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Choquequirao

Um mistério ainda maior que


Machu Picchu
Esta remota cidade inca, no sul do Peru, tem
apenas um terço de sua área decifrada. Para
chegar até ela, nossa equipe atravessou
precipícios e enfrentou os próprios limites.
Arecompensa foi compartilhar com os
arqueólogos uma nova descoberta: muros de
pedra com relevos de lhamas, cultuadas pelo
antigo povo andino O caminho a Choquequirao rabisca
ziguezagues nas encostas dos Andes
Texto Cristina Capuano, de Apurimac
Fotos Heudes Regis

Para os moradores mais antigos da região de Apurimac, no sul do Peru, há pouca


justificativa para uma incursão a essas ruínas esquecidas. É provável que Choquequirao - na
língua oficial andina, Berço de Ouro - tenha sido o centro mais importante das montanhas
Vilcabamba, que correm ao lado da Cordilheira de Urubamba, onde está Machu Picchu. Os
quéchuas acreditam que os monarcas de seus antepassados, protegidos pelas montanhas,
tenham vivido quatro décadas na região antes de serem totalmente dizimados pelos
espanhóis, que a essa altura já dominavam Cusco, a capital do Império Inca.

Até os anos 1990, Choquequirao só recebia visitas esporádicas de exploradores e caçadores


de tesouros perdidos. O mais célebre talvez tenha sido o arqueólogo americano Hiram
Bingham (1875-1956), professor da Universidade de Yale, que revelou Machu Picchu ao
mundo, em 1911. "Magníficos precipícios cercam as ruínas de Choquequirao,
transformando-a em uma fortaleza inacessível a qualquer inimigo", relata Bingham no livro
Lost City of The Incas ("A cidade perdida dos incas"). Ofuscada pela descoberta de Machu
Picchu, Choquequirao acabou sendo subestimada e esquecida por várias gerações de
arqueólogos. Só nos últimos anos tem atraído a atenção de pesquisadores, o que explica o
fato de se manter em estado selvagem. É preciso enfrentar quatro dias de caminhada difícil,
subindo e descendo encostas, para conhecê-la. Não há serviço de trem ou ônibus que levem
até ela, muito menos hotéis como os que já existem em Machu Picchu.

Bingham descartou a possibilidade de ter sido Choquequirao a morada dos últimos


soberanos (Manco Inka, Sauri Tupac e Tupac Amaru). Análises cronológicas mais recentes
o apóiam: a idade das construções se aproxima mais da época do poderoso Pachacutic
(1471-1493). A teoria mais aceita hoje é a de que Choquequirao tenha sido um centro
cerimonial inca. Antes de prosseguir viagem, e chegar a Machu Picchu, Bingham deixou
registrado indícios do caráter sagrado das ruínas sobre o Apurimac. "Talvez o Sol, chefe
divino dos incas, fosse adorado por aqui", relata.

A 110 quilômetros de Machu Picchu e a 200 de Choquequirao, Cusco é hoje a capital


arqueológica do Peru. Antes de topar com as primeiras relíquias locais, porém, é comum o
visitante ser apresentado a outro típico elemento dos Andes, o soroche, ou mal das alturas,
provocado pelo ar rarefeito a 3 400 metros de altitude. Ele não escolhe
vítimas: náuseas, dores de cabeça e taquicardia podem acometer até o
caminhante mais bem preparado.

"Para que caminhas?",


pergunta Maria Mosquera, enquanto aperta meu braço com força entre
seus dedos. Percorríamos juntas a única rua calçada de San Pedro de
Cachora, em direção ao nevado Padreyoc. Há um quê de espanto no
sorriso da mulher quéchua, assim que ela escuta nosso destino. "Que
procuras em Choquequirao, mamacita?", quer saber, olhando de soslaio
sob a aba do chapéu-panamá. A aventura de explorar uma jóia
arqueológica recém-descoberta nos impulsionava à remota cidade inca.
"Meu sobrinho também caminha por essas montanhas", confessa, "mas só
para buscar ouro."

