Capítulo II – Cinema – Cinema
Mentiras Verdadeiras: A dúvida sobre a objetividade das evidências em
Garota Exemplar
Lucas Ravazzano de Mattos Batista
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Abstract
In this paper we analyze the movie Gone Girl (2014),
by David Fincher, to demonstrate how the film revisits
traditional elements of the detective fiction, especially
the idea of objectivity that is constantly attributed to
genre. We will try to understand how the detective
fiction has as a central element the reaffirming of the
power of logic and rationality in solving crimes. Then
we’ll cover the ways in which the investigative plot
of Gone Girl revise these elements, especially from
the denial of the objectivity of physical evidence, and
builds a narrative where the evidence only points
towards false conclusions.
Keywords: Detective Fiction, Film Analysis, Film
Genres.
Introdução
A narrativa policial é um gênero bastante
reconhecível, tanto na literatura quanto no cinema e na
televisão. Quando falamos que um determinado produto
é uma narrativa policial, independente de ser literária,
televisiva ou cinematográfica, temos em nossa mente
uma ideia muito clara do que esperar. Imaginamos que
seremos defrontados com um crime ou um mistério e ao
decorrer da narrativa acompanharemos personagens
que investigam esse evento, analisando evidências e
testemunhos em busca de uma solução para o caso.
Há um consenso entre os autores e pesquisadores
que lidam com este gênero que seu início se deu
a partir da publicação do conto Os Crimes da Rua
Morgue, de Edgar Allan Poe, em 1841. No conto, “Poe
abriu o terreno para Sherlock Holmes e a clássica
história de detetive enquanto formato” (MESSENT,
2013, p. 27). Uma afirmação semelhante é feita por P.
D. James (2012), que considera que Poe “em apenas
quatro contos ele introduziu o que viria a se tornar um
repertório de recursos de trama das primeiras histórias
de detetive” (p. 35).
A autora lembra que os contos de Poe não foram
as primeiras histórias literárias a trazerem crimes ou
sua solução, mas foi a que estabeleceu o formato
que o gênero posteriormente viria a seguir e diz que
“Chevalier C. Auguste Dupin foi o primeiro investigador
fictício a confiar primordialmente na dedução a partir
de fatos observáveis” (p. 35). Sandra Lúcia Reimão
(1983) afirma que o contexto contribuiu para que o
detetive Dupin fosse concebido de tal forma ao falar da
influência do pensamento Positivista que:
tinha como crença básica, como pressuposto
fundamental, a afirmação de que os fenômenos
são regidos por leis. Essas leis existiriam tanto
ao nível do mundo natural quanto do orgânico e
do universo humano. Uma das conseqüências
dessas concepções positivistas é a crença de que
o espírito humano está submetido a leis como
qualquer outro fenômeno, e a teoria da associação
de idéias, já existente anteriormente, conhecerá seu
desenvolvimento maior, especialmente com John
Stuart Mill. A crença em que a mecânica mental
obedece a certos princípios gerais e em que quem
dominar estes princípios saberá usá-los em cada
cadeia de idéias, de cada homem particular, estava
em plena voga. (p.15).
Ricardo Piglia (1994) também concorda com a
importância de Poe no estabelecimento do formato
da narrativa policial, bem como a natureza racional
do detetive Dupin e compreende que o sentido das
narrativas deste gênero seria reafirmar a capacidade
de raciocínio do investigador e o poder deste
raciocínio em compreender aquilo que o cerca. Em
seu conto Poe teria criado aquilo que Reimão (1983)
entende como um arquétipo literário, “o detetive
amador, o homem que coleciona enigmas como os
outros colecionam objetos” (p. 18).
Apesar da vida curta do personagem, que apareceu
em apenas três contos escritos por Poe, muitos
protagonistas de narrativas que seguiram o trabalho
do escritor usavam o arquétipo surgido em Dupin.
John G. Cawelti (1997) afirma que um dos mais
famosos1 é o detetive Sherlock Holmes criado por
Arthur Conan Doyle que, assim como o personagem
de Poe, é um detetive consultor que ajuda a polícia
através de deduções e inferências produzidas por
longas cadeias de pensamento.
A razão e objetividade da narrativa policial
As afirmações trazidas anteriormente destacam
a centralidade deste pensamento dedutivo nas
investigações apresentadas nas narrativas policiais.
Paulo de Medeiros e Albuquerque (1979) inclusive
chega a afirmar que foi esse elemento que marcou a
separação entre a narrativa policial e as narrativas de
aventura e as de espionagem.
O autor considera que a narrativa policial viria
daquilo que considera como romance de aventura
e que o advento da imprensa inicialmente “ampliou
seu campo de ação” (p.3) e depois um segundo
movimento de transformação no romance de aventura
deu origem ao romance de espionagem, por fim
um terceiro movimento introduzido a dedução e o
raciocínio lógico “suplantando a força e a ação” (p. 3).
Assim sendo, o autor considera que entre o romance
de aventuras e o de espionagem, “a semelhança
é, às vezes, tão acentuada que se confundem, ao
passo que como romance policial tal não ocorre, pois
ele veio, com seu elemento lógico, criar uma nova
modalidade narrativa” (p. 3).
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Sobre o componente racional do gênero,
Albuquerque (1979) afere “três grandes divisões na
técnica da estória do crime-detetive” (p.21). A primeira
se daria a partir de 1841 com os contos de Edgar
Allan Poe, no qual a narrativa policial dava ênfase na
descoberta da identidade do criminoso, aquilo que se
convencionou a chamar de “quem foi?”. A segunda
teria iniciado por volta de 1894 com o chamado
“mistério médico” visto nos trabalhos conjuntos de
L. T. Meade e Dr. Clifford Halifax, “levando à estória
de detetive científica” (p.21) como os trabalhos de
Richard Austin Freeman e dando ênfase no modus
operandi do crime, isto é, o chamado “como foi?”.
