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INTRODUÇÃO

Não sendo a filosofia senão o desejo da sabedoria e da verdade é


'
de esperar dos que nela gastaram o melhor do .seu tempo e do seu
trabalho que fruam de maior calma e serenidade espiritual, maior clareza
e evidência de conhecimento, e sejam menos assediados por dificulda-
des e dúvidas do que os outros homens. Apesar de isso, vemos o gros-
so letrado da humanidade percorrer o trilho do simples senso comum,
governado por ditames da natureza, com facilidade e sem perturbação.
Nada do que é familiar lhes parece inexplicável ou duro de entender.
Não se queixam de falta de evidência nos sentidos, e o perigo do cep-
ticismo não os ameaça. Mas apenas saímos dos sentidos e do instinto
para a luz de um princípio superior, para meditar, pensar e reflectir na
natureza das coisas, mil escrúpulos surgem no espírito sobre o que an-
tes parecia compreendermos claramente. De toda a parte se nos levan-
tam preconceitos, e erros dos sentidos; e ao tentar corrigi-los pela razão,
insensivelmente caímos em singulares paradoxos, dificuldades, inconsis-
tências, que se multiplicam ao progredir na especulação, até que depois
de ter percorrido verdadeiros labirintos nos achamos onde estávamos;
ou o que é pior, entregues a um mísero cepticismo.

2) Dá-se como causa de isto a obscuridade das coisas ou a natural


fraqueza e imperfeição do nosso conhecer. Diz-se que as nossas faculd a-
des são poucas, dadas pela natureza para conservação e comodidade da
vida, não para penetrar a essência e constituição das coisas. Demais,
quando o espírito finito do homem quer ocupar-se do que participa da
infinidade, não admira vê-lo cair em absurdos e contradições de que
não consegue desenredar-se, por ser da natureza ·do infinito a sua in-
compreensibilidade pelo finito.

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3) Mas talvez sejamos injustos connosco situando o def~ito originaria-
mente nas nossas faculdades e não no mau uso de elas. E difícil aceitar
que deduções correctas de princípios verdadeiros aportem a consequên.
cias inaceitáveis ou inconsistentes. Devemos crer que Deus foi mais libe.
ral com os homens, e não lhes deu um forte desejo de conheciment()
colocado fora do seu alcance. Isto opor-se-ia ao método indulgente da
Providência, que a todos os apetites inspirados às suas criaturas forne-
ceu ordinariamente meios - se justamente utilizados - de poder satis-
fazê-los . Além disso parece-me que a maior parte senão todas as dificul-
dades que até agora detiveram os filósofos e barraram o caminho d()
conhecimento, nós as provocámos, levantando a poeira e depois quei-
xando-nos de não ver.

4) Tentarei pois descobrir os princípios introdutores de esta dúvida e


incerteza, de estes absurdos e contradições em várias escolas de filoso-
fia, a ponto de os homens mais sábios terem julgado incurável a nossa
ignorância, como fruto natural da fraqueza e limitação das nossas facul-
dades. Decerto vale bem a pena inquirir estritamente dos primeiros prin-
cípios do conhecimento humano, em especial se há motivo de suspeitar
que as barreiras e dificuldades encontradas pelo espírito na busca da
verdade não resultam de obscuridade e complexidade do objecto ou
natural defeito de compreensão, tanto quanto de falsos princípios em
que se tem insistido e devem rejeitar-se.

5) Bem parece tarefa difícil e desanimadora, se pensar quantos ho-


mens grandes e extraordinários me precederam nela; mas tenho alguma
esperança considerando que nem sempre as vistas largas são as mais
claras, e que um míope, obrigado a colocar o objecto mais perto, pode
talvez por um exame próximo, descobrir o que não viram muito melho-
res olhos.

6) Para preparar o leitor a mais fácil inteligência do que se segue,


convém pôr como introdução alguma coisa sobre a natureza e o abuso
da linguagem. Mas o deslindar de este tema de certo modo antecipa o
meu plano, por tratar-se do que parece ter sido origem principal da dúvida
e complexidade da especulação como de erros e dificuldades inúmeras
em quase todos os domínios do conhecimento. E foi a opinião de que 0
espírito pode construir ideias abstractas ou noções de coisas. Quem não
for de todo alheio a obras e discussões de filósofos reconhecerá que
não pequena parte de elas se trava acerca de ideias abstractas. Elas passam
especialmente por objecto das ciências denominadas Lógica e Metafísica
e de quanto se tem pelo mais abstracto e sublime estudo, onde entre-

tanto raro se encontra_ ~1ma questão posta de modo que não suponha a
sua existência no espmto e que isso é bem conforme com elas.

7) Está assente que as qualidades ou modos das coisas nunca exis-


tem realmente cada uma por si e em separado mas em conjunto, vanas
no mesmo objecto. Mas como dissemos, o espírito é capaz de conside-
rar cada uma separada ou abstraída das outras a que está ligada, for-
mando assim ideias abstractas. Por exemplo, a vista apreende um objec-
to extenso, colorido, móvel; esta ideia compósita resolve-a o espírito nos
seus elementos e isolando cada um forma as -ideias abstractas de exten-
são, cor, movimento. Não podem cor e movimento existir sem extensão;
mas o espírito pode formar por abstracção a ideia de cor, excluindo a
extensão, e a de movimento, excluindo as outras duas.

8) Depois, tendo observado nas extensões sensíveis particulares algo


semelhante e comum e algo peculiar como a forma ou a grandeza que
as distinguem, considera à parte o que é comum formando a ideia muito
mais abstracta de extensão que não é linha, superfície ou volume nem
forma ou grandeza mas uma ideia abstraída de todas elas. De igual modo,
pospondo cores particulares sensíveis e distintas e conservando apenas
o que lhes é comum, o espírito faz ideia da cor em abstracto, que não
é vermelha, azul, branca ou qualquer cor determinada. Por idêntico pro-
cesso, abstraindo o movimento não só do corpo móvel mas da trajectó-
ria, e de toda velocidade ou direcção particular, forma a ideia abstracta
de movimento, correspondente a qualquer espécie de movimento parti-
cular sensível.

9) E assim como forma ideias abstractas de qualidades ou modos, o


espírito pela mesma separação mental forma ideias abstractas de seres
mais complexos que abrangem várias qualidades coexistentes. Por exem-
plo, tendo observado em Pedro, Jaime, e João, certas semelhanças de
estatura e outras qualidades, põe de parte na ideia complexa ou com-
posta de Pedro ou Jaime ou qualquer homem particular o que é pe-
culiar a cada um, conservando apenas o que é comum a todos e assim
forma a ideia abstracta, aplicável a todos os particulares, abstraindo e
separando circunstâncias e diferenças determinantes de uma existência
particular. Diz-se que de esta forma se chega à ideia abstracta de ho-
mem ou se preferirmos, humanidade ou natureza humana; onde de fac-
to se inclui a cor, pois todo homem tem alguma, mas não branca nem
preta nem qualquer cor particular pois nenhuma existe em todos os
homens. o mesmo para a estatura, não alta nem baixa nem média mas
algo abstraído d~ todas. E assim para tudo mais. Além de isso, havendo

