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HISTÓRIA DOS

POVOS INDÍGENAS E
AFRODESCENDENTES

autor do original
FERNANDO DE FIGUEIREDO BALIEIRO
KAREN FERNANDA BORTOLOTI

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2015
Conselho editorial  magda maria ventura gomes da silva, lucia ferreira sasse,
marina caprio

Autor do original  fernando de figueiredo balieiro, karen fernanda bortoloti

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  rodrigo azevedo de oliveira

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  fabrico

Revisão linguística  aderbal torres bezerra

Imagem de capa  nome do autor  —  shutterstock

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2015.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

B186h Balieiro, Fernando de Figueiredo


História dos povos indígenas e afrodescendentes /Fernando de
Figueiredo Balieiro ; Karen Fernanda Bortoloti.
— Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2014.
168 p. : il.

isbn: 978-85-5548-076-8

1. Diversidade. 2. Cultura brasileira. 3. Cultura africana. 4. Cultura indígena.


I. SESES. II. Estácio.
cdd 371.82

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. As Definições de Cultura 8

O que é cultura? 9
Cultura como um conceito antropológico 11
O determinismo biológico 15
O determinismo geográfico 17
Evolucionismo, etnocentrismo e relativismo cultural 18
Cultura popular e cultura erudita 24
Indústria cultural 27

2. Cultura e Identidade Nacional 40

Cultura e identidade 41
A construção da identidade nacional brasileira 45
Identidade nacional: a mestiçagem como mácula 52
Uma outra história: as relações étnico-raciais no Brasil 65

3. Cultura, Literatura e Sociedade 94

Literatura e Sociedade 95
Cultura e Sociedade no Brasil 108
4. Globalização, Tradição e Modernidade 116

A modernidade como singularidade histórica 117


Modernidade, tradição e reflexividade no Brasil contemporâneo 122
Globalização 125
A tese da ocidentalização do mundo 130
Os paradoxos e os limites da globalização 134
A tradição e o moderno na construção da identidade
nacional brasileira: a chegada ao mercado global 136

5. Identidade Cultural na Contemporaneidade 148

Identidades culturais na contemporaneidade 149


Multiculturalismo e diversidade 157
Prefácio
Prezado(a) aluno(a)
A história do Brasil não pode ser pensada sem considerarmos a diversidade
étnico-racial presente no território que se constituiu como nacional. Uma di-
versidade étnica indígena deparou-se com as pretensões colonizadoras de uma
sociedade, a portuguesa, muito mais forte belicamente e com interesse em
conquistar seu território para fins econômicos e políticos. Acresce-se a essa a
população africana, também trazida de diversas regiões e com tradições cul-
turais distintas, para o trabalho no empreendimento econômico canavieiro e,
para tanto, escravizada. Juntamente com outras populações, como a italiana,
alemã, japonesa, chinesa, árabe, entre outras, forma-se a diversidade cultural
ainda presente em nossa sociedade. O foco na história das populações indíge-
nas e afro-brasileiras se dá não somente pela sua importância aos dias de hoje,
mas também pelo negligenciamento a que foram relegadas até pouco tempo.
Da evangelização às expectativas de integração nacional, passando pela busca
constante do “branqueamento”, esperava-se apagar as diferenças, para a afir-
mação daquilo que se considerava como “civilização”. No entanto, tal história
é de resistências e lutas, marcada por evidenciar a presença de preconceito e
discriminação racial, e a busca pela reparação histórica em razão das desvanta-
gens cumulativas em relação a esses grupos.
Refletiremos sobre a diversidade que compõe a sociedade brasileira de
hoje, valorizando o passado dos povos indígenas e africanos e compreendendo
sua presença e relevância na sociedade contemporânea.

Bons estudos!

7
1
O Impacto Cultural
do Contato entre
Europeus e Índios
1  O Impacto Cultural do Contato
entre Europeus e Índios

A análise da história dos povos indígenas e afrodescendentes, que contribuí-


ram para a formação do que hoje denominamos povo brasileiro, deve iniciar-se
com a compressão da história do povo português no momento de sua expansão
territorial. Sem compreendermos os interesses comerciais e religiosos que ala-
vancaram tamanha empreitada, é impossível entender como se deu o amálga-
ma cultural que favoreceu a estruturação de uma cultura rica e diversificada
como a nossa.
Assim, inicialmente, analisaremos a expansão portuguesa e os impactos
culturais por ela ocasionados a partir da ocupação de regiões diferentes e do
deslocamento de pessoas e culturas.

OBJETIVOS
• Analisar os fatores da expansão europeia.
• Compreender o que é a escravidão denominada moderna.
• Analisar o choque cultural ocasionado pelo contato entre indígenas brasileiros e colo-
nizador europeu.
• Avaliar a utilização da mão de obra escrava.
• Compreender porque predominou o uso da mão de obra africana na empreitada colonial
portuguesa no Brasil.
• Entender por que a participação da Companhia de Jesus contribuiu para o uso da es-
cravidão africana.

REFLEXÃO
Você se lembra da primeira vez que ouviu falar sobre os primeiros habitantes do Brasil? Qual
foi a ótica que permeou esse seu primeiro contato com os indígenas? Eles foram apresen-
tados como os donos do território invadido pelos portugueses? O que você conhece da
escravidão africana praticada no Brasil?

10 • capítulo 1
1.1  Expansão marítima europeia

Não é possível compreender os processos da formação social, política e eco-


nômica do Brasil sem inseri-los no contexto da expansão comercial marítima
europeia do século XV. Após a centralização do poder, no final da Idade Média,
Portugal foi governado, por mais de duzentos anos, pela dinastia de Borgonha,
desenvolvendo-se economicamente devido à agricultura e ao comércio, o que
favoreceu o fortalecimento de uma burguesia poderosa e dinâmica.
Com a morte de Fernando I, em 1383, a dinastia de Borgonha chegou ao
fim. Sem deixar herdeiros do sexo masculino, a rainha D. Leonor Teles assume
o poder em caráter de regência, pretendendo entregá-lo à sua filha Beatriz, ca-
sada com o rei de Castela, que em nome das antigas relações de parentesco rei-
vindicou o direito à sucessão do trono português. A sociedade portuguesa ficou
dividida: de um lado a nobreza, interessada nos privilégios que poderia obter
com a unificação, camada social essa que contou com o apoio do rei de Castela;
e de outro a burguesia, que, juntamente com as camadas populares, não acei-
tava a referida união, pois desejava permanecer independente e sob o mando
de um rei que apoiasse o crescimento comercial. Dessa forma, impulsionada
por esse desejo, a fortalecida burguesia aliou-se a D. João, irmão bastardo do
falecido rei D. Fernando e Mestre da Cavalaria de Avis, e tomaram o poder. A
ascensão de uma nova dinastia, apoiada no poder da burguesia, ficou histo-
ricamente conhecida como Revolução de Avis (1383-1385), evento que iniciou
um novo período na história mundial (HOLANDA, 2004, p. 15).
O poder da nova dinastia, como já destacamos, consolidou-se a partir da
aliança com a burguesia que, juntamente, com o apoio da Igreja Católica e dos
conhecimentos náuticos acumulados devido às atividades pesqueiras facilitadas
pela proximidade ao mar, Portugal reunia pontos favoráveis à expansão maríti-
ma. Esses fatores atribuíram a Portugal o pioneirismo nas Grandes Navegações.
Para melhor compreensão, podemos dividir a expansão marítima portugue-
sa em duas fases: a primeira estende-se de 1415 a 1488 e é conhecida como Péri-
plo africano, devido a conquista do centro comercial de Ceuta, no norte da Áfri-
ca e à descoberta do Cabo das Tormentas, que abriria caminho para as Índias;
a segunda fase, também chamada de Oriental, abrange o período entre 1488 e
1530; indica o quadro mais marcante do processo de expansão, pois culminou
na descoberta, por Vasco da Gama, de um novo caminho para o Oriente, dese-
jo antigo de Portugal. Durante essa segunda fase os portugueses pisaram pela

capítulo 1 • 11
primeira, oficialmente, em solos brasileiros, pois a expedição comandada por
Pedro Álvares Cabral fez parte do tão sonhado projeto de conquista do Oriente.
Com relação à chegada dos portugueses ao Brasil, é pertinente lembrarmos
as controvérsias existentes em torno desse acontecimento, porque muitos histo-
riadores contestam a ideia de que os portugueses chegaram ao Brasil por “aca-
so”, uma vez que o Tratado de Tordesilhas, definido em 1494, mencionava que
Portugal tomaria posse das terras que o Tratado lhe confiava. Assim, essa corrente
historiográfica afirma que Portugal supunha, ou sabia, que as terras existiam, expli-
citando a luta pelo Tratado de Tordesilhas.

(...) Seja como for, os indícios mais ou menos vagos de crença na existência de terras
ocidentais já antes da jornada de Pedro Alvarez Cabral ainda não bastam para atestar
seguramente o seu conhecimento. (...) certamente com mais razão, cabe dizer do re-
sultado da análise da carta de Pero Vaz de Caminha pelos que defendem a qualquer
preço a tese da intencionalidade do “descobrimento” do Brasil em 1500. Embora nesse
documento, a mais meticulosa dentre as fontes primárias que se conhecem acerca
do descobrimento, o autor começasse por transmitir expressamente a Sua Alteza a
nova do achamento “desta vossa terra nova que nesta navegação agora se achou”,
não tem faltado quem visse na própria expressão “achamento” prova decisiva de que o
encontro da terra não fora acidental. Pretendeu-se que, na linguagem quinhentista, a
palavra “descobrimento” bem pode sugerir encontro fortuito, ao passo que o vocábulo
“achamento” aponta forçosamente para a intencionalidade. Só se “acha”, segundo essa
opinião, aquilo que antes se procura (...) (HOLANDA, 2004, p. 44).

Para outra corrente historiográfica, os indícios a esse respeito não bastam


para comprovar a tese de que os lusitanos tenham chegado aqui por obra do
acaso; no entanto, não descartam completamente essa possibilidade.

Desde o século XIX, vem se discutindo que a chegada dos portugueses ao Brasil foi
obra do acaso, sendo produzida pelas correntes marítimas, ou se já havia conhecimento
anterior do Novo Mundo e uma espécie de missão secreta para que Cabral tomasse
o rumo do ocidente. Tudo indica que a expedição se destinava efetivamente às Índias.
Isso não elimina a probabilidade de navegantes europeus, sobretudo portugueses, te-
rem frequentado a costa do Brasil antes de 1500 (FAUSTO, 2001, p. 14).

12 • capítulo 1
Enfim, posteriormente à chegada da esquadra portuguesa, a nova localida-
de permaneceu em segundo plano, pois, como está claro na carta de Caminha1,
não havia indicações da existência de ouro e pedras preciosas. Além da ausência
de “preciosidades”, a população aqui existente praticava atividades agrícolas de
subsistência e não necessitava de produtos importados vendidos pelos portu-
gueses. As florestas, os indígenas, os perigos apresentados pelo desconhecido
e os gastos com as navegações pelo Atlântico tornaram a exploração bastante
restrita durante os primeiros anos que se seguiram ao “encontramento ”.

Efetivamente, a expansão ultramarina européia, que se inaugura com os descobrimen-


tos portugueses no século XV, significou, na primeira fase digamos pré-colonizadora,
uma extraordinária redefinição da geografia econômica do ocidente pela abertura de
novos mercados, montagem de novas rotas, conquista monopolista de novas linhas
para a circulação econômica internacional; já na sua gênese, este movimento expan-
sionista revela suas relações profundas com o Estado moderno em formação. Assim,
enquanto tradicionalmente se procurava explicar os descobrimentos ultramarinos em
função de fatores externos, extraeuropeus, a colocação moderna do problema encara
a expansão ultramarina como produto das “condições particulares dos próprios países
atlânticos”, isto é, são os problemas da economia da Europa Ocidental que levam ao
esforço para a abertura de novas frentes de expansão comercial e à abertura de novos
mercados – a expansão atlântica apresenta-se, de fato, como forma de “superação da
crise” europeia do fim da Idade Média. (...)
Esta primeira fase da expansão europeia consistiu, basicamente, na abertura de novos
mercados e no estabelecimento de condições vantajosas para a realização deste co-
mércio ultramarino; acelerava-se, assim, a acumulação capitalista na Europa.
Mas, no processo de expansão, como é sabido, os europeus acabaram por descobrir
(ou redescobrir) o Novo Mundo; aqui as condições diferiam radicalmente daquelas en-
contradas no Oriente: seria impossível prosseguir na exploração puramente comercial
do ultramar, dado que inexistia nesta parte a produção organizada de produtos que
interessassem ao mercado europeu. (...)

1 Acesse a Carta de Pero Vaz de Caminha, disponível em: <http://veja.abril.com.br/historia/descobrimento/pero-

-vaz-de-caminha.shtml>.

capítulo 1 • 13
Efetivamente inserida no contexto mais geral do antigo regime, isto é, no contexto da
política mercantilista do capitalismo comercial executada pelo Estado absolutista, a
colonização da época moderna revela, nos traços essenciais, seu caráter mercantil e
capitalista; queremos dizer, os empreendimentos colonizadores se promovem e se rea-
lizam com vistas, sim, ao mercado europeu, mas, considerando a etapa em que isto se
dá, a economia europeia assimila esses estímulos coloniais, acelerando a acumulação
primitiva por parte da burguesia comercial.

MARQUES, Adhemar Martins; BEIRUTI, Flávio Costa; MOURA, Ricardo (sel.). História
moderna através de textos. São Paulo: Contexto,1989. p.81-83.

1.2  O início da colonização

O período que se estende de 1500 a 1530 pode ser denominado de Pré-Colonial,


pois, durante essas três décadas, o interesse português limitou-se à exploração
do pau-brasil, principal produto de interesse na Europa, uma vez que era utili-
zado como corante vermelho e a madeira, para a construção de móveis e navios
(FAUSTO, 2001, p.16-17).
A extração do pau-brasil era monopólio da Coroa e a exploração era con-
cedida a alguns arrendatários. Para a exploração, eram construídas feitorias,
fortificações temporárias, que serviam para estocar a madeira. O trabalho era
realizado pelos nativos em troca de utensílios como facas, espelhos e peque-
nos objetos sem valor, negociações que ficaram conhecidas como escambo2.
Apesar de, inicialmente, o Brasil não prometer tantas riquezas como as propor-
cionadas pelo comércio com as Índias, o período Pré-Colonial não deve ser com-
preendido como uma fase inexpressiva da história, como ocorreu muitas vezes,
pois esse momento foi significativo e determinante para a história do Brasil. As
primeiras relações entre europeus e indígenas, o choque cultural provocado por
tal encontro, a permuta de elementos culturais, o escambo e a convivência inicial-
mente “harmônica”, tudo isso, dentre outros fatores, evidencia com clareza pontos
de referência do tipo de sociedade que viria a se consolidar no novo território.

2 Escambo: cada navio que aportava no Brasil deixava uma leva de europeus. Sobreviviam os que se “casavam” com
as índias, aceitos pelos nativos segundo a tradição de que deveriam oferecer ao visitante uma mulher da tribo. Numa
época de guerras, era vantajosa a absorção dos estrangeiros, que se tornaram peças-chave em um esquema de
escambo que abrangia, além do pau-brasil, o abastecimento das naus. Os europeus pagavam com facas e espelhos.
Para os índios, os objetos de metal eram um enorme avanço e os espelhos, espantosos. Estes acreditavam levar
tesouros; já, para aqueles, as árvores não valiam tanto assim.

14 • capítulo 1
Ainda com relação à extração do pau-brasil, podemos notar que já de-
monstrava o caráter predatório da colonização que posteriormente se efeti-
varia. Os lucros iniciais dessa atividade e o estabelecimento das feitorias não
favoreciam a formação de núcleos de povoamento, porque as feitorias eram
abandonadas quando a madeira em torno delas se esgotava.

Tupis e tapuias
Os tupis foi o grupo indígena que historicamente tornou-se mais conhecido, sobretudo
porque foram os primeiros a entrar em contato com os europeus, porém, nos primei-
ros anos após a chegada dos portugueses, existia uma população ameríndia bastante
heterogênea, que falava línguas distintas, ou seja, não pertencente ao mesmo ramo
linguístico e apresentava características culturais diversas. Todavia, os portugueses op-
taram pela homogeneização dos indígenas, dividindo-os e os dividiram em dois grandes
grupos os tupi-guaranis e os tapuias.
Tupi-guarani é somente um nome cunhado para juntar as diversas línguas indígenas
faladas ao longo do tempo na América do Sul. As versões da linhagem tupi se concen-
travam mais no litoral, entre o norte do país e o sul do atual estado de São Paulo. Mais
ao sul do território, era falado o guarani, vivo até hoje principalmente no Paraguai, onde,
ao lado do espanhol, se tornou a língua oficial em 1967. Do lado brasileiro, o chamado
tupi moderno ainda é falado na região Amazônica. Denominada nheengatu, foi a língua
mais usada entre europeus e ameríndios, depois que os jesuítas e o bandeirantes a
difundiram para padronizar a comunicação e eliminar os dialetos.
Porém, como o contato entre europeus e tupis foi maior, construiu--se a imagem mais
popular dos primeiros ocupantes do Brasil especialmente porque estavam presentes
nas descrições de padres e viajantes, apresentando seus costumes de maneira gene-
ralizada, como sendo de todos os índios e o uso da língua tupi pelos europeus para a
compilação de uma gramática (depois ensinada até mesmo a outros povos).

Certo de que a propriedade das terras conquistadas não era aceita por nações
adversárias, Portugal viu-se ante um impasse: ou colonizava de vez seus domínios
na América ou logo os perderia. Inglaterra e França já mandavam expedições à
nova terra e, além disso, declaradamente não reconheciam a divisão do mundo en-
tre portugueses e espanhóis, inclusive o rei da França, contestando a bula do Papa
Alexandre VI, que argumentava não reconhecer nenhuma cláusula do testamento
de Adão que determinava tal divisão.

capítulo 1 • 15
As contínuas perturbações estrangeiras e os primeiros sinais de esgotamen-
to do comércio oriental de especiarias levaram D. João III a empreender a pri-
meira tentativa de colonização dessa área. A nosso ver, o envio da primeira ex-
pedição com o objetivo colonizador tinha também a intenção, mesmo que não
declarada, de fixar verdadeiramente a posse por parte da Coroa lusitana diante
das demais nações europeias que muito ameaçavam a posse das terras brasilei-
ras. Todas as atenções da monarquia portuguesa voltaram-se para o Brasil de
forma a proteger o território, tornando viável a obtenção de lucro para a Coroa,
que neste momento possuía uma balança comercial deficitária.
Em 1530, o rei D. João III enviou uma expedição ao Brasil, sob o comando
de Martim Afonso de Sousa, com o intuito de efetivar a posse das terras, dando
continuidade ao reconhecimento do litoral, estabelecendo núcleos de defesa e
de povoamento, pois o monarca temia a crescente ameaça de invasões estran-
geiras em seus domínios no Novo Mundo. Com a expedição de Martim Afonso
de Sousa, seria fundada a Vila de São Vicente, em 1532, e iniciada a produção
da cana-de-açúcar, produto, então, muito solicitado na Europa. Tinha início,
portanto, o longo período colonial brasileiro.
Como observamos, o complexo período colonial brasileiro teve início a par-
tir da necessidade de preservação e exploração territorial; foi, portanto, impul-
sionado por interesses econômicos, e não por uma vontade, ou curiosidade, de
povoar os novos territórios.
A longa faixa de terra situada entre a linha de Tordesilhas e o litoral brasilei-
ro foi dividida em 15 lotes que compreendiam 14 capitanias distribuídas a 12
capitães donatários. A terra era intransferível, mas com caráter hereditário. O
donatário tinha o direito de conceder terras para outras pessoas administrarem
(sesmarias). A regulamentação da doação era feita através de dois documentos:
o foral, que estabelecia os rendimentos dirigidos à Coroa e ao donatário, e a
Carta de Doação, que definia as condições de posse da capitania.
Embora o sistema de capitanias tivesse o objetivo de atender às necessidades
do Estado português, os problemas econômicos obrigaram o monarca a transferir
as responsabilidades do processo colonial a terceiros. O processo de ocupação foi
atribuído à iniciativa privada, de modo que cabia aos donatário adquirirem recur-
sos necessários à exploração das terras.
Entretanto, apesar de todo o incentivo dado pela Coroa, nem todos os dona-
tários vieram tentar a sorte nos trópicos e os que aqui chegaram encontraram

16 • capítulo 1
inúmeros obstáculos à concretização do objetivo monárquico, principalmente
a falta de recursos para explorar áreas vastas e estabelecer núcleos de povoa-
mento, inexperiência e ataques indígenas.
Apenas as capitanias de São Vicente e Pernambuco, pertencentes respec-
tivamente a Martim Afonso de Souza e Duarte Coelho, alcançaram resultados
satisfatórios, devido a produção da cana-de-açúcar, tornando-se os dois primei-
ros núcleos de povoamento do território brasileiro.
Alguns donatários nem chegaram a conhecer suas terras e os que aqui apor-
taram, amedrontados, desistiram e retornaram à Metrópole. A maioria dos do-
natários não possuía os recursos necessários para investir nas terras, compran-
do escravos e construindo engenhos; os constantes ataques dos indígenas e a
natureza tropical ainda desconhecida também desestimularam alguns colonos.
Podemos notar, assim, que o fracasso do sistema das capitanias hereditárias
revelava a grandeza dos problemas enfrentados pela Coroa e pelos primeiros
“colonizadores” que se aventuraram em terras distantes, batendo de frente com
uma população nativa que, compreensivelmente, nem sempre estava disposta a
aceitar a usurpação de suas terras de forma passiva.
O fracasso desse sistema de divisão do território e exploração por iniciativa par-
ticular fez com que outra alternativa para o povoamento da colônia fosse buscada,
visto que a ameaça externa deveria ser afastada e a exploração da terra gerasse lu-
cros consideráveis. De tal modo, em 1548, sem eliminar o sistema de capitanias
hereditárias, o monarca implantou o governo-geral.
O novo sistema administrativo, que foi organizado juntamente com o aparato
religioso, era composto de um governador-mor, ao qual se subordinavam o pro-
vedor-mor (finanças), o ouvidor-mor (justiça) e o capitão-mor (defesa). O sistema
de governo-geral tinha ainda que, além de preservar a região contra os avanços
estrangeiros, conter a resistência indígena, apoiar a expansão do cristianismo ca-
tólico e buscar metais preciosos.
O escolhido para exercer o cargo de primeiro governador-geral do Brasil foi
Tomé de Souza, fidalgo influente e com experiência nos negócios ultramarinos,
que vinha para trabalhar por um período de três anos em nome da Coroa lusitana.
A chegada desse primeiro governador com toda sua armada à Bahia, em março de
1549, foi de especial significado, pois marcou o início de um novo sistema no con-
junto da vida do território e trouxe os primeiros missionários da Companhia de
Jesus, que, segundo o regimento apresentado pelo governador, deveriam trabalhar
para converter o povo que aqui vivia.

capítulo 1 • 17
A intervenção da coroa, de acordo com o regimento de Tomé de Sousa, deu-se
através da compra da capitania da Bahia, que fora abandonada devido à não pros-
peridade e ao ataque dos índios, assim a antiga capitania de Francisco Pereira Cou-
tinho tornou-se a sede do Governo-Geral do Brasil.
Para a composição da “máquina administrativa” colonial, foram fundadas,
nas principais vilas, as câmaras municipais3, que deveriam arrecadar impostos,
designar juízes, e fornecer infraestrutura ao local. As câmaras eram compostas
de juízes e vereadores, geralmente eleitos entre os homens-bons (grandes proprie-
tários influentes). O restante da população da colônia, ou seja, os mestiços, os
negros, os indígenas, os não católicos e aqueles homens livres que exerciam ativi-
dades manuais, convém ressaltar, era excluído, não podia votar. Tal exclusão po-
lítica perdurou e seus reflexos são nítidos na sociedade atual, o que mantém, de
certa forma vivo, o nosso passado colonial. As tensões entre o governo-geral e as
câmaras municipais eram constantes, pois essa última acabava por representar
os interesses locais dos grandes proprietários e, em contrapartida, o governador-
geral representava a Metrópole.
Apesar dos poucos meios de que dispunham e das hostilidades enfrentadas,
os governadores foram bem-sucedidos, e, a partir da intervenção administrativa,
finalmente consolidaram a colonização nesse território.
Assim, por volta de 1550, a colonização já conhecia um incremento notável, a
presença portuguesa na América estava garantida não só por aventureiros, margi-
nais, degradados e órfãos, mas por homens e mulheres de todos os níveis da es-
trutura social, ainda que em número reduzido. A colônia parecia encaminhar-se
para a sua expansão, em proveito da coroa e dos povoadores portugueses, porém a
ocupação da costa só vingou no século XVII.

1.2.1  Contextos político, administrativo e cultural

Ao analisarmos os séculos iniciais da colonização portuguesa no Brasil, não po-


demos abandonar os quadros político, administrativo e cultural. Estes perme-
avam a influenciavam a ação dos indivíduos pertencentes à sociedade vigente.
O quadro político administrativo da colônia gravitava em torno dos Senados
da Câmara, porque os poderes exercidos por essas instâncias estendiam-se por
diversos setores da vida colonial. Entre esses setores, podemos citar a regula-

3 As câmaras municipais eram criadas conforme o surgimento das primeiras vilas.

18 • capítulo 1
mentação de feiras e mercados, administração dos bens do conselho e suas re-
ceitas, organização de obras públicas, regulamentação dos ofícios e do comér-
cio, abastecimento de gêneros e cultura da terra.

CONEXÃO
A colônia é mais embaixo
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/a-colonia-e-mais-embaixo>.

Essa organização administrativa não foi propriamente uma inovação. A


imitação ou transferência das formas administrativas metropolitanas para
a colônia gerou grandes vazios administrativos. As autoridades ficavam
reunidas nas capitanias ou sedes, deixando o resto do território carente de
qualquer comando. “O Brasil não constituía, para os efeitos da administra-
ção metropolitana, uma unidade. O que havia nesta banda do oceano, aos
olhos dela, eram várias colônias ou províncias, até mesmo ‘países’” (PRADO
JR, 2000, p.313). Apesar deste vazio administrativo, as câmaras municipais,
verdadeiros conselhos urbanos, instaladas por Tomé de Sousa, tornaram-se
as bases da administração colonial.
Para fazer parte das câmaras municipais, ou seja, para ser um oficial da câ-
mara, era necessário não ter sangue “manchado”, sem presença de antepassa-
dos mouros, judeus ou negros. Assim, o órgão administrativo municipal aca-
bou sendo composto unicamente, usando-se o termo adequado, de uma elite
da qual faziam parte senhores de engenho, lavradores abastados e comercian-
tes que conseguiam penetrar essa camada social (PRADO JR, 2000, p. 322).
A política exercida por esses órgãos, especialmente nos primeiros anos da
colonização, voltou-se quase exclusivamente para o povoamento e exploração
do espaço físico com a única finalidade de evitar as investidas externas. Com a
efetivação de certas áreas de povoamento, essa política centralizou-se princi-
palmente nos Senados da câmara ou câmaras municipais. O comando colonial
pode ser resumida usando-se as palavras de Capistrano de Abreu: “organismos
administrativos de pouca massa, de estrutura rudimentar, em que cada órgão
representava mais de uma função” (ABREU, 1976, p. 87).
Com relação ao contexto cultural de forma nenhuma poderíamos restringi-lo
apenas ao século XVI, pois ainda não havia propriamente uma cultura colonial,
mas apenas uma tentativa de imposição cultural por parte dos portugueses, com
destaque para os jesuítas.

capítulo 1 • 19
Nos domínios da Coroa lusitana e até mesmo na Metrópole, nunca houve
uma divisão clara da cultura em religiosa ou leiga, a nosso ver em virtude da
forte ligação entre o Estado e a Igreja. A não separação desses dois âmbitos
culturais fez brotar nas colônias, e no Brasil naturalmente, manifestações
culturais voltadas para a simples reprodução das influências externas que
desprezava, destruía e absorvia implícita e discretamente a influência indí-
gena e depois a africana. Além dessa repressão eclesiástica, havia também
a censura régia e, posteriormente, a inquisitória, as quais não permitiam o
trabalho da imprensa e a instalação de universidades, e, muito menos, prá-
ticas religiosas diferentes da católica.
As manifestações culturais e artísticas, muito condicionadas a esse qua-
dro, foram limitadas, principalmente nos séculos XVI e XVII, pela falta de
recursos materiais. A presença religiosa era tão intensa que no século XVII
houve predomínio do estilo artístico barroco, difundido da Itália para Por-
tugal e suas colônias, assumindo uma posição claramente contrarreformis-
ta e de afirmação do poder monárquico.
Os membros da Companhia de Jesus exerceram muita influência no campo
cultural, pois controlavam a educação dos filhos dos colonos e dos indígenas.
Grande parte dos homens que se destacavam na área cultural era formada ou por
jesuítas ou por homens educados em suas instituições.
O conhecimento filosófico e cientifico colonial, bem como o português,
foi submetido ao clima tridentino e jesuíta que seguia os rumos arquiteta-
dos pela Contrarreforma católica e representava o renascimento do pensa-
mento de São Tomas de Aquino. Assim, a filosofia encontrava-se dominada
pela teologia, raros eram os textos propriamente filosóficos.
O direito colonial tinha como principais fontes as ordenações Manuelinas até
1603 e Filipinas desde então em virtude da união das duas coroas ibéricas. Estes
documentos estavam inseridos na sociedade estamental admitindo a desigualda-
de entre os homens, com leis e atos administrativos muitas vezes contraditórios.
As preocupações com a memória e a história foram quase inexistentes nesse
período, algo muito compreensível dadas as condições culturais e a repressão
católica. As poucas obras que existiram não passaram de narrativas ou crônicas
com o objetivo de recuperar a memória da expansão portuguesa, reafirmando
mais uma vez seu poder.
Em virtude do novo contexto social estruturado pela vida na colônia, surgi-
ram diversas profissões e ofícios, adaptados para atender às necessidades colo-

20 • capítulo 1
niais. As profissões predominantes eram a de cirurgião-barbeiro, a de boticário
com seus respectivos aprendizes, além de benzedeiras e curandeiros ligados à
religiosidade popular e às tradições indígenas, sempre duramente reprimidas.
Os conhecimentos médicos mais eficazes pertenciam aos jesuítas, como não
era de se espantar. Porém, não podemos procurar correspondência na socieda-
de metropolitana para muitas das funções sociais aqui exercidas.

A falta de opulência

A opulência e o requinte atribuídos ao modo de vida dos senhores coloniais de qualquer


área do Brasil, e amplamente divulgados pela produção histórica, não foram encontra-
dos ao se realizarem análises mais profundas.
(...) As casas seriam, mesmo as dos grandes senhores, simples, pobres, acanhadas e
vazias de objetos. Somente no decorrer do século XIX a riqueza passou a ser espalhada
no formato e no interior das residências.
Na colônia, a ostentação do poder e prestígio estava na propriedade de escravos, no
volume de sua produção, na riqueza dos trajes e complementos, inclusive de cativos
e de arreios dos animais de montaria, quando se encontravam em espaço público. (...)
Foi também no século XIX que outro hábito mais ‘sofisticado’ começou: comer à mesa
utilizando talheres. Escravo ou senhor, a maioria, agachada ou acocorada no chão, se
alimentava usando só as próprias mãos.

FARIA, Sheila de Castro. Nossa História, ano 2, n. 16, fev. 2005, p.60.

1.3  O primeiro contato: impacto cultural e evangelização

A participação da Igreja na ordem colonial


Durante o século XVI, a Contrarreforma Católica resultou na criação de mais seminários e
levou a Igreja a se envolver com mais intensidade no processo de expansão territorial ao
unir-se com os monarcas ibéricos com intuito de catequizar os pagãos do Novo Mundo.
Para os referidos monarcas, a expansão não se traduzia apenas em exploração econô-
mica em seus domínios coloniais. Paralelamente à escravidão e à produção agrícola, os
europeus impuseram também valores morais, a religião e a língua, uma série de regras
justificadas como “civilizatórias”.

capítulo 1 • 21
O cristianismo, de acordo com o pensamento de então, seria o responsável por esse
processo de “civilização”, de conversão dos pagãos. Devemos, assim, compreender essa
imposição de valores cristãos também como uma estratégia de fortalecimento da autori-
dade monárquica, que, de acordo com a necessidade, utilizava-se dos processos inquisi-
tórios, das perseguições religiosas e da “guerra justa”.
Os objetivos da esfera religiosa eram zelar pela obediência aos preceitos cristãos entre
os colonos e catequizar os nativos. Para a Igreja, os índios não deveriam ser escraviza-
dos, pois só eram passíveis de escravidão os que se negavam ao cristianismo, como, no
caso, os muçulmanos africanos. Os índios eram puros e estariam muito próximos dos
princípios cristãos. Com o aparecimento das missões jesuítas, entre os séculos XVI e
XVII, logo surgiram também os primeiros conflitos entre os jesuítas e os colonos que
capturavam e escravizavam os índios.

Com a chegada dos portugueses, mesmo antes da efetivação do projeto co-


lonizador, nosso território foi visitado por várias expedições, não apenas as ofi-
ciais enviadas pela Coroa portuguesa. Tais empreitadas deixaram, como fizera
Caminha, algumas informações sobre as impressões causadas pela nova terra
e seus habitantes. As informações trazidas por esses testemunhos podem ser
úteis, uma vez que pretendemos demonstrar que essa forma discursiva tam-
bém transformou-se, transformando, mesmo que implicitamente, a imagem
do indígena, fazendo com que, por muito tempo, a América fosse tida como
verdadeira antítese do continente europeu ou “Velho Mundo”4.
O relato de Pero Vaz de Caminha, e dos não portugueses posteriores à es-
tada da frota cabralina, permite-nos verificar, ainda que de uma forma pouco
aprofundada, as primeiras impressões que o europeu, impregnado de caracte-
res medievais, nos deixou. Mesmo os testemunhos mais simpáticos à nature-
za dos indígenas, como muitos acreditam ser o de Caminha, não são capazes
de mascarar a detração que posteriormente tomaria conta das mais variadas
formas de relato, dentre eles, aqueles deixados pelos jesuítas. A simpatia de al-
guns escritos, entretanto, não os fazia enxergar o índio de maneira totalmente
inocente, já apresentavam sinais do que ocorreria depois, ou seja, a detração do

4 “Por mais de um século, os europeus representaram a América como antítese da Europa, como reino da ‘contrafação’,
legitimando a luta entre religiosos e feiticeiros[...] A linguagem dos contrários aproximava franceses, holandeses e portu-
gueses; padres, católicos e protestantes; administradores, aventureiros e mercadores. As representações dos índios como
súditos do Demônio persistiram de Anchieta a Vieira, de Léry a Evreux, de Knivet a Nieuhof. No entanto, os narradores
ora representaram os nativos como vítimas, ora descreveram-nos como monstros, ressaltando as marcas irreversíveis
impressas pelo mal” (RAMINELLI, 1996, p.116) .

22 • capítulo 1
indígena até à construção da crença de que eles jamais alcançariam a fé católi-
ca, de que não eram racionais o suficiente para tal.
Na carta de Pero Vaz de Caminha, notamos uma descrição minuciosa dos
indígenas, não há uma exposição de um mundo habitado por verdadeiros ho-
mens-monstros, mas também não encontramos o tom elogioso proposto por
diversas análises do referido documento: há apenas o relato da convivência ini-
cial entre portugueses e nativos, trazendo um pequeno esboço das diferenças
que posteriormente conduziriam a uma nova forma de caracterizar o amerín-
dio. Nesses relatos, os indígenas são apresentados como belos, mas também
como semi-humanos do ponto de vista moral, principalmente pela nudez, a
“imoralidade” mais nítida no primeiro momento. Rapidamente Caminha tra-
tou de classificar a alteridade encontrada no Novo Mundo como uma forma
de vida, inferior ao declarar que eles eram pouco comunicativos e esquivos,
como os animais. Em sua missiva, já se encontra evidente a profunda separa-
ção existente entre os dois mundos: o dos europeus cristãos e civilizados e o
dos selvagens pagãos da terra que seria a América. Esta separação os futuros
colonizadores farão questão de confirmar, violentamente. Uma das funções
dos desterrados que aqui ficariam seria disseminar a palavra de Deus, o que
confirma que os nativos precisavam descobrir a palavra divina e que o melhor
a fazer na nova terra seria salvar seus habitantes. A utilização do termo cristão
reflete o distanciamento cultural existente, pois coloca o outro, o estranho, à
parte do mundo cristão, civilizado. Em várias passagens da carta, o escrivão
destacou a necessidade de doutrina para os indígenas (RAMINELLI, 1996, p.
42). Caminha tenta provar que, como eles assistiram à primeira e à segunda
missas que os lusos rezaram em terra, sem manifestar desprezo, seriam ho-
mens dispostos a aderir à fé católica (CAMINHA, 2002, p. 66.).
Outras informações quanto às primeiras impressões sobre os indígenas, as
quais podemos utilizar, podem ser retiradas dos escritos de Paulmier de Gonne-
ville. Os relatos do viajante francês afirmam que, durante sua permanência no
território brasileiro, os contatos foram cordiais, principalmente porque os índios
eram simples e viviam uma vida alegre. Entretanto, os franceses tiveram o que po-
demos chamar de “sorte”, pois a nudez total e a antropofagia, que mais chocavam
os europeus, inexistiam quase totalmente na região Sul, onde permaneceram.
Todavia, assim como Caminha, Gonneville foi um tanto quanto deprecia-
tivos ao definir os índios como gentis e alegres. Ambos, ao afirmarem que o
indígena e seu modo de vida eram simples, querem, na verdade, dizer que eram

capítulo 1 • 23
simplórios e, portanto, aceitariam o cristianismo e o colonialismo e seriam fa-
cilmente domináveis; mesmo tendo Gonneville constatado que ao menos os
Carijós tinham uma embrionária organização política.
Bem menos afável, entretanto, foi o também francês Jean de Léry que, já
nos títulos dados aos capítulos da obra composta para relatar o que vira no ter-
ritório brasileiro, revela a ideia, nada simpática, que queria transmitir sobre os
nativos (LÉRY,1941, p. 67).
Como não poderia deixar de ser, Léry apresenta descrições detalhadas do coti-
diano dos indígenas. No entanto, o que mais nos chama a atenção em seu relato é
a descrição horrorizada que faz do ritual antropofágico e das guerras que, segundo
o viajante, eram travadas por motivos banais (LÉRY,1941, p.168). O francês não
deixa de elogiar alguns aspectos que encontrou entre os nativos, mas sempre com
certas ressalvas. Por exemplo, quando elogia a sua capacidade física e, logo em
seguida, menospreza-os, afirmando que não se adaptavam às roupas europeias.
Apesar das ressalvas e de todos os pontos negativos encontrados, como
ocorreu na maior parte dos relatos, Léry busca no indígena a crença no Deus
cristão, afirmando que o temor que eles tinham do trovão poderia ser a cren-
ça em alguma divindade, buscando assim, de alguma maneira, aproximá-los
do que era tido como certo, cristão e civilizado. A seu modo, Léry mistura a
bondade, a surpresa e a sedução como instrumentos para a construção de um
discurso do estranhamento, demonstrando uma paradoxal relação de aproxi-
mação e de afastamento entre indígenas e europeus (LÉRY,1941, p.191).
Nos relatos, as imagens criadas sobre os primitivos habitantes do Brasil
oscilaram entre a do bom selvagem e a da maldade bestial, estes ora asseme-
lhavam-se a descendentes de Adão e Eva, ora a pouco mais do que bestas-fe-
ras, que nada mais mereciam além da sujeição. Dessa forma, desde o início da
colonização manifestaram-se em relação aos índios dois tipos de atitude: ou
eram considerados “infantis”, como fazia Caminha, ou “imorais”, justificando
com isso os castigos e a escravidão a que foram submetidos. Os habitantes das
novas localidades foram hostilizados pelo que apresentavam de diferente, ao
exibirem humanidades selvagens e ao comprovarem quão decaída poderia ser
a humanidade ignorante de Deus (VAINFAS, 1989, p. 27).
A chegada de Colombo ao continente americano inaugurou um movi-
mento duplo em relação ao modo de se pensar o recém-descoberto (SOUZA,
1989, p. 36). Passou-se a edenizar a natureza e a considerar seus habitantes
bárbaros, animais, seres mais próximos do demônio do que de Deus. Esse

24 • capítulo 1
duplo movimento parece ter perdurado, uma vez que nos testemunhos dei-
xados por viajantes e religiosos aparece nitidamente, mesmo que às vezes
de forma gradual. Os nativos foram estigmatizados como encarnação da
barbárie, enquanto a beleza das praias, a grandeza, a variedade e o verde
eterno da vegetação, assim como a fertilidade da terra, foram mais falados
e divulgados. A natureza reforçava a existência divina e os indígenas eram
seres afastados do rebanho da cristandade. Em suma, a barbárie sobrepu-
nha-se ao paraíso (LESTRINGANT, 1997, p. 49).
Com base no exposto, podemos concluir que, desde os primeiros relatos
de Caminha e dos viajantes, por mais simpáticos que fossem, não deixaram
de degradar certos aspectos dos nativos. Como já destacamos, ao afirmarem
que eram simples em seu modo de vida, queriam dizer simplórios, ou seja,
já destacavam que os indígenas precisavam ser transformados, aprimorados,
para atingirem a humanidade civilizada. Assim, grande parte dos relatos so-
bre os primeiros contatos entre europeus e indígenas reconhece o impacto
causado pelo encontro com o novo e considera os nativos “bárbaros” que ne-
cessitavam da civilização europeia. O etnocentrismo europeu tendeu a am-
pliar os mecanismos de leitura do outro sempre como inferiores, principal-
mente por causa do seu distanciamento em relação ao modelo europeu. O
pensamento desses homens não permitia uma concepção de mundo que não
fosse a do orbis christianus (PAIVA, 1982, p. 61).
Ainda que a evangelização dos indígenas não fosse prioridade nas pala-
vras do Regimento de Tomé de Sousa, a afirmação de que a conversão à fé
católica era motivação para o povoamento nos faz acreditar que a vinda dos
homens da Companhia de Jesus era algo necessário aos olhos do monarca,
que redigiu o documento. Assim, somente com a implantação do Governo-
Geral torna-se claro o objetivo catequizador da Coroa lusitana.
Os jesuítas traziam a incumbência de trabalhar a favor da expansão dos ide-
ais cristãos, expandindo a fé católica aos que a desconheciam e reordenando a
vida religiosa que, para eles, estava maculada em virtude de certas atitudes dos
colonos e dos membros do clero secular.
Dessa maneira, a religião ocuparia sempre um lugar de grande destaque em to-
das as atividades e empresas, em virtude do forte espírito católico que acompanha-
va o povo português neste período. Como ressalta Capistrano de Abreu, os jesuítas:

capítulo 1 • 25
Completavam harmonicamente a administração, pois como Tomé de Sousa ou Pero
Borges, o padre Manuel da Nóbrega obedecia ao sentimento coletivo, trabalhava pela
unidade da colônia, e no ardor de seus 32 anos achava ainda pequeno o cenário em
que se iniciava uma obra sem exemplo na história (ABREU, 1976, p.46).

