AVANCA | CINEMA 2014
The Singing Detective e a tradição do musical americano clássico
Lucas Ravazzano de Mattos Batista
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Abstract
The musical is considered by theorists such as
David Bordwell (2006) as one of the most enduring
genres of American cinema, and its height during
the so-called classical period of Hollywood cinema,
whose main formats were mapped by the work of
Rick Altman (1987). Authors such as Altman (2000)
and Neale (1980, 2000), understood that the film
genres live in constant tension between compliance
with their formats and the need to continually offer
something new to their audience. Therefore, in order
to contribute to the discussions about how recent
products work and dialogue the traditions of the genre,
this paper aims demonstrates how the film The Singing
Detective (2003) operationalizes some assumptions
about the musical set by Altman (1987). We will try to
demonstrate how the movie dialogues with elements
of what the author describes as folk musical, which
often present an idealized and transformed by memory
and nostalgia version of American cultural past, more
specifically traditional elements of American film noir
and detective fiction dialoguing with the traditions of
the musical and noir, appropriating their conventions in
order to give them new meanings and, thus, renewing
the genre to new times and new audiences by giving
a new take to recognizable formats. To achieve this
end, we will use definitions of musical by Rick Altman
(1987) as well as the works Dixon (2008), Delameter
and Prigozy (1998) and Messent (2012) to reveal how
the film uses notions of noir and detective fiction.
Keywords: Musical, Film genres, Noir, Film Analysis
Introdução1
Os musicais americanos, principalmente aqueles
do período hollywoodiano clássico, ficaram famosos
pelo seu tom escapista e despretensioso, os filmes
noir, por sua vez, ficaram famosos pelos seus
ambientes sombrios, personagens ambíguos, sujeitos
corruptos e crimes violentos. São dois universos
altamente díspares, que aparentemente jamais iriam
se encontrar, entretanto, a mistura entre musical e noir
é exatamente o que faz este The Singing Detective
(2003).Assim sendo, visando contribuir para as
discussões sobre como as tradições do gênero se
mantem em produtos recentes, o presente trabalho
visa demonstrar como o filme operacionaliza algumas
premissas do musicalclássico enunciadas por Altman
(1987), de modo a verificar se esses modelos são
capazes de dialogar com produtos recentes deste
cinema.
David Bordwell e Kristin Thompson (2001)
afirmam que os musicais são um dos mais longevos
gêneros do cinema americano. Stephen Neale (1980)
compreende que os gêneros cinematográficos contem
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características estilísticas que transcendem os filmes,
e cuja construção é verificada pelos realizadores e
lida pelos espectadores. Essa afirmação encontra
concordância nos trabalhos de Rick Altman (2000)
que compreende que os filmes de gênero expressam
as sensibilidades sociais e estéticas dos cineastas
hollywoodianos e também de seu público, servindo
assim para equilibrar seus espectadores com a
máquina ideológica, tecnológica e significativa do
cinema. Assim sendo, o autor compreende que
osgêneros são estruturas onde fluem uma quantidade
enorme de conceitos e temas, tornando-os, deste
modo, uma “classe institucionalizada de textos”
(Altman 2000 p.37) sancionados por produtores,
críticos e receptores. Para o autor, os gêneros seriam
uma categoria bastante funcional para a sociedade
justamente por integrarem as visões e expectativas de
diferentes setores.
O Musical Clássico Americano
Em seus trabalhos sobre o cinema musical, Altman
manteve seu foco naquilo que Bordwell e Thompson
(2001) denominam como o período clássico do cinema
americano que vai dos anos 20 ao fim dos anos 60.
Os musicais, para Altman (1987), assim como outros
gêneros narrativos, nos geram uma expectativa de
certas relações entre personagens e padrões em
sua trama. O autor compreende que estes filmes
apresentam tramas cujo centro é uma dupla de
protagonistas, normalmente um casal.