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- - - - - - -- ·- - --

grande variedade de criaturas com alguns mas não todos os caracteres
. ·tamente apreciado deu-lhe sem dúvida g 1 apoio . .
da complexa ideia de homem, o espírito, rejeitando O peculiar ao homelll 1us , ue as ideias abstractas marcavam a ma·rancet·r ' p,irecenc1o pen-
.
e aproveitando so, o que e, comum aos seres vivos forma , a ide1·a, de sar q ior e I erenca de t d.
to entre homens e animais. , en en 1men-
a11imal abstraída não só dos homens particulares mas lambem de todas
.A5 ideias gerais - diz ele - são O ciue e ·t· b . . _
. constitutivos· ela
, de s , pei·xes e insectos · Os elementos
as aves, quad rupe . s ª e 1cce d1stincao p r · .
ntre animais e ho mens. As faculdades do anim· 1 , er en,1
ideia abstracta de animal são corpo, vida, sentidos, movune nto espontâneo. e • . , .d ª nunca podem atingir
e sta excelenc1a; e ev1 ente que não observamo · '
Por corpo entende-se corpo sem qualquer tamanho ou ~igura por não os ·c1 . d d s ne 1es o uso de simis
ara essas I e1as; e on e temos razão de supo _ • . · ' ·
haver comuns a todos os animais; sem cobertura de pelo, de penas, ou P • f , ·d · . r que nao tem !acuidade
de abstrair ou ormar I e1as gerais, porque n'io
de escamas, nem sequer nus; pêlo, penas, escamas, n~1dez, são proprieda. . . , . ' empregam palavras ou
quaisquer outros sma1s genencos ..
eles de animais particulares e por isso estranhos à ideia abstracta. Pela E pouco adiante:
mesma razão o movimento espontâneo não pode ser andar nem voar .por isso me parece que nisto os animais se d·r . . .
. 11 erenc1am mte1ramente
nem rastejar. No entanto é movimento mas não é fácil conceber o que seja. dos homens e que esta diferença estabelece entre 1__ .1 . . • .
• . . e es • maior d1stanc1a.
Porque se eles tem algumas 1de1as e não são simpl . , .
IO) Se outros têm esta maravilhosa faculdade de abstrair as_suas_ideias, , .,
0
• es maqumas (como
alguem ia pensou) nao pode negar-se-lhes algun1 . 1 _
. - por mi· m tenho realmente a faculdade de imaginar ou . uso e e razao. Parece-
e 1es me Ihor d 1rao; . -me tão evidente que em certos casos eles pensam e •
representar-me ideias de coisas particula~es e de vanamente as compor _ . . orno que tem sen-
tidos; mas sao apenas _
1de1as particulares '
como 05 sent·d .
1 os 111es 1orne-
e dividir. Posso imaginar um homem b1c1p1te ou a parte supenor de urn cem. Os melhores estao encerrados neste estreito 11·m1·te - . .
e nao tem - creio
homem ligada a um corpo de cavalo; posso conside~r a mfo, os olhos, eu - faculdade de ampliá-lo por qualquer forma de abstracçao.• -
0
nariz, separados do resto do corpo. Mas olho e mao 1m_a gmados terão De pleno acordo com o sábio autor em que ,as fa,cu ld ades cos .
1 ani-
forma e cor particulares. Igualmente a ideia de homem imaginada tem mais não alcançam a abstracção, receio que se tal for ,a d·r 11erenca um
de ser de homem branco ou preto ou moreno, direito, curvado, alto, g rande número dos que passam por homens tenham de ·inc1u1r-se • , ' no
baixo ou mediano. Não consigo, por mais que pense, conceber a ideia mesmo grupo . A razão alegada para negar aos animais ideias abstractas
abstracta acima descrita. Também me é impossível formar ideia abstracta é a de não te re m palavras ou outros sinais genéricos; isto assenta na
de movimento diferente da de corpo móvel e que não é nem rápido hipótese de que usar palavras implica ter ideias gerais. 0 e onde se se-
nem lento, curvilíneo ou rectilíneo. O mesmo se diga de quaisquer ideias gue os homens que usam a linguagem podem abstrair ou generalizar :.is
abstractas. Em suma, sou capaz de abstrair em um sentido, como ao suas ideias. Q ue este é o sentido do autor mostra-o a sua resposta a
considerar partes ou qualidades separadas de outras com que estão unidas esta pergunta em outro passo: •Se todas as coisas existentes são parti-
no mesmo objecto mas possam existir sem _elas. Mas nego que possa culares, como chegamos a termos gerais'• A sua resposta é: •As palavras
abstrair e conceber separadamente qualidades que é impossível encon- vêm a ser gerais por serem significativas de ideias gerais.• Mas antes
trar separadas; ou que possa formar uma noção geral, abstraindo de parece que não por serem sinal de uma ideia geral abstracta, e sim de
particularidades pelo modo referido - e são afinal os dois sentidos de muitas ideias particulares, cada uma sugerível indiferentemente ao espí-
-abstracção•. E há razão para supor que a maioria dos homens está no rito. Por exemplo, quando se diz: •A mudança de movimento é propor-
meu caso. A generalidade dos homens simples e iletrados nunca preten- cional ã força aplicada, ou •tudo que é extenso é divisível•, estas expres-
de abstrair n oções. Diz-se que elas são difíceis e exigem trabalho e es- sões entendem-se do movimento e extensão em geral; entretanto não se
tudo. Se assim é , conclui-se que estão reservadas aos doutos. conclui que me sugiram ideia de movimento sem corpo móvel e direc-
ção e velocidade determinadas, ou que eu deva conceber uma ideia
11) Vou examinar o que pode alegar-se em defesa da doutrina da abstracta e geral de extensão sem ser linha, superfície ou volume, nem
abstracção, a ver se descubro o que leva os homens da especulação a grande nem pequena, branca, preta, vermelha ou de qualquer cor deter-
1 minada. Apenas implica seja qual for o movimento considerado, rápido
aceitar um parecer tão remoto do senso comum. Um filósofo recente
ou le nto , vertical, horizontal ou oblíquo, e seja qual for o objecto , que
o axioma será verdadeiro. Do mesmo modo para a extensão, não im-
1 porta se é linha, superfície, ou volume nem a sua grandeza ou forma.
Locke. Essay 011 H11111a11 U11dersta11di11g, livro 11, cap. xi. sec. 10,1 t.
12) Observando como as ideias vêm a ser gerais mais facilmente o
Se um homem tem a faculdade de forrnar a ideia . .
d .•
eu não nego e m absoluto .ta é vão prete nder contestar-lha nern f . e tnangulo aqui
entendere mos das palavras. Note-se que . a
. de ideias gerais abstractas- n desc ri • . _ · eu ana tal s0- d .
existência de ideias gerais mas apenas a _ · os . r reflicta com prec1sao e segurança se t _· ese10 que 0
leito _ ern ou nao t 1 1·d .
passos citados quando se fa1a de 1 eia
"d · s gerais supoem-se sempre forrna
- _ parece tarefa ardua para alguém. Nada
nao _ .
. r- .
mais actl do
ª eia; e isto
.
· d" d O nos parágrafos 8 e 9. Ora -m O pensamento propno, procurando s be que exammar
das por abstracção, do modo 111 ica , se
algU e a r se tem O d
. - palavras e falar somente do qt r ideia correspondente à descrição anterio d "d . u po e chegar
quisermos atribuir sen11do as nossas . . ie a te • r a 1 eia geral d .•
reio eu - que uma 1de1a pan· não acutangulo nem rectângulo equi·ta
' t . _ e um tnan-
podemos conceber, concordaremos - e 1- ~ lo , e~ ~~~
cu1ar quando cons1"de rada en1 si mesma • se torna _ . geral quando repre- mAf
todas estas coisas e nenhuma de elas?
·
ou escaleno
"d • parti·clilares da mesma espec1e. Supon.hamos, para
senta to d as as 1 e1as .
.. - t que ensina a dividir uma lmha em duas par. J4) Muito se disse já da dificuldade inerente - "d .
exemplificar, um geome ra
. . T exemplo uma linha preta de uma polegada de b Ih d e , as 1 e1as abstractas
tes 1gua1s. raça por . .. d0 esforço e tra a f od. e ,orma-las. E todos eoncordam na necessidadee
compnmento; e uma m ha particular·, no entanto .pelo s1gnif1cado geral
. - 1·
de grande labor e a 1ga do espírito para emanei
. has possíveis·, de modo que o demonstrado quan- · 1 [ -1 - par O pensamento de
representa to das as 1m b·ectos parucu ares e eva- o as especulações subi"1 .
o 1 mes, relativas às ideias
to a ela fica demonstrado para todas as linhas ou pm outras palavras abstractas. De onde parece concluir-se ser esta coisa ta·o d"f' ·1 d
. ha em geraI. E assim como a linha particular fica geral por ser d - . 11c1 e for-
para a 1m mar ideias a bstractas esnecessana à comunicação, t·ao simples .
e fami-
- b 1 0 ,iome -linha• que e m absoluto é particular, como símbolo
um sim o o, . liar a toda casta de. homens.
-
Mas, disse eu se el
'
. .
as parecem obvias e
. sendo geraI. E como para· o caso anterior, a generalidade não pr0-
f1ca fáceis aos adultos e so pelo seu uso constante e f .1.
- de ser sma · 1 de tima linha geral abstracta, mas de todas as linhas am1 1ar. Ora eu gos-
vem taria de saber em que tempo os homens aprenderam ..
. • poss'iveis , também no segundo .. . . a vencer a d1f1cul.
part1cu1are~ _ deve pensar-se
_. . que a .genera. ·
dade e receberam o auxilio necessano para discorrer N- d
· ao po e ter sido
.
!idade provém da mesma causa, isto e, das vanas linhas particulares depois de adultos, porque então parece não terem c .• . d
. onsc1enc1a e tal
indiferentemente denotadas. esforço; resta portanto que se1a uma tarefa da infância E d d
• . • na ver a e o
grande e mult1plo labor de formar noções abstractas sena • tarefa rude
13) Para dar ao leitor noção mais clara da natureza e emprego ne-
Para aquela tenra idade. Não é difícil imaginar que du as cnanças • nao-
cessário das ideias abstractas citarei mais um passo do Essay o,z Huma 11 odem falar dos seus bombons, das suas matracas e peq b •
P _ . . uenos nn-
Understanding: quedos enquanto nao tiverem ligado inconsequências inúmeras e for-
-As ideias abstractas não são tão óbvias e fáceis para as crianças e mado no espírito ideias gerais abstractas, anexando-as ao nome comum
para espíritos não exercitados como as particulares. Se assim parecem a de que usam?
adultos é pelo uso constante e familiar. ~eflectindo cuidadosamente,
achamos que as ideias gerais são ficções e artifícios do espírito, que 15) Nem creio minimamente sejam mais necessárias à ampliação do
encerram dificuldades e não se revelam tão simplesmente como imagi- conhecimento do que à comunicação. Bem sei que se insiste em que
namos. Por exemplo, não exige trabalho e saber formar a ideia geral de todo conhecimento e demonstração assentam em noções universais, e
triângulo (que não é do mais abstracto, complicado, e difícil) porque ele estou de acordo; mas não me parece que tais noções se formem por
não pode ser obliquângulo nem rectângulo, nem equilátero, isósceles ou abstracção do modo re ferido . Universalidade, tanto quanto compreendo,
escaleno, mas todas estas coisas e nenhuma de e las? É na verdade uma não consiste na absoluta, positiva natureza ou concepção de alguma coisa
coisa imperfeita que não pode existir, uma ideia em que se conjugam mas na relação que significa entre particulares; por isso coisas, nomes, e
partes de ideias diferentes e incompatíveis. É verdade que o espírito, na noções, por natureza particulares tornam-se universais. Assim, quando
sua imperfeição necessita de tais ideias e serve-se de elas como pode demonstro um teorema sobre triângulos supõe-se tenho em vista a ideia
por conveniência de comunicação e· alargamento do conhecei; seu ob- universal de triângulo, que não deve entender-se como ideia de um triân-
jectivo natural e dilecto. Mas há motivo de suspeitar serem tais ideias gulo nem equilátero nem escaleno nem isósceles; mas o triângulo parti·
índices da nossa imperfeição . Enfim, basta mostrar que as ideias mais cular considerado, de esta ou de aquela forma, pouco importa, represen-
abstractas e gerais não são as que o espírito mais depressa adquire nem ta todos os triângulos rectilíneos; e neste sentido é universal. Tudo isto
as com que o conhecimento mais cedo se familiariza .• parece simples e não e nvolver dificuldade.

