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A construção literária e histórica da memória de D. Nuno Álvares Pereira ocupou, desde a sua morte em 1431,
um lugar insistente na vida cultural e política portuguesa, onde não deixaram de se fixar imagens contraditórias, dando
origem até. no século XX. a alguma controvérsia pública. Se a condição de “homem militar” vencedor (herói) é
consensual, já o mesmo não se passa com as condições de “homem religioso" (santo) ou a de “homem político" (que
ousa "concorrer” com o Rei).
Joaquim Pedro de Oliveira Martins estabeleceu na política portuguesa uma galeria dos homens típicos, entre
finais do século XIV e finais do século XVI, exprimindo a personalidade representativa escolhida uma individualização
da cadeia de gerações que se sucedem, produto, segundo a sua interpretação, da "seiva da árvore nacional” que
“alimentava uma vegetação pujante": Nun'Álvares, “o Messias da pátria portuguesa"; os filhos de D. João I, D. João II,
Afonso de Albuquerque e D. Sebastião, "um Nun'Alvares póstumo" Cada um desses símbolos, a seu modo. podia, na
leitura martiniana transportar para o presente uma exemplaridade ética e política patriótica, posição partilhada pelo
seu amigo Eça de Queiroz: “[...] têm sido os Filhos de D. João I. e agora o Nun'Álvares que me têm feito patriota. Tu
reconstróis a Pátria, e ressuscitas, com esses livros, o sentimento esquecido da Pátria. E não é pequeno feito
reaportuguesar Portugal [...]”
Uma das figuras incorporadas nesse painel do heroísmo português, sujeita embora ao longo do tempo a leituras
diferentes, foi D. Nuno Alvares Pereira. Condestável do Reino, bem-sucedido, avaliador cauteloso das circunstâncias
antes da tomada de decisão, portador de uma eficaz ideia de chefia. Protagonizaria todas as "potencialidades
estratégicas” que afluíram na “opção nacional atlântica” e, ao mesmo tempo que garantia a independência política da
Nação, dava um importante contributo para a formulação de um projeto nacional cuja viabilidade na época dependia
muito do equilíbrio geopolítico entre a componente continental e uma componente atlântica.
As dimensões militar de herói e civil de político, acrescentar-se-ia a dimensão religiosa de santo, haurida como
frade da Ordem dos Carmelitas Calçados, dentro do Convento de Nossa Senhora do Vencimento do Monte do Carmo,
em Lisboa, que ele próprio mandara construir muito provavelmente em louvor da vitória de Valverde. Alguns anos
depois da sua morte, por volta de 1460-1470, Nun'Alvares tinha já culto nessa Ordem, e por iniciativa de D. Afonso V
(Agiológio lusitano dos santos e varões ilustres, de Jorge Cardoso, 1668) ou de D. Duarte (Crónica dos Carmelitas, de Frei
José Pereira de Santana, 1745) foi mandado lavrar em prata uma lâmpada que se conservou permanentemente acessa
sobre a sepultura, localizada na capela-mor do Convento do Carmo. Tais ocorrências permitiram o surgimento de um
forte culto de religiosidade popular à sua santidade, fora das normas canónicas mas tolerado, que se traduzia em
peregrinações religiosas e romarias festivas ao Convento.
Em Outubro de 1913. o diário O Século promoveu um original (e cremos único) inquérito a vinte e nove elementos
da elite republicana, sob a seguinte pergunta: “Qual é a mais bela figura da História Portuguesa?”. O maior número de
respostas concentraram-se em Nun'Álvares (oito). Entre as justificações para a escolha de Nun'Alvares, encontramos
desde as que o consideram a encarnação da “velha alma portuguesa: fé, valentia, bondade, cavalheirismo" (Ferreira da
Silva), o símbolo da "fé, amor da Pátria, sonho" (Ramada Curto), até aos que lhe atribuem uma grandiosidade que “paira
sobre a Pátria" (Alfredo Pimenta) ou a qualidade de “génio das batalhas, símbolo da fé cristã" (Simões Raposo), de
“puro" (Tomás da Fonseca), de “guerreiro" (Trindade Coelho), de exemplo de "lealdade e de patriotismo" (Sousa Pinto).
N’Os Lusíadas
CANTO I
12 Por estes vos darei um Nuno fero, 18 «Rei tendes tal que, se o valor tiverdes
Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço, Igual ao Rei que agora alevantastes,
Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero Desbaratareis tudo o que quiserdes,
A cítara par' eles só cobiço; Quanto mais a quem já desbaratastes.
Pois polos Doze Pares dar-vos quero E se com isto, enfim, vos não moverdes
Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço; Do penetrante medo que tomastes,
Dou-vos também aquele ilustre Gama, Atai as mãos a vosso vão receio,
Que para si de Eneias toma a fama. Que eu só resistirei ao jugo alheio.