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um prelúdio
Entrevistas com críticos e curadores de arte selecionados
por Paulo Sergio Duarte
Rio de Janeiro, maio a julho de 2008
Silvia Roesler,
Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2008
arte brasileira contemporânea
um prelúdio
sumário
créditos
Projeto e proponente
Instituto Cultural PLAJAP/ Jacqueline Plass
Projeto, coordenação e edição
Silvia Roesler Edições de Arte
Projeto gráfico
eg.design
Edição de textos
Paulo Sergio Duarte e Fernanda Lopes
Revisão e padronização
Alexandra Bertola
Versão para o inglês
Steve Yolen e Peter Warner
Transcrição das fitas gravadas
Vania Chalfum Gomes de Almeida e
Margaret Bugarin Mansur
Transcrição para a entrevista de Ronaldo Brito
Danielle Prado e Reynaldo Picozzi
Produção do CDRom
CDA Produção Gráfica e Digital
Glória Ferreira
Entrevista realizada por Paulo Sergio Duarte
PAULO SERGIO DUARTE_ Obrigado por nos receber em sua casa para essa entrevista. Gostaria de
começar pela pergunta: como você vê, do seu ponto de vista, como se dá essa passagem do moderno ao
contemporâneo? Você pode desdobrar como quiser nas características dessa arte contemporânea. Em
termos gerais você pode encaixá-lo no Brasil.
GLÓRIA FERREIRA_ Está certo. Sobre a passagem da arte moderna para a contemporânea, talvez uma
das primeiras coisas que fique é que se inverteu o modo de leitura da História da Arte, porque em geral
se fala do moderno ao contemporâneo, do clássico ao moderno. Talvez a arte contemporânea tenha
introduzido a idéia do contemporâneo ao moderno, ou seja, essa possibilidade de releitura. A meu ver a
presença hoje da arte moderna, sobretudo os anos 60 a 70, essa presença da arte moderna foi a presença
de uma releitura, que fez uma revisão dessa arte moderna, quer seja nos seus elementos recalcados, quer
seja na sua historiografia, quer dizer, no discurso de apresentação da arte moderna. O artista inglês Neil
Rollinson fala do colapso nervoso do modernismo. De certa maneira, se pensarmos na década de 1950 há
certo colapso, esse discurso entra em colapso. Talvez um colapso, se pensarmos em certas áreas, sobre-
tudo, de atuação. Colapso também dessas propostas artísticas, nessa revisão, nessa relação com outras
questões que estavam surgindo, como, por exemplo, a questão da imagem.
Se pensarmos no Brasil, a meu ver, essa releitura da arte moderna vai ser fundamental exatamente
numa constituição de um solo contemporâneo com o neoconcretismo. Uma leitura, vamos dizer, que
possa ser extremamente sofisticada em várias áreas e também deficitária em outras. Se pensarmos a
leitura que é feita pelo Ferreira Gullar ou mesmo pelo Hélio Oiticica ou pelo Mário Pedrosa, etc. de uma
tradição construtiva, uma leitura extremamente sofisticada e que aporta, que entende de outra maneira.
No entanto, na “Teoria do não-objeto” você fala do Duchamp como uma blague. Há esse descompasso
que, talvez em cada uma dessas releituras, vai ocorrer.
Toda a discussão do moderno e do pós-moderno foi importante na medida em que direcionou cer-
tos critérios, certas questões. Terminou sendo uma discussão muito marcada sobre talvez uma diferença,
sem compreender esse tipo de passagem que, a meu ver, se faz presente no início da arte contemporâ-
nea. Porque se pensar em relação à questão do moderno, e eu estaria com um crítico como Thierry de
Duve, dessa idéia, dessas inúmeras rupturas, mas rupturas de convenções, etc. A arte contemporânea
PSD_ Quais referências o leigo poderia tomar para ele se nortear de uma passagem do moderno para o
contemporâneo? Ou seja, interesses conceituais, seja em termos práticos, ele olharia um acervo e pode-
ria detectar uma mudança, uma passagem?
