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SUMATRA

regresso ao paraíso
Um livro de
GONÇALO RUIVO
A realização deste projecto só foi possível
graças à importante colaboração de:
Juntar Logos Gold em 5x5

Agradecimentos especiais:
ALIAC
Billabong
Embaixada da indonésia em Lisboa
Ericeira surf Shop
Secretaria de estado da Juventude
Prefácio
(por Albert Matondang
Embaixador da República da Indonésia em Portugal)

Como uma corrente de pérolas estendidas na desporto náutico, muito apreciado e praticado por
linha do equador, a beleza da Indonésia, o maior pessoas dos mais diversos círculos sociais.
arquipélago do mundo, é uma bênção de Deus que Tenho a certeza de que este livro, que descreve
devemos agradecer. A Indonésia é conhecida no a experiência dos nossos amigos portugueses
mundo inteiro pelos seus recursos naturais e pela nas magníficas ondas Indonésias, será
sua riqueza em flora e fauna, únicas no Planeta. fundamental para dar a conhecer o Surf que se
É também conhecida pela diversidade cultural pratica na Indonésia, especialmente na região
existente, onde as diversas influências estrangeiras de Samatra. Este livro dará informações mais
se entrelaçam com a cultura tradicional do concretas e actuais a quem tiver o privilégio
seu povo tanto em termos tradicionais como de o ler, especialmente aos praticantes de surf
contemporâneo. A existência de 450 tribos com as ou aficionados pelo surf que têm interesse em
suas próprias culturas e tradições e 583 dialectos visitar a Indonésia. Além disso, este livro, de uma
no seio da população da Indonésia é uma maneira geral retrata a diversidade turística e a
característica que não é facilmente encontrada em riqueza dos recursos naturais da Indonésia cuja
mais nenhuma nação do mundo. preservação depende de todos nós.
Uma das maravilhas naturais da Indonésia são as Um muito obrigado a todos os que ajudaram a
ondas e as paradisíacas praias, muito procuradas tornar realidade o lançamento deste livro, em
pelos praticantes de surf de todo o mundo. Muitas especial àqueles que o apoiaram e patrocinaram.
regiões da Indonésia como Sumatra, Java Sul, Por último, é meu desejo que este livro seja mais
Bali, Lombok, Sumbawa, Sumba, Maluku, etc. uma ponte a ligar os nossos Povos tornando
têm ondas perfeitas para a prática de surf e são ainda mais fortes os laços de a amizade que
consideradas pequenos paraísos e destinos de unem Portugueses e Indonésios. Que Deus todo-
excelência para os surfistas. A beleza e a perfeição poderoso nos abençoe.
das ondas do mar da Indonésia são conhecidas no
mundo inteiro e é por isso que muitos surfistas Ámen.
estrangeiros visitam a Indonésia para a prática do
surf, entre eles os surfistas portugueses. Muitos
surfistas portugueses já visitaram a Indonésia
mais do que uma vez e não se cansam de lá voltar.
Devo dar graças e transmitir a mais elevada
apreciação pela iniciativa dos surfistas
portugueses em eternizar a sua experiência
através desta obra. Este livro sobre surf é também
uma reflexão sobre a sua dedicação à prática deste
Este livro é dedicado:

Às vítimas dos terramotos e maremotos na Sa-


matra, que só nos últimos 5 anos causaram mais
de 200.000 mortos, e dezenas de milhares de ór-
fãos e desalojados;
Aos incansáveis e dedicados tripulantes indoné-
sios dos barcos que usei ao longo dos anos nestas
inesquecíveis viagens em busca de ondas;
Aos habitantes de Samatra, à sua hospitalidade,
simpatia e contributo para que cada turista tenha
uma incontrolável vontade de regressar;
A todos os portugueses que já surfaram na Sama-
tra, alguns aqui recordados, e sem os quais este
livro não existiria.
Introdução
(por Gonçalo Ruivo)

Este livro consagra pela beleza das imagens, o pedaço de paraíso que são as ilhas ao lar-
go da Samatra, na Indonésia, dotadas pela natureza com as melhores condições do mundo para
a prática do surf.
As áreas onde estas fotografias foram tiradas, e as pessoas que as habitam, são talvez as mais martiri-
zadas do planeta por catástrofes naturais, sofrendo constantes abalos sísmicos, alguns deles de mag-
nitude inimaginável, tsunamis devastadores de cidades e populações inteiras, erupções vulcânicas que
obrigam a evacuar vilas e terras férteis, chuvas torrenciais causadoras de derrocadas e inundações,
doenças tropicais e epidemias como a malária, dengue, gripe das aves, etc.
Além disso, grande parte da população vive em condições que no ocidente são consideradas
de pobreza.
Não obstante estas adversidades, o povo de Samatra é genuinamente simpático e amistoso.
O sorriso e a alegria das crianças, que tentamos retratar neste livro, contrastam com as dificuldades
que encontram para viver, ou sobreviver.