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os adopt,1dos no mundo; e enln:- eles nenhum t.11, • . . . : "" pnn, 1
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· do que <l tl t XtrllU 111.IU>f 1111
·no no pensamento e:specu 1.
.1 doi- rcllo., n.lo po, . . têm dois lados iguais. Parece pe O
.1, ll Cl,I', !(n.11, ah,1r,1c 1a ,
5lo rect ingulo, nem Püts
)(lllth 4uc 11cm • • da proposição ou demonstrá-la para ca-1.
1 . ·r·'~de univer5a1 u.i JS) o ra a fo nte de est.1 n()(,·:,o pm·ilc\!i td 1 ...
m·cl•,,Jn<> · \~ '-'• , 1 ou uma vez por todas dem • ' • p.trc( l ílll' ' t"r J /ill~lltl
. lu O que é 1mposs1ve , ons. nr Certamente n.1d.1 menos do que J rn.io XXI . ,
tn.ini:tulo part icu . d . tnângulo onde se abrangem todos os Parti. ge .• . • I 1. n.1 lt r d.ido oni.:cm J
tr.i 11 d 1 ideia ab,tracta e d . ma op1mao umversa1menle :1ce11,1 Vt'-<e "'º 11, ., .
· • · od . t· ,gualmcnle representa os. A isto respondo ti ,. . . _ · • cm ut outr.1, rJ1ix·, nJ
cubrcs e onde t m e~ '10 • d 13111 conílss:10 dos m.us compelente~ defensor\.' 1 . 1Cc1
1. .1, .ilhtr11.1I', qm·
· · d , fazer a demonstração se1a a e um 1sóscel"• C ' ' 't,IS
FJnbor:i a min11a I eia •' 0 ' · ~ as reconhecem devidas à necess1d.1cle dl.' de 110111111 . · ·
. · · d I rminada exiensllo de lados, eu posso generalizá-la a • .Ir. t 1l 0 11\ 1l ' J \On ,t:
rce1.ingulo. com e e • quência .clara:. se não houvesse o discurso 011 0 • -
• los rec11líneo~ quaisquer porque nem o angu 1o recto nern .
ieria havido ideia de abstracção Vepmos conto 1~ 1111
' ' 111,11'> u n111:r,. 11 , n.m
.
outro~ tnani;tu d . . ' P· • r.i.. rnn1nh1ur.11n
comprirnenlo dos lados entram na emons1raçào
:i 1gua ldade ou O . ara esle erro. Pnmeiro, pensa-se q11e cad.1 nem,.. 1.
•,,orama inclui esses particulares mas não se alu P . ' un ou t1c~c ll'r um
É \'c:rdade que o meu dl , ,.. ' . , • , · só signiílcado definido e preciso. que leva O ho 111..111
sição Nào se diz que os Ires angulos são iguais . . . , .1 1w11,.1r (Jlll' h.1
dem n.1 prova da Propo · certas 1de1as abstractas detem1111aclas cons111u1,v.., cl i v . 1 1
haver um ângulo recto ou por ele ser formado Por • • t rt.it e1r.1 e unu ,1
a dois ree10s f)Or • . • signiílcaçào de cada nome geral; e s6 l)Or intcrmétlic, ,, 1...: C\\,I', luel.h .,
.
b dos 1gua..,., < lslc> basla para mostrar que poderia o angulo rec1o ser
. . . . abstractas pode _um . nome geral siRníílcar uma coisa panicula r Pelo rnn
oblíquo e 0 5 lado~ desiguais sem 11wahdar a dcmonslraçao; por isso
trário, nào há s1gmf1caçà~ precisa e cldin1da ligada ao nome gcr:.il. IOuo,
cond uo ser verdadeira de um obhquílngulo ou escaleno a relação de. eles próprios par.i s1gmfica r 111diferentcmcn1c ,..<>railde nu· mcro de Idc1J,
monstrada par:i um 1riângulo particular rec1f1ngulo isósceles e não por
Particulares Isto decorre eviclentemen1c do c11,e r,·coli cl1ic) C llllla 1ireve
ter demonstrado a proposiçilo da ideia abstracla de triângulo. E aqui deve
reíle.xào o põe a claro.. Pode ohjec1ar-se que cada nome dcfin,vel c, r:,
reconhecer-se a possibilidade de considerar-se apenas a forma lnangular por 1ss0 mesmo reMn~g1do ~ certa significaçao. Por exemplo O triângulo
sem olhar a qualidades particulares dos :1ngulos ou rcb~·õcs cnire os deílnc-se -uma superfi c1e hm1tacla por Ires linhas rectas• e por este nome
lados. Alé aí pode abstrJir, mas nunca isso prova poder Iormar uma deno1a-sc uma cena 1d~1a e n~o out ra. A islo respondo que na defi niçJo
ideia abstracta, geral. inconsequcnlc. de triângulo. Semdhantemente po- nào se diz se a superfic1c é grande ou pequena, branca ou prci,1, ,e 0 .,
demos considerJr Pedro como :uumal ou como homem ~cm formar a lados são longos ou curtos, iguais ou desiguais, nem 05 àngulo.s SCJ.tun
refenda ideia abs1rae1a do os quais se inclinam; em tudo pode haver grande variedade e por
tanto nenhuma 1de1a determinada limita a significaç-l o dJ palavra m.in-
17) Seria inlennm:ível e múul seguir os escol:b l1cos. gr:indes mestres gulo. Uma c01sa é manter constante a definição de um nome, oull"'J laLcr
da absuacçào. pelo inextric:ível labirinto de erros e chscussões em que que ele represente sempre a mesma ideia; uma é necc~ána. outra mlitil
parece 1ê-los me11do a sua dou1nna de noções e na1urezas ab~iractas e 1mpra11cável.
D1spu1as e controvérsias, poeira sábia levantada sobre 1al ma1éria e a
grande vantagem resi1han1e para a humanidade, ludo isso é hem conhe- 19) Ma.s para esclarecer como as palavras produziram a doutnna d.1.,
cido e não vale a pena insistir. E bom fora que os maus cfei1os se coo- ideias abstractas. observe-se que na opinião geral a hngua[(cm s6 tem por
ílnasscrn nos que de isto fazem profiss:io. Quando se considera o esfor- fim comurucar 1de1as e cada palavra s1grufica11va rcpn:~nta u01.1 1dt..1J x-ndo
ço. a 111dústna, a capacidade, por tào longo te mpo consagrados à cultura assim e sendo também certo que nomes cons1derad0\ ruo ,ntc,ramentc
e avanço da ciência, e que es1a apesar de isso cominua na maior pane insigniílca11vos nem sempre indicam ideias particulares conccbí\CL5. condu1-
cheia de escuridão e incerteza; e que discussões a~ parecer 1111ermmá· ·se imedialamente que eles represenlam noções abstracta., "l:mgufo1 nc·
veis. e a1é as apoiadas n:is mais clara5 e convincentes demon,trações gará que muitos nomes de uso correnle enlre homem dado,, .l e,pcrniJ-