GF_ Podemos, por exemplo, entrar em uma exposição, como a exposição Arte como questão - Anos 70, da
qual fui curadora, apresentada recentemente no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Tinha trabalhos
com prego, fotocópia, tinha madeira, brita, filme. Já daí, já essa presença de materiais os mais diversos,
artísticos ou não que fizeram parte, indicam uma maneira de pensar uma formalização. Você não está
em um campo, digamos, estritamente da pintura, embora houvesse pintura, ou de uma escultura. Talvez
seja essa uma diferença, a meu ver, de uma formalização que já não se dá com um controle sobre o ma-
terial, mas, ao contrário, incorporando as significações dos vários elementos. Outro que vê a relação que
essa obra vai procurar com o espaço onde ela se inscreve, que não é uma obra que possa ter as mesmas
características se deslocando daqui para ali. Talvez adquira no contexto em que ela está.
Uma grande dificuldade, também, para um leigo enfrentar a arte contemporânea ou mesmo uma
arte começou pela própria constituição de uma disciplina da historiografia, da história da arte, etc. Como
se você não pudesse compreender ou se relacionar com aquela obra sem esse conhecimento da história
da arte. Evidentemente que um conhecimento talvez permita a você ver mais. Em minha opinião, muito
dessa dificuldade da relação com a arte contemporânea vem de um pressuposto meio ideológico que
você tem que ter esse conhecimento, que você tem de adquirir essas passagens todas para entender qual
é esse desdobramento. Talvez uma das marcas da arte contemporânea, particularmente na sua saída da
galeria, na sua saída do museu buscando outro contato com o público, quer seja na cidade, quer seja em
outros espaços, foi tentar quebrar esse tipo de relação, fazendo com que a obra, por si só, possa suscitar,
estabelecer uma relação de outra ordem com o público. E não mais dizer que você teria que compreender
uma passagem do impressionismo para o cubismo, do cubismo para isso, para aquilo outro.
Essa tentativa está presente, embora ela faça face a esse discurso ideológico. Você fala com uma
pessoa que não é do meio da arte, ela diz logo: “Não entendo”. A meu ver, é verdade que, se conhecer,
entende melhor, mas se a obra fosse só para pessoas que conhecessem, ela seria muito pobre. E ela
perderia muito se pretendesse se dirigir para os eruditos na área.
PSD_ Como você está vendo agora a arte contemporânea em geral? Você vê as particularidades do Brasil?
Como você está vendo agora, na atualidade, a situação da arte contemporânea? Você vê diferença em
relação a essa arte da década de 1970? Quais seriam essas diferenças?
GF_ Uma diferença importante em relação aos anos 70 é uma perda de uma utopia, quer dizer uma perda
da idéia de alguma coisa dirigindo, hoje voltado mais para microatuações, uma possibilidade de interfe-
rência e que eu acho interessante. É bacana.
Outro elemento que fala muito dessa extrema presença da imagem na sociedade, podemos dizer
PSD_ Você acha que o papel do mercado mudou muito e uma relação entre o mercado e arte contem-
porânea hoje tem uma diferença muito grande em relação aos anos 60 e 70, início desse período que
estamos chamando de contemporaneidade? Se você acha que existe uma interferência do mercado.
Essa mudança da dimensão e da escala do mercado, se é que você concorda com isso, ela interferiria na
própria produção, ou seja, seria um agente dessa produção, determinando certas ofertas em função de
certas demandas?
GF_ Eu não veria como um agente que interferiria na qualidade da produção, mas vejo como um dado
presente e constitutivo da produção. Só se nós formos pensar um pouco em termos históricos, a rela-
ção de sobrevivência dos artistas também foi um dado na produção, que seja dos ateliês. São maneiras
diferentes.