Mas se por vezes a natureza é dramaticamente implacável, é também extasiante na beleza e no clima
tropical, factos que aliados às excepcionais ondas que quebram nos recifes de coral que bordejam as
ilhas tornam a zona tão apetecível para os surfistas de todo o mundo.
O turismo nestas ilhas, por enquanto quase exclusivamente ligado ao surf, é provavelmente
o factor com maior potencial para melhorar as condições de vida das populações, contribuindo para a
criação de empregos e de negócios ligados ao surf, para o aumento da literacia dos jovens que optem
por estudar e trabalhar nessa área, e para o aparecimento ou melhoria de infra-estruturas básicas
(estradas, unidades de saúde, redes telefónicas, etc.) que em algumas áreas são quase inexistentes ou
muito rudimentares, e insuficientes para as populações locais.
Importa porém assegurar que este desejado e inevitável desenvolvimento respeite e preserve a identi-
dade e culturas locais, bem como a frágil natureza e seus recursos de valor inquantificável.
E nunca é demais relembrar, também, que a gente amiga que nos acolhe neste pedaço de paraíso, onde
nós, turistas, surfistas, passamos férias de sonho, esta gente precisa do nosso apoio, da nossa ajuda,
da nossa solidariedade.
Para Melhor entender a Indonésia
(por António Pinto da França – Portugal e o Mundo o futuro do passado)

É longa e fecunda a História da Indonésia. Os mapas geográficos mostram-nos o maior país do Sudo-
este Asiático, abrangendo 2 milhões de km2. O ser um país inteiramente insular, é circunstância que O Budismo fundir-se-ia na vaga das poderosas influências do Hinduísmo, que vinham soprando da Índia
muito marcaria a sua formação e o seu destino. Constituem-no cerca de 3 mil ilhas habitadas e uma e dariam origem a uma fecunda criatividade, promovendo um assinalável essor nas artes, levando à
infinidade de outras desertas, dispostas como contas de um rosário que cobre, longitudinalmente, da construção de esplêndidos palácios e templos como Praambanan. O Hinduísmo somar-se-ia ao animis-
ponta ocidental de Samatra à fronteira da Nova Guiné, uma distância de cerca de 5 mil quilómetros, mo como a mais determinante marca da formação da cultura do arquipélago, de tal forma que alguns
mais ou menos equivalente àquela que vai de Portugal à Rússia, formando como que uma ponte entre “scholars” defendem a emergência duma religião, afinal dum a cultura, “hindo-javanesa”. Com ele viria
a Ásia e a Austrália. posteriormente a corrente tântrica tibetana, que postulava o “Bem” só ser alcançável pela purificação
Simultaneamente a abrir sobre o Indico e o Pacifico, desfruta de uma invejável posição estratégica em através do sangue, do efémero e do “Mal” praticado até uma saciedade que conduzisse ao seu repúdio.
termos culturais, económicos e militares. Deixaria ele vestígios ainda hoje patentes em esporádicas e vulcânicas reacções violentas dos indoné-
Note-se que só no século XIX surge a designação Indonésia. Até lá aquele “continente insular” foi co- sios.
nhecido como Insulíndia e em certos períodos mais antigos como Nusantara. A esmagadora maioria Hindu foi o poderoso reino de Majopahit, que de 1293 aos princípios do século XVII se enraíza em Java
das ilhas que formam este mundo marítimo são de origem vulcânica, como resulta do facto de assenta- Central. Embora o centro do poder estivesse instalado nas planícies interiores de Java, este potentado
rem num dos pólos de mais intensa actividade telúrica da Terra, embora também se ergam do mar um breve se tornaria igualmente marítimo e revelaria tendências expansionistas.
número significativo de ilhas de origem coralínea. Pela primeira vez na História da Indonésia emerge assim um embrião, ainda que vago, da unificação
Este vasto arquipélago terá, aliás, três diversas origens. Samatra, Java, Bali e Burnéu ter-se-iam se- do arquipélago. Com efeito, Majopahit terá conseguido que um largo número de Estados costeiros da
parado do continente asiático após o último período glaciar, na sequência da subida dos mares; as Insulíndia se sujeitassem a uma vaga relação de vassalagem e lhe pagassem os respectivos tributos.