Cusco, a antiga capital do Império Inca, é ponto de convergência entre os muitos


caminhos que levam às cidades de pedra dos Andes

Estratégica na época da dominação espanhola, Cusco foi totalmente reformada por seus
colonizadores, que chegaram em 1532 para saquear suas riquezas e evangelizar, à força, a
população remanescente. A arquitetura colonial, no entanto, é retrato mudo do povo que
não deixou um único registro escrito, mas legou à posteridade seus tesouros de pedras.
Muralhas de antigos palácios incas permanecem intactas, e
igrejas católicas foram erguidas com pedras trazidas de
Sacsayhuaman, o templo nos arredores de Cusco dedicado ao
Sol. Há menos de dois meses, escavações revelaram por lá
novos muros de pedras. Pelo território peruano, descobertas são
feitas diariamente - infelizmente, mais por saqueadores do que
por arqueólogos.

Passagem para a primeira-dama


A 3 050 metros de altitude, Choquequirao é um sítio
arqueológico cuja área, espalhada pelas encostas, atinge 20
quilômetros quadrados. San Pedro de Cachora, onde começa a
trilha mais usual para as ruínas, está no caminho para Abancay,
a capital do Estado de Apurímac.

A poeira vermelha cobre as ruas e as casas de Cachora, dando- Em Cusco, muros no


lhe o aspecto de cidade fantasma. Os locais vivem a expectativa estilo
da chegada do turismo, que há tempos garante a subsistência inca imperial são herança
dos povoados ao redor de Machu Picchu. Desde 2001, as do
autoridades peruanas restringiram o número de visitantes da antigo império
cidade famosa para 500 pessoas por dia. Choquequirao leva um
ano para receber essa gente.
O impulso para a "redescoberta" das ruínas do Apurimac aconteceu em 2002, quando um
acordo negociado entre a ex-primeira-dama peruana Eliane Karp e a França garantiram
apoio financeiro e técnico. "A trilha passou de 15 centímetros de largura para 3 metros",
comenta Celestino Peña, guia pioneiro de Cachora que, há exatos 22 anos, conduziu o
primeiro turista "rastejando pela floresta densa".

Padreyoc é o único pico nevado no caminho para Choquequirao. Para os quéchuas, é


a morada de Apus, o deus das montanhas

El Negro é o mais robusto dos três cavalos que nos acompanham a Choquequirao. Seus
olhos estão cobertos por um colorido xale inca para que ele não se assuste com a trilha à
beira do abismo. "Se ele enxergar o perigo, não caminha. E os outros dois animais não irão
segui-lo", explica Nério Ortiz, carregador que compõe a equipe formada por seis homens e
quase 100 quilos de equipamentos. Ninguém - nativos, turistas ou animais - fica impassível
à inebriante visão que se tem no topo do mirante Capuliyoc, primeiro
e único "passo" da montanha Inkawassi.

Choquequirao está em uma posição geográfica espetacular.


Fica no alto do cânion do Rio Apurimac, exatamente no
ponto em que ele se divide em três grandes vales. A
localização é semelhante à de Machu Picchu, também
escondida entre picos nevados e protegida por um rio que a
serpenteia - no caso, o Urubamba. A diferença é que, para
chegar a Choquequirao, a única via é uma trilha que você
sobe, ou desce, vertiginosamente.

O caminho é seco, estreito e pedregoso. Nos meses de chuva,


de janeiro a abril, piora. A trilha rabisca a encosta da
montanha até o leito do ruidoso Apurimac. São 2 mil metros
de desnível até o rio, e outros tantos até o topo da montanha
na margem oposta, onde o ziguezague soma 35 curvas.
Respiramos fundo, buscando o ar que faltava na altitude. E A igreja de La Compañia,
caminhamos devagar rumo ao abismo. em Cusco: erguida pelos
espanhóis com pedras incas
Jesus Rojas, guia que nos acompanha durante a caminhada,
aponta para as montanhas onde está camuflado um recém-descoberto assentamento inca,
Wayna Cachora. Em 2001, a National Geographic Society noticiou outro sítio
arqueológico, no topo do Cerro Vitoria, batizado de Corihuayrachina. A dois dias de
caminhada de Choquequirao, há centenas de estruturas de pedras - sabe-se, hoje, que bem
menos significativas do que a equipe de arqueólogos supunha. "Há muitas outras ruínas
inexploradas", contabiliza Celestino Peña, citando o nome de meia dúzia de localidades que
ainda não foram decifradas.