O elemento de conflito, entretanto, não seria
o enlace amoroso desse casal, mas a resolução
destas diferenças, já que, como foi dito, nem todos
os musicais tinham uma dupla de protagonistas que
permitia um romance, como os filmes estrelados pela
atriz infantil Shirley Temple. De acordo com Altman
(1987) os musicais constroem a dupla de protagonistas
como tendo personalidades diametralmente opostas,
cujas características apresentam-se em constante
antagonismo.Devido a essa alternância da trama em
contrapor narrativa e tematicamente os protagonistas
masculino e feminino, Altman (1987) afirma que o
musical americano possui uma narrativa de duplo foco.
Em sua sistematização do musical clássico, o
autor percebe algumas subdivisões na construção
das narrativas de duplo foco que localiza no gênero,
identificando a existência de três “subgêneros” mais
marcantes dentro da produção dos musicais: o musical
conto de fada, o musical show e o musical folk.
O musical conto de fada seria mais focado na
produção de um romance e um enlace sexual entre
os personagens. Entretanto, a natureza sexual seria
mascarada por uma visão mais romantizada dos
relacionamentos, disfarçada sob cenários exóticos,
insólitos e fantásticos, diluída em narrativas sobre
batalhas e aventuras.

O musical show compreenderia aquilo que muitos
autores, como Bordwell e Thompson (2001), se
referem como musical de bastidores ou backstage
musical. Altman, entretanto, rejeita esta denominação
por considerá-la demasiadamente restritiva, ao não
englobar filmes que não se desenvolvem dentro ou ao
redor de um teatro da Broadway. Assim, a tipificação
proposta pelo autor leva em conta filmes cuja trama é
centrada na criação de algum tipo de espetáculo ou
show. Neste tipo de filme, a resolução do conflito entre
os dois protagonistas está simbólica e casualmente
ligada ao sucesso do show.
O musical folk projetaria o público em um tipo de
versão mitificada do passado cultural americano.
Diferente dos outros subgêneros, que nos
apresentam uma realidade contraposta a universos
com algum viés fantástico ou imaginário e um
rompimento maior rompimento com a realidade, o
musical folk, pintaria o mundo real através do poder
transformador da memória. Deste modo, o subgênero
não depende totalmente da história americana, mas
também não a ignora por completo, se situando no
espaço intermediário que se costuma designar por
tradição ou folclore.
Altman identifica dois extremos dessa
representação mitificada da realidade no musical
folk. De um lado o subgênero dá ênfase ao pitoresco,
quase ao ponto da exclusão da realidade observada
como ocorrem em filmes tais como The Little
Colonel(1935), ShipmatesForever(1935) e Rose Marie
(1936). Em outro extremo dessasobras que retratam
uma realidade quase que utópica, temos produtos
realizados nos anos 60 e 70, como Nashville (1975),
cujo realismo, para Altman, chega a ameaçar a
identidade do filme enquanto musical.
O autor identifica ainda três mecanismos através
dos quais as performances musicais são inseridas
dentro dos filmes do gênero: a dissolução de
aúdio, a dissolução de vídeo e a dissolução de
personalidade. Trataremos das especificidades destes
três mecanismos quando nos debruçarmos sobre o
filme The Singing Detective, utilizando a obra para
demonstrar o funcionamento destas mecânicas.
O Noir e a narrativa policial
Além de dialogar com a tradição do musical americano
clássico, The Singing Detective também dialoga com
as tradições da narrativa policial, em especial com os
produtos mais alinhados com o movimento do filmnoir.
A narrativa policial tem seu nascimento identificado
primeiramente na literatura, mas, como muitos outros
gêneros literários, migrou também para os cinemas.
Paulo de Medeiros e Albuquerque (1979) afirma que o
gênero veio a partir daquilo que ele considera como o
romance de aventura.
De acordo com o autor, o advento da imprensa
começou a provocar modificações no romance de
aventura, que primeiramente “ampliou seu campo
de ação” (Albuquerque 1979 p.3), um segundo
movimento deu origem ao que ele chama de romance
de espionagem e por fim veio um terceiro movimento,
Capítulo I – Cinema – Cinema
no qual o se introduziu o raciocínio lógico, “suplantando
a força e a ação” (Albuquerque 1979 p. 3).