Celébes ou Sulawesi e Halmahera resultariam do choque telúrico do continente australiano com o con- Quantas vezes este precedente um tanto brumoso e algo lendário não seria invocado, quando das ne-
tinente asiático; as restantes ilhas terão feito parte dum mais vasto continente australiano fragmentado gociações para a independência, para justificar o estabelecimento dum estado unitário, assim como
aquando daquelas tremendas convulsões. Tal explicaria as diferenças na fauna e na flora que até hoje serviria de base à linha seguida para manter depois essa unidade.
subsistem entre esses três grupos de Ilhas. Nos períodos mais remotos, o arquipélago seria habita- O golpe de misericórdia no império de Majopahit veio do Islão, que desde o século XIII fora penetran-
do por raças aparentadas com os melanésios, que perduram até hoje nas florestas e outras regiões do em Sumatra e que, a partir dos finais do século XVI, fora conseguindo a conversão dos principados
perdidas, praticando o animismo e vivendo apartadas da herança das grandes civilizações que foram costeiros de Java, que por sua vez iriam destruir e substituir o centro do poder hindu no interior de
florescendo na Insulíndia. Java Central. O Islão que entrou na Insulíndia não era a austera forma praticada no Médio Oriente, mas
Posteriormente derramar-se-iam pelas ilhas sucessivas vagas de malaios, ditos proto-malaios raiz antes uma variante do sufismo trazido da Pérsia para a Índia. Para além das particularidades da per-
daquelas civilizações. sonalidade dos indonésios, esse facto ajuda a compreender a tolerância invulgar com que esta religião
Neste vasto espaço nasceram as mais variadas culturas, formaram-se uma infinidade d idiomas e lín- dominante é até hoje praticada na Indonésia.
guas, emergiram e sumiram-se uma sucessão infindável de estados. Em consequência da sua parti- O Islão foi, aliás, um factor determinante na tenaz resistência do norte de Sumatra à expansão portu-
cular disposição geográfica, na encruzilhada de poderosas civilizações e interesses económicos, sobre guesa a partir de Malaca, embora o islamismo só tenha chegado a Java e a outras regiões da Insulíndia
ele incidiram constantemente, ao longo dos séculos, as mais diversas influências religiosas culturais, quase um século após o aparecimento dos portugueses, quando os holandeses começavam também a
sempre a jogar sobre o fundo animista das primeiras populações, fundo esse que nada apagou e que penetrar na região.
sempre prevaleceu subjacente a todos os novos modos de pensamento, particularmente num apurado Ao século e meio da presença portuguesa, que deixou surpreendentes marcas e trouxe o Catolicismo,
sentido comunitário, um verdadeiro “comunismo” “avant la lettre”. sucederam-se 3 séculos de domínio holandês. Até ao século XIX, os holandeses mostraram-se discre-
Da índia e da China veio o budismo, cadinho de reinos a filosofia sofisticados, geradores dos primeiros tos e foram exercendo o seu poder através dos potentados regionais e, mesmo após a centralização do
requintes civilizacionais, que deixaram atrás de si ideias e maravilhas arquitectónicas como esse expo- poder em Batávia, mantiveram alguns desses reinos ou sultanatos, não obstante a sua autoridade fosse
ente de beleza e espiritualidade que é Borobudur.
fictícia.
Depois chegou a hora da independência, que iria criar a grande potência do Sudoeste Asiático.
Contra as tentativas holandesas de manter maior influência, criando vários estados no arquipélago,
como nas Molucas, ou conservando a Nova Guiné ou Papuásia, vingou o elan nacionalista que queria um
estado unitário. Foi invocando, não só o precedente de Majopahit, mas também a unidade que resultara
do domínio holandês, assim como a relativa unidade que operaria a língua franca que por necessida-
des do comércio se disseminaria pela região. Funcionava ela como ume segunda língua de cada região
e provinha dum malaio falado no pequeno arquipélago do Rio, no estreito de Malaca, e que viria a ser
adoptada como língua nacional, o “bahasa” indonésio.
Com independência sopraram novos ventos filosóficos. Emergiria o comunismo que foi ganhando pro-
jecção e entrando na mística de certos sectores da população até ao desastre da tentativa revolucioná-
ria de 1965 que o varreu do panorama indonésio.
Por outro lado, os pais da independência dividiram-se entre aqueles – o grupo originário de Sumatra –
queria criar uma pura democracia ocidental e aqueles outros – originários de Java - que defendiam uma
solução híbrida que reflectisse a herança cultural do arquipélago toda ela imbuída da visão javanesa do
mundo, solução essa que acabou por ser adoptada.
A independência é proclamada unilateralmente em 17 de Agosto de 1945. Nesta imenso quadro insular
de formação geográfica já de si dispare, sucessivamente invadido, ocupado e habitado por etnias muito
variadas, arquipélago sobre o qual sopraram constantemente os ventos de novas influências culturais e
religiosas vindas do exterior, nasce a Indonésia como estado unitário e bem centralizado. Não obstan-
te, semelhante cenário tinha que se traduzir num mundo de populações e culturas de características
diversificadas, agrupadas em regiões claramente diferenciadas.
Na verdade, a Indonésia é o mais fascinante manto de retalhos, um catálogo de viagens mirabolantes.
Comecemos por Sumatra, coberta das maiores florestas da Terra, onde vivem povos industriosos e
pragmáticos, se bem que assaz diversos. Logo ao norte, surge-nos o aguerrido Atché, fortaleza e espe-
lho do islamismo; segue-se-lhe o País dos bataks, etnia pré-malaia, maioritariamente ainda animista,
mas muito agressiva economicamente e de herança cultural muito marcada; sucede-se Minankabau,
um matriarcado, onde persistem vestígios animistas sob o islamismo, que antecede a província de Pa-
lembang que sempre esteve sob influência da vizinha Java.
