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Amizade filosófica

O samba de breque entrou no sonho precisamente às 7h10. A fase REM já tinha


passado e o cenário agora se resumia a uma confusão de enredos misturados, personagens
desconhecidos e situações inusitadas, algumas improváveis, outras impossíveis. Mas foi só o
samba se imiscuir no ambiente onírico e a trama imediatamente se adequou à nova
contingência.
Pauleto se viu no bar do Zeca, ou “estabelecimento” como o proprietário sempre fazia
questão de salientar aos incautos e desavisados. Tudo muito nítido. Estava sentado à mesma
mesa de sempre, a mais afastada do pessoal da sinuca, único local que permitia a ele e seu
amigo filósofo Carlinhos – ideias pré-socráticas em ideais pós-platônicos – discutir e
eventualmente solucionar os dilemas do mundo, na inspiradora companhia de umas tantas
cervejas (poucas) e generosas porções de torresmo.
O papo ia muito bem, como sempre, embora as garbosas caixas acústicas do rádio
estéreo do Zeca, guarnecidas de papel contact, parecessem um pouco entusiasmadas demais
naquele momento. Quando a voz do Adoniran Barbosa começou decididamente a suplantar
suas argumentações, já quase berradas no ouvido de um atento Carlinhos de testa franzida,
Pauleto finalmente se levantou para reclamar com o Zeca. E acordou.
O rádio-relógio indicava 7h13 e Adoniran emitia seus roucos acordes terminais, não
tão altos assim afinal. Pauleto sentou-se na cama por alguns momentos. Precisava colocar as
ideias em ordem. A angústia dos últimos meses, de etiologia desconhecida, dava lugar agora
a imagens agradáveis do passado. “Interessante isso. Parecia mesmo que eu estava ali com o
Carlinhos, nas nossas conversas de trinta anos atrás, no bar do Zeca, sempre às terças, tendo
ou não havido prova no dia. Que coisa! Onde andará ele agora? Terá seguido a carreira?
Advogado, juiz, desembargador talvez?... Estudantes de direito que amavam filosofia, isso é
o que éramos!”
Terminada a formatura, cada qual seguira sua vida. Aliás, toda a turma se dispersou,
aliviada pelo fim do curso. Os previstos encontros quinquenais, reiteradamente prometidos,
nunca se realizaram. Tal e qual os famosos planos quinquenais soviéticos. A guerra fria ainda
dava o tom nos últimos anos da década de 70, com manchetes graúdas, sombrios encontros
de cúpula, previsões assustadoras, análises sisudas de página inteira, tudo alheio às soluções
engenhosas, factíveis, emergidas todas as terças-feiras do ponto mais afastado da mesa de
sinuca do bar do Zeca, invariavelmente envolto em samba de breque, dos bons.
Lentamente Pauleto se vestiu, vestido desses pensamentos. Sempre gostara de andar
bem trajado. Hoje era terça-feira. Dia de aplicar a prova de Direito Constitucional, a temida,
na mesma faculdade em que se formara, lá iam bem umas três décadas. “Onde andará o
Carlinhos hoje? O que estará fazendo agora?”
Prova terminada, almoço na faculdade com os colegas professores. Conversas gerais,
piadas sobre o governo, comentários sobre um ou outro absurdo que esse ou aquele aluno
tivera o desplante de consignar em prova, coisas assim. Nada parecido, nem de longe, com as
profundas questões filosóficas dos seus tempos de república, batizada de República de Platão
pelo namorador Carlinhos, de amores nada platônicos, o melhor amigo que tivera na vida.
“Onde andará ele agora? Que fim terá levado?”
De súbito, cada qual fora para um lado, cuidar da nova vida, como se ambos tivessem
deliberadamente sorvido uma cicuta interior e extinguido todos aqueles bons e produtivos
momentos. Na vida real não havia espaço para devaneios filosóficos.
Pensativo aplicara a prova, pensativo almoçara com os colegas, pensativo se dirigia
agora Pauleto ao estacionamento, com o indefectível pacote gordo debaixo dos braços, a
prometer algumas horas de lazer compulsório na correção do conteúdo.