Ricardo Piglia (1994) afirma que foi o conto de
Edgar Allan PoeOs Crimes da Rua Morgue que
fundou as regras da narrativa policial e que a poética
do gênero consiste no manejo da intriga e que as
narrativas valorizam antes de tudo a onipotência do
pensamento e da lógica e a partir disso é construída
essa figura arquetípica do investigador como um
grande racionalista que decifra crimes e defende lei.
A narrativa policial foi primariamente caracterizada
pela presença do elemento da lógica. Piglia (1994)
afirma que as narrativas policiais que seguiram
o rastro dos contos de Poe valorizavam antes de
tudo a onipotência do pensamento e da lógica e a
partir disso é construída essa figura arquetípica do
investigador como um grande racionalista que decifra
crimes e defende lei.
Sendo assim, é possível perceber que as narrativas
policiais são calcadas na ideia que o conhecimento e
o raciocínio lógico-dedutivolevará até a verdade e a
resolução de um crime. Todorov (1980) também trata
dessa oposição ao afirmar que a narrativa policial traz
em si duas histórias, a história do crime, ausente; e a
história da investigação, presente, cuja justificativa é
levar o público a descobrir a primeira história.
Entretanto, essa separação clara entre o
investigador e o criminoso, o certo e o errado, moral
e amoral não é algo que se manteve constante nas
narrativas policiais ao longo da trajetória do gênero.
As narrativas noir, como ficaram conhecidos os
romances policiais norte-americanos, apresentavam
um arquétipo diferente de investigador.
Arbex Jr (1995) concebe essa mudança de
abordagem da narrativa policial por parte dos autores
americanos do período como fruto da desilusão da
sociedade americana com a Grande Depressão,
provocada pela quebra da bolsa de Nova Iorque
em 1929, além da promulgação da Lei Seca, que
proibia a comercialização de bebidas alcoólicas.
Segundo Mandell (1988) nessa época aumentaram
e intensificaram-se os delitos cometidos nos Estados
Unidos como a venda ilegal de bebidas, exploração
do jogo e da prostituição, assaltos a banco, guerras
de quadrilhas, subornos e chantagens envolvendo
policiais, políticos e outras figuras da alta sociedade.
Nesse âmbito mais sujo e cinzento autores como
DashiellHammet e Raymond Chandler traziam
detetives durões, mulherengos, cínicos e dotados de
uma moral mais flexível.
No noir o pensador racional dá lugar ao um
investigador que se lança cegamente ao encontro dos
fatos, que se deixa levar pelos acontecimentos e cuja
investigação fatalmente produz outros crimes como
afirma Piglia (1994). Estes investigadores são cheios
de defeitos e incertezas e transitam pelos ambientes
mais sujos e marginalizados das grandes cidades.
O investigador, portanto, deixa de ser apenas uma
máquina de pensar e passa a vivenciar um cotidiano
de violência, ameaças, lutas e traições, sendo estes
os principais motivos do gênero, utilizando a noção de
Tomachevski (1971) de que os motivos são unidades
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AVANCA | CINEMA 2014
temáticas que podem ser encontradas em diversas
obras e que se combinam, constituindo o apoio
temático da obra.
A traição é uma temática fundamental do noir, visto
que os personagens estão sempre mergulhados em
ambientes tomados pela corrupção e o público nunca
sabe com certeza as motivações dos personagens
que habitam essas narrativas, eles tanto podem estar
ajudando o investigador como tentando enganá-lo. Do
mesmo modo, as mulheres do noir, denominadas de
femmesfatales, se escondem sob uma postura frágil
para seduzir e manipular os detetives.
O noir foi levado ao cinema a partir da década
de 40, muitas vezes através da adaptação de
obras literárias publicadas durante a década de
30, tendo sido então cunhado o termo pela crítica
cinematográfica da França. Os filmes noir utilizavam
predominantementeda fotografia em preto e branco
e baixa iluminação, ângulos de câmera acentuados,
sobreposições narrativas e narração com a voz-
over dos personagens, mais notadamente a do
protagonista da história.