O Bornéu alarga-se a leste, como a maior ilha do globo. Só as populações da costa têm contacto regular
com o exterior. Para o interior estendem-se florestas imensas, sulcadas de rios, praticamente a única
ligação com a costa, povoadas pelos daiaques, que mantêm o animismo e as suas tradições muito par-
ticulares.
Para lá de Java, queda-se Bali, dela separada por muito isolados do mundo exterior, conservando
um estreito canal, mas que permaneceu quase assim quase intactas a pureza do seu animismo e
isolada, vivendo sobre si mesma, até aos inícios tradições muiltiseculares, muito particularmente
do século XX. Preservou intacta a plenitude da no que toca os rituais da morte; a norte está Me-
sua organização social e da sua herança hindu, nado, uma região que sofreu uma forte influên-
numa unidade cultural e de grande aparato esté- cia holandesa e mostra até hoje uma face menos
tico, que só nas últimas décadas principiou a ser exótica para os “ocidentais”.
violada por intenso turismo. Já o mundo das Molucas, bem cedo foi “visitado”
No rosário de ilhas que se estende para leste, se- por toda a espécie de estrangeiros em busca das
guem-se Lombok e Sumbawa, já de cultura mais apetecidas especiarias. Não perdeu por isso en-
pobre, mas ainda sob alguma influência cultural canto, filho de curiosas misturas com o ocidente
Balinesa. cristão, herança que hoje enfrenta um islamismo,
Para lá, estende-se um mundo de ilhas que os também secular, e de novo virulento.
javaneses ainda às vezes designam como “ultra- Java, a mítica Java, ficou para o fim porque ela
mar” e aonde pouco ou nada actuaram as gran- foi, com a sua permanente “capacidade de sín-
des correntes civilizacionais que varreram e mar- tese”, a argamassa que possibilitou a unidade de
caram as ilhas ocidentais. É um cosmos de ilhas todo este mundo aparentemente irredutível. Só o
mais pequenas e de proporções ingénuas que “javanismo” tornou possível o impossível, combi-
vivem simplesmente, sem grandes sofisticações, nar e manter unido este mundo de contrastes. Na
partilhadas entre o animismo e o cristianismo. verdade, para se entender a Indonésia, essencial
Delas ressalta o grupo das Pequenas Sundas, é conhecer e entender a filosofia javanesa que
entre as quais Flores e Solor, ligadas à memória marca profundamente todo o País e explica tam-
histórica de Portugal. bém o percurso histórico da Insulíndia.
A norte espalham-se outros dois vastos mundos De Java virá a mística de “unidade última” de to-
inteiramente distintos entre si e o resto da Indo- das as coisas que existem, o equivalente da har-
nésia, e que são as Célebes ou Sulawesi e o arqui- monia global. Nessa óptica, tudo o que existe,
pélago das Molucas. bom ou mau, está legitimado pelo simples facto
É a primeira uma extensíssima ilha, que tem ao de existir, ou seja, por proceder da criação do uni-
sul os buguis, povo muçulmano, marinheiros e verso.
comerciantes, que durante séculos foram tam- Sendo assim, tudo faz parte, por mais oposto, da
bém corsários eméritos: no planalto centra vive grande e única realidade que é o universo. Bem e
outro grupo pré-malaio, os tarajas. Estabelecidos mal, serenidade e brutalidade, são factores opos-
em elevadas e paradisíacas planícies rodeadas tos mas complementares, eternamente necessá-
de intransponíveis montanhas, passaram séculos rios à unidade da vida. Nem sequer se emite um
julgamento ético claro, apenas se sublinha que o é sereno e o mal é brutal. Sem o mal rompia-se o sivo exercício das elites intelectuais, mas por ela pensa e age no quotidiano o homem da rua. Ela tem
equilíbrio universal. Nada pode nem deve ser neutralizado. Logo, impõe-se encontrar soluções para a sido, quanto a mim, o garante da preservação do Estado indonésio.