A terceira abordagem começa com o acréscimo de
elementos da psicologia em 1910, como nos trabalhos
de Edwin Balmer, e que posteriormente agregou
também elementos da psiquiatria em 1929, “passando
do “quem” e do “como” para o “porque”, com ênfase
na motivação criminosa, isto é, “Por que foi cometido
o crime” (p.21).
Do mesmo modo, Walter Benjamin (1989)
compreende que neste tipo de narrativa o “interesse
reside numa construção lógica” (p. 40). James (2012)
tem uma opinião semelhante ao conceber as narrativas
policiais como “celebrações da razão e da ordem, em
nosso mundo cada vez mais complexo e desordenado”
(p. 171). Todorov (1980) também trata disso ao afirmar
que a narrativa policial traz em si duas histórias, a
história do crime, ausente; e a história da investigação,
presente, cuja justificativa é levar o público a descobrir
a primeira história. O conhecimento é a força motriz
da narrativa policial para Todorov, é ele quem gera as
transformações da narrativa a partir das informações
oferecidas que produzem uma reinterpretação dos
fatos já ocorridos levando assim a história para frente.
Ou seja, as narrativas policiais não apenas usam
esse pensamento racional e dedutivo como um
mecanismo narrativo para desenvolver e avançar suas
tramas, como também encerram produzindo o sentido
de que esse método racional é perfeitamente capaz
de compreender e analisar a realidade a nossa volta,
fornecendo respostas e resoluções para qualquer
mistério que se apresente. Através das falas destes
autores, portanto, percebemos também como muito
dessa perspectiva racionalista trazida pela narrativa
policial vinha de preceitos filosóficos e científicos da
época em que foi concebida.
Os ciclos da narrativa policial
Os teóricos do gênero identificam três tendências
para os modos através dos quais é estruturada a
investigação e as relações dessas narrativas entre
crime e sociedade. Alguns pesquisadores como
Messent (2013), Priestman (2003) e Scaggs (2005),
dividem a narrativa policial em três diferentes
movimentos.
O primeiro seria aquilo que Messent (2013) trata
como narrativa policial clássica que começa justamente
com Poe e se populariza com o Sherlock Holmes de
Conan Doyle e com o Poirot de Agatha Christie, ambos
autores britânicos que traziam detetives amadores
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como protagonistas, tendo início no final do século XIX
e adentrando por boa parte do início do século XX.
O segundo é a narrativa policial hard boiled, cujo
início se dá próximo ao fim dos anos de 1920 e
tem como principais expoentes os estadunidenses
Raymond Chandler e Dashiell Hammet, com histórias
protagonizadas por investigadores particulares como
Philip Marlowe e Sam Spade.
Já a terceira seria aquilo que Scaggs (2005) define
como o police procedural e, segundo o autor, começou
a se desenvolver a partir da segunda metade do
século XX com autores como James Ellroy ou Thomas
Harris se destacando em narrativas nas quais os
protagonistas eram membros das forças policiais
como a Clarice Starling de Harris.
Apesar de ser possível localizar esses movimentos
temporalmente, o aparecimento de um não implica
no desaparecimento do outro, na verdade, cada um
destes tipos de narrativa policial continuou e continua a
existir e a ser produzido. Do mesmo modo, apesar das
diferentes abordagens investigativas dos detetives,
destes diferentes ciclos, os resultados mantinham-
se os mesmos: com sua inteligência, racionalidade e
métodos, os investigadores continuavam a resolver os
crimes de maneira inquestionável, mesmo quando a
resolução não necessariamente implicava na punição
dos culpados.
.
Garota Exemplar e a natureza ambígua das
evidências
Lançado em 2014, Garota Exemplar foi baseado
no romance homônimo de Gillian Flynn e é o décimo
longa-metragem da carreira do diretor David Fincher.
Seu lançamento foi marcado por elogios por parte da
crítica e um relativo sucesso de bilheteria , além de
ter recebido uma indicação ao Oscar para Rosamund
Pike como melhor atriz.
Antes de nos determos ao filme, no entanto, nos
parece importante também oferecer algum contexto no
que se refere a ele e seu realizador. A obra não é a
primeira vez que Fincher trabalhou com uma narrativa
policial e algumas de suas outras obras já foram
citadas ao longo deste texto, tampouco é a primeira
vez que o realizador comandou uma narrativa policial
na qual as coisas não seguem as noções tradicionais
de que a racionalidade e análise das evidências é
capaz de resolver qualquer crime.
Em Zodíaco (2007), baseado no relato autobiográfico
do jornalista e cartunista Robert Graysmith, ele já
havia tecido uma trama na qual as evidências não são
suficientes para desvendar a verdade de um crime.
Diante desse trânsito do diretor pelo gênero, talvez
seja importante, para fins de contextualização, trazer
um pouco de sua trajetória e posição em Hollywood.
O que iremos observar no filme
A narrativa policial, como qualquer outro gênero
cinematográfico, gera expectativas bem delineadas
em produtores, críticos e público e, assim sendo,
todos esses grupos envolvidos tem algum tipo de

noção acerca do que o filme deve suscitar ao longo
da sua apreciação. Deste modo, compreendemos
que para analisar estes produtos, precisaríamos de
uma perspectiva teórico-analítica que nos ajudasse
a observar a obra fílmica a partir dos efeitos que a
própria obra busca produzir. Nesse sentido a chamada
poética do filme construída por Wilson Gomes (1996,
2004) se adéqua com o que se pretende alcançar
nesta pesquisa através da análise fílmica, uma vez que
ela se concentra justamente nos efeitos cognitivos,
emotivos e sensoriais que uma peça artística visa
suscitar em seus apreciadores.
O uso da perspectiva proposta por Gomes se
adequa bem com o que se pretende alcançar
nesta pesquisa através da análise fílmica, uma
vez que ela se concentra nos efeitos que uma
peça artística visa suscitar em seus apreciadores
e nesta pesquisa queremos entender como essas
narrativas constroem seus efeitos, em especial como
estabelecem um sentido diametralmente oposto ao
que normalmente fazem as narrativas policiais, que
é a exaltação da razão como forma de compreender
e decifrar a realidade.
