representar pessoas, fenômenos
6.12 Os principais arquétipos (e suas naturais ou fobias internas. Por isso,
características resumidas) da jornada do sua função psicológica é comumente
herói são: atrelada às neuroses, enquanto sua

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função dramática é a de testar a enigma, sair de uma situação difícil


vontade do herói. ou mesmo vencer as forças do
d) Arauto: aquele que anuncia os ven- antagonismo.
tos da mudança. Pode, da mesma h) Pícaro: o alívio cômico. A energia
maneira, tanto ser uma pessoa travessa, alegre, o momento de
quanto um mero acontecimento distensão. Sua função psicológica
capaz de comunicar ao herói que de reduzir a seriedade, chamar a
definitivamente chegou a hora de atenção para o risível, o absurdo,
agir. Por esse motivo, sua função apontar a tolice e hipocrisia resi-
psicológica é a de um chamado à dentes nas demais personagens e
mudança, ao passo que sua função em determinadas situações.
dramática é a de motivação à ação.
e) Camaleão: aquele que se esconde 6.13 Quanto aos estágios da jornada,
sob um manto de mistério e Vogler listou 12:
incerteza. Em geral, uma pessoa ou 1) Mundo comum: em que se apre-
uma circunstância na qual o herói senta o herói em seu “mundo em
não se sente seguro para confiar e equilíbrio”, onde a necessidade
que pode mudar de configuração da ação ainda não se faz presente,
a qualquer instante. A função do mas já se pode pressentir o que
camaleão está ligada aos conceitos está por vir. É onde, da mesma
de animus e anima, de Jung, que forma, as questões com as quais o
se referem à presença de caracterís- herói vai lidar já aparecem ainda
ticas masculinas e femininas no in- que veladas, à espera de que algo
consciente das personagens. A fun- ou um acontecimento específico
ção dramática do camaleão é a de as desencadeie. Geralmente é
trazer dúvida e incerteza à narrativa. no ambiente do mundo comum
f) Sombra: muitas vezes identificada que surgem detalhes a respeito da
como o vilão contra o qual o herói história pregressa do herói.
precisa lutar para conseguir o que 2) Chamado à aventura: é o incidente
deseja, a sombra representa a energia que desencadeia a consciência
do lado obscuro, o desconhecido, de que é preciso agir para colocar
o insondável. Por isso, sua função a história em movimento. Um
psicológica é a de representar os desequilíbrio no mundo comum,
sentimentos reprimidos, aquilo que uma mudança que exige do herói
pode destruir o ser quando mantido uma certa atitude, lançando-o, na
na escuridão do inconsciente. maioria das vezes, num estado de
A função dramática da sombra desconforto, ansiedade e dúvida.
é oferecer ao herói uma força 3) Recusa do chamado: diante da
significativa contra a qual lutar, sob necessidade de agir, o herói se
o risco de ameaça à própria vida. desorienta e se mostra indeciso,
g) Aliado: pessoa, objeto ou circuns- hesitante. Por uma série de
tância que surge para auxiliar o herói expedientes, procura esquivar-se à
a completar uma tarefa, decifrar um missão que se apresenta à sua frente.

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4) Encontro com o mentor: é nesse formado por uma experiência de


estágio que o herói adquire a quase morte, representada pelo
confiança necessária para se lançar contato com as forças da sombra.
à jornada, através do encontro 9) Recompensa: o herói tem um mo-
com alguém geralmente mais mento de descanso e celebração por
velho e mais sábio ou com uma ter sobrevivido à mais dura provação
circunstância que lhe confere um da jornada. Uma festa, risos ou um
conhecimento necessário para en- relacionamento romântico têm
frentar as primeiras provações. seu lugar nesse estágio. O herói
5) Travessia do primeiro limiar: o recebe reconhecimento por suas
primeiro teste do herói. Aqui ele qualidades, mas, ao mesmo tempo,
encontra seus oponentes iniciais, tem a consciência de que o pior
precisa decifrar algum enigma, dar ainda está por vir.
conta de uma situação difícil ou 10) O caminho de volta: sobreviver
lidar com as particularidades de não é tudo. O herói precisa voltar
um novo ambiente, o chamado para casa ou seguir adiante até o
mundo especial. O mundo especial fim. Inicia-se, então, nova jornada.
é o mundo da aventura e difere do Significa outra travessia de limiar que,
mundo comum porque, sobre ele, numa narrativa, marca a passagem
o herói possui pouco controle ou do segundo para o terceiro ato.
quase informação alguma, o que Em geral, as forças do antagonismo
dificulta bastante a sua missão. se intensificam e a perseguição ao
Representa a passagem do primeiro herói torna-se mais intensa.
para o segundo ato, numa narrativa. 11) A ressurreição: como resultado
6) Provas, aliados e inimigos: no desse assédio, o herói se confronta
processo de ambientação com o uma vez mais (e a derradeira) com as
mundo especial, o herói encontra-se forças sombrias, o que lhe vale uma
com os seus habitantes, faz amigos nova experiência de quase morte. É
e inimigos, e tem de lidar com a batalha final, a última cartada, o
situações que lhe proporcionam movimento mais ousado e arriscado
novos testes. para subjugar de uma vez por todas
7) Aproximação da caverna secreta: as forças do antagonismo. Dela, o
uma vez adaptado, o herói prossegue herói sai consagrado ou derrotado.
rumo ao âmago do mundo especial, Significa o clímax da narrativa, onde
numa viagem em que o aguardam o principal conflito é resolvido.
novas provações. Aqui a preparação 12) Retorno com o elixir: ao superar
se torna primordial e o herói mune-se o desafio maior, o herói sofre uma
de todas as armas e conhecimentos última e irremediável transformação.
de que dispõe até o momento para Agora as marcas da jornada se fazem
enfrentar o perigo. presentes nele e ele já não é mais o
8) A provação: o encontro do herói mesmo que era quando a iniciou.
com a prova mais árdua até então. Ao retornar ao mundo comum, o
Desse encontro, o herói sai trans- herói traz consigo essas marcas, um