coexistência e o equilíbrio dos “contrários” sem o que o mundo se tornaria inviável. Aliás, em um entender, as sérias perturbações que têm progressivamente vindo agitar o mundo indo-
Semelhante concepção do Universo pressupõe um exercício de compromisso permanente e o constante nésio, nestes últimos vinte anos, resultarão dum crescente desvio à aplicação das receitas e do espí-
recurso a uma tolerância interveniente, únicos instrumentos que, nesta visão, podem permitir e asse- rito javanês na condução do Estado. Após a queda de Soekarno, também ele intrinsecamente javanês,
gurar a absorção de todas as realidades num único sistema. manteve o início a linha seguida até ali. Porém, a voragem do poder e as suas inevitáveis alianças, a
Deste prisma, a tolerância, mais que um valor ético, é um utensílio indispensável à sobrevivência. Mas imergência duma classe militar e duma nova classe empresarial dominadas pela premência do ganho,
ela exclui a paixão. Todo o exagero é obstáculo ao equilíbrio de forças e ao objectivo último da harmo- que só um liberalismo ocidental sem travões podia permitir realizar, o súbito “boom” económico logo
nia de todas as coisas num só sistema. Por isso a educação dum indonésio se concentra em apurar o seguido de funda crise tão inesperada como o sucesso recente, o fenómeno da globalização, tudo isso
autodomínio dos sentimentos e das ideias. Da função de complementaridade de todas as coisas, chega- abalou as estruturas em que assentava a “pax“ indonésia. Traiu-se a lógica da unidade na diversidade,
se a outro princípio predominante do pensamento indonésio, a saber, o “equilíbrio de foças”, de todas descurou-se o equilíbrio das forças em presença, foi-se abandonando o método da síntese permanente
as forças em presença. Daí os indonésios preferirem o diálogo ao confronto. Daí deriva a necessidade e esquecendo as regras de oiro do diálogo, da tolerância e do compromisso, abriu-se a porta a novos
indonésia de só tomar decisões quando, leve o tempo que leve, se alcance o consenso entre forças em conceitos económicos em estado puro, sem a pressuposta “javanização”. É provável seja essa a expli-
conflito. cação para a crise que a Indonésia vem atravessando.
Aliás, um outro elemento decisivo de toda esta construção filosófica é o “tempo”. O factor “tempo” é veremos se a linha javanesa resiste às actuais e, sejamos justos, às inevitáveis transformações sociais,
encarado no sentido inverso do conceito que dele fazem os ocidentais. Apressar a solução dum proble- económicas e políticas. Até recentemente, ao contrário de muitos países da região, a identidade indo-
ma, “ganhar tempo”, é para os indonésios arriscar o insucesso. O correr do tempo conta antes como um nésia permaneceu no essencial intacta, igual a si própria, face às mais variadas influências e pressões
precioso instrumento para limpar arestas, diluir divergências, criar afinal condições para a formação e externas.
consenso entre forças opostas. Ao fazer este percurso “à vol d’oiseau” sobre a Indonésia, e sendo portuguesa a iniciativa desta publica-
Foi por tais caminhos que nasceu e se configurou a Indonésia. Ao longo deles se operou a fusão de todas ção, não pode deixar de se aludir aos vestígios da nossa influência que ali subsistem até hoje.
as correntes e influências, vindas do exterior, no mundo indonésio. Não se tratou apenas duma inte- Com efeito, não demorará muito tempo até que qualquer português acabado de desembarcar na In-
gração, mas sim duma digestão que possibilitou tudo absorver, “cozinhando”, “javanizando” realidades donésia e minimamente atento, não comece a esbarrar, com surpresa, em vestígios portugueses, ou
externas, aparentemente irredutíveis, numa cultura que, sempre em mutação e expansão, se traduziria que não se espante com as calorosas manifestações de locais ao descobrirem terem perante si um
na própria cultura indonésia. lusitano. Dar-lhe-ão logo mostras de muito bem o conhecerem e aos seus antecedentes, melhor que
Assim, em vez de simplesmente se adicionarem uns aos outros, se foram sucessivamente transfor- muitos europeus, para não falar de americanos. Sentirá de imediato uma atmosfera de intimidade e
mando, diluindo e reduzindo dentro do sistema filosófico da Insulíndia conceitos budistas, hindus, mu- cumplicidade. Ainda recentemente, eu parei numa venda sobre uma estrada perdida de Java, onde se
çulmanos, cristãos e até marxistas; aí se esvaíram ou “nacionalizaram” influências indianas, chinesas, apinhavam uns tantos camponeses da vizinhança que, muito curiosos, queria saber de onde vínhamos.
árabes ou europeias. Mal lhes dissemos ser portugueses, logo entre risos cordiais uma voz exclamou “oh! Vasco da Gama”.
Neste quadro, num permanente e refinado jogo de equilíbrio de forças, se foi caldeando a cultura indo- A prevalência da influência portuguesa na Indonésia constituirá singular fenómeno no mundo da luso-
nésia, que desembocou no elaborado sistema filosófico acima descrito. Foi este que garantiu o estabe- fonia. É-o, quer pela sua dimensão e profundidade, quer pela sua extensão geográfica detectável em
lecimento de um Estado unitário e tem permitido até agora manter aglomeradas identidades regionais vastas regiões daquela imenso País, quer pela sua diversidade, que abrange vestígios em áreas tão
variadíssimas e díspares. variadas como a linguística, música, dança, traje, toponímia, patronímica, lendas, arquitectura, festivi-
Tudo na Indonésia gira em torno da filosofia acima resumida. Curiosamente, tal concepção não é exclu- dades religiosas e teatro.