42 43
.. . articulares determinadas ou até nad ·nutilidade para os fins em que se julgavam n ..
• ser necessário (até nos ª ua 1 . . . ' ecessanas F 1
çào nem sempre sugerem idei,i~ P a5 . lhes a onge m, que e evidentemente 3 1. · ma mente
d ç:io mostra nao ra. . dique1- mguagern ;-,;i .
sugerem. Um pouco e aten • . . •f·cativos
I
de ideias despen in excelência do uso de palavras. visto pod · nguem pode
. . . . • ·) ~ nome~ s1
gm em ar a ' er por elas O
o oc1mos mais cstnto~ que 0 ·
. . . . .d •. e devem represe
ntar· na leitura ou no dis
· CUr. neg adquirido à custa do trabalho de investi·g d conhcc1-
na mtehgenc1a as I ei.is qu mo as letras na álgebra O d nto a ores de tod
• parte usam-se co · , n e rne povos tomar-se propriedade de urna só os os tern-
so os nomes pe1a maior . . representada por uma letra n· pOs e deve reconhecer-se que a maior parte dopessoa. h .
Mas ao
mesmo
•d de partteular se1 a • ao ternPº . con ec1mento foi
embora ca da quanu ª ada passo cada letra sugira do e obscurecido pe1o abuso das palavras e p 1 . per-
d Ce rto que em c ao tllrba . . e O c-d mmho geral d0
é preciso para proce er d . em que foi comumcado. Portanto. se as p 1 .
·d d rticular representa a. discurs 0 . . . a a\ ras podem im r-
pensamento a quanu a e pa
entendimento, se1am quais forem as ideias qL . po
-se a0 . ie eu considere te
. . a comunicação de ideias por palavras não é fim . empregá-las puras e simples. afastando do meu ' n-
20) Alem de iss · .
0
Há outros fins, como exaltar urna pa· 1are1 . d pensamento quanto
· · J O u único da linguagem. 1- aqueles nomes 11ga os com elas por uso long
passa . o e constante· e d
prmcipa a acção dar ao espírito uma disposiçà0 isso espero tirar a seguinte vantagem: ' e
- -1 ou combater um, •
xao,_ exc1ar . . uitos casos é apenas secundário e às vezes
Parttcular· O pnme1ro..
em m
do os outros o dispensam, como suponho fre. Z2) Primeiro, estar certo de evitar controvérsias .
inteiramente om1udo quan . d' . . puramente Yerba1s
. f miliar Convido o leitor a me !lar se nao lhe ·ncipal obstaculo em quase todas as ciências ao pro • ·
quente na linguagem a . . d pn . ' ' gresso (1o verda-
• do um discurso, os senumentos e medo, de deiro e profundo conhecimento.
acontece lendo ou ouvm • • .
' • . d · çào desdém, e outros, surgire m 1med1atamen- seau
amor, repugnanc1a, a nura , . ,, 11do' parecer. .este o caminho mais firme para, desenredar-me d:1
.. a percepção de certas palavras sem quaisquer fi na subtileza das 1de1
as abstractas que tão lastimavelmente 1- f
te no seu espmto com .. ' em con un-
. E rimeiro lugar é certo as palavras deverem des. dido e embaraçado o. espmto dos homens; acresce que qtianto m . b.
ideias mterca1ares. m P • • . • . ' :l!S SU ti 1
. . , • para provocar aquelas emoçoes; mas se nao erro e inquiridora for a intehgenc1a de um homem mais prof d
pertar 1de1as propnas . ' un amente po-
• . m familiar ouvir sons ou ve r caracteres e seguido derá ser envolvido e persistir nisso.
ve-se que na 1mguage . , . .
. uelas paixões que .a pnnc1p10 eram produzidas Por enquanto eu limitar os _meus pensamentos
muitas vezes por aq _ Terceiro,
. . . , . a's. min
· has pro- ,
acção de ideias agora de todo suprimidas. Nao podemos por exemplo prias 1de1as despidas de palavras, nao vejo como poderei· enganar-me.
, d os pela promessa de uma coisa boa, embora sem fazer ideia os .objectos considerados, vejo-os
ser a,ecta . . clara e adequadamente . N'ao posso
do que é? Não pode a ameaça de um perigo bastar para causar pavor, iludtr-me pens_ando ter_ uma 1~e1a que não tenho. Impossível imaginar
·
embora ignorem os O mal que nos ameace nem forme mos 1de1a de pe- que algumas 1de1as minhas sao semelhantes ou dissemelhantes sem 0
rigo em abstracto' Se alguém reflectir um pouco sobre o q_u e fica dito, serem. Para me aperceber do acordo ou desacordo entre as minhas ideias,
creio ser-lhe-á evidente usarem-se muitas vezes nomes gerais na lingua- ver quais se incluem ou não em uma ideia composta, nada mais preciso
gem sem pensá-los como marcas de ideias de qu~m fala na_intenção de além de uma percepção atenta do que se passa no meu entendimento.
levá-las ao espírito do ouvinte. Até os nomes pro pnos muitas vezes se
pronunciam sem o intuito de chamar a nossa atenção para os indivíduos 23) Mas obter esta vantagem pressupõe libertação completa da falácia
por eles designados. Por exemplo, se um escolástico me diz: •Aristóteles de palavras, que ousadamente me prometi; é bem difícil quebrar união
disse isto•, concebo que ele quer levar-me a aceitar a sua opinião pela tão antiga, confirmada por tão longo hábito como esta entre palavras e
deferência e respeito habitualmente ligados àquele nome. E esse efeito é ideias; dificuldade ainda muito aumentada pela doutrina da abstracção
com frequência tão instantâneo nos habituados a submeter o seu juízo à Porque enquanto o homem pensa que as ideias abstractas são insepará-
autoridade de aquele filósofo como é impossível ter havido antes ideia veis dos seus nomes, não é de estranhar que use palavras por ideias:
da sua pessoa, obra, ou reputação. Poderia dar inúmeros exemplos; mas sendo impraticável pospor a palavra e reter no espírito a ideia abstracta.
para que insistir em coisas que a experiência de cada um pode sem coisa perfeitamente inconcebível. Essa me parece a causa principal por
dúvida sugerir-lhe claramente? que alguns homens que enfaticamente recomendaram a outros pôr de
parte as palavras nas suas meditaçôes e contemplar as ideias puras não
21) Julgo ter mostrado a impossibilidade das ideias abstractas. Consi- 0 conseguiram eles mesmos. Depois muitos aceitaram opiniôes absurdas

derei o que de elas disseram os seus melhores defensores, e tentei mostrar e entraram em disputas frívolas, provindas do abuso de palavras. Para

44 45
dar r .. d.
,
as palavras
º
eme 1 a e ste mal aconselham se ate nda às ideias significadas nà
~· ·r·1cattvas.
· 0
< stgn1 Conselho bo1n para dar a o utrem, mas el
mesm ~ - es
. . os nao pude ram segui-lo e nquanto pensaram ser único emprego
ime diato d as palavras o significar ideias e atribuir como significado a
cada nome geral uma ideia abstracta determinada.

24) Mas este erro devido às palavras pode um homem evitá-lo facil-
n1ente. Quem sabe que só tem ideias particulares não se esforçará ern
vão por achar e conceber a ideia abstracta ligada a qualquer nome; e
quem sabe que os nomes nem sempre significam ideias poupa-se ao
trabalho de perseguir ideias onde nada há. Bom seria que todos se es-
forçassem por obter visão clara das ideias consideradas, separando-as da
vestidura e a cúmulo da palavra que muito contribuem para cegar 0
juízo e dividir a atenção. Em vão alongamos os olhos ao céu ou esprei-
tamos as entranhas da terra, em vão consultamos escritores ou sábios e
seguimos as pegadas da antiguidade; só precisamos de afastar a cortina
das palavras para alcançar a mais bela árvore do conhecimento, produ-
tora de excelentes frutos ao nosso alcance.