PSD_ O artista da corte, evidentemente, o Felipe IV chegava lá: “Pinta meu cachorro” e o Velásquez
pintava o cachorro. “Agora pinta meu bobo”, ele ia lá e pintava o bobo. Isso é sem dúvida. A situação do
artista da corte e a do mecenas. Se não fosse o rei, seria o cardeal, ou o bispo, ou até o papa. Ele dizia o
que queria e tinha que ser feito e aí o talento do artista se diferenciava exatamente em função de, dado
um tema predeterminado, um esforço de formalização idiossincrático que ele colocava naquela obra.
PSD_ Claro. Os contratos mostram que até o pigmento a ser utilizado estava determinado no contrato.
Falava: “Bota minha sogra ao lado da Virgem Maria”, e o cara punha a sogra. Sossegava a sogra durante
30 anos, dava um sossega-leão na sogra formidável. O mecenas pintava a sogra dele ao lado da Virgem
Maria. Adeus, sogra. A sogra nunca mais enchia o saco, senão ele mandava tirar a sogra do quadro. Isso
é outro problema.
O que estou falando é a partir da época moderna, quando os artistas ganham uma autonomia en-
quanto profissionais liberais produzindo para o mercado, não é mais para o mecenas ou para um patrão.
GF_ Não. Quando falo que é um dado constitutivo, é porque são relações particulares que se estabelecem
a cada momento. Por exemplo, se nós pensarmos esse momento que você se referiu como autonomia do
artista. Tem um texto do Zola, que é um texto muito interessante de defesa do Manet, em que ele diz que
os artistas hoje são livres, na medida em que eles podem funcionar como comerciantes vendendo as suas
mercadorias. Então também é uma liberdade; não uma autonomia absoluta, porque já se estabelecem
outras maneiras de contato com esse mundo.
PSD_ Se colocarmos o termo de autonomia como estou entendendo, continuamos a nossa conversa.
A autonomia da obra de arte que chamamos é aquela coordenada historicamente por diversos fato-
res históricos. Mas ela tem princípios próprios que a governam diferente de quando ela é rebaixada ao
princípio de mais uma mercadoria. Exemplo de um rebaixamento nítido recente é quando, no mesmo
espaço consagrado de um monumento da arquitetura moderna americana que é o prédio do Frank Lloyd
Wright, que abriga o museu Guggenheim, você consegue alternar a exposição de motocicletas com um
Mario Merz. Mario Merz com roupas do Armani. Nisso você nivela ao estatuto: você não está elevando
a motocicleta ao estatuto de arte. Você está sublinhando o caráter mercantil da obra de arte e isso atua
no simbólico para formação e educação de uma geração mais jovem. O que essa coisa é? Quando você
generaliza os pontos de venda dentro de um museu, a captação de recurso se dá, mas quando vejo uma
GF_ Concordo com você que isso faz parte. É uma questão muito complexa porque, primeiro, pode se
pensar em uma idéia de indústria cultural mesmo, de fazer parte dessa indústria cultural, de fazer parte
de uma esfera de lazer e de tempo, de um pouco mais de ócio, digamos, que os trabalhadores consegui-
ram. A presença dos museus, as grandes filas nos grandes museus nas grandes exposições, tudo que vai
em volta da camiseta, da caneta, do bloquinho, isso tudo. Além disso, quer dizer, dessa idéia espetacular
mesmo dos museus, até pela maneira de sobrevivência. Estava falando do Guggenheim, e mesmo o
Guggenheim de Bilbao tinha lá isso a que você estava se referindo. Grandes peças do Serra e grandes
bicicletas. Nivela tudo.