Na verdade, com excepção das Pequenas Sundas, onde se prolongou até 1851, a actividade ou uma
presença significativa dos portugueses no arquipélago da Insulíndia durou o brevíssimo espaço de 150
anos, afinal o período em que mantivemos Malaca.
Assim, os contactos regulares e substanciais com as populações locais cessaram há mais de três sé-
culos. Além disso, os holandeses, não só nos expulsaram, como se esforçaram afincadamente para
apagar a memória da nossa passagem, sempre no receio de que usássemos o capital do nosso relacio-
namento com os indonésios para destabilizar a consolidação do seu próprio poder.
É possível que a intrigante sobrevivência dos nossos vestígios, a curiosidade e simpatia que ainda hoje
manifestam por Portugal, se devam a um fenómeno de assimilação da imagem dos portugueses aos
mitos das populações locais.
Samatra (Sumatra)
Por José Manuel Garcia, historiador (Portugal e o mundo – o futuro do passado)

Os primeiros contactos que os portugueses tiveram com o Norte da ilha de Samatra foram estabeleci-
dos em 1509, quando por lá passou Diogo Lopes de Sequeira durante a missão que visava proceder a
um reconhecimento de Malaca. Depois de esta ter sido conquistada em 1511, os portugueses desenvol-
veram contactos com o Norte de Samatra em Pacém, onde em meados de 1521, sob a direcção de Jorge
de Albuquerque, construíram uma fortaleza destinada a albergar uma feitoria cujo principal objectivo
consistia na recolha de pimenta que se produzia na região.
Esta posição veio a revelar-se de difícil manutenção devido aos ataques que sofreu da parte dos habi-
tantes do Achém, os quais acabaram por levar os portugueses a optar por abandonar a fortaleza em
Maio de 1523. (…)
A conjuntura do início do reinado de D. João III, em que o referido abandono se verificou, coincide com
a circunstância de Vasco da Gama ao partir de Lisboa em 1524 como vice-rei do Estado da Índia levar
instruções para desmantelar a fortaleza de Pachém e construir uma outra em Sunda Calapa (Jacarta),
de acordo com o tratado ali negociado em 1522. Este facto revela uma inflexão da política portuguesa
visando privilegiar as relações com Java ocidental em detrimento do Norte de Samatra.
Foi a partir das décadas de 20 e 30 do século XVI que começou a crescer o poderio do reino do Achém, o
qual se pretendeu assumir como uma potência islâmica na região, protagonizando a luta contra os cris-
tãos, tendo para esse efeito beneficiado do apoio económico e militar conseguido através de relações
privilegiadas com guzarates e turcos. De facto, seria do Achém que os portugueses de Malaca iriam
sentir a principal oposição à sua presença no Sudeste Asiático, bastando referir que dali se enviaram
expedições militares visando a conquista de Malaca em 1537, 1547, 1568, 1572, 1582 e 1629.
Tendo em conta as ameaças que vinham do Norte de Samatra, por várias vezes os portugueses projec-
taram atacar o Achém, tendo mesmo em 1584 D. João Ribeiro Gaio, bispo de Malaca, preparado um cui-
dadoso roteiro para servir tal iniciativa. Esta só foi tentada em 1606, quando o vice-rei D. Martim Afonso
de Castro para aí se dirigiu, tendo iniciado um ataque que teve de interromper, de forma a ir socorrer
Malaca, que estava a ser atacada pelos holandeses.
Vários autores portugueses quinhentistas apresentaram descrições de partes de Samatra, sendo uma
dos mais importantes a que foi feita por Fernão Mendes Pinto na sua Peregrinação quando trata das
missões que realizou em 1539 aos reinos de Bataque e de Aru por ordem de Pêro de Faria.
A região de Minangkabau teve também relações com os portugueses no século XVI.
Um dos episódios mais importantes que ocorreu na presença dos portugueses em Samatra relaciona-
se com o naufrágio da nau São Paulo, em 1561 junto da costa ocidental desta ilha de Pini, um pouco ao
sul do equador. Esta triste ocorrência foi descrita numa relação que foi impressa em 1565 e, em 1735
reunida numa versão mais alargada na História Trágico Marítima. Os portugueses que sobreviveram
conseguiram chegar a Java, de onde seguiram para Malaca.
Na povoação de Lamno, que se situa a 50 Km a sudoeste da cidade de Bandaaceh, a capital da região co-
nhecida por Achem, há uma comunidade que é conhecida por nela haver pessoas que são consideradas
descendentes de sobreviventes do naufrágio de um navio português. As fontes conhecidas não indicam
qual possa ter sido tal naufrágio, pois aquelas que se referem ao naufrágio da nau São Paulo, não apon-
tam que tenha havido náufragos a ficar com vida em Samatra. Quanto à possibilidade de se tratar de
outro naufrágio, ainda não se encontraram documentos que assinalem a permanência de uma comuni-
dade de portugueses ali sediada, tanto mais que todas as inscrições que temos do relacionamento entre
portugueses e os habitantes de Achém aludem a gestos de hostilidade, intercalados por períodos de
paz em que era possível fazer algum comércio, embora sem estabelecimentos fixos. Por tal motivo não
se pode ainda apurar qual possa ser a base antropológica desta tradição bem conhecida na Indonésia.