No lombo de uma mula, aparentemente arrasado, o americano Alex Steponanko atravessa


nosso caminho. "Se eu soubesse que a cidade estava limpa, tinha reservado uma semana lá
em cima", lamenta o nova-iorquino, que, há 15 anos, visitou pela primeira vez as ruínas de
Choquequirao.
Linha do tempo

5000ac Dois mil anos antes da construção


das pirâmides do Egito, tribos peruanas já
dominavam técnicas de embalsamento.

800ac - 100ac A cultura chavín se expandia


nos planaltos, enquanto os paracas criavam
ricos tecidos bordados no litoral.

300ac - 1000Na costa, floresce a cultura moche. No deserto,


surgem as enigmáticas linhas de Nazca. A cultura
huari se desenvolve nas montanhas próximas a Cusco. Um
grande centro se expande na aldeia de Tiahuanaco, sul do
Lago Titicaca.

1300 Uma pequena tribo alcança a bacia de Cusco, liderada por Manco Capac.

1450 O Império Inca reina soberano, e começa a construção de Machu Picchu.

1532 Francisco Pizarro invade o Peru, arrasando Cusco. Os últimos Incas se refugiam
em Vilcabamba.

1768 O cronista peruano Cosme Bueno menciona pela primeira vez Choquequirao.

1834 - 1847 O francês Conde de Sartiges confirma a existência da cidade; Léonce Angrand
esboça o primeiro mapa das ruínas.

1909 - 1911 Hiram Bingham chega a Choquequirao; passa batido, e revela Machu Picchu.

2002 O antropólogo Perci Paz estuda o setor das lhamas. Guarda segredo.

2004 O arqueólogo Zenobio Valencia anuncia a descoberta do "mural das lhamas".

2006 Em junho, a reeleição do impopular presidente Alan García traz insegurança. O


investimento francês a Choquequirao, de 5 milhões de euros, desde então está suspenso.

"A cidade estava coberta pela mata. Não havia nada para ver", conta o aventureiro.
Ele então se aproxima e diz, em tom confidencial: "Há muitas coisas novas por lá". Em
seguida, anota o nome Walter em uma folha de papel e sugere, misterioso: "Procure por
ele".

Antes das águas, o fogo


"Rápido", grita Luis Ricardo Barrientos, o Chicho, mais jovem do grupo que caminhava em
direção ao vale do Rio Apurimac. O comando é seguido pela visão de pedras que
despencam incandescentes do barranco à esquerda. Galhos estalam nos nossos ouvidos e a
fumaça diminui o pouco oxigênio disponível. A época, seca, facilita a ocorrência de
queimadas na região. Muitas são provocadas para renovar o pasto. Um desastre ecológico
perigoso para os que caminham pelas encostas.

A quilômetros de distância já se ouvem as corredeiras estrondosas do Apurimac. O nome


sagrado vem daí: Apu são as deusas-montanhas, adoradas pelos andinos; Rimac significa
"que fala". O rio nasce das geleiras do Mismi, pico em Arequipa a 5597 metros de altitude,
e alimenta a nascente do nosso Rio Amazonas. Acampamos na margem direita, em uma
base chamada Playa Rosalina. "Procure pelas lhamas", sussurra o funcionário daquele
acampamento, Edwin Campos, repetindo a dica de nosso amigo de Nova York. "Walter
saberá o caminho."