25) Se não libertarmos os primeiros princípios do conhecimento da


confusão e miragem das palavras, podemos raciocinar ilimitadamente sem
resultado, tirando consequências de consequências sem nunca adiantar
no saber. Por mais longe que formos apenas perderemos o irrecuperá-
vel, e mais fundo cairemos em dificuldades e erros. Peço por isso ao
leitor das seguintes páginas que repense as minhas palavras e tente acom-
panhar lendo, o pensamento que tive escrevendo. De esse modo lhe será
fácil descobrir a verdade ou falsidade do que digo. Não correrá perigo de
as minhas palavras o iludirem e não sei como pode ser levado a errar
considerando as suas próprias ideias, nuas e sem disfarce .
DOS PRINCÍPIOS DO CONHECIMENTO HUMANO

É evidente a quem investiga o ob.jecto do conhecimento humano haver


ideias (1) actualmente impressas nos sentidos, ou (2) percebidas consi- _
derando as paixões e operações do espírito, ou finalmente (3) formadas
com auxílio da memória e da imaginação, compondo, dividindo ou sim-
plesmente .representando as originariamente apreendidas pelo modo aci-
ma referido. Pela vista tenho ideias de luzes e cores, e respectivos tons
e variantes. Pelo tacto percebo o áspero e o macio, quente e frio, mo-
vimento e resistência e de todos estes a maior ou menor quantidade ou
grau. O olfacto fornece-me aromas, o paladar sabores, e o ouvido traz
ao espírito os sons na variedade de tom e composição. E como vários
de eles se observam em conjunto, indicam-se por um nome e conside-
ram-se uma coisa. Por exemplo, um certo sabor, cheiro, cor, forma e
consistência observados juntamente são tidos como uma .coisa, signifi-
cada pelo nome «maçã». Outras colecções de ideias constituem uma
pedra, uma árvore, um livro, etc. ; e como são agradáveis ou desagradá-
veis excitam as paixões de amor, alegria, repugnância, tristeza e assim
por diante.

2) Mas ao lado da infinita variedade de ideias ou objectos do conhe-


cimento, há alguma coisa que os conhece ou percebe, e realiza diversas
operações como querer, imaginar, recordar, a respeito de eles. Este per-
cipiente, ser activo, é o que chamo niente, espírito, alma ou eu. ~or
estas palavras não designo alguma de minhas ideias mas alguma coi:a
distinta de elas e onde elas existem, ou o que é o mesmo, por que _sao
·
percebidas; • ,.. · de uma 1'deia
porque a ex1stenc1a · consiste em ser percebida.
, ·s separadamente. Mas a minha capacidade . .
_ _ amentos, nem as paixões, nem ept1ve1 , . .. conceptiva ou una-
3) Todos concordarao que nem os pens espírito; e não pare perc ão vai alem da poss1bil1dade da real existé . _
. ativa n _. , nc1a ou percepçao.
• . . • - existem sem o ce g1n d assim como me e 1mposs1vel ver ou sentir alou _.
as 1de1as formadas pela 1maginaçao _ 'd •as impressas nos senr. on e , . ,, ma coisa sem
. , . 5·ensaçoes ou i e1 i pe ação actual de essa c01sa, assim me é impossív I b
menos evidente que as vanas d (·sto é sejam quais ~ a 5ens . , . e conce er no
. . d d qualquer mo o i ' o. um to uma c01sa sens1vel ou ob1ecto distinto da .
dos, hgadas ou combina as e . tir em um espírito que nsarnen sensaçao ou per-
- m) só podem ex1s as pe .0 de ele.
rem os objectos que compoe . h cimento intuitivo se notar
ter de isto con e o cepça
perceba. Quem quer Pode . sensíveis. Digo que existe a
. . aplicado a c01sas
sentido do termo ,existir•, . into-a · e se estiver fora d 6) Ha, verdades tão óbvias para o espírito que ao homem basta abnr.
- uer dizer, veio-a e s ' , . o ara vê-las. Entre elas muito importante é a de 5 b
mesa onde escrevo q . ·r· do assim que se la es11vess olhOS P . ' . a er que todo
. d. la existe, s1grn ican e 5
o rnento e as c01sas da terra, numa palavra todos d
meu gabinete 1go que e , . te a vê. Houve um odor, isto é firfílª , . · os corpos e
• . t o espmto actua1men ' 0
ompõe a poderosa maquina do mundo não subs· t
ve-la-1a, ou que ou r •sto é ouviu-se algo; uma co ue se C is em sem um
· houve um som, 1 , r q ,. e O seu ser é serem percebidas ou conhecidas· cons .
cheirava a alguma cmsa; . b.d pela vista ou pelo tacto. É tudo 0 espmto, ,. , equente-
, •sto é foi perce I a 1quer outro espmto criado não temo· d
ou uma ,orma 1 ' tras expressões. O que se tem dito da rnente, enquanto eu ou
_ . qua . • . , , e e1as
entender por esta e ou ão actual, nao tem ex1stenc1a ou subsistem na mente d 1
que posso . . nsantes sem alguma relação com o seu percepÇ, . . e a gum
. • . bsoluta de coisas 1mpe
ex1stenc1a a , ·t mente ininteligível. o seu esse é percip;- Espírito eterno; sen~o perfe1ta~ente ininteligível e abrangendo todo 0
ebidas parece penei a ' bsurdo da abstracçao atnbuff a uma parte de elas existência indepen-
ser perc . • . fora dos espíritos ou coisas pensantes
nem é possível terem ex1stenc1a ~ente do espírito. Para ver isto bem claramente o leitor só precisa de
que os percebem. reflectir e te ntar separar no pensamento o ser de um objecto sensível do
revalece a opinião singular de que as casas seu ser percebido.
4) Entre os homens P . • . '
. d obi·ectos sensíveis têm uma ex1stencia natural
montanhas, nos, to os os ,. . ?) De tudo isto se segue que só há uma substância, 0 espírito, 0
. . d perceptibilidade pelo espmto. Mas por mais se-
ou real, distinta a sua . . percipiente: Mas para prová-lo considerem-se as qualidades sensíveis cor.
. • • ue este princípio tenha 11do no mundo, quem tiver
gura aqmescenoa q figura , movimento, cheiro, sabor, etc., isto é, as ideias. percebidas pelos
. t' lo compreenderá se não me engano, que envolve
coragem de d1scu 1- ' . . d • . sentidos. Ora , para uma ideia existir em coisa não percipiente envoh·e
marnfesta contrad.1çao.
. - Pois que são os ob1ectos menciona , _os senao co1-
.d elos sentidos' E que percebemos nos alem das nossas contradição, porque ter uma ideia é o mesmo que percebê-la: port:into.
sas percebI as P · ..
próprias ideias ou sensações? E não repugna admitir que alguma ou um aquilo onde cor, figura , e qualidades análogas existem tem de percebê-
conjunto de elas possa existir imperceb1do
7 -las; de onde não poder haver substância não pensante ou substractum
de aquelas ideias.
S) Se bem examinarmos esta asserção acharemos talvez que depende
afinal da doutrina das ideias abstractas. Pode haver maior esforço de 8) Pode alegar-se que e mbora as ideias não existam sem o espírito
abstracção do que separar a existência dos objectos sensíveis do facto talvez haja coisas semelhantes de que elas sejam cópia, existentes sem o
de serem percebidos, assim como concebê-los existentes e 1mperceb1- espírito numa substância inconcebível. Respondo que uma ideia só pode
dos' Luz e cores, calor e frio, extensão e figuras, numa palavra, as coi- ser semelhante a uma ideia; uma cor ou uma forma só pode asseme-
sas que vemos e sentimos, que são senão sensações, noções, ideias ou lhar-se a outra cor ou forma . Se examinarmos um pouco o nosso pen-
impressões nos sentidos' É possível separar alguma de elas da percep- samento acharemos a impossibilidade de conceber qualquer semelhança
ção, mesmo em pensamento? Quanto a mim, o mesmo é separar uma excepto entre as nossas ideias. Torno a perguntar se aqueles supostos
coisa de si mesma. Posso na verdade dividir em pensamento ou conce- originais ou coisas externas de que as nossas ideias seriam cópia ou
ber em separado coisas que talvez nunca tenha percebido pelos sentidos representação são perceptíveis ou não. Se são, são ideias e está ganha a
assim divididas. Assim imagino o tronco de um homem sem os mem- causa; se me dizem que não sào, convido quem quer que seja a achar
bros ou concebo o cheiro de uma rosa sem pensar na rosa. Não nego sentido em afirm ar a semelhança de uma cor com alguma coisa invisí-
poder abstrair, se pode chamar-se abstracção o que apenas abrange a vel; a do áspe ro o u macio com alguma coisa intangível, e assim por
concepção separada de objectos realmente existentes ou actualmente diante.

