You are on page 1of 7

AUTORRETRATO E PERFORMATIVIDADE

O ENSAIO NO CINEMA DE EXPOSIÇÃO


Rodrigo Gontijo

Parte do doutorado

Live Doc – diálogos, convergências e hibridismos entre documentário e performance

A partir dos anos 60, a imagem em movimento estabelece diálogos efetivos com outras

práticas artísticas como o teatro, música e performance. As variedades de dispositivos de registro

(super-8, vídeo), assim como a facilidade de manuseio e edição, atraíram jovens artistas e

performers fazendo com que diversos trabalhos fílmicos se consolidassem no circuito das artes

visuais.

Através deste cruzamento entre arte e cinema, vemos cineastas reconhecidos exporem seus

trabalhos no campo das galerias e artistas renomados apropriarem-se dos dispositivos

cinematográficos, produzindo filmes para o circuito das artes. Esta aproximação vem abrindo uma

espécie de rua de mão dupla, que potencializa a troca de conceitos que antes costumavam se

restringir apenas aos territórios de origem, ampliando as reflexões em cada uma destas esferas.
Em diversas obras do Cinema de Exposição1 nos deparamos com elementos recorrentes

nas artes performáticas como as narrativas permeadas por fragmentos autobiográficos estruturados

a partir de procedimentos performativos, características que apontam para uma dimensão

ensaística, se formos pensar a partir da instituição cinematográfica.

Para Timothy Corrigan (2015), o filme-ensaio parte de três variações que descrevem “a

atividade de entrecruzamento da expressão pessoal, da experiência pública e do processo de

pensamento constituídos numa narrativa fílmica”. E Ursula Bienann (2003) complementa: “o

ensaio situa-se em algum lugar entre o vídeo documental e a videoarte”.

Em Me and Rubyfruit (1989), a artista norte-americana Sadie Benning aborda questões

referentes aos seus sonhos, medos e desejos por garotas em confissões num formato de vídeo-

diário. Suas palavras ditas para a câmera, enquanto registra seus próprios olhos num big close, se

intercalam com frases filmadas, bonecas nuas e fotografias. Ela mesma manipula sua Pixelvison

(câmera lançada nos anos 80 que gravava em uma fita K7), propondo assim planos rápidos,

organizados numa montagem de gatilho, ou seja, com as cenas filmadas na ordem do roteiro. O

título remete ao romance Rubyfruit Jugle, escrito em 1973 por Rita Mae Brown. O filme de

Benning faz parte da coleção do MOMA.

1
Tal prática passou a ser chamada nos anos 90 de Cinema de Exposição (termo cunhado pelo crítico Jean-Christophe

Royoux). Segundo Dubois “desde então, todo mundo o retomou, de Raymond Bellour a Dominique Païni, de Art

Fórum a Art Press”.


Em Why I never became a dancer (1995), a artista britânica Tracey Emin retoma um evento

traumático de sua adolescência, período em que morava na pequena cidade de Margate, localizada

no litoral da Inglaterra. Através de uma voz em off da própria artista, sobre imagens registradas

em Super-8 que trazem paisagens vazias de sua cidade natal, Emin aborda os abusos e humilhações

que sofreu, dedicando o filme a um grupo de garotos. Na cena final gravada em vídeo Hi-8, a

artista já adulta dança intensamente ao som da disco music You make me feel de Sylvester James,

sendo seguida pela câmera numa coreografia em plano seqüência. Neste filme passado e presente

são bem marcados pelos dispositivos de registro. A obra faz parte da coleção da TATE.