Ao mesmo tempo, em uma produção artística, você vê de um lado essa relação muito forte com o
mercado, incorporando esse mercado, mas você vê também uma liberdade de criar ações poéticas nos
mais variados lugares. Os grupos de artistas hoje têm feito muito isso, em que é uma relação, não vou
dizer que é uma relação que não exista com o mercado, porque esse artista vai se incorporar à institui-
ção, vai passar para o mercado, etc. Mas cria bolsões, cria áreas, uma liberdade de ação que hoje faz
parte. Quando aqui no Rio, um grupo como o Radial ou o Imaginário Periférico vai fazer uma ação em
Nova Iguaçu, ele está fazendo uma ação com a liberdade de não estar fazendo alguma coisa para ser
exatamente como é veiculado no mercado. Também não se pode esquecer que nos últimos 30, 40 anos,
os artistas pensaram muito a sua relação com a instituição. Faz parte da reflexão do artista que tipo de
relação ele vai estabelecer com a instituição. Por vezes mais consciente, talvez menos consciente, por
vezes mais radical, mas é um dado do pensamento sobre a arte a sua relação com a instituição e com o
mercado, naquilo, a meu ver, mais estimulante, claro.
PSD_ Já que você fez esse trabalho recente sobre os anos 70, havia uma produção nos anos 70 nitida-
mente crítica em relação à instituição. Acho que boa parte daquilo que a Lucy Lippard chamou de “des-
materialização da obra de arte” deriva também dessa crítica à instituição, de evitar que o seu trabalho
se materialize em uma mercadoria como outra qualquer. É uma consciência aguda da situação e uma
situação utópica, evidentemente, própria dessa conjuntura. É bom lembrar que esse livro é uma produ-
ção elaborada durante a luta dos direitos civis nos Estados Unidos, durante a guerra do Vietnã, durante
o ano de 1968. Essas questões estavam à flor da pele no universo da cultura internacional e os artistas
seriam um segmento dessa produção mais viva, digamos assim, mais interessante, mais provocativa,
que se manifestou desse modo: dar as costas. O Daniel Buren, com a experiência que você conhece bem
de perto, na França, é típico disso naquele momento. Ele não vai se transformar em uma mercadoria a
mais produzindo quadros para serem pendurados na parede. Só para fechar essa pergunta. Você vê, na
situação de hoje, uma visão crítica da instituição ou essa arte já nasce institucionalizada?
GF_ O que acho é que a relação com uma instituição faz parte da estratégia de trabalho. Se ela não é
PSD_ Os mais radicais dessa época exatamente, como o Art&Language e o Kosuth, pensavam o que era
arte, o que era essa coisa chamada arte. A obra de arte deles era um projeto teórico que pensava isso.
GF_ Tem até uma frase muito bonita do Walter de Maria. Ele diz que no final dos anos 50 toda a geração
dele que se forma, e não mais com critérios acadêmicos, se forma já no expressionismo abstrato. Ele
se dá conta de que você está ali com uma brasa morna em cinza fria, que era exatamente a escola do
expressionismo abstrato. São artistas que vão buscar uma tentativa de repotencializar a emoção estéti-
ca. Em última instância, mesmo essa grandiosidade da land art, nas coisas das florestas, tem aí por trás
uma tentativa de fazer valer o que seria, o que eles consideravam naquele momento, pensar o que seria
uma emoção estética.
Isso é muito interessante, porque se liga também com o próprio pensamento em relação à história
da arte, ou seja, a obra de arte não estava comprometida só a inovar, a trazer questões em relação ao que
estava sendo feito, mas se reinventar na sua presença no mundo. E talvez seja isso. O Robert Smithson
falava, por exemplo, em uma conversa dele com Allan Kaprow, que expor no museu era como fazer amor
em cemitério. A idéia do que era a instituição. Isso não quer dizer que o Smithson não vá expor no museu,
mas ele vai criar uma estratégia, vai tentar criar uma estratégia de inscrição no museu.
