Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

O eclipse do progressismo: a esquerda latino-americana em debate
O eclipse do progressismo: a esquerda latino-americana em debate
O eclipse do progressismo: a esquerda latino-americana em debate
Ebook269 pages6 hours

O eclipse do progressismo: a esquerda latino-americana em debate

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

Quase duas décadas depois, a onda de governos progressistas na América Latina está sendo revertida. Já vai longe na memória o tempo em que as cúpulas de chefes de Estado da região se transformavam em verdadeiras odes à integração, com direito a ponchos e canções revolucionárias, e em que George W. Bush e a Área de Livre Comércio das Américas foram rechaçados pela maioria dos presidentes latino-americanos. Nesse período, a União de Nações Sul-Americanas se fortaleceu como espaço de concertação política continental; o Mercosul ganhou corpo com a entrada da Venezuela; e criou-se o primeiro organismo de diálogo hemisférico com a participação de Cuba e sem a presença dos Estados Unidos e do Canadá, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos.
A virada do século havia inundado de esperança os movimentos sociais e os partidos de esquerda. A vitória de Hugo Chávez, a potência aglutinadora do Fórum Social Mundial e, logo depois, os sucessivos triunfos eleitorais em praticamente toda a América do Sul e em alguns países centro-americanos sinalizavam que chegara o momento da "grande transformação". Os artigos compilados neste livro, porém, mostram que, depois de tudo, o processo deixou muito a desejar àqueles que reivindicavam mudanças estruturais na realidade política, social, econômica e cultural da região.
Pouco a pouco, as forças conservadoras — que jamais deixaram de exercer o poder de fato em áreas que dominam historicamente, como a mídia, a Justiça e as finanças — vêm retomando os espaços que haviam perdido. Após anos de uma oposição inclemente e de uma incessante campanha difamatória, que floresceu a partir de numerosas denúncias de corrupção, já recuperaram alguns governos, seja pela via eleitoral, como na Argentina, seja por meio de golpes de Estado jurídico-parlamentares: primeiro em Honduras, em 2009, depois no Paraguai, em 2012, e então no Brasil, em 2016. E rapidamente vêm desfazendo avanços das últimas décadas. Com a exceção do Uruguai, os governos progressistas que se mantêm no poder enfrentam crises agudas, como na Venezuela, ou acumulam reveses, caso da Bolívia.
LanguagePortuguês
Release dateApr 10, 2020
ISBN9786599014147
O eclipse do progressismo: a esquerda latino-americana em debate

Related to O eclipse do progressismo

Related ebooks

Politics For You

View More

Related articles

Related categories

Reviews for O eclipse do progressismo

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    O eclipse do progressismo - Emilio Horacio Taddei

    autores

    Introdução

    A esquerda latino-americana no

    turbilhão das mudanças globais

    A América Latina atravessa um período de impasses e grandes turbulências, em parte pela dinâmica interna de seus países, em parte como consequência de sua forma particular de inserção no mercado mundial e na cadeia de dominação global capitalista.

    A região conheceu, nos anos dourados da globalização neoliberal, entre 1999 e 2008, um ciclo de governos progressistas, entre os quais se encontravam casos tão distintos como os de Hugo Chávez na Venezuela, Néstor Kirchner na Argentina e Lula no Brasil, que chegaram à presidência graças às lutas populares ocorridas no período anterior contra as chamadas políticas de ajuste, como privatizações, abertura econômica e austeridade fiscal, que enquadravam estes países na ordem financeirizada do neoliberalismo. Suas economias alcançaram então altas taxas de crescimento, integrando-se à divisão internacional do trabalho como fornecedores de matérias-primas para o boom industrial do capitalismo chinês, o que lhes garantiu recursos para importantes políticas redistributivas, além da integração de amplas parcelas da população aos mercados de consumo. Para a esquerda, acuada em várias partes do mundo — e que teve apenas um breve alento com a explosão do altermundialismo, entre 1999 e 2001 —, o progressismo sul-americano surgia como uma referência a ser reivindicada.