O primeiro passo dado por um grupo de missionários chegados a um local


ainda não visitado pelos jesuítas era a construção de uma casa e de uma capela.
Esta empreitada inicial não foi diferente no Brasil, sendo relatada já na primei-
ra carta de Nóbrega.
As primeiras impressões dos jesuítas quanto aos indígenas e o seu modo
de vida foram de total espanto, capaz de mexer com o pensamento fantástico
dos europeus, com todo o imaginário construído ate então. Nenhum dos outros
povos que conheciam e travaram contatos servia de referência para classificar
o indígena brasileiro.
Os membros da Companhia de Jesus tiveram impressões oscilantes quanto ao
modo de vida e características físicas dos índios. Contudo, ao menos nos primeiros
momentos, procuraram ressaltar seus aspectos positivos. Sabiam que o trabalho
seria árduo, mas a simplicidade do nativo facilitaria a conversão. A ausência de di-
vindades, de leis, de um poder político, a crença na origem comum da humanidade
e o fantasia do homem selvagem contribuíram para respaldar a catequese e fortale-
cer a esperança de transformar os nativos em fiéis seguidores do catolicismo.
Em contraposição ao que ocorreu no Oriente, onde os missionários jesuítas,
liderados por Francisco Xavier, depararam-se com sociedades mais complexas,
os padres e irmãos chegados ao Brasil encontraram grupos sociais com menor
grau de desenvolvimento técnico. Apesar das informações dadas pelos padres
que estiveram no Oriente, o contato com o outro ainda era espantoso e amedron-
tador para a grande maioria dos europeus.
O discurso presente nos textos produzidos pelos padres e irmãos da Compa-
nhia de Jesus não foi isolado, está inserido numa série discursiva, e, portanto,
não apresenta singularidades em relação aos escritos de seu período. Os auto-
res reproduziram, através de seus documentos, certos aspectos do repertório
intelectual europeu da época sobre o Brasil e seus habitantes. Sem dúvida o
procedimento narrativo elaborado por eles obedecia à interpretação vigente
sobre o Novo Mundo.

26 • capítulo 1
Podemos notar um misto de espanto e pena nesta passagem de Nóbrega de
uma carta do ano em que chegou:

Nesta terra alguns há que não habitam casas mas vivem pelos montes, dão guerras a
todos, e de todos são temidos. Isto é que me ocorre sobre a terra e sobre a gente que a
habita e que e cousa muita para lastimar e se ter compaixão destas almas (NOBREGA,
1955, p.49).

Apesar do espanto, a vontade de conhecer, desvendar e trabalhar a favor


da gente através da catequese era bem maior e os contatos deram-se imediata-
mente após as primeiras horas de estada no território brasileiro. “Começamos
a visitar as suas aldeias, quatro companheiros que somos, a conversar familiar-
mente, e a anunciar-lhes o reino do Céu, si fizerem aquilo que lhes ensinarmos;
e são estes aqui os nossos bandos” (NOBREGA, 1955, p. 50-51).
Espantaram-se muito com as formas de organização habitacional e com os
hábitos alimentares dos indígenas, principalmente com a forma que dividiam os
alimentos quando iam para a guerra. “Si um deles mata um peixe, todos comem
deste e assim de qualquer animal” (NOBREGA, 1955, p.49). Podemos notar em
Simão de Vasconcelos que a maneira de obter alimentos também era espantosa
para os europeus, as habilidades para a caça e para a pesca realmente surpreen-
diam os missionários. Vasconcelos relata bem as impressões que impactaram,
tanto positiva quanto negativamente, os jesuítas e que não os fizeram desistir
do trabalho missionário, pois a natureza e os homens rapidamente mostraram
veias contrarias ao empreendimento jesuítico (VASCONCELOS, 1977, p.99).
No entanto, não podemos deixar de explicar que a descrição da maneira de
comer e de beber se construiu em paralelo com os hábitos europeus. “Nem nas
suas refeições são dotados de hábitos mais civilizados, pois não se coíbem de co-
mer carnes humanas, até cruas” (VIEIRA, 2000,p.135).
Como destaca Baeta Neves, ocorreu também um impacto com o tamanho da
casa em que viviam, com a escassez de entradas e com a fragilidade das que exis-
tiam. Outro choque foi com número de habitantes destas “ocas”, onde a não exis-
tência de divisões fazia conviver diversos núcleos familiares, além de ser um local
onde ocorria a maioria das atividades de produção (NEVES, 1978, p.125). A nudez
dos índios igualmente assustou os jesuítas, que desde o início viam no uso de vesti-
mentas um fator moralizador e civilizador. Os habitantes nus do Brasil causavam,

capítulo 1 • 27
na verdade, profundo desalento aos jesuítas, que de tudo fizeram para vesti-los. O
despudor na exibição do corpo, a licenciosidade e a vida distante da monogamia
pregada pela Igreja comprovavam, aos olhos dos primeiros cronistas, “a vassala-
gem que nossos índios prestavam ao demônio” (VAINFAS, 1989, p.22).
A primeira preocupação dos que por aqui aportaram foi quanto ao aprendiza-
do da língua, pois Nóbrega e seus companheiros desejavam converter os pagãos
do novo mundo, pelo menos no primeiro momento, através da pregação da pa-
lavra de Deus. Assim, logo nos primeiros dias, a realização de missas serviu para
estabelecer os primeiros contatos linguísticos entre indígenas e portugueses.
A comunicação com os indígenas, além de facilitar a pregação da doutrina
cristã, também auxiliaria no combate aos maus exemplos dados pelos colonos e
membros do clero secular, presentes no Brasil. Poderiam, a partir do momento
em que conhecessem a língua da maioria dos povos que conheciam, dialogar,
por exemplo, sobre a antropofagia e outros assuntos que tanto os perturbavam.
Para não afastarem a possibilidade de efetivação da imposição da cultura
europeia, elogiavam a musicalidade e a riqueza estrutural da língua, compa-
rando-a constantemente às línguas já conhecidas5. Adotaram a tática da apren-
dizagem da língua nativa, como fizeram os missionários do Japão e da China.
Quando falamos que os portugueses desejavam aprender a língua falada pe-
los indígenas, não podemos ignorar que era a língua falada pela maioria, por-
que, desde os primeiros momentos, perceberam que os nativos brasileiros di-
vidiam-se em castas que, posteriormente, mostraram-se mais frágeis ou mais
resistentes à penetração cultural europeia, mas as diversas línguas faladas pelos
nativos não poderiam ser valorizadas, dificultando o trabalho de aculturação.
Do mesmo modo que os demais descobridores europeus, os religiosos pre-
ocupavam-se em conhecer os costumes indígenas para facilitar a conquista e
não se ocuparam em fazer uma discussão teológica acerca da vida cotidiana
dos ditos selvagens. Todos os interesses dos colonizadores eram pragmáticos
e limitavam-se ao que viabilizasse a colonização e a catequese6. Com efeito,

5 “Metodicamente os sábios da Companhia de Jesus tentaram verter as línguas ultramarinas, em geral ágrafas, para por-
tuguês quinhentista e seiscentista. Guiados pelo modelo linguístico fornecido pelos quadros gramaticais latinos, os padres
tentaram desbabelizar o mundo e descodificar todas as línguas. O fato de os jesuítas terem assumido um papel pioneiro
no estudo das línguas ultramarinas decorre de sua posição privilegiada no movimento de expansão portuguesa. Mas tem a
ver também, como se verá em seguida, com a importância que a doutrina inaciana atribuía aos sacramentos da comunhão
e da confissão” (ALENCASTRO, 2000, p. 158).
6 Os nativos brasileiros não despertaram polêmicas teológicas nos colégios da Companhia nem chamaram a atenção
da Inquisição portuguesa. O conhecimento proporcionado pelas viagens pouco acrescentou às discussões teológicas ou
filosóficas. Menosprezaram uma discussão em torno das práticas cotidianas dos indígenas (RAMINELLI, 1996, p. 139).

28 • capítulo 1
podemos concluir que o aprendizado da língua não teve outra finalidade a
não ser o ensino da doutrina jamais os jesuítas a estudaram como meio de
compreensão do universo cultural indígena. O tupi foi estudado apenas com
interesses utilitários e as outras línguas indígenas foram desprezadas, como
faziam os próprios tupis. (PUNTONI, 2002, pp.63-64).
Os jesuítas não se esforçaram em conhecer profundamente os diferentes po-
vos indígenas, ficando essa separação apenas no plano superficial os indígenas,
na realidade, foram compreendidos como um grupo homogêneo sem diferenças
significativas. Os religiosos deram-se ao trabalho apenas de classificá-los como
os que aceitavam a fé católica e os que combatiam a presença dos jesuítas e, como
afirmavam, preferiam viver na barbárie. “Há outra casta de gentios que chamam
Gaimares (mais tarde conhecidos com o nome de Aymores); é gente que mora
pelos matos e nenhuma comunicação tem com os cristãos” (NOBREGA, 1955, p.
61). Como destaca Baeta Neves, as próprias missões eram “vistas como alguma
coisa suficientemente homogênea, e as diferenças de relação entre as sociedades
indígenas e as próprias culturas indígenas são, desde logo, vistas como irrelevan-
tes para a construção de especificidades, unidades” (NEVES, 1997, p.139).
Os portugueses e os jesuítas optaram por distinguir os indígenas apenas
por duas castas: os Tupis e os Tapuias. A denominação Tapuia geralmente apli-
cava-se a povos pouco conhecidos dos europeus e que apresentavam padrão
cultural diferente do Tupi, situação geográfica distinta por viverem em regiões
mais adentro no território e não se enquadrarem no padrão linguístico Tupi.
Os Tapuias, por apresentarem diferenças nítidas ao determinado como pa-
drão geral e oferecerem resistência à aculturação portuguesa, eram duplamente
barbarizados, por serem indígenas e resistirem à religião (PUNTONI, 2002, p.65).
Alguns historiadores, como John Manuel Monteiro, afirmam que os euro-
peus que travaram os primeiros contatos no Novo Mundo preferiam sintetizar
as diferenças culturais indígenas encontradas. “Para enfrentar esses proble-
mas, os europeus do século XVI procuravam reduzir o vasto panorama etnográ-
fico em duas categorias genéricas: Tupis e Tapuias” (MONTEIRO, 2000, p.19).
Concordamos com Monteiro, pois, apesar de reconhecerem as diferenças
entre as diversas castas, usando o termo empregado por Nóbrega, e até usarem
essa diversidade para ordenar a política de dominação do território e da forca
de trabalho, os portugueses preferiam englobar todos em apenas dois grupos
com o objetivo de facilitar a catequese.
Não buscaram trabalhar as diversas formas de manifestação da religiosida-
de, preferiram generalizar para tornar mais fácil a missão catequizadora. Não

capítulo 1 • 29
procuravam, por exemplo, ver o significado implícito da antropofagia, simples-
mente horrorizaram-se e trabalharam freneticamente para aboli-la. Dessa ma-
neira, trataram outras formas de manifestação da cultura nativa, tais como a
tradição dos pajés, a forma de lidar com a morte, o casamento, a bigamia, a vida
em comunidade, os hábitos alimentares, as formas habitacionais e a divisão
sexual do trabalho.
Anchieta, por volta de 1565, reflete bem a generalização feita pelos portu-
gueses afirmando que “todo esse gentio desta costa, que também se derrama
mais de 200 léguas pelo sertão, mesmo carijós que pelo sertão chegam até as
serras do Peru, e os mais têm uma mesma língua que é de grandíssimo bem
para sua conversão” (ANCHIETA, 1933, p. 301).
Sabemos que existia uma predominância do Tupi, porém a presença de ou-
tras línguas nas inúmeras tribos era de fácil percepção, constatamos, assim,
que mais uma vez os membros da Companhia de Jesus preferiam generalizar a
trabalhar com as dessemelhanças.
Acreditamos que a generalização de todos os aspectos da vida nativa segue
o caminho apontado pela mentalidade do homem do período, desejando o
contato com o desconhecido, mas não sabendo lidar com as diferenças encon-
tradas nesse contato. Preferiam ignorar ao máximo possível a diversidade das
tribos, dispersas por inúmeras aldeias em favor de uma ação ampla e eficaz do
plano catequético. O próprio Anchieta, em outras passagens, admite a existên-
cia de várias nações indígenas com costumes e linguagens diferentes (ANCHIE-
TA, 1933, p.433).
A partir da constatação de que a cultura dos habitantes do Novo Mundo era
realmente muito diferente de tudo que conheciam, claro que dentro dos limi-
tes da cultura renascentista da qual eram depositários, os europeus partiram
para a desconstrução da alteridade para erguer o edifício da cristandade.
Diante de todo o engajamento e da empolgação inicial, o primeiro passo
dado pelos jesuítas que chegaram ao Brasil, após constatarem a existência de
práticas pecaminosas entre os nativos, muito além das imaginadas, foi traba-
lhar para destruí-las, uma vez que em nada se adequavam ao novo modo de vida
que deveriam adotar daquele momento em diante. Para os padres e irmãos, ao
menos naquele momento, a conversão se daria de forma pacífica, a partir da
moralização dos costumes, sendo, então, necessária apenas a exclusão de tais
entraves. Pensavam que a eliminação de certas práticas como a guerra, que en-

30 • capítulo 1
tre eles tinha uma forte função social, a poligamia e o xamanismo7, através da
pregação da palavra divina, seria suficiente para que os indígenas aceitassem
a fé católica8. O entusiasmo inicial era tamanho que acreditavam que quanto
mais conseguissem se comunicar, batizassem, confessassem, transformassem
os concubinatos em casamentos legítimos, cuidassem dos doentes e fundas-
sem escolas, mais rapidamente veriam concretizado seu trabalho de transfor-
mação da terra e seus habitantes. Em suma, os primeiros relatos não demons-
travam a irreversibilidade dos costumes por parte dos ameríndios.
Os jesuítas tentaram modificar hábitos culturais e sociais díspares com a
imposição de um único comportamento, tornando as missas, as bênçãos e as
procissões práticas constantes. A própria escolha do local para a construção de
casas e colégios já representava a tentativa de modificação do comportamento,
pois, na maioria das vezes, representava o deslocamento e a agregação à cons-
trução das tribos que ali viviam.
Os padres, quando perceberam as primeiras resistências à imposição de no-
vas regras sociais por parte dos indígenas, depositaram as suas esperanças na
conversão dos pequenos. Foi à educação das crianças que recorreram ao notar
que a tentativa de reeducar os pais através da catequese não surtira os efeitos
desejados. Acreditavam que as crianças ainda não tinham sido corrompidas
pelo ambiente pecaminoso de seus pais. Construiu-se, dessa maneira, uma po-
lítica relativa às crianças, que propagou, ao longo do século XVI, a ideia de que
constituiriam uma “nova cristandade.” Os meninos seriam o “grande meio, e
breve, para a conversão do gentio” (LEITE, 1954, v.2, p. 293).
Destacaram, assim, o significado que teria o trabalho com esses cristãos em
potencial, porque, dentro da própria cultura nativa, esses já ocupavam um lugar
definido9, daí muitas das formas empregadas pelos nativos em sua formação
serem adaptadas pelos jesuítas. Como destaca Gilberto Freyre, muitos jogos e
danças foram aproveitados com o objetivo de atrair a atenção para a doutrina
católica (FREYRE, 2001, p.204). Os jesuítas desejavam, enfim, ao afastarem as

7 A desestruturação do poder dos feiticeiros mostrou-se, ao longo do tempo, muito eficiente, pois os feiticeiros con-
trolavam boa parte do cotidiano das comunidades através de seus poderes “sobrenaturais”. Os religiosos procuraram
persuadir os índios da falsidade dos pajés. Através da conquista do poder dos pajés o jesuíta conquistaria o poder
místico atribuído ao feiticeiro.
8 Essa tática foi adotada porque nos séculos XVI e XVII os jesuítas eram essencialmente pedagogos, queriam um trabalho
de entendimento da palavra pela ação da razão, sem armas visíveis.
9 “Tanto quanto entre os civilizados, vamos encontrar entre os selvagens numerosas abusões em volta à criança: umas
prolíferas, correspondendo a receios da parte dos pais de espíritos ou influências malignas, outras pedagógicas, visando
orientar o menino no sentido do comportamento tradicional da tribo ou sujeitá-lo diretamente à autoridade dos grandes”
(FREYRE, 2001, p. 197).

capítulo 1 • 31
crianças de seus pais, que essas, catequizadas, passassem a rejeitar não só os
seus valores culturais tradicionais, mas também os próprios pais, substituin-
do-os pelos padres e irmãos. Ocorreria uma “substituição de gerações”, os me-
ninos catequizados tomariam o lugar de seus pais. Essas crianças teriam uma
função ativa no processo de catequese, quer como veículos de doutrinação, en-
sinando os mais velhos em casa, quer como meios de repressão, fiscalizando a
prática dos bons costumes ou denunciando os que os infringissem.
Para assegurar a eficácia do trabalho com as crianças, os padres solicitaram
que órfãos portugueses fossem enviados ao Brasil. Esses vieram com o objetivo
de pregar aos meninos índios nos momentos de descontração, ou seja, durante
as brincadeiras, principalmente através de músicas que tanto despertavam o
interesse dos catecúmenos. Em suma, foram deslocados para servirem de base
de apoio, como um material de atração e de formação.
O primeiro artefato utilizado para auxiliar na sedução e trabalho com os pe-
quenos, como referimos, foi a música. Os padres sabiam os efeitos que essa
exercia sobre os índios, e, através dela intencionavam, pois, despertar a aten-
ção e a simpatia das crianças (LEITE, 1954, v.2, p. 29). Assim, notando como tal
elemento seria significativo, os jesuítas elaboraram um repertório de compo-
sições em estilo indígena, utilizando até mesmo seus instrumentos, mas cujas
letras falavam do Deus cristão. Apesar das restrições impostas pelo bispo D.
Pedro Fernandes Sardinha, fizeram bom uso da música como material de acul-
turação, especialmente dentro dos aldeamentos.
Além da música, os religiosos buscaram no teatro um apoio para o processo
de aculturação. O teatro, que fora introduzido pelos colonos, encontrou conti-
nuidade nos trabalhos dos jesuítas, que levaram os autos não apenas para as
igrejas, mas para os colégios e aldeamentos.
Observa-se que o teatro jesuítico dos séculos XVI e XVII não possuía apenas
aspecto religioso, mas também objetivava informar e formar moralmente os es-
pectadores. Da mesma forma que a música, o teatro cumpriu, no Brasil colonial,
o papel de promover a educação e a evangelização, auxiliar a integração social
entre clero, colonos e indígenas, além de desempenhar seu papel como arte e
entretenimento, sendo composto tanto em tupi como em português – para não
deixar de fora nenhum elemento da sociedade de então (NEVES,1978, p. 83).
A maioria dos jesuítas que escreveram durante esse período são unânimes
em afirmar que o trabalho catequético junto aos pequenos ameríndios era o
que animava a conversão de todo o gentio brasileiro. A utilização dos órfãos

32 • capítulo 1
vindos de Lisboa para intermediar a conversão pode ser compreendida como
um toque de esperança ao trabalho missionário, tendo sido, sem dúvida, uma
tentativa de amenizar a descrença que já ameaçava esses homens.
Porém, mesmo as tentativas de catequese através dos meninos não foram
totalmente satisfatórias. Observamos na leitura dos textos do Padre José de An-
chieta que o trabalho com os meninos não obteve o sucesso esperado, visto que
muitos logo retornavam ao convívio dos pais e, por incapacidade ou preguiça,
segundo os religiosos, não assimilavam corretamente a Fé Católica “ensinada”
pelos membros da Companhia de Jesus.
Como a missão não tinha alcançado os produtos aguardados para o período,
os jesuítas optaram por meios que poderiam ser mais brandos, mas, conforme
acreditavam, mais eficazes. De tal modo, apesar de afirmarem em alguns momen-
tos que os nativos tinham pouca notícia de Deus e, consequentemente, de suas
leis para a organização moral, buscaram semelhanças na religiosidade e na cul-
tura indígena, com o objetivo de facilitar a assimilação da cultura católica euro-
péia, como uma espécie de catalisador. Os padres reconheceram que os nativos
tinham certa compreensão de uma “religião”, mas não buscaram trabalhar com
as diversas formas de manifestação desta religiosidade, ao contrário, generaliza-
ram para tornar mais fácil a missão catequizadora. Não procuraram, por exemplo,
ver o significado social da antropofagia, apenas horrorizaram-se e trabalharam
freneticamente para aboli-la. O mesmo tratamento dispensaram a outras formas
de manifestação da cultura dos indígenas, tais como, a tradição dos pajés, a forma
de encarar a morte, o casamento, a bigamia, a vida em comunidade, os hábitos
alimentares, as formas habitacionais e a divisão sexual do trabalho.
Foi essa forma de apropriação da cultura do outro, sem dúvida, a maior
revelação da ousadia e da capacidade criativa dos jesuítas para efetivar a con-
versão. Através da interpretação, mesmo que precipitada, da cultura dos indí-
genas – que, como vimos, os lusitanos de maneira generalizada chamavam de
Tupi – os jesuítas conseguiram aí encontrar rudimentos da fé cristã, que, se-
gundo eles, teriam sido apagados pelo tempo, mas que poderiam atuar como
pontes para se chegar até o índio. Daí, por exemplo, os mitos indígenas terem
fornecido as bases para as suas pregações.
A procura de semelhanças entre a cultura indígena e a cultura católica euro-
péia pode ser entendida como uma tentativa de amenizar as diferenças, como
a busca de uma espécie de amparo para “o esforço de conversão do gentio à
religião cristã” (HOLANDA, 2000, p.139).

capítulo 1 • 33
Os jesuítas pretendiam aproximar as histórias narradas pelos índios das
histórias da cristandade européia (ALENCASTRO, 2000, p.156). Como aqui
o aparato religioso era mínimo em relação ao encontrado em outros lugares,
essa tentativa de aproximação das duas culturas pode ser encarada como um
esforço realmente árduo. A compreensão de alguns mecanismos de ordenação
da sociedade indígena, como o papel dos pajés, dos principais e do sistema de
parentesco de algumas comunidades, serviu para aprimorar as técnicas de con-
versão e acelerar a consequente desestruturação dessas sociedades.
As semelhanças encontradas e apropriadas foram a crença na imortalida-
de da alma, a oposição entre o bem e o mal e o medo que tinham os índios de
certas entidades tidas como demoníacas, a adoração de Zomé, que os padres
acreditavam ser São Tomé, santidade que teria deixado marcas de sua passa-
gem pela Bahia e histórias que falavam de um dilúvio que, obviamente, foi as-
sociado ao Dilúvio de Noé.
Todos os esforços na tentativa de uma aproximação cultural, entretanto,
não surtiram as reações esperadas, pois mesmo quando pareciam aceitar a fé
católica, os indígenas seguiam praticando seus antigos costumes, julgados al-
tamente pecaminosos pelos jesuítas. A procura de paridades culturais foi uma
tentativa de superar os primeiros fracassos e mascarar o desânimo presente
desde o momento em que perceberam que o trabalho tomava um rumo distinto
do planejado. Compreenderam que nenhum dos outros povos que conheciam
serviria como parâmetro para classificar o indígena brasileiro.

1.4  Os aldeamentos e a aculturação dos indígenas

Perante todas as barreiras, gradativamente, os padres e irmãos perceberam o


problema de se ver efetivada a adoção do modo de vida católico e a inserção dos
indígenas na sociedade colonial. A verificação da impossibilidade em enqua-
drar o nativo veio acompanhada de uma modificação do discurso catequético:
gradualmente, os escritos começaram a revelar um novo plano para a cateque-
se, centrado na sujeição física do nativo. Os homens da Companhia de Jesus,
tomados por aflição, viram-se em uma encruzilhada onde uma das alternativas
era a desistência e a outra, a mudança de estratégia. Apesar de todos os esforços
e métodos usados para a catequese, os jesuítas precisaram de uma ajuda exter-
na e mais intensa. Antes de evidenciarem em seu discurso o alquebramento em
relação ao trabalho missionário e a deterioração da humanidade dos indíge-

34 • capítulo 1
nas, os membros da Companhia de Jesus procuraram nos aldeamentos a alter-
nativa para seu trabalho. Desejavam, como não conseguiram de outra forma,
sujeitar o nativo através da coação, do medo, nem que para isso tivessem de
utilizar, com o auxílio do exército português, a força.
Os jesuítas resolveram seguir São Tomás de Aquino, para quem os pagãos
seriam catequizados através do convencimento, único instrumento justo de
conversão, pois a falta de fé era considerada um defeito da razão, que deveria
ser corrigido de qualquer forma. Assim, com o intento de persuadir os nativos
a adotarem um modo de vida totalmente católico, o líder da missão brasileira,
padre Manoel da Nóbrega, apresentou, por volta de 1556, a política dos aldea-
mentos como solução para o problema da catequese, que ainda não tinha atin-
gido os objetivos arquitetados.
Porém, em momento anterior à apresentação explícita desta mudança de es-
tratégia, o padre já pensava na união dos nativos em um espaço comum com
o objetivo de facilitar a cristianização.
O medo e a persuasão como elementos para a conversão que aparecem na
primeira carta de Nóbrega enviada à Portugal, porém, seriam apenas elemen-
tos morais auxiliares. Nos momentos posteriores, como a partir de 1550, Nó-
brega fala de um medo físico para a sujeição e consequente doutrinação dos
nativos – somente através da intimidação estes aceitariam os ideais cristãos
trazidos pelos jesuítas.
Os novos posicionamentos dos jesuítas, que culminaram na determinação
dos aldeamentos como forma possível para a concretização do processo de
aculturação, foram resultado direto de um processo de racionalização (VAIN-
FAS, 1989, p. 115). Os questionamentos gerados pelas tentativas fracassadas,
ou qualitativamente inexpressivas, encaminharam para a tomada de posturas
mais rígidas e pouco favoráveis à cultura nativa. A partir de então, os aspectos
tidos como positivos da cultura dos indígenas passaram a ser ignorados. As ex-
periências negativas convenceram os padres de que, para colher os resultados
esperados, seria útil isolar o nativo do colono e de sua ganância, valorizando,
mais uma vez, o exemplo (ABREU, 1976, p.163). O plano dos aldeamentos foi,
assim, um plano político, pois visava à ordenação daquilo que impedia o traba-
lho catequético e, consequentemente, segundo a perspectiva jesuíta, o desen-
volvimento da sociedade colonial10.

10 “O plano idealizado por Nóbrega marca uma série de alterações na política jesuítica, sendo a primeira delas represen-
tada pela criação dos aldeamentos” (ABREU, 1976, p. 114).

capítulo 1 • 35
Depois algum tempo de trabalho, os missionários concluíram que a dou-
trinação pelo convencimento era inviável, ou seja, apenas por intermédio da
pregação os missionários não alcançariam o desejado. A concretização do ideal
catequético da Companhia de Jesus se faria por duas medidas: repressão im-
placável aos costumes e concentração dos convertidos em aldeamentos organi-
zados pelos religiosos. Os padres e irmãos da Companhia de Jesus destacaram
a crueldade que viam nas reações do gentio não apenas porque não se enqua-
dravam ao modo de vida cristão, mas, também, para legitimar os meios utiliza-
dos no trabalho de catequese.
A forma ideal para a mudança do modo de vida dos nativos, organizada pelo
pensamento estratégico do padre Manoel da Nóbrega, não surgiu em um mo-
mento em que os resultados eram claramente contrários, mas foi construída ao
longo dos anos de enfrentamento diário do problema da catequização. Prova
disso são as passagens em diversas cartas, nas quais o padre vai apresentando a
necessidade de encontrar novas soluções para trabalho catequético.
Anterior também ao momento de adoção dos aldeamentos, como forma de
aceleração da catequese, é o regimento de Tomé de Sousa, segundo o qual os
nativos não deveriam, desde os primeiros momentos, conviverem no mesmo
espaço físico que os colonos europeus, mas sim, serem isolados para recebe-
rem os ensinamentos cristãos – garantindo o total domínio da Coroa e da Igreja
Católica sobre eles.
O segundo fator que reafirma a implantação dos aldeamentos como algo
idealizado previamente é a existência desse tipo de organização, com o objetivo
de facilitar o trabalho missionário em outros locais onde os jesuítas se fizeram
presentes. O sistema de aldeias sob o comando de religiosos, adotado no Brasil,
era semelhante aos “sobados” angolanos dirigidos pelos “amos” jesuítas. Mes-
mo não sendo totalmente idênticos ao que ocorria na África, os aldeamentos
brasileiros guardavam o interesse de isolar o nativo para viabilizar a catequese
e o desenvolvimento da sociedade. Outro exemplo de algo muito próximo ao
que foi implantado no território brasileiro são as “missões”, implantadas nas
terras de domínio da Coroa espanhola na América, mais exatamente nas terras
do atual Paraguai. Os jesuítas espanhóis, não diferindo em grande parte dos
portugueses, acreditavam que os nativos americanos eram “crianças” e neces-
sitavam, portanto, de proteção espiritual e de disciplina social (ARMANI, 1996,
p. 57). Administrativamente as “reduções” paraguaias eram mais organizadas
do que os aldeamentos, visto que em cada localidade indígena fora instalado

36 • capítulo 1
um conselho municipal, o cabildo, exatamente como nos demais povoados,
que, ao contrário do Brasil, era mais forte e centralizado.
A reclusão dos indígenas em um local organizado e administrado pelos ho-
mens da Companhia de Jesus atendia, ao menos no Brasil, especificamente a três
objetivos. Em primeiro lugar, isolar os índios tidos como “mansos”11. Em segun-
do, os aldeamentos ampliavam a área habitada, dificultando a fuga para a flores-
ta dos escravos africanos. E, por último, era interessante para as autoridades e a
população em geral a presença dessa mão-de-obra nas proximidades para aten-
der a qualquer eventualidade. No entanto, o maior propulsor para a manutenção
dos aldeamentos era, sem dúvida, o religioso, uma vez que a desestruturação da
unidade sociocultural indígena tornava-os mais permeáveis à catequese.
O tipo de aldeia apresentado pelo regimento do primeiro governador-geral
não foi o adotado, mas na teoria e na prática encontramos como base a necessi-
dade de sujeição para a efetivação do plano estabelecido, tanto pela administra-
ção civil, quanto pela religiosa. Todavia, foi somente o terceiro governador-geral
do Brasil, Mem de Sá, que executou o plano evangelizador idealizado por Mano-
el da Nóbrega, oferecendo a força militar necessária que auxiliaria os padres na
organização dos aldeamentos. Assim, com a chegada desse reforço, a reforma
política da missão jesuítica no Brasil ganhou um respaldo institucional.
Arraigou-se, então, entre os jesuítas, a convicção de que todos os empeci-
lhos para a conversão seriam removidos se ocorresse a sujeição do gentio com
a ajuda da força da Coroa. Os padres e irmãos compreenderam que a catequiza-
ção seria impossível e todo o trabalho vão se os indígenas não fossem isolados
do meio em que viviam e rigorosamente orientados pelos jesuítas. Concluíram,
afinal, que a legitimação da autoridade, através do consentimento gerado pelo
medo, seria a melhor forma de “conduzir” os nativos a viverem sob a lei cristã.
A reforma das missões foi, basicamente, apoiada em um projeto que Nó-
brega e Anchieta implementaram em São Vicente durante o ano de 1553 e, pos-
teriormente, em Piratininga. Como em Piratininga, os nativos seriam “convi-
dados” a migrarem para a nova localidade previamente selecionada. O projeto
arquitetado pelos jesuítas atenderia, ao menos num primeiro momento, a duas
necessidades: a de ajustar os nativos à moralidade católica e a de desenvolver a
economia colonial com a utilização de outra mão-de-obra, no caso, a negra. En-
tretanto, a organização dos aldeamentos foi menos pacífica do que o esperado,

11 “O plano idealizado por Nóbrega marca uma série de alterações na política jesuítica, sendo a primeira delas represen-
tada pela criação dos aldeamentos” (ABREU, 1976, p. 114).

capítulo 1 • 37
pois, nos casos em que os nativos recusaram o “convite”, os religiosos optaram
pela utilização da força e promoveram o que denominavam “guerra justa”, pro-
vando, mais uma vez, que outras armas além da palavra seriam utilizadas. Os
indígenas que aceitassem viver nas aldeias de acordo com as determinações
católicas, conservariam sua “liberdade” e seriam protegidos dos colonos.
Os jesuítas agarraram-se tão firmemente ao projeto dos aldeamentos e aos
benefícios que viam nessa medida que enxergavam um forte desejo de adesão
por parte dos catecúmenos e afirmavam que estes pediam para viverem sob a
proteção dos padres e irmãos.
Como podemos notar, o conceito central da reforma projetada era o medo,
mesmo que tentativas de camuflar a sujeição através do medo fossem elaboradas
para justificar a última alternativa encontrada pelos membros da Ordem encar-
regada de espalhar a palavra de Deus aos habitantes do Novo Mundo. Provocar
o medo, nesse contexto, não era coerção, na medida em que os índios subme-
tidos nas missões estavam legitimando, mesmo que implicitamente, tal proce-
dimento. Diante dessa ameaça iminente, passaram a aceitar, até certa medida,
a mudança, a imposição cultural e a submissão pelo medo, de serem mortos ou
escravizados em consequência dos ataques da “guerra justa” dos padres ou da
busca de mão-de-obra dos colonos. Com a pressão exercida, os nativos aceitaram
a nova organização social, não porque acreditassem ou compreendessem o que
acontecia, mas porque viram destroçadas todas as características de sua cultura.
Para facilitar o processo, os jesuítas não viajariam mais às tribos para traba-
lhar com os indígenas, como faziam até o momento; estes é que se deslocariam
para um lugar escolhido, onde os missionários empreenderiam seus esforços
catequizadores. Foi a alternativa educacional encontrada para enfrentar a mo-
bilidade de muitas tribos – os padres não queriam mais correr o risco de não
encontrarem algumas tribos anteriormente visitadas e teoricamente catequiza-
das. O missionário, então, ‘saiu’ de sua sede anterior mas não saiu de sua cultu-
ra, apenas criou um espaço novo para ela, fazendo com que os demais espaços
se remanejassem (NEVES, 1978. p.44).
Em outras partes do mundo em que a Companhia de Jesus atuou como pon-
ta-de-lança da Igreja militante, houve, da mesma forma, a associação de métodos
de persuasão e força, em que muitas vezes predominou a força. O caso brasileiro,
portanto, não é isolado dentro do quadro geral da Companhia. Poderíamos dar
vários exemplos, além do brasileiro, em que a força ou a ameaça foram utilizadas
para conduzir à conversão. O padre Alexandre Valignano, que missionou na Ásia,

38 • capítulo 1
declarou que Francisco Xavier devia o sucesso de suas campanhas missionárias,
sobretudo “à mistura judiciosa de ameaças e de brandura” (BOXER, 2002, p.91).
Dessa forma, permanece o fato de que pontos de vista favoráveis à utilização da
força eram difundidos entre os missionários portugueses.
O reconhecimento dessa estratégia de conversão por parte dos dirigentes
da Igreja Católica, tornou-se ainda mais claro em dois momentos. Em 1563,
bispos revelaram à corte de Lisboa que imperavam abusos em todas as missões
portuguesas, “entre os quais o uso da força e o grotesco batismo em massa de
conversos não catequizados” (BOXER, 2002, p.86).
Também no Concílio eclesiástico realizado em Goa em 1587, que proibia a
conversão feita à força. Entretanto, na prática, tal deliberação mostrou-se inefi-
caz. Se a conversão de adultos e crianças fora vedada, em teoria, pela Coroa e de-
mais autoridades responsáveis, tal proibição não teve repercussão na maioria
das possessões ultramarinas, como ocorreu em Goa e no Brasil, para citarmos
apenas dois exemplos. O uso do braço para concretizar o ideal de disseminação
do amor de Deus pelo mundo, comprovou que a Igreja Católica Romana não
era mera figura de retórica, que era flexível ao ponto de buscar atitudes mais
severas para não perder o fio condutor de seu sucesso.
O projeto dos aldeamentos marcou definitivamente a política de trabalho
dos missionário jesuítas no Brasil. Foi organizado um espaço para a estrutu-
ração de uma nova cultura. Assim, após a implantação dos aldeamentos, os
padres e irmãos envolveram-se intensamente na administração desses novos
lugares da catequese, acreditando ser a melhor saída para os indígenas, os colo-
nos e os clérigos, enfim, para toda a sociedade colonial. Nessas localidades, po-
deriam catequizar os indígenas mais rapidamente, isolando-os dos exemplos e
da exploração dos colonos, além de restringir o espaço que ocupariam, liberan-
do áreas para a agricultura e a expansão da colônia em vilas e cidades, adequan-
do-os às formas ditas “civilizadas” de organização do trabalho e convívio social.
A disciplina quase militar dos jesuítas deveria não apenas manter a ordem,
mas também ajudar na destruição dos antigos hábitos, os nativos seguiriam
um novo modelo disciplinar, bem distante do que conheciam (PAIVA, 1982, p.
93). Dessa forma, os indígenas se depararam com uma organização e um ritmo
bem peculiares. Além da caça e da pesca, viveriam das roças que plantariam
nas áreas doadas, principalmente em regime de sesmarias. Os novos povoados
ficariam próximos das “cidades brancas”, pois os neófitos deveriam realizar
trabalhos manuais para os moradores (BOXER, 2002, p. 108).

capítulo 1 • 39
Os nativos seriam forçados, então, a viverem a uma certa distância dos de-
mais componentes da sociedade colonial e sob uma legislação disciplinar, cuja
aplicação estava a cargo, por um bom tempo, dos padres – função essa que,
depois, passou aos capitães. Os castigos que por ventura fossem necessários,
como forma de punição aos infratores, jamais seriam aplicados pelos religio-
sos, mas sim, pelos principais da localidade – índios escolhidos pelos padres
entre os mais capazes – ou pelas autoridades civis, dependendo da gravidade do
caso. A vida religiosa, que deveria ser vista como uma verdadeira busca da cura
espiritual da alma, era regida basicamente pelas orações, pois além da salva-
ção material, o agrupamento deveria livrar-se das intempéries provocadas pelo
mal. Os jesuítas livrariam os neófitos, entre outras coisas, da antropofagia, da
poligamia e da nudez, o controle dos corpos e dos prazeres seria demonstração
de fé e um alimento espiritual. Somente a conversão e a aceitação do cotidiano
católico libertaria as comunidades indígenas do julgo do Demônio.
Em síntese, a última estratégia jesuítica de conversão impunha uma
nova organização social e territorial, e passava por uma nova atitude em relação
ao corpo e a habitação, como o uso de roupas, a proibição dos adereços e a des-
truição das antigas moradias. Um novo entendimento de Deus, bem como uma
nova sistemática de costumes, que acomodariam outro cotidiano eram coloca-
dos para os nativos. Impuseram, deste modo, regras para os relacionamentos
sexuais e matrimoniais, e desejavam também uma nova sistemática para a edu-
cação das futuras gerações.
Um dos argumentos para justificar a adoção dessas táticas, foi o fato de que
os maus hábitos, como um todo, em nada eram afetados, de acordo com os pa-
dres, pelas estratégias utilizadas até então. Os nativos seguiam, mesmo diante
de todas as proibições, praticando sua cultura – o que conduziu a um aumento
dos comentários degradantes acerca dos indígenas nos relatos da Companhia.
Os jesuítas começaram a não ter pudores em admitir que os mesmos seres que
concebiam como crianças “inocentes”, que necessitavam de ajuda e educação,
haviam se transformado em verdadeiros monstros capazes de aliarem-se ao
Demônio para impedirem à expansão do catolicismo europeu. O agrupamento
não afastou desses homens as tentativas de minar as expectativas jesuíticas.
Mesmo após a organização dos aldeamentos e a imposição de todas as mo-
dificações aos indígenas, os jesuítas prosseguiram na detração: a sua reclusão
em um espaço de convivência amplamente católico não afastou a imagem mui-
to próxima da animalidade presente, há algum tempo, nos relatos jesuíticos.