Os filmes do movimento noir foram produzidos
maciçamente entre as décadas de 40 e 50, mas aos
poucos foi perdendo espaço. É importante destacar,
no entanto, que o movimento noir no cinema não
consiste somente de narrativa policial. O movimento
até hoje suscita discussões entre os teóricos acerca
de sua abrangência ou mesmo de sua colocação
como gênero por si só ou um subgênero como vemos
em trabalhos como os de Neale (2000), Fernando
Mascarello (2006) ou WheelerDixon (2008), sendo
mais seguro compreender o noircomo um movimento
bastante amplo que, dentre outras coisas, compreende
também produtos que podem ser inseridos dentro da
narrativa policial. Produtos estes cujas características
como detetives durões, femmesfatales e uma
moralidade cinzenta ficaram no imaginário popular e
é com essas características que o filme The Singing
Detective dialoga.
Sobre The Singing Detective
O longa-metragem é uma adaptação da série
britânica de mesmo nome exibida durante a década
de 80 e escrita por Dennis Potter, que também é o
responsável pelo roteiro deste filme. A trama conta
a história de Dan Dark um escritor de romances
policialescos que está internado em um hospital
devido a um grave problema de pele que o impede de
se mexer. Imóvel em uma maca, acaba mergulhando
em sua própria imaginação e no universo noir que
criou em seus livros, assumindo o alter-ego do
detetive cantor.
Assim o filme já apresenta a dualidade entre
dois universos que Altman (1987) afirma ser parte
essencial do musical americano, a contraposição entre
um universo realista e outro idealizado, onírico. No
mundo real Dark está preso a uma cama de hospital
devido a uma séria doença, mas em sua imaginação
ele cria um universo fantasioso, situado na década de
50 e baseado em elementos tradicionais do noir. Neste
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cenário, sua persona detetivesca também é o exato
oposto de seu eu real.
O Dan Dark do mundo real é um sujeito amargurado,
anti-social, cheio de raiva e medo em enfrentar
traumas do passado, enquanto que sua contraparte
investigativa é o típico detetive hard-boiled da ficção
noir, durão, seguro de si, pavio curto e destemido,
somada ao inesperado talento para cantar. Além
disso, o personagem fala de um modo similar aos
detetives de filmes da década de 40 como À Beira do
Abismo (1946) e O Falcão Maltês (1941), falando com
o canto dos lábios, mal movendo a boca e com uma
cadência mais acelerada que era comum aos filmes do
mesmo período, que tinham diálogos mais rápidos. Há
inclusive um momento em que o personagem segura
a estátua de uma ave que lembra bastante o cobiçado
objeto de O Falcão Maltês, fazendo uma clara alusão
ao filme e à cinematografia deste período.
A oposição entre os dois universos é percebida
também através dos cenários e da fotografia. O
hospital, como é de se esperar, é dominado pela
cor branca, desde os cenários, passando pelas
vestimentas dos médicos e enfermeiros, além disso
são ambientes claros, muito bem iluminados, dando
a aparência ascética de uma instalação de saúde,
entretanto aqui o personagem está solitário e tem uma
existência literalmente dolorosa.
Já o universo imaginário do protagonista é
dominado por ambientes escuros, com pouca
iluminação, a cor preta é predominante, não apenas
na escuridão dos cenários, mas também nas roupas
dos personagens. Apenas as personagens femininas,
típicas femmesfatales, sedutoras e ambíguas, tem
cores mais chamativas como o laranja do vestido
da mulher que é assassinada no começo do filme.
Se este ambiente parece inicialmente algo hostil,
indesejável para um sonho, aos poucos vemos que
este universo é usado por Dark para projetar seus
traumas e frustrações, enfrentando-os com a persona
idealizada do detetive cantor.
Sabemos estas informações, pois o filme vai aos
poucos nos mostrando as memórias de Dark e a
relação problemática que teve com as mulheres de
sua vida, em especial sua mãe e sua ex-mulher.