    Agora, os efeitos da etapa aberta pela crise global de 2008 — que, por outras partes, abalam as políticas (neo)liberais e fortalecem os nacionalismos xenófobos e conservadores, como o proposto por Donald Trump nos Estados Unidos — golpeiam de forma duradoura as economias da região, resultando em baixas taxas de crescimento ou recessões, e produzindo ondas de choque que derrubam muitos governos progressistas pelo continente. Golpes de Estado, efetivados não por militares, mas por parlamentos conservadores, retiraram do poder presidentes democraticamente eleitos em Honduras, Paraguai e Brasil. Governos ligados à Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) são colocados contra a parede, como no Equador, ou padecem crises profundas, como na Venezuela. Partidos de esquerda então vitoriosos perdem eleições e dão lugar a governos abertamente privatistas e neoliberais, como o de Mauricio Macri na Argentina. As populações do continente estão sendo atiradas, sem mecanismos de amortecimento, no turbilhão das mudanças globais que marcam o esgotamento do neoliberalismo cosmopolita, e que parece arrastar consigo o progressismo.

    Alternância de ciclos

    A dinâmica da América Latina sempre foi marcada pelas vicissitudes do capitalismo global. Integrada ao mercado mundial na condição de colônia, no século xvi, em um processo que produziu o maior genocídio da história humana, a região foi reformatada para transferir riquezas para suas metrópoles ibéricas. Nas disputas europeias pela hegemonia mundial, durante a passagem para o capitalismo industrial, entre 1776 e 1815, a maior parte do continente adquiriu independência política, mas não autonomia frente à divisão internacional do trabalho doravante modulada pelo imperialismo inglês: a condição colonial ganhava novas formas na globalização liberal do longo século xix. Os ciclos de expansão ou estagnação da economia liberal tendiam a ser acompanhados de expansão ou contração das economias exportadoras da região. Manifestações de autonomia, como a Revolução Haitiana de 1791, que inaugurou os processos de emancipação na região, e a Revolução Mexicana de 1910, no final dessa era, foram a exceção e não a regra.

    Todavia, a crise capitalista que gerou, no século xx, duas guerras mundiais, entremeadas pelo crack de 1929 e pela Grande Depressão, também encerrou a globalização liberal do século xix e criou a oportunidade para que os países latino-americanos expandissem sua autonomia perante o mercado mundial em retração, encaminhando projetos nacional-desenvolvimentistas. Os anos dourados do capitalismo fordista-keynesiano foram também os anos que carregaram na região as promessas, materializadas de forma muito diferente de país para país, de modernização, industrialização, urbanização acelerada, fim das tutelas externas e melhoria das condições de vida. Os pactos populistas incorporaram as populações das cidades na vida política, embora quase nunca abarcassem as populações rurais e os povos originários. Ao contrário, aceleravam por toda parte a destruição de suas culturas, modos de vida e vínculos comunitários.

    Foi nesse marco que se deu o principal ciclo político de esquerda que, originado da Revolução Cubana de 1959, atingiu todo o continente, passando pelos movimentos de 1968 e pelo governo da Unidade Popular de Salvador Allende, no Chile, até chegar à Revolução Sandinista de 1979 na Nicarágua. Esta época também assistiu ao último ciclo de ditaduras militares, que se mantinham no poder sob o pretexto de livrar a região da ameaça comunista ou, simplesmente, da radicalização do populismo.

    O capitalismo mundial transitava, na virada para a década de 1980, para uma nova globalização, agora neoliberal — emblematicamente alavancada pelos governos Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, no Reino Unido, em um processo que se tornaria avassalador com o colapso da União Soviética e a formação da Organização Mundial de Comércio (omc). Esta globalização terminaria por enquadrar os países da região aos ditames diretos do novo capitalismo global financeirizado, destruindo boa parte da autonomia (relativa) obtida pelos países da região no período nacional-desenvolvimentista (ou populista). Os anos 1980 mergulharam a América Latina no Consenso de Washington e na década perdida das políticas de austeridade. Os movimentos revolucionários centro-americanos refluíram e encontraram seu final melancólico na derrota da Frente Sandinista de Libertação Nacional eleitoral em 1990. Neste ano, o Brasil de Fernando Collor levantou as barreiras alfandegárias que protegiam suas indústrias e, em 1994, o México do presidente Salinas de Gortari foi praticamente anexado aos Estados Unidos com a assinatura do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês).