40 • capítulo 1
O relativo sucesso das novas normas de organização socioculturais não fez os
jesuítas abandonarem a figura do nativo como ente inconstante, incapaz de
compreender a fé católica, de deixar seus antigos costumes e de assumir a hu-
manidade trazida pelos ensinamentos cristãos.

CONEXÃO
Indicação do filme Desmundo (Alain Fresnot, 2002).

Destarte, no final do século XVI, os jesuítas haviam abandonado as posturas


dos missionários que os inspiraram nas décadas iniciais da expansão da Com-
panhia de Jesus pelo mundo. O cotidiano em terras brasileiras colocou-os dian-
te de situações que não estavam previstas nas regras de Loyola e nem faziam par-
te do campo de possibilidades do pensamento jesuítico da época. As contendas,
as desventuras da conversão e a resistência conduziram o missionário a cogitar
a inviabilidade da catequização. Ocorreu uma verdadeira alteração da moral je-
suítica nas colônias e a missão em território brasileiro foi obrigada, em virtude
de certas peculiaridades, a adaptar-se e a tornar-se um tanto quanto pragmática.

1.5  A mão de obra escrava indígena e africana

Desde os tempos mais remotos houve homens que escravizavam outros homens
por acreditarem que estes eram inferiores. A escravidão foi uma prática comum
no Ocidente. Na Antiguidade era comum esse tipo de trabalho após as guerras
por dominação territorial e também por dívidas e crimes. Após o final do Impé-
rio Romano, a escravidão não desapareceu por completo na Europa ocidental e
mediterrânea, porém, na Idade Média, a escravidão como sistema de trabalho
foi rara no Ocidente europeu, até mesmo nos países das penínsulas Ibérica e
Itálica. Nessas localidades, o uso de cativos tornou-se residual, mas persistia a
ideia de que o trabalho manual era impróprio aos homens considerados bem
colocados e, portanto, destinado aos indivíduos subjugados, inferiores.

CONCEITO
Podemos considerar escravidão a situação na qual o indivíduo não pode deslocar-se livre-
mente e nem pode escolher o que fazer com o seu tempo e para sua sobrevivência, tendo,

capítulo 1 • 41
pelo contrário, de realizar o que determina o seu proprietário; situação na qual a pessoa pode
ser castigada fisicamente e também vendida como qualquer outra mercadoria; caso em que
a pessoa não é considerada membro da sociedade em que vive, mas como um ser inferior,
sem desejos e sem poder sobre si mesmo.

Enquanto a escravidão antiga era vista como uma condição à existência dos
cidadãos, a moderna era um pré-requisito ao acúmulo de capital, que nasceu
inserida no contexto do sistema colonial do mercantilismo europeu, assumindo
um caráter étnico e tendo como alvo os negros africanos, por volta do século XV.
Para compreender como os europeus chegaram com certa facilidade ao uso
da mão de obra africana é imprescindível saber que, ao contrário do que se pos-
sa imaginar, havia escravidão no continente africano antes do contato com o
homem europeu durante o processo de expansão marítima e territorial.
No continente africano era comum a captura de homens e mulheres de co-
munidades vizinhas para a exploração de sua força. Esse tipo de escravidão foi,
historicamente, denominado escravidão doméstica, porque praticada dentro
do continente de origem do escravizado e por possuir características diferentes
da escravidão chamada comercial, que foi praticada pelos árabes e europeus
com o auxílio dos próprios africanos.
A escravidão doméstica praticada desde o Egito antigo, como a praticada
posteriormente, era opressora porque ocorria após a vitória de um grupo so-
bre o outro, em razão de dívidas e, em algumas comunidades, como forma de
castigo pela prática de roubo ou assassinato. Possui o claro objetivo de utilizar
a força de trabalho do derrotado na agricultura, na produção artesanal ou nos
trabalhos domésticos, com o objetivo de ampliar o número de pessoas que sus-
tentavam o grupo ou uma determinada família.
Além de contribuir para o sustento das comunidades, o trabalho escravo
na África garantia poder e prestígio àquele que o possuísse, por garantirem a
capacidade de auto-sustentação da linhagem. Esses escravos poderiam pos-
suir alguns direitos, como o direito a possuir alguns bens, a não ser sumaria-
mente executado, casar-se e até mesmo ser liberto e incorporar-se na comuni-
dade e na família do senhor.
A escravidão era praticada em diferentes comunidades africanas, porém
era mais comum nas capitais dos reinos e nos grandes centros comerciais,
onde havia maior circulação de pessoas e riquezas e diferenças mais marcan-
tes entre os grupos sociais. Os escravos eram, por exemplo, mercadorias im-

42 • capítulo 1
portantes nas rotas do Saara, onde eram negociados com comerciantes que os
levavam ao norte da África.
Havia uma preferência pelas mulheres que, além de procriarem, cultivavam a
terra e preparavam os alimentos, mas os homens serviam para aumentar o exército
e fazer parte das caravanas como carregadores e remadores.

Alguns poucos podiam se destacar pelos trabalhos prestados, sendo, por exemplo, con-
dutores de caravanas ou chefes militares, podiam se tornar poderosos, conquistar es-
cravos, sem no entanto deixar de serem considerados escravos (SOUZA, 2006, p.48).

Em algumas sociedades africanas em determinados momentos a escravi-


dão era uma estratégia de sobrevivência quando a fome e a seca castigavam
um grupo, que trocava ou vendia alguns de seus membros para garantir a ali-
mentação da maioria.
Notamos assim, que já existia entre os povos africanos certa valorização eco-
nômica da escravidão antes da chegada dos árabes e europeus. A escravidão,
portanto, existiu em muitas sociedades africanas bem antes de os mulçumanos
venderem africanos nas rotas do Saara e os europeus começarem a traficar ne-
gros pelas águas do Atlântico.
No século VII a expansão do Islã alcançou o Norte da África e os escravos
passaram a ser comercializados e a mão de obra compulsória explorada, conso-
lidando-se o que foi denominado escravidão comercial, era a “coisificação do
escravo”. Gradativamente a escravidão doméstica praticada entre os africanos
foi cedendo espaço à escravidão comercial e os escravos tornaram-se o princi-
pal produto dos caravaneiros do Saara.
Os escravos eram exportados para a Península Arábica pelos portos da cos-
ta oriental, assim, quando os europeus chegaram à Costa Atlântica da África
abriu-se mais uma frente do comércio de seres humanos, mas que já era algo
conhecido de muitos povos africanos.
Note que como havia o auxílio das elites africanas para a obtenção de ca-
tivos, para árabes primeiramente e depois para os europeus, estabeleceu-se
uma grande rede formada por traficantes, mercadores e caçadores de escravos.
Povos, comunidades e até Estados africanos especializaram-se na venda de
escravos, forçados pelos europeus ou na ânsia por lucros e produtos raros ou
desconhecidos. A comercialização de gente, especialmente no litoral, passou

capítulo 1 • 43
a determinar a prosperidade e a força militar de uma minoria, amparada pelos
europeus, e a miséria de outros grupos. Nesse tipo de escravidão, a principal
fonte de cativos era a guerra que a comunidade e Estados negros mais podero-
sos praticavam contra seus vizinhos mais fracos, escravizando os derrotados.
Assim, a escravidão doméstica africana foi dando lugar à escravidão co-
mercial em larga escala, mas nunca deixou de existir no continente. A partir
do século XV, com a chegada dos europeus, o processo de escravização dos
africanos ganhou dimensão intercontinental e fez da África a principal região
exportadora de mão de obra da Idade Moderna. As importantes nações eu-
ropéias, católicas ou protestantes envolveram-se no tráfico e disputaram sua
fatia nesse lucrativo negócio.
As primeiras expedições na costa africana ocorreram a partir da ocupação
de Ceuta, em 1415 e favoreceu o estabelecimento de um contato comercial
baseado prioritariamente no sequestro de pessoas que chegavam às praias e
eram levadas para os navios para serem vendidas como escravas. Iniciava-se
um dos mais lucrativos e desumanos comércios da Idade Moderna.
Nos primeiros contatos, os portugueses justificavam a captura e venda dos
africanos através da caracterização desses homens como inimigos, e como tal
poderiam ser escravizados, serem infiéis seguidores das leis de Maomé ou por
serem, como por exemplo os africanos da região do rio Senegal, pagãos, ou
seja, ignorantes das leis de Deus (SOUZA, 2006). Os portugueses acreditavam
fazer um grande favor aos africanos que escravizavam e levavam para Portugal
ou regiões que começavam a colonizar.
Cabe destacar que, antes do contato com os portugueses, também dentre os
mulçumanos, primeiros a utilizarem a força de trabalho africana, existia uma
justificativa religiosa. Como o Alcorão não condenava a escravidão, os mulçu-
manos acreditavam que a escravização era uma espécie de missão religiosa. O
homem infiel, ao ser escravizado, teria a chance de se converter e ser instruído
nos princípios islâmicos, podendo ser libertado após devidamente educado.
Justificativa semelhante foi feita pela Igreja Católica para aceitar e mesmo con-
tribuir para o fortalecimento de tal prática.
Havia dois modos utilizados pelos europeus para obter escravos. Num pri-
meiro momento atacavam diretamente as comunidades africanas e escraviza-
vam a sua população, porém, quando havia reação e vitória dessas populações,
os invasores tinham prejuízo. Por esse motivo, os europeus buscaram obter
escravos dos próprios africanos, que já conheciam essa prática. Os europeus

44 • capítulo 1
montavam feitorias no litoral do continente e obtinham os cativos de comer-
ciantes, chefes locais e reis, trocando-os por armas, pólvora, tecidos, cavalos,
bebidas e outros produtos (THORNTON, 2004).
As elites africanas aliaram-se aos europeus na obtenção de cativos (mui-
tas delas, como vimos, já forneciam escravos para os árabes). Estabeleceu-se
uma rede de traficantes, mercadores e caçadores de escravos na África. Povos,
comunidades e Estados africanos especializaram-se em vender escravos, inte-
ressados pelas armas portuguesas ou na ânsia de obter lucros e produtos até
então desconhecidos.
O sucesso dos portugueses e seu consequente êxito comercial correspon-
deu ao infortúnio do continente africano. No litoral, a venda de escravos passou
a determinar a prosperidade e a força militar de uma minoria e a miséria de ou-
tros grupos africanos (SOUZA, 2006). O comércio com os europeus avigorou o
poder de líderes desejosos por guerrear contra povos inimigos com o intuito de
fazê-los escravos. A presença dos portugueses transformou a vida da população
litorânea que, até então, não tinha poder econômico e político significativo e
que passou a ter, na captura de cativos, uma atividade corriqueira.
Com a venda dessa mercadoria que nada custava os exploradores e comer-
ciantes , os portugueses estruturaram o lucrativo e funesto comércio de escravos
que, aliando interesses mercantis e espirituais, expandiu-se até as novas posses-
sões do monarca português e consolidou-se definitivamente com a adoção do
trabalho compulsório em terras brasileiras. Assim, no momento de efetivação
da colonização das terras brasileiras, o comércio de braços africanos já era con-
siderável e a necessidade social dessa força de trabalho ainda mais latente.
Em meados do século XVI, quando do início da colonização das terras brasi-
leiras, iniciou-se o debate acerca de qual força de trabalho seria utilizada, uma
vez que os portugueses já estavam acostumados a explorar o trabalho compulsó-
rio e a ele delegavam toda a força produtiva. Em virtude das práticas já realizadas
pelos súditos do monarca português, estava claro para governantes e colonos
que a nova terra progrediria apenas com o auxílio da mão de obra escrava, pois
não havia na metrópole braços suficientes para a exploração do vasto território e
o uso do trabalho livre seria arriscado devido à abundância de terras.
Inicialmente optaram pelo uso da mão de obra que estava mais próxima e
disponível, a mão de obra indígena. Porém, mesmo sendo mais acessível, a escra-
vização dos indígenas revelou-se mais complexa e problemática por uma série de
fatores conjunturais. Em primeiro lugar, convém destacar que em razão das dife-

capítulo 1 • 45
renças culturais, os ameríndios desconheciam a divisão do trabalho imposta pelos
europeus, porque privilegiavam uma economia de subsistência. Em segundo lugar,
a fragilidade da vida dos nativos, que morriam ao contrair as doenças trazidas pelo
europeu, e aqueles que eram escravizados articulavam facilmente a sua fuga me-
diante o conhecimento do território.
Além dos impeditivos relacionados diretamente aos indígenas o uso da mão
de obra nativa deparou-se com questões religiosas, pois a Igreja, na figura nos
jesuítas, deveria catequizar os nativos e o afastamento deste para o trabalho con-
tribuiria para que estes logo demonstrassem uma resistência maior em aceitar a
religião do colonizador e a vinda dos padres e irmãos jesuítas perderia o sentido.
Em contrapartida, a utilização da força de trabalho africana apresentava-se
como uma alternativa mais viável e lucrativa. Para os colonos, o trabalho escravo
africano era mais vantajoso porque o homem africano era mais adaptado às for-
mas de cultivo da terra adotadas pelos portugueses e também à organização do
trabalho. Não bastando as justificativas econômicas e culturais, a própria Igreja
reforçava a necessidade de tal prática para a purificação dos cativos. A Igreja Ca-
tólica apresentava a escravidão africana como uma forma de castigo contra os
diferentes povos daquele continente, que, segundo o pensamento religioso da
época, eram tomados pelas crenças politeístas e pela própria religião islâmica.
Por outro lado, estavam os ameríndios cuja defesa da liberdade era também
a defesa da própria área de atuação da Companhia e a expansão do Império
Português. Os jesuítas eram contrários ao uso da mão de obra indígena por
acreditarem que o cativeiro era o grande impedimento à conquista espiritual
das almas, à aproximação pacífica com as tribos e ao ajuntamento delas para
maior comodidade dos religiosos. Os padres e irmãos da Companhia de Jesus
não mediam forças para defender o direito de trabalhar com os nativos da ma-
neira como julgavam mais conveniente. Os índios tidos como livres eram con-
siderados vassalos de sua majestade e, portanto, deveriam permanecer sob a
proteção dos jesuítas, militando sempre que os nativos não se podiam julgar
absolutamente por cativos (VAINFAS, 1989, pp. 87-88)
Devemos compreender que essa “defesa dos índios”, dentro do quadro total
das atividades e da teologia dos jesuítas, pretendia, na verdade, a defesa de seu es-
paço de trabalho, de seu campo de atuação, de sua missão. Longe da opressão dos
colonos, os religiosos tencionavam transformar os índios em “gente mais gente”,
que poderiam somar nos quadros do grande Império em formação. Porém, não
podemos afirmar que os homens da Companhia de Jesus estavam próximos da

46 • capítulo 1
qualificação como “Las Casas do Brasil”, uma vez que o padre espanhol compreen-
deu, ao seu modo, a alteridade do indígena e as consequentes limitações de seu en-
quadramento a um projeto civilizador. Para Las Casas, Jesus Cristo era flagelado na
pele dos nativos (HOORNAERT, 1984, p. 43), percepções que não encontramos nos
escritos de jesuítas, que englobou o indígena na totalidade do projeto civilizador
português, fora do qual, podemos arriscar dizer, o nativo simplesmente não existia.
Os jesuítas defendiam os índios porque se sensibilizavam diante da falta de
liberdade e, como já frisamos, para preservar o campo de atuação da Companhia
de Jesus, que no século XVII já não era tão seguro como foi no anterior. Para os
padres e irmãos, ao contrário da escravidão africana, o cativeiro dos nativos não
era estrutural, ou seja, o desenvolvimento econômico da colônia não dependia
totalmente da mão de obra dos índios. Na verdade, o cativo era um impedimen-
to à salvação, visto que essa somente seria alcançada através do conhecimento
cristão transmitido pelos jesuítas. Apenas as autoridades religiosas saberiam as
funções a serem exercidas pelos nativos dentro da sociedade colonial. Os mem-
bros dessa sociedade, em especial a do norte do território, concebiam a escravi-
dão indígena como o único sustentáculo da riqueza da terra, pois a colonização
mais recente ainda não permitia a compra de mão de obra africana.
Os homens da Companhia de Jesus defendiam as potencialidades dos índios
para receberem a conversão, enquanto os colonos enfatizavam a inviabilidade da
catequese e da adequação dos nativos para o trabalho nos moldes civilizados. Para
os colonos, os nativos confundiam-se com feras brutas que deveriam ser “adestra-
das” para o trabalho. Uma das justificativas utilizadas pelos colonos para a escravi-
dão era o fato de que os índios preferiam vender uns aos outros a trabalhar para os
lusos (RAMINELLI, 1996, p. 70).
Não combatiam a escravidão dos nativos simplesmente porque os jesuítas
eram emissários do “missionarismo profetizante”; os índios serviriam, espe-
cialmente para o padre Antonio Vieira, como de certa forma também os judeus,
para a concretização de seus interesses quinto imperialistas (ARAÚJO, 1999, p.
65). Almejavam, enfim, que o governo dos índios fosse de inteira jurisdição dos
jesuítas portugueses, sem nenhuma dependência dos governadores, que tan-
tas vezes os exploravam como quaisquer outros colonos. Advogava a necessida-
de de tornar a ação religiosa independente do poder civil, para a efetivação do
grande Império Português.
Assim, gradativamente e em meio a muitas disputas entre colonos e religio-
sos, vemos que a escravidão africana se tornou predominante no Brasil. Porém,

capítulo 1 • 47
devemos lembrar que o abandono da força de trabalho ameríndia não foi total,
pois o escravo africano era caro e em regiões de menor destaque econômico era
inviável, fazendo com que o emprego da escravidão indígena fosse uma alter-
nativa bastante comum.

Índios Cativos
Desde a chegada dos primeiros portugueses, o Brasil, por opção desses colonizadores,
foi por uma sociedade escravista. Na concepção dos colonos, a sobrevivência nas no-
vas terras somente seria possível com a posse de um escravo que, caçando e pescando,
lhes garantisse o sustento. Se tivessem um ofício, precisavam de auxiliares, se possuís-
sem terras, faziam com que os cativos a cultivassem.
Quando o foco da economia, por determinação do monarca, passou da extração para o
cultivo, cresceu a necessidade da mão de obra escrava. Os colonos não enfrentariam os
riscos e as tribulações da perigosa travessia oceânica e da vida áspera na Colônia para
lavrar a nova terra. Para o colono português, as tarefas manuais deveriam ser realizadas
pelos inferiores. Assim, da lógica dos mais poderosos, as primeiras vítimas foram os
índios, então chamados de “negros da terra”.

ATIVIDADE
1. Reflita acerca das razões que justificam o predomínio da escravidão africana em relação
à indígena.

2. Disserte sobre as justificativas apresentadas pelos jesuítas para o fim dos cativeiros
dos indígenas.

REFLEXÃO
Nações e etnias atribuídas aos africanos escravizados
Agrupados no que os colonizadores portugueses chamavam de minas, cabindas, congos,
cassanjes, angolas, benguelas e moçambiques, entre outras designações, estavam pessoas
vindas de várias aldeias ou reinos, e falantes de línguas diferentes, apesar de terem algu-
mas semelhanças entre si. Mas os comerciantes, administradores coloniais e senhores que

48 • capítulo 1
punham os escravos para trabalhar não percebiam as diferenças entre os africanos, identi-
ficando-os principalmente a partir do porto em que foram embarcados (como Cabinda), da
principal feira em que foram comprados (como Cassanje), ou do nome da região onde esses
pontos de comércio se encontravam (como Angola).
Mas ao lado desses nomes que identificavam nações, juntando num mesmo grupo pes-
soas vindas de sociedades diferentes, também apareciam nomes referentes a grupos cul-
turais particulares, como ambundos (habitantes do reino do Dongo), anjicos (como eram
chamados pelos portugueses os habitantes do reino Tio), ardas (do reino Alana) ou hauças
(das cidades--estado do Sudão Central). Além dos nomes de nações, atribuídos pelos colo-
nizadores e geralmente adotados pelos africanos e dos nomes de etnias, que sobreviveram à
travessia do Atlântico e continuaram sendo usados na América, havia ainda os nomes criados
no Brasil para designar povos com línguas, religião ou costumes semelhantes. Assim, malês
era o nome dado aos africanos islamizados do Sudão Central e Ocidental, nagôs eram os
Iorubás da região do reino de Oió e das cidades-estado costeiras e jêjes os que habitavam
mais a ocidente, na região do reino de Daomé.
Nomes de nações ou de etnias são sempre formas de atribuir uma identidade particular
a um grupo, indicando que ele tem tradições, maneiras de se comportar, de pensar e de
falar que lhe são próprias e o distinguem dos outros. Aos poucos diminuíram as diferenças
entre os vários africanos trazidos para o Brasil, onde passaram a conviver entre si e com os
senhores de ascendência portuguesa, surgindo então uma cultura afro-brasileira, em que as
diferenças étnicas ficaram em segundo plano.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006, p.62

LEITURA RECOMENDADA
ALENCASTRO, L. F. de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FARIA, Sheila de Castro. O Brasil colonial: economia e diversidade. São Paulo: Editora
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VIEIRA, A. Clavis Prophetarum. A chave dos profetas. Livro III. Edição crítica de Arnaldo do
Espírito Santo. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2000.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No próximo capítulo, vamos analisar a inserção da mão de obra escrava, africana e indígena,
na estruturação da economia colonial, a estruturação das religiões afrodescendentes, as for-
mas de resistência ao poder escravista: fugas, rebeliões, quilombos e negociação, as reações
variadas dos detentores do poder: tolerância e repressão e, finalmente, os laços que ligam os
afrodescendentes no Brasil às sociedades africanas.

52 • capítulo 1
2
A Economia Colonial,
a Escravidão Negra
e a Resistência
2  A Economia Colonial, a Escravidão Negra
e a Resistência

A inserção da mão de obra escrava, indígena ou africana, foi fundamental para


a estruturação da colônia portuguesa na América, e as configurações econômi-
cas, por mais contraditório que possa parecer à primeira análise, contribuíram
para as formas de resistência dos jesuítas, que advogavam a favor dos indíge-
nas, e dos escravos africanos.

OBJETIVOS
• Analisar o trabalho escravo na economia colonial;
• Compreender a estruturação das religiões afro-brasileiras;
• Analisar as formas de resistência dos escravos no Brasil Colônia;
• Verificar os laços que ligam os afrodescendentes no Brasil às sociedades africanas.

REFLEXÃO
Você se lembra de Zumbi dos Palmares e da importância desse homem para a história dos
povos africanos no Brasil? Conhece um pouco das religiões afro-brasileiras e sabe que foram
compreendidas em alguns momentos como forma de resistência?

2.1  Um panorama da economia colonial

As diferentes atividades eram desigualmente valorizadas. A de maior prestígio, sobre-


tudo nos primeiros tempos, era não propriamente uma atividade, mas o “ser senhor de
engenho”. Na famosa expressão do padre Antonil, em sua obra Cultura e Opulência do
Brasil por suas Drogas e Minas, escrita no início do século XVIII, “o ser senhor de enge-
nho é título a que muitos aspiram porque traz consigo o ser servido e respeitado. E [...]
bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho quanto proporcionadamente
se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino”.

54 • capítulo 2
O comércio era considerado uma profissão menos digna e, em teoria, os homens de
negócios estavam excluídos das Câmaras e das honrarias. O fato de que muitos de-
les fossem cristãos-novos acrescentava outro elemento de discriminação. Os artesãos
também eram depreciados, pois considerava-se o trabalho manual uma atividade infe-
rior. Quase sempre sem representação nas Câmaras, conseguiram às vezes se fazer
ouvir através do “juiz de fora”, magistrado profissional indicado pela Coroa que presidia
a Câmara, nas cidades maiores.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo/Imprensa Oficial do Estado, 2001, p.34

Antes de discutirmos a inserção dos escravos africanos na economia co-


lonial, é importante compreender que a análise desse importante aspecto da
história do Brasil e, consequentemente, da população africana que para cá foi
deslocada para movimentar a engrenagem da economia colonial.
Clássico da historiografia nacional, a obra Formação do Brasil Contempo-
râneo, publicada em 1942, apresenta a persistente dependência estrutural do
país desde o período colonial até o século XIX. Segundo o autor, a estrutura
econômica extremamente dependente não poderia ser desarticulada e assim
permaneceu até o século XX. O avanço para o estágio de uma economia nacio-
nal dependia de um mercado interno e de uma classe empresarial fortes, o que
não ocorria. Essa interpretação corroborou para a consolidação da ideia de que
de que a economia brasileira deveria seguir o “sentido da colonização”, o que
impediria a evolução da economia colonial para a nacional.
Colonizado por Portugal, o Brasil transformou-se em produtor de produtos
para exportação, inicialmente o açúcar. O latifúndio, a monocultura e a escravidão
seriam os pilares das unidades produtoras. O único produto a superar o açúcar
nas exportações foi o café, no século XIX, e fundamentado nos mesmos princípios
da grande lavoura. Mantinha-se, segundo Caio Prado, a “maldição” da colônia,
com o café sendo o principal produto da economia brasileira (CALDEIRA, 1999).
Na obra, o autor enfatiza o conceito do “pacto colonial”, segundo o qual Por-
tugal era o detentor do monopólio de toda a produção colonial, sendo vetado
aos colonos o comércio com outros países. A sociedade, consequentemente,
foi compreendida como bipolar, agregando de um lado os senhores e de outro
os escravos. Os que não compusessem um ou outro polo estariam, automati-
camente, fora do “Sistema Colonial” (FRAGOSO; FLORENTINO; FARIA, 2007).

capítulo 2 • 55
Porém, a historiografia nacional elaborou novas interpretações pauta-
das em outros documentos e teorias que concluíram, grosso modo, que o
Brasil colonial teve um desenvolvimento mais complexo do que o apresen-
tado por Caio Prado Junior. As relações comerciais na colônia eram mais
dinâmicas e os colonos burlando o pacto colonial estabeleciam relações co-
merciais com outras regiões, por exemplo, os comerciantes que forneciam
escravos negociavam diretamente com traficantes e chefes locais da África,
detendo o monopólio do tráfico negreiro (FARIA, 2002).
Além das questões econômicas, as pesquisas historiográficas revelaram uma
vasta camada populacional, os senhores e os escravos, que estava inserida na di-
nâmica do setor exportador. Eram indivíduos de diferentes origens, com ativida-
des diversificadas, como produção de alimentos, com o auxílio da mão de obra
escrava ou familiar, e o trabalho em diversos setores das principais cidades da
colônia. O latifúndio, portanto não era autossuficiente e isolado, pois existia um
mercado interno que interligava diversos setores de produção e de serviços. A es-
ses setores, aliava-se o contrabando, feito sob as vistas dos agentes da metrópole,
numa política permissiva e corrupta. A presença de navios estrangeiros no Brasil
era corriqueira, Portugal podia até tentar implantar uma política como a apresen-
tada por Caio Prado Junior, mas não tinha controle absoluto sobre sua eficácia.

O mercado interno
Ao contrário do que foi divulgado durante muito tempo nos manuais de História do
Brasil, recentemente a historiografia tem observado que é exagero limitar a econo-
mia colonial apenas ao setor exportador. Existiu no Brasil uma considerável parcela de
pecuaristas ou de pequenos proprietários que produziam alimentos para o consumo
interno. Essa produção de alimentos, como mandioca, milho, feijão e arroz, era essencial
para a população da colônia. A vida da maioria dos habitantes da colônia não se limitava
às grandes propriedades rurais.
A pecuária, que era ligada ao mercado interno, foi uma das principais atividades econô-
micas do referido período. O gado abastecia a população com carne e couro, além de
ser utilizado como força motriz e meio de transporte. Houve especialização na atividade
pecuária em diversas áreas, como amplas regiões do Piauí, Maranhão, Bahia, litoral flu-
minense, sul de Minas Gerais e planícies do Rio Grande do Sul. Assim, a economia do
Brasil colonial não deve ser compreendida apenas a partir da plantation, aos escravos,
ao açúcar, ao tabaco, ao ouro e aos diamantes.

56 • capítulo 2
Como destacamos, durante os primeiros anos foram estabelecidas no
Brasil apenas feitorias, que não passavam de postos de trocas entre portu-
gueses e índios (escambo). Essa primeira relação entre metrópole e colônia,
comprovava que Portugal não tinha nenhum interesse de “empatar” capital
no Brasil e que, portanto, ficaria em segundo plano até que se fossem desco-
bertas riquezas minerais para “animar” a máquina mercantilista.
Entretanto, a partir de 1530, a necessidade de ocupação territorial e a busca
de produtos lucrativos fizeram com que os colonizadores optassem pela explo-
ração agrícola, seguindo uma política de cultivo permanente e extensivo da ter-
ra. A produção, ainda, deveria ter um baixo custo e ser realizada em larga escala.
Conhecedora das técnicas de produção de açúcar a partir da experiência acu-
mulada com o fabrico do produto nas ilhas da Madeira e de São Tomé, Portugal
não titubeou em lançar-se na empreitada. A monarquia portuguesa estimulou
a construção de unidades açucareiras na nova já no momento de estruturação
da administração colonial. Com o açúcar, a metrópole tornaria a sua colônia
lucrativa, ao mesmo tempo que a exploração agrícola sistemática e intensa re-
solveria a questão da ocupação territorial.
Ao serem superadas as dificuldades iniciais, tais como o recrutamento de
mão de obra e a falta de capitais para financiar a montagem dos engenhos, com
atrelamento da produção brasileira aos centros mercantis da Europa e articula-
ção do tráfico de escravos entre África e Brasil, estruturou-se definitivamente a
“indústria” de açúcar na América portuguesa e o crescimento acelerado da pro-
dução ultrapassou todas as outras regiões abastecedoras do mercado europeu.
O fornecimento de escravos através do tráfico transatlântico de africanos foi
crucial para o desenvolvimento da produção açucareira brasileira, pois a força
de trabalho empregada na instalação dos engenhos foi predominantemente in-
dígena. Nos momentos iniciais uma parte dos nativos, recrutados contra a von-
tade dos jesuítas em aldeamentos no litoral, trabalhava sob regime de assalaria-
mento, mas grande parte deles era submetida à escravidão (SCHWART, 1988).
Apesar de, como vimos, os escravos africanos começarem a ser importados em
meados do século XVI, o seu emprego nos engenhos brasileiros, ocorreu primeira-
mente nas atividades especializadas. Esse emprego tardio ocorreu porque os afri-
canos eram bem mais caros que os indígenas.Um africano custava, por exemplo,
cerca de três vezes mais que um escravo indígena. Todavia, após 1560, com a ocor-
rência de várias epidemias de sarampo e varíola no litoral brasileiro, os nativos
passaram a morrer em proporções alarmantes, o que exigia reposição constante
da força de trabalho nos engenhos. Na década seguinte, em virtude da mortanda-

capítulo 2 • 57
de e em resposta à pressão dos jesuítas, a monarquia portuguesa promulgou leis
que coibiam de forma parcial a escravização de índios (ALENCASTRO, 2000).
Concomitantemente, os traficantes portugueses aprimoravam o funcionamen-
to do comércio transatlântico, sobretudo após a conquista definitiva de Angola em
fins do século XVI. Esse volume triplicou, ampliando significativamente o número
de africanos aportados como escravos na América portuguesa, a maior parte deles
destinada a trabalhos em canaviais e engenhos de açúcar (SCHWART, 1988).
O sucesso da produção escravista de açúcar da América portuguesa depressa
atraiu a atenção de outros países coloniais europeus. Já em fim do século XVI, era
crescente o envolvimento de negociantes ingleses e holandeses no comércio açu-
careiro entre Brasil e Europa. As invasões holandesas da Bahia e Pernambuco,
respectivamente em 1624 e 1630, foram em grande parte motivadas pelo dina-
mismo da economia açucareira dessas capitanias (ALENCASTRO, 2000).
Algumas construções rodeadas de extensos canaviais formavam o que
ficou conhecido como engenho colonial. Quando os canaviais começavam
a produzir foram construídas a moenda e o engenho propriamente dito,
que utilizavam técnicas quase rudimentares. Aqueles que cultivavam a ca-
na-de-açúcar eram classificados hierarquicamente conforme o uso da terra,
alguns mantinham seus canaviais com recursos próprios, nas terras arren-
dadas ao engenho, outros dependiam dos grandes proprietários, pois por
ser muito cara a instalação de um engenho, alguns colonos plantavam cana
em suas próprias terras e usavam o engenho do vizinho e como pagamento
davam ao dono da moenda uma parte da produção.
O mestre do açúcar era o trabalhador mais importante do engenho, cuida-
va da produção desde o caldo da cana até a obtenção final. O serviço dos es-
cravos, que trabalhavam no campo, no engenho e na casa-grande, era dirigido
por empregados contratados, os famosos feitores que fiscalizavam o trabalho
e aplicavam as punições. Havia ainda, ao contrário do que muitos imaginam,
outros trabalhadores livres ligados ao engenho, como barqueiros e pedreiros1.
O engenho, assim, funcionava 24 horas por dia durante a safra (FARIA, 2002).
A maior parte das terras era destinada à plantação de cana e somente uma
pequena porção da terra era destinada à produção de gêneros alimentícios, que
ainda, conforme as oscilações no mercado internacional, poderia aumentar ou
diminuir. A diminuição ao máximo da produção de alimentos causava verda-
deiras crises de abastecimento.

1 O que atesta a existência de outras formas de mão-de-obra na colônia.

58 • capítulo 2
Afora a ocupação territorial proporcionada pela implantação das gran-
des lavouras açucareiras, desde o início do período colonial, os portugueses
exploraram o território em busca de metais preciosos. As muitas expedições
organizadas pela Coroa com esse objetivo eram denominadas entradas. To-
davia, além das entradas, que eram expedições oficiais, ocorreram campa-
nhas particulares, mais comumente chamadas de bandeiras. Os homens
envolvidos nessas empreitadas, a pé ou em canoas, entravam pelo sertão em
busca de cativos indígenas, pedras e metais preciosos.

O processo de interiorização do Brasil

Os fatores que mais contribuíram para a ocupação do território brasileiro foram a pecu-
ária e as expedições em busca de ouro, pedras preciosas e apresamento dos indígena.
No caso da pecuária, o processo se deu nas regiões do nordeste e do sul. No nordeste,
a princípio o gado era utilizado nas operações necessárias à produção de açúcar e,
posteriormente, tornou-se uma atividade especializada e as zonas de criação foram am-
pliadas. No Rio Grande do Sul, o gado proveniente das missões jesuítas destruídas pe-
las reformas pombalinas ficaram vagando pela região dos pampas e aos poucos foram
se reproduzindo. A notícia da existência de grande número de cabeças levou alguns
colonos a se deslocarem para a região com o objetivo de confinar os animais, dando
início a atividade propriamente dita, que a princípio era voltada somente a obtenção do
couro. Em seguida, com a comercialização do charque a atividade se expandiu e todo o
interior gaúcho foi ocupado.

Podemos classificar as expedições que ajudaram a interiorizar o território brasileiro em


três tipos:
Bandeiras: financiadas por particulares tinham o objetivo de capturar índios ou ouro e
pedras preciosas;
Entradas: eram expedições oficiais da Coroa em busca de ouro e pedras;
Sertanismo de Contrato: homens experientes em se embrenhar no mato e conhe-
cedores do interior, eram contratados pela Coroa ou por senhores de engenho para as
mais diversas empreitadas, como, por exemplo, o aprisionamento de índios, captura de
negros fugitivos, destruição de quilombos e outras.

capítulo 2 • 59
As expedições particulares partiam de São Paulo, (Vila de Piratininga) local
para onde convergiu a população menos abastada após o declínio da produção
açucareira em São Vicente.

Do ponto de vista de sua organização, a expedição bandeirante


era comandada por um chefe, branco ou mameluco, que en-
cerrava em suas mãos poderes absolutos sobre os subordina-
dos. Sob seu comando estavam os escravos indígenas que eram
usados como batedores, guias e carregadores. (...) O número
de componentes de uma bandeira era variável; podia ser uma
expedição de quinze a vinte homens e também podia chegar a
reunir centenas de participantes (DAVIDOFF, 1982, pp. 27-28)

Não se sabe ao certo quem foi o responsável pela descoberta de ouro na re-
gião que ficou conhecida como Minas Gerais, sabemos apenas que fora um dos
membros da expedição liderada por Fernão Dias, que faleceu durante a mes-
ma. A notícia do encontro das jazidas de aluvião convulsionou a vila de São Pau-
lo, cujos moradores que tinham condições juntaram seus escravos e índios e
rumaram em busca de riquezas. Para além de São Paulo, a notícia despovoou
regiões e afetou as atividades econômicas, obrigando o governo a tomar medi-
das restritivas de acesso a região das minas.
A atração que a possibilidade de enriquecimento rápido fez com que
a população metropolitana e colonial mudasse o foco e rumasse para a nova
região das minas, ocasionando uma grande transformação demográfica. As
minas atraíram para o Brasil uma quantidade ainda maior de imigrantes portu-
gueses. Porém, a grande migração para a região foi compulsória, uma vez que
o volume do tráfico de escravos africanos para a América portuguesa cresceu
significativamente na primeira metade do Setecentos (DAVIDOFF, 1982).
Para organizar a fiscalização e a arrecadação na região mineradora, a admi-
nistração colonial tomou algumas medidas como a criação do Regimento das
Minas Gerais, que estabelecia que em todos os lugares que se encontrasse ouro
seria criada uma Intendência das Minas que recolheria o quinto (20 % do ouro
extraído por cada minerador).
A descoberta de ouro provocou transformações significativas na sociedade
colonial brasileira, o século XVIII marcou definitivamente a consolidação da co-
lonização portuguesa no Brasil. O ouro atraiu milhares de pessoas para o interior

60 • capítulo 2
da colônia, favorecendo a conquista do sertão, o aumento populacional e a inte-
gração entre as regiões antes isoladas. Devemos notar ainda, que ocorreu nesse
momento uma intensa urbanização da colônia, pois a “corrida do ouro” contri-
buiu significativamente para o surgimento de vilas e cidades como Vila Rica, Ri-
beirão do Carmo, São João Del Rei e Sabará.

No Brasil colonial, entre as classes subalternas, o exercício da livre escolha do cônjuge,


movido por interesses que não eram as alianças político-econômicas, deixava aflorar,
de maneira mais espontânea, os sentimentos. Nos concubinatos tão disseminados, nas
mancebias e amasiamentos, encontravam-se gestos amorosos e expressões de afeto
bastante discretos. No casamento, o amor deveria ser casto e continente, enquanto fora
dos laços matrimoniais o amor era paixão. O amor não estava obrigatoriamente ausente
dos casamentos, sobretudo dos “arranjados”, e presente fora deles.
Entre as elites, o risco do casamento por amor era o de que esta instituição perdesse a
sua função, desestabilizando a transmissão do patrimônio, garantida por alianças entre
famílias e, na Colônia, certamente interferindo no domínio da elite branca e metropoli-
tana sobre os pobres e gentes de cor. Neste período, o tipo de amor que se colocava
como ideal era o amor conjugal. Uma sutil separação fazia-se entre o “bem querer amis-
toso” e “as más paixões”. Segundo frei Antonio de Pádua “o amor [conjugal] extingue
todas as paixões malignas que são quem perturba o nosso descaso.

