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A sociedade reificada ou a ausência como presença?

Elementos para uma teoria não-tautológica da ação social melanésia


EDUARDO CARVALHO FERREIRA*

Resumo
As ciências sociais do ocidente têm historicamente reduzido suas análises sobre
as práticas rituais que se encontram entre os melanésios, tomando-as como
processos de socialização integrados e totalizantes, ou como algo induzido que
transforma o natural em cultural e define a forma e o conteúdo das ações de
todos os membros. Fato esse que, segundo Marilyn Strathern, auxilia na
construção de uma falsa representação sobre a noção de controle social e da
própria sociabilidade desses povos. Nesse sentido, nosso trabalho tem como
objetivo estabelecer algumas considerações sobre essa perspectiva de Strathern,
no que se referem as suas noções de agência e socialidade, na tentativa de
demonstrar como que a autora constrói uma espécie de teoria da ação social
melanésia.
Palavras-chave: sociedade e indivíduo; socialidade; agência; ação social.

Abstract
The social sciences of the West have historically limited their analysis of ritual
practices among the Melanesians, taking them as integrated and totalizing
socialization processes, or as something artificial that transforms the natural
into cultural and defines the form and the content of the actions of all members.
This is a fact that, according to Marilyn Strathern, assists in building a
misrepresentation about the notion of social control and sociability of these
people. Our work aims to establish some considerations about the Strathern’s
perspectives related to her notions of agency and sociality, in an attempt to
demonstrate how the author builds a kind of theory of Melanesian social action.
Key words: individual and society; sociality; agency; social action.

*
EDUARDO CARVALHO FERREIRA é doutorando em Educação pela Universidade de
São Paulo.

1
Neste pequeno ensaio De tal pressuposto,
sobre o trabalho de segue-se um
Marilyn Strathern nas problema próprio às
ilhas da Melanésia, abordagens
nos propomos a antropológicas mais
elencar alguns dos recorrentes, que
aspectos mais consiste em imaginar
essenciais de suas que povos tão
análises referentes à distintos venham a
conceituação da representar-se a si
complexa vida social Marilyn Strathern (1941-) próprios da mesma
das culturas forma, sob o véu de
melanésias. No entanto, não estamos uma noção de sociedade. Do ponto de
preocupados em apresentar todo o vista teórico-metodológico, o
contexto analisado por ela das práticas e pensamento crítico que Strathern tenta
comportamentos ritualísticos peculiares imprimir em suas análises tem como um
à natureza das relações sociais primeiro desafio fugir dessa “ortodoxia
melanésias, mas apenas em extrair de do conhecimento ocidental”, no sentido
sua obra uma compreensão mais geral de se produzir um conjunto de idéias
dos contextos de ação social e das sobre a natureza política e cultural da
relações entre sujeito/objeto e vida social melanésia que não
natureza/sociedade próprias a esses escamoteie seus artefatos e
povos. Nossa questão é esclarecer como representações, e que seja útil para
e por que ela sugere uma nova maneira pensar sobre as idéias melanésias de
de se pensar a relação entre cultura e sociabilidade. “[...] não se trata mais, ou
sociedade a partir da neutralização da apenas, da descrição antropológica do
antinomia clássica entre indivíduo e Kula (enquanto forma melanésia de
sociedade. socialidade), mas do Kula enquanto
descrição melanésia (da socialidade
Assim, faremos um trabalho de síntese
como forma antropológica)”
para tentar descrever mais precisamente
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.
quais os elementos que Strathern aponta
128).
para a construção analítica de uma
teoria da ação social melanésia, cuja Uma característica essencial no trabalho
preocupação é escapar da tautologia e de Strathern é sua preocupação em
do voluntarismo de algumas teorias definir o lugar preciso para se alocar os
antropológicas, que consideram a pressupostos ocidentais subjacentes à
possibilidade dos sistemas simbólicos natureza da sociedade e como tal
serem interpretados circunscritos a uma natureza é transformada em objeto de
noção de sociedade ocidental, já que conhecimento. A argumentação inicial é
“para grande parte da antropologia, que existem diferenças marcantes entre
incluindo a de tipo Radcliffe- a sociabilidade ocidental e a melanésia
browniano, os sistemas simbólicos são que não podem simplesmente ser
inteligíveis no interior de contextos tratadas a partir de um procedimento
apreendidos como uma ordem social ou comparativo que faz descontextualizar
sociedade” (STRATHERN, 2006, p. os construtos locais para trabalhar com
35). outros materiais contextualizados
teoricamente, uma vez que não
podemos “assumir que os ‘seus’