Por poética Gomes (1996) considera: “os programas
ou projetos de formação ou estruturação da obra de
arte onde se inscrevem as intenções operativas dos
produtores de obra de arte, da música à literatura, da
arquitetura às artes plásticas” (p.103). Deste modo, a
poética é considerada como um programa operativo
que o artista propõe a cada obra, o projeto de obra a
ser feito como o artista o tem em mente. Gomes (1996)
afirma que a poética, portanto, deveria ser capaz de
indicar aquilo que é convocado por natureza em cada
tipo de obra de arte.
Sob esta perspectiva, portanto, Gomes (1996)
considera que o ideal da poética seria entender “a
produção - nas obras de narrativa ficcional e na
representação dramática - dos efeitos específicos
de cada gênero de poesia sobre os seus fruidores”
(p.109). Por produção o autor quer dizer que a poética
se ocupa com os efeitos “da poesia sobre os fruidores,
mas tais efeitos tais efeitos devem ser considerados
do ponto de vista das estratégias de que lança a mão
o poeta na realização da sua obra poética” (p. 109).
Isso implicaria em considerar que a poética visa
estudar as estratégias de organização dos elementos
da composição artística que preveem e solicitam
determinados efeitos, específicos para cada gênero,
que são construídos pelos realizadores. Deste
modo, a obra de arte para o autor é “um mecanismo
de acionamento de efeitos através das tentativas,
eliminações e escolhas de que ela resulta” (p.109).
Enquanto programa teórico-metodológico, a poética
buscaria, portanto, entender o que o filme faz com
seus espectadores a partir daquilo que emerge da
cooperação entre texto e apreciador. Deste modo,
Gomes (2004) entende que essa produção de efeitos
funciona com três modos de composição de efeitos
que são convocados ao espectador: sensação,
sentido e sentimento.
Sabemos que não é plenamente possível distinguir
ou separar cada um desses três tipos de efeitos
Capítulo II – Cinema – Cinema
durante o esforço analítico de uma obra fílmica,
mas iremos priorizar aqui os efeitos de sentido, já
que é na construção de sentido da obra que está
a ideia de a razão e a lógica nem sempre explicam
tudo. Observaremos, então a estrutura narrativa de
Garota Exemplar e os modos através dos quais ela
usa os recursos da narrativa policial e seus diferentes
movimentos para trabalhar suas ideias e como essas
ideias parecem dialogar com pressupostos científicos
mais contemporâneos como os de Bourdieu (1989) ou
Didi-Huberman (2012).
O garoto, a garota, a investigação, o crime
A trama de Garota Exemplar é centrada no casal
Nick e Amy Dunne. No dia do quinto aniversário de
casamento deles Amy desaparece misteriosamente.
Os móveis desarrumados e quebrados encontrados
na casa fazem Nick e a polícia crerem que houve um
crime e Amy foi raptada. Ao curso da investigação
acompanhamos flashbacks saídos do diário de Amy e
vamos descobrindo que o casamento de Nick e Amy
começou a ter problemas desde que eles perderam
seus empregos por causa da recessão econômica e
que o abismo entre eles só aumentou com o tempo.
Aos poucos o filme vai nos dando razões para
desconfiar de Nick.
Quando as tensões e a dúvida se o protagonista
é ou não o responsável atingem o ápice, o filme traz
sua principal reviravolta: Amy não foi sequestrada, ela
encenou tudo para culpar Nick de modo a se vingar
por ele ter sido um péssimo marido. O foco então
passa a ser as tentativas de Nick em se defender das
acusações, ao mesmo tempo em que tenta provar que
Amy está viva. Ao fim, Nick consegue evitar a prisão ao
convencer Amy a retornar, mas é obrigado a continuar
casado com ela e admitir a todas as falsas agressões
relatadas por ela em seu diário, já que é incapaz de
provar a armação da esposa, pois toda as evidências
físicas do caso corroboram a história dela e não a dele.
Assim, o protagonista termina preso a uma mentira,
pois todas as provas tidas como verdadeiras eram, na
verdade, forjadas e não havia nenhuma prova material
do que realmente ocorreu. Quando o filme encerra,
somos deixados com a questão se há realmente uma
verdade única ou a possibilidade de que a noção de
verdade seria um construto subjetivo feito a partir do
significado que damos aquilo à nossa volta.
O filme abre uma narração de Nick sobre abrir a
cabeça da esposa para entender seus pensamentos.
Em qualquer outro contexto a fala poderia ser
interpretada apenas como uma metáfora sobre a falta
de comunicabilidade conjugal, mas em uma narrativa
policial como Garota Exemplar ela ganha contornos
ambíguos, servindo também como uma sugestão ou
ameaça de violência, uma sensação que é ampliada
pela inquietante música de fundo.
A seguir acompanhamos imagens de prédios
decrépitos, imóveis à venda, hipotecados ou com
preços reduzidos, dando a impressão de uma de uma
paisagem urbana vazia e economicamente devastada.
O cenário remete ao atual período de recessão
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AVANCA | CINEMA 2016
econômica dos Estados Unidos, mas também às
cidades decadentes da narrativa policial hard boiled
representada no cinema pelo movimento noir. Aliás,
o hard boiled, como traz Arbex Jr (1995), também
costumava a comentar sobre a decadência urbana e
social causada por questões econômicas.
Na primeira cena entre Nick e sua irmã gêmea
Margo temos o primeiro indício de que o casamento
entre Nick e Amy não vai bem e que ele guarda
uma certa medida de ressentimento pelas “caçadas
ao tesouro” que a esposa cria para os aniversários
deles. O diálogo entre eles é cortado pelo o primeiro
flashback da narrativa, que nos é apresentado como
um excerto dos diários de Amy, e o plano-detalhe das
mãos dela segurando a caneta sobre o papel não nos
deixa nenhuma dúvida de que aquele é o seu diário e
que aquelas são suas memórias.
Este primeiro flashback traz imagens com tons
de sépia, dando um ar de passado nostálgico às
imagens, enquanto que a música sutil e alegre
nos induz a pensar que se tratam de lembranças
afetuosas, corroborando a impressão de que de fato
estamos vendo as memórias de Amy de um passado
feliz entre os dois.