Adaptado de: DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e
mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, pp. 127-128.

Em 1763, a capital foi transferida para o Rio de Janeiro, refletindo o desloca-


mento do centro econômico do nordeste açucareiro para a região mineradora do
sudeste. A cidade do Rio de Janeiro permitia o transporte do ouro, facilitando a
comunicação com a metrópole.
Além das transformações acima destacadas, a questão em torno da explora-
ção do ouro contribuiu para acentuar a oposição de interesses entre os colonos
brasileiros e a Coroa portuguesa. Os colonos acreditavam que a pobreza era oca-
sionada pela opressão do governo central, com a cobrança excessiva de tributos.
Do ponto de vista dos representantes do monarca português, todos os embates
eram ocasionados pelo extravio e contrabando, os métodos pouco adequados de
extração do ouro e a falta de mão de obra necessária.

capítulo 2 • 61
A empolgação inicial deu lugar, em meados da década de 1760, a uma densa
crise ocasionada pela decadência da produção aurífera. A diminuição da produ-
ção conduziu, quase automaticamente, a um processo de estagnação, pois as
atividades diretamente e indiretamente ligadas à economia mineradora tam-
bém sofreram com a decadência da extração de ouro e pedras preciosas. Vila
Rica e Diamantina, por exemplo, entraram em crise, as vilas e arraiais que viviam
em torno do ouro esvaziaram, o tráfico de escravos diminuiu, as importações de
mercadorias caíram. Alguns historiadores afirmam que a crise ocasionada pelo
fim da extração de ouro e pedras preciosos só seria ultrapassada com a produção
de café, na segunda metade do século XIX.
As condições de trabalho nas minas eram insalubres e dependiam basica-
mente dos escravos, que, obrigados a trabalhar além do limite de sua capaci-
dade, viviam em média cerca de 7 anos, depois que chegavam as minas. Alguns
homens livres pobres ascenderam socialmente nesse período explorando
ouro através de uma técnica mais rudimentar que não exigia investimento, a
faiscação (FAUSTO, 2001).
O contingente populacional e a produção do ouro aumentava constante-
mente, mas o mesmo não acontecia com a arrecadação, devido ao contrabando
que atingiu dimensões assustadoras. Para conter o contrabando, foram criadas
as Casas de Fundição, e assim, o ouro só poderia circular em forma de barras e
com o selo da coroa.
A revolta dos mineradores contra tais medidas era geral. Em Vila Rica, Fi-
lipe dos Santos e outros mineradores resolveram pegar em armas e assumir o
controle da vila. Eles reivindicavam ao governador a suspensão das medidas; a
rebelião acabou esmagada e Felipe dos Santos, morto e esquartejado. Em con-
sequência da revolta, as casas de fundição não foram instaladas de imediato.
Ao final da década de 1730, a arrecadação caiu sensivelmente e, para não ter
prejuízo, o governo começou a cobrar um imposto per capta e os mineradores
propuseram-se apagar 10 arrobas anuais. O governo então determinou que se a
meta não fosse atingida seria aplicada a derrama. A derrama consistia no con-
fisco dos bens da população. Mas, a partir do século XVIII, a queda da produção
tornou impossível o cumprimento das exigências fiscais. O esgotamento das
jazidas e as técnicas rudimentares que não permitiam a extração do ouro nas
camadas mais profundas fizeram com que, na segunda metade do século XVIII,
a crise da mineração se tornasse irreversível

62 • capítulo 2
Em 1729, foram descobertas pedrinhas de brilho encantador na região de
Serro Frio, que logo os conhecedores de pedras constataram que se tratava de
diamantes. Era o início de mais um grande e lucrativo negócio para a metrópole.
A região foi demarcada e um intendente nomeado para fiscalizar a cobrança de
impostos, foi criado o distrito de Diamantino, e muitas vilas cresceram ao redor,
em semelhança ao ocorrido nas regiões da mineração do ouro.
A produção e a população das Minas Gerais aumentavam significativamen-
te e o problema de abastecimento de gêneros alimentícios continuava, nin-
guém se interessava em plantar e a Coroa também desejava que todos os braços
disponíveis se dedicassem a extração. Diante disso, tornou-se vantajoso para
outras regiões da colônia produzir os mais variados gêneros para a região das
Minas. São Paulo, por exemplo, antes um povoado de produção de subsistên-
cia, aos poucos passou a destinar a maior parte de sua produção para Minas Ge-
rais, criando rotas movimentadas de circulação comercial. O que os paulistas
não produziam “importavam” de outras regiões do país, e depois que Santos
foi declarado porto livre e franco pela carta régia de 1720, passou a receber as
embarcações que vinham diretamente do reino.
A Bahia também se tornou um importante pólo de abastecimento, já que os
senhores de engenho estavam passando por uma crise devido a concorrência
antilhana. O Rio de Janeiro se transformou muito depois que foi aberto o “novo
caminho para o sertão”, com o objetivo de encurtar a rota até a região do ouro,
diminuindo o tempo da viagem em menos da metade.
O comércio com a região mineradora aguçou a cobiça estrangeira e vários
artigos europeus começaram a chegar à região. Quando o comércio era legal,
Portugal ganhava através das taxas alfandegárias, no entanto, o contrabando
internacional era intenso e muito mais vantajoso. Navios ingleses desembar-
cavam cargas imensas nos portos brasileiros, tudo acobertado pela ganância
e corrupção das autoridades da administração colonial.

A Guerra das Emboabas (1708-1709)

A razão principal desse famoso conflito ocorrido na região mineradora era a disputa en-
tre paulistas e portugueses (chamados pejorativamente de “emboabas”, que significava
ave de pernas emplumadas) pelas minas do ouro.

capítulo 2 • 63
Os paulistas haviam descoberto as minas, porém, não puderam evitar o deslocamento
de milhares de pessoas, inclusive vindas de Portugal. Muitos homens que vieram para
essa região morreram de fome, que não produzia meio de subsistência. Alguns comer-
ciantes portugueses enriqueceram abastecendo de produtos a região, e dessa forma
aumentavam também seu poder de influência. Suas possibilidades de contatos com a
metrópole facilitavam a aquisição de escravos e ferramentas e por isso tornaram se os
maiores intermediários entre metrópole e colônia.
Liderados por Amador Bueno da Veiga e Borba Gato, os paulistas não aceitavam a
perda de terreno para os portugueses e os desentendimentos, antes isolados, torna-
ram-se frequentes.
Em 1708, os emboabas, liderados por Manuel Nunes Viana, já controlavam a área de
mineração do rio das Velhas. E os paulistas, encurralados no vale do rio das Mortes, logo
foram cercados. Os emboabas propuseram que eles largassem as armas em troca de
terem suas vidas poupadas. Mas depois de aceito, o acordo não foi cumprido e alguns
paulistas foram friamente assassinados no episódio conhecido como Capão da Traição.
Manuel Nunes Viana foi declarado governador da região das minas, mas a metrópole
reagiu mandando outro governador, Antonio de Albuquerque.
Os paulistas abandonaram a região e se embrenharam na exploração do sertão, encon-
trando ouro posteriormente em Goiás e no Mato Grosso.

2.1.1  A crise do sistema colonial

Passados alguns séculos de colonização, havia se formado no Brasil uma elite


local ligada a todas as áreas econômicas. Essa elite não via mais com bons olhos
a exploração colonial, cujo objetivo principal era acumular para a metrópole.
No decorrer do século XVIII, eclodiram vários conflitos e revoltas dos que se
opunham ao monopólio e à opressão fiscal.
A independência dos EUA em 1776, a Revolução Industrial, a Revolução
Francesa e o iluminismo, foram influências decisivas na relação de outras
colônias com suas metrópoles. No caso do Brasil, o processo de transição de
sistema colonial para Estado independente realizou-se de forma conserva-
dora e sem a eliminação de características coloniais.
No contexto internacional, persistiam as hostilidades da Inglaterra e
outras monarquias absolutistas em relação a França burguesa. A Inglaterra
temia a consolidação comercial francesa e uma provável concorrência no

64 • capítulo 2
mercado europeu e as monarquias absolutistas temiam que os ideais da revo-
lução se propagassem de tal forma que ameaçassem seus sistemas.
Napoleão Bonaparte sabia que o confronto era inevitável e atacou a Ingla-
terra com uma diplomacia agressiva e provocações econômicas, descumprindo
acordos, por exemplo. Até 1812, ocorreram muitas batalhas nas quais a França
saiu vitoriosa, como em 1805, quando derrotou a Rússia e a Áustria. Entretanto,
no mesmo ano Napoleão foi vencido na batalha de Trafalgar.
A partir desta derrota o francês modificou suas estratégias e, em 1806, im-
pôs o Bloqueio Continental, segundo o qual ficava proibido o comércio entre
a Europa e a Inglaterra. Tal situação colocou os países ibéricos num impasse,
se ficassem do lado da França poderiam perder suas colônias, pois a Inglaterra
poderia impor um bloqueio marítimo, se apoiassem a Inglaterra a França inva-
diria seus territórios.
A solução foi adiar ao máximo a decisão. Porém, em 1807, Napoleão, já
cansado de esperar, invadiu a Espanha, depôs o monarca e colocou em seu
lugar José Bonaparte, seu irmão. Diante do ocorrido, prevendo ser a próxima
vítima, a monarquia portuguesa, apoiada pela Inglaterra, resolveu “fugir”
para o Brasil, pois assim, preservaria a monarquia e a sua principal colônia.
A Inglaterra, por sua vez, ao financiar a fuga, pretendia obter concessões nas
relações comerciais com o Brasil. Após uma alvoroçada fuga, considerada
um dos espetáculos mais deprimentes da história de Portugal, a Corte por-
tuguesa chegou ao Brasil em 1808.
Após o burburinho inicial ocasionado pela chegada da família real e toda a
sua corte, uma série de medidas foram tomadas, atendendo, especialmente, aos
interesses ingleses. D. João VI decretou a abertura dos portos às nações amigas,
permitiu a atividade manufatureira, aumentou a cobrança de impostos, criou o
Banco do Brasil, a Biblioteca Nacional (com os livros que trouxe no momento da
fuga), o Jardim Botânico, criou alguns cursos superiores e, por fim, elevou o Bra-
sil a condição de Vice-Reino, uma vez que era sede da monarquia.
Em 1815, Napoleão foi derrotado na Batalha de Waterloo. Seus adversários
então se reuniram no Congresso de Viena para restaurar os territórios e a po-
lítica da Europa. Os territórios conquistados pela França durante o domínio
napoleônico foram devolvidos e suas monarquias restauradas. Para serem be-
neficiadas, as monarquias teriam de estar sediadas em seus países de origem,
como Portugal não atendia a essa exigência, a solução foi elevar o Brasil a con-
dição de Reino Unido de Portugal, mesmo porque, devido a pressões inglesas,

capítulo 2 • 65
a dinastia de Bragança não voltaria para Portugal, pois essa volta significaria a
perda das vantagens comerciais adquiridas.
Por outro lado, a presença da dinastia de Bragança no Brasil causava
insatisfação tanto no Brasil como em Portugal. Em Portugal, devido a inva-
são francesa o sentimento de inferioridade, além pagamento de taxas alfan-
degárias superiores as da Inglaterra para colocar seus produtos no mercado
brasileiro. Se não bastasse todo esse clima de oposição, não se pode deixar
de considerar que a ocupação de Portugal pelos franceses espalhou os ide-
ais da revolução burguesa, que rapidamente influenciaram os portugueses.
Todos esses fatores culminaram na Revolução Liberal do Porto, que exigia o
retorno do monarca e a “recolonização” do Brasil.

2.2  A religiosidade africana

O mundo espiritual é aquele ao qual o homem tem acesso parcial e por meio de
ritos ou cerimônias é mais ou menos importante, dependendo de cada sociedade.
Nas sociedades africanas, de onde foram brutalmente retirados os cativos trazidos
ao Brasil, o cotidiano era intimamente relacionado com as dimensões espirituais.

CONEXÃO
A Religião e as religiões africanas no Brasil
http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2010/11/A-Religi%C3%A3o-e-as-reli-
gi%C3%B5es-africanas-no-Brasil1.pdf

Em todo o continente africano, tanto na costa como nas regiões do interior


relacionadas a estes litorais, quase tudo era elucidado e resolvido pelo sobre-
natural, suas práticas, ritos, objetos sacralizados, curandeiros, adivinhos, mé-
diuns e sacerdotes. Dentre os diferentes grupos que compunham a África, tudo
girava em torno da relação entre o mundo natural e o sobrenatural. Por exem-
plo, se considerarmos que a relação com o mundo sobrenatural e todas as cren-
ças e cerimônias para o seu estabelecimento são formas de religião, podemos
considerar que esta era um elemento central em todas as sociedades africanas.
A religião estava presente no poder dos líderes, no cumprimento das regras
de convivência de diferentes grupos, na garantia de harmonia e bem-estar das
comunidades (SOUZA, 2006). O mundo dos africanos era desvendado e contro-

66 • capítulo 2
lado pela religião, que nesses grupos sociais tinha um papel equivalente ao que
a ciência e a tecnologia têm no mundo contemporâneo.
Todavia, é pertinente compreender que, se havia uma diversidade de povos
na África, tal diversidade também existia quando falamos em crenças e reli-
giões. A maioria dos povos africanos possuía deuses e ritos próprios, embora
também apresentassem alguns elementos culturais semelhantes, pois os afri-
canos mantinham muitos contatos entre si.
As religiões do continente africano crêem que mesmo as coisas físicas apre-
sentam elementos espirituais, acreditam que há espíritos nas montanhas, nas
árvores, nos rios, nos trovões, na lua etc. Por esse motivo, essas religiões são
chamadas de animistas2.
Cada ato da vida era associado ao sobrenatural, daí os cultos e ritos para
o nascimento, casamento, morte, dentre outros, que poderiam ser feitos por
toda a comunidade, com cantos, danças e adornos, ou praticados apenas pelos
líderes espirituais.
Acreditavam quase sempre em um Ser Supremo o qual criou o universo, os ho-
mens, as coisas e está associado aos céus, cujos poderes são capazes de controlar
o destino de todo o grupo. Abaixo do Ser Supremo a maioria das comunidades cul-
tuava outras entidades, que se ocupavam de coisas mais mundanas como fenô-
menos naturais e comportamentos humanos. Apenas em situações de extrema ne-
cessidade os homens deveriam recorrer ao Ser Supremo, na maior parte das vezes
não o incomodavam, recorrendo aos “deuses menores” e aos “espíritos intermedi-
ários” (GIORDANI, 2007).
Era comum em diversas regiões da África a crença em curandeiros ou magos,
que com seus ritos, orações e ervas assistiam as necessidades das pessoas. Os
curandeiros dominavam a magia e entendiam de diversas doenças, usando amu-
letos e formulas mágicas para afastar os maus espíritos causadores dos infortú-
nios e doenças. Esses homens e mulheres eram como sacerdotes e médicos, fun-
damentais em sociedades como as africanas, sujeitas a muitas doenças e à fome.
A religião confundia-se com a moral. Qualquer ação que prejudicasse a
convivência ou o equilíbrio das forças naturais poderia ser severamente puni-
da pelas lideranças tribais religiosas, sob o risco de haver secas, doenças, en-
chentes ou outros males, pois as divindades ficavam tristes e irritadas. Todas

2 Animismo: Filosofia. Ideologia ou crença de acordo com a qual todas as formas identificáveis da natureza (ani-
mais, pessoas, plantas, fenômenos naturais etc.) possuem alma.

capítulo 2 • 67
as desgraças eram compreendidas como fruto da desordem social e moral da
sociedade. Não existia uma separação nítida entre religião, política e justiça,
de modo que ao chefe da tribo ou rei, muitas vezes, cabia o papel de líder da
comunidade, fazer a justiça e guardar a religião. Nãos raras vezes, o líder tri-
bal foi o representante dos deuses na terra ou o porta-voz dos homens diante
das divindades (GIORDANI, 2007).
Os grupos familiares eram importantes nas religiões e crenças africanas,
pois acreditavam que a família abarcava nãos apenas os vivos, mas igualmen-
te os mortos, que permaneciam protegendo os seus descendentes e vigiando
o cumprimento dos costumes. Assim, os vivos deveriam obedecer aos costu-
mes e fazer culto aos antepassados, sendo comum jogar bebidas e comidas
na terra para que os espíritos dos antepassados ingerissem e ficassem satis-
feitos. Na família estavam também os ainda não nascidos.

CONEXÃO
África: culturas e sociedades
http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/002/africa_culturas_e_sociedades.html

O cristianismo chegou à África por volta do século I da Era Cristã, conquistan-


do muitos adeptos na região do Egito, Núbia e Etiópia. Porém, após a penetração
do islamismo a partir do século VII, o cristianismo teve dificuldades para se ex-
pandir sendo, até hoje, o islamismo dominante no norte do continente africano.

Principais elementos das religiões da África Central

Nos sistemas de pensamento de povos da África Central, pertencentes ao tronco lin-


guístico banto, o mundo se divide entre uma parte habitada pelos vivos e outra pelos
mortos, espíritos e entidades sobrenaturais. Era com essas forças que as pessoas bus-
cavam orientação para lidar com os problemas. Separando os dois mundos, havia uma
grande massa de água, ou um manto fechado. Muitas vezes era no manto, ou por meio
da água, que o especialista podia estabelecer a comunicação entre os dois mundos.
Na esfera do sobrenatural estavam os mortos, alguns elevados à condição de ances-
trais, figuras em torno das quais alguns grupos familiares se organizavam.

68 • capítulo 2
Eles podiam ser líderes que haviam comandado migrações e fundado novas aldeias;
podiam ter introduzido um novo saber, como cultivar uma planta, processar um alimen-
to, uma bebida; podiam ter tido acesso a um poder sobrenatural, como forjar o ferro,
colocando-o à disposição das pessoas. Havia ainda uma infinidade de espíritos que
habitavam as dimensões do além: espíritos das águas e das terras, das plantas e dos
animais, das doenças e suas curas, das guerras, das alianças, das caçadas e das colhei-
tas. Sobre todos esses seres sobrenaturais pairava inatingível uma força que era a fonte
de todas as coisas, mas que não interferia na vida, natural ou sobrenatural.
Se a força criadora de tudo era inatingível, isto é, estava fora do alcance das pessoas
e dos espíritos, o mesmo não acontecia com as outras forças sobrenaturais, que eram
constantemente chamadas para resolver os mais diversos problemas. Mesmo quando
não eram chamadas, para o que eram necessários conhecimentos e objetos apropria-
dos, essas forças mantinham contato com as pessoas por meio de sonhos e de sinais
que podiam ser facilmente reconhecidos por qualquer membro do grupo. Porém os
contatos mais importantes precisam da intermediação de um especialista – o sacerdote
religioso que os portugueses chamavam de feiticeiros.

Souza, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2006, p. 45.

Os escravos africanos também trouxeram seus credos para a América por-


tuguesa e foi a religião uma das áreas em torno das quais os africanos construí-
ram novos laços de solidariedade, novas identidades e novas comunidades. Em
torno de sacerdotes, especialistas que conheciam ritos de comunicação com os
mortos, de onde se supunha virem orientações para muitos problemas, grupos
construíram identidades, nas quais também eram consideradas as áreas de ori-
gem dos seus membros, ou dos antepassados destes.
Duramente perseguidas pela Inquisição por serem associadas a ritos pagãos e
demoníacos, as manifestações religiosas africanas eram denunciadas e, por isso,
praticadas na clandestinidade na colônia, mas de maneira fervorosa.
Escondidas ou com a anuência dos senhores, eram realizadas cerimô-
nias religiosas como o acotundá e o calundu, além dos tradicionais cultos
que envolviam os mortos, as oferendas em altares e as mandingas, bolsas
de pano ou couro usadas no pescoço ou cintura com diversos ingredientes,
inclusive papéis com orações católicas ou mulçumanas.

capítulo 2 • 69
CONEXÃO
As religiões afro-brasileiras e seus seguidores
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/108/7053

Outro conjunto de práticas e crenças religiosas de matrizes africanas que


germinou no Brasil, foram os candomblés. No Brasil se referem a cultos reli-
giosos de origem ioruba e daomeana, em que as principais entidades sobre-
naturais são os orixás, quando a influencia ioruba é maior, e voduns, quando
a influência daomeana se destaca. Na Bahia, os iorubas também ficaram co-
nhecidos como nagôs, e os daomeanos, como jejês (SOUZA, 2006). O centro
do cerimonial abrigava ervas, búzios e aguardente, folhas de diversas plantas
serviam na preparação de alimentos oferecidos às divindades e também em
ritos de iniciação e limpeza do corpo.
As casas que abrigavam candomblés e os sacerdotes que estavam à sua
frente foram importantes pólos de organização das comunidades negras,
mesmo perseguidas até meados do século XX, quando começaram a ser acei-
tas como espaços legítimos de exercício de religiosidades afro-brasileiras.

ATENÇÃO
A gama de religiões afro-brasileiras é muito complexa, uma vez que diferentes grupos étni-
cos africanos contribuíram para a estruturação de diversidade de denominações religiosas,
destacando-se o Candomblé e a Umbanda. A rigor, a “macumba” nada mais é do que um
instrumento musical de origem africana. Como nas festividades e cerimônias religiosas os
africanos usavam o instrumento, as elites brancas cristãs passaram a empregar o termo
macumba pejorativa e genericamente. Os praticantes das religiões afro-brasileiras, porém,
recusam veementemente a expressão.

2.3  Formas de resistência ao poder escravista

A Senzala
O termo senzala vem do idioma africano bandu e, um de seus significados, é “moradia
de pessoas afastada da casa principal”, o mais usual, porém, é “povoado”. Foi nas senza-
las que os africanos reconstruíram, na América, o seu modo de viver e conviver.

70 • capítulo 2
Com uma visão preconceituosa, muitos dos rituais praticados dentro das senzalas bra-
sileiras eram tidos como resultado do fato de os africanos virem de uma sociedade
“primitiva”. Outros colonos viam nessas atitudes um sinal de degeneração causada pelo
escravismo. O que convém ressaltar é que ambos os pontos de vista desconsideravam
a cultura africana e tinham como padrão de comportamento aquele ditado pela cultura
européia, pelos valores da Igreja Católica e pela família patriarcal.
Os colonos portugueses costumavam interpretar a cultura africana com um olhar ca-
tólico, dessa forma, com frequência, os africanos eram considerados incapazes de es-
tabelecer relações familiares estáveis e duradouras, o que, como sabemos hoje, não
era verdadeiro. Para os africanos existiam várias formas de se viver em família, todas
fundamentavam-se na ideia de parentesco formado a partir de um ancestral comum.
Assim, as famílias eram vastas, fundadas em relações de parentesco estabelecidas
em um tempo distante. Além disso, muitas das práticas culturais dos escravos eram
consideradas indecentes, extremamente sensuais e impudicas, como a dança lundu3.

3
Nem sempre os escravos africanos aceitaram passivamente a integração
à sociedade brasileira e enquadrando-se em algum tipo de relação com seus
senhores. Os negros recorriam as mais variadas formas de resistência à escra-
vidão, seja negando-se totalmente pela fuga, seja negociando melhores condi-
ções de vida e trabalho. O que sempre existiu foi a rebeldia para escaparem da
exploração desumana que foi a escravidão.
Engana-se quem acredita que apenas no século XVIII com a mineração a
resistência escrava tenha conquistado espaço em virtude das condições ter-
ritoriais do trabalho imposta pela atividade e que o quilombo de Palmares
tenha sido o único. Nas grandes fazendas produtoras de açúcar em meados
do século XVI já eram registradas formas de resistência como o assassina-
to de capatazes e senhores, o suicídio, a prática de abortos, dentre outros.
Fugir era o recurso mais radical que os escravos tinham para escapar da ser-
vida, e eram muitos os que fugiam desde o início do tráfico para o Brasil.
Fugiam, juntos ou sozinhos, para o sertões, se embrenhando nos matos, ou
para os arredores das cidades, se escondendo em locais de difícil acesso.

3 O lundu ou lundum é um gênero musical contemporâneo e uma dança brasileira de natureza híbrida, criada
a partir dos batuques dos escravos bantos trazidos ao Brasil de Angola e de ritmos portugueses. Da África,
o lundu herdou a base rítmica, uma certa malemolência e seu aspecto lascivo, evidenciado pela umbigada, os
rebolados e outros gestos que imitam o ato sexual. Da Europa, o lundu, que é considerado por muitos o primeiro
ritmo afro-brasileiro, aproveitou características de danças ibéricas, como o estalar dos dedos, e a melodia e a
harmonia, além do acompanhamento instrumental do bandolim. http://pt.wikipedia.org/wiki/Lundu

capítulo 2 • 71
Durante os conflitos que se seguiram à invasão holandesa em Pernambuco, os
escravos africanos encontraram boas oportunidades de resistência. A extensão e
poder conquistados pelo quilombo de Palmares podem ser explicados não apenas
pela ocasião do conflito entre lusitanos e holandeses, mas também pela demogra-
fia da região dos latifúndios açucareiros pernambucanos. Quando os holandeses
invadiram Pernambuco, os escravos negros predominavam em termos numéricos
sobre a população branca, apresentando um panorama demográfico muito propí-
cio à eclosão de movimentos de resistência escrava (SCHWARTZ,1988).
Algumas evidências sugerem que com os problemas econômicos ocasiona-
dos pelos conflitos com os holandeses as alforrias ganharam impulso, sendo
também uma forma de reflexo da resistência dos escravos.
O admirável avanço territorial e demográfico da colonização ocorrido no sé-
culo XVIII se fez acompanhar por um aumento correspondente das tensões eco-
nômicas, sociais e políticas. Para os nossos fins, no entanto, interessa ressaltar
um tipo específico de conflito social, expresso nas fugas, na formação de quilom-
bos e em planos mais amplos de levante escravo.
Dadas as condições particulares da mineração, os escravos tiveram na região
das Minas Gerais mais oportunidades para exercer sua autonomia e resistir ao
controle senhorial. A dispersão espacial, a possibilidade de os escravos se apro-
priarem do que era extraído ou o próprio controle que detinham sobre o proces-
so de trabalho ampliaram sobremaneira a autonomia dos escravos. Por essas
razões, nesse período os senhores recorreram com constância a meios não co-
ercitivos para garantir a regularidade da extração, o que, por sua vez, facilitou o
acúmulo de numerário e a compra da alforria pelos cativos (SOUZA, 2006).
A possibilidade do exercício da autonomia escrava não significou complacên-
cia com os poderes senhoriais, mas maiores possibilidades para a resistência.
Nesse período da história, foram registrados inúmeros quilombos em Minas Ge-
rais, os quais, muitas vezes, mantiveram intensas trocas econômicas com a socie-
dade colonial que os circundava (REIS, 1996).
Porém, de todas as formas de resistência, a formação de quilombos4 foi a
mais significativa historicamente, nesses locais os escravos “fugidos” conse-
guiram criar uma estrutura de poder autônoma, organizados sob a forma de
um Estado e independentes da metrópole.

4 Quilombo era o nome dos acampamentos dos imbangalas, povo essencialmente guerreiro que, provavelmente,
quando escravizado, não se conformou com essa situação (SOUZA, 2006, p. 98).

72 • capítulo 2
Nos quilombos viviam também alguns indígenas e mesmo brancos, que
fugiam da justiça, misturados à variedade de africanos e crioulos. Cada qui-
lombo tinha um chefe, como nas aldeias africanas, responsável pela liderança
do grupo e pelas decisões políticas. Os quilombos localizados mais próximos
das vilas e cidades, comumente, comercializavam seus produtos, mas sempre
longe dos olhos dos senhores e seus capatazes, que sempre buscavam negros
fugidos para encaminhá-los a seu senhor.
A partir de 1602, já se tinha notícia do quilombo de Palmares e logo foram or-
ganizadas expedições para tentar destruí-lo. Em 1630, com a chegada dos holan-
deses a Pernambuco, a desorganização da lavoura causada pela guerra, facilitou
a fuga de muitos negros, entre os fugitivos alguns índios e mestiços, pois, como
no quilombo não havia imposições raciais, todos os demais grupos oprimidos
passaram a buscar abrigo no quilombo.
A sólida organização econômica, política e militar de Palmares, estabelecia,
uma espécie de Estado africano multirracial, cujo principal objetivo era a luta
contra a escravidão. A sua existência desestabilizava o sistema, pelo estímulo
às fugas e também por mostrar a toda sociedade que vivia a margem do sistema
colonial que era possível existir uma forma de organização social e política di-
ferente daquela imposta pelos colonizadores.
Até 1674 parecia impossível abalar a vitalidade de Palmares, porém, com o
passar dos anos, o grande número de investidas contra o quilombo, acabaram
por abalá-lo. Ganga Zumba, em 1675, diante da destruição promovida pelo sar-
gento mor Manuel Lopes, optou por um acordo com as forças coloniais. Propôs
a paz, em troca da liberdade dos que já estavam em Palmares. A paz foi firma-
da em 1678. Entretanto, o sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi, liderando outros
chefes guerreiros, não aceitava o fim da luta. Para Zumbi seria insuficiente a
própria liberdade, ainda por cima em troca da escravidão dos demais que per-
maneceriam nas senzalas. Durante os quinze anos que se passaram, houve
muitas outras investidas a Palmares. Com a experiência adquirida pelas tropas
oficiais, comandadas pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, acabaram por
destruir Palmares em fevereiro de 1694. Zumbi conseguiu escapar e tentou re-
organizar o que havia sobrado, mas foi descoberto e aos 20 de novembro de
1695, foi capturado. Os outros foram mortos. Zumbi teve sua cabeça decepada,
salgada e espetada em praça pública, para servir de exemplo.
Mas nem sempre os escravos que fugiam de seus senhores tinham como
meta se refugiar num quilombo, por receio dos capatazes e das expedições mi-
litares que frequentemente eram enviadas para destruir esses espaços de resis-

capítulo 2 • 73
tência. Esses escravos sozinhos isolavam-se em regiões distantes e se apresenta-
vam como livres ou libertos, oferecendo seus serviços em troca de pagamentos.

Os vários tipos de Quilombos


Em todas as regiões onde existiram escravos, existiram quilombos, que eram maiores
quando ligados aos centros econômicos mais dinâmicos. Palmares e outros quilombos
do Nordeste estão ligados à economia do açúcar, e os quilombos de Minas Gerais, entre
os quais se destaca o do Ambrósio, ligam-se à economia mineradora. Goiás,para onde
os escravos também foram levados para trabalhar nas minas, abriu muitos quilombos,
que também existiram no Maranhão, no Pará, no Rio Grande do Sul, em São Paulo e no
Rio de Janeiro. No século XIX havia vários quilombos relativamente próximos às cidades
da época, como o de Iguaçu, protegido por rios e magues, que fornecia parte da lenha
consumida no Rio de Janeiro, o do Buraco do Tatu, em Itapoã, nas cercanias do Recife,
que por mais de 15 anos resistiu às investidas contra ele, sendo uma constante ameaça
à segurança de alguns moradores da cidade, enquanto outros tinham laços de solidarie-
dade e de comércio com os quilombos, entre os quais havia índios e procurados pela lei.
No final do século XIX, apareceu um outro tipo de quilombo localizado nas cercanias
das cidades, onde escravos fugidos eram favorecidos por abolicionistas, que protegiam
os quilombos, davam trabalho a seus moradores e ajudavam mais escravos fugidos a
se instalar neles. O maior de todos esses quilombos foi o do Jabaquara, na serra de
Cubatão, perto do porto de Santos, fundado por abolicionistas e que recebia parte dos
escravos que fugiam em massa das fazendas de café do oeste paulista. A ele se uniu
um quilombo mais antigo, conhecido como Vila Matias, que apesar de não estar ligado
aos abolicionistas em sua origem a ele somou suas forças.
No Rio de Janeiro, o quilombo do Leblon, formado em terras de um comerciante abolicio-
nista que usava os moradores para cuidarem da plantação de camélias, foi mais impor-
tante pelo lugar simbólico que ocupou do que pela quantidade de escravos fugidos que
abrigou.A camélia se tornou um símbolo do movimento abolicionista e foi um ramalhete
vindo das plantações do Leblon que foi ofertado à princesa Isabel após a assinatura da
lei que aboliu a escravidão no Brasil. No quilombo do Leblon, grupos de jornalistas e
intelectuais passaram algumas noitadas em companhia dos negros, ouvindo suas mú-
sicas e suas danças. Mais tarde, no século XX, essa cultura seria valorizada por outros
intelectuais, que introduziram a música dos negros nos meios de classe média urbana
e elegeram o samba como o gênero musical mais expressivo da identidade brasileira.

Souza, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2006, p.97

74 • capítulo 2
Além da fuga e das negociações, os negros lançavam mão das rebeliões, qua-
se sempre sufocadas antes de acontecerem, era a organização de grupos que,
em grande parte, planejava matar senhores e administrados e ocupar seus luga-
res. As rebeliões que chegaram mais longe ocorreram na Bahia no século XIX,
como a Revolta dos Malês, que eram os escravos mulçumanos (SOUZA, 2006).
Diante do exposto, podemos concluir que a abolição da escravatura no Brasil
não foi ação única e exclusiva da princesa Isabel ao assinar a Lei Áurea, mas que foi
um longo processo histórico impulsionado especialmente pelas pressões externas.
Aprovado pelo Parlamento inglês em 1845, o Bill Aberdeen, previa que todo
o navio que estivesse transportando escravos africanos, poderia ser preso pela
Real Marinha Britânica. Apesar de esta lei ir totalmente contra o direito inter-
nacional, estava de acordo total com o poderio econômico e militar inglês.
Diante das fortes pressões inglesas, cujas tropas chegaram a apreender na-
vios na costa brasileira e fazer ameaças de bloqueio, em 1850 o governo apro-
vou a Lei Eusébio de Queirós, que extinguia o tráfico negreiro para o Brasil. To-
davia, rapidamente a sociedade colonial encontrou uma alternativa, o tráfico
interprovincial de escravos africanos.
Em 1871, ainda diante de aperto internacional, medidas jurídicas resul-
taram na Lei do Ventre Livre, que garantia liberdade para os filhos de escra-
vos nascidos após esse ano. No entanto, em sua regulamentação constava um
artigo que obrigava os pequenos a permanecerem ao lado de suas mães até
completar 20 anos de idade.
Aprovada em 1885, a Lei do Sexagenário concedia liberdade aos escravos
maiores de 60 anos, mas na realidade, a título de indenização, os cativos
eram obrigados a permanecer sob a posse de seus senhores por mais cinco
anos. Os escravos, como podemos notar, na verdade estavam condenados a
morrer no abandono, quando atingiam essa idade.
Em fins da década de 1880, a escravidão era uma instituição falida, não con-
tava com o apoio de setores urbanos e nem do exército, além do mais a maioria
dos grandes fazendeiros, influentes politicamente, já haviam aderido ao traba-
lho livre dos imigrantes europeus que, desde 1840, chegavam para substituir o
trabalho dos escravos.
Assim, pressionada pela maioria da elite a princesa Isabel aprovou, em 13 de
maio de 1888, a Lei Áurea, que declarava extinta a escravidão no Brasil. Os parti-
dários da monarquia acreditavam que com o fim da escravidão enfraqueceriam
os focos de oposição ao regime imperial, o que, de fato, não ocorreu e que leva

capítulo 2 • 75
muitos historiadores a afirmarem que a abolição foi, isoladamente, a responsá-
vel pela proclamação da república no Brasil.
O cenário internacional
No cenário internacional, Brasil e Inglaterra sempre estiveram unidos por uma série de
interesses. Nessa fase, o interesse brasileiro girava em torno da dependência dos produ-
tos manufaturados ingleses e nos empréstimos financeiros. Já a Inglaterra ingressava no
mercado consumidor brasileiro, uma vez que já era desde o início do século XIX, uma na-
ção capitalista, e precisava cada vez mais expandir seu mercado consumidor de produtos
industrializados. Para os ingleses a preservação da escravidão significava uma ameaça
a sua expansão. Mesmo porque os latifundiários escravistas brasileiros concorriam com
alguns produtos ingleses.
Mas para as elites brasileiras, acabar com a escravidão seria o mesmo que acabar com a
fonte de riqueza e poder dos fazendeiros. E para não contrariar e nem ter que romper com
o seu principal investidor financeiro, o governo aprovou uma série de leis que, muitas ve-
zes, ele mesmo não fez questão de respeitar. Em 1826, foi assinado um acordo que previa
para 1827, a ilegalidade do tráfico negreiro. Porém nada mudou, não havia fiscalização
e mesmo que tivesse os integrantes do Estado, eram os principais transgressores da lei.
Como as pressões inglesas aumentaram, o governo tomou algumas medidas, com o
objetivo de mostrar aos britânicos que também poderia prejudicá-los economicamente.
Em 1844, foi aprovada a tarifa Alves Branco. De acordo com ela, os produtos importados
sem similar nacional pagariam uma tarifa de 30% e com similar 60% ad valorem.

2.4  Os laços que ligam os afrodescendentes no Brasil


às sociedades africanas

Após o encerramento do tráfico de escravos africanos foi interrompida a rela-


ção entre a colônia portuguesa e algumas localidades da África, de onde, anu-
almente desde o século XVI, chegavam milhares de escravos. A partir de 1850
o comércio de escravos ainda perdurou, porém dentro do Brasil, acabando a
renovação da presença africana na comunidade negra.
Apesar de encerrada a chegada de novos africanos, a comunidade negra pre-
servou com muito cuidado as lembranças, os conhecimentos, as tradições, os
valores e as crenças transmitidos pelos mais velhos que vieram da mãe África.
Alguns laços, obviamente, se desfizeram com a interrupção do comércio com o
outro lado do Atlântico. O que havia de africano no Brasil continuou a ser cul-

76 • capítulo 2
tivado, mas nada de novo foi introduzido. A partir daí, o que as comunidades
negras criaram pode ser considerado assunto afrobrasileiro (SOUZA, 2006).
Apesar da intensa ligação que o Brasil manteve com a África por séculos,
até recentemente existia, especialmente entre as elites brasileiras, um desejo
de extirpar do Brasil toda a herança e toda a lembrança africanas. Para essas
elites dirigentes, especialmente após a proclamação da República em 1889,
os negros eram inferiores e contribuíam para o atraso da nação.
Os simpatizantes das teses eugênicas de “branqueamento” e de “sobrevivên-
cia do mais forte” pregavam que as “raças inferiores”, como eram pejorativamen-
te chamados os negros e mestiços, não sobreviveriam às dificuldades impostas
pela pobreza, o que, consequentemente, ocasionaria a “limpeza” necessária ao
desenvolvimento, à modernização e ao revigoramento da raça (MASIERO, 2002).
Os eugenistas brasileiros acreditavam que a indolência, a preguiça, a sexua-
lidade e a tendência a comportamentos moralmente inadequados eram alguns
dos traços compartilhados pelos grupos étnicos inferiores, os quais deveriam,
por isso mesmo, ser eliminados por meio do refinamento racial, garantindo
boa descendência aos brasileiros. Para os eugenistas, se assim não fosse, o país
não alcançaria a desejada modernidade, permanecendo no estágio civilizatório
inferior em que se encontrava desde o período colonial.
No novo quadro econômico, social e político engendrado com o início
do século XX, movimentos populares exigiram diversos direitos que visa-
vam à igualdade entre as diferentes camadas sociais e algumas comunida-
des negras também passaram a exigir seu espaço nessa sociedade que ainda
buscava mantê-las na marginalidade e numa situação de inferioridade. As
associações de trabalho e recreativas, jornais e companhias artísticas foram
fundados para denunciar o preconceito e a marginalização aos quais eram
submetidos os homens e mulheres afrobrasileiros.
Entre os menos abastados e os habitantes das regiões rurais, podemos ve-
rificar que as tradições afrobrasileiras, mesmo no início da República com a
força eugenista, as tradições continuaram sendo preservadas, como forma de
afirmação de identidades das comunidades negras e também mestiças. Foram
exatamente essas manifestações da cultura popular que preservaram as raízes
da cultura trazida pelos escravos africanos.
Assim, apesar do desejo tido como “civilizador” das elites brasileiras, os
afrodescendentes continuaram vivendo sua vida de forma semelhante a de seus
pais e avós. Nas práticas religiosas reverenciavam espíritos e ancestrais africa-

capítulo 2 • 77
nos e buscavam orientações e soluções para os problemas cotidianos. Nos jon-
gos5 e batuques se divertiam e aproveitavam a companhia de seus amigos. Nas
congadas e maracatus festejavam seus reis, dançavam para santos católicos aos
quais eram devotos. Nas rodas de capoeira mostravam a habilidade na ginga,
seu ritmo, brincando e entretendo os que assistiam. E tudo isso continua, gra-
ças a esses grupos, sendo feito até hoje Brasil afora.
Por outro lado, os afrodescendentes que viviam nas cidades no início do sé-
culo XX se afastaram das tradições africanas e assimilaram os valores dos gru-
pos sociais dominantes aos quais desejavam se integrar para, assim, conquistar
os lugares equivalentes aos que os ditos “brancos” ocupavam (SOUZA, 2006).
Essa situação felizmente começou a mudar no início dos anos 1960, quando o
continente africano começou o seu processo de independência e, consequente, a
se livrar do julgo colonial imposto ao continente. A partir dessa projeção alcançada
pelo processo de descolonização, a história e a cultura africanas se tornaram objeto
de interesse de diferentes grupos, inclusive dos brasileiros afrodescendentes.
Os grupos que lutavam pela afirmação dos direitos dos negros ganharam for-
ça para reivindicar espaços para a manifestação das características ligadas às tra-
dições e ao passado africano. Abandonou-se a ideia de se tornar igual aos bran-
cos para conquistar as mesmas oportunidades deles. Assim, renasceu o interesse
pela a África entre nós brasileiros, uma relação que havia sido interrompida pelo
fim do tráfico e pela ocupação colonial do continente africano no século XIX.
Como destaca Marina de Mello e Souza, essa mudança de atitude com relação à
mãe África foi possível também pela superação de uma concepção evolucionista das
sociedades (SOUZA, 2006, p.126). Os pontos de contato com a África foram valoriza-
dos a partir do momento em que começaram a se difundir formas de pensar segundo
as quais a humanidade não percorre um trajeto de direção única, do menos civilizado,
ou seja, mais atrasado para o mais civilizado e desenvolvido. A partir de então, as di-
ferenças culturais existentes entre os povos passaram a ser respeitadas e valorizadas.
Com essa transformação da ideia que se tinha da África e da história do povo
africano no Brasil, o africano integrou-se à sociedade brasileira e tornou-se o
afrobrasileiro. Muito além dos traços físicos, a cultura afrobrasileira permeia a
cultura brasileira de maneira significativa, pois está mais presente do que possa-
mos perceber a um primeiro olhar.