O caminho para Choquequirao é radical. São 60 km de trilhas, ida e volta, subindo


e descendo encostas vertiginosamente. Uma jornada de 4 dias a mais de 3 mil metros
de altitude

A caminhada começa antes do amanhecer, e até o final da tarde segue o mesmo ritmo, em
uma trilha bastante íngreme. O calor, que ultrapassa os 30 graus em setembro, é implacável
nos últimos lances da subida. As poucas conversas são sobre os mistérios de um passado
que, bruscamente, havia sido interrompido. Como surgiram essas cidades incas escondidas
nas montanhas? Para que serviam? O que levou esse povo a construir suas moradas em
pontos tão remotos?

"A história pré-hispânica do Peru é feita por 60% de especulação, 30% de probabilidade e
10% de fato consumado. Sem contar a porção que é absolutamente desconhecida", resume
o autor inglês Peter Frost em seu guia de viagem Exploring Cusco. Para piorar, durante
muito tempo a importância de Choquequirao foi subestimada. Depois de Bingham, a
primeira documentação relevante só seria registrada nos anos 1990, quando os setores
principais da cidade foram mapeados.

Todos os caminhos levam à montanha


1 Muro Triunfal, com 350 metros de extensão e quase 6 metros de altura.
2 Ushno, terraço cerimonial.
3 Casa dos sacerdotes.
4 Urin, a praça inferior da cidade: templo de uso público e um possível local para sacríficio
de lhamas.
5 Haucuaypata, a praça central.
6 Templo principal, reservado à elite. Depressões nas paredes internas podem ter sido
utilizadas para abrigar múmias.
7 Kallankas (fortalezas) com desenho simétrico e um corredor comum, reservadas aos
governantes; podem também ter sido grandes depósitos de suprimentos - Qolcas. Na frente,
Sunturwassi, a maior construção de Choquequirao, com muitas janelas.
8 Acompanhando o canal principal de água ou a escadaria à esquerda das Qolcas, chega-se
à Hanan, parte alta da cidade. Mais um templo e muralhas com vista do Rio Apurimac.
9 Na encosta leste da praça principal, 150 plataformas de cultivo (chamadas pelos
espanhóis de andenes). À esquerda, casas de um suposto "setor administrativo"
e outras mais populares.
1 Acampamento Paqchayoq. Repare nos sofisticados sistemas
hidráulicos.
1 Na ladeira oeste da praça principal, ainda interditada para
visitação, ficam as muralhas das lhamas sagradas. São 132
andenes.

A trilha para Choquequirao


Cachora (7) é o mais usual dos quatro acessos a Choquequirao (1). Levam-se dois dias (30
km) para atravessar o cânion do Rio Apurimac, descendo quase 2 mil metros de desnível.
A volta é pelo mesmo caminho. O ponto mais alto da trilha é Capuliyoc, a 2915 metros de
altitude. Há boas bases de acampamento em Chiquisca (5), Playa Rosalina (4) e Marampata
(2) . E paradas para descanso em Huayhuacale e Marampata. Os moradores de Santa Rosa
(3) vendem água e refeições. E alugam cavalos para quem não está em condições de
percorrer, a pé, o caminho de volta.

De Huancacalle a trilha é mais longa (68 km), com alternados aclives e declives.
Atravessa o Nevado de Choquetacarpo, a 5 mil metros de altitude. Do acampamento em
Yanama, a vista de Choquequirao é linda.

A travessia Choquequirao-Machu Picchu não leva menos de dez dias. São 105 km, em
alternadas subidas e descidas. Sobe até o Passo Yanama, a 4 mil metros e altitude; e depois
desce até o povoadinho de Totora, com vista dos levados de Salcantay. A caminhada
atravessa florestas, acompanha o Rio Santa Teresa e, por fim, encontra uma vista inédita de
Machu Picchu - tesouro de quem encara a viagem.

Huanipaca é o segundo acesso mais curto (34 km). No acampamento de San Ignacio,
sabe-se que há vestígios incas ainda não explorados.

De Santa Teresa, próxima a Machu Picchu, percorrem-se 20 km à margem do rio de


mesmo nome. Deste ponto, Colcapampa, são mais 49 km. É a caminhada menos procurada.