48 49
mentos nem as paixões, ne ·veis separadamente. Mas a minha capacidad .
3) Todos concordarão que nem os pensa ' , ·t • rn rceptl , d . .. e conceptiva ou ima-
. t m sem o espm o; e nao parec pe . não vai alem a poss1b1hdade da real ex· t" .
as ideias formadas pela imaginação ex1s e . e inauva - . - is enc1a ou percepção
- ou ideias impressas nos senr g de assim como me e 1mposs1vel ver ou sent" 1 . ·
e on • d . ir a guma c01sa sem
menos evidente que as várias sensaçoes . , . . 1- D nsação actual e essa coisa, assim me é imp _.
modo (Isto e , se1am quais f0- rna se . - . oss1ve1 conceber no
dos ligadas ou combinadas de qua1quer , .t ll ento uma coisa sens1vel ou obiecto distinto d _
' - ) - dem existir em um espm o que as pensam a sensaçao ou per-
rem os objectos que compoem so po . to intuitivo se n t · o de ele.
· to conhec1men o ar 0 cepça
perceba. Quem quer pod e ter de is , . . .
.. r do a coisas sens1ve1s. Digo que existe a
sentido do termo -ex1st1r•, ap ica . . e se estiver f á verdades tão óbvias para o espírito que ao h b .
mesa onde escrevo - quer dizer, vejo-a e Smto-a'. , ma do 6) H _ . . ornem asta abnr
s para ve-las. Entre elas muito importante é d
•ste significando assim que se la estivesse s oIhO . ª e sa ber que todo
meu gabinete digo que e 1ª exi ' - Houve um odor ist - 0
. amento e as coisas da ,terra,
vê-la-ia, ou que outro espírito actualmente. a v~. . 1 . ' o e, 0 f
1rm . numa palavra , tod os os corpos de
. . . houve um som, 1sto e , ouviu-se a go, uma cor que s e compõe a poderosa
_ maquina do
. mundo não su bs1.stem sem um
cheirava a alguma c01sa, 1 É , ·to e O seu ser e serem percebidas ou conhecida .
. , , . percebida pela vista ou pe o tacto. tudo 0 esplíl , s, consequente-
ou uma forma isto e, 101
esta e outras expressões. O que se tem dito da rnen te , enquanto eu_ou _qualquer. _outro
. espírito criado na·o temos de e1as
que posso entend er por I - ão actual, nao tem ex1stenc1a ou subsistem
. - . bsolt1ta de coisas impensantes sem a1guma re açao com o seu percepç . . . na mente de algum
eX1stenc1a a . -
.d parece perfeitamente inintehg1vel.
o seu esse e- perc,p;, •- Espírito eterno; sen~o perfe1'.ame nte mmteligível e abrangendo todo o
ser perce bI as ,. .
nem é possível terem existência fora dos espmtos ou c01sas pensantes absurdo da a~stracçao at~1bmr a uma parte de elas existência indepen-
dente do espmto . Para \er isto bem claramente O leitor só precisa de
que os percebem.
reflectir e tentar separar no pensamento o ser de um objecto sensível do
seu ser percebido.
4) Entre os homens prevalece a opinião : ingular de _q~e _as casas,
• todos os obi·ectos sensíveis tem uma ex1ste nc1a natural
montanhas, nos, ,. .
. t· t da sua perceptibilidade pelo espmto. Mas por mais se- 7) De tudo isto se segue _ que .só há uma substância , O espmo, - ·t o
ou reaI, d1s m a . .
gura aquiescência que este princípio tenha tido no mundo, quem tiver percipiente: Mas para prova-lo considerem-se as qualidades sensíveis cor.
coragem de discuti-lo compreenderá, se ~ão me engano, que e_nvolve figura , movimento , cheiro , sabor, etc., isto é, as ideias. percebidas pelos
sentidos. Ora, para uma ideia existir em coisa não percipiente envolve
.,
mam,esta contradi·ça·o• Pois que são os ob1ectos menoonados
_ _ senao co1.
.d elos sentidos' E que percebemos nos alem das nossas contradição, porque ter uma ideia é o mesmo que percebê-la; portanto.
sas percebI as p · ..
próprias ideias ou sensações? E não repugna admitir que alguma ou um aquilo onde cor, figura, e qualidades análogas existem tem de percebê-
conjunto de elas possa existir imperceb1do
1 -las; de o nde não poder haver substância não pensante ou substractum
de aquelas ideias.
5) se bem examinarmos esta asserção acharemos talvez que depende
afinal da doutrina das ideias abstractas. Pode haver maior esforço de 8) Pode alegar-se que embora as ideias não existam sem O espírito
abstracção do que separar a existência dos objectos sensíveis do facto talvez haja coisas semelhantes de que elas sejam cópia, existentes sem 0
de serem percebidos, assim como concebê-los existentes e impercebi- espírito numa substância inconcebível. Respondo que uma ideia só pode
dos' Luz e cores, calor e frio, extensão e figuras, numa palavra, as coi- ser semelhante a uma ideia; uma cor ou uma forma só pode asseme-
sas que vemos e sentimos, que são senão sensações, noções, ideias ou lhar-se a outra cor ou forma. Se examinarmos um pouco o nosso pen-
impressões nos sentidos? É possível separar alguma de elas da percep- samento achare mos a impossibilidade de conceber qualquer semelhança
ção, mesmo em pensamento' Quanto a mim, o mesmo é separar uma excepto entre as nossas ideias. Torno a perguntar se aqueles supostos
coisa de si mesma. Posso na verdade dividir em pe nsamento ou conce- originais ou coisas externas de que as nossas ideias seriam cópia ou
ber em separado coisas que talvez nunca tenha percebido pe los sentidos representação são perceptíveis ou não. Se são, são ideias e está ganha a
assim divididas. Assim imagino o tronco de um homem sem os mem- causa; se me dizem que não sâo, convido quem quer que seja a achar
bros ou concebo o cheiro de uma rosa sem pensar na rosa. Não nego sentido e m afirmar a semelhança de uma cor com alguma coisa invisí-
poder abstrair, se pode chamar-se abstracção o que apenas abrange a vel; ª do áspe ro ou macio com alguma coisa intangível, e assim por
concepção separada de objectos realmente existentes ou actualmente diante.