O que vejo hoje nos grupos, nas diversas tentativas de trabalhos, é essa presença de um pensamen-
to de como criar o seu circuito, de como estabelecer uma relação com o circuito. Isso não quer dizer que
nesse momento de expansão do circuito de arte, de indústria cultural, etc. não existam manobras as mais
diversas de como se inserir. Naquilo que vejo como mais estimulante, pensando mais o mundo hoje,
incorpora criticamente, a meu ver, essa estratégia e incorpora como uma microação. Sem a idéia de que
vão queimar os museus como os futuristas.
PSD_ Como você vê a arte brasileira contemporânea dentro desse contexto mais amplo que estávamos
falando? Tem um diferencial?
GF_ Acho que tem um diferencial muito profundo, radical, de visibilidade, de presença. Primeira coisa,
não é só arte brasileira. É arte chinesa, arte polonesa. Isso faz parte exatamente dessa expansão do cir-
cuito, mas também de perdas de grandes critérios. Você está em uma situação também de dúvida. E pre-
cisa. Não é à toa que desde os anos 70, os anos 80 particularmente, e mesmo aqui no Brasil, exista esse
interesse pelo que se chamava de produção emergente, tentativa de uma novidade, etc.
PSD_ É preciso explicar melhor para o público o que é essa idéia que você está tendo de transmissão. O
que é essa transmissão?
GF_ Acho que você já conhece, pois já falei sobre uma coisa que me impressionou muito. Se nós pen-
sarmos, por exemplo, o cubismo, que foi alguma coisa, digamos, que ganhou uma universalidade
muito rapidamente. Se olharmos os cubistas japoneses, por exemplo, ou os cubistas de Taiwan, ou
cubistas suecos, ou os cubistas brasileiros, vamos ver. Há um livro de um japonês que seria bem bacana
mostrar aqui. É muito curioso você ver essas mesmas figuras de uma sociedade, só que em vez de te-
rem traços nordestinos, como no brasileiro, tem tudo o olhinho puxado. Outro que faz parte também
desse momento, a Tarsila do Amaral que vai incorporar o mamoeiro, que vai incorporar a palmeira,
e os suecos costumam incorporar a neve. São questões, maneiras de ficar pensando essa realidade.
Nesse sentido dessa transmissão: como pensar o cubismo sem pensar sobre sua transmissão? Quem
e o que ele vai incorporar em relação ao mundo. Seria só Georges Bracque, Pablo Picasso e ali aqueles
momentos-chave que vamos aprender, com o Greenberg e outros críticos. Ou pensar que papel ele vai
ter no mundo e como ele vai ser absorvido, como ele vai ser retrabalhado e que relações pode haver
entre esse japonês e um brasileiro. Foi algo extremamente interessante você olhar os trabalhadores
japoneses com os olhos puxadinhos.
PSD_ É. Na esfera da arte. Até bem pouco tempo víamos cartoon de revista americana de grande circula-
ção fazendo piada com retratos de Picasso no cubismo. Com Pollock, até hoje. Até hoje tem piada. Essa
disseminação que você fala é no meio de arte.
GF_ No meio de arte. Para mim é uma preocupação como nós nos pensarmos como produção, sem
ser um capítulo à parte e sem cair na questão da comparação. Se foi uma coisa produtiva do ponto de
vista da literatura, eu não veria como se aplicar em relação à tentativa de uma história da arte. Como
trazer esses valores que talvez, se pensarmos no neoconcretismo, que vai fazer 50 anos ano que vem, se
pensar que momento é esse, que relações ele estabelece. Há já algumas reflexões sobre isso, do próprio
Paulo Herkenhoff, mas se pensarmos que tipo de relação ele estabelece com esse momento pós-Pollock
nos Estados Unidos, como ele vai estabelecer com esse momento também mais cinético na Europa.
Que tipo de questões estão se permeando e que tipo de relações, de diálogo, mesmo que esse diálogo
não existisse de fato, mesmo que esse diálogo fosse mais virtual, mas que existe, no sentido de estar
pensando o mundo.