A relação entre a memória real e a idealizada se
verifica claramente quando constatamos que as
duas prostitutas mortas em seu universo detetivesco
são interpretadas, respectivamente, pelas mesmas
atrizes que interpretam sua mãe e sua ex-esposa no
mundo real.
Seria possível, talvez, estabelecer a dualidade
entre os dois Dan Dark e os universos que eles
habitam, como uma narrativa de duplo foco, tal qual
Altman (1987) afere ser uma marca típica do musical
clássico hollywoodiano. Tal qual em uma narrativa de
duplo foco, o filme é centrado em dois personagens,
o Dan Dark real e o detetive, que apresentam
personalidades e condutas opostas e, conforme o
filme progride, resolvem essas diferenças e aprendem
algo um do outro.
A diferença é que aqui, ao invés de basear
este duplo foco em um casal ou uma dupla de

personagens, The Singing Detective constrói essa
oposição de personalidades em cima de um único
sujeito, que se apresenta de dois modos distintos.
Estes modos não deixam de representar dois lados
de uma mesma moeda como Altman afirma sobre a
natureza dos protagonistas de um musical, no qual um
personagem reflete o outro e mostrando aquilo que
lhe falta. Essa relação de complementação também
é verificada nos “dois” protagonistas, mas de maneira
mais unilateral, já que apenas do Dark detetive tem
algo a passar para o Dark real e recíproca não ocorre.
Assim sendo, embora apresente um foco dual e uma
contraposição entre dois personagens com posturas
distintas, a relação entre eles se dá de modo diferente
das premissas estabelecidas por Altman.
As performances musicais no filme
Os números musicais também parecem seguir
os três critérios apontados por Altman (1987) como
presentes no musical americano, a dissolução
de áudio, a dissolução de vídeo e a dissolução
de personalidade. Aquilo que Altman chama de
dissolução do áudio é o que “sobrepõe sons em ordem
a passar de uma dimensão sonora para outra” (Altman
1987 p. 63). Já a dissolução de vídeo trabalha para
fazer imagens distintas parecerem contínuas através
de superposições. O autor entende que a dissolução
se aplica a “qualquer dispositivo visual de um filme
que liga dois lugares separados, tempos ou níveis
de realidade” (Altman 1987 p.74). Especificamente,
a dissolução de vídeo diz respeito à conexão entre o
espaço da realidade diegética a um espaço idealizado,
seja ele diegético ou não.
Por fim, temos a dissolução de personalidade, já
que o musical americano depende da relação ambígua
entre o real e o ideal, mas, de acordo com Altman, “ao
longo do filme essa oposição é estreitada, reduzida
e, em alguns momentos cruciais, apagada” (Altman
1987 p.80). Isso implica em pensar que a superfície
da personalidade de cada protagonista corresponde
à personalidade reprimida do outro. Conforme
a narrativa progride, é justamente através das
performances musicais, que vemos esses aspectos
reprimidos aparecerem.
A dissolução de áudio é a marca mais presente
no filme, aparecendo em praticamente todos os
números musicais contidos na obra. Toda vez que
há uma performance ouvimos de antemão o som dos
instrumentos e os personagens começam a cantar
para uma música que não está ali, dentro da diegese.
Na verdade, cantar não é exatamente a palavra
a ser usada aqui, já que os personagens do filme
não chegam efetivamente a cantar com suas vozes,
na verdade eles dublam as músicas, todas versões
famosas e reconhecíveis de sucessos da década de
50 como “PoisonIvy”, que inclusive tem uma versão
em português. Isso fica bastante claro quando vemos
Dan Dark exibir uma voz diferente a cada canção,
demonstrando que a voz que ouvimos não apenas
não vem da diegese, quando também não vem do
personagem. O uso de performances “dubladas” deixa
Capítulo I – Cinema – Cinema
ainda mais claro o mecanismo da dissolução de áudio,
já que os personagens cantam com uma voz que está
totalmente fora da diegese.