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contextos, os contextos de outras coletividade, que ela é
culturas, e o ‘nosso’ venham a ser generalizante porque a vida coletiva
equivalente de alguma forma é de caráter intrinsecamente plural.
reconhecível” (STRATHERN, 2006, p. A sociedade é vista como aquilo
35), fazendo dessa comparação um fim que conecta os indivíduos entre si,
as relações entre eles. Assim,
em si mesmo. Assim, seria preciso
concebemos a sociedade como uma
conhecer com mais propriedade qual o força ordenadora e classificadora e,
contexto de ação social que se está nesse sentido, como uma força
investigando (nós ou eles). unificadora que reúne pessoas que,
Até que ponto o conceito de sociedade é de outra forma, se apresentariam
como irredutivelmente singulares.
útil para analisar a contraparte nativa?
(STRATHERN, 2006, p. 40)
Certamente, para Strathern, as
transformações fundamentais das Essa antinomia não se aplica ao caso
culturas melanésias não dizem respeito das culturas melanésias por algumas
a essa relação, pois, a representação da razões. Primeiro porque a noção de
sociedade não é algo presente no pessoa representada pelos melanésios
universo conceitual desses povos. O não passa por um processo de
conceito de sociedade é um tipo de individualização igual ao das sociedades
abstração que está associada a um industriais, onde as causas das
determinado modo de se conceber as diferenciações internas são eliminadas.
relações entre as pessoas e as coisas, a Ao contrário, as pessoas, como
dizer, é o nosso modo de caracterização. veremos, apresentam uma composição
Strathern percebeu que entre os Hagen a plural ou múltipla. Outro indício é que
noção de sociedade era totalmente no mundo ocidental tem-se a imagem da
obsoleta, uma vez que não se existência de um sistema que constitui a
encontrava entre eles outras noções fonte propulsora dos valores
correlatas, tal qual a de indivíduo. dominantes, que impõe às pessoas
maneiras de agir e de pensar,
A questão é que existem outros
representando uma coisa que esta para
contextos que são irredutíveis ao nosso,
além deles. Conclusão essa que os
e levar em conta essa alteridade requer
sistemas melanésios de conhecimento
uma revisão dos nossos próprios
não levam em conta, pois, de antemão o
conceitos. Assim, para pensarmos sobre
que se vê em suas configurações são
o universo das relações melanésias,
relações homólogas, e não hierárquicas.
Strathern sugere a necessidade de se
Entretanto, isso não significa que não
operar analiticamente com um tipo de
haja convenções, ou até mesmo uma
deslocamento específico, mas não um
espécie de contrato social entre eles.
deslocamento qualquer, pois, trata-se de
Isso quer dizer apenas que eles não
uma proposição ousada, que nos adverte
percebem seu ordenamento social como
no sentido de pararmos de reificar o
um sistema escalonado, onde o
conceito de sociedade, a partir do
comportamento individual é separado
entendimento de que não é uma regra
das relações e onde posições de poder
valida a todas as culturas a antinomia
se destacam.
clássica entre sociedade e indivíduo.
Cabe notar que os melanésios
Sociedade e indivíduo constituem
um par terminológico intrigante apresentam uma relação muito
porque nos convida a imaginar que específica entre sujeito e objeto. E isso
a socialidade é uma questão de tem confundido e induzido o