A cerca de 215 km a Noroeste de Padang, na costa ocidental de Samatra, existe um porto chamado Na-
tal, que talvez resulte de influência Portuguesa.
Em várias localidades de Samatra há uma tradição segundo a qual os fatos dos noivos são de origem
portuguesa.
Capítulo
Telos
Tellos (capítulo Tellos)
(por Gonçalo Ruivo)

Situado imediatamente a norte das Mentawai e com características naturais muito semelhantes, o ar-
quipélago das Tellos, com cerca de 100 ilhas paradisíacas que escondem ondas de sonho, é atravessado
pela linha do Equador e ainda muito pouco explorado pelos surfistas.
É um dos segredos do surf na Indonésia, guardado até hoje pelo facto de os barcos “charters” preferi-
rem as Mentawai às Telos devido à maior distância que separa estas últimas da cidade de Padang, base
de operação de todos os barcos.
Tal como em toda a Indonésia, também aqui as pessoas são de uma simpatia a que os ocidentais estão
pouco habituados. As crianças acorrem a ver os “bulés” (brancos) e os “Alô mister!” repetem-se a cada
passo, acompanhados de sorrisos e logo seguidos de “Mau ke mana?” (onde vais?), pergunta por nós
considerada indiscreta mas para eles apenas uma forma simpática de tentar comunicar.
No entanto, surfar por conta própria neste arquipélago isolado do mundo, usando os meios de trans-
porte locais, tentando dormir nas aldeias e comer o que existe nos “mercados”, significa correr vários
riscos. Risco de apanhar malária ou dengue. Risco de ter um “contacto indesejado” com uma bancada
de coral longe de qualquer assistência médica. Risco de não conseguir comunicar com ninguém, ne-
gociar, explicar o que se pretende ou pedir auxílio, pois ninguém fala inglês. Risco de ficar retido numa
ilhota sem ondas, onde o próximo barco para a sair dali pode demorar dias a chegar. Risco de esse bar-
co ser um “ferro-velho”, ou pior, uma “madeira-podre”. Risco de essa “madeira-podre” não aparecer
após dias de espera, sem qualquer justificação. Risco de ter que dormir no chão sobre uma esteira e de
comer arroz branco com chilli 3 vezes por dia …todos os dias! Risco de desesperar e de transformar as
férias num pesadelo.
No entanto as coisas estão a mudar. É inevitável, face à pressão do negócio. Os barcos de surfistas, que
já são demasiados nas Mentawai, exploram todas as possibilidades de surfar ondas sem ninguém, e nas
Telos há muitas …e outras tantas por descobrir.
Em 2009 abriu o segundo “resort” para surfistas nas Telos. O primeiro está a funcionar desde 2006. São
unidades hoteleiras de capacidade reduzida (como convém aos surfistas) mas com qualidade elevada,
que funcionam em sistema “all inclusive”, ou seja, recebem os surfistas no aeroporto e a partir daí es-
tes não se preocupam com mais nada a não ser surfar, comer e dormir. Os clientes são levados para o
“resort” onde dispõem de todas as comodidades modernas como ar condicionado nos quartos, internet,
menus gourmet preparados por “chefs” estrangeiros, serviço de massagens, etc. São acompanhados
por guias que usam modernas lanchas rápidas para explorarem ondas mais distantes do “resort”, e
por fotógrafos que registam cada onda de cada “guest”, e nos dias sem ondas podem pescar grandes
pelágicos, fazer mergulho em locais espectaculares, visitar aldeias e mercados tradicionais, etc.
O cliente típico vem da Austrália ou dos EUA, em grupos de amigos ou familiares, e grande parte per-
tence a uma faixa etária avançada (acima dos 40 anos), pois é preciso pagar bem para usufruir deste
tipo de serviço.
Estes “resorts” estão normalmente lotados e por isso sem dúvida que futuramente outros serão cons-
truídos, tal como nas Mentawai, pois também aqui as condições são excepcionais para o turismo de
surf.
A fórmula é simples: paga-se bem mas garantem-se férias inesquecíveis.
Mentawai (capítulo Mentawai)
(por Gonçalo Ruivo)

O arquipélago das Mentawai é sem dúvida o melhor local do planeta para a prática de surf. Cerca de
meia centena de ondas perfeitas e tubulares, algumas delas consideradas das melhores de todo o mun-
do, quebram sobre bancadas de coral em águas mornas e cristalinas que rodeiam ilhas praticamente
desabitadas.
Surfistas de todo o mundo, amadores e profissionais, usando yates de luxo ou barcos de pesca locais,
exploram cada baía, cada recife de coral, cada direcção do vento, cada orientação do “swell”, em busca
de condições perfeitas.