As músicas parecem saídas diretamente das
memórias do protagonista, uma vez que o vemos
constantemente cantarolando algumas delas no
mundo “real” ou ouvindo elas nos flashbacks que
ilustram suas lembranças de infância. Isto evidencia
que as performances e todo o universo detetivesco
do filme não são apenas cenários fantasiosos e
ficcionais, mas um reflexo dos traumas e anseios
do personagem transformados pelo poder idílico da
imaginação e do sonho.
A dissolução de imagem ocorre mais nos números
que se passam inicialmente dentro do mundo “real”,
servindo como ponte entre essa realidade e o
espaço idealizado no qual ocorrem as performances.
Notadamente, percebemos a dissolução de vídeo
mais claramente em dois momentos do longa. Um
deles é já no primeiro número do filme, no qual Dark
está cercado por uma junta médica e a câmera se
posiciona sobre a cabeça do personagem, mostrando
sua maca cercada pelos médicos que de repente
começam a cantar e dançar.
Assim que a música começa, a iluminação muda,
assumindo uma cor azul, dando a cena uma impressão
de delírio. As paredes do cenário se abrem, revelando
um ambiente aberto e cheio de luzes, quase como uma
boate, no qual médicos e pacientes continuam a cantar
e dançar. Um espaço que é claramente fantasioso,
mesmo em relação à diegese, já que um hospital
dificilmente teria uma boate em suas instalações e
médicos não começariam a cantar e dançar diante de
um paciente em estado grave. A câmera continua a
se mover até chegar em um palco, no qual a versão
detetive de Dark canta a música enquanto é observado
ao longe por sua contraparte “real”. Ao fim da canção
um flash de luz marca o corte para a próxima cena,
na qual o chefe da junta médica continua a falar com
Dan. O flash serve justamente para demarcar o fim do
número, a saída do espaço fantasioso no qual estava
contida a performance e o retorno ao mundo real.
O outro momento ocorre quando uma das
enfermeiras está aplicando uma pomada na pele
de Dark, deixando-o excitado e constrangido. O
personagem tenta conter sua excitação física, mas
seu esforço vai se revelando infrutífero conforme a
enfermeira começa a esfregar a pomada em seu pênis.
Novamente o corte da imagem é marcado por flash de
luz e quando a imagem volta vemos o quarto a meia-
luz e a maca de Dark está cercada por mulheres de
lingerie, além da própria enfermeira, e todas cantam
Mr Sandman. Novamente o cenário se abre, revelando
um antigo carro no qual a contraparte imaginária de
Dark e a enfermeira passeiam e ela aos poucos abre
suas calças, colocando as mãos dentro dela, enquanto
o coro de mulheres continua cantando e dançando
em volta do carro. Essas cenas são intercaladas por
tomadas do Dan “real” e suas reações conforme a
enfermeira esfrega a pomada em seu pênis. O número
musical só encontra seu fim quando Dark chega a sua
inevitável ejaculação.
31
AVANCA | CINEMA 2014
A dissolução de personalidade pode ser vista
na grande maioria dos números musicais já que
em praticamente todos eles assume, mesmo que
apenas em parte da cena, a sua persona de detetive,
denotando a aproximação entre a personalidade
real, frágil, insegura e amargurada de Dan com seu
alter-ego imaginário mais independente e confiante,
um ideal daquilo que ele queria ser. É possível ver
essa ideia com mais clareza na cena em que contem
a canção “ThreeStepstoHeaven”, que se passa
completamente no mundo real e mostra Dan se
levantando sozinho pela primeira vez de sua cadeira
de rodas, nesse momento vemos que é através do uso
do canto e da dança que o personagem aos poucos
recupera não apenas os movimentos do corpo, mas
também sua confiança e auto estima.
Assim sendo, é através dos números musicais
que a personalidade de Dan Dark vai aos poucos se
dissolvendo na de seu alter-ego idealizado, tanto que
ao fim do filme presenciamos o assassinato simbólico
do Dan doente pelo Dan detetive, demonstrando
a passagem daquele seu eu frágil, triste e amargo
para a sua faceta mais confiante e independente.