5 Jongo, também conhecido como caxambu e corimá, é uma dança brasileira de origem africana dançada ao som
de tambores como o caxambu.

78 • capítulo 2
A música e a religiosidade são os traços mais evidentes da presença africana
entre nós. A religião era muito importante, como vimos, em diferentes socie-
dades africanas e no Brasil foram transformadas; ritos e crenças de diferentes
povos se misturaram entre si e com os rituais católicos e originaram manifesta-
ções religiosas que hoje compõem a religiosidade do povo brasileiro.
Toleradas depois de um passado de proibições, as religiões afro-brasileiras são
cada vez mais aceitas em virtude da relativização das diferenças entre a crença em
santos milagrosos ou ancestrais que interferem na vida cotidiana.
Além de ser fundamental nos cultos religiosos afro-brasileiros, a música de
influência africana, na qual o tambor geralmente é o instrumento mais impor-
tante, também é fundamental em outras ocasiões de festas e danças, sendo,
portanto, uma importante herança cultural legada pelos escravos. Como o tam-
bor, outros instrumentos musicais como o berimbau, o agogô e o reco-reco, por
exemplo, se juntaram aos de origem portuguesa, como o pandeiro, a viola e a ra-
beca, e hoje fazem parte de grande parte de festas e danças. Nas congadas, mara-
catus, capoeiras e reisados, os ritmos africanos estão na base da música tocada.
Também nos sambas de umbigada e de roda, os jongos, o frevo e muitas outras
danças têm passos mais ou menos fiéis àqueles ensinados pelos escravos.

CONEXÃO
Os tipos de dança afro: http://www.iecbr.com.br/redes-ler.asp?id=104

Saindo dos ritmos e religiões, para esferas mais materiais, veremos que
a influência africana na culinária brasileira também foi significativa, basta
lembrarmos do uso que hoje fazemos da pimenta e do azeite de dendê e de
alguns pratos como o acarajé, o vatapá, o xinxim de galinha, o aluá. Além dos
pratos preparados, o inhame, o cará, a noz de cola, que aqui conhecemos
como obi ou orobó, e nosso banana vieram do continente africano.

CONEXÃO
Culinária afro-brasileira: Africanos enriqueceram a cozinha brasileira
http://educacao.uol.com.br/disciplinas/cultura-brasileira/culinaria-afro-brasileira-africanos-
-enriqueceram-a-cozinha-brasileira.htm

capítulo 2 • 79
Ainda na esfera material é importante ressaltar que algumas técnicas de
produção e de confecção de objetos foram herdadas dos africanos que, além
da sua força de trabalho, também nos legaram alguns de seus conhecimentos.
Técnicas de tecer cestas, de artesanato, modelar e cozer o barro, dentre outras,
fazem parte dessa importante herança cultural.

Atividades

1.  No Brasil colonial, havia muitas práticas religiosas populares nascidas do sin-
cretismo (fusão) de tradições indígenas, africanas e européias. Isso também
ocorre atualmente? Reflita e dê exemplos atuais de sincretismo religioso.

2.  Reflita sobre a frase do jesuíta Antonil: “Os escravos são as mãos e os pés do
senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar
e aumentar fazenda”.

3.  Leia a passagem do padre André João Antonil sobre a criação de gado no
Nordeste e reflita sobre a mão de obra utilizada nesse trabalho. “As fazen-
das e os currais de gado situam onde há largueza de campos e de água, por
isso os currais da Bahia estão nas margens do rio São Francisco. E, posto
que sejam muitos os currais da parte da Bahia, chegam a muito maior nú-
mero os de Pernambuco. As boiadas que vêm para a Bahia possuem de cem,
cento e cinquenta, a duzentas e trezentas cabeças de gado. Os que trazem
são brancos, mulatos e pretos, e também índios, que com este trabalho pro-
curam ter algum lucro”. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Ita-
tiaia; São Paulo: Edusp, 1982.

80 • capítulo 2
Reflexão
De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião

VII
A cultura africana que assim vai se diluindo na formação da cultura nacional
corresponde a um vastíssimo elenco de itens que abrangem a língua, a culiná-
ria, a música e artes diversas, além de valores sociais, representações míticas e
concepções religiosas. Mas, fora do campo religioso, nenhuma das instituições
culturais africanas logrou sobreviver. Ao contrário, cada contribuição é o resul-
tado de um longo e lento processo de diluição e apagamento étnico a tal ponto
que, diante de um determinado traço cultural, embora podendo reconhecer
uma origem africana genérica, ainda assim é difícil, quando não impossível,
identificar o povo ou nação de que provém. Tudo é simplesmente África, perdi-
das as diferenças e especificidades. Mais que isso, os próprios afrodescenden-
tes, por não conhecerem sua própria origem, nem sabendo se seus antepassa-
dos eram bantos ou sudaneses, também não podem identificar as origens dos
aspectos culturais, como se a cultura brasileira como um todo, ao se apropriar
deles, tivesse apagado as fontes.
Estudos de filólogos têm permitido, contudo, identificar as fontes do vasto
arsenal de étimos africanos que compõem a língua portuguesa no Brasil. Em
seu recentemente publicado Dicionário Banto do Brasil (1998), Nei Lopes arro-
la cerca de oito mil vocábulos de origem banto incorporados à língua portugue-
sa falada no Brasil.
São provenientes dos mais diferentes grupos bantos, como se cada etnia de-
sejasse perpetuar-se na língua do novo país, mas na grande maioria a origem
das palavras aponta para as línguas quimbundo, umbundo e quicongo, enfim
as línguas das nações Angola e Congo, especialmente Angola, que parece re-
presentar para o Brasil uma espécie de África síntese. Bem menor é a partici-
pação dos sudaneses no vocabulário do brasileiro. Suas palavras incorporadas
ao português e já dicionarizadas são particularmente ligadas ao cotidiano do
candomblé, seu panteão, aspectos cerimoniais e comidas votivas, como ebó
(oferenda), axexê (rito mortuário), bori (sacrifício à cabeça), as comidas acarajé,
acaçá, efó, abará, palavras que são em sua maioria iorubás.

capítulo 2 • 81
Com a formação da sociedade de classes, cada vez mais as organizações de
corte estamental e étnico foram perdendo o sentido e aspectos das culturas
africanas foram igualmente sendo mais e mais absorvidos pela cultura nacio-
nal, que é branca e européia. Embora em muitos aspectos, sobretudo no campo
das artes, possamos identificar no final do século XIX e no início do século XX
manifestações culturais caracteristicamente negras, sua sobrevivência depen-
dia de sua capacidade de ser absorvida pela cultura branca. É o caso exemplar
da música popular brasileira, em que os ritmos e estruturas melódicas de ori-
gem africana sobreviveram na medida em que passaram a interessar os compo-
sitores brancos ou consumidores da cultura branca. Assim, o lundu negro abria
caminho para o choro branco; a música dos candomblés dos negros pobres for-
necia a matriz para o samba nacional das classes médias. Em outras palavras,
a preservação daquilo que é africano requeria apagar ou disfarçar exatamente
a origem e a marca negra, num processo de branqueamento que atingiu todas
as áreas, do qual a umbanda é o exemplo emblemático, e que somente foi li-
mitadamente revertido a partir dos anos 60, quando a diferença, o pluralismo
cultural e a valorização das origens étnicas passaram a constituir a orientação
dos produtores e consumidores culturais, num movimento de âmbito cultural
que foi bastante expressivo no Brasil.

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Leitura recomendada
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tráfico: o reino do Congo da conversão corada ao movimento Antoniano, séculos
XV-XVIII. In: Tempo. n. 6, dez. de 1998, pp. 95-118.

82 • capítulo 2
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No próximo capítulo
No terceiro capítulo de nosso material, vamos analisar as contribuições dos
povos indígenas e africanos para a estruturação da cultura brasileira a partir
da compreensão do saber indígena, do exame da cultura afrodescendente e do
sincretismo religioso.

84 • capítulo 2
3
A Contribuição de
Índios e Negros à
Cultura Brasileira
3  A Contribuição de Índios e Negros à
Cultura Brasileira

Neste capítulo vamos analisar quais as contribuições dos indígenas e dos afri-
canos e seus descentes à cultura brasileira. Faremos uma reflexão com o intuito
de aprender para respeitar e contribuir para a preservação de aspectos muito
importantes de nossa cultura.

OBJETIVOS
• Analisar o saber legado pelos povos indígenas à cultura brasileira;
• Compreender o significado da cultura afrodescendente;
• Refletir acerca do sincretismo religioso.

REFLEXÃO
Você se lembra das comemorações do dia do índio que aconteciam na escola? E do dia da
abolição? Acredita que a comemoração de algumas datas contribua para o respeito aos po-
vos indígenas e afrodescendentes?

3.1  O saber indígena

Como verificamos anteriormente, os indígenas brasileiros receberam proteção


dos homens da Companhia de Jesus, que tinham o objetivo de catequizá-los, e a
monarquia portuguesa promulgou leis que proibiam a escravização dos índios.
Mas não devemos acreditar que essa “proteção” fazia dos ameríndios superio-
res e diferentes dos africanos dentro da sociedade colonial brasileira. Na reali-
dade, conforme historicamente comprovado, no contato como os colonos re-
presentavam simples força de trabalho e eram, apesar das tentativas religiosas,
escravizados em igualdade de condições com os negros. A relação interétnica
como mão de obra e de convívio nas senzalas e também nos quilombos pode,
assim, ser considerada, em geral, igualitária e simétrica.

86 • capítulo 3
Deste modo, já nos momentos iniciais da colonização, quando índios e ne-
gros eram submetidos à escravidão, com suas consciências étnicas desarticula-
das pelo processo de dominação, podemos verificar as primeiras articulações
culturais que posteriormente seriam tidas como influências de uma ou outra
cultura. Foi no que denominamos cultura de contato, que encontramos as in-
fluências de indígenas e africanos para a estruturação da cultura brasileira.
Naquele período os portugueses, afastados do seu ambiente geográfico e cul-
tural de origem, adotaram inúmeros procedimentos ameríndios para facilitar sua
sobrevivência e seu desenvolvimento numa terra tropical desconhecida e distan-
te. Os indígenas brasileiros, apesar de possuírem como os africanos uma cultura
mais arcaica e, portanto, mais propícia a aculturação, resistiram mais a este pro-
cesso por serem os habitantes naturais da região e os elementos numericamente
dominantes. Todavia, a relação entre indígenas e portugueses se fazia de maneira
conflituosa visto que os mecanismos de integração entre estas unidades étnicas se
apresentavam bastante dificultados pela condição de dominação a que os nativos
eram submetidos. Estas dificuldades eram agravadas pelas profundas diversida-
des linguísticas, religiosas e culturais.
Inicialmente, portanto, a influência indígena bem como a sua alteridade
foram colocadas em segundo plano para que o processo de catequização al-
cançasse seus objetivos e, posteriormente, relegadas ao lugar de inferioridade,
como aconteceu com os negros e suas manifestações culturais. Todavia, no sé-
culo XIX, autores como José de Alencar e Gonçalves Dias notabilizaram o sur-
gimento de uma cultura brasileira, com narrativas romantizadas dos índios. Já
no século XX, em 1922, o poeta Oswald de Andrade enfatizou a importância da
cultura indígena com o Manifesto Antropofágico (Garfield, 2000). Ocorreu nes-
se momento uma exaltação do passado anterior à chegada dos portugueses, à
valorização do estudo das línguas indígenas e à defesa da índio como símbo-
lo nacional. Gilberto Freyre, no início dos anos 1930, enalteceu a contribuição
indígena para a formação da cultura brasileira e durante o governo de Getúlio
Vargas ocorreu uma verdadeira expansão do interesse pela cultura indígena e
pelas políticas indigenistas. O dia do índio, por exemplo, foi difundido nesse
período. Os índios passaram a ser celebrados por sua americanidade.

capítulo 3 • 87
Ao difamar o europeu e consagrar o indígena, os ideólogos e intelectuais brasileiros da
Era Vargas inverteram ou subverteram a concepção eurocêntrica da história da cultura
e do destino nacional, vigente na elite brasileira. A essência da brasilidade havia sido
redefinida por membros da elite e da intelligentsia: ela não atravessou mais o Atlântico,
mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e de seus primeiros habitantes (Gar-
field, 2000, p.20).

Porém, cabe destacar que apesar dessa exaltação ter contribuído para que a
imagem do indígena brasileiro retornasse à cena nacional, a linguagem prote-
cionista refletia especialmente a tendência do Estado Novo de outorgar noções
de cidadania e de direitos aos grupos sociais antecipadamente marginalizados.
As posturas adotadas durante o Estado Novo acabaram por sufocá-lo e, esma-
gados pela retórica do governo, os índios teriam de lutar para expressar seus
próprios pontos de vista em relação a sua terra, comunidade, cultura e história.
Após os apontamentos feitos durante o Estado Novo, as questões indígenas
foram muito relacionadas aos territórios indígenas do Brasil, como apresenta-
do no trabalho de Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização: a integração das po-
pulações indígenas no Brasil Moderno, e na obra A sociologia do Brasil indígena,
de Roberto Cardoso de Oliveira, uma vez que o espaço geográfico é fundamen-
tal para a manutenção das tradições e difusão das características culturais de
uma determinada etnia. Essas discussões sobre o espaço físico que deveria ser
ocupado pelos indígenas dentro do território brasileiro contribuiu para que, na
década de 1980, ocorresse uma reação indígena, apoiada por indigenistas e
ambientalistas, em prol se seus territórios, resultando na inclusão de alguns ar-
tigos na constituição de 1988, que lhes garantia direitos, entre eles suas terras.
Assistimos, assim, desde a década de 1980 ao fortalecimento da valorização
étnica dos povos ameríndios, protagonizando historicamente uma retomada
dos movimentos afirmativos que favoreceram a retomada da análise e difusão
das contribuições indígenas à cultura brasileira.
A contribuição dos indígenas à formação da cultura brasileira ultrapassa
as palavras que foram incorporadas ao português, aos objetos, às técnicas de
manejo do ambiente e às espécies domesticadas, pois a composição do Brasil
como um país multicultural se deve, especialmente, à presença de centenas
de grupos indígenas que habitavam o seu território antes da chegada dos co-
lonizadores. A grande diversidade linguística cultural dos povos influenciou

88 • capítulo 3
o modo de ser da população mestiça que, a partir da mistura de diferentes
matrizes étnicas, caracterizaria a população brasileira.
As técnicas de cultivo desenvolvidas pelas populações indígenas são uti-
lizadas até hoje por pequenos e médios agricultores em diferentes partes do
país. Denominada coivara, a agriculta baseada no corte e queima, quando fei-
ta de maneira prudente, causa pouco impacto ambiental. As roças cultivadas
com essa técnica têm duração de dois a três anos, sendo abandonas para a
abertura de novos espaços, garantindo assim a recuperação da área desmata-
da para o plantio e a manutenção da fertilidade do solo. Essa prática contri-
buiu no passado para a estruturação do país e hoje contribui para a riqueza
socioeconômica do país, pois a megabiodiversidade existente em terras indí-
genas representam quase 13% do território nacional.
Outro aspecto muito relevante são os conhecimentos culinários dos povos
indígenas que estão presentes na vida do povo brasileiro, especialmente na pre-
sença de inúmeros produtos da mandioca, desde a tradicional tapioquinha ao
exótico tucupi e à indispensável farinha.
Existe ainda um legado dos povos indígenas ao Brasil recentemente valo-
rizado pela ciência, que são os milenares conhecimentos de medicina. Alguns
estudiosos estimam que os índios do Brasil já chegaram a dominar mais de
200.000 espécies de plantas medicinais. Muitas delas estão se perdendo an-
tes mesmo de serem descobertas pela ciência moderna. Ao contrário do que
muitos médicos pregam, a medicina tradicional possui um valor incalculável
ainda a ser descoberto e explorado pela medicina moderna.

CONEXÃO
O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf

Poderíamos continuar enumerando contribuições dos povos indígenas ao Bra-


sil e também ao mundo. Ao observarmos a realidade contemporânea, percebemos
que essas contribuições aumentaram de importância, mesmo sem ou com pouco
reconhecimento por parte da sociedade, basta notarmos as riquezas estratégicas
que se encontram nos territórios indígenas, dos quais eles são não apenas donos,
mas principalmente guardiões e combativos defensores.

capítulo 3 • 89
3.2  A cultura afro-brasileira e o incretismo religioso no Brasil

Africanos, em número expressivo, foram trazidos e escravizados no Brasil e em-


bora tenham sido homogeneizados na forma de tratamento concedidas a eles,
como os negros, povos de Guiné, dentre outros nomes dados, tais indivíduos
habitavam no outro lado do Atlântico em diversas localidades, pertencendo a
diferentes nações e, sendo assim, compartilhavam culturas distintas.
Não obstante, alguns traços relativamente comuns eram compartilhados
por muitos deles, no que diz respeito aos aspectos simbólicos e religiosos. Ed-
mar Ferreira Santos (2012) destaca alguns elementos fundamentais da cultura
de sociedades africanas distintas, considerando aquelas que habitavam tradicio-
nalmente a região abaixo do Saara e outras localizadas na porção central e meri-
dional do continente. O autor se refere a aspectos religiosos, demarcando que a
religiosidade era uma dimensão essencial não apenas da celebração dos rituais,
mas da vida social como um todo:

As formas religiosas africanas oferecem modelos míticos e ancestrais sobre os quais


se devem moldar as condutas dos indivíduos. A relação com a natureza e a maneira de
lidar com a terra, a arquitetura das casas, os passos de dança, os gestos e as palavras, o
sistema de parentesco e a organização política e administrativa carregam a experiência
do sagrado (SANTOS, 2012, p. 18).

Dentre os elementos compartilhados, Santos ressalta a ideia de “força vital”


ou àse em ioruba, concebida como manifestação presente em todos os reinos:
animal, vegetal e mineral. Ela “é a força que assegura a existência dinâmica,
que permite o acontecer e o devir” (SANTOS apud SANTOS, 2012, p. 19). Dentro
dessa visão, a palavra está ligada à noção de força vital, devendo, portanto, ser
usada cuidadosamente, tendo em vista sua força. Diferentemente das socie-
dades ocidentais, a palavra em muitas sociedades africanas “significa mais do
que ordenar sinais para compor o sentido de algo que expressamos, significa
pôr em movimento a própria natureza das coisas” (SANTOS, 2012, p. 21).
Dentre outros aspectos, tais sociedades se baseiam na família extensa, com
grande número de indivíduos ligados por laços de parentesco, em formações
matrilineares, nas quais as mulheres se constituem como núcleo fundamental
da família, e na valorização da ancentralidade como aspecto que confere iden-
tidade profunda. Por que referir-se a estes aspectos?

90 • capítulo 3
Na África do Oeste e Central (regiões de onde foi trazida a grande maioria dos indi-
víduos escravizados no Brasil), a religião organizava a vida comunitária e ajudava a
consolidar as estruturas sociais. Além disso, a religiosidade orientava as relações entre
os seres humanos, os ancestrais e a natureza, ocupando um lugar fundamental na edu-
cação e, portanto, na transmissão dos valores sociais (SANTOS, 2012, p. 27).

Santos salienta para a variedade de povos com sistemas muito próximos de


símbolos, ritos e crenças. A memória, a palavra, as adivinhações e possessões
são aspectos que perpassam tais sociedades:

Os cultos para os ancestrais ou para as divindades, contavam com significativo aparato


material, que incluía instrumentos musicais, danças e trajes apropriados, além de can-
tos, palmas, ritmos e linguagem própria. Objetos de madeira, metal, couro ou cerâmica,
bem como riachos, cachoeiras, rios, raízes, folhas, árvores e animais, guardariam encan-
tamentos ou a força de ancestrais e divindades, podendo ser utilizados para proteger,
aliviar aflições e curar doenças ou infortúnios (SANTOS, 2012, p. 28).

Tais aspectos são fundamentais para a compreensão destes elementos que


iremos ver reconfigurados no contexto brasileiro. No entanto, antes e ao adentrar
no território americano, eles passam pelo crivo do olhar europeu, no qual tais ma-
nifestações eram julgadas como atrasadas e selvagens, resultando em discrimina-
ções e perseguições a sacerdotes do outro lado do atlântico:

No contato com os europeus, as práticas religiosas africanas foram submetidas a um


duplo olhar. Por um lado, o olhar católico, que identificava a religiosidade africana com
feitiçaria, a qual, apesar de não figurar entre as práticas mais reprimidas pela igreja, fazia
parte de uma longa história de demonização de práticas e valores não cristãos, oriunda
de uma tradição cristã medieval, de repressão à idolatria, à superstição e à bruxaria.
Por outro lado, o olhar protestante, que, ao observar as sociedades atlânticas da costa
africana, referia-se aos objetos de culto encontrados na África como fetiches, afirman-
do que aquelas sociedades eram espaços de corrupção pública, criados por uma reli-
giosidade imoral, associada a governos injustos e a povos mantidos irracionais (SAN-
TOS, 2012, p. 33).

capítulo 3 • 91
A cultura afro-brasileira foi reinventada em um novo contexto, no qual
ela obrigatoriamente se relacionava com a cultura dominante de origem eu-
ropeia que pretendia se sobrepor a ela como um processo que se julgava
“civilizador”. Assim, as expressões religiosas africanas, para se tornarem
possíveis no novo meio, reconfiguravam-se a partir de práticas católicas.
Esse processo ocorreu tendo como concomitante a africanização de deter-
minados costumes europeus e católicos. Foram muitos os casos nos quais
festividades católicas acabavam deixando espaço para práticas culturais de
origem africana, fato observável desde o contexto português:

Em Portugal, desde o século XV, as festas públicas realizadas pela Coroa e demais au-
toridades permitiam os “costumes africanos”, sobretudo quando o objetivo era enaltecer
o poder do rei e da sua corte. Também não era difícil encontrar africanos em casamen-
tos, aniversários de família real e aclamações, apresentando sempre músicas, danças e
instrumentos de origem africana.
Tudo indica que as demonstrações públicas dos costumes africanos, nessas cerimônias,
tinham o objetivo de afirmar o poder do império português sobre outros territórios e po-
vos, por meio de relações comerciais, diplomáticas e religiosas (SANTOS, 2012, p. 38).

No Brasil, uma das expressões de africanização da cultura oficial foram os


batuques que se apresentam nos dias santos católicos, tendo como reação por
parte dos representantes da cultura dominante a resistência ou a aceitação con-
descendente. Muitas vezes tais expressões eram compreendidas, como na visão
do jesuíta Antonil, como válvula de escape das mazelas do cativeiro. Os batuques
eram um termo genérico para as danças negras no Brasil. No entanto, muitas ve-
zes poderiam ter um sentido religioso, na medida em que – diferentemente da
tradição católica que distingue o sagrado do corporal – muitas expressões cultu-
rais afro-brasileiras uniam dança, música e religiosidade. Sobre o próprio can-
domblé, Reginaldo Prandi disserta:

De fato, comida e dança são elementos vitais dos ritos, e trabalho é o que não falta. Entrar
para o candomblé impõe a necessidade de aprender grande quantidade de cânticos e dan-
ças, palavras e expressões, modos de se comportar e de se relacionar com deuses, com
os humanos e com os objetos sagrados, além de receitas culinárias, fórmulas mágicas e
listas intermináveis de tabus – tanto coisa, que parece não ter fim (PRANDI, 2005, p. 10).

92 • capítulo 3
O corporal, o lúdico e o religioso encontravam-se reunidos em manifesta-
ções culturais que em visões ocidentais as concebiam como manifestações bár-
baras e selvagens, em uma visão etnocêntrica. O próprio samba, antes de se
tornar um ritmo nacional, era veementemente criticado por se relacionar com
grupos afro-brasileiros e, a princípio se referir a reuniões que se davam comu-
mente na casa de mães de santo e vinculadas à música e à dança, mas também
ao cerimonial religioso:

Nesse período, anterior aos anos de 1930, o samba não estava definido como um gê-
nero musical. Entre seus vários significados, a integração do profano com o sagrado,
do lúdico com o solene, fazia-se da festa de candomblé também uma festa de sam-
ba. Deviam-se apenas respeitar as especificidades de cada ritmo e de cada dança
(FENERICK, 2005, p. 98)

Conforme afirma José Adriano Fenerick, a maior parte das casas das “tias”
baianas, líderes religiosas e vendedoras de quitutes nas ruas do Rio de Janeiro
no começo do século XX, ficava ao redor da Praça Onze, uma das áreas privile-
giadas do desenvolvimento da cultura afro-brasileira naquele período. Rachel
Soihet (2008) demonstra que o grupo afro-brasileiro daquele período se apro-
priava das festividades católicas para festejos de origem africana. Como exem-
plo, o carnaval e a festa da Igreja da Penha, possibilitando assim esquivar-se
da repressão policial. Em outros termos, as expressões afro-brasileiras se ba-
seavam na resistência à repressão, mas também na identificação de meios de
negociação e, muitas vezes, no sincretismo com a cultura oficial.
Trata-se, como já afirmamos anteriormente, de estratégias de longa data
e uma de suas expressões eram as irmandades católicas. A Igreja, através das
irmandades, tinha em vista um projeto evangelizador, buscava conquistar
aqueles que considerava adeptos da “feitiçaria” à sua religião. As Irmandades
existiam desde o século XIII no Brasil e, posteriormente, em seu Império Ultra-
marino, funcionavam vinculadas a uma Igreja e somente com a aprovação de
autoridades eclesiásticas. Mesmo com o acompanhamento e controle religioso
próximo, os sentidos que os africanos e seus descendentes davam àquelas agre-
miações eram divergentes. Em síntese,

capítulo 3 • 93
essas organizações funcionavam como importantes centros de convívio e assistência
social, procurando atender os indivíduos a elas associados nas necessidades da vida,
nos sofrimentos causados pela doença e na hora da morte. A construção de um paren-
tesco de “nação” entre os membros de irmandades constituía uma nova família africana
que se afirmava culturalmente no Brasil (SANTOS, 2012, p. 42).

Tais agremiações contavam com grande presença de africanos e seus des-


cendentes e se constituíam em um local no qual se recriavam identidades
africanas. Representavam um local no qual, muitas vezes, se organizavam em
torno das etnias de origem (havia irmandades de angolanos, jejes e nagôs, por
exemplo), assim:

Para os africanos, as irmandades católicas foram importantes instrumentos de reinven-


ção da família, ou seja, da reconstrução dos laços de parentesco no Brasil. As irman-
dades ofereciam aos membros espaços de comunhão e identidade, ajuda na hora das
aflições, apoio para a conquista da alforria e para o protesto contra os excessos se-
nhoriais, além do auxílio aos irmãos quanto ao direito a funerais dignos, que encobriam
concepções religiosas africanas sobre a morte (SANTOS, 2012, p. 42).

Enquanto na visão católica as irmandades eram vistas como forma de evan-


gelização, para os africanos era forma de afirmação cultural e estabelecimento de
alianças interétnicas. Assim, pode-se dizer que os negros africanizavam o cristia-
nismo. Uma das expressões, ainda atual, que ficou das relações entre irmandades
e cultura afro-brasileira foi a Festa do Senhor do Bonfim, na Igreja do Nosso Senhor
do Bonfim, em Salvador na Bahia. Nesta festa, baianas – mulheres vestidas de for-
ma africanizada – lavam as escadas da Igreja e, em seguida, saem em cortejo pela
cidade, em um ritual sincrético em homenagem a Jesus e a Oxalá.

CONEXÃO
Para saber mais sobre a Festa do Bonfim, leia o material do IPHAN chamado Festa do
do Bonfim: a maior manifestação religiosa popular da Bahia em http://www.iphan.gov.br/
baixaFcdAnexo.do?id=4224.

94 • capítulo 3
Embora desconhecida, a denominação mais antiga para rituais religiosos
de matriz africana é calundu. Em geral, predominou-se a denominação can-
domblé que deve ser compreendido de forma contextualizada, conforme ve-
mos na citação a seguir:

O candomblé é uma religião especificamente brasileira, porque, da maneira como existe


no Brasil, não pode ser encontrada em nenhum lugar da África. No entanto, recriados por
diversas vias no Brasil, os deuses, valores e práticas do universo dos candomblés são de
origem africana. Aqui, os candomblés foram organizados segundo as nações de origem
dos africanos (etnias). Por esse motivo, nas diversas regiões do Brasil, é possível encon-
trar candomblés de Congo-Angola, Mina-Jeje ou Nagô-Ketu (SANTOS, 2012, p. 43).

O candomblé se constituiu em espaço de recriação de laços de família, re-


construção dos vínculos de identidade no novo contexto. Ganhou notoriedade
por conta da habilidade de sacerdotes africanos em lidar com folhas, drogas e
venenos que despertava desconfiança dos senhores ao mesmo tempo em que
eram vistos como líderes religiosos por outros escravos e muitas vezes eram
procurados por senhores. A perseguição por autoridades civis e eclesiásticas
convivia com certo prestígio social: “na perspectiva dos escravos e de muitos
senhores, os feiticeiros podiam proporcionar a invulnerabilidade (fechar o cor-
po), prever o futuro e, o principal, curar as doenças” (SANTOS, 2012, p. 44). Para
tanto, é importante perceber que o candomblé, vinculado a aspectos simbóli-
cos e religiosos das sociedades africanas, apresenta uma forma de lidar com o
sagrado diferenciada da Igreja católica:

A proposta cristã de salvação contrasta substancialmente com a experiência simbólica


do universo dos candomblés. Enquanto a igreja ofereceria uma salvação depois da mor-
te, os candomblés proporcionariam uma dinâmica de vida que entrelaçasse os níveis de
existência, ou seja, humanos, ancestrais e divindades compartilhariam níveis diferentes
de uma mesma experiência. Esses níveis estão em constante comunicação, por isso não
é necessário esperar a morte para alcançar a salvação (SANTOS, 2012, p. 45).

Um aspecto fundamental a ser valorizado quando se pensa a história do Bra-


sil é a forma como diversas nações africanas (como angola, nagô, jeje, etc.), a

capítulo 3 • 95
despeito da realidade adversa que enfrentaram com a escravização, se reuniram
e reinventaram suas tradições, criando assim uma diversidade das experiências
que aqui se denominou de candomblé, bem como outras experiências religiosas:

a memória dos diversos grupos étnicos africanos trazidos para este lado do Atlântico,
apesar dos efeitos destrutivos do tráfico de escravos e do sistema escravista, conseguiu
encarnar no solo brasileiro de diferentes maneiras. Ela se preserva e se recria no culto
de grande parte dos deuses africanos, ao mesmo tempo que se reinventa em práticas
como as da umbanda ou em determinados costumes, por meio de danças como o lundu
ou as embaixadas de reis congos (SANTOS, 2012, p. 46).

CONEXÃO
Assista o filme Cafundó (2004) de Paulo Betti e Clóvis Bueno. Trata-se de um filme baseado
em fatos reais, sobre uma experiência de sincretismo religioso desenvolvida em Sorocaba,
estado de São Paulo, durante o século XIX.

Por fim, é importante não se ter uma visão estanque de cultura ou seja, não
considerar as religiões e a cultura como fixas. Cultura afro-brasileira é aquela
reinventada no Brasil, sob as novas condições e os novos tempos, sempre em
transformação. Como diz Reginaldo Prandi “desde os tempos remotos, faz par-
te da verdade religiosa apresentar-se como imutável, intemporal, eterna [...]. E,
no entanto, as religiões mudam, e mudam muito – sempre mudaram” (PRANDI,
2005, p. 13). E, sobre o candomblé na sociedade contemporânea, não é diferente:

o candomblé e demais religiões afro-brasileiras fazem parte, nos dias de hoje, de um


amplo leque de ofertas religiosas e mágicas. Desde que deixou de ser religião étnica,
o candomblé disputa com outras religiões prestígio. A concorrência entre as religiões é
grande e nem sempre civilizada. O candomblé disputa também a clientela com outras
religiões e muitas agências mágicas que fazem parte de um universo esotérico diversi-
ficado e crescente. Firmar-se, nos tempos atuais, como alternativa sacral viável obriga
a religião a mudar para adequar-se melhor às novas necessidades, às novas demandas
que surgem a cada instante com a mudança social e cultural (PRANDI, 2005, p. 13).

96 • capítulo 3
ATIVIDADE
1.  Analise o poema de Oswald de Andrade a partir do que discutimos nesse capítulo:
Erro de português
(Oswald de Andrade, 1925)

Quando o português chegou


Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
o índio teria despido
o português

2.  Analise o trecho da música Santos católicos X candomblé de Milton Nascimento e Fer-
nando Brant, e descreva ao que ela se refere, com base no conteúdo discutido:

“Experimentem tirar pela força,


aquilo que faz um homem.
Era crença dos católicos, que os santos africanos deviam ser
esmagados.
Impossível para os negros
esquecer quem veneravam.
Iludindo todos os brancos, eles apenas mudaram o nome de
seus santos.
E daí surgiu a mistura preto-branco,
afro-europeu, mexido bem brasileiro,
farofa de religião”.

REFLEXÃO
Neste capítulo vimos a importância da cultura e do saber indígena na cultura nacional, fruto de
sua resistência e negociações, deixando um legado incorporado pela sociedade brasileira de
forma abrangente. Também vimos a criação da cultura afro-brasileira, a qual foi, a partir das
matrizes africanas, reinventada no novo contexto em diálogo, resistência e negociações que

capítulo 3 • 97
acabou por criar elementos culturais e religiosos sincréticos. Percebemos assim, em ambos
os casos, como a cultura se recria e se reinventa de acordo com o contexto e com a ação
dos sujeitos históricos.

LEITURA RECOMENDADA
DAMATTA, R. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco, 1999.

PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo: Compa-
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98 • capítulo 3
NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No próximo capítulo, veremos de perto algumas das questões mais importantes das relações
étnico-raciais brasileiras durante o século XX. Passaremos para a discussão específica da
construção da ideia de uma “democracia racial” brasileira e das relações entre Estado e
sociedade, com foco na importância dos movimentos sociais indígenas e negros na transfor-
mação da sociedade brasileira nas últimas décadas.

capítulo 3 • 99
4
As Relações Étnico-
raciais Brasileiras:
do “Povo Mestiço”
ao Reconhecimento
das Diferenças e das
Desigualdades
Étnico-raciais
4  As Relações Étnico-raciais Brasileiras:
do “Povo Mestiço” ao Reconhecimento das
Diferenças e das Desigualdades Étnico-raciais
Neste capítulo, vamos estudar alguns aspectos fundamentais das relações ét-
nico-raciais brasileiras. Historicamente se fundamentou a ideia de que nossa
especificidade nacional se define pela mestiçagem que supostamente se daria
pela convivência harmônica entre as três “raças”: a branca, a indígena e a ne-
gra. Ao mesmo tempo, fundamentou-se no Brasil um projeto de branqueamen-
to, no qual a miscigenação foi pensada como processo que levaria a um produto
final branco. A partir da conjunção desses dois elementos, as especificidades
étnicas não eram reconhecidas enquanto tais, ao mesmo tempo em que as de-
sigualdades “raciais” eram ocultadas, posto que o “povo brasileiro” seria carac-
terizado em sua unicidade como “mestiço”.
No entanto, como veremos, com o surgimento do movimento negro e do
indígena e seus aliados políticos, junto com o desenvolvimento de saberes
acadêmicos, acabaram por redimensionar a forma como as relações étnico-
-raciais são pensadas no Brasil. Faremos uma viagem, da virada do século XIX
ao fim do século XX, para compreendermos as mudanças fundamentais, em
termos políticos e culturais, que garantiram o princípio do reconhecimento da
diversidade étnico-racial em território nacional e apontaram para a necessida-
de de superação das desigualdades raciais no país. Veremos que a promulgação
da Constituição de 1988 representa um momento de coroamento de um novo
pacto político, no qual se assume um compromisso renovado em relação às po-
pulações negra e indígena do país.

OBJETIVOS
• Identificar as formas nas quais historicamente as relações étnico-raciais foram pensa-
das no Brasil;
• Refletir sobre as especificidades do racismo e das desigualdades raciais brasileiras;
• Compreender as mudanças políticas na abordagem das diferenças étnico-raciais, de
uma perspectiva integracionista para o reconhecimento das diferenças;

102 • capítulo 4
• Conhecer a história dos movimentos negros e indígenas e sua importância na política
nacional;
• Refletir sobre a importância da Constituição de 1988 e suas implicações para os povos
indígenas e negros.

REFLEXÃO
Qual foi a última vez em que você se deparou com alguma exibição pública da imagem do
país representado como o país da mestiçagem e da harmonia racial? Qual sua opinião sobre
esta forma de se pensar o país? Seria o Brasil um país sem racismo? Vamos refletir sobre
isso durante o capítulo.

4.1  A identidade nacional, os povos indígenas e os afro-brasileiros:


entre o branqueamento e a mestiçagem

Você já deve ter lido romances que se baseiam na figura do índio como símbo-
lo nacional, já deve ter visto muitas performances na mídia da brasilidade, na
qual brancos, negros e, algumas vezes, índios aparecem esbanjando felicidade
e harmonia e, provavelmente, já pensou ser o Brasil um país menos racista do
que muitos outros que já ouviu falar. Ademais, somos tentados a pensar que os
índios, negros e brancos formariam uma síntese de um produto genuinamente
nacional: o mestiço. Esses são alguns dos pressupostos compartilhados pelos
brasileiros acerca de sua identidade nacional, sobre a qual vamos refletir agora.
As sociedades modernas se definem culturalmente a partir da criação de
identidades nacionais com o intuito de constituírem-se enquanto singulares
no universo de nações. A nação é uma construção social e histórica na qual se
elegem certos elementos como tipicamente nacionais, visando à integração dos
cidadãos de um país à coletividade nacional, em detrimento de sentimentos de
pertença a coletividades regionais e, para tanto, é necessário fomentar a ideia
de unidade e integração a partir de determinadas características culturais. En-
quanto muitas nações foram pensadas a partir da homogeneidade ou pureza,
advinda de um povo supostamente originário, a visão do Brasil como um país
singular em sua mestiçagem é compartilhada internamente e mundo afora.

capítulo 4 • 103
O tema do encontro racial foi aspecto fundamental nas formas de compre-
endermos nossa especificidade desde a colonização, quando os portugueses
travaram seus primeiros contatos com os povos indígenas. Caracterizados ori-
ginalmente como “Povos sem F, L, R – sem fé, nem lei, nem rei –, eis a represen-
tação desses ‘naturais’, caracterizados a partir da noção de ‘falta’” (SCHWARCZ,
2012, p. 14), os autóctones foram desde então definidos ora de forma ideali-
zada, como povos ingênuos e naturalmente bons, e ora de forma pessimista,
como povos bárbaros e não civilizados. Soma-se a isso, a “entrada de por vol-
ta de 3,6 milhões de africanos trazidos compulsoriamente ao país para serem
escravizados, um terço da população africana que veio da África às Américas”
(SCHWARCZ, 2012, p. 37) que produziu uma paisagem social e cultural pecu-
liar, marcada pela presença da negritude, chamando atenção dos intelectuais
que pensavam a especificidade da sociedade que se formava nos trópicos.
Foram muitos os relatos de viajantes europeus que interpretavam a especifici-
dade do Brasil colonial como marcado pela miscigenação (biológica) e mestiçagem
(cultural). Mas foi em 1844, há 22 anos da Independência do país, que se elaborou
a primeira interpretação oficial sobre a nação como o resultado do encontro entre
três raças, ou seja, entre brancos europeus, indígenas e africanos. Nesta data, o mo-
narca Dom Pedro II criou o concurso, promovido pelo Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro, sobre o que definiria a especificidade nacional. O alemão Karl Pillipp
von Martius foi o autor da tese “como se deve escrever a história do Brasil” acentu-
ando como aspecto definidor da sociedade analisada o encontro entre as três raças.
O mesmo tema percorre o fim do século XIX, quando passa a ser interpreta-
do por uma lente darwinista-social:

Vinculados e legitimados pela biologia, a grande ciência desse século, os modelos da-
rwinistas sociais constituíram-se em instrumentos eficazes para julgar povos e culturas
a partir de critérios deterministas e, mais uma vez, o Brasil surgia representado como
um grande exemplo – desta feita, um “laboratório racial”. Se o conceito de raça data do
século XVI, as teorias deterministas raciais são ainda mais jovens: surgem em meados
do XVIII (SCHWARCZ, 2012, p. 20).