    O neoliberalismo e o

    ciclo progressista

    O neoliberalismo foi, para alguns analistas, inaugurado mundialmente pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile, entre 1973 e 1990, promovendo uma profunda mutação societária no continente. A generalização das relações de mercado não só aprofundou o caráter destrutivo das relações comunitárias promovido pelo desenvolvimentismo, como também desmontou boa parte dos mecanismos de proteção estabelecidos no período do nacional-capitalismo — ou do fordismo-keynesianismo. O neoliberalismo buscou reinserir a região na economia globalizada na condição de fornecedor de matérias-primas, revertendo os processos de industrialização ao mesmo tempo em que aprofundava a urbanização e promovia uma forte concentração de renda. Os povos que entre as décadas de 1930 e 1980 lutaram para adquirir cidadania eram agora reduzidos à condição de massas de consumidores.

    Mas os governos neoliberais, que só ofereciam para suas populações novas mercadorias a serem consumidas, enfrentaram muitas resistências — sociais, indígenas, comunitárias e nacionais. Entre o caracazo de 1989 e o cacerolazo (ou argentinazo) de 2001, múltiplos atores saíram às ruas, inclusive setores tradicionalmente ignorados pela esquerda, reforçando partidos e lideranças políticas que se opunham às políticas globalizantes.

    Em consequência, muitos governos que são em geral colocados no campo do progressismo foram eleitos na virada para o século xxi: Chávez vence as eleições venezuelanas em 1998 e inicia uma reforma constitucional do país; Kirchner e Lula são eleitos na Argentina e no Brasil em 2002; Tabaré Vázquez se torna presidente do Uruguai em 2005; Evo Morales, da Bolívia, em 2005; Rafael Correa, do Equador, e Michelle Bachelet, do Chile, em 2006; Fernando Lugo, do Paraguai, em 2008. O processo atinge também a América Central com a eleição de Daniel Ortega, da Nicarágua, em 2006, e de Mauricio Funes, de El Salvador, em 2009. Estes governos foram polarizados por perspectivas muito diferentes: enquanto Lula, por exemplo, trabalhava um projeto de conciliação de classes, prometendo tanto benefícios para os oprimidos e marginalizados como maiores ganhos aos empresários, Chávez sustentava a construção de um socialismo do século xxi e a unificação da Pátria Grande latino-americana em contraposição ao imperialismo de Washington. Todavia, de conjunto, constituíram uma maré rosa na política da região.

    O progressismo latino-americano prometeu realizar uma muito esperada democratização de sociedades conservadoras, marcadas por autoritarismo, desigualdades e injustiças sociais. Promoveu, em seus governos, iniciativas redistributivas, com avanços no campo social, na promoção de direitos e no combate às diversas formas de opressão. Um movimento constitucionalista seguiu os passos de Chávez no Equador e na Bolívia, países onde o protagonismo indígena ganhou força, popularizando conceitos como o Bem Viver e a plurinacionalidade. O progressismo foi capaz de bloquear a implantação da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), uma iniciativa dos Estados Unidos para estender a anexação econômica do México a todo o continente, e deu um novo alento aos processos de integração regional, lançados pelo Mercosul, com a formação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Alba. No auge do neoliberalismo, o Brasil, respaldado pelos governos progressistas da região, ensaiava até mesmo reconfigurar os alinhamentos geopolíticos globais por meio do brics (grupo formado pelas chamadas potências emergentes: Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul) e do g-20, que reúne as vinte maiores economias do mundo.

    No entanto, este progressismo demonstrou dois limites práticos bastante discutidos nos textos deste volume. De um lado, tais governos não foram capazes de promover mudanças estruturais nas economias de seus países. Mesmo em seu apogeu, beneficiando-se de uma conjuntura internacional que conferiu altos preços às commodities, persistiram no caminho que leva à inserção passiva na economia global e estimularam os setores extrativistas e primário-exportadores, em sintonia com a demanda de matérias-primas das economias asiáticas. Em vários casos, como o do Brasil, estimulou-se uma reprimarização da economia exportadora, que financiava seus projetos sociais. Chocaram-se com as demandas das populações indígenas e tradicionais e dos movimentos ambientais, que defendiam os territórios cobiçados por essas atividades. Foram, como resultado, incapazes de se contrapor aos efeitos da reversão do quadro econômico global, que reduziram as taxas de crescimento da economia mundial e chinesa e provocaram uma queda no preço das commodities — em exemplos típicos da dependência, no passado tão debatida pelo nacionalismo de esquerda do continente, mas hoje praticamente ignorada.