Em Confession (2010), Marina Abramovic realiza uma performance para câmera onde numa

sala fechada ajoelha-se diante de um burro encarando-o nos olhos até que o animal decida se mover

e deixar o espaço do enquadramento da imagem. Num plano conjunto que dura aproximadamente

1 hora, em imagem monocromática filmada em digital (Full HD), vemos a artista sérvia e o animal

numa situação de cumplicidade acompanhados por uma narração feita por meio de legendas que

atravessam o rodapé da imagem. Os textos resgatam memórias dolorosas e conturbadas da sua

infância e adolescência em relação a sua família. A escolha deste coadjuvante pode ser interpretada

de diferentes maneiras. Na Bíblia o burro aparece como uma metáfora de força e humildade. Na

cultura ocidental é sinônimo de estupidez. Tanto uma leitura quanto a outra podem se encaixar na

relação da artista com seus pais e familiares. O trabalho foi exibido na Bienal de Arte de Veneza

de 2011 (54º).
Os trabalhos aqui selecionados além de circularem no âmbito do cinema de exposição e

terem sido realizados por artistas de diferentes nacionalidades, abordam também questões

geracionais a partir de narrativas em primeira pessoa. O filme de Sadie Benning aponta para

angústias do presente, com imagens em preto e branco e repletas de ruídos, que provocam um

diálogo entre forma e conteúdo. No instante em que o filme foi feito, Benning tinha apenas 16

anos. Tracey Emin, com o dobro da idade de Benning, evocou os traumas do passado em Why I

never became a dancer, relacionando-os a uma ação no presente. Passado em super-8 e o presente

em Hi-8 são colocados lado a lado, como uma forma de exorcizar os traumas. Já Marina

Abramovic, através de uma performance para tela, vai reconstruir as memórias de um ambiente

familiar marcado por muitas brigas e pouco afeto. Curiosamente quando Abramovic realizou

Confession, ela tinha exatamente o dobro da idade de Emin.

A dimensão performativa é uma marca destes 3 trabalhos, pois a performatividade significa

a ação de fazer ou instaurar algo, uma reflexão sobre o presente, uma aproximação entre passado

e presente, ou ainda um resgate de memórias. A performatividade oferece a oportunidade de refletir

um fato não como a narrativa daquilo que apenas foi, mas como a presença do que é, se atualizando

no instante do acontecimento. O ato implica em não observar à distância, mas observar de dentro,

sob o que foi vivido. Como aponta Josette Feral, “a performatividade não é um fim em si mesmo,

uma realidade concreta ou acabada, mas um processo. Ela é uma construção (uma realidade

como performance) e reconstrução (reconhecimento intelectual das etapas dessa construção)”.

No campo das linguagens e práticas artísticas, este conceito que deriva da noção de performance,

compreende também a ação, a atuação, a vivência e a expressividade da experiência de troca entre

público e artista.
Observamos a dimensão performativa desde a organização do discurso fílmico de cada um

dos trabalhos, com articulações distintas entre imagem sonora e imagem visual, como também na

encenação de cada artista, na relação que estabelecem com câmera, filmando partes do próprio

corpo, dançando freneticamente diante dela, ou mesmo ficando quase que imobilizada por 1 hora.

Vemos ainda traços performativos na modulação, ritmo e intensidade das palavras verbalizadas e

escritas.

Os três trabalhos tem como ponto de partida um material pessoal, que assume a forma de

monólogo, interpretado pelas mesmas pessoas que viveram os acontecimentos. No campo da

performance, fragmentos autobiográficos são compreendidos não apenas como sequências de

informações sobre determinada pessoa, mas, acima de tudo, o modo como esta pessoa viveu cada

um dos fatos, como produziu experiências e criou sentidos para cada momento. Marvin Carlson

afirma que a performance é sempre “emoldurada no modo da autorreflexividade”, pois aquele

que mostra é sempre aquele que faz. Escolhas pessoais entram em jogo, entram em cena, passam

a fazer parte do filme. Não se trata mais de uma personagem a ser interpretada por uma atriz, mas

de uma performer jogando com diferentes personagens a partir dela mesma. A concentração de

narrativas em torno do ‘eu’ e da autoexpressão produziu, de acordo com Timothy Corrigan, um

dos modos mais proeminentes e onipresentes do filme-ensaio: o autorretrato. Fragmentos

autobiográficos servem como ponto de partida para a construção de narrativas autorretratísticas.