PSD_ Você fala da possibilidade de uma história da arte ser escrita, independentemente de capítulos de
fronteiras nacionais, mas sim de questões de linguagens. Seria preciso que mostrássemos a nossa produ-
ção, tivéssemos onde ver, por exemplo. Isso é uma questão.
GF_ São dois níveis. Hoje temos um tipo de visibilidade e presença no mercado internacional, no circuito
internacional que é de outra ordem. O que faz com que seja completamente diferente de 20 anos atrás.
Eu fiz uma pesquisa sobre Lygia Clark em Paris, com quem tinha vivido com ela: era com Soto, Yves-Alain
Bois, era com o pessoal da Sorbonne. Hoje, se falamos em Lygia Clark, ainda no contexto da França, o
estudante de arte tem referência. É outra coisa. Você não tinha. Eu sabia que existiam obras dela no
Beaubourg e não consegui chegar. Fiz uma série de entrevistas. Fiz meio o percurso da Lygia em Paris.
Interessou-me saber exatamente essa relação. Então, Soto, Cruz-Diaz, todo mundo eu entrevistei. No
entanto, para a historiografia deles, somos um capítulo à parte.
PSD_ Até recentemente, a obra da turma do October, do livro Art Since 1900 colocou a Lygia Clark e o
Hélio, que são as duas únicas citações importantes do interesse da arte brasileira no livro, como arte
não-ocidental.
GF_ No livro Documentos da arte contemporânea, o único artista brasileiro em quem eles falam é a Lydia
Clark argentina. Você vai ver ao mesmo tempo, por exemplo, a arte conceitual que saiu na Phaidon, com
capa do Cildo.
GF_ Do ponto de vista da crítica, você começa pela incorporação, mas do ponto de vista da história da
arte, a meu ver, é muito fechado. É um esforço nosso também de repensar. Há necessidade também de
como nos pensarmos, de como falarmos, de como não falarmos de história da arte com o Brasil como
uma coisa à parte. Como integrar? Saber exatamente fazer, eu não sei. São esforços que você vai tentan-
do, até mesmo a maneira de se pensar e de como seria. Mesmo assim, em relação à questão da arte con-
ceitual. Teríamos que pensar: será que a questão conceitual, que vai ter particularidades no Brasil, mas
será que o nome conceitual tenha sido dado ali, mas será que essa transformação também não estaria
presente aqui em outros termos? Não sei. Mas é possível se tentar sair dos “ismos”. Quer dizer, diversas
relações com uma outra tentativa de pensar.
FERNANDA LOPES_ Estava pensando se nesse mesmo processo que você estava falando da importân-
cia de se repensar para se recolocar, se tem um papel importante uma produção mais jovem estar usando
como referência ou estar olhando para a própria produção de artistas brasileiros de gerações um pouco
anteriores. Não de tanto tempo para trás, mas dos anos 50, dos anos 60, dos anos 70.
GF_ Há até uma frase do Cildo que é bacana, em que ele indagava como pensar a arte, sem pensar em
fulano, beltrano. Acho curioso porque se você for, por exemplo, a Curitiba, as referências estão presen-
tes, mesmo que não estejam para nós, mas para a produção local. Como eles vão pensar uma produção
atual sem pensar Rettamozo.
Mas isso, a meu ver, indica uma transformação do próprio pensamento sobre a arte, disso que eu
estava falando, da idéia do que é essa inscrição no mundo. Então, você tem esse dado local, você tem
os dados dessas presenças, uma maior riqueza de referências ou uma menor riqueza de referências. Mas
que seja com a menor riqueza, com o menor circuito, com um dado da própria produção, hoje.