    Por outro lado, os partidos e movimentos progressistas, alimentando-se do protagonismo dos explorados e dos oprimidos, não alicerçaram seus governos com vistas a promover formas de auto-organização popular — embora grandes enfrentamentos tenham se dado, em um certo período, principalmente na Venezuela e na Bolívia. Promoveram a integração ao mercado e não o desenvolvimento de uma consciência política cidadã. Em consequência, tiveram de estabelecer pactos de governabilidade conservadora através de alianças com setores das velhas oligarquias, de raiz agrária ou extrativista, ou ainda com grupos conservadores — o pensador Eduardo Gudynas fala, a propósito, de um progressismo canibal, em que estas correntes impulsionam forças sociais que tendiam a se realinhar com o neoliberalismo e a contestar seu poder. Os governos progressistas se instalaram, além disso, em uma lógica de autoperpetuação no poder, gerando processos de corrupção e burocratização — mais evidentes, por lógicas diferentes, no Brasil, na Venezuela e na Nicarágua — em tudo opostos ao aprofundamento de uma democracia participativa e de alta intensidade.

    Subjacente, como explicação mas não justificação, pode-se avaliar que, tendo surgido no quadro posterior ao colapso da União Soviética, o progressismo não apresentou um horizonte de ruptura com o capitalismo global financeirizado, não representou um projeto de natureza antissistêmica. Mesmo as propostas de Chávez e seu socialismo do século xxi, as mais radicais nesse processo, não formularam esse horizonte. E, ao não avançarem nessa direção, aceitando tacitamente os marcos globais do capitalismo neoliberal, solaparam a própria sobrevivência.

    Assim, embora tenha propiciado ganhos sociais para os setores populares ao estimular por toda parte o consumismo, o progressismo não conseguiu em lugar algum transformar de maneira duradoura a economia ou impulsionar a consciência política. E tampouco construiu um horizonte de futuro.

    Crise duradoura,

    recomposição estrutural

    A combinação de recessão econômica e crises políticas levou ao esgotamento do ciclo político que, depois de 1999, conduziu partidos progressistas aos governos na maioria dos países do continente. Estas transformações parecem ser parte de uma mudança de etapa global da ordem capitalista: depois de um período de forte expansão, a economia mundial entrou em uma fase de estagnação que parece estrutural, e não conjuntural. As reações sociais massivas depois de 2011 não afirmaram uma saída progressiva para esta situação, e a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, além da saída do Reino Unido da União Europeia, sinalizam que um nacionalismo xenófobo ganha força frente aos impasses estruturais da globalização neoliberal. A crise global se afigura prolongada, e tudo indica que a forma como a viveremos em nossos países também o será.

    Abriu-se para a esquerda latino-americana um período de recomposição onde o balanço da experiência dos governos progressistas ocupa um lugar central. A estratégia aplicada foi, de conjunto, correta, e os problemas foram mais localizados, ou, ao contrário, tratou-se de uma estratégia equivocada? Quais são os pontos de apoio para as lutas de resistência contra a aplicação de políticas ultraliberais que a direita está tentando — e conseguindo — aplicar? Quais alternativas propomos? Como combinar as lutas de resistência em curso e a experimentação dessas alternativas?

    Para mapear a conjuntura crítica que atravessa o continente, os traços comuns e os particulares da situação de cada país, e discutir as perspectivas da esquerda na região, foi organizado, durante o Fórum Social Mundial de 2016, em Montreal, no Canadá, o seminário América Latina hoje: uma avaliação crítica sobre a esquerda e os governos progressistas. Uma continuidade do debate ocorreu em Porto Alegre, em janeiro de 2017, durante o Fórum Social das Resistências. Os textos reunidos nesta publicação correspondem a algumas das apresentações feitas nessas atividades, e buscam servir de subsídio para discussões subsequentes acerca do futuro da esquerda na América Latina.