O convencimento sobre a veracidade do relato
dela será importante mais para frente quando a
personagem começa a se desviar da verdade, nos
fazendo continuar a crer que estamos vendo o que
de fato ocorreu, pois até então tudo contido nos
flashbacks foi construído para parecer verdadeiro.
Neste flashback também temos um leve sugestão
de que deveríamos duvidar do caráter de Nick
quando Amy lhe diz que ele tem um “queixo de
vilão “. Ao mesmo tempo, o flashback deixa claro o
clima de sintonia e romance entre eles no início do
relacionamento ao encerrar com um beijo em meio a
uma literal e metafórica nuvem de açúcar.
A alternância entre o passado e o presente não
apresenta apenas uma oposição temporal, mas
também uma oposição entre a amargura de Nick
em relação ao fracasso de seu relacionamento e a
empolgação de Amy quanto ao início da relação do
casal. No presente, ao levar a polícia para sua casa,
Nick observa enquanto a detetive Boney marca as
possíveis pistas para o desaparecimento de Amy, que
até então sugerem que ela foi levada à força de sua
casa. A detetive inclusive mostra-se impressionada
com os diplomas de Amy na parede, mostrados a nós
por um breve plano-detalhe, servindo como indício da
inteligência da personagem.
O segundo flashback, também em nostálgicos
tons de sépia, não nos mostra apenas a felicidade
de Amy frente ao inesperado pedido de casamento
de Nick, mas também nos expõe à sua complicada
relação com seus pais. O modo como Amy é usada
como experimento e objeto por seus pais é um sutil
indício de que ela pode ter problemas em se relacionar
com as pessoas e mais para frente será importante
para justificar a natureza controladora e manipulativa
da personagem. Afinal, assim como seus pais
exigiam que ela fosse perfeita e demonstravam suas
frustrações em seus livros, a exige perfeição de seus
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relacionamentos e demonstra sua insatisfação através
das “caças ao tesouro” e manipulações intrincadas.
Na cena seguinte fica mais claro o distanciamento
entre o protagonista e Amy quando Nick é incapaz
de fornecer informações simples e básicas sobre
sua esposa, algo que também contribui para torná-lo
suspeito.
Sob este contexto, a fala do personagem pedindo
aos policiais que investiguem os sem-teto que moram
em um shopping abandonado próximo acaba sendo
recebida com dúvida. Afinal, seriam esses sem-teto
uma preocupação genuína ou ele estaria apenas
dando pistas falsas para a polícia? O temperamento
explosivo de Nick em relação à policial que lhe
fala sobre seu pai, especialmente pela montagem
contrapô-lo com a detetive Boney escorada na quina
da parede como que com medo, é mais um ingrediente
para que duvidemos da inocência de Nick.
Esses sentimentos ambíguos em relação a Nick
continuam a ser construídos na cena da coletiva de
imprensa. Nesse momento a fala rápida e pragmática
dele é contrastada com o longo e afetuoso discurso
dos sogros a respeito de Amy, nos deixando em
dúvida se ele está apenas nervoso com a situação ou
se talvez não se importe tanto assim com a esposa.
Em oposição a construção das suspeitas sobre Nick,
temos, um pouco depois, um aumento no número de
suspeitos com as menções aos problemas de Amy
com ex-namorados, um dado que mais adiante será
ressignificado com a adição de novas informações.
As suspeitas em relação a Nick, no entanto,
continuam a crescer na cena em que ele é descoberto
pelos policiais na antiga casa de seu pai e esconde
deles a “terceira pista” da caça ao tesouro montada
por Amy. Em seguida seu grito de “Piranha!” enquanto
bate no volante do carro depois de se livrar dos
policiais, deixa claro que Nick pode não estar contando
tudo para os policiais.
Esse momento dá novos contornos à descoberta da
pista anterior no escritório de Nick, quando o policial
Gilpin encontra uma peça de lingerie feminina. Se
inicialmente cremos ser de Amy, em algum tipo de
jogo picante para reavivar o casamento, frente a tudo
que está ocorrendo começamos a considerar que
talvez a peça pertença a outra pessoa, já que vemos o
protagonista mentir para polícia.
O quarto flashback marca o início dos problemas
conjugais entre eles quando ambos perdem o
emprego graças à crise econômica. Diferente dos tons
de sépia que marcaram os outros flashbacks, este
começa marcado por sombras e escuridão. Quando
eles discutem e Nick exibe uma conduta ríspida e
amargurada com a esposa, vemos Amy observando-o
pela quina da parede de um modo semelhante ao que
a detetive Boney o observou durante seu acesso de
agressividade ao lidar com o pai na delegacia, uma
rima visual que reitera a impressão de que Nick talvez
esteja tentando ocultar uma conduta violenta.
No presente, continuamos a ter sentimentos
ambíguos em relação ao protagonista. O modo
como Nick cumprimenta as voluntárias da busca,
principalmente por fazê-lo antes de cumprimentar os

sogros, chama atenção da detetive Boney e de seus
sogros, sinalizando que ele pode não se importar
tanto assim com Amy. No entanto, o desconforto do
personagem ao ser abordado por uma voluntária
mais “saidinha”, nos faz pensar que ele talvez esteja
sendo apenas educado. Seu pedido em apagar uma
foto tirada sem cerimônia pela voluntária também
denota uma ambivalente preocupação em não ser
mal interpretado, nos deixando intrigados se essa
preocupação com a opinião de terceiros é para evitar
mal-entendidos desnecessários ou se ele realmente
tem algo a esconder.
O quinto flashback começa com Nick e Amy
partindo para o Missouri. Vemos Amy sair de casa
com uma blusa verde de tom marcante, contrastando
com a paisagem cinzenta de Nova Iorque. Quando o
casal chega ao Missouri e Nick sai para cumprimentar
a família, a câmera não acompanha o personagem,
permanecendo no carro e nos mostrando os eventos
da perspectiva de Amy, revelando a distância entre
eles. Isso é ressaltado pelo plano seguinte que
enquadra Amy pelo lado de fora do carro, denotando a
barreira que há entre eles.