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9) Houve que m fizesse distinção e ntre qualidades primá rias e s
- . ecun
ela n as. contando nas primeiras a exte nsão, forma, movimento rep · ·n·a-prima, de Aristóteles e seus pr . .
. . ' ouso te . ose 11tos. Se
solide z ou impenetrabilidade e núme ro ; nas segundas, as qualid · be a solidez; logo, demonstrado que a ~ extensão não
- . ades . b' l extensao - . se conce-
sens1ve1s, como cor, som, sabor, etc. De e~tas concordam não tere tância mconce ive ' o mesmo será verdad e1ro . nao existe n
da 1· uma subs-
semelhança com algo existente fora do espmto, ou unpercebido rn so 1dez.
prete ndem que as ideias de qualidades primárias se jam imagens d~ rnas 12) O número é total criação d0 ,.
. . esp1nro .
sas existe ntes fora do espírito em uma substância impe nsante a que ~~•- qualidades pudessem ex1st1r sem ele b e ainda quando
_ , asta consid outras
nome matéria. Por matéria há-de e ntender-se uma substância inen ª
0
difere quanto ao numero conforme O p erar que a mesm .
_ pod . . onto de vist d a coisa
não sensível em que subsistem actualmente extensão, figura, e movirne e e rnesrna extensao e expnm1r-se por u • a o espírito· a .
. - , fi1gura, e movimento
. - . d , m, Ires ou t . , ss1m a
Mas como vimos e- ev1'dente que extensao são a nto· referida a Jar a, ao pe , ou à polegada N, , nnta e seis cone
· • umero, é tàO , ,onne
1 eias existentes no espmto, e a I eia s po e asse me bar-se a, !)enas
'd - . .d . 6 d 1
tivo, e dependente do entendimento hu sensivelmente 1
- . 0 utra mano que . re a-
ideia; portanto nem elas nem os seus arqueltpos pode m existir em li pensar na sua existência absoluta , fora do espmt ' _. espanta possa alg -
. uem
substância incapaz de perceber. De onde a ve rdadeira noção da cha rna -urna página•, •uma linha,, e todos são un I'd d o. Dizemos •um livro.
da matéria ou substâ11cia corpórea e nvolver contradição. rna. a es emb ,
outras. E em cad a exemplo, é evidente . ora contenham vá .
. . . , a unidade rei nas
nação particular de 1de1as arbitrariamente . . ere-se a uma combi-
10) Os que afirmam existirem as qualidades primárias - figura JUng1das pelo es _.
pinto.
vimento etc. - fora do espírito e m substância impensante ao •n' rno. 13) Unidade. Alguns a consideram b
' ' esrno , em sei uma 1d
tempo o negam das secundárias: calo r, som, frio, quente, e outras _ acompanha to d as as outras no espírito N' ' eia simples que
, · 1 ao acho em
existentes no e spírito, dependentes e derivadas da dive rsa grandeza ' so respondente a palavra •unidade, e se a t mim tal 1de1a cor-
, d , . , tex- , ivesse talvez -
tura e movimento d as part1cu1as a mate n a; co nsideram isto uma v d de encontra-la; pelo contrário seria a . r .. nao pudesse deixar
er a- . . ' mais ,amil1ar d0
de demonstrável sem excepção. Ora, se estas qualidades originais fore to pois se diz que acompanha todas a . . meu entendimen-
s outras ideias -
inse paráveis das outras qualidades sensíveis e incapazes de abstracçà: rodos os modos da sensação e da re/1 _ , e e percebida por
exao. Para não d'1
mesmo e m pensamento , segue-se que existe m somente no espírito. Que ideia abstracta . zer mais, é uma
alguém reílicta e veja se pode abstrair e conce ber a extensão e mo .
VJ-
mento de um corpo sem todas as outras qualidades sensíveis. Por mim 14) Acrescentarei que do modo como r·i- e
. • . d I oso,os modero
não consigo formar ide ia de um corpo móvel e extenso se m dar-Ih~ ex1stenc1a e cen as qualidades na m t , . os provam a
a ena ou fora do -.
alguma cor ou outra qualidade sensível das que se reconhece existirem poderia provar-se de quaisquer Ol t . espmto. outro tanto
' ras qualidades s - .
só no espírito. Em resumo , extensão , figura, movimento , são inconcebí- exemplo, diz-se que O frio e O c _ ens1ve1s. Assim, por
a 1or sao afecções do ,.
veis separadas das outras qualidades. Onde existam p ortanto as outras semelhanças de seres reais existe t espmto e não
' n es nas substância -
qualidades sensíveis, essas de vem existir ta mbé m, isto é , no espírito e excitam, porque o mesmo corpo p0 d s corporeas que os
e parecer frio a -
em ne nhuma outra parte. a outra. Por que não dizer O me d r· ' uma mao e quente
smo e 1gura e exten - ·
mo olho em posições diferentes ou olhos de d' sao, visto o mes-
posiçào as verem diversamente . iversa contextura na mesma
11) Repito : grande e p equeno, ráp ido e lento só existe m no espírito, , e por isso elas não pod .
gens de alguma coisa fixa e determinada fora do e - . i ; rem se_r ima-
por sere m inteirame nte re lativos, mudáveis com a posição e ordem dos que a doçura não está n . _. spmto. ep1to: e certo
órgãos dos sentidos. Portanto, a extensão existe nte fora do espírito não o doce d I o obJecto rap1do, porque sem alteração do objecto
po e vo ver-se amargo d
é grande nem pe quena, o movimento nem rápido nem le nto, isto é, não ··d d ' como urante a febre ou pelo paladar
v1c1a o e qualquer modo N' - ,
são nada. Pode alegar-se que se trata de exte nsão e movime nto em geral; - - · ao sera razoável dizer que o movimento
nao esta fora do esp" t d
vemos assim quanto a doutrina das s ubstâncias móveis exte nsas, existen- ,. m o, notan o que se a sucessão das ideias no es-
pmto se torna mais ráp I'd •
tes fora do espírito depende d a singular doutrina das ideias ahstractas. a, o movimento, como se sabe parece mais
lento sem qualque lt - d '
, r a eraçao e um objecto externo?
E aqui não p osso de ixar de notar quanto a vaga e indeterminada descri-
ção da matéria ou substância corpórea introduzida pe los modernos filó- 15) Em suma • c ons1'derand o os argumentos aduzidos para provar que
sofos nos seus princípios, se parece com a velha e ridiculizada de ma- sabores e cores so- existem
· ,. achar-se-a- que provam o mesmo
no espmto,

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inúteis argumentos a posterion para confirmar O que se não erro fic0 \ 1

s não conheço melhor e mais prontO .
provado a priori; como por ter ocasião mais adiante de falar um Pouco outro .d d caminho de
examinem cu1 a osamente os seus pe . J que pedir-lhes
que . _ nsarnentos· 5st.· ·
a esse respeito . . e a contrad1çao, e basta para convence N · ' ª rn aparecerú 0
vaz10 d . .. 7 r. este pont 0 1.. · .
• •a absoluta e c01sas nao pensantes- , ns1sto: -exis-
22) Receio ter dado razão de me acusarem de desnecessariamente tenc1 , . s ,10 palavras . .. .
sentido. E o que repito e inculco e rn . contrad1tonas ou
prolixo ao tratar de este assunto. Em verdade para que serve dilatar 0 sem . ax1rnarnen1e
ensar do leitor. recomendo ao
aten to P
que pode demonstrar-se em uma ou duas linhas_ ª. quem for capaz de
breve reflexão' Basta examinar o pensamento propno e tentar conceber
25 ) Todas as . nossas
-
ideias, sensações no -
- .. · ' çoes ou coisas b.
a poss1•b·1·d
11 ad e d e um som , figura , movimento,
. ou cor, existirem fora do b ciualquer des1gnaçao, sao v1s1velrnente inacr . · perce idas,
espírito ou impercebidos. Esta si_mples tentativa pode talvez rev:Iar que so ivas, sem poder o .
Iouma; uma ideia ou objecto do pensar não d u agencia
se defende uma contradição radical. De modo que me baS ta por assim ª"r que assim. e, b asta uma simples
.
observação d
po e alterar outra· p .
. . , ara
a questão em conjunto: se podeis conceber possível para uma substân. ve _ as nossas 1de1as. De d
que elas no, todo e ,em cada bº
parte so existem no e . .
spmto. segue-se qu
s e
eia móvel extensa ou em geral para qualquer ideia ou coisa semelhante nelas só ha o que e perce ido; mas por mais que ai , . e
a uma ideia, existir fora do espírito percipiente, dar-vos-ei plena razão, • ·d guern examine as
suas ideias, dos senil os ou da reflexão, não encont , ·
e afirmarei a existência de todos esses corpos extenores que pretender- . . d . rara ne1as qualquer
força ou ac11v1da e; portanto tal coisa não se cont -
des, ainda que só possais dar-me como razã_o acreditar na s~1a existência , em ne1as. Urna breve
atenção nos mostrara que o ser de uma ideia implica . . .
ou indicar algum uso para o que se supoe existir. Isto e, a simples , . , a sua pass1v1dade
e inércia, tal que e 1mposs1vel a uma ideia fazer se·a f
. J o que or, ou
possibilidade da verdade da vossa opinião passará por argumento de- estritamente, ser causa . de alguma coisa·' nem pode se r serne Ihanca ou
monstrativo. modelo de _um ser actlvo, como _ evidentemente
. resulta d o paragra
, ·fo 8.
De onde nao poderem . extensao, figura ' e movimento se r causa de sen-
23) Mas _ dir-me-eis - nada mais fácil do que imaginar por exem- sações nossas. Dizer portanto que elas são efeito de ,,corças resu1tantes
plo árvores em um parque, ou livros em uma estante e ninguém para de configuração, número, movimento e forma dos corpúsculos, é decer-
percebê-los. Respondo que na verdade não é difícil; mas que é isso senão to falso.
formardes no espírito certas ideias a que dais no me livros e árvores,
omitindo ao mesmo tempo formar ideia de aquilo que os percebe' Mas 26) Percebemos uma série contínua de ideias, algumas recentemente
não pensais vós mesmos neles durante esse tempo' Isto portanto nada excitadas, outras mudadas ou desaparecidas. Há pois alguma causa de
importa ao caso. Só mostra que podeis formar ideias no vosso espírito, estas ideias de que elas dependem, que as produz e transforma. Que
mas não que os objectos do vosso pensamento existam fora do espírito. esta causa não pode ser uma qualidade ou ideia ou combinação de ideias,
Para contestá-lo é necessário que os concebais existentes e não pensa- mostra-o o parágrafo a nte rior. Deve portanto ser uma substância; mas já
dos, o que evidentemente repugna. Ao esforçarmo-nos no máximo para vimos que não há substância corpórea ou material; resta portanto que a
conceber a existência de corpos externos, contemplamos sempre e so- causa das ideias seja uma substância activa incorpórea ou Espírito.
mente as nossas próprias ideias. Mas como o espírito não se conhece a
si mesmo, ilude-se crendo conceber corpos existentes e não pensados 27) Um espírito é um ser simples, indivíduo, activo; quando percebe
ou fora do espírito embora ao mesmo tempo sejam por ele apreendidos ideias chama-se e11te11climento e quando produz ou de outro modo ope-
ou existam nele. Uma breve atenção mostra a verdade evidente do que ra com elas, chama-se vontade; de aqui não haver ideia de alma ou
fica dito e desnecessita a insistência em demonstrar a inexistência da espírito; porque sendo passivas e inertes as ideias (v. § 25) não podem
substância material. representar para nós, por meio de imagem ou semelhança, aquilo que
age. Uma breve atenção mostra a impossibilidade de uma ideia seme-
24) É muito simples depois de isto saber se podemos compreender lhante a um princípio de movimento e mudança de ideias. Tal é a na-
o significado de existência absoluta de objectos sensíveis em si mesmos tureza do espírito, de aquilo que actua, que não pode ser percebido de
ou fora do espírito. Para mim é evidente encerrarem estas palavras uma si mesmo e apenas pelos efeitos produzidos. Se alguém duvida de eS!a
contradição directa ou não ter significado algum. Para de isto convencer verdade, reflicta e tente fazer ideia de uma força ou ser activo e se tem