Do km 88 da estrada vinda de Cusco começa um dos trekkings mais famosos do mundo, a


Trilha Inca. Até 1500 pessoas chegavam a fazer, simultaneamente, a caminhada de quatro
dias (33 km). Desde 2001, o governo peruano restringiu o número para 500 turistas por dia.
É possível conhecer Machu Picchu em um dia. Da Estação San Pedro, em Cusco, chega-se
de trem a Águas Calientes. São quatro horas de viagem. Nas termas, vans chegam à ruína
inca em 15 minutos. Você desembolsa US$ 120. E bem pouco fôlego.

De Mollepata, a 100 km de Cusco, sai a Trilha de Salkantay. A rota (40 km) passa por
vales amplos e chega a 5 mil metros de altitude, até convergir com o Caminho Inca.
Aí são mais três dias para Machu Picchu.
FILHOS DAS MONTANHAS
O Império Inca abrangia diversas nações com mais de 700
idiomas diferentes. O mais falado era o quéchua - termo que
também designa o povo que fala esse idioma sonoro.
A herança cultural dos monarcas (e, antes deles, dos chavín,
dos mochicas e dos paracas) é tão sólida quanto suas
muralhas. Dos 300 mil habitantes da região de Cusco, três
quartos são considerados índios puros ou mestiços. Quase
todo mundo é fluente no idioma local, ainda que só aprenda o
espanhol na escola. O costume de usar chales também é
milenar: as técnicas empregadas na sua confecção já eram
conhecidas pelos antepassados. Como antes, os corpos
celestes ainda exercem influências sobre o povo. A passagem
de cometas pode pressagiar epidemias; e as festas celebram o
culto ao Sol, à terra e às águas. No último ano, o povo As roupas coloridas:
peruano vive a expansão econômica. As condições sociais, costume inca preservado
por outro lado, melhoraram pouco (60% dos habitantes do pelos quéchuas
país estão desempregados). O orgulho pelos ancestrais
aumenta a cada dia: recentemente, as placas de muitas ruas de Cusco, antes em espanhol,
foram substituídas por outras no linguajar andino. E até o nome oficial da capital dos incas
voltou (pelo menos no papel) ao original, Qosq'o.

O que pode ter decepcionado os poucos estudiosos


que alcançaram o local é o estilo de construção de
Choquequirao. As estruturas de pedra em formato
irregular, unidas por barro, são visualmente mais
pobres que as muralhas de pedras encaixadas
milimetricamente de Machu Picchu. Acreditava-se
que o estilo denominado pirca, em oposição ao
inca imperial, era usado apenas em casas
populares. O arqueólogo americano Gary Ziegler
foi o primeiro a contradizer a teoria. Segundo ele,
No trecho atingido pelas queimadas, é o tipo de rocha disponível nas montanhas de
preciso correr para não ser acertado Vilcabamba simplesmente não suportaria a
por pedras incandescentes, que minuciosa lapidação.
despencam do barranco em direção ao
precipício. Uma queda de 2 mil metros O Deus Sol, Inti Taita, não deu as caras em
de altura, que separa o topo da Choquequirao na manhã de 25 de setembro,
montanha Inkawassi ao fundo do vale quando chegamos lá. Do acampamento base, a
do Rio Apurimac (abaixo). poucos metros da tão desejada cidade perdida, não
se via nada além de uma espessa névoa branca.
Lembrei imediatamente de Yarden Erel, o israelita de 23 anos que chegou a Choquequirao
por um outro caminho, via Molepata. "Não conseguimos ver nada", lamentou, quando
voltava a Cachora enfermo e tomado por picadas de insetos. A interpretação de nosso guia
é mística. "Choquequirao não se mostra a quem chega, mas para quem está pronto para
enxergá-la", filosofa Jesus.
A paisagem que circunda o rio
Apurimac compensa a dificuldade
da trilha. O que teria levado os
incas a construir uma cidade
nestas silenciosas montanhas?