Em outras palavras, trata-se de uma época na qual todo um saber da bio-


logia era apropriado para as reflexões sobre as diferenças humanas, assim, as
diversas formas de organização cultural eram interpretadas como reflexo de

104 • capítulo 4
diferenças biológicas, diga-se de passagem, racialmente hierarquizadas. Em
um período histórico fundamental de transformação social e política, no qual
a abolição da escravatura era promulgada e a República era proclamada, torna-
va-se corrente, por meio do discurso científico da época compreender as dife-
renças humanas como diferenças raciais:

A “raça” era introduzida, assim, com base nos dados da biologia da época e privilegiava
a definição dos grupos segundo seu fenótipo, o que eliminava a possibilidade de pensar
no indivíduo e no próprio exercício da cidadania e do arbítrio. Dessa maneira, em vista
da promessa de uma igualdade jurídica, a resposta foi a “comprovação científica” da
desigualdade biológica entre os homens, ao lado da manutenção peremptória do libe-
ralismo, tal como exaltado pela nova República de 1889 (SCHWARCZ, 2012, p. 38).

Enquanto o liberalismo pressupunha a igualdade jurídica, as teorias raciais


subordinavam o indivíduo ao grupo racial. Desta forma, as desigualdades so-
ciais que eram consequências do passado escravista e as diferenças culturais
demarcadas entre a sociedade nacional e os povos indígenas passaram a ser
interpretadas como resultado de desigualdades naturais, com a defesa da su-
posta superioridade da civilização europeia. Neste período, o Brasil era visto
de fora, pelos intelectuais europeus como um “espetáculo das raças”, sendo
assim, seu destino enquanto civilização estaria ameaçado. Alguns expoentes
da ciência europeia, como Conde de Gobineau, interpretavam a miscigenação
aqui presente como um obstáculo ao desenvolvimento do país e, mais do que
isto, como característica que faria o país tender à degeneração.
Uma leitura original destas interpretações era feita por nossos intelectuais,
dentre eles Silvio Romero, representante do pensamento da Escola de Recife,
Faculdade de Direito na qual a interpretação biologicista do social predomi-
nava. No pensamento de Romero fundamentava-se uma teoria do branquea-
mento, ou seja, pensava-se, em oposição ao enquadramento de Gobineau, que
a mistura racial poderia levar ao branqueamento e, de forma contrária ao autor
europeu, era vista como algo positivo, como caminho para o estabelecimento
de uma civilização nos trópicos:

capítulo 4 • 105
Ao mesmo tempo em que se absorveu a ideia de que as raças significavam realidade
essenciais, negou-se a noção de que a mestiçagem levava sempre à degeneração,
conforme previa o modelo original. Fazendo-se um casamento entre modelos evolucio-
nistas (que acreditavam que a humanidade passava por etapas diferentes de desen-
volvimento) e darwinismo social (que negava qualquer futuro na miscigenação racial)
– arranjo esse que, em outros contextos, acabaria em separação litigiosa –, no Brasil as
teorias ajudaram a explicar a desigualdade como inferioridade, mas também apostaram
em uma miscigenação positiva, contanto que o resultado fosse cada vez mais branco
(SCHWARCZ, 2012, p. 39).

Tais questões não se restringiam ao debate de ideias. Desde o fim do século


XIX até três primeiras décadas do século XX, fomentou-se uma vigorosa política
de incentivo à imigração europeia. Italianos, alemães e imigrantes de outras lo-
calidades foram atraídos para trabalhar e encontrar um lar no país, e eram con-
siderados mais “civilizados” do que os trabalhadores de ascendência africana.
Em congressos internacionais, o Brasil expressava – no intuito de se apresentar
como parte da constelação de nações civilizadas, leia-se europeias – a sua crença
no branqueamento progressivo da população, seja por meio da miscigenação ou
da contribuição dos imigrantes:

João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no I Congresso In-
ternacional das Raças, realizado em julho de 1911, apresentou sua tese “Sur les métis
au Brésil”. Sua mensagem: “É lógico supor que, na entrada do novo século [refere-se
então ao século XXI], os mestiços terão desparecido no Brasil, fato que coincidirá com
a extinção paralela da raça negra entre nós” (SCHWARCZ, 2012, p. 25).

Não se trata de uma opinião isolada, mas oficial e compartilhada por mui-
tos pensadores, dentre eles o antropólogo Roquete Pinto, presidente do I Con-
gresso Brasileiro de Eugenia “que aconteceu em 1929, previa, anos depois e
a despeito de sua crítica às posições racistas, um país cada vez mais branco”,
para o autor, “em 2012 teríamos uma população composta de 80% de brancos
e 20% de mestiços; nenhum negro, nenhum índio” (SCHWARCZ, 2012, p. 26).
Muito embora a questão racial se concentrasse na problemática da relação en-
tre negros e brancos, visto que constituíam a parcela da população predominante
nos grandes centros urbanos, a população indígena não deixou de ser considerada

106 • capítulo 4
nas discussões, classificada como representativa do atraso cultural e racial. Como
exemplo, Rudolf von Henring, o então diretor do Museu Paulista, justifica o exter-
mínio dos índios Kaingang que habitavam o Estado de São Paulo, por serem consi-
derados um obstáculo ao progresso nacional. Durante os oitocentos, a percepção
dos índios romancizados, como elementos formadores da nação conviveu com
sua caracterização como inferiores e bárbaros, obstáculos à civilização nacional:

O séc. XIX foi marcado pelo debate científico a respeito da classificação dos indígenas
em termos evolutivos, sendo dado grande destaque à noção de raça. Alguns cientis-
tas postularam a decadência (degenerescência) dos povos da América, havendo dois
principais representantes dessa concepção nos estudos e nas discussões ocorridas no
Brasil: von Martius e Varnhagen. Esta era uma questão central para o destino dos índios,
pois envolvia duas atitudes políticas contraditórias, enfatizando ora os empreendimen-
tos pedagógicos, ora as práticas repressivas e militares (uma vez que eram concebidos
como a caminho da extinção).
No Brasil, o principal defensor da postura repressiva foi o historiador Francisco
Adolfo Varnhagen. Ao se basear no discurso etnocêntrico de cronistas coloniais que
criaram uma imagem de “sociedade selvagem”, onde imperavam o nomadismo, as guer-
ras de extermínio e a vingança, entre outras características, Varnhagen defendia as
guerras coloniais. O historiador acreditava que os “vícios” indígenas eram originários do
nomadismo, já que só o sedentarismo promovia a civilização de povos (Lindoso, 1983;
Varnhagen, 1867).
Por outro lado, políticos como José Bonifácio de Andrada e Silva, representan-
do o pensamento do Império, defenderam a humanidade e a perfectibilidade dos ín-
dios. Andrada e Silva influenciou a legislação indigenista Imperial, inclusive o artigo da
Constituição de 1823 que determinava a criação de estabelecimentos de catequese
e civilização dos índios. O Estado brasileiro daria aos índios hostis a oportunidade de
constituírem uma sociedade civil. Tais idéias acabaram formalizadas no Regulamento
das Missões de 1845.
Nos seus “Apontamentos para a Civilização dos índios brabos do Império do Brasil”
(Silva, 1992), Andrada e Silva estabeleceu um programa de ação com 44 itens abran-
gendo os meios para a civilização dos índios, entre os quais: “1) Justiça (...); 2) Brandura,
constância e sofrimento da nossa parte (...); 3) Abrir comércio com os bárbaros (...); 4)
Procurar com dádivas e admoestações fazer as pazes com os índios inimigos (...); 5) Fa-
vorecer por todos os meios possíveis os matrimônios entre índios e brancos (...)” (Silva,
2000:53). (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 94-95).

capítulo 4 • 107
O desejo de branqueamento
“Na tela acadêmica do pintor espanhol M. Brocos, chamada A redenção de Can, vemos
a representação do processo de branqueamento tal como apregoado pelo governo bra-
sileiro à época. Nela aparecem uma avó muito negra, que é retratada como se agrade-
cesse a Deus por algum milagre: à direita o pai branco, que lembra um português; e ao
centro uma mãe mulata e de traços ‘suavizados’ com um bebê branco e de cabelos lisos
no colo. Tudo ambientado num cenário que mais lembra um cortiço, com suas casas de
pau a pique e uma palmeira a certificar a origem tropical” (SCHWARCZ, 2012, p. 87).

A redenção de Cam (1895) de Modesto Brocos y Gómez (Santiago de Compostela, 9


de fevereiro de 1852 — Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1936).

Nos anos 1930, há um ponto de viragem no pensamento nacional, no qual


a temática racial não deixa de ser central, mas é reconfigurada. Trata-se de um
período de modernização e integração nacional levado a cabo pelo presidente
Getúlio Vargas. Diante das tensões políticas da Primeira República, a iminên-
cia de um processo de industrialização e o surgimento das massas urbanas, os
conflitos entre as oligarquias locais, o governo Vargas intentava fazer sobrepor
uma identidade brasileira una e coesa em busca de integração nacional. Essa
busca coincidia com o elogio à mestiçagem e à figura do mestiço que passou a
representar a singularidade nacional:

108 • capítulo 4
Foi nos anos 1930 que o mestiço transformou-se definitivamente em ícone nacional,
em um símbolo de nossa identidade cruzada no sangue, sincrética na cultura, isto é, no
samba, na capoeira, no candomblé, na comida e no futebol. Redenção verbal que não
se concretiza no cotidiano: a valorização do nacional é acima de tudo uma retórica que
não encontra contrapartida fácil na valorização das populações mestiças e negras, que
continuam a ser, como veremos, discriminadas nas esferas da justiça, do direito, do
trabalho e até do lazer (SCHWARCZ, 2012, p. 28)

A mestiçagem passa a ser eleita como expressão nacional e, nesta interpre-


tação, a obra Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre é dotada de importân-
cia simbólica fundamental, valorizando as influências africanas, indígenas e
portuguesas na consolidação de uma ideia de brasilidade singular e positivada.
O autor brasileiro baseava-se, em sua interpretação da cultura nacional, na te-
oria antropológica de Franz Boas, a qual foi importante para consolidar a visão
de que a cultura não é determinada por características raciais ou biológicas.
Boas também fundamentou a perspectiva relativista cultural, na qual não se
pensa as diferenças culturais como mensuráveis em um determinado padrão
evolutivo. As culturas têm, nesta interpretação, um desenvolvimento próprio,
não há um único modelo civilizatório.
Embora Freyre procure analisar as especificidades dos povos indígenas e
africanos trazidos ao Brasil, bem como os aspectos fundamentais da cultura
portuguesa, sua apropriação da teoria boasiana de cultura apresenta ambi-
guidades, muitas vezes reforçando interpretações evolucionistas criticadas
por Boas. De outro lado, acabou criando uma descrição romancizada da re-
lação entre senhor e escravo, dando pouca ênfase interpretativa à relação de
poder e violência estabelecida no regime escravocrata brasileiro:

Freyre mantinha intocados em sua obra, porém, os conceitos de superioridade e de


inferioridade, assim como não deixava de descrever e por vezes glamorizar a violência
e o sadismo presentes durante o período escravista. Senhores severos mas paternais,
ao lado de escravos fiéis, pareciam simbolizar uma espécie de “boa escravidão” (...)
(SCHWARCZ, 2012, p. 51).

capítulo 4 • 109
O Brasil mestiço oficial

“Para além do debate intelectual, tudo leva a crer que, a partir dos anos 1930, no discur-
so oficial ‘o mestiço vira nacional’, ao lado de um processo de desafricanização de vá-
rios elementos culturais, simbolicamente clareados. Esse é o caso da feijoada, naquele
contexto destacada como um ‘prato típico da culinária brasileira’. A princípio conhecida
como ‘comida de escravos’, a feijoada se converte em ‘prato nacional’, carregando con-
sigo a representação simbólica da mestiçagem.
O feijão (preto ou marrom) e o arroz (branco) remetem metaforicamente aos dois gran-
des segmentos formadores da população. A eles se juntam os acompanhamentos – a
couve (o verde das nossas matas), a laranja (a cor de nossas riquezas). Temos aí um
exemplo de como elementos étnicos ou costumes particulares viram matéria de na-
cionalidade. Era, portanto, numa determinada cultura popular e mestiça que se sele-
cionavam os ícones desse país: da cozinha à oficialidade, a feijoada saía dos porões e
transformava-se num prato tradicional.
Mas esse não é, por certo, um exemplo isolado. A capoeira – reprimida pela polícia do
final do século passado e incluída como crime no Código Penal de 1890 – é oficiali-
zada como modalidade esportiva em 1937. Também o samba passou da repressão à
exaltação de “dança de preto” à “canção brasileira para exportação”. Definido na época
como uma dança que fundia elementos diversos, nos anos 1930 o samba sai da mar-
ginalidade e ganha as ruas, enquanto as escolas de samba e os desfiles passam a ser
oficialmente subvencionados a partir de 1935” (SCHWARCZ, 2012, p. 58-59)

Elaborava-se, com destaque para a interpretação freyriana, a ideia do Bra-


sil como constituído pelo amalgamento das raças, desta forma compreendido
como um país distante da realidade racial segregadora de outros contextos so-
ciais, como nos estados do sul norte-americano. A construção da imagem posi-
tivada de um “Brasil mestiço” atualizava a ideia de que este país singular era re-
sultado da fusão de três raças. O mestiço era o produto genuinamente nacional,
no seu passado estavam o indígena e o negro que não eram valorizados em suas
diferenças, mas como parte constitutivas da história nacional. Caberia aos ne-
gros e indígenas do Brasil não a valorização de suas especificidades culturais,
mas o pertencimento, ainda que no futuro, ao tipo nacional.
A valorização da mestiçagem é efetivada com ambiguidades, convivendo
com a reconfiguração do projeto de branqueamento do país. Um dos exemplos
da ambiguidade é abordado por Jerry Dávila (2006) em episódio ilustrativo do

110 • capítulo 4
Ministério da Educação e Saúde dirigido por Gustavo Capanema entre 1934
e 1945. Trata-se da encomenda de Capanema da estátua que ornamentaria o
novo prédio do MES representativa do “Futuro Homem Brasileiro”. O escultor
Celso Mariano elaborou a imagem de um caboclo, um homem das matas, de
raça mestiça e barrigudo, recusada então pelo ministro. Em seguida, há uma
série de trocas de correspondências entre o ministro e intelectuais, dentre eles
Roquette Pinto, Oliveira Vianna e Rocha Vaz, na qual chega-se à conclusão de
que a figura, representativa do homem brasileiro do futuro, deveria ser branca:

embora continuasse a haver polêmica sobre a natureza da negritude, da degeneração


e da possibilidade de aperfeiçoamento racial, havia consenso sobre o significado e o
valor da brancura – consenso que se expressava nas virtudes masculinas de virilidade,
força e coragem, na “europeidade” e na concordância de que essa era a raça do futuro
do Brasil (DÁVILA, 2006, p. 50).

Vemos que a mistura racial celebrada era predominantemente pensada


como um meio que levaria ao branqueamento da população. Em termos cul-
turais e educacionais, buscava-se tornar as escolas mais acessíveis à população
abrangente, ao mesmo tempo em que se objetivava “’aperfeiçoar a raça’ – criar
uma ‘raça brasileira’ saudável, culturalmente européia, em boa forma física e
nacionalista” (DÁVILA, 2006, p. 21).
São nestes termos em que são fomentadas as bases para o que se chamou
de “democracia racial”, na qual, como veremos, a valorização da mestiçagem
convive com o racismo institucional, com um modelo eurocêntrico de civiliza-
ção e, consequentemente, com a valorização do branco compreendido como
sinônimo de civilização e com o ocultamento da variedade cultural indígena
e da afro-brasileira. A ideia de que somos um país mestiço, alegre e quase um
paraíso racial foi gestada no cenário urbano, neste sentido, as representações
abordam muito mais os mestiços de brancos e negros, não obstante os in-
dígenas são recorrentemente lembrados como parte do passado nacional e,
assim, pensados como a prova de nossa autenticidade.
Lembrar que os povos indígenas também são elementos integrantes da com-
preensão do país como “democracia racial”, exige considerar as especificidades
de sua relação com a sociedade nacional abrangente. Para tanto, é necessário
levar em consideração a política estatal em relação a eles que vigorou de 1910 a
1988, denominada de regime tutelar. Tal política teve como principal articula-

capítulo 4 • 111
dor o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
(SPILTN), primeiro órgão indigenista, mas também voltado ao trabalhador na-
cional, cujo fim era a capacitação de mão de obra no campo, ou nos termos da
época, a formação do trabalhador nacional. Os objetivos do órgão eram:

a) estabelecer a convivência pacífica com os índios; b) agir para garantir a sobrevi-


vência física dos povos indígenas; c) fazer os índios adotarem gradualmente hábitos
“civilizados”; d) influir de forma “amistosa” sobre a vida indígena; e) fixar o índio à terra;
f) contribuir para o povoamento do interior do Brasil; g) poder acessar ou produzir bens
econômicos nas terras dos índios; h) usar a força de trabalho indígena para aumentar
a produtividade agrícola; i) fortalecer o sentimento indígena de pertencer a uma nação
(FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 111-112).

O órgão era presidido pelo experiente Marechal Rondon que já possuía his-
tórico de contatos com povos indígenas em seu trabalho, no qual instalava li-
nhas telegráficas em partes do território nacional não urbanas. A partir de seus
ideais positivistas, constituiu um tipo de engajamento com os povos indígenas
que não se baseava na valorização das diversas culturas indígenas compreendi-
das em suas especificidades, ao contrário, havia a compreensão dos indígenas
em termos genéricos e como atrasados culturalmente. Além disso, o contato
com os povos indígenas atendia a questões práticas da política nacional. Ele se
fazia a partir dos ideais integracionistas presentes no governo Getúlio Vargas,
e, em especial, no período do Estado Novo, cujo objetivo era expandir o senti-
mento nacional em todo o território:

a busca do relacionamento, do contato com povos indígenas não nasceu de uma curiosi-
dade extemporânea, etnológica ou sensacionalista. Nascia da necessidade de dar comu-
nicação e explicação a essa intempestiva entrada no território de outrem. E esse outrem
não falava sua língua, não tinha uma formalização de poder político, e, é certo, do ponto de
vista de Rondon e da época, estava num estágio de compreensão do mundo, o animista,
que o deixava aquém da compreensão correta da ação que estava sendo realizada.
Sobre a visão de Rondon, fruto de seu engajamento com o positivismo evolucionista, a
antropologia faz uma forte ressalva. A antropologia moderna se estabeleceu no início do
século contra a visão de que existe evolução cultural tal como fora proposta pelos evolu-
cionistas do século XIX. Assim, dizer que os povos indígenas viviam no estágio animista se
tornara, por volta da década de 1920, uma questão superada (GOMES, M., 2009, p. 184).

112 • capítulo 4
Embora a ideia de evolução estivesse superada nos círculos acadêmicos, tra-
tava-se de uma compreensão que encontraria maior ressonância nas políticas
estatais e na compreensão da população como um todo, justificando a política
de contato calcada no objetivo de integração dos povos indígenas à nação brasi-
leira. O contato era seguido de uma série de consequências danosas, quando um
grande contingente de indígenas era perdido por causa de doenças e epidemias:

nos grupos recém contatados pelo SPI, aldeias inteiras foram destruídas por doenças
pulmonares. Ao causar mortalidade, o pós-contato iniciava o desequilíbrio das condi-
ções de sobrevivência de um povo, que já enfrentava doenças endêmicas, como vermi-
noses e malárias: havia desnutrição, dificuldade de produção de alimentos, pioravam os
cuidados sanitários (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 123).

Em seguida, eram delimitadas terras, consideradas devolutas, aos grupos


étnicos indígenas, muito embora sem respeitar a forma como estes se organi-
zavam culturalmente. Em outras palavras, “No cômputo geral, o SPI reservou
pequenas áreas que funcionavam mais como reserva de mão de obra do que
favoreciam a reprodução socioeconômica dos índios” (FREIRE; OLIVEIRA,
2006, p. 122). Partindo de uma visão antropológica contemporânea, podemos
compreender tal processo como uma forma de confinamento dos índios em
um espaço restrito de terras que não fazia jus às formas de organização espaço-
-temporais próprias das culturas, considerando que estes povos já habitavam o
território previamente à criação do Estado Nacional brasileiro.
Tais empreendimentos objetivavam a transformação do índio em trabalha-
dor nacional ou pequeno produtor rural, estimulando a adoção de valores na-
cionais, como exemplo: “No início do séc. XX, durante os trabalhos nas linhas
telegráficas, índios Paresi e Cabixi foram instruídos a adotar cerimônias cívicas
nas quais se cultuava a pátria através do hasteamento da bandeira nacional e
o canto de hinos oficiais e militares” (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 124). A po-
lítica de tutela em nada se relacionava com a valorização da diversidade étnica
indígena presente no território nacional, antes se definia como uma política
assimilacionista própria ao período de constituição de uma identidade nacio-
nal una e coesa do governo de Vargas. Convivia com ela a concepção de que era
apenas uma questão de tempo a integração dos indígenas à sociedade nacional
e, para tanto, era necessário tutelá-los:

capítulo 4 • 113
As terras ocupadas por indígenas, bem como o seu próprio ritmo de vida, as formas ad-
mitidas de sociabilidade, os mecanismos de representação política e as suas relações
com os não-índios passam a ser administradas por funcionários estatais; estabelece-se
um regime tutelar do que resulta o reconhecimento pelos próprios sujeitos de uma
“indianidade” genérica, condição que passam a partilhar com outros índios, igualmente
objeto da mesma relação tutelar (OLIVEIRA apud FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 114).

4.2  Fraturas na unicidade nacional: o aparecimento do tema do


racismo e das diferenças étnico-raciais nos saberes da segunda
metade do século XX

A visão do Brasil como um paraíso racial reverberou pelo mundo em um perí-


odo no qual as doutrinas raciais e eugênicas ganhavam notoriedade, com as
práticas nazistas de perseguição aos judeus, calcadas na crença na existência e
superioridade de uma raça pura ariana. Neste período, a obra-prima de Gilber-
to Freyre e, em seguida, as contribuições do estudioso Donald Pierson, que co-
mungavam ideias semelhantes a respeito de uma suposta harmonia racial, fez
do Brasil um país reconhecido internacionalmente por essa suposta qualidade.
O reconhecimento era tanto que em 1951, um programa de pesquisas sobre re-
lações raciais no Brasil foi financiado pela Unesco com a hipótese de que o país
poderia servir de inspiração para outros países com histórico segregacionista.
Trata-se do seguinte contexto:

O fim da Segunda Guerra Mundial e da experiência nazista representou um ponto de


viragem, uma inflexão a partir dos horrores que resultaram das práticas embasadas
nesse olhar hegemônico sobre as diferenças, respaldado por um saber biologicista do
social, cada vez mais contestado nas esferas acadêmicas. No momento histórico pós-
-holocausto, há uma inflexão do saber e das políticas sobre a diferença, primeiramen-
te a “racial”, em decorrência das trágicas consequências das políticas ancoradas nas
teorias pela ideia de existência de uma superioridade racial. A UNESCO patrocinou
pesquisas nas quais o saber “racialista” foi desmontado (HOFBAUER, 2006). Progres-
sivamente, as diferenças (“raciais”, sexuais e de gênero) foram alvo de saberes e de
projetos políticos de organizações internacionais e de órgãos governamentais que pro-
curaram combater preconceitos e discriminações arraigados (BALIEIRO, 2013, p. 30).

114 • capítulo 4
No contexto do pós-guerra, foram contratados especialistas na temática
para o estudo das relações raciais no Brasil. Entre eles, estavam Costa Pinto,
no Rio de Janeiro, e Roger Bastide e Florestan Fernandes, em São Paulo, cujos
trabalhos denunciaram a existência de um “mito de democracia racial” brasi-
leiro. Centrados nas metrópoles brasileiras no meio do século XX, suas pesqui-
sas forneceram bases para se pensar o país como marcado pela discriminação
racial, no lugar da pressuposta harmonia, aceita também por aqueles que fi-
nanciaram as pesquisas. Uma nova interpretação foi então fundamentada, a
partir da ideia de que a ausência de tensões abertas e conflitos explícitos não é
necessariamente sinal de relações raciais positivas.
O racismo não se define necessariamente pela segregação, ou seja, pela
separação racial comumente elaborada legalmente, restringindo o acesso
a pessoas “de cor” a determinados espaços sociais. A convivência “inter-ra-
cial” nos mesmos espaços pode coexistir com o preconceito e a valoração
diferenciada de negros e brancos, repercutindo em uma série de desvanta-
gens, a qual foram percebidas a partir de então como constituintes da socie-
dade brasileira. Neste período, cria-se o que se chama de estudos de “rela-
ções raciais” que se desenvolveriam nas décadas seguintes.
Tais estudos passaram a mostrar como a existência do preconceito racial
produz desigualdades raciais no país, ou seja, como se promoveu a perpetua-
ção dos negros e mestiços (os quais são denominados de pretos e pardos nas
categorias utilizadas pelo IBGE) nos estratos socioeconômicos mais baixos da
sociedade. Um aspecto fundamental das desigualdades raciais no país pode ser
explicada pela conformação demográfica pelo território nacional:

A distribuição geográfica desigual representa um fato de grande importância na análise


da conformação brasileira. Praticamente metade da população classificada sob o ter-
mo parda encontra-se na região Nordeste (49,8%), sendo a fração correspondente à
branca de apenas 15,1%. Por outro lado, nas áreas do Sudeste (Rio de Janeiro e São
Paulo) e do Sul acham-se 64,9% da população branca e somente 22,4% da população
parda. Essa divisão desigual é, por sua vez, um dos elementos que explicam a difícil mo-
bilidade ascendente dos não brancos, obstaculizada pela sua concentração nos locais
geográficos menos dinâmicos: nas áreas rurais em oposição às cidades e, dentro das
cidades, em bairros mais periféricos (SCHWARCZ, 2012, p. 88).

capítulo 4 • 115
Embora importante, a distribuição geográfica não explica a desigualdade
racial em sua complexidade, considerando que a desigualdade é constatada em
qualquer região do país e também é presente nas cidades. Antonio Sérgio Gui-
marães (2002, p. 67) chama atenção para o “ciclo cumulativo de desvantagens”
que os negros têm em relação aos brancos, tanto no que diz respeito à trajetória
escolar como no mercado de trabalho. O autor se refere a uma série de pesqui-
sas desenvolvidas por Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, a partir do fim
da década de 1970, que demonstram como a cada estágio da competição esco-
lar ou profissional, há desvantagens para os negros em relação aos brancos. As
conclusões são tiradas de pesquisas quantitativas de amplo escopo, comparan-
do-se negros e brancos dos mesmos estratos sociais e, portanto, isolando os
determinantes econômicos da comparação.
A pesquisadora Fulvia Rosemberg também ressalta a persistência da desi-
gualdade educacional racial quando afirma que “A população pobre frequen-
ta escola pobre, os negros pobres frequentam escolas ainda mais pobres (...)
toda vez que o ensino propicia uma diferenciação de qualidade, nas piores so-
luções encontramos uma maior proporção de alunos negros” (ROSEMBERG,
apud SCHWARCZ, 2012, p. 90). Além das desigualdades no âmbito educacional
e do mercado de trabalho, são várias as pesquisas que demonstram a mesma
desvantagem em relação à expectativa de vida, mortalidade infantil, padrões de
matrimônio e, por fim, nas práticas policiais e penais brasileiras. Em síntese:

Contrariando a noção de universalidade de direitos no país, a história pregressa parece


ter se mostrado mais duradoura do que o modelo da mistura racial e da democracia
procurou veicular. As populações preta e parda não só apresentam uma renda menor
como têm menos acesso à educação, uma mortalidade mais acentuada, casam-se mais
tarde e, preferencialmente, entre si (SCHWARCZ, 2012, p. 93).

Em uma dimensão internacional, o momento posterior à Segunda Guerra


Mundial permitiu a crítica da categoria “raça” como biológica no discurso cien-
tífico. Difundiu-se em âmbito mundial uma variedade de textos antropológi-
cos, nos quais as diferenças nas formas de organização social são explicáveis
pelo conceito de diversidade cultural. Desde então, as culturas passam a ser
avaliadas em sua especificidade e, em termos acadêmicos, a ideia de evolução
passa a ser desacreditada. A partir da crítica à compreensão da raça como ca-

116 • capítulo 4
tegoria biológica, formulou-se progressivamente, também em âmbito acadê-
mico, a percepção do preconceito racial como aspecto fundamental das so-
ciedades contemporâneas. Neste sentido, alguns autores passaram a usar a
categoria “raça” (usada entre aspas para evitar a conotação biológica) compre-
endida como uma marca social, constituída quando:

certos grupos se pensam, e pensam a outros, a partir da descrição de diferenças ob-


serváveis, definindo qualidades e atribuindo valores em detrimento de outros valores e
qualidades por considerá-los indesejáveis, contribuindo para o processo de sua estig-
matização (SILVERIO, TRINIDAD, 2012, p. 897).

“Raça” passa a ser tratada, não como assunção da diferença biológica entre
grupos, mas como categoria analítica capaz de compreender os processos so-
ciais de hierarquização e estigmatização, ou seja:

Demonstrar as limitações do conceito biológico, desconstruir o seu significado históri-


co, não leva a abrir mão de suas implicações sociais. Com efeito, raça persiste como re-
presentação poderosa, como um marcador social de diferença – ao lado de categorias
como gênero, classe, região e idade, que se relacionam e retroalimentam – a construir
hierarquias e delimitar discriminações (...) Raça é, pois, uma categoria classificatória
que deve ser compreendida como uma construção local, histórica e cultural, que tanto
pertence à ordem das representações sociais – assim como são fantasias, mitos e ide-
ologias – como exerce influência real no mundo, por meio da produção e reprodução de
identidades coletivas e de hierarquias sociais politicamente poderosas (SCHWARCZ,
2012, p. 33-34).

Por muito tempo, falar em “raça” em um país cuja nacionalidade é pensa-


da a partir da figura síntese do “mestiço” era considerado um equívoco, algo
que poderia recrudescer o racismo. Diferentemente de outros tipos de racismo,
“no Brasil, desde a proclamação da República, a universalidade da lei foi afir-
mada de maneira taxativa: nenhuma cláusula, nenhuma referência explícita a
qualquer tipo de diferenciação pautada na raça” (SCHWARCZ, 2012, p. 79). Tal
escolha acabou repercutindo em uma dificuldade maior de reconhecer o pre-
conceito racial.

capítulo 4 • 117
O preconceito racial foi estabelecido no país em um modelo distinto do se-
gregacionista, constituindo um sistema de hierarquização racial com configu-
ração cultural específica, vinculado ao ideário de branqueamento. Na medida
em que nunca se estabeleceu barreiras formais de convivência entre brancos e
negros e, muitas vezes, se estimulou a mistura racial em prol do branqueamen-
to, ao mesmo tempo em que se valorizou em termos simbólicos a harmonia
racial, o preconceito racial brasileiro sempre foi escamoteado, a partir da:

[...] confusão de miscigenação com ausência de estratificação, além da construção de


uma idealização voltada para o branqueamento. Chegamos, de tal modo não só ao
“quanto mais branco melhor” como à já tradicional figura do “negro de alma branca”;
branca na sua interioridade, essa figura representou, sobretudo até os anos 1970, o
protótipo do negro leal, devotado ao senhor e sua família, assim como à própria ordem
social (SCHWARCZ, 2012, p. 71).

Onde está o racismo?

Reflita a partir do que foi discutido e do texto abaixo sobre a invisibilidade do tema do
racismo no país. “Afirma-se de modo genérico e sem questionamento uma certa har-
monia racial e joga-se para o plano pessoal os possíveis conflitos. Essa é sem dúvida
uma maneira problemática de lidar com o tema: ora ele se torna inexistente, ora aparece
na roupa de outro alguém.
É só dessa maneira que podemos explicar os resultados de uma pesquisa realizada em
1988, em São Paulo, na qual 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito e
98% dos mesmos entrevistados disseram conhecer outras pessoas que tinham, sim,
preconceito. Ao mesmo tempo, quando inquiridos sobre o grau de relação com aqueles
que consideravam racistas, os entrevistados apontavam com frequência parentes próxi-
mos, namorados e amigos íntimos. Todo brasileiro parece se sentir, portanto, como uma
ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados.
Em 1995, o jornal Folha de S. Paulo divulgou uma pesquisa sobre o mesmo tema cujos
resultados são semelhantes. Apesar de 89% dos brasileiros dizerem haver preconceito
de cor contra negros no Brasil, só 10% admitem tê-lo. No entanto, de maneira indireta,
87% revelam algum preconceito ao concordar com frases e ditos de conteúdo racista, ou
mesmo ao enunciá-los.

118 • capítulo 4
Tal pesquisa foi repetida em 2011, e os resultados foram basicamente idênticos, mostran-
do como não se trata de supor que os brasileiros desconheçam a existência do preconcei-
to: jogam-no, porém, para outras esferas, outros contextos ou pessoas afastadas. Trata-se,
pois, de ‘um preconceito do outro’” (SCHWARCZ, 2012, p. 30-31).

Embora vemos uma perseverança na dificuldade de reconhecer o racismo,


exposta nos parágrafos anteriores, vimos também o início do percurso no qual
há uma substituição da exposição de uma noção unitária definidora de uma
nação mestiça para o princípio de reconhecimento das diferenças e das desi-
gualdades raciais, quando tratamos das problematizações advindas do âmbito
acadêmico. Em relação aos povos indígenas, há um movimento similar, quan-
do se distancia da caracterização do índio como um ser genérico (e, portanto,
não relacionado a seu pertencimento étnico) a ser incorporado à nação para a
valorização dos povos indígenas em sua diversidade étnica.
Os princípios de mudança de percepção das culturas indígenas brasileiras
podem ser percebidos na própria transformação dos quadros do SPI, no fim da
ditadura getulista. Em 22 de novembro de 1939, durante o Estado Novo, foi cria-
do o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), um órgão consultivo,
coordenado pelo Marechal Rondon, contando com a participação progressiva
de antropólogos, este foi “seguido pela abertura do quadro funcional a antro-
pólogos, primeiramente Darcy Ribeiro, e, logo depois, da criação do Museu do
Índio, em 1953, na ocasião em que o Parque era discutido nas altas esferas do
poder brasileiro” (GOMES, M., 2009, p. 183).
Neste período, o SPI:

renovou-se, abriu-se para novos quadros, especialmente antropólogos, e começou o


processo de demarcar terras indígenas por critérios antropológicos, enfrentando as in-
junções políticas com mais destemor. O resultado é que a delimitação das terras indí-
genas passou a levar em consideração as formas culturais dos povos indígenas, suas
áreas de produção econômica, incluindo as áreas de perambulação para caçadas e
pescarias, e assim as terras indígenas passaram a ter tamanhos bem maiores do que
aqueles realizados nas décadas de 1920 e 1930 (GOMES, M., 2009, p. 180-181).

capítulo 4 • 119
A demarcação de terras indígenas maiores acompanhava a compreensão de
que a forma de lidar com o espaço é vinculada a configurações culturais parti-
culares. Tal compreensão exige, portanto, considerar que as culturas indígenas
não se baseiam na organização capitalista do espaço, voltada à busca crescen-
te pelo aumento da produtividade na produção agrícola. Compreender a terra
como parte de uma totalidade cultural foi possível pelo desenvolvimento da
Antropologia, em especial a Etnologia indígena, no âmbito nacional, permitin-
do a demarcação de terras que se referem aos territórios de origem dos povos
indígenas. As demarcações sempre enfrentaram oposições ferrenhas nos âm-
bitos de poder estadual e local, em especial a setores agrícolas interessados em
tornar a terra indígena sua propriedade privada.
A política indigenista estava, neste momento, articulada à política estado-
novista de “Marcha para o Oeste”, na qual sob o governo de Getúlio Vargas se
intenta colonizar o oeste brasileiro, integrar as populações autóctones à nação
e explorar os recursos naturais disponíveis. Dentro desse intuito, se formou a
“Expedição Roncador-Xingu” cujo objetivo nacionalista era corroborado com o
hábito do hasteamento da bandeira nacional em acampamentos. A despeito do
ideal integracionista, a mesma expedição acabou por criar “sertanistas” com ex-
periência em contato com os povos indígenas como os irmãos Villas-Boas que
iriam, auxiliados do saber antropológico, defender outro tipo de relação com
esses povos. Os sertanistas, em período posterior, se empenhariam em proteger
determinados povos indígenas no Alto-Xingu de frentes de expansão econômica.
O Parque Nacional do Xingu, referido na citação anterior, foi idealizado pelos ir-
mãos Villas-Boas e pelo antropólogo Darcy Ribeiro, na época funcionário do SPI:

O auge desse processo deu-se com a formulação do projeto do Parque Nacional do


Xingu, entre 1953 e 1954. [...] Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão e Orlando Villas Bôas
elaboraram e apresentaram por consecutivas vezes ao presidente Getúlio Vargas um
grande projeto de preservação e proteção de uma imensa área do Alto Rio Xingu que
garantiria não só a sobrevivência dos povos indígenas que lá habitam, com sua cultura
de paz impressionante, a qual aos poucos era dada ao conhecimento do público brasi-
leiro por reportagens dos jornais e revistas populares do país, como garantiria a invio-
labilidade de uma parte destacada da Amazônia brasileira (GOMES, M., 2009, p. 181).

120 • capítulo 4
A demarcação de terras indígenas em proporções inéditas significou o
reconhecimento das culturas indígenas da região, de distintas filiações lin-
guísticas, formas de organização social e costumes:

aprovado, quando o foi, em junho de 1961, pelo presidente Jânio Quadros, em sua
integridade, tendo diminuído para cerca de 27 mil quilômetros quadrados, o Parque
Nacional do Xingu marcou dois pontos importantes: primeiro, demonstrou que o propó-
sito do SPI era, de fato, dar condições de sobrevivência aos povos indígenas; segundo,
estabeleceu novos parâmetros de reconhecimento e regularização de terras indígenas
(GOMES, M., 2009, p. 181).

CONEXÃO
Assista ao filme Xingu (2011), de Cao Hamburguer, no qual é abordada a trajetória dos
irmãos Villas Bôas no seu contato com os povos indígenas, além da demarcação do Parque
Nacional do Xingu. Leia, em seguida, a crítica de Neusa Barbosa: “Xingu”, de Cao Hambur-
ger, aborda temas atuais ao refazer a trajetória dos irmãos Villas Bôas, disponível em: http://
cinema.uol.com.br/ultnot/reuters/2012/04/05/xingu-de-cao-hamburger-aborda-temas-a-
tuais-ao-refazer-a-trajetoria-dos-irmaos-villas-boas.jhtm. Acesso em 06/06/2014.

Dentro do contexto do regime militar, tem-se o fim do SPI e a criação da FU-


NAI, a Fundação Nacional do Índio, em 1967. A nova instituição atuava a partir
de princípios de ação semelhantes aos do SPI de “respeito à pessoa do índio e
às instituições e comunidades tribais”, associado, por sua vez, à “aculturação
espontânea do índio” e à promoção da “educação de base apropriada do índio
visando sua progressiva integração na sociedade nacional” (FREIRE; OLIVEI-
RA, 2006, p. 131). As causas da mudança de órgão mediador da relação entre in-
dígenas e Estado se relacionam não apenas com a mudança do regime político,
mas com críticas que se acumulavam em relação ao SPI:

capítulo 4 • 121
Em meados dos anos 60, acusações de genocídio de índios, corrupção e ineficiência
administrativa cercavam o SPI, então investigado por uma Comissão Parlamentar de
Inquérito. O resultado dessa investigação resultou na punição por demissão ou suspen-
são de mais de cem servidores do órgão, incluindo ex-diretores. A crise do SPI coincidiu
com a reformulação do aparato estatal pelos militares após o golpe de 1964, incluindo
a proposta de um novo órgão indigenista gestada no âmbito do CNPI. No final de 1967,
foram extintos o SPI, o CNPI e o então Parque Nacional do Xingu, e seus acervos trans-
feridos para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada pela Lei nº 5.371, de 5 de
dezembro de 1967 (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 131).