A volta ao tempo presente marca a primeira vez
que vemos Nick encontrar com sua jovem amante,
nos dando ainda mais motivos para suspeitar dele.
Em seguida o sétimo flashback simplesmente pede
que suspeitemos de Nick com o relato sobre violência
doméstica. Como já foi dito anteriormente, até então
tudo o que o filme construía acerca dos eventos
passados ia no sentido de nos levar a crer que esses
relatos contavam era verdade, então não temos
motivos para duvidar.
Quando acompanhamos a ida dos policiais ao
shopping citado por Nick, somos confrontados com
um ambiente sombrio, decadente e cheio de mendigos
do shopping falido. O ambiente pinta um desolador
cenário dos EUA pós-crise, retratando a degradação
de um dos grandes símbolos de seu capitalismo
comercial. A informação de que Amy queria comprar
uma arma contribui para que acreditemos na história
de violência doméstica.
O oitavo flashback já constrói Nick como uma
ameaça para Amy e sua presença passa rapidamente
pela quadro como uma sombra e a câmera enquadra
Amy através de frestas de portas, como se observada
à distância por alguma figura hostil. Em seguida
vemos Amy deitada e Nick passa pelo quarto ao
fundo, desfocado, como um vulto ou um espectro
assombrado a personagem.
Ao descobrir sobre o caso de Nick, Margo aponta
o clichê do homem de meia idade frustrado com uma
amante jovem. A fala funciona como uma espécie
de comentário metalinguístico de que isso é tão
lugar-comum na ficção que não pode ser uma pista
pertinente para a resolução do crime.
Ao mesmo tempo, aponta que Nick deve se
preocupar com a opinião pública a seu respeito e
em passar uma imagem de inocência ao nos mostrar
um telejornal que exibe as fotos de Nick sorrindo e
apesar do nervosismo em sua expressão a âncora
afirma que ele parece contente. A cena serve para
Capítulo II – Cinema – Cinema
demonstrar noções como as de Didi-Huberman (2012)
que imagens, apesar de feitas a partir da realidade,
não tem um significado absoluto e estão sujeitas às
interpretações e julgamentos de cunho subjetivo de
qualquer pessoa.
O anúncio de que a esposa estava grávida durante
o discurso de Nick no coreto, somado a tudo que
aconteceu, torna quase impossível não pensarmos
que o protagonista é culpado. Em seguida, os detetives
apresentam ainda mais evidências da culpa de Nick,
extratos bancários, seguro de vida de Amy, a poça
de sangue na cozinha nos dando uma certeza ainda
maior de sua responsabilidade no crime. Apesar das
negativas dele, não há razão alguma para acreditar
em sua versão.
O filme deixa isso claro quando Margo avisa a Nick
que não há motivo para que ninguém creia nele, já que
todas as provas apontam para ele e o protagonista
não tem nada que sirva de evidência para suas
alegações. Assim, a obra nos lembra como a noção de
verdade neste tipo de narrativa depende de evidências
materiais.
A esse ponto, com todas as provas contra Nick,
o filme deixa a culpa do protagonista como única
dedução possível. Quando vemos a detetive Boney
retirando um diário queimado do forno da casa de seu
pai, possivelmente o diário de Amy dos flashbacks,
tudo passa a apontar para o protagonista. A montagem
insere breves imagens de Amy com uma caneta de
cegonha no diário, deixando a impressão ao público
de que tudo é verdade.
Simultaneamente, no entanto, Nick desvenda as
pistas da caça ao tesouro de seu casamento e acha
todas as compras que a polícia o acusou de ter feito.
Assim, o filme nos joga novamente na dúvida, se Nick
não comprou tudo aquilo, mas se o diário e todas as
evidências são reais, o que realmente aconteceu? Os
dois incidentes realmente não estariam relacionados?
Quem é o culpado?
Tendo em vista tudo que conhecemos sobre
narrativa policial, o culpado é normalmente alguém
que a narrativa já nos apresentou anteriormente, caso
contrário nos sentimos “trapaceados” pela narrativa.
Assim, os únicos outros suspeitos disponíveis temos
apenas os dois ex-namorados com quem ela teve
problemas.
No momento em que as dúvidas e incertezas
atingem o ápice, o filme pega tudo que sabíamos,
ou acreditávamos saber, e vira contra nós em uma
reviravolta que altera o sentido de tudo que assistimos
até então.
A cena seguinte esclarece em todos os níveis (quem,
como e porque) o mistério de Amy, apresentando
a própria como culpada, no desejo de armar para
o marido. O crime que achávamos que o filme iria
resolver não era o sumiço/assassinato de Amy, mas
a cilada armada por ela contra Nick. Assim, somos
obrigados a reajustarmos nossas expectativas para
acompanhar Nick enquanto ele busca algo que prove
sua inocência ou invalide as provas falsas deixadas
por Amy, uma vez que Nick percebe a armação e como
ela o conduziu a isso.
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AVANCA | CINEMA 2016
O garoto encontra a garota
A primeira parte do filme tratou de aos poucos
plantar dúvidas a respeito do caráter do protagonista.
De início são leves e ambivalentes sugestões que
podem passar despercebidas, mas conforme a trama
avança e os supostos flashbacks vão nos mostrando
uma faceta violenta de Nick. Assim, começamos
a reinterpretar todas as pistas que vimos antes,
como Todorov (2006) afirma que a narrativa policial
costuma fazer antes de resolver o crime.
Os relatos no diário de Amy, bem como os
eventos presentes nos revelam sobre a amante do
protagonista e sobre a gravidez da esposa, apontam
à conclusão de Nick deve ser é o culpado. Afinal,
por toda nossa trajetória de apreciação da narrativa
policial, sabemos que ela se resolve quando
conseguimos estabelecer relações causais entre as
diferentes evidências de modo a recontar a narrativa
do crime até então desconhecida.