E no caso brasileiro, e aí em particular em São Paulo, de fato você teve uma produção de uma impor-
tância significativa que é uma referência. Acho, inclusive, um pouco injusta certa campanha que foi feita
em relação ao Hélio Oiticica, como se o Hélio tivesse absorvendo toda a idéia da história da arte, pelo
nosso querido Nelson Leirner, por exemplo, com o Construtivismo rural. Ou então dos curadores que o
apresentaram na Bienal de Veneza, que servia para mostrar que havia outras referências, que não era só
construtivista, sabendo que a referência do Hélio, a não ser de uma maneira um pouco mais clandestina,
era muito recente, a partir dos anos 90. É possível se pensar Hélio então sem ser o pai, fundador da arte
contemporânea? Claro. Mas ao mesmo tempo, imediatamente já caracterizá-lo, hostilizá-lo quase se
tornando refratário a compreender a obra dele, é uma pobreza total.
PSD_ Mas existiria uma tendência dessas manifesta?
GF_ Muito forte. Em vez de pensar as relações com outros que se estabeleceram aqui com produções
diversas, mas como se o Hélio estivesse aí desde os anos 40, sendo um Portinari. Não é.
PSD_ Já vi. Já assisti, estava em reunião em um determinado júri e ouvi membros do júri dizerem: “Não
agüento mais ouvir falar em Hélio Oiticica”. Como se ouvir falar em Lygia Clark e Hélio Oiticica fosse exa-
GF_ A primeira exposição do Hélio foi em 1992, a primeira exposição internacional dele.
GF_ Quem teve chance de ver. Eu tive e nunca havia visto aqueles Bólides todos juntos. No fundo, uma
idéia provinciana de se pensar o próprio local, como se essas referências não pudessem ser integradas no
pensamento sobre arte em geral.
Fiquei muito surpresa, recebi muitos e-mails de jovens artistas que foram lá na exposição Arte como
questão, no Instituto Tomie Ohtake, falando de reencontrar essas pessoas: Yury Firmeza, do Ceará, e o
pessoal do Sul dizendo que estavam gostando de ver aquelas referências de cenas locais. Foi uma coisa
curiosa porque, claro, parece que você não tem referência, parece que não existe. Esse mesmo mecanis-
mo vai se reproduzir nas várias cenas. Mas a expansão do circuito, de cenas locais, está criando dinâmicas
diversas que podem incorporar do Pollock, ao Richard Serra, ao Hélio Oiticica, releitura.
PSD_ Já entrando na última questão. Você querendo, depois voltamos às questões anteriores, como
você quiser. Estava pensando em você falar a partir, sobretudo, dessa sua experiência mais recente, não
aquela que vem já desde o início dos anos 80, mas mais recente, que você teve com a universidade. So-
bre a questão que são os artistas mais recentes com quem você teve contato na Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, não sei se você notou, na graduação quanto na pós-graduação, o
papel que tem a universidade hoje na formação do artista. E se você vê uma diferença por essa demanda.
Em que se constitui essencialmente. Por que o artista vai parar dentro da universidade? Que necessidade
ele tem de ir para fazer um mestrado, doutorado?
GF_ Tem sido também muito interessante participar em muitas bancas fora do Rio. O que acho, e aí po-
demos até voltar um pouco para a primeira questão dessa passagem do moderno ao contemporâneo, é a
progressiva intelectualização do artista, universitário ou não. Já ao longo da arte moderna você tem uma
produção teórica dos artistas muito importante, não acadêmica, uma produção teórica do Mondrian, do
Malevich, do Kandinsky. Você tem nessa produção, até pelo crítico americano Mitchell, que fala que, no
fundo, o grande silêncio da arte moderna em relação à questão da abstração, silêncio em relação à litera-
tura, na verdade é cercado por esse universo teórico que é quase como uma teoria. Então a teoria como
uma coisa realmente constitutiva do pensamento da arte.