Neste momento, o Brasil já era signatário de acordo internacional estabe-


lecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) que versava sobre o
tema das terras indígenas:

a Convenção 107, adotada em 1957, reconhecesse o direito das “populações indíge-


nas e tribais” às terras por elas ocupadas tradicionalmente, o instrumento apresentava
fórmulas não condizentes com a realidade atual, já que ainda colocava como tarefa
primordial para os Estados a integração gradual dos índios às suas respectivas socieda-
des nacionais. Sob essa concepção integracionista, a Convenção 107 previa a “colabo-
ração” das populações indígenas quando da aplicação dos mecanismos voltados para a
sua própria proteção e integração. (LUZ apud SANTOS, 1995, P. 102).

Durante o regime militar, período de forte investimento estatal, com


investimento em infraestrutura (rodovias e hidrelétricas, por exemplo), fo-
mento das atividades madeireira, mineradora e outras, o contato com os
povos indígenas se deu de forma tensa com o expansionismo das ativida-
des econômicas que adentravam nas terras que antes eram a eles destina-
das. No entanto, no mesmo período houve demarcação de terras indígenas
que se efetuou a partir da regulamentação do Estatuto do Índio, contendo o
mesmo teor integracionista, como é possível aferir na citação a seguir:

122 • capítulo 4
A 19 de dezembro de 1973 foi sancionada a Lei nº 6.001, o Estatuto do Índio, que
passou a regular a situação jurídica dos índios e das comunidades indígenas. Ao legislar
sobre direitos civis e políticos, terras, bens, rendas, educação, cultura, saúde e penalida-
des que atingem os índios, o Estatuto manteve a ideologia civilizatória e integracionista
da legislação do SPI, adotando também o arcabouço jurídico tutelar e classificatório que
identificava a situação dos índios no país. Quase 1/3 da lei (22 artigos) regulamentava
as atividades relativas às terras dos índios, cujo art. 65º das Disposições Gerais estabe-
lecia o prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas, prazo não
cumprido até hoje (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 131-132).

De outro lado, etnologia indígena se desenvolvia e outras formas de política


indigenista passaram a ser pensadas. Tem-se a criação do Museu do Índio em
1953, por Darcy Ribeiro, dentro do qual cria o curso de Pós--Graduação em An-
tropologia, com Eduardo Galvão, em 1955. Depois de um histórico de contatos,
o diálogo entre saber antropológico e a experiência de sertanistas, fomenta-se
uma nova forma de se pensar a relação entre os povos indígenas e a sociedade
nacional abrangente:

Alguns sertanistas que enfrentaram essa situação em várias frentes de atração aprova-
ram a criação, em 1987, de um novo sistema de proteção aos índios isolados, no qual
é privilegiada a vigilância do modo de vida tradicional dos índios isolados, realizando-se
o contato só como última alternativa, diante das pressões de frentes econômicas de
madeireiros, garimpeiros etc. (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 133).

Alguns aliados revelaram-se fundamentais na gestação de novas políticas


indigenistas, como veremos, dentre eles alguns de caráter religioso. Em um
primeiro momento missões católicas e evangélicas, visavam à evangelização,
com o pressuposto de aculturação dos povos indígenas e cristianização dos
mesmos. Com o tempo, passou-se a observar uma postura mais respeitosa em
relação à diversidade étnica por parte de algumas das organizações religiosas:

capítulo 4 • 123
A intervenção das missões religiosas católicas influenciou decisivamente o cotidiano
dos povos indígenas do Brasil no século XX. No início do século, era forte a pressão
aculturativa – os índios deviam deixar suas malocas coletivas, suas crenças e toda a
herança cultural para se submeterem à pedagogia missionária. Ao contrário, no final do
século, todo o esforço missionário seria dirigido para a defesa da cultura e dos direitos
indígenas. Em contraponto, ao longo do século, as missões protestantes manteriam
uma política aculturativa, voltada para a difusão do texto bíblico entre os índios. (FREI-
RE; OLIVEIRA, 2006, p. 148).

A criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organização de


cunho católico cujo pressuposto era a defesa da diversidade étnica indígena,
revelou-se fundamental neste processo. Trata-se do princípio de uma nova for-
ma política que se baseia na valorização da diversidade em vez da perspectiva
integracionista que pensa as culturas indígenas como atrasadas e o futuro dos
indígenas a partir de sua aculturação. Essa perspectiva só foi possível com a for-
mação do movimento indígena e o protagonismo político assumido por alguns
líderes, como veremos a seguir.

4.3  O movimento negro e o movimento indígena no último terço do


século XX: as mudanças conceituais, políticas e a Constituição de 1988

A segunda metade do século XX é marcada pela consolidação de áreas de pes-


quisa nas Ciências Sociais que formam especialistas as temáticas indígena e
negra, constituindo um corpus teórico capaz de pensar com mais profundidade
a dinâmica das relações étnico-raciais brasileiras. Tais discussões acabam re-
percutindo no âmbito da sociedade, quando passam a ser incorporadas e redi-
mensionadas em lutas políticas específicas. No último terço do século XX, em
um período de redemocratização, movimentos negros e indígenas aparecem
na cena pública lutando por políticas nas quais fossem reconhecidas a história
e a cultura indígena e a afro-brasileira em sua multiplicidade, bem como lu-
tando contra a discriminação que sofriam. Tais mobilizações encontravam na
sociologia aporte para se pensar as relações raciais brasileiras, marcada pela
ambiguidade, apresentada pela:

124 • capítulo 4
influência exercida pela ideia de que somos uma “democracia racial” que nos iguala sim-
bolicamente em termos de uma mistura genética e cultural; e, também, que nos hierar-
quiza em termos cromáticos nas relações sociais cotidianas, posicionando os indivíduos
não brancos em uma escala de qualidades e valores observáveis nas posições que eles
ocupam, por exemplo, no mercado de trabalho (SILVERIO; TRINIDAD, 2012, p. 898).

No âmbito acadêmico, tornou-se importante reconhecer as diferenças ra-


ciais afirmadas na sociedade, embora escamoteadas nos discursos nacionais
calcados na ideia de “democracia racial”. Ao lado da crítica acadêmica, emer-
giu na esfera política e social uma série de denúncias de “preconceito racial”,
o que é perceptível na história do movimento negro no país. Em um primeiro
momento, durante a era Vargas, a denúncia do racismo pelo movimento social
convivia com a valorização da ideia de um “país mestiço”, ou seja, corroborava
com a perspectiva integracionista de nação própria do período. Em vários as-
pectos, o movimento acabava reiterando o próprio ideário do branqueamen-
to, desvalorizando muitas expressões culturais associadas à história dos povos
afro-brasileiros. É importante pensar como os movimentos sociais e as identi-
dades culturais se efetivam em determinado contexto histórico, a partir de um
repertório de ideias disponíveis no período.
A Frente Negra Brasileira (1931-1937) “foi o primeiro grande sucesso na ten-
tativa de unir brasileiros de cor de pele negra numa entidade que seguia modelos
ocidentais modernos de organização política” (HOFBAUER, 2006, p. 347). Trata-
se de um grupo político que denunciava sistematicamente o “preconceito de
cor” no mercado de trabalho que se modernizava. Neste sentido, sua influência
era maior no sudeste, instalando-se, porém, em várias cidades grandes do país.
O principal objetivo político do grupo era lutar por uma situação econômica e
social melhor para seus membros. Defendiam a ideia, própria de seu tempo, de
que deveria se fomentar a “raça” brasileira a partir da miscigenação e, muitas
vezes, considerava ser o próprio grupo “atrasado” culturalmente.
De modo muito distinto das organizações políticas negras do fim do século
XX, a Frente Negra Brasileira defendia a integração dos negros no mundo da “ci-
vilização ocidental branca”, o que, por sua vez, significava “um distanciamento
das tradições de origem africana consideradas, à época, não-cultas ou atrasadas”
(HOFBAUER, 2006, p. 356). Percebe-se, na citação a seguir, que a cultura era con-
cebida pelos quadros da FNB a partir de um modelo teórico que pressupunha a
ideia de “progresso” e tinha como modelo a “civilização” ocidental:

capítulo 4 • 125
Seguindo, em linhas gerais, esse quadro teórico-conceitual, a FNB apostava que um
processo de “aprendizado cultural” poderia elevar a “raça negra” ao nível das “raças
adiantadas”. Manifestações como samba, capoeira e as diferentes formas religiosas de
matriz africana não eram tidas como tradições genuinamente negras, mas práticas a
serem superadas com o decorrer do tempo (HOFBAUER, 2006, p. 358).

A Frente Negra, ao mesmo tempo em que denunciava o preconceito racial, esti-


pulava como modelo as formas de comportamento próprias da classe média bran-
ca que deveriam ser adotadas pelos negros, como forma de garantir respeito social.
Ao mesmo tempo em que o movimento homenageava grandes personagens ne-
gras como Luís Gama e a história do Quilombo dos Palmares, também festejava o
dia da abolição, 13 de maio, além de reverenciar a Princesa Isabel. A Frente Negra é
desarticulada no período do Estado Novo e o movimento negro somente reaparece
já reorientado ideologicamente a partir dos anos 1970, baseado em outro repertó-
rio de ideias que iriam fundamentar demandas políticas muito distintas.
Em julho de 1978, fundou-se em São Paulo o Movimento Negro Unificado
Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) que, no ano seguinte, em seu Primei-
ro Encontro Nacional, passa a ser denominado de Movimento Negro Unificado
(MNU), sendo o segundo grande movimento negro no país que estabeleceria
suas atividades em vários estados da Federação. Trata-se de um movimento im-
pactado pela estética e ideologia do movimento negro norte-americano e que
sofria influência da luta pela independência de países africanos. É importante
notar que este movimento também sofreu influência das pesquisas sociológi-
cas brasileiras que traziam à tona as desigualdades raciais do país:

Na sua luta por ascensão social, muitos negros passaram por experiências dolorosas
de discriminação e exclusão. Para este grupo, com grau de educação formal acima
da média, tornou-se evidente que apostar apenas na formação profissional e/ou inte-
lectual não é suficiente para ser tratado da mesma forma como pessoas com cor de
pele clara no mercado de trabalho. Aos poucos, novos estudos acadêmicos (cf. tese de
Hasenbalg, 1979) revelariam que, ao contrário das projeções esperançosas de Fernan-
des, nas décadas de 1950 e 1960, a desigualdade social entre negros e brancos não
diminuiu com os processos de modernização social e econômica.

126 • capítulo 4
Hasenbalg tentaria mostrar que tais desigualdades estão relacionadas com a presença
do preconceito e da discriminação raciais que, longe de serem mera herança do antigo
regime, assumiriam, numa sociedade de classes, novos significados e funções. Com o
decorrer do tempo, os protestos e as reivindicações políticas da nova militância poder-
-se-iam apoiar em mais e mais dados quantitativos que comprovam a contínua situação
desprivilegiada dos negros em relação aos brancos em todos os indicadores socioeco-
nômicos (HOFBAUER, 2006, p. 379).

Ao contrário da Frente Negra, não mais se atribui culpa a um suposto “atra-


so moral” do próprio negro na explicação da discriminação que sofre. Em vez
disto, denunciam a exploração do “sistema econômico” e da “civilização bran-
co-europeia”. Enquanto a Frente Negra apoiava a integração do “negro” por
meio da aquisição de comportamentos tidos como “civilizados” da classe mé-
dia, apontando o trabalho como meio de combater o preconceito, o MNU apon-
tava o negro como vítima da discriminação no trabalho, na abordagem policial
e em outros âmbitos da sociedade. Em outros termos, a percepção de que havia
obstáculos aos negros na sociedade brasileira fazia-se evidente.
O MNU se define por uma nova agenda e uma perspectiva ideológica distin-
ta. As homenagens promovidas pelo movimento não mais se orientam para o
Dia da Abolição, posto que na interpretação compartilhada no movimento, este
acontecimento não mudou as péssimas condições de vida da população negra.
Em lugar do 13 de maio, reverenciam-se as revoltas negras e populares, como
a Revolta dos Alfaiates e Revolta dos Malês. O quilombo de Palmares é igual-
mente destacado na simbologia do MNU e Zumbi é constituído como figura
referência, representativo da resistência negra na história do país. Deste modo,
defende-se o dia 20 de novembro como o “Dia da Consciência Negra”, posto
que se atribui a tal data a morte de Zumbi.
A palavra de ordem do movimento é “derrubar o mito da democracia racial”,
neste momento já não mais aceita como descritiva das relações raciais do país.
Para tanto, objetiva-se promover a “consciência negra”. Inspirados na ideia de
“falsa consciência” do marxismo, buscam atrair aqueles que se identificam
como mestiços ou morenos ao movimento, fomentando-se a identidade de um
“povo negro”. Neste sentido, atuam em defesa das comunidades quilombolas
e da valorização do candomblé (então mais valorizado que a umbanda), vistos
como expressão de uma cultura própria do “povo negro”. Ao mesmo tempo se

capítulo 4 • 127
evita valorizar, nos discursos do MNU, manifestações culturais nas quais as “in-
fluências não-negras” apareçam como inegáveis, como as congadas e folias de
reis, nos quais o aspecto sincrético é evidente.
A categoria “raça” toma um sentido essencialista, ou seja, ela é interpreta-
da como algo dado e fixo e, portanto, não é vista como uma construção social,
tal como nas elaborações sociológicas. Há uma expectativa de equivalência de
uma suposta raça negra e uma cultura específica, assim, espera-se que o “povo
negro”, politicamente consciente, deva desempenhar atributos culturais pró-
prios à cultura negra. Em termos sociológicos, é possível compreender a cons-
trução de uma identidade política nestes termos, mas é importante ressaltar
que se trata de uma concepção não acadêmica, e, deste modo, ausente de uma
leitura mais sofisticada sobre a construção histórica das identidades. Em ter-
mos sociológicos, as identidades não são dadas, antes se constroem a partir das
relações sociais, conforme já abordado.
A interpretação do MNU se baseia em uma visão sistêmica da cultura, difundi-
da mundialmente pela UNESCO, a partir de uma acepção antropológica da segun-
da metade do século XX, baseada na noção de relativismo cultural. Na leitura do
movimento, pode-se falar em uma “cultura negra” que representaria “uma espé-
cie de ‘organismo próprio’ que dificilmente se mescla com a ‘cultura do branco’”
(HOFBAUER, 2006, p. 397). Trata-se de uma definição que escapa à complexidade
da dinâmica cultural nas sociedades contemporâneas, marcadas pelo intercâmbio
cultural, sincretismos e múltiplas formas de compreensão identitária.
Embora seja possível criticar as concepções fixas de identidade do movimento
negro do período, é importante compreender sua importância histórica e políti-
ca. Trata-se de uma visão que se opõe frontalmente ao ideário de branqueamento
que vigorou no país e, de outro lado, de uma perspectiva que visa o reconheci-
mento da cultura e história afro-brasileiras e da explicitação da discriminação e
desigualdade raciais, trazidas em um movimento político que buscava fomen-
tar políticas, tendo em vista a transformação da sociedade brasileira. Neste sen-
tido, possuíam uma perspectiva amplamente distinta daquela compartilhada
pelos membros da Frente Negra, como percebemos na citação abaixo:

128 • capítulo 4
[...] os novos movimentos negros dos anos 1970, 1980 e 1990 já não defendem a
“assimilação” e “aculturação”. A busca de delimitação reflete-se também na criação de
uma nova estética. Inspiradas em modelos africanos e norte-americanos, são lançadas
novas modas de roupa e, sobretudo, de cortes de cabelo. No lugar das “cabelisadoras”
dos anos 1930, surgem salões especializados em “cabelo afro” e tranças e penteados
“rastafari”. Além disso, propõe-se dar um nome africano aos filhos, em vez de batizá-los
com nomes cristãos (HOFBAUER, 2006, p. 394).

É importante ressaltar que ambas as perspectivas – a da Frente Negra


Brasileira e a do Movimento Negro Unificado – visavam ao combate da dis-
criminação racial e da desigualdade que enfrentavam os negros na socieda-
de brasileira, porém, a partir de distintas visões que carregavam pressupos-
tos culturais próprios da época em que se inseriam:

Pode-se afirmar que o alvo principal da preocupação da militância negra ao longo do


século XX tem sido a luta por igualdade e contra a discriminação do “cidadão negro”.
Se, na década de 1930, os frentenegrinos apostavam na estratégia de “elevar” – via
um processo de aprendizado e aculturação – a “raça negra” aos patamares das “raças
adiantadas”, a nova militância negra, que se forma a partir do final da década de 1970,
rejeita totalmente essa postura. Ocorreram, portanto, com o decorrer do tempo, mudan-
ças na análise das causas da desigualdade e da discriminação e nas estratégias de luta
que têm sido acompanhadas também por processos de ressemantização da “ideia de
negro” (HOFBAUER, 2006, p. 404).

Embora a resistência negra seja constante na história do país, o movimento


negro da década de 1970 pode ser considerado responsável por um ponto de vi-
ragem na luta contra o racismo, posto que ressignifica a questão étnico-racial a
partir da afirmação da diferença racial. Intelectuais negros e não negros já aler-
tavam que a desigualdade que atinge a população negra não é apenas reflexo
de uma questão do passado, a herança escravista, mas um produto complexo e
multicausal, envolvendo questões econômicas, culturais e políticas. Nilma Go-
mes (2012) ressalta que o movimento negro atuou como um sujeito do conhe-
cimento importante neste período, propondo a reconfiguração das relações
raciais a partir de políticas públicas específicas:

capítulo 4 • 129
Esta organização de caráter nacional elege a educação e o trabalho como duas impor-
tantes pautas na luta contra o racismo. O MNU talvez seja o principal responsável pela
formação de uma geração de intelectuais negros que se tornaram referência acadê-
mica na pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil (GOMES, N., 2012, p. 738).

De fato, a importância da pauta do movimento negro se mostrou ainda mais


importante na elaboração da Constituição de 1988, gerando forte impacto na
redação da Carta Magna, bem como, aprofundando o debate na esfera pública:

Na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, mesmo em uma correlação desfavorá-


vel de forças, pudemos observar que os vários encontros organizados pelo movimento
negro tinham como foco a participação nos debates. A temática étnico-racial foi incorpo-
rada à Comissão “Da Ordem Social”, a partir das discussões ocorridas na “Subcomissão
dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias”.
Segundo Rodrigues (2005), o movimento negro conseguiu debater e elaborar importan-
tes propostas das quais é possível destacar as seguintes: a) reconhecimento e demarca-
ção das terras das comunidades negras remanescentes de quilombos; b) criminalização
da prática de racismo e preconceito racial; c) comprometimento da política educacional
no combate ao racismo e todas as formas de discriminação, respeito à diversidade e
obrigatoriedade do ensino de história das populações negras do Brasil. Somada a essas
propostas, foi discutida a importância de ações afirmativas voltadas à população negra.
O texto final da Constituição incorporou a proposta de que o currículo deveria abarcar,
com igualdade, as contribuições das diferentes etnias e grupos que participaram do pro-
cesso de formação do povo brasileiro (SILVERIO; TRINIDAD, 2012, p. 894).

Além destes tópicos, na Constituição de 1988 o racismo passa a ser crime ina-
fiançável, o que é regulamentado na Lei n. 7716, de 5 de janeiro de 1989. Trata-se
da demonstração da valorização que o tema do racismo ganhou na sociedade a
partir da mobilização do movimento negro. A partir de então, uma série de polí-
ticas voltadas ao combate ao racismo passaram a ser desenvolvidas. A afirmação
da diferença racial em uma sociedade que se compreendia como una e mestiça
representou, portanto, um posicionamento necessário para a transformação so-
cial que, como veremos no capítulo a seguir, trouxe uma série de políticas volta-
das às diferenças, bem como encontrou fortes oposições políticas.

130 • capítulo 4
Antes de adentrar nestes desdobramentos, voltemo-nos a refletir sobre as
mudanças no que se refere à questão indígena no mesmo período. Temos que:

Desde os anos 60, o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira vinha identificando no


âmbito urbano algumas representações sobre os índios, denominadas por ele de: 1.
mentalidade estatística; 2. mentalidade romântica; 3. mentalidade burocrática; 4. men-
talidade empresarial (Cardoso de Oliveira, 1972). Os “estatísticos” acreditavam que os
índios eram irrelevantes no conjunto da sociedade brasileira. Os “românticos” tinham
uma visão estereotipada, ingênua, do “bom selvagem”. Os “burocratas” viam os índios de
forma indiferenciada, como qualquer cidadão sem recursos, com poucos direitos garan-
tidos, enquanto os “empresários” só valorizavam o índio trabalhador, sugerindo o rápido
abandono da cultura indígena e a incorporação dos índios às unidades de produção
econômica. (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 159).

Foi com a mobilização indígena na década de 1970 que se passou a reivin-


dicar o reconhecimento da diversidade étnica presente em território nacional
(diga-se de passagem, existindo muito antes da própria delimitação da ideia de
nação brasileira). Com o surgimento de lideranças indígenas, passou-se a ques-
tionar o regime de tutela e a compreensão da cultura indígena como atrasada,
assim como se superou a compreensão dos indígenas enquanto passíveis de
serem aculturados, ou seja, absorvidos na cultura nacional. Para além do cri-
tério estatístico, passou-se a defender a legitimidade da ocupação do território
nacional pelas etnias autóctones, preservando sua cultura.
A primeira assembleia nacional de líderes indígenas ocorreu em 1974, em
Diamantino (MT), representando apenas o início desta nova forma de mobili-
zação, na qual os indígenas apareceram como sujeitos políticos autônomos. A
politização da década de 1970 permitiu, de um lado, o reconhecimento da situ-
ação de marginalização de diversos povos de forma semelhante no país, a cons-
tatação de sua variedade, bem como, a afirmação da categoria de índio como
forma de articulação política nacional:

capítulo 4 • 131
as assembléias indígenas permitiram o conhecimento da diversidade de povos e cul-
turas indígenas existentes no Brasil. Enquanto aprendiam sobre os diferentes modos
de viver – as línguas, as culturas, as crenças – também instrumentalizavam a categoria
“índio” para unificar reivindicações e lutas por direitos. Tratava-se de canalizar distintos
movimentos e experiências para uma causa comum. No primeiro grande encontro de
lideranças, ocorrido em São Paulo em 1981, com a presença de 73 líderes e 32 entida-
des de apoio aos índios, a UNIND mudou de sigla – agora UNI – e consolidou-se como
organização indígena nacional. Ganharam maior projeção os índios que dominavam o
português e tinham escolaridade. (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 193).

Com o protagonismo indígena, o predomínio até então de uma relação pa-


ternalista na reivindicação dos direitos indígenas, na qual os índios “depen-
diam da mediação dos indigenistas para agir e se fazerem ouvir” (FREIRE;
OLIVEIRA, 2006, p. 190) abre espaço para uma mobilização na qual surgem
lideranças indígenas. Além disso, as reivindicações que eram isoladas e não ar-
ticuladas em nível nacional, passaram a adotar críticas das situações dos povos
indígenas como um todo. O CIMI cumpriu um papel importante na formação
de lideranças e organização dos encontros, já que as mobilizações eram obs-
taculizadas pelo aparato tutelar da FUNAI. Muitos líderes indígenas foram as-
sassinados nesse processo, de outro lado, outros ganharam destaque nacional,
tendo importância crucial nas mudanças políticas que se seguiram:

Nos anos 70, os índios começaram a ser vistos por uma outra perspectiva, discutindo e
reivindicando seus direitos. Mário Juruna, índio Xavante, que com seu gravador questio-
nava políticos e indigenistas, impulsionou o movimento pela cidadania indígena (Juruna,
1982). O surgimento de lideranças indígenas complexificou as imagens sobre eles,
agora inseridos na luta pela redemocratização do país. Durante a década, filmes como
“Uirá” e “Terra dos Índios” colocaram em cena o índio rebelde, lutando pela sobrevivên-
cia cultural, ao contrário da mídia que retratava as atividades de atração e pacificação
como espetáculos exemplares (ainda que suas consequências fossem fome, doenças
e mortes). (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 159-160).

O confronto com as políticas oficiais e seus representantes tornou-se algo


politicamente relevante, tendo o movimento indígena adotando, por exem-

132 • capítulo 4
plo, a estratégia de invasão da FUNAI, como forma de pressão política. Mais
importante foi o impacto decisivo na Constituinte de 1988 possibilitada pelo
surgimento das organizações políticas indígenas e suas lideranças:

A UNI, aliada ao movimento pró-índio, aos sindicatos e a outras associações, apre-


sentou à Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Deficientes e Minorias uma
proposta de artigos sobre direitos indígenas. Mobilizados nas audiências públicas da
Constituinte, os líderes indígenas denunciaram as situações enfrentadas por diversos
povos e prepararam a coleta de assinaturas para uma emenda popular contendo uma
proposta de capítulo sobre as populações indígenas (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 194).

Diversos segmentos da sociedade brasileira deram apoio às reivindicações


indígenas, articulados ou não, através de organizações não--governamentais
(ONGs) e associações científicas, antropólogos, dentre outros. Não obstante,
a presença indígena, representada por algumas lideranças, revelou-se crucial:

As emendas populares da UNI foram defendidas no plenário do Congresso Nacional


pelo líder indígena Ailton Krenak. Dezenas de índios, principalmente Kayapó, passaram
a freqüentar o Congresso Nacional, pressionando os congressistas a reconhecerem
suas reivindicações. Em maio de 1988, 70 lideranças de 27 povos contestaram a dife-
rença entre índios aculturados e não aculturados presentes no projeto de Constituição.
Através de vigília permanente no Congresso Nacional, mais de uma centena de índios
representando dezenas de povos indígenas acompanhou as negociações para a vota-
ção do capítulo “Dos Índios”, até a vitória final na promulgação da nova Constituição a 5
de outubro de 1988. (FREIRE, OLIVEIRA, 2006, p. 194-195).

Esta luta esteve centrada no reconhecimento das terras tradicionais ocupa-


das pelos índios, o que garantiu, pela primeira vez, um aparato legal para a de-
marcação de terras alinhada com o território tradicionalmente habitado pelos
povos indígenas:

capítulo 4 • 133
O caput do artigo 231 da Constituição ratifica o direito originário dos indígenas sobre as
terras que tradicionalmente ocupam e determina que a União promova a sua demarca-
ção e a proteção dos seus bens. A demarcação serve para explicitar os limites da terra
e não se configura como fonte constitutiva de direito. Nesse sentido, independetemente
do processo demarcatório, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios por sua
própria natureza já são consideradas terras indígenas, pois o direito originário consagra
a fonte primária da posse territorial, não havendo, portanto, qualquer título anterior a esse
direito. De acordo com o art. 231, § 1° da Constituição Federal, são terras tradicional-
mente ocupadas pelos índios as habitadas por eles em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambien-
tais necessários para seu bem-estar e as necessárias para sua reprodução física e cul-
tural, segundo seus usos, costumes e tradições. Assim, a Constituição adotou o conceito
de que as terras indígenas correspondem ao seu hábitat (GOMES, M., 2009, p. 135).

Garantiu-se então o usufruto das riquezas do solo, rios e lagos existentes nas
terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, estabeleceu-se que se
o Estado decidisse pela exploração dos recursos naturais, dever-se-ia passar por
um processo de consulta às populações, tendo também que passar por aprova-
ção no Congresso Nacional. Em outros termos, com tais restrições, passou-se
a garantir o direito à diferença cultural, ou seja, “o direito de serem índios e
de permanecerem como tal, reconhecendo-lhes ‘sua organização social, costu-
mes, línguas, crenças e tradições’” (GRUPIONI, 2009, p. 70).
As noções ultrapassadas de aculturação (que compreendiam que o perten-
cimento étnico se perdia com o contato com os brancos) e também a intenção
de incorporação destes à sociedade nacional passam a perder espaço, a partir
do texto legal inovador:

Foi com a Constituição de 1988 que se delineou um novo marco jurídico para as rela-
ções entre os grupos indígenas, o Estado e a sociedade nacional. Esta representou, tal
como analisa Duprat, “uma clivagem em relação a todo o sistema constitucional pretérito,
uma vez que reconhece o Estado brasileiro como pluriétnico” (2002:41), abandonando
assim a perspectiva assimilacionista que marcara toda a legislação indigenista prece-
dente, e que entendia os índios como uma categoria étnica e social provisória e transi-
tória, apostando na sua incorporação à comunhão nacional (GRUPIONI, 2009, p. 70).

134 • capítulo 4
Com o advento da Constituição de 1988 e dos direitos nela inscritos, os grupos indíge-
nas no país foram, então, alçados a um novo patamar jurídico: o de serem reconhecidos
como coletividades portadoras de modos de organização social próprios, que têm direi-
to a manterem suas línguas, tradições e práticas culturais, em terras tradicionalmente
ocupadas para uso permanente, onde possam reproduzir-se física e culturalmente. Ao
Estado brasileiro impôs-se a determinação da proteção desses grupos e do provimen-
to das condições necessárias à sua perpetuação. Estes têm sido apontados como os
maiores saldos da Constituição de 1988 (GRUPIONI, 2009, p. 73).

Recuperando o que já foi discutido, não se trata de uma mudança tópica ou


superficial, antes uma transformação fundamental das relações étnico-raciais
brasileiras, conforme percebemos a seguir:

Até a Constituição de 1988, a relação do Estado com os grupos indígenas, no Brasil,


foi marcada fundamentalmente pelo propósito de “integrá-los à comunhão nacional”,
visto como um bem que o Estado podia oferecer aos índios. A política integracionista
era antes de tudo individualista, pois pretendia integrar o índio à comunhão nacional.
Com o advento da nova carta constitucional, a relação alterou-se, não só porque o direito
à diferença e à manutenção dessa diferença foi reconhecido, como também porque a
Constituição, além de perceber o índio como pessoa, com direitos e deveres de qualquer
outro cidadão brasileiro, o percebe como membro de uma comunidade e de um grupo,
isto é, como membro de uma coletividade que é titular de direitos coletivos e especiais
(GRUPIONI, 2009, p. 72).

A Constituição de 1988 significou, portanto, uma mudança crucial nas re-


lações étnico-raciais brasileiras, tanto no que tange à questão indígena quan-
to à negra. Ela se efetivou a partir de uma série de mobilizações e de saberes
que se desenvolveram nas décadas anteriore o que possibilitou, nas décadas
seguintes, o surgimento de novas políticas em relação às diferenças. A partir da
década de 1990, vê-se uma reconfiguração das organizações políticas indígenas
e negras, com a emergência de variadas organizações não governamentais cen-
tradas nesta temática e com novas formas institucionalizadas de relação entre
movimento social e governo.

capítulo 4 • 135
ATIVIDADE
1. Quais foram as primeiras formas nas quais o Brasil foi analisado internacionalmente e
nacionalmente em relação a sua composição étnico-racial?

2. Quais as mudanças que a década de 1930 trouxe na forma de compreender a identi-


dade nacional?

3. Como se efetivou no país o ideário de branqueamento em relação aos negros e indígenas?

4. De que maneira podemos pensar que o preconceito racial foi escamoteado nas relações
raciais brasileiras? O que as pesquisas sociológicas trouxeram de novo para se repensar
tais relações?

5. Descreva as mudanças do movimento da década de 1930 para a década de 1970.

6. Qual foi o impacto do movimento indígena na Constituinte de 1988?

7. O que a Constituição de 1889 trouxe de novo no que tange às relações étnico-raciais?

REFLEXÃO
Nesta capítulo, discutimos a transformação da forma como as relações étnico-raciais foram
pensadas do fim do século XIX ao fim do século XX no Brasil. Vimos que:
• A nossa identidade nacional foi pensada como específica por conta da interação entre
indígenas, brancos e negros.
• Constitui-se uma forma de pensar a nação a partir da “democracia racial”, ou seja, da ideia
de que formamos uma sociedade peculiar por conta de uma suposta harmonia racial.
• Ao mesmo tempo em que se valorizou o Brasil como um “país mestiço”, fomentou-se um
projeto de branqueamento.
• A ideia de mestiçagem e de harmonia racial escamoteou as desigualdades raciais e as
discriminações que sempre fizeram parte do país.
• A compreensão do tipo brasileiro como mestiço fomentou políticas de integração do
indígena à sociedade nacional, desrespeitando suas especificidades étnicas e culturais,
por sua vez, consideradas atrasadas.

136 • capítulo 4
• Os saberes acadêmicos passaram a problematizar as formas nas quais as relações étni-
co-raciais eram pensadas no senso comum, demonstrando a falácia da harmonia racial
e reiterando a necessidade de se valorizar a diversidade étnico-racial no país.
• Os movimentos negros e indígenas aparecem a partir do último terço do século XX
como protagonistas políticos, reconfigurando a forma como as relações étnico-raciais
eram pensadas.
• A Constituição de 1988 proporciona um novo pacto político no que diz respeito ao com-
bate ao racismo e reconhecimento da diversidade étnico-racial brasileira.

LEITURA RECOMENDADA
Sobre a construção da identidade nacional e as dimensões raciais, leia o texto Complexo
de Zé Carioca: Notas sobre uma identidade mestiça e malandra, da antropóloga Lilia
Moritz Schwarcz, disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/
rbcs29_03. Para uma história dos povos indígenas, consulte A presença indígena na forma-
ção do Brasil, de João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto de Rocha Freire, disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154566por.pdf. Sobre a importância do
movimento negro na redefinição da compreensão das relações raciais brasileiras, leia o arti-
go Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça, da socióloga Nilma
Lino Gomes, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v33n120/05.pdf.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALIEIRO. Fernando de Figueiredo. Diferenças, sociedade e a escola. In: Silvério, Valter Ro-
berto; Mattioli, Érica Aparecida Kawatami; Madeira, Thais Fernanda Leite. (Org.). Relações
étnico-raciais: um percurso para educadores. 1. ed. São Carlos, SP: EdUFSCar, v. 01,
p. 17-56, 2013.

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil 1917-1945. São
Paulo: Editora da UNESP, 2006.

HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão.


São Paulo. Editora UNESP, 2006.

capítulo 4 • 137
GOMES, Mércio Pereira. Por que sou rondoniano. Estudos Avançados (USP. Impresso), v.
23, p. 173-191, 2009.

GOMES, Nilma. Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça. Educa-


ção & Sociedade (Impresso), v. 33, p. 727-744, 2012.

GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Olhar longe, porque o futuro é longe – cultura,
escola e professores indígenas no Brasil. Tese defendida no Programa de Pós-gradu-
ação de Antropologia Social na Universidade de São Paulo, 2009.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora
34, 2002.

OLIVEIRA, João Pacheco de; FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presença indígena
no Brasil. Brasília, MEC/Secad, 2006.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça
na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

SILVÉRIO, Valter Roberto ; TRINIDAD, Cristina Teodoro. Há algo novo a se dizer sobre as
relações raciais no Brasil contemporâneo? Educação & Sociedade (Impresso), v. 33, p.
891-914, 2012

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No próximo capítulo, veremos as transformações sociais e políticas que foram levadas a cabo
após a promulgação da Constituição de 1988. As décadas de 1990 e 2000 revelaram-se mo-
mento de importância fundamental na reconfiguração das relações étnico-raciais brasileiras.

138 • capítulo 4
5
As Políticas de
Promoção da
Diversidade Étnico-
racial e do Combate à
Discriminação
5  As Políticas de Promoção da Diversidade
Étnico-racial e do Combate à Discriminação

Neste capítulo, veremos as transformações políticas importantes que impac-


taram na esfera pública brasileira nas décadas seguintes à promulgação da
chamada “Constituição Cidadã” no que diz respeito às relações étnico-raciais.
Abordaremos a importância das mobilizações internas, dos acordos e conven-
ções internacionais e da política institucional brasileira que se influenciam
mutuamente na consolidação de leis que se efetivam no limiar do século XXI
aos dias de hoje, garantindo o início do efetivo reconhecimento da diversidade
étnico-racial brasileira e do combate ao racismo em nosso país.

OBJETIVOS
• Compreender os impactos políticos da promulgação da Constituição de 1988 no que
se refere às relações étnico-raciais.
• Refletir sobre a importância dos movimentos sociais na formulação de políticas públicas
de reconhecimento da diversidade étnico-racial.
• Identificar a influência de acordos e convenções internacionais dos quais o Brasil é
signatário.
• Entender o contexto e a importância das políticas de ação afirmativa implantadas a
partir do começo do século XXI no Brasil.

REFLEXÃO
Qual foi a primeira vez que você leu ou ouviu algo a respeito das políticas de ação afirmativa?
Você se lembra se foi informado a respeito das cotas nas universidades? Sabe sobre a histó-
ria da implementação das cotas no país? Será que elas são o único exemplo das políticas de
ação afirmativa? Estes são os temas que vamos abordar no decorrer do capítulo.

140 • capítulo 5
5.1  O momento pós Constituição: as influências
recíprocas entre os âmbitos nacional e internacional

A primeira década do século XXI pode ser considerada marco de uma mudança fun-
damental na percepção de quem somos nós, os brasileiros. Fruto de um longo proces-
so de lutas e disputas simbólicas recobertas pela ideia de país mestiço e harmônico,
finalmente nos descobrimos em berço esplêndido como descendentes de africanos,
europeus, asiáticos, nativos etc. (SILVERIO, 2011, p. 13).

Na citação acima, Valter Silvério (2011) demonstra como no princípio do


século XXI a compreensão das relações étnico-raciais brasileiras ganhava in-
terpretações muito distintas daquelas fundamentadas no início do século XX,
quando a nação era pensada na chave da mestiçagem, ou seja, como uma sínte-
se das três raças. A mudança na compreensão se deu por conta da explicitação
das diferenças raciais – entendidas aqui como diferenças socialmente cons-
truídas que estabelecem desvantagens competitivas aos negros em relação aos
brancos –, e também pelo reconhecimento da diversidade étnica indígena e da
história e cultura afro-brasileiras.
Vimos, no capítulo anterior, que a mudança na compreensão foi fruto de
muitas lutas políticas, nas quais o movimento negro e o movimento indígena se
destacam enquanto protagonistas. Estes foram atores indispensáveis na elabo-
ração de pontos importantes da Constituição de 1988 que, por sua vez, reverbe-
rou em uma série de políticas nas décadas seguintes. Silvério e Cristina Trinidad
fazem um panorama das mudanças que se deram no período posterior à pro-
mulgação da chamada “Constituição Cidadã” no que se refere à questão racial:

capítulo 5 • 141
O período entre a promulgação da Constituição de 1988 e a aprovação da Lei n.
10.639/03 é de extrema importância para a compreensão das mudanças sociais em
curso, tanto em um contexto nacional quanto transnacional. Alguns dos marcos que
nos servem como referência são os seguintes: a Marcha Zumbi dos Palmares (1995),
a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394/1996 (LDB),
os Seminários Regionais Preparatórios para Conferência Mundial Contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, a III Conferência Mundial das
Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Cor-
relata, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Durban, na África do
Sul (2001) e, por fim, a aprovação da alteração da LDB pela Lei n. 10.639/2003, bem
como sua regulamentação. Em relação à sua efetiva implementação, durante todo o
ano de 2008 ocorreram seis encontros (SILVERIO; TRINIDAD, 2012, p. 894-895).

Percebe-se, na citação, que são muitos os acontecimentos sublinhados, va-


riando de eventos locais e protagonizados por movimento social, mudanças na
legislação do país e também conferências internacionais. De um lado, nota-se a
presença do movimento negro com cobranças para se fazer valer as demandas
políticas de combate ao preconceito racial, de outro lado, observa-se a presen-
ça de intelectuais e políticos negros ou alinhados ao combate do racismo, pro-
pondo alterações e regulamentações na legislação e, por fim, a presença destes
atores na Conferência de Durban, que estabeleceu diretrizes internacionais no
que diz respeito ao combate ao preconceito e à discriminação racial e ao reco-
nhecimento da diversidade étnico-racial, comprometendo o Estado brasileiro a
assumir políticas claras para a mudança das relações étnico-raciais brasileiras.
Em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, líder do
Quilombo dos Palmares e figura de referência da resistência negra no país,
organizações e movimentos negros de todo o país se reuniram para a grande
“Marcha Nacional Zumbi dos Palmares” em 1995. Trata-se de um momento no
qual se reúnem grupos de origens diversas que demarcam a heterogeneidade
do(s) movimento(s) negro(s), cujos membros estariam cada vez mais presentes
em organizações não governamentais e partidos e que se encontravam unidos
nesta mobilização que repercutiu fortemente em termos nacionais, com gran-
de impacto na política institucional.