Porém, no exato momento que o filme parece
nos dar certeza da culpa de Nick, imediatamente
revela o que realmente aconteceu, mostrando que
todas as nossas suposições estavam erradas e
que as evidências não corroboravam uma verdade,
mas uma mentira. Então é disso que extraímos a
impressão que Garota Exemplar questiona o estatuto
da objetividade e veracidade das evidências? Na
verdade, não.
A narrativa policial é marcada por momentos em
que alguém parece ser culpado apenas para que
depois seja descoberto que é inocente e outra pessoa
cometeu o crime. Tramas inteiras são feitas ao redor
de pessoas acusadas de crimes que não cometeram
tentando provar a própria inocência. Vemos isso em
filmes como O Fugitivo (1993), de Andrew Davis, ou
Uma Cilada Para Roger Rabbit (1988), de Robert
Zemeckis ou Jack Reacher: O Último Tiro (2012),
de Christopher McQuarrie, e essas tramas citadas
costumam terminar com o protagonista comprovando
a própria inocência e desbaratando a conspiração
que os envolveu.
Nosso repertório sobre o gênero nos faz pensar
que é exatamente isso que Garota Exemplar irá
fazer a seguir. Agora que Nick e o público sabem
que tudo foi uma armação de Amy, imaginamos que
ele irá atrás das evidências necessárias para provar
sua inocência. A questão é que as coisas não se
desenvolvem como tradicionalmente deveriam e é
isso que irá fazer a diferença no modo como a obra
lida com certas tradições da narrativa policial.
O primeiro indício de que o filme não irá tratar
a questão em termos absolutos de verdades ou
mentiras puras se dá com o primeiro contato entre
Nick e o advogado Tanner Bolt, profissional famoso
por conseguir inocentar seus clientes mesmo quando
são culpados. Na conversa, Bolt alerta Nick que tudo
que ele tem é a própria palavra, enquanto que Amy
forjou uma história perfeitamente crível e com todas
as evidências para comprovar sua versão. O diálogo
deixa claro ao espectador que nesta narrativa mesmo
as evidências materiais, aquelas constantemente
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consideradas como completamente objetivas, terão
seu significado construído a partir do modo como são
apresentadas e dos interesses de quem as organiza.
Assim sendo, para o filme as provas materiais não
são um indício puro da verdade, são objetos cujos
significados se constroem a partir de fabulações e
narrativas e estas podem ser verdades ou mentiras.
Isso fica claro quando Bolt se refere à história
contada por Nick como “sua versão da verdade”, ou
seja, a obra lida com a ideia de que não há verdade
absoluta, apenas aquilo que cada um, à luz de sua
subjetividade, percebe enquanto verdade. Isso fica
claro no encerramento da conversa entre Nick e Bolt,
na qual o advogado avisa que o principal é mudar a
percepção que se tem de Amy e da versão contada
por ela. Sob esse aspecto, o filme considera que
verdade e mentira são irrelevantes, “ganharia” quem
conta a história mais convincente.
O problema é que a história de Amy é tão
convincente que quando a mídia passa a revirar a
vida de Nick, qualquer detalhe, por mais casual e
não relacionado ao incidente, passa a ser um indício
de sua culpa. Sua proximidade com a irmã gêmea
é tida como uma relação perigosamente próxima e
incestuosa, a foto dele sorrindo durante a primeira
coletiva é usada como prova de que ele não está
preocupado com a esposa, quando ele apenas sorriu
porque os fotógrafos ficaram pedindo. Isso reforça a
ideia de que o filme considera que fatos e evidências
não são absolutos, mas dependem da narrativa que
se constrói ao redor deles.
Na busca por conseguir evidências que de
algum modo contribuíssem para corroborar sua
inocência, Nick tenta localizar os ex-namorados
de Amy, exatamente aqueles que anteriormente
ficamos sabendo que causaram problemas à sua
esposa. Esse fato acaba ganhando um novo sentido
quando um dos ex-namorados, acusado por Amy de
estupro, se revela inocente e dá detalhes de como
ela encenou tudo para parecer um estupro e como as
provas ficaram tão óbvias que ele não teve alternativa
senão se declarar culpado. A ausência de evidências
é também um problema para Nick, que não tem como
usar esse testemunho em sua defesa, já que não há
nada que o corrobore.
Sem alternativas viáveis para uma defesa baseada
em provas, Nick decide ir a imprensa falar seu lado
da situação. O protagonista, no entanto, opta por não
falar da armação de Amy, uma vez que ele pareceria
um louco paranoico fazendo acusações levianas.
Tanner entende que é preciso mudar a percepção
e interpretação que as pessoas tem da história e
para fazer isso precisa da imprensa. Para o filme,
ela seria a principal responsável pela mediação de
informações individuais para a opinião pública e
é através do enquadramento dado pelos veículos
noticiosos às questões que essas impressões seriam
moldadas. A importância deste papel mediador
da imprensa na trama é frisada por Bolt que diz
“lhe prepararei como se fosse um testemunho” .
Através desta frase o filme traça um paralelo com o
processo jurídico, estabelecendo que assim como na

imprensa, o modo como se enquadra as evidências é
tão importante quanto as evidências em si.
Margo também entende que tudo isso é um jogo
de retórica e representação pede que o irmão, durante
a entrevista, “não tenha medo de bancar o marido
idiota”. Do mesmo modo, Nick se mostra ciente de que
se trata de um jogo de aparências ao usar o relógio e
a gravata que Amy lhe deu, já que seu intuito é usar a
entrevista para induzir a esposa a cometer um erro e
assim conseguir encontrá-la.
Nesse ponto da narrativa, não parece importar
que no momento ele deteste a esposa por tê-lo
colocado em tamanha enrascada, o que importa para
o personagem é convencer a opinião pública de seu
amor e arrependimento, de modo a atrair simpatia da
população e da própria Amy. A cena reforça a ideia
de que nesta narrativa as pessoas nem sempre se
mostram aos outros como realmente são, mas como
querem ser percebidos.