    Relegitimação da

    governabilidade

    neoliberal, resistências

    populares e desafios emancipatórios

    na Argentina e em

    Nossa América

    Emilio Horacio Taddei

    Na segunda metade da década de 2010, diferentes fatos de natureza política ocorridos na região sul-americana tiveram uma forte incidência regional e agitaram o debate político em nossas nações. Quatro deles se deram em países identificados com as chamadas experiências de mudança ou progressistas na América Latina. Referimo-nos às eleições presidenciais argentinas e ao início de uma nova gestão governamental neoliberal do presidente Mauricio Macri, entre novembro e dezembro de 2015; e, imediatamente depois, à derrota eleitoral legislativa do governo venezuelano, que deu novo impulso às pressões destituintes da oposição, exigindo a convocação de um referendo revogatório. Os opositores também redobraram os esforços diplomáticos contra o governo de Nicolás Maduro. A crise política venezuelana se expressa ainda no acirramento dos problemas sociais, em particular, sob a forma da escassez de alimentos. Em fevereiro de 2016, viu-se a estreita derrota do governo boliviano no referendo constitucional que consultava a população sobre a possibilidade de um terceiro mandato presidencial: 51% votou não contra 49% que optou pelo sim. Em 22 de maio, consolidou-se no Brasil o golpe de Estado parlamentar e midiático contra o governo da presidenta Dilma Rousseff, por meio da votação de um impeachment promovido por numerosos legisladores envolvidos em atos de corrupção. Este infeliz acontecimento coroou o longo ciclo de desestabilização política iniciado com o segundo mandato da petista.

    Certamente, as repercussões imediatas de todos esses fatos não são equiparáveis, e tampouco o são suas inscrições institucionais. Os fatos argentinos e brasileiros provocaram mudanças governamentais em favor de administrações com claro viés neoliberal — legal, no primeiro caso, e ilegítimo no segundo. Esta observação permite distinguir os fatos que ocorreram na Bolívia e na Venezuela, onde os tropeções eleitorais dos respectivos governos agudizam as indagações sobre o futuro dessas experiências.

    Para além de suas especificidades e desfechos, estes quatro acontecimentos, no entanto, amplificaram o debate — e os balanços — sobre o rumo do ciclo político progressista ou de mudança na América do Sul e sua eventual extinção. Não se trata, a rigor, de uma questão nova, menos ainda para o campo das esquerdas e das forças populares. São debates, controvérsias e intercâmbios surgidos há alguns anos, quando apareceram sinais do enfraquecimento do potencial transformador e democratizante dessas experiências. No âmbito destas controvérsias e debates, diferentes organizações, coletivos e intelectuais que acompanharam criticamente o rumo dos governos progressistas ressaltaram seus aspectos fundamentais: as limitações na remoção das características-chave da estrutura jurídico-normativa neoliberal; o aprofundamento do modelo extrativista-explorador e seus efeitos de mercantilização; a dificuldade em superar uma matriz produtiva que reproduz as condições de dependência histórico-estrutural da região; e as reticências na concretização de reformas democráticas mais radicais e duradouras. Ainda nesse contexto foram apontados os avanços, os bloqueios e os limites dos processos de integração regional, o papel das políticas sociais na legitimação desses governos, a relação sistêmica existente entre as lógicas de mercantilização caraterísticas do capitalismo extrativista e a matriz de corrupção política do sistema de poder, entre outras questões.

    Tais debates adquirem uma importância renovada e decisiva no momento em que as revitalizadas forças da reação conservadora proclamam um novo fim de ciclo. A intencionalidade atribuída por esses grupos a esta referência não pode nos levar a equívocos, pois mostra a pretensão de legitimar e naturalizar o fechamento de toda e qualquer expectativa de mudança social — no que parece ser uma versão renovada e, aliás, mais desvalorizada das predições do fim da história dos anos 1990. Trata-se, uma vez mais, de proclamar a consagração da racionalidade neoliberal como guia da ação e do comportamento individual e coletivo. Por sinal, esta intencionalidade não opera num vazio material e ideológico. Seu sentido lógico, a

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1