No final dos anos 50, por exemplo, nos Estados Unidos, praticamente todos os artistas americanos
tinham MBA, tinham mestrado. Do Kaprow, do Beuys. Às vezes com tese sobre Brancusi, no caso do
Robert Morris. Walter de Maria fez, todos eles fizeram. Essa tendência, a essa maior intelectualização do
artista, maior relação com a teoria, uma outra relação que vai se estabelecer entre teoria e prática, vai ser
muito forte, a meu ver, desde esse período.
PSD_ Já em parte aproveitando uma experiência sua. O instrumento de difusão da arte contemporânea,
fora os Estados Unidos e a Europa, são as publicações voltadas para a arte contemporânea de grande cir-
culação. Aqui você tem uma experiência longa com uma editora, uma das editoras da revista Arte&Ensaios
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e você também tem experiência como organizadora de publi-
cações importantes que ainda estão no mercado, que são os textos de artistas, a organização de textos
críticos no Brasil nos anos 50 e 60.
PSD_ Nesse universo da difusão, e aí não estou pensando mais na formação do artista, mas na formação
de público. Como você vê a situação no Brasil? Quais são os agentes principais de formação de público
hoje? Um eu sei que é a feira de arte SP Arte, mas exatamente por isso não considero aquilo uma instituição
para formar público para arte. Aquilo é uma instituição de distribuição de trabalhos vendáveis de artistas
contemporâneos, muito válido, importante no lugar que ela está. Ela é uma feira de arte. Mas formação de
público para arte contemporânea em termos de edições, de publicações. Você acha que existe uma possi-
bilidade de formulação de uma política? Por exemplo, seria interessante uma política editorial que desse
vazão, através evidentemente de um conselho editorial, à farta produção que se acumula nas estantes das
universidades, teses de mestrado e doutorado? Já tem uma acumulação de pelo menos três décadas.
PSD_ Só reportagem.
GF_ Só reportagem. A crítica, inclusive aqui, há várias semanas que não vejo nenhuma. Você tem uma
diminuição muito grande. Talvez a Internet jogue um papel aí. Não sei. No entanto, você está tendo uma
produção editorial no Brasil também de uma ordem inteiramente diversa da que você tinha. Não sei se
é uma produção que ainda está muito dirigida e consumida apenas pelo meio de arte. Mas, de qualquer
maneira, não tem nem dez anos que se tornou acessível um livro do José Resende, um livro do Tunga, um
Waltercio Caldas. É uma situação esquisita que vivemos, porque temos algumas revistas universitárias de
qualidade, a Concinnitas, a Porto, as revistas de São Paulo, da USP, tantas que nunca consigo ler direito.
Tem a Ars, tem não sei o quê. Mas enfim, você tem hoje uma produção de revista universitária importan-
te, porém mal distribuída. Mesmo nós não conseguimos ter acesso a essas revistas.
GF_ Já nasce obra rara. Tem aquela complicação. O que vejo mais é no nível dessa expansão do mercado
editorial, desse acesso. Qualquer livraria que você entre tem ali essa presença, mas de fato acho que se
poderia pensar algo de fazer uma revista nacional. Não vejo, por exemplo, mesmo o Papel das artes como
revista que possa vir a ter esse papel. É uma complicação.
Incluo nesse campo de pesquisas que está se criando o fato de ter acesso a traduções. Lembro-me
quando fiz a revisão do Greenberg, uma professora da EBA estava falando sobre não haver necessidade
das traduções. Depois até veio me pedir desculpas, dizendo que não estava falando exatamente em rela-
ção a mim. Mas, como não necessidade se estamos falando de um texto publicado na ArtForum de 1945,
que você só consegue numa biblioteca especializada que não existe. Estamos tendo cada vez mais esse
acesso, que é importante.
Em relação ao grande público, é muito complicado. Talvez os museus, algumas exposições. Você ter
uma exposição do Rodin aqui, faz fila. É muito pouco. A freqüência dos museus é pequena.
PSD_ Há alguma coisa que você queira acrescentar? Está sendo filmado. Qualquer coisa.