Num relance, o vento, sagrado colaborador de Inti


Taita, lambeu o topo da montanha e descortinou um
conjunto de construções absolutamente
impressionantes. Muitos indícios comprovam que Choquequirao tinha uma função religiosa
para os incas. Nenhum é mais consistente do que o ímpeto de reverência que fatalmente
atinge os viajantes, assim que eles avistam a cidade perdida.

É no colo de Apu, em volta de um plano gramado, que as construções de Choquequirao


foram erguidas. Há uma organização clara no conjunto da obra, com parte alta (Hanan) e
baixa (Urin) muito bem definidas. Todo seu esplendor é visto a partir de Ushno, terraço a
uma altitude mais elevada, onde os incas observavam e cultuavam o Sol, as águas e as
estrelas. Até hoje, em povoados rurais, o calendário festivo dos incas é celebrado em
construções no mesmo estilo.

GRÃO DE OURO
A tríade alimentar dos índios peruanos é composta de milho, como o vermelho Chicha
(acima), das 238 variedades de batatas e da quinoa (abaixo). Cultivada há 5 mil anos nos
Andes, a semente popularizou-se na Europa, nos Estados Unidos e no Japão a partir da
década de 90, depois que a Nasa a incluiu na dieta de astronautas. A principal qualidade da
quinoa está associada à sua capacidade de fornecer proteínas, além de 16 aminoácidos
essenciais. "Bom para andar rápido", simplifica Saturnino Salcedo, o cozinheiro que nos
alimentou com sopas feitas com as minúsculas esferas douradas.

Portais em forma trapezoidal, com dois pilares na parte superior, são abundantes - indício
arquitetônico de que aqui circulava a elite incaica. Eles convidam à incursão a palácios,
templos, salas de banho e mirantes que se espalham por todo o complexo arqueológico
(veja quadro). Há muito para ser revelado. Segundo o arquiteto Luis Centeno, da Copesco,
órgão peruano dedicado à restauração dos monumentos, apenas quatro dos 12 setores
identificados na cidade foram totalmente recuperados. Calcula-se que 60% das ruínas ainda
estejam ocultas na mata.

A chegada a Choquequirao, seguida por ventos fortes, nos revelam as tão desejadas
ruínas de pedra. Poucos viajantes têm
o privilégio de alcançar este santuário perdido
O grande encontro
A diversidade de formações vegetais obedece à
geografia acidentada, em uma mistura de selva alta
com a paisagem de serra típica dos Andes. O
acidentado da cordilheira produz uma redução da
temperatura nas zonas mais altas, conhecida como
puna. É onde o vento, abençoado, sopra mais forte.
O terreno fértil era cultivado em mais de 300
altiplanos, que se espalham pelos dois lados da
encosta. A área ainda exibe exemplares raros de
cedros e uma grande variedade de orquídeas.

"Levaremos de cinco a 15 anos para descobrir


tudo", calcula o arqueólogo Walter Molina, do
Instituto Nacional de Cultura. Como pressagiou o Marampata, a duas horas de
estranho forasteiro nova-iorquino, é ele quem nos Choquequirao. No lado oposto, a
conduz a um conjunto monumental de andenes, os montanha Inkawassi
terraços nas encostas onde os incas faziam suas
plantações, decorados pelas figuras recém-descobertas de 23 lhamas de pedra. A
recompensa que Apu nos reservava, então, era esta: ser a primeira equipe brasileira a
desbravar as mais enigmáticas representações zoomórficas incaicas que se tem notícia.

"É certo que elas foram feitas para ser vistas a longa distância", sustenta o arqueólogo, no
mirante construído a poucos metros da obra. O que os antigos habitantes daquelas
montanhas quiseram expressar com elas? Antropólogos, arqueólogos e outros
pesquisadores desenvolvem suas interpretações. Alguns acreditam que as lhamas brancas,
tidas pelo povo quéchua como símbolo de sorte, fossem adoradas em rituais sagrados. Os
únicos capazes de dar essa certeza foram dizimados há mais de 500 anos. E perguntas como
essa, no intrigante universo inca, podem ficar eternamente sem
respostas.