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53) A opinião de que nao - h,a causas corpóreas. foi , já. mantida nout harem a contradição implícita nestas pai
, . tros entre filosotos moder ro os son . . avras; mas os filóso-
tempo por alguns escolasttcos, e por ou , nos 9ll fl'len do visto claro que os obJectos imediatos da pe _ _ .
· . , . d t ' ria entendem que so Deus • e ten . . rcepçao nao ex1s-
embora aceitando a ex1stencia a ma e e cau foS, do espírito, cornglfam de certo modo O erro d
·sas Viram que entre os ob1·ect · fora , o vu1go; mas ao
sa eficiente imediata de todas as coi · os do tefl'I mpo parece terem caido em não menor b d
. · ·d de própria. Portanto isto er . s esrno te . f d ,. a sur o, o de que
sentidos nenhum havia com acuvi ª . , . a 1gua1. fl'I bJ·ectos existem ora o espmto, ou têm subsistên . d·r
rpos por h1potese extenores a rtoS o . . eia 1,erente de
mente verdadeiro de todos os co '. _ . o espí. ce
r perce
bidos e de que as nossas ideias são apenas .
' ,. imagens ou seme-
rito, e dos objectos imediatos dos sentidos; mas entao tmham de suPor se impressas no espmto por esses objectos. Esta noção d f'l , ,
.
uma mumerave , 1 mtilti'dão de seres criados, que eles . consideravam 1.nca. lhanças, esma causa d a antenor, .
quer dizer a consciência d -
os I oso,os
~a m _ ' e~R~
pazes de qualquer efeito na natureza, portanto cnados sem qualquer fi111 t das suas sensaçoes, que reconheceram provindas d t .
poi~ Deus poderia ter feito tudo sem eles. Embora possamos aceitá-!~ utores . . ,. o ex enor, e
a . deviam ter causa distinta do espmto em que estav· .
por isso am impressas.
como possível, a hipótese é singular e extravagante.

54) Oitavo: O consenso universal pode . p~recer a alguns argumento 57) Suporem as id:ias dos sentidos pr~vocadas em nós por coisas
_ recorrerem ao espirita, que só ele pode actuar,
sernelhantes a elas e nao
invencível em favor da matéria, ou da ex1stenoa de coisas exteriores e explicar-se por nao terem dado pela repugnância que há quer em

d ·
Havemos de supor que O mundo todo se enganou? Respondo: primeiro. supor coisas extenores semeIhantes as
' nossas ideias,
· · quer em atribuir-
que uma investigação minuciosa mostrará_ não serem tal_vez tantos os qu~ -lhes poder ou acllvidade. ~eg~ndo, porque o Supremo Espírito que em
realmente creram na existência da matena ou de coisas exteriores ao ós excita aquelas 1de1as nao e mostrado ou limitado à nossa vista por
espírito. Estritamente falando é impossível crer isso'. que envolve contra. ~ualquer colecção particular finita de ideias sensíveis, como os agentes
dição ou não tem sentido. Deixo ao exame 1mparc1al cio leitor averiguar humanos são, pela figura , aspecto, membros e movimentos. Terceiro,
se as expressões antecedentes não são de essa espécie. Em certo senti- porque as suas operações são regulares e uniformes. Se O curso ela
do os homens dizem acreditar na existência da matéria, isto é, actuam natureza é interrompido por um milagre os homens reconhecem a pre-
como se a causa imediata das suas sensações nesse momento, e por sença de um agente superior; mas se as coisas seguem o curso ordiná-
isso tão presente, fosse um ser insensível e não-pensante; mas não pos. rio não excitam a nossa reflexão. A sua ordem e concatenação, embora
so conceber que apreendam o verdadeiro sentido das palavras e fonnu. sejam argumento de grande sabedoria e bondade no seu criador, são
lem uma opinião especulativa. Não é o único exemplo de os homens se tão constantes e familiares para nós que não os pensamos como efeito
imporem a si mesmos, imaginando acreditar em proposições frequente- imediato de um espírito livre; especialmente desde que inconsistência e
mente ouvidas, embora afinal não pensem nelas. mutabilidade na acção, conquanto sejam defeito, se consideram indício
de liberdade.
55) Mas em segundo lugar a adesão pacífica e universal a uma no-
ção é fraco argumento da sua verdade para quem considera o vasto 58) Décimo: Pode objectar-se que estas noções são incompatíveis com
número de preconceitos e opiniões falsas aceitos com a maior tenaci- verdades basilares da filosofia e da matemática. Por exemplo o movi-
dade pela parte irreflectida da humanidade, que é a mais numerosa. Tempo mento terrestre é hoje admitido por todos os astrónomos como verdade
houve em que os antípodas e o movimento terrestre eram tidos por claramente demonstrada. Mas pelos princípios anteriores, sendo o movi-
absurdos monstruosos até pelos home ns cultos; e dada a proporção de mento uma ideia, segue-se que não sendo percebido não existe; mas
estes com o resto da humanidade, acharemos que nesse tempo aquelas esse movimento nào é percebido pelos sentidos. Respondo: a afirmação.
noções só tinham ganho no mundo um lugar desprezável. bem compreendida, concorda com os princípios anteriores; essa questão
consiste apenas em saber se temos razão para concluir, pela observação
56) Pergunta-se a causa de este preconceito e sua aceitação no mundo. dos astrónomos, que uma vez colocados em certas circunstâncias, na
Respondo que os homens conhecendo que pe rcebem muitas I'deias · de posição e à distância conveniente da terra e do sol, veríamos a terra
que não são autores (por não serem excitadas interiormente nem depen· mover-se no conjunto dos planetas, idêntica a qualquer de eles; e isto,
derem de operações da vontade) mantêm que essas ideias ou objectos pelas leis da natureza de que não há razão de duvidar, conclui-se racio-
de percepção existem independentes do espírito e fora de ele, sem ao nalmente dos fenómenos.

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George Berkeley

·TRATADO DO CONHECIMENTO
HUMANO
Tradução e prefácio de Vieira de Almeida

- ,
TRES DIALOGOS
Tradução, prefácio e notas de António Sérgio

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA


. S_ . Universitária • Clássicos de Filosofia
Estudos Gerais ene
Esta edição de
Tratado do Conhecünento Humano e· Três Dt.álogo
foi executada na
I1nprensa Nacional-Casa da Moeda
com u1na tiragem de oitocentos exemplares.
Orientação gráfica do Depa1tamento Editorial da n

Acabou de imprimir-se
e1n Fevereiro de dois mil.

ED. 130 000 2003


CÔD. 220 062 000
ISBN 972-27-0994-l
DEP. LEGAL N.º 147 086/00

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