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pensamento antropológico a concluir de socialização. A socialidade
que os melanésios simbolizam sua vida melanésia faz a distinção entre dois
coletiva a partir de algo que possa ser tipos de relação, a coletiva e a
comparado a uma distinção entre particular. Dentro dessa concepção a
indivíduo e sociedade. A grande noção de pessoa não pode ser vista
dificuldade interpretativa se encontra como uma entidade singular, como
num obstáculo epistemológico que indivíduo, isto é, algo indivisível. Pelo
acompanha a própria gênese desse contrario, as pessoas melanésias são
objeto de estudos específico, no caso o geralmente tidas como divíduos, pois,
processo de sociabilidade melanésio, já sua natureza é múltipla, divisível, e isso
que o pressuposto da ciência se revela em suas relações internas, que
antropológica trata sempre da imanência são compostas dos mesmos processos
de uma interlocução entre sujeitos e de regulação exteriores aos agentes.
agentes para explicar a maneira pela Essas pessoas são concebidas tanto
qual as pessoas se relacionam. Esse dividualmente como individualmente.
postulado determina que a construção
É preciso perceber que se está falando
social e simbólica do ser, o que envolve
de pessoa tanto no singular como no
o tema da dominação e da legitimação,
plural, já que em certo sentido, eles
está sempre em concordância com a
representam a mesma coisa, e, assim,
metáfora da estrutura, porque se supõem
“as pessoas são freqüentemente
que o desempenho dos papeis estão
construídas como lócus plural e
relacionados necessariamente às
compósito das relações que as
condições objetivas da sociedade.
produzem. A pessoa singular pode ser
Strathern nos apresenta o conceito de imaginada como um microcosmo
socialidade justamente com a intenção social”. (STRATHERN, 2006, p. 41).
programada de demonstrar o cisma Essa constatação significa a percepção
nesse tipo de raciocínio, já que o que de que a imagética da pessoa contempla
nós chamamos de sociedade é apenas ao mesmo tempo relações diversas e
uma forma de manifestação da plurais, totalizantes e holísticas. Por
socialidade para os melanésios. exemplo, a pessoa singular, derivada de
A criatividade social melanésia não múltiplas identidades, pode ser
se baseia numa visão hierárquica de transformada no indivíduo composto
um mundo de objetos criados por por elementos masculinos e femininos.
um processo natural sobre o qual se Strathern não propõe o conceito de
constituiriam as relações sociais. socialidade somente por uma questão
Estas são imaginadas como uma
semântica para se contrapor a noção de
precondição para a ação, não
simplesmente como um resultado sociedade. A ênfase na idéia de
dela. A socialidade não deve, pois, socialidade é abarcar um contexto de
ser visualizada como uma ação social permeado por um fluxo
elaboração superestrutural de outras intenso de relações que não se
forças, e a vida coletiva não manifestam apenas externamente à
evidencia a socialidade numa forma constituição das pessoas. As relações
intensificada, hegemônica. são também intrínsecas ao ser. Os
(STRATHERN, 2006, p. 462) melanésios concebem a pessoa como
O conceito de socialidade é usado para uma objetificação das relações que a
referir-se à criação e à manutenção das constituem. As relações sociais não são
relações, e serve como oposição a idéia construídas por um processo