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elixir, um conhecimento, algo que 6.17 Um vilão, por sua vez, deve ser en-
vai compartilhar com aqueles que carado como uma força que igualmente
ficaram à sua espera. É o momento luta contra os próprios medos e confli-
do desenlace da história, da reso- tos, hesitando por vezes entre um polo
lução, dos destinos. É quando o e outro de um frágil (des)equilíbrio
herói encontra a recompensa ou a emocional. O herói, ao se confrontar
punição pelos seus atos ou quando, com essa força, sofre os efeitos que o
numa perspectiva em aberto para desestabilizam profundamente e o levam
as questões levantadas, ele se vê a agir por vezes de forma irracional.
diante da necessidade de mais uma É por conta dessa oscilação entre de-
jornada. sejos e suas chances de concretização
que a maioria das personagens atua num
6.14 Grosso modo, os estágios da jornada, registro camaleônico, assumindo dife-
tais como apresentados por Campbell e rentes papéis ao longo dos eventos da
Vogler, expressam as mesmas premissas e narrativa.
desenvolvimentos descritos anteriormente
neste trabalho em termos de conflito,
6.18 Quanto às etapas da jornada do herói,
motivações, relações de causa e efeito, voz
elas se tornam decisivas para a assimilação
da personagem, organicidade etc.
da estrutura em três atos. Assimilar a
trajetória de um protagonista como uma
6.15 Aplicar os princípios da jornada do
jornada através de etapas definidas e
herói na composição de uma história, antes
sucessivas, nas quais os riscos vão se
de transformar as personagens em títeres,
agravando, auxilia a planejar com cuidado
favorece um conhecimento mais profundo
os eventos da história e a intensidade de
acerca de suas motivações, do como e por
sua progressão.
que são levadas a agir de determinada
forma em dados momentos da história. De
6.19 A jornada proporciona um discer-
posse dessa nova consciência acerca de suas
nimento maior a respeito do funcionamento
intenções e objetivos, é possível expandir
da estrutura e permite encará-la não como
com mais detalhamento as suas trajetórias
uma fórmula, uma unidade estática ou
biográficas e atrelá-las aos eventos da
um esquema – e, aqui, retornamos ao
trama, obtendo, dessa forma, uma visão
conceito de σχηµα, de Barthes, vital
completa (e complexa) da história.
para a compreensão de seu discurso
amoroso –, mas em seu sentido vivo,
6.16 Por exemplo: o protagonismo da
animado, a serviço das figuras, das ideias,
narrativa deve ser reconhecido não apenas
das forças que movem as personagens, e,
pelo fato de a personagem principal
consequentemente, a história.
portar um conflito específico (todas as
demais fazem o mesmo), mas por conta
da jornada que empreende rumo ao Referências
encontro de si mesmo, do apaziguamento
ANDRADE, Carlos Drummond de. As impurezas
de suas questões mais intrínsecas, ao (re) do branco. São Paulo: Companhia das Letras,
estabelecimento da própria identidade. 2012. 168 p.

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BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso McKEE, Robert. Story: Substância, estrutura, estilo
amoroso. Trad. Hortênsia dos Santos. 13. ed. Rio e os princípios da escrita de roteiro. Trad. Chico
de Janeiro: Francisco Alves, 1994. 202 p. Marés. Curitiba: Arte & Letra, 2006. 432 p.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. MELLO, Ana Maria Lisboa de. Poesia e imaginário.
Adail Ubirajara Sobral. 10. ed. São Paulo: Cultrix/ Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 263 p.
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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas da personagem. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,
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Fontes, 2002. 551 p. processo de criação artística. 6. ed. São Paulo:
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Intermeios, 2013. 186 p.
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HOWARD, David & MABLEY, Edward. Teoria e foundation of plot, character and narration / The
prática do roteiro. Trad. Beth Vieira. São Paulo: psychic origins of myth, and mythic origins of
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JAMES, Henry. A arte da ficção. Trad. Daniel Piza.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor:
São Paulo: Novo Século, 2011. 129 p.
Estrutura mítica para escritores. 3. ed. Trad. Petê
______. A arte do romance: Antologia de prefácios. Rissatti. São Paulo: Aleph, 2015. 488 p.
Organização, tradução e notas de Marcelo Pen.
ZAPATA, Ángel. La práctica del relato: Manual de
São Paulo: Globo, 2003. 319 p. estilo literario para narradores. Madrid: Talleres de
KOCH, Stephen. Oficina de escritores: um Escritura Creativa Fuentetaja, 1997. 227 p.
manual para a arte da ficção. Trad. Marcelo Dias
Almada. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. Recebido: 14 de julho de 2017.
297 p. Aceite: 7 de dezembro de 2017.

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