A memória é atualizada, as questões pessoais se expandem e se abrem para indagações mais

amplas que ecoam e estabelecem um diálogo de maneira afetiva e efetiva com o mundo.
Me and Rubyfruit, Why I never became a dancer e Confession, por conta de suas dimensões

performativas e autorretratísticas podem ser consideras filmes-ensaio. Nestas obras observamos o

pensamento se constituindo, questionando fatos do presente, experiências pessoais ou ainda

lidando com coleções de eventos e fragmentos de memórias que dialogam com imagens que atuam

como metáforas do pensamento. Tudo isso construído na forma de diários ou cartas, como na obra

de Sadie Benning que escreve e filma como se anotasse suas idéias numa caderneta ou de Tracey

Emin que inclusive dedica o filme a um grupo de garotos que marcou seu passado. A forma de

filme-carta ou vídeo-diário retoma a tradição do filme-ensaio. De acordo com Antonio

Weinrichter, o ensaio diarístico é marcado pela “digressão, dispersão, incerteza e fragmentação”.

Todas estas são características presentes nestes 03 trabalhos aqui apresentados.

A evolução tecnológica dos dispositivos de registro, que os tornaram menores e mais leves,

permitiram a emancipação do ‘eu’ no cinema através das narrativas autorretratísticas. Para

Antonio Weinrichter, “outro princípio do cinema de vanguarda tem sido o desdobramento da

autoexpressão; e esse repertório de formas de dizer ‘Eu’ em um cinema de produção artesanal

que se constitui como uma base para o ensaísmo, sobretudo, quando o cineasta-artista se propõe

a refletir sobre seu lugar no mundo ou sua identidade”. E o pesquisador espanhol conclui “o ensaio

é uma prática que atravessa uma série de instituições caracterizadas historicamente pela

ignorância ou indiferença professadas mutuamente, tanto do ponto de vista dos cineastas e

artistas, quanto dos historiadores. As áreas de trabalho e de exibição das obras estão tão

compartimentadas e se revelam tão estanques entre si como os estudos que se escreve sobre elas”.
Com as aproximações cada vez mais acentuadas entre cinema e arte contemporânea,

poderemos ver e rever diversos trabalhos produzidos desde os anos 70, à luz dos conceitos do

filme-ensaio, assim como refletir sobre o filme-ensaio a partir das ferramentas de análise do campo

da performance.

***

BIBLIOGRAFIA
BLÜMLINGER, Christa. Harun Farocki...The Art of the Possible In: BIEMANN, Ursula
(Editor). Stuff It: The Video Essay in the Digital Age. Zurique: Edition Voldemeer, 2003.

BIEMANN, Ursula. Performing Borders: the transnational video. In: BIEMANN, Ursula
(Editor). Stuff It: The Video Essay in the Digital Age. Zurique: Edition Voldemeer, 2003.

CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio – desde Montaigne e depois de Marker. Campinas: Papirus


Editora, 2015.

GONTIJO, Rodrigo. Filmes em atos performáticos. In TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org.). O


Ensaio no Cinema. São Paulo: Hucitec, 2015

PARENTE, André. Entre cinema e arte contemporânea. São Paulo, Revista Galáxia (PUC-SP) –
nº 17, 2009.

WEINRICHTER, Antonio. Um conceito fugidio. Notas sobre o filme-ensaio. In TEIXEIRA,


Francisco Elinaldo (org.). O Ensaio no Cinema. São Paulo: Hucitec, 2015

DUBOIS, Phillipe . Catálogo da exposição Movimentos Improváveis- o efeito cinema na arte


contemporânea, Centro Cultural Banco do Brasil, 2003.

You might also like