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socializador a posteriori, elas estão propriamente uma evidência da
sempre objetificando ou personificando coletividade. A noção de sociedade
algo, não existe a hipótese de os implica em considerarmos que as
produtos das relações não relações são sempre plurais, posto que
corporificarem as próprias relações. mesmo em suas manifestações
individuais elas apenas contribuem para
E por esse motivo, não seria adequado
um processo de socialização mais
falar sobre a concepção melanésia de
amplo. Nessa concepção, os eventos
relações e as suas representações da
coletivos funcionam sempre para
ação social como um processo de
transformar as pessoas em seres sociais,
socialização, mas como uma forma de
o que destoa da forma de socialidade
socialidade. A idéia da socialização,
melanésia.
bastante cara a vertente construcionista,
indica uma maneira pela qual as pessoas A leitura de Strathern reconfigura essa
são moldadas ou construídas a partir de relação, colocando-a sob outra
processos de apreensão da cultura, das perspectiva, já que a pessoa é
regras ou da língua. Strathern ataca essa considerada como a personificação das
tese ao enfatizar que não é uma relações, assim, o que a lógica da
condição humana geral para a dádiva promove é um tipo de
manutenção das gerações a necessidade complexidade que não se percebe nas
de transmissão da cultura e dos valores, próprias relações, mas sim nas
e isso vale também para o simbolismo configurações internas dessas pessoas
de gênero. como agentes. Isso quer dizer que “na
medida em que as pessoas transformam
Suas pesquisas na melanésia indicam
um conjunto de relações em outro, elas
que esses povos “criam deliberadamente
agem (como sujeitos individuais) no
ausências, apagam deliberadamente a
sentido de transformar-se em pessoas
memória dos eventos, criam relações
(objetos) aos olhos dos outros. Elas se
não pela reunião de pessoas, mas
objetificam, poder-se-ia dizer”
separando-as” (STRATHERN, 1997, p.
(STRATHERN, 2006, p. 451).
16). Nesse sentido, a noção de
socialização só pode ser um eufemismo. Um agente pode optar por agir,
Mas o problema é que isso nem sempre mas, ao agir, só pode fazê-lo de
é percebido pelos estudiosos da uma determinada maneira. É
melanésia, que de praxe têm impossível, nesses sistemas, agir de
conceituado as práticas rituais como uma maneira geral ou inespecífica:
todos os atos são específicos.
instrumentos que marcam um processo
Justamente por isso, na visão
socializador de formação da pessoa melanésia, ser um agente é
cultural e social. A questão é que os mobilizar sua capacidade
rituais não podem ser banalmente generalizada para uma finalidade
conceituados como etapas de um específica. (STRATHERN, 2006, p.
processo de socialização, pelo contrário, 466)
“os ritos não fazem os homens e não
É essa a condição fundamental para que
fazem a sociedade” (STRATHERN,
as pessoas façam valer sua capacidade
2006, p. 462).
de agência, e por isso, mesmo que as
Considerando como ponto de partida formas sociais sejam altamente
uma antinomia entre individuo e diversificadas, o pressuposto de que os
sociedade seria paradoxal afirmar que a indivíduos para constituírem-se como
existência de relações não constitui sujeitos devem ser ativos quanto ao seu

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próprio destino não pode valer para as sociedade, mas a partir do complexo de
construções melanésias de relações. O relações existentes nos contextos
que Strathern trata de reiterar com essa endógenos de ação social. Portanto, o
sentença é que não é a existência de que deve ser enaltecido é a noção de
qualquer imagem de atividade coletiva relação, e por isso, o que Strathern
(os rituais, por exemplo) que cria prioriza são as teorias melanésias da
espontaneamente uma noção de relação. São essas operações que
sociedade e produz a cultura. Nesse possibilitam à Strathern compreender as
caso a relação entre cultura e sociedade bases da socialidade melanésia. São,
deve ser abordada em outros termos, precisamente, esses mesmos
pois, as ações coletivas carecem ser deslocamentos que possibilitam a ela
entendidas dentro da noção de elementos suficientes para analisar o
socialidade. simbolismo de gênero, fundamental nas
culturas melanésias, e concluir que a
Em suma, Strathern faz cultura
oposição entre masculino e feminino
significar sociedade, e esse
não deve ser referida ao controle de
deslocamento implica a negação da
homens e mulheres uns sobre os outros.
existência de uma relação hierárquica
entre sociedade e indivíduo no âmago
das culturas melanésias. Sua obra O Referências
gênero da dádiva é justamente uma
STRATHERN, M. Entre uma melanesianista e
crítica a certas concepções uma feminista. In: Cadernos Pagu. Núcleo de
antropológicas que insistem na Estudos de Gênero/UNICAMP, Campinas, SP,
aplicabilidade dessa antinomia aos vol. 8/9, 1997.
contextos de ação social melanésios. STRATHERN, M. O gênero da dádiva:
Entendo que esse ambicioso trabalho é problemas com as mulheres e problemas com
uma proposta de reformulação a sociedade na Melanésia. Tradução de André
epistemológica, portanto, política, de Villalobos. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
toda a antropologia, já que coloca em 2006.
xeque dois conceitos tão complexos VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo
como o de cultura e o de sociedade. relativo. In: Mana, 8(1): 113-148, 2002.

O grande problema para Strathern é


tentar compreender a produtividade da Recebido: 2012-12-03
vida social desses povos, não mais pela Publicado: 2013-02-12
“ficção” antinômica de indivíduo e

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