A entrevista de Nick funciona e as pessoas passam
a vê-lo sob um prisma mais positivo e essa recém
obtida simpatia nos leva a crer que ele finalmente irá
virar as coisas ao seu favor. Mesmo com essa guinada,
ele acaba preso depois que uma denúncia anônima
feita por Amy lhes dá a localização dos itens que
comprou em nome de Nick. Apesar de já suspeitarem
de Nick a algum tempo, é apenas com essas provas
que a polícia finalmente prende o protagonista,
demonstrando que o filme tem uma preocupação em
seguir procedimentos e protocolos policiais de como
conduzir uma investigação, um elemento marcante do
police procedural.
Em paralelo aos eventos com Nick, Amy acaba
perdendo todo o dinheiro que tinha juntado para
sua fuga e fica sem ter a quem recorrer, tendo seu
desespero assinalado por uma fotografia mais
escura e uma música que evoca tensão. Diante da
situação, a personagem resolve pedir ajuda a Desi,
outro de seus ex-namorados e com quem também
tem um histórico de acusações mal resolvidas, para
pedir ajuda e inventa outra histórias. Como o Nick
e seu outro ex-namorado tinham sido falsamente
acusados por Amy, passamos a crer que Desi também
é inocente e, portanto, inofensivo. Quando Amy e
Desi se encontram, imaginamos que ela finalmente
conseguirá desaparecer de vez, deixando a situação
de Nick ainda pior.
Durante a estadia com o ex-namorado, Amy passa
a repensar seu posicionamento em relação a Nick e
sua vingança contra ele depois de ver sua entrevista,
mas Desi deixa claro que não aceitará a rejeição.
Assim, vamos aos poucos percebendo que Desi não
tem nenhuma intenção de deixá-la sair. Amy então se
torna uma prisioneira das obsessões de seu ex que a
mantém trancada na casa, sob o constante olhar de
câmeras de vigilância e controlando o que ela veste,
come ou com qual cor tinge o cabelo. A ação de Desi
demonstra que ele não quer Amy tal como ela é, mas
sim como ele quer que ela seja.
A ação ecoa o comportamento da própria Amy que
resolveu armar tudo para Nick por ela não achar que
ele era o homem que queria que ele fosse. Da mesma
Capítulo II – Cinema – Cinema
maneira, o filme nos mostra que Nick se apaixonou
por Amy pelo que fingia ser que era. Assim, a obra
nos apresenta a um conjunto de personagens cujas
relações são pautadas por projeções irreais de quem
eles de fato são.
Detido e sem alternativas, Nick considera falar a
verdade sobre Amy ao ser interrogado pela polícia,
mas seu advogado rejeita, sabendo que colocar na
mesa uma teoria como aquela sem nenhuma prova
não ajudará em nada o cliente. O protagonista, no
entanto, reavalia a ideia ao ser confrontado com o
diário de Amy no qual ela mistura fatos verdadeiros
da relação dos dois com as mentiras sobre gravidez
e abuso doméstico, tornando impossível que Nick
conteste sua veracidade.
Quando os detetives lhe apresentam a prova
seguinte, a suposta arma do crime, o protagonista
ainda faz menção de contar sua versão da história, mas
seu advogado lhe impede. A este ponto Tanner Bolt
compreende que as principais evidências, um diário
relatando constante abuso de violência doméstica
e um porrete com o sangue de Amy, são suficientes
para justificar a prisão e uma futura condenação de
seu cliente, sendo inútil e possivelmente prejudicial
tentar contra-argumentar com uma teoria sem nenhum
fundamento material.
Percebendo que Desi não a deixará sair, Amy
começa a forjar provas contra ele, fingindo estar
cativa e sendo constantemente abusada física e
emocionalmente pelo ex-namorado, plano que ela
completa ao matá-lo, encenando a fuga de seu
cativeiro. Quando Amy volta, Nick a abraça diante dos
fotógrafos, mas sussurra “sua puta safada” em seu
ouvido, sabendo que por mais que a odeie por tudo
que fez ele passar, ainda assim confirmar as mentiras
dela é o único meio de ser inocentado.
A noção de que nesta trama apenas a mentira
de Amy é passível de validação vem também no
momento em que ela é interrogada pela polícia e FBI
sobre tudo que acontecera. Nesse momento a detetive
Boney tenta questionar algumas inconsistências na
narrativa que ela monta sobre tudo que aconteceu,
mas Amy apenas retruca apontando a incompetência
da detetive que erroneamente prendeu o marido dela.
Mais uma vez um personagem se cala, sem ter como
oferecer uma resposta embasada à história e provas
forjadas por Amy.
Tudo parece caminhar para seu desfecho quando
Nick é absolvido de todas as acusações e decide pedir
o divórcio a Amy, mas as esperanças de um “final
feliz” para o protagonista diminuem quando a esposa
o lembra que ainda pode dar queixa pelas falsas
agressões relatadas em seu diário, que no mínimo
resultaria no escárnio da opinião pública contra ele.
Assim, Amy o obriga a continuar com ela e continuar
posando como o marido valoroso e arrependido
que convenceu a todos de que era durante suas
entrevistas. Além de reforçar o caráter controlador
de Amy, a atitude da personagem também reforça
a ideia de que o filme nos apresenta a personagens
que tendem a projetar certos ideais nas pessoas com
se relacionam e exigem que estes tentem se adequar
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AVANCA | CINEMA 2016
a essas projeções. Isso fica claro na cena que
precede a primeira entrevista dos dois juntos, na qual
conversam sobre o que irão dizer, reiterando o tema
de que nesta trama a verdade não é algo absoluto,
mas um construto subjetivo e que a todo momento
seus personagens constroem representações da
realidade e de si mesmos para aqueles ao seu redor.
Nick se mantêm com ela a contragosto e por medo
do que ela possa fazer, pensando em deixá-la assim
que o interesse da mídia por eles se esvair e tudo for
esquecido, mas Amy frustra seus planos ao revelar
que está grávida. Para não deixar o filho sozinho
com a esposa psicótica, Nick aceita continuar
casado com ela.