Essa passagem também demonstra a ideia de que
o musical americano costuma encerrar com os dois
protagonistas da narrativa de duplo foco assumindo
parte da perspectiva um do outro, entretanto, como foi
dito anteriormente, neste filme a passagem é parcial já
que os dois protagonistas são a mesma pessoa sendo
que uma reunia as características que o sujeito tinha
e o outro as que ele queria ter e quando a narrativa se
encerra ele chega justamente a este seu “eu” ideal.
Além destas premissas mais gerais em relação
aos musicais, Altman também os divide em três
subgêneros com práticas mais específicas: o musical
contos de fadas, o musical show e o musical folk.
De início já podemos descartar localizar The Singing
Detective como um musical show. Embora algumas
das performances envolvam apresentações dentro
da diegese, mais especificamente num mundo fictício
dentro dela, o filme não gira em torno da concepção
e produção de um show ou qualquer produto cultural.
Do musical de contos de fadas poderíamos colocar
o fato do filme se situar, em parte, em um universo
fantasioso e idealizado, mas seria expandir demais o
conceito de Altman, já que na concepção do autor o
conto de fada seria situado inteiramente em um mundo
fantasiado e romantizado, além disso, esse mundo
faria parte da realidade diegética, algo que não ocorre
aqui. Outro ponto principal em que o filme se afasta é
que os musicais de conto de fada normalmente são
centrados em um casal e no desenvolvimento de seu
romance de modo a usar musica e dança disfarçar a
sua própria natureza sexualizada. Nenhuma das coisas
ocorre neste filme, já que o relacionamento entre Dan
Dark e sua ex-esposa não é o centro da trama, nem
segue o modelo de duplo foco, sem mencionar que o
filme trata abertamente do comportamento sexual dos
personagens.
Resta, então o musical folk. Inicialmente é possível
afirmar que o filme tangencia esse subgênero, ao
apresentar uma versão idealizada e transformada
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pela memória do passado americano, tanto através
dos segmentos detetivescos, cuja idealização
seria baseada no noir, como nos flashbacks do
protagonista. Do mesmo modo, o filme também conta
com alguns números de dança envolvendo grupos
de pessoas, entretanto, diferente daquilo que Altman
afere aos folk, esses números não visam reforçar o
sentido de cooperação e união entre grupos sociais
ou a sensação de uma comunidade coesa, tampouco
a ambientação em um passado estilizado serve a este
propósito.
Considerações Finais
Assim sendo, neste trabalho percebemos como o
filme The Singing Detective dialoga com elementos do
musical clássico americano, construindo sua narrativa
e suas performances de canto e dança em cima de
alguns mecanismos já tradicionais ao gênero, ao
mesmo tempo em que tangencia também elementos
costumeiramente atribuídos ao cinema policial noir
que ainda permanecem no imaginário popular.
O trabalho de análise revela que alguns conceitos
gerais desenvolvidos por Altman para o cinema musical
americano ainda podem ser utilizadas em produtos
contemporâneos. Por outro lado, suas classificações
de subgêneros pouco dialogam com um produto
recente, seja por uma característica intrínseca deste
produto e sua hibridização com outros gêneros, como
a narrativa policial, seja por mudanças mais gerais no
musical americano em si, que geraram novos modelos
produtivos para os musicais. Assim sendo, próximas
investigações acerca dos musicais contemporâneos
precisam tentar compreender através de que tipo de
formatos o gênero atualmente se organiza.
Notas finais
1
Este artigo foi desenvolvido no âmbito dos projetos
de pesquisa “O Cinema Musical na América Latina: ficção,
documentários e novos formatos.”, apoiado pelo edital FAPESB
11/2013 de Apoio à Formação e Articulação de Redes de
Pesquisa no Estado da Bahia, e “Os musicais no Brasil: cinema
e televisão”, apoiado pelo edital Universal MCTI/CNPq Nº
14/2013.
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