As lhamas esculpidas em
Choquequirao podem ser
LHAMAS SAGRADAS vistas de longe, em três
O antropólogo francês Patrice Lecoq, da Universidade de Paris, dimensões
foi enviado ao Peru em 2005 para estudar o significado das
lhamas recém-descobertas. Na encosta oeste de Choquequirao, os 23 camelídeos se
destacam em 15 terraços de pedras mais escuras. No último, descobriu-se recentemente
uma figura antropomórfica, que ainda não foi restaurada. Em diferentes tamanhos (as
maiores tem 1,70 metro de altura), foram concebidas para ser vistas em três dimensões. Do
mirante (acima), as figuras se mostram voltadas para a direção norte, em uma posição que
sugere a ascensão às montanhas protetoras do santuário. As lhamas sempre tiveram
importância estratégica aos povos andinos, fornecendo carne para o consumo e lã para os
tecidos. Únicos animais de carga dos incas, carregavam armas e suprimentos por toda a
extensão do império, que se estendia do norte do Equador e sul da Colômbia até a
Argentina e o Chile, passando por todo o Peru e a Bolívia. Sem elas, a expansão não seria
possível. Por isso, no precioso patrimônio arqueológico do Peru, iconografias de lhamas
são diversas e abundantes. Mas é a primeira vez que se encontra um mural que remete a
importância ritualística desses animais. Em muitas festas, elas eram celebradas com música
e dança. Em outras, eram sacrificadas e oferecidas ao Deus Sol, Inti Taita, em troca de uma
vida próspera.

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COMO CHEGAR
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San Pedro de Cachora.

ONDE FICAR
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O NovotelAccor (San Augustin, 239, www.accorhotels.com.br) não é tão bem localizado,
mas tem instalações novas e muito confortáveis.
Em Cachora, o casal Celestino Peña e Ceferina San Martin aluga quartos muito modestos
(San Martin, 109, 83-830252). O atendimento familiar compensa.

QUEM LEVA
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América do Sul. O roteiro a Choquequirao, passa dois dias em Cusco, visita o Vale Sagrado
e, depois da travessia, as ruínas de Machu Picchu. Custa 2114 dólares. Inclui parte aérea
(de SP), hospedagem, equipamentos de camping, guias, alimentação (durante a trilha),
ingressos, bilhetes de trem e seguro viagem.
O mesmo pacote é oferecido pela Pisa Trekking (11) 5052-4085, www.pisa.tur.br.

MELHOR ÉPOCA
Chove muito de dezembro a março, o que dificulta o acesso a Choquequirao. Vá no resto
do ano, quando a paisagem não é tão verde, mas os dias estão ensolarados.

PARA TODOS OS MALES, A COCA


Tão temido quanto o soroche, o mal das alturas, é o makulki, dor muscular que atinge as
pernas dos caminhantes. Para os dois, o remédio local é a coca, planta cultivada em 46700
hectares do Peru: uma produção espantosa de 150 mil quilos. Para aliviar os sintomas do ar
rarefeito, as folhas são mascadas ou sorvidas na forma de chá. Para as dores musculares, a
mesma infusão é utilizada em banhos terapêuticos.

PARA IR MAIS LONGE

Lost City of the Incas, Hiram Bingham, Harwthorn.


The conquest of the Incas, John Hemming, Papermac.
Exploring Cusco, Peter Frost, Nuevas Imagenes.
Choquequirao, El Misterio de las Llamas del Sol y el Culto a los Apus, Fondo Contravalor.

dica da autora
"Nos povoados mais isolados, ao contrário do que acontece em Cusco, as crianças fogem
ao avistar turistas. E os adultos, cordiais, não cobram para ser fotografados. Brinquedos,
roupas, cadernos e lápis, no entanto, podem ser um bem-vindo agrado."

Cristina Capuano

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