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Terça-feira era o dia escolhido para as reuniões filosóficas de antanho. Por que
haviam escolhido esse dia? Porque não era segunda, dia intragável, de convalescença do fim
de semana; nem sexta, dia de namorar até rebentar; nem quarta nem quinta, dias dedicados
aos estudos, pelo menos na intenção. Sábados e domingos alternavam-se entre festas e visitas
aos pais. Sobrara a terça-feira.
“Vou dar uma passada no bar do Zeca, são só duas quadras daqui.” Resolução
tomada, ação cumprida. Estava preparado para encontrar uma lan-house ou coisa do tipo no
lugar, mas não. O bar continuava lá. Chegou, parou, contemplou a fachada por uns instantes e
entrou como quem não quer nada. Nenhuma emoção especial. Pouca coisa mudara no
estabelecimento. O Zeca não estava mais no balcão; partira para o mundo das idéias há mais
de dez anos. A mesa de sinuca era outra, maior, oficial, mas o local ainda era o mesmo. O
aparelho de som também era outro, moderno, só admitindo CD e MP3. Mas o pedido da
clientela, segundo informou o herdeiro Zequinha, continuava sendo samba, mormente de
breque, marca registrada da decana instituição.
E a mesa da dupla de filósofos de outrora, vejam só, continuava a mesma, a
mesmíssima! O mesmo canto reservado a evocar uma caverna, apropriado para auxiliar a
humanidade. Pauleto sentou-se no seu lugar de direito. A cerveja e a porção de torresmo
vieram em seguida, naturalmente. Mas antes do segundo gole e do terceiro torresmo foi
sacudido por um trovão vindo de cima:
—Pauleto? Pauleto-paletó! É você? Não acredito!
O indagado se virou e levou uma boa eternidade para entender se ainda estava ou não
no sonho matutino de hoje. Kafka também já fora assunto de conversa entre os dois certa vez.
Sonho ou realidade? O epíteto único de cervejas e namoradas veio num estalo:
—Carlinhos-das-loiras!
Abraços, choro disfarçado, risadas. Reconhecimento mútuo de rugas e cabelos
grisalhos. Mais risadas. Choro contido. Cinco minutos pelo menos antes que uma conversa
coerente começasse a ser encetada entre os dois.
—Mas Carlinhos, minha nossa, o que você faz aqui?
—Eu é que pergunto! Ontem, no meu aniversário (leve olhar de censura para o
interlocutor) meus amigos fizeram uma roda de samba e tocaram aquele breque do Adoniran,
lembra? Aquele que sempre tocava aqui nas nossas reuniões. Era nosso pano de fundo.
Parece que não conseguíamos desenvolver as ideias sem aquele embalo tão afinado com a
Grécia antiga. Pois desde então tenho pensado muito na nossa velha amizade. Ficava
imaginando: Onde andará o Pauleto? O que ele diria dessa situação que estou passando? O
que ele aconselharia? Hoje de manhã me pus a caminho da cidade da minha juventude, para
uma reunião de trabalho, quando ouvi a mesma música no rádio. Aí resolvi passar no
estabelecimento para rememorar os tempos das reuniões de verdade. E olha só quem eu
encontro aqui, tomando uminha e petiscando torresmos...
A objetividade continuava sendo uma característica comum a ambos. Não fora assim,
um dia por semana teria sido insuficiente para abranger todos os temas aflitivos de outrora e
que não tinham mudado muito desde então: guerras, miséria, corrupção, doenças, abalos
anímicos. Eram os mesmos problemas, porém numa intensidade e amplitude muito maiores
nos dias de hoje, isso era fácil de ver. Pauleto, professor universitário; Carlinhos, consultor
jurídico de uma multinacional. Rendimentos quase iguais. Ambos haviam se divorciado, um
filho homem cada um, meninos de ouro, aos cuidados das ex-respectivas. Coincidências. Os
filhos, sempre interessados em sérias questões da atualidade, cursavam o último ano do
ensino médio, e há algum tempo cada qual havia dado o veredicto aos pais: um ia fazer
medicina, o outro engenharia.
—Veja, Pauleto, minha vida é bem razoável e não tenho problemas sérios de saúde.
No entanto, há meses sinto algo como... um certo vazio... existencial.” Tom temeroso, mas
sem razão. Pauleto não riu. “Pensei nos tempos de escola. As reuniões daqui... Lembra como

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você tentava aplicar conceitos socráticos aos problemas da época? As virtudes do bom, do
justo, da diversidade do belo, em contraposição ao hedonismo materialista e a um
igualitarismo impossível, i-ne-xe-quí-vel como você disse certo dia, lembro bem.
—Nós tentávamos aplicar. Previmos o fim do totalitarismo comunista por conta disso.
—O muro de Berlim caiu dez anos mais tarde, observou Carlinhos.
—É verdade. Também concluímos que o capitalismo inconsequente, que só vivia pelo
lucro, sem dar a mínima ao indivíduo, estava igualmente fadado à destruição.
—Previsões sendo cumpridas trinta anos depois..., tornou Carlinhos.
—Rapaz, éramos profetas e não sabíamos!
—Diria vaticinadores filosóficos. Abordamos a proliferação nuclear, a degradação
ambiental já crescente, falamos do aumento da corrupção, da degeneração moral... E
propusemos soluções, alternativas plausíveis, sim senhor.
—Pena que não tínhamos atas. Deveríamos ter escrito algo a respeito, sei lá, uns
artigos, um ou mais livros. Talvez alguém tivesse dado ouvidos e... O tom baixo de Pauleto
era de quem duvidava das próprias palavras. O arroubo da juventude se fora, isso era certo.
—Olha, não sei se ia adiantar, mas estávamos, sim, fazendo algo naquela época,
ansiávamos por uma melhoria, mesmo que utópica. Uma utopia platônica talvez. A vida de
hoje não deixa mais espaço para conversas aprofundadas. Daí o vazio, acho.
—Também concluímos que coincidências não podiam ser obras do acaso, lembrou
Pauleto. Uma força maior devia comandar tudo, com objetivos também maiores.
—É.
Silêncio por alguns momentos. A noite chegava e as primeiras duplas de sinuca se
formavam automaticamente. Um samba de breque, desta vez do Kid Moringueira, se infiltrou
entre a garrafa de cerveja ainda cheia e o prato de torresmo quase vazio. Pauleto levantou o
prato para o Zequinha, que prontamente foi preparar mais uma porção, no capricho. A
reunião ia continuar. O mundo precisava dela como nunca.

Plato Junior

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