142 • capítulo 5
Veja o depoimento do então presidente Fernando Henrique Cardoso previamente à marcha:
São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 1995

Vivemos num país democrático e podemos nos orgulhar disso. Aqui, todos têm liberda-
de para ir e vir, falar, seguir qualquer religião, votar em qualquer partido político.
O mundo nos reconhece como uma nação tolerante. Mas os direitos de uma parcela da
população brasileira ainda não são plenamente respeitados. No Brasil, ainda há discri-
minação contra os negros.
Eu conheço muito bem esse problema. Antes mesmo de entrar na política, quando era
professor na Universidade de São Paulo, estudei o assunto. Em 1960, junto com o pro-
fessor Octavio Ianni e, eu escrevi um livro, “Cor e Mobilidade Social em Florianópolis”.
Em 1972, publiquei outro livro: “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional”.
O negro lutou por um país mais próspero e mais justo e continua lutando. Na ciência
e na literatura, a presença afro-brasileira é predominante. Chegou a hora de enfrentar
esse problema com coragem e determinação. Enfrentar com políticas concretas, e nós
já começamos. O Ministério da Educação eliminou os livros didáticos que estimulavam
o preconceito. A partir do ano que vem, os livros vão chegar às salas de aula, do 1º e
2º graus, sem lições que estimulem discriminação e racismo. E vamos criar um grupo
de trabalho para definir outras políticas de valorização da comunidade afro-brasileira.
Os meios de comunicação devem mostrar o negro em condições de igualdade com
toda a população. A lei que pune os crimes de racismo deve ser aplicada com mais rigor.
A polícia não pode continuar a discriminar, quando aplica a lei. Aliás, a lei precisa ser
aperfeiçoada. E eu já pedi ao Ministério da Justiça para tomar as providências.
Além disso, para acabar com a violência policial, vão ser organizados cursos sobre os
direitos humanos para os policiais. Já determinei ao Ministério do Trabalho que coloque
efetivamente em prática uma convenção da organização internacional do trabalho que
determina a igualdade racial no mercado de trabalho. E, nesse processo, o papel dos
empresários é muito importante.
Um bom exemplo tem sido dado pelas empresas que estão adotando programas que
garantem a igualdade no trabalho. Nós precisamos assegurar as mesmas condições de
emprego para todos os brasileiros. Aliás, não só os empresários. Toda a sociedade deve
entrar nessa luta. Só assim teremos um Brasil com mais justiça social.

capítulo 5 • 143
Neste mês de novembro, temos uma grande oportunidade para entrar firme nesta luta. É
que, no dia 20, rememoraremos os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, um bra-
sileiro que lutou pelo fim da escravidão. Lutou pela liberdade. E que deixou uma lição que
vale muito para todos nós, hoje: o espírito comunitário. Ele viveu no Quilombo dos Palma-
res, que acolhia negros, índios, judeus e até muçulmanos. Zumbi morreu porque sonhava
com uma vida melhor para todos. Não se contentava com a liberdade só para ele.
Agora, as crianças de 1º e 2º graus vão conhecer melhor a história de Zumbi, através de
uma cartilha que será distribuída pelo Ministério da Educação e pela fundação Palma-
res, ligada ao Ministério da Cultura.
No dia 20, o país vai se recordar do tricentenário da morte de Zumbi. Brasileiros de
todos os cantos do país vão fazer uma marcha, em Brasília. Já era tempo de reparar o
esquecimento. Zumbi dos Palmares é parte da história nacional.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/11/15/cotidiano/27.html. Aces-


so em 11/06/2014.

Além da importância simbólica da mobilização, temos que pela primeira vez


um presidente da República reconhece a existência do preconceito racial no país.
Como vimos no quadro descritivo, Fernando Henrique Cardoso, antes de se tor-
nar presidente, quando atuava como sociólogo e pesquisador, se debruçou sobre a
questão das relações raciais e, portanto, já tinha contato com a realidade do tema.
No entanto, na “Marcha Nacional Zumbi dos Palmares”, o movimento en-
tregou uma proposta de ação, o Programa de Superação do Racismo e da Desi-
gualdade Racial, ao então presidente. Neste documento, “a demanda por ações
afirmativas já se fazia presente como proposição para a educação superior e o
mercado de trabalho” (GOMES, N., 2012, p. 739). Em decorrência desta deman-
da, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da Popu-
lação Negra (GTI), o qual abriu espaço para a participação da sociedade civil
organizada no desenvolvimento de políticas públicas voltadas à questão.
No ano seguinte, o Ministério da Justiça, promoveria o seminário Multicul-
turalismo e Racismo: O papel da “ação afirmativa” nos Estados Democráticos
Contemporâneos, quando o tema das ações afirmativas perpassa a discussão
do Estado pela primeira vez:

144 • capítulo 5
O passo decisivo para que a discussão sobre ações afirmativas conquistasse projeção
política e acadêmica, para além dos integrantes do movimento negro brasileiro, foi o
reconhecimento público do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, na
abertura do seminário Multiculturalismo e Racismo, realizado em 1996, em Brasília, de
que o país era racista. Além disso, o presidente da República estimulou a discussão
sobre as ações afirmativas quando, ao divulgar o Plano Nacional dos Direitos Humanos,
também em 1996, incluiu como um dos seus objetivos o desenvolvimento de “ações
afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e
às áreas de tecnologia de ponta”. E ainda foi mais claro, firmando o compromisso de
desenvolver “políticas compensatórias que promovam social e economicamente a co-
munidade negra” (PNDH, 1996:30-1) (BERNARDINO, 2002, P. 257-258).

Tais mudanças ficariam ao nível do discurso e esperariam ainda os próxi-


mos governos para se efetivarem enquanto política pública. Mas para além das
mudanças na esfera política institucional que viriam a se concretizar na década
seguinte, trata-se de um período de aprofundamento da valorização da cultura
afro-brasileira em lugar do culto ao “Brasil mestiço”. As releituras criadas das
culturas afro-brasileiras nos blocos do Olodum e do Ilê Ayê na década de 1970
são exemplos, além da valorização da figura de Zumbi, trazendo aspectos que
estavam presentes já na origem do Movimento Negro Unificado, unindo aspec-
tos culturais e políticos. Em outros termos, a cultura afro-brasileira se consoli-
da em sua especificidade em nível nacional, assim:

Para além das discussões que conferem ao “mito da democracia racial” sua eficácia
simbólica e prática na construção de nossas representações como uma comunidade
nacional imaginada, a mestiçagem e a miscigenação, realmente existentes, têm sido
deslocadas de seu sentido anterior, no qual pouca ou nenhuma importância era con-
ferida às origens ancestrais de muitos, para um reconhecimento de sua centralidade
no processo de estigmatização ou mobilidade de um grupo. Dessa forma, o imaginário
social que conferia à mestiçagem o estatuto prioritário de nomeação de boa parte dos
brasileiros, encobrindo suas origens, tem dado lugar, por exemplo, aos prefixos afro,
euro, entre outros (SILVÉRIO; TRINIDAD, 2012, p. 901).

capítulo 5 • 145
Com isso, o ideário de branqueamento é abalado. Com ele, havia uma ten-
dência a boa parte das pessoas a se declararem mais claras nos recenseamentos
do IBGE. No entanto:

Os resultados dos censos oficiais do IBGE, que costumam usar cinco categorias clas-
sificatórias fechadas (preta, branca, parda, amarela e indígena), revelaram que ao longo
do século XX houve um constante recuo da categoria “preto” e um contínuo aumento
da categoria “pardo” até o ano de 1990. Na última década do século XX, houve, porém,
um leve crescimento da categoria preta (1990:4.9%; 2000:6,2%) e uma diminuição da
categoria parda (39,3%; 38,4%). Esse fato deve-se não só a mudanças nas taxas de
fertilidade dos grupos pretos e pardos; o mais provável é que estejam mudando ligeira-
mente as percepções das diferenças (sobretudo entre aquelas pessoas de cor de pele
escura que fazem aumentar a classe média negra) (HOFBAUER, 2006, p. 412).

A valorização da especificidade das culturas africana e afro-brasileira, acom-


panhou a valorização contemporânea das etnias indígenas:

Ainda no ano 2000, os dados do censo demográfico sobre as populações indígenas


surpreenderam muitos brasileiros. Baseado na autoidentificação (ou autodeclaração), o
censo revelou um total de 734.127 indígenas no Brasil, mais do dobro identificado em
1991, de 294.131 índios (IBGE, 2005), bem como dos dados fornecidos pela FUNAI e
pelas ONG’s (em geral baseados apenas em levantamentos nas terras indígenas). Tal
incremento decorre basicamente de três fatores: a) a contagem de indígenas residen-
tes (no momento do censo ou em caráter permanente) em cidades; b) a identificação
de indígenas que vivem em domicílios rurais ou urbanos situados nas imediações (mas
sempre fora) das áreas indígenas; c) o processo de etnogênese em que povos conside-
rados extintos em documentos oficiais recuperam uma identidade étnica escondida e
a atualizam como fonte de mobilização política e reorganização sociocultural (FREIRE;
OLIVEIRA, 2006, p. 161).

A perspectiva integracionista e a ideia de um Brasil mestiço que desconsi-


dera suas especificidades étnico-raciais perdem espaço para a politização cres-
cente das diferenças. Acrescenta-se a estas questões, a Conferência das Nações
Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, mais conhecida como ECO-92,

146 • capítulo 5
que trouxe a questão ambiental ao centro das políticas nacionais no início da
década de 1990, articulada à valorização dos povos indígenas, quando se incen-
tiva o reconhecimento e demarcação das terras indígenas:

A proximidade da reunião internacional sobre meio ambiente, a ECO-92, que foi reali-
zada no Rio de Janeiro, impulsionou a política de identificação e demarcação de terras
no início dos anos 90. Como consequência da reunião, iniciou-se o financiamento in-
ternacional de programas para a proteção da floresta tropical. O “Programa piloto para
a proteção das florestas tropicais do Brasil” (PPG-7) possibilitou a criação do Projeto
Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL),
responsável pela demarcação das terras indígenas dessa região nos anos 90. (FREIRE;
OLIVEIRA, 2006, p. 134-135).

Tal processo acompanha no âmbito internacional a valorização das culturas


indígenas a partir da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que dispõe sobre povos indígenas e tribais, em termos bem distintos da
Convenção de 1957 da mesma organização:

Esta convenção, aprovada e adotada pela OIT em 1989, atualizou a Convenção 107
de 1957, no sentido de se eliminar a perspectiva assimilacionista que a orientava e, em
decorrência da evolução do direito internacional, reconhecer as aspirações dos grupos
indígenas a assumirem ‘o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu
desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões,
dentro do âmbito dos Estados onde moram’, intenções manifestadas no preâmbulo
deste novo instrumento” (GRUPIONI, 2009, p. 86-87).

Amplamente em sintonia com o texto constitucional brasileiro aprovado no


ano anterior, estabeleceu-se procedimento na Convenção, no qual grupos indí-
genas deveriam ser consultados, de forma livre e informada, sobre medidas ad-
ministrativas e legislativas que possam afiar seus direitos e interesses. Sobre tais
mudanças na esfera internacional, comenta Gruponi:

capítulo 5 • 147
Estas declarações e convenções, ainda que não tenham sido escritas especificamente
para a proteção e promoção dos povos indígenas, contemplam dispositivos que se des-
tinam à proteção de direitos coletivos e estabelecem princípios relativos ao reconheci-
mento, ao respeito e à valorização dos modos de vida e das visões de mundo de grupos
minoritários, respaldando a proposição de que os povos indígenas têm de manterem
suas tradições culturais e de contarem com uma educação diferenciada respeitosa
dessas tradições (GRUPIONI, 2009, p. 89).

No plano interno, as mobilizações políticas se complexificam na defesa


dos povos indígenas. Em 1990, a UNI perde a força, ao mesmo tempo em que
há crescimento exponencial das organizações não governamentais, contando
com mais de cem organizações relativas à temática. No ano 2000, só na Ama-
zônia existiam 183 organizações indígenas. Há um processo concomitante de
politização crescente dos povos indígenas em âmbito nacional para defesa de
seus interesses, com a formação de saberes acadêmicos e também aqueles de-
senvolvidos no âmbito das organizações não governamentais:

Com os índios assumindo cada vez mais a luta pela defesa de seus direitos, na década
de 90 as ONGs passaram a dirigir suas atividades sobretudo para o assessoramento
às organizações indígenas, colaborando na preparação de projetos ambientais, eco-
nômicos, sanitários e educacionais. Em 1994 surgiu o Instituto Socioambiental, uma
das mais atuantes ONGs voltadas para a temática indigenista e ambiental. (FREIRE;
OLIVEIRA, 2006, p. 198).

O próprio nome do Instituto Socioambiental já assinala como as duas ques-


tões, a indígena e a ambiental (articulada a outras, como a dos povos ribeiri-
nhos), se veem cada vez mais intricadas. Isso se dá em um progressivo engaja-
mento do governo em foros internacionais que passam a trabalhar com a ideia
de desenvolvimento sustentável, ou seja, compatibilizando a temática da prote-
ção ambiental com desenvolvimento.
Em outras palavras, a politização interna se dava “dentro de uma macropolí-
tica planetária e as áreas indígenas passaram a ser pensadas como importantes
unidades de conservação”. (FREIRE; OLIVEIRA, 2006, p. 195). Difunde-se então

148 • capítulo 5
a ideia dos povos indígenas como protetores do meio ambiente, levando-se em
conta a forma diferenciada na qual culturalmente se relacionam com a fauna
e flora, de forma amplamente mais sustentável, nos termos de hoje, do que as
sociedades capitalistas ocidentais. Vemos, portanto, que há uma influência de
mão dupla em termos nacionais e internacionais, considerando as lutas políti-
cas, as negociações institucionais e legislações internas e os acordos interna-
cionais. Luis Grupioni (2009, p. 68) exemplifica tais relações de influência no
que tange à questão indígena a partir de uma tabela que traz as principais mu-
danças legais e as diretrizes internacionais:

LEIS E NORMAS GERADAS EM ÂMBITO NACIONAL


Constituição Federal 1988

LEIS Lei de Diretrizes e Bases da Educação 1996

Plano Nacional de Educação (PNE) 2001

Resolução 03 do CNE - Diretrizes Curriculares


1999
Nacionais de Educação Escolar Indígena
NORMAS
Parecer 14 do NE - Diretrizes Nacionais para
1999
o funcionamento das escolas Indígenas

DECLARAÇÕES E CONVENÇÕES GERADAS EM ÂMBITO INTERNACIONAL


Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países
OIT Independentes
1989

ONU Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas 2007

Projeto de Declaração Americana sobre o Direito dos Em


OEA Povos Indígenas preparação

capítulo 5 • 149
Convenção relativa à luta contra a Discriminação no
1960
Campo do Ensino

Declaração sobre Raça e os Preconceitos Raciais 1978


UNESCO
Declaração de Princípios sobre a Tolerância 1995

Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural 2001

Uma das mudanças políticas mais importantes se refere a transformações na


esfera educacional. Já prevista na Constituição, com a Lei de Diretrizes e Bases
(LDB), regulamentada 7 anos depois, aprovada em dezembro de 1996, define-se
a educação praticada nas aldeias como “Educação escolar bilíngue e intercultu-
ral” (Artigo 78), com o duplo propósito:

Proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias


históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e
ciências”, e de outro, garantir “o acesso às informações, conhecimentos técnicos e cien-
tíficos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não indígenas (Artigo
78) (GRUPIONI, 2009, p. 79

Percebe-se que as políticas públicas não mais se baseiam na perspectiva in-


tegracionista, na qual os indígenas eram considerados como passíveis de serem
“aculturados” e absorvidos na sociedade nacional. Em vez disto, valorizava-se
a ideia de que a educação formal deveria capacitá-los para a aprendizagem da
língua portuguesa e de conhecimentos relativos à sociedade nacional e global,
mas também às línguas de origem, como em relação aos demais aspectos cul-
turais de cada grupo étnico.

5.2  A concretização das políticas de ação afirmativa

Nos anos 2000, há uma guinada no que se refere à formulação e implementa-


ção de políticas de combate ao racismo e de reconhecimento das diferenças
étnico-raciais brasileiras. Destaca-se a importância da III Conferência Mundial

150 • capítulo 5
contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de
Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de
2001, em Durban, na África do Sul.
A participação do Brasil na Conferência, com atuação de representantes do
movimento negro brasileiro, trouxe consequências às políticas do país, em espe-
cial com a assinatura do Plano de Ação de Durban, no qual “o Estado brasileiro
reconheceu internacionalmente a existência institucional do racismo em nosso
país e se comprometeu a construir medidas para sua superação. Entre elas, as
ações afirmativas na educação e no trabalho”. (GOMES, N., 2012, p. 739). Nas pa-
lavras de Silvério e Trinidad:

A III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada pela ONU em Durban, na África do Sul
(2001), é considerada como fundamental no estabelecimento de uma série de ações
políticas como, por exemplo, as recomendações sobre a adoção das cotas para estu-
dantes negros nas universidades públicas e a criação do Conselho Nacional de Com-
bate a Discriminação. A sua revisão, em 2009, em Genebra, reafirmou a Declaração e
Programa de Ação de Durban (DDPA), conforme foi adotado na Conferência Mundial
em 2001, e expressou preocupações com o “fato de que os desafios e obstáculos
identificados no DDPA permaneciam pendentes de superação para erradicar, prevenir
e combater efetivamente o racismo, a discriminação, a xenofobia e a intolerância corre-
lata (Revisão de Durban, Seção 1). (SILVÉRIO; TRINIDAD, 2012, p. 895).

Neste período, é visível a profissionalização de militantes ligados ao movimen-


to negro, então participantes de organismos governamentais, não governamen-
tais, ou atuantes como professores dentro das universidades públicas. Depois da
Conferência, “os pesquisadores ligados à tradição sociológica dos estudos raciais e
da militância negra têm conseguido transformar parte de suas ideias em políticas
públicas” (HOFBAUER, 2006, p. 413).
No plano institucional, já durante o Governo de Luís Inácio Lula da Silva, um
marco importante foi a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igual-
dade Racial (Seppir), em 2003. Concomitantemente, várias universidades públi-
cas passaram a adotar medidas de ações afirmativas como forma de acesso, de
forma geral, utilizando-se das cotas sociais e raciais. Trata-se de uma bandeira do
movimento negro desde os anos 1980 que passa a se tornar política pública des-

capítulo 5 • 151
de então. Em 2004, foi criada, atrelada ao Ministério da Educação, a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), a qual foi de impor-
tância ímpar no estabelecimento de políticas afirmativas educacionais.
Na área educacional, uma política de ação afirmativa importante se deu
com a promulgação da Lei 10.639, alterando a LDB:

estabelece a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”no currí-


culo oficial da rede de ensino da educação básica, iniciam a perspectiva de visibilida-
de e do reconhecimento desses sujeitos e suas experiências, isto é, “(...) indica[m] a
possibilidade de romper com o paradigma eurocêntrico e estimula[m] alterações nas
formulações de políticas educacionais, na medida em que pode[m] implicar a ampla mo-
dificação curricular inclusive nos cursos de formação de professores e de todos os pro-
fissionais da educação” (Rodrigues, 2005, p. 63) (SILVÉRIO; TRINIDAD, 2012, p. 895).

A mesma lei foi novamente alterada pela de n. 11.645/08, com a inclusão da te-
mática indígena (GOMES, N., 2012, p. 440). Se a LDB já previa a educação bilíngue
e intercultural nas aldeias, a Lei. 11.645 torna obrigatória a inserção da temática
indígena nas escolas, em uma abordagem que permita ao aluno dos ensinos fun-
damental, médio e superior ter uma visão crítica à imagem dos povos indígenas
“romancizada”, como parte do passado nacional. A partir de então, os povos in-
dígenas deveriam ser ensinados na escola em sua diversidade étnico-cultural, sua
história e presença na atualidade. Desta forma, a educação formal deve reconhecer
e valorizar a história e a cultura africana, a afro-brasileira e a indígena, rompendo
com uma visão eurocêntrica da história nacional, bem como, com as visões domi-
nantes da “democracia racial” brasileira que conviveu com a subvalorização das
culturas autóctones e de origem africana antes vistas como atrasadas ou inferiores.
As políticas de ação afirmativa são comumente associadas, no senso co-
mum, à política de cotas no ensino superior, mas elas se referem a uma diversi-
dade de iniciativas. Elas podem ser definidas, em sua abrangência, nas palavras
do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa Gomes:

As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concre-


tização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos
da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física.

152 • capítulo 5
Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser
respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Es-
tado e pela sociedade. [...] Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados
e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as
manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fato, de fun-
do cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente im-
pregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento
de transformações culturais e sociais relevantes, aptas a inculcar nos atores sociais a uti-
lidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas
mais diversas esferas do convívio humano (GOMES apud VIEIRA, MEDEIROS, 2013).

O Brasil mestiço oficial


Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pesso-
as pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no
passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discri-
minações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação
de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens mate-
riais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural.
Entre as medidas que podemos classificar como ações afirmativas podemos mencio-
nar: incremento da contratação e promoção de membros de grupos discriminados no
emprego e na educação por via de metas, cotas, bônus ou fundos de estímulo; bolsas
de estudo; empréstimos e preferência em contratos públicos; determinação de metas
ou cotas mínimas de participação na mídia, na política e outros âmbitos; reparações
financeiras; distribuição de terras e habitação; medidas de proteção a estilos de vida
ameaçados; e políticas de valorização identitária.
Sob essa rubrica podemos, portanto, incluir medidas que englobam tanto a promoção da
igualdade material e de direitos básicos de cidadania como também formas de valorização
étnica e cultural. Esses procedimentos podem ser de iniciativa e âmbito de aplicação públi-
co ou privado, e adotados de forma voluntária e descentralizada ou por determinação legal.
A ação afirmativa se diferencia das políticas puramente antidiscriminatórias por atuar
preventivamente em favor de indivíduos que potencialmente são discriminados, o que
pode ser entendido tanto como uma prevenção à discriminação quanto como uma re-
paração de seus efeitos. Políticas puramente anti-discriminatórias, por outro lado, atuam
apenas por meio de repressão aos discriminadores ou de conscientização dos indivídu-
os que podem vir a praticar atos discriminatórios.

capítulo 5 • 153
No debate público e acadêmico, a ação afirmativa com frequência assume um signi-
ficado mais restrito, sendo entendida como uma política cujo objetivo é assegurar o
acesso a posições sociais importantes a membros de grupos que, na ausência dessa
medida, permaneceriam excluídos. Nesse sentido, seu principal objetivo seria combater
desigualdades e dessegregar as elites, tornando sua composição mais representativa
do perfil demográfico da sociedade”.

Disponível em: http://gemaa.iesp.uerj.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=1:o-que-s%-


C3%A3o-a%C3%A7%C3%B5es-afirmativas?&Itemid=217. Acesso em 14/06/2014.

Um dos desdobramentos mais significativos das políticas de ação afirmati-


va se efetivou no Ensino Superior Público e Privado. Nota-se que:

Em 2000, 42% da população negra não tinha acesso à educação comparado com 23% dos brancos,
e 1.41% dos negros detinham um diploma de nível superior, comparado com 6.59% dos brancos
(SOARES et al., 2005). Em 2003, o ano que Lula assumiu o governo, mais de 72 % dos estudantes
de graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a maior universidade federal do
país, eram brancos, apesar de apenas 54% da população do Estado do Rio de Janeiro ser branca, de
acordo com o censo de 2000 (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2012, p. 400).

Isto significa, na opinião dos autores que, embora o presidente Fernando


Henrique Cardoso tenha assumido o problema do racismo, não houve promul-
gação efetiva de políticas que visavam combatê-lo de forma sistemática até en-
tão. A partir da primeira década do século XXI observam-se “medidas de ação
afirmativa por meio da criação de programas, leis e decretos em cuja discussão
e elaboração o movimento negro desempenha um papel fundamental” (CAM-
POS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2012, p. 402).
O Programa Universidade Para Todos (PROUNI) foi um dos meios nos quais
se deu a incorporação de estudantes egressos da escola pública, de baixa renda e,
dentre eles, foram reservadas cotas para candidatos pretos, pardos e indígenas,
com a proporção relativa ao recenseamento do IBGE, levando em conta a popula-
ção de cada estado. Trata-se de uma política de grande impacto que se utilizou das
vagas ociosas nas Faculdades, Centros Universitários e Universidades privadas.
Outras iniciativas governamentais como o Fundo de Financiamento Estudan-
til (FIES) e o Programa Nacional de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais (REUNI), que incentiva a adoção de políticas de ação

154 • capítulo 5
afirmativa, foram responsáveis pela maior absorção das populações de baixa ren-
da, das quais se incluem os negros, no ensino superior público e privado:

De acordo com Guimarães (2007), medidas como o Fies e o Prouni, bem como o Reuni, foram
desenvolvidas para reverter um quadro que se consolidara no período de 1995 a 2002, quando
o então presidente Fernando Henrique Cardoso implementou um modelo de expansão do ensino
superior pela via do ensino privado, que não teria sido eficaz em ampliar o número de estudantes,
gerando um grande número de vagas ociosas. Isso porque, entre outros problemas, o modelo esbar-
rava na dificuldade de incluir no ensino universitário privado uma população em idade universitária
cuja baixa renda não lhe permitia arcar com os custos das mensalidades (CAMPOS; DAFLON;
FERES JUNIOR, 2012, p. 405).

De um lado, passou-se a viabilizar o acesso destes jovens no ensino superior


privado por meio de financiamento ou bolsas, de outro lado, houve a expansão
de vagas no setor público. Acrescido disto, universidades estaduais e federais
passaram a adotar políticas de ações afirmativas por todo o país, definindo cri-
térios e procedimentos distintos, em sua maior parte favorecendo estudantes
provindos de escola pública, outra parte beneficiando setores associados a gru-
pos étnico-raciais específicos e uma grande parcela que conjuga critérios socio-
econômicos com étnico-raciais.
Embora o debate público privilegie a política de cotas em relação a popu-
lação negra, boa parte das instituições adotou também políticas de ação afir-
mativa de modalidades diferenciadas, no sentido de incluir indígenas no seus
quadros estudantis. Trata-se da possibilidade de formar indígenas de diferen-
tes etnias nos diversos cursos, correspondendo às demandas sociais que foram
geradas nas últimas décadas:

Barroso-Hoffmann (2005) explica que as demandas por ensino superior7 ganharam maior visibili-
dade quando deixaram de representar esforços individuais e passaram a ser associadas às neces-
sidades coletivas dos povos indígenas, seja por meio dos cursos de magistério superior voltados ao
atendimento das necessidades escolares das aldeias, seja por meio das demandas das organizações
indígenas, confrontadas com a necessidade de responder a um número crescente de responsabili-
dades ligadas à manutenção dos territórios indígenas, advindas com a demarcação de boa parte das
terras indígenas. Barroso-Hoffman e Lima (2006) e Silva (2006) acreditam que a busca pelo ensino
superior, para esses povos, é visualizada como mais um instrumental de resistência e construção de
novas relações com a sociedade (JODAS; KAWAKAMI, 2013, p. 29)

capítulo 5 • 155
Em 2010, tem-se a aprovação da Lei Federal nº 12.288, “conhecida como Estatuto
da Igualdade Racial, que oficialmente reconheceu o Brasil como um país multirra-
cial e multiétnico no qual as pessoas de descendência africana estiveram sujeitas à
discriminação racial” (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2012, p. 406):

Essa Lei definiu a discriminação racial e as ações afirmativas, afirmando o dever do Estado de pro-
mover a igualdade de oportunidades, bem como “a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-ra-
cial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira”. O Estatuto
previu ações afirmativas de corte étnico-racial na educação, cultura, esporte e lazer, saúde, seguran-
ça, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso a terra, à
justiça e a outros. A Lei ainda afirmou o direito ao suporte financeiro às comunidades remanescentes
de quilombos, à liberdade de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana, ins-
tituiu cotas mínimas de participação de atores, figurantes e técnicos negros na produção de filmes e
programas para veiculação no cinema e TV e o dever do Estado de promover a igualdade de opor-
tunidades em educação, emprego e moradia (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2012, p. 406).

A implementação das políticas de ações afirmativas nas universidades passou


a gerar polêmica, com posicionamentos contrários de alguns intelectuais e polí-
ticos. O partido Democratas levou a julgamento no Supremo Tribunal Federal a
inconstitucionalidade da adoção das cotas com base em critério racial na Univer-
sidade de Brasília (UnB), com reserva de vaga para negros, em ação empreendida
pelo partido político em 2009 que considerou que tal critério feria preceitos fun-
damentais da Constituição. Três anos depois a ação foi julgada do seguinte modo:

No final de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal declarou, por unanimidade, a constituciona-
lidade das cotas raciais nas universidades públicas do país ao rejeitar a Ação de Descumprimento
de Preceito Fundamental nº 186 proposta pelo partido Democratas. A ação pedia a declaração de
inconstitucionalidade do programa de ação afirmativa étnico-racial da Universidade de Brasília e a
extensão da decisão a todos os programas dessa natureza do país, sob a alegação de que essas
políticas feriam vários preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o princípio da não dis-
criminação, do repúdio ao racismo, da dignidade da pessoa humana (CAMPOS; DAFLON; FERES
JUNIOR, 2012, p. 406-407).

No mesmo ano, foi sancionada a Lei 12.711 pela presidenta Dilma Rousseff,
estabelecendo então critérios mais homogêneos para as políticas de ação afir-
mativa no sistema público federal:

156 • capítulo 5
Em agosto desse mesmo ano, a presidenta Dilma sancionou a Lei Federal nº 12.711/2012, que
instituiu reserva de 50 % das vagas nas universidades federais do país, com percentuais para negros
e indígenas na proporção da população de cada estado. Às vésperas da sanção presidencial a essa
lei, 64% dessas universidades já tinham algum tipo de ação afirmativa. Se computadas as federais e
estaduais, esse percentual subia para mais de 71% das universidades públicas brasileiras. Mais de
57% das universidades com ação afirmativa tinham programas para estudantes negros, e mais de
51%, para indígenas (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2012, p. 407).

5.3  As críticas e impasses das políticas de ação afirmativa

A implementação das políticas de ação afirmativa no Brasil acompanharam


uma série de críticas, parte delas na esfera acadêmica e outra parte, mais persis-
tente e influente, nos veículos dos meios de comunicação. Parte das resistências
baseou-se no pressuposto de que reconhecer a existência de “raças” na esfera pú-
blica recrudesceria o racismo. Em outras palavras, há setores que defendem há
mais de década a ideia na qual as políticas públicas não podem ser orientadas no
sentido de “induzir” os sujeitos a se identificarem com identidades raciais, cor-
rendo o risco de se “racializar” o país, tensionando as relações sociais.
Outro argumento usado, muitas vezes articulado ao primeiro, baseia-se na
ideia de que a utilização de tais políticas feririam a forma dos brasileiros pen-
sarem as relações raciais a partir do “mito de democracia racial”, o qual muitas
vezes supostamente atenua possíveis conflitos raciais. Por fim, outra crítica co-
mum é a dificuldade de mensuração daqueles que são brancos ou negros em
uma realidade populacional marcada pela miscigenação. De forma geral, os
setores contrários à política de ação afirmativa não negam a existência do ra-
cismo e das desigualdades no país, mas defendem que estes devem ser comba-
tidos a partir de políticas universalistas, ou seja, políticas de educação, saúde,
transporte, habitação que não se baseiam no foco a determinados grupos.
Já abordamos os autores que demonstram a existência de desigualdades
raciais no país, em perspectivas que se opõem a estas visões, demonstrando
como a racialização é constituinte da sociedade brasileira, promovendo e per-
petuando a desigualdade, o que demanda soluções específicas, para além das
políticas universalistas. Para além destes argumentos já abordados, é pos-
sível discutir o enquadramento reducionista no qual se faz a discussão das
políticas de ação afirmativa no país. Importante observar que embora as críti-

capítulo 5 • 157
cas persistem como predominantes nos grandes veículos de comunicação, as
universidades já adotaram tais políticas a partir de deliberações internas com
base na autonomia universitária. É preciso considerar que a persistência da
crítica se relaciona com o fato de que:

A representação do debate atual sobre as políticas de ação afirmativa feita pela grande mídia brasi-
leira opera segundo critérios de noticiabilidade jornalística que frequentemente elegem alguns casos
específicos, em regra os mais polêmicos, apresentando-os para o público leitor como paradigmáti-
cos. (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2011, p. 62).

Em especial, veicula-se na mídia o caso específico da UnB, no qual há comis-


sões de verificação racial, gerando o caso polêmico entre os dois irmãos gême-
os univitelinos que resultou em um sendo aceito como negro e outro não. As-
sim, “o jornal inúmeras vezes oferece espaço para textos que associam a noção
de ação afirmativa ao que é chamado de ‘tribunal racial’, expressão utilizada
para julgar – e desqualificar – as comissões de verificação” (CAMPOS; DAFLON;
FERES JUNIOR, 2011, p. 69). No entanto, é:

importante notar que a utilização de comissões de verificação racial e/ou de fotografia como me-
canismo de homologação dos candidatos às ações afirmativas raciais está presente num número
mínimo de universidades, o que nos leva a crer que a UnB é muito mais uma exceção do que um
exemplo generalizável ou uma tendência a se chamar a atenção. Se verificarmos a quantidade de
programas de ação afirmativa de recorte étnico-racial que usam fotografias ou comissões de verifi-
cação, veremos que ela é francamente minoritária: 15,5%. A maioria dos programas (82,2%) usa o
critério da autodeclaração [...].(CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2011, p. 62).

Embora tais questões sejam passíveis de discussão para o aprimoramento


das políticas, trata-se na visão dos autores de um argumento enviesado, posto
que deslegitima as políticas de ação afirmativa de forma abrangente a partir de
um caso minoritário. Na análise das matérias voltadas à temática do jornal O
Globo percebe-se o privilégio destas questões mais polêmicas e não representa-
tivas, enquanto outros casos e modalidades não são abordados. De outro lado,
há um foco na questão das cotas raciais, e os veículos midiáticos ignoram as
políticas de ação afirmativa que não são cotas para negros, não revelando que:

158 • capítulo 5
A modalidade que é de longe a mais praticada beneficia alunos oriundos da escola pública e pode ser
considerada um tipo de ação afirmativa “social”. Esse dado coloca em xeque dois argumentos muito
mencionados nos textos publicados em O Globo. Primeiro, a alegação de que as ações afirmativas, ao
se centrarem na questão racial, desconsideram o problema da desigualdade socioeconômica no Brasil.
Esse argumento é falacioso, pois há ações afirmativas que atendem tanto a grupos sociais como étni-
co-raciais. E segundo, que as ações afirmativas excluem os brancos pobres. Ora, os brancos pobres são
de fato os maiores beneficiários dessas políticas, como demonstra a predominância de programas para
alunos oriundos das escolas públicas. (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2011, p. 71).

Como vimos, o sistema federal, a partir da Lei 12.711, sancionada pela pre-
sidenta Dilma Rousseff em 2012, estabelece cotas de 50% para alunos de baixa
renda que cursaram o ensino médio em escolas públicas, com percentual de
vagas para alunos negros e indígenas de acordo com sua proporção na popula-
ção do estado no último recenseamento do IBGE. Neste sentido, há uma articu-
lação entre aspectos socioeconômicos e raciais. Assim, também se rebate uma
crítica frequente na imprensa de que se a política de ação afirmativa no ensino
superior beneficiaria uma elite ou classe média negra, destacando que:

a quase totalidade dos programas de cotas para negros em vigor – 90% para ser mais exato – exigem
que os candidatos negros sejam oriundos da escola pública, que já funciona como um controle do
seu nível de renda, ou possuam uma renda-limite, ou ainda que atendam aos dois critérios. Em outras
palavras, apenas 10% dos programas que têm ações afirmativas raciais não estabelecem qualquer pa-
râmetro socioeconômico para a entrada de candidatos negros (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR,
2011, p. 73).

Por último, mas não menos importante, os autores revelam uma predominân-
cia de textos contrários a ações afirmativas raciais com base no argumento de que
elas são consequência direta do aparelhamento do Estado pelos movimentos so-
ciais, dos quais discordam com base no argumento de que:

Tal perspectiva, porém, desconsidera que as ações afirmativas começaram a ser implantadas em uni-
versidades estaduais e que as federais demoraram alguns anos a aderir a esses programas, ainda que
o tenham feito de maneira progressiva[...]. Além disso, quase metade dos programas de ação afirmativa
hoje em vigor estão em universidades estaduais, que devido à autonomia universitária não podem ser
objeto de legislação federal negros (CAMPOS; DAFLON; FERES JUNIOR, 2011, p. 79).

capítulo 5 • 159
Como vimos, as políticas de ação afirmativa surgiram no Brasil como
fruto de um processo de mobilização política de longa data, tendo como
partícipe importante o movimento negro, sua discussão fomentada pelo
governo federal desde os anos 1990, a implementação pioneira de algumas
universidades públicas, o apoio de governos estaduais e, por fim, o apoio
efetivo do governo federal que alcançou o ápice na Lei 12.711 de 2012 que
regulamenta o sistema de cotas no ensino superior federal.
O quadro atual é marcado por modelos distintos, os quais alcançam êxi-
tos, enfrentam desafios e apresentam problemas. São várias as pesquisas que
focam diversos aspectos da implementação dessas ações no Brasil, seus mo-
delos, a questão da permanência, as possíveis críticas, fomentando assim a
possibilidade de aprimoramento. Como sabemos, as mudanças não são fáceis
e, a despeito das transformações que acompanhamos neste capítulo, ainda é
persistente o “mito de democracia racial”, mesmo com seu descrédito teórico
e com políticas bem sucedidas no intuito de combatê-lo. Trata-se de uma longa
jornada que aos poucos está conseguindo mudar a forma como o Brasil pensa
suas relações étnico-raciais e estrutura suas desigualdades raciais.

ATIVIDADE
1. Procure em algum site de busca acadêmico na Internet (por exemplo, o google acadêmi-
co) por algum texto sobre a Conferência de Durban e faça uma redação sobre quais foram
as diretrizes e os compromissos firmados entre os Estados presentes naquela ocasião.

2. Que mudanças você percebe entre a compreensão da diversidade étnico-racial no Bra-


sil dos anos 1930 aos anos 2000 em diante?

3. Procure em algum site de busca acadêmico na Internet (por exemplo, o google aca-
dêmico) por algum texto sobre a ECO-92 e faça uma redação sobre quais foram as
diretrizes e os compromissos firmados entre os Estados presentes naquela ocasião. Em
especial, destaque o que se relaciona com os povos indígenas.

4. Quais os objetivos das leis 10.639 e 11.645?

5. Redija um texto a respeito de todo o processo no qual as políticas de ação afirmativa


entraram na pauta da política brasileira até chegarem a ser implementadas.

160 • capítulo 5
6. Quais são as críticas que se apresentam em relação à política de ação afirmativa? Como
seus defensores a respondem?

REFLEXÃO
Neste capítulo, refletimos sobre uma série de mudanças nas relações étnico-raciais brasilei-
ras a partir da implementação de políticas públicas voltadas ao reconhecimento da diversi-
dade étnico-racial e de combate ao preconceito e discriminações raciais. Reflita sobre o que
você aprendeu sobre as políticas de ação afirmativa. O que você sabe agora difere muito do
que sabia antes da leitura do capítulo? Por quê? Quais os impactos positivos que a presença
de indígenas nos campi universitários pode levar às aldeias de diversas etnias? Como as
políticas de ação afirmativa afetam nas desigualdades entre negros e brancos no país?

LEITURA RECOMENDADA
Consulte o sítio do Instituto Socioambiental para obter informações atualizadas sobre a pro-
blemática dos povos indígenas em www.socioambiental.org. Sobre a problemática da educa-
ção indígena no Brasil leia: Experiências e Desafios na Formação de Professores Indígenas
no Brasil de Luís Donisete Benzi Grupioni, disponível em: http://rbep.inep.gov.br/index.php/
emaberto/article/viewFile/1155/1054. Sobre a temática das políticas de ação afirmativa, leia
o texto Há algo novo a se dizer sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo?, de
Valter Silvério e Cristina Trinidad, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v33n120/13.pdf.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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JODAS, Juliana; KAWAKAMI, Érica. Políticas de ação afirmativa no Ensino Superior Brasileiro
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MEDEIROS, Priscila ; VIEIRA, Paulo. Ação Afirmativa no Brasil e no mundo: notas para um
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162 • capítulo 5

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