Assim, o filme encerra não com a tradicional vitória
e endosso de que a análise racional das evidências
permitira chegar a uma verdade fundamental, sendo
capaz de resolver qualquer crime ou desmascarar
qualquer mentira. Ao invés disso, a obra encerra com
o protagonista preso a uma realidade forjada, mas
perfeitamente fundamentada através de evidências,
enquanto que a verdade do que aconteceu
permanece inatingível simplesmente porque não
existe nenhum indício material dela.
O desfecho, portanto, nos leva a repensar a ideia
de na narrativa policial que os artefatos e vestígios
da realidade tenham um sentido único e plenamente
objetivo, uma vez que todas as provas concretas do
que aconteceu foram inteiramente forjadas e não
apontam para outra coisa além da mentira construída
por Amy. A verdade na narrativa policial, portanto,
deixa de ser um conceito absoluto e imutável para se
tornar uma construção subjetiva, dependente do modo
como cada um se apropria e organiza o discurso sobre
aquilo que está ao seu redor.
Considerações finais
Ao longo deste trabalho vimos como os gêneros
cinematográficos apresentam características e
estruturas que são identificáveis ao longo de um amplo
corpus de produtos e como eles ajudam o cinema
hollywoodiano direcionar a produção e recepção
de filmes, servido ao que Altman (1987) de “função
ritualística”. Apesar de se basearem na reprodução de
certas fórmulas, os gêneros não são completamente
imutáveis, sofrendo alterações ao longo do tempo e
dos lugares pelos quais são difundidos. Deste modo,
os gêneros operam em um constante atrito entre
a aderência aos formatos já estabelecidos e bem
sucedidos e a busca por novos elementos que possam
mantê-lo interessante ao público que os consome.
Tentamos aqui demonstrar como a narrativa policial
se estabeleceu como um gênero baseado na solução de
crimes através da razão e da lógica e como isso estava
ligado ao contexto no qual o gênero se desenvolveu na
literatura e foi reproduzido pelo cinemas.
Somente obras mais recentes, por volta dos anos
2000, começam a revisar, de diferentes maneiras,
a ideia de que a racionalidade e a lógica não são
capazes de desvendar qualquer crime ou mistério,
muitas vezes encerrando suas narrativas com a
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impressão de que a verdade não é algo absoluto, mas
uma construção subjetiva.
Através da análise de uma destas obras, o filme
Garota Exemplar (2014), de David Fincher, mostramos
como esse filme vai trabalhando elementos
tradicionais da narrativa policial como a análise de
pistas, os falsos suspeitos e reviravoltas, mas termina
com toda análise racional das evidências servindo
para validar uma mentira e não para descobrir a
verdade oculta por trás desta.
O esforço analítico mostra que mesmo com esse
questionamento à onipotência da razão, ainda assim
ela funciona como uma narrativa policial bastante
tradicional, dialogando com elementos de diferentes
momentos do gênero, e mostrando, deste modo, que
diferente do que consideram autores como James
(2012), a narrativa policial pode se sustentar sem
essa necessidade de endossar a ideia da lógica e
racionalidade como capazes de resolver tudo.
Isso, porém, não aponta necessariamente para um
rompimento total com essas noções tradicionais, já
que filmes com essas características continuam sendo
feitos. Nesse sentido, ainda não é possível afirmar que
isso constitui um novo ciclo ou movimento dentro da
narrativa policial. Discussões futuras sobre o gênero
precisam ser feitas a partir de um corpus ampliado
de modo a tentar compreender essas questões, bem
como os modos que as obras questionam esses
elementos tradicionais da narrativa policial e que
posição elas ocupam em relação à indústria.
Notas finais
1
O detetive Hercule Poirot criado por Agatha Christie
também se aproxima bastante do arquétipo de Dupin.
Bibliografia
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Barcelona. Paidós.
Altman, Rick. 1987 The American Film Musical.
Indianapolis: Indiana University Press.
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Emocionante do Romance Policial. Rio de Janeiro:
Francisco Alves.
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no Auge do Capitalismo. São Paulo: Braziliense.
Bourdieu, Pierre. 1989 O Poder do Simbólico. Rio de
Janeiro: Editora Bertrand Brasil.
Cawelti, John G. Canonization, Modern Literature and
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(Orgs). 1997. Theory and Practice of Classic Detective
Fiction. New York: Greenwood Press.
Didi-Huberman, Georges. 2012. Imagens Apesar de
Tudo. Lisboa: KKYM.
Gomes, Wilson. Estratégias de produção de encanto: O
Alcance Contemporâneo da Poética de Aristóteles. 1996 in
Textos de Cultura e Comunicação. V.35, p. 99-125.
GOMES, Wilson. La Poética Del Cine y la Cuestión
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James, P. D. 2012 Segredos do Romance Policial:
 Capítulo II – Cinema – Cinema

Histórias das Histórias de Detetive. São Paulo: Três

Estrelas.
Messent, Peter. 2013 The Crime Fiction Handbook.New
Jersey: Wiley.
Piglia, Ricardo. 1994. O Laboratório do Escritor. São
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Priestman, Martin. Introduction: Crime Fiction and
Detective Fiction. 2003. in Priestman, Martin (Org).
The Cambridge Companion to American Crime Fiction.
Cambridge: Cambridge University Press.
Reimão, Sandra Lúcia. 1983. O Que é Romance
Policial? Editora Brasiliense.
Scaggs, John. 2005 Crime Fiction. New York: Routledge.
Todorov, Tzvetan. 2006. As Estruturas Narrativas. São
Paulo: Perspectiva.

Filmografia

Garota Exemplar. 2014. De David Fincher. Estados

Unidos: Fox. Blu-ray.
Jack Reacher: O Último Tiro. 2012. De Christopher
McQuarrie. Estados Unidos: Paramount. DVD.
O Fugitivo. 1993. De Andrew Davis. Estados
Unidos: Warner Bros. DVD
Uma Cilada Para Roger Rabbit. 1988. De Robert
Zemeckis. Estados Unidos: Touchstone Pictures.