A natureza está intacta na maioria dos locais e o cenário é paradisíaco. Dezenas de ilhas e ilhotas onde
os fortes tons verdes da vegetação contrastam com os azuis turquesa do mar. A transparência da água
que banha a areia branca das praias desertas e os milhares de peixes coloridos criam a sensação de
estarmos num aquário natural gigante.
Tal como os outros arquipélagos da Samatra adiante apresentados, as Mentawai são ainda um local
extremamente remoto, e assim continuariam por muito mais tempo não tivessem sido recentemente
descobertas pela “tribo” aventureira do surf.
Há apenas 10 anos atrás este arquipélago, separado da grande ilha tropical da Samatra por 150 km de
mar, era ainda um local misterioso e inacessível para os estrangeiros.
Mas os surfistas são um tipo de turistas muito peculiar. Procuram por todos os meios, contra ventos e
marés, ondas perfeitas e desconhecidas, e assim que surgiram os primeiros rumores sobre a qualidade
das ondas nas Mentawai os mais aventureiros arranjaram maneira de explorar o arquipélago. Tratando-
se de pequenas ilhas praticamente sem infra-estruturas (meios de transporte, alojamentos turísticos,
etc.), a única forma de fazê-lo era, então, usando barcos. Assim surgiram os primeiros “charters” de
surf nas Mentawai, organizados por surfistas australianos que utilizavam veleiros e yates em sistema
de “live aboard”.
O negócio floresceu rapidamente e neste momento várias dezenas de barcos operam em permanência
no arquipélago, a preços elevados, juntamente com uma dezena de “resorts” turísticos que entretanto
foram sendo construídos em praias estrategicamente situadas nas proximidades das melhores ondas.
Em pouco mais de 10 anos o negócio transformou-se numa importante indústria turística que atrai só
a este arquipélago entre 7 a 10 mil turistas todos os anos, e que impulsiona à força de dólares e euros
a débil economia local, garantindo directamente centenas de postos de trabalho para a população lo-
cal como tripulantes dos barcos de surf e funcionários dos “resorts”, e uma grande rede de serviços
associados na cidade de Padang, base de partida de todos os barcos (hotéis e restaurantes, agentes de
viagens, supermercados e mercearias, pescadores e fornecedores de carne, casas de câmbios, guias
turísticos, taxis e “transfers” de/para o aeroporto, lojas de surf, vendedores de artesanato, etc., etc.).
Esta indústria assume ainda maior importância se for tido em conta que o número de turistas estran-
geiros na Samatra sempre foi insignificante, e por outro lado que o turismo ligado ao surf tende a
crescer significativamente no futuro próximo, ainda mais numa zona com o extraordinário potencial das
Mentawai.
O povo Mentawai
(por Gonçalo Ruivo)

O povo indígena das Mentawai habita há milhares de anos a floresta tropical virgem da ilha de Siberut,
totalmente isolado do mundo exterior.
Com paralelo apenas nas tribos da Amazónia, África equatorial profunda e Papua-Nova Guiné, mantêm
costumes, crenças e tradições únicas, e constituem um verdadeiro tesouro paleontológico, a salvo das
influências do mundo moderno devido ao difícil acesso à ilha, e em particular ao interior da floresta.
Não têm energia eléctrica nem quaisquer meios mecânicos, não têm telemóveis nem televisões, carros
ou motos, nem sequer bicicletas pois simplesmente não existem estradas.
Deslocam-se por trilhos pedestres para nós invisíveis que vão desbastando a golpes de catana por en-
tre a densa vegetação e em pirogas escavadas num único tronco, através dos rios que serpenteiam a
floresta.
Não há lojas, cafés, escolas, centros de saúde. Nem sequer aldeias. Cada família, ou clã, vive numa
grande casa isolada, no coração da floresta onde o sol mal penetra, construída apenas com árvores e
usando folhas para fazer os telhados.
Vivem em perfeita simbiose com a natureza, em autonomia total, obtendo da floresta tudo o que neces-
sitam. Caçam macacos e pequenos veados com arco e flechas cujas pontas embebem em veneno extra-
ído de plantas, nos rios pescam camarões e pequenos peixes com camaroeiros artesanais, nos troncos
apodrecidos apanham larvas de insectos que comem vivas ou assadas, das árvores colhem frutos e do
tronco de uma espécie de palmeira obtêm o “sagu” que constitui a base da sua alimentação.
Das plantas retiram todas as substâncias que usam como medicamentos, as tintas para se tatuarem, o
veneno para as flechas, o alimento para os animais domésticos, os materiais para os adornos, as folhas
que secam e enrolam para fumar.
Usam como vestes apenas uma faixa comprida de fina casca de árvore, amolecida na água dos rios e
enrolada à volta da cintura, e enfeitam a cabeça com uma coroa de missangas coloridas onde prendem
flores.
Tatuam o corpo todo com instrumentos rudimentares, num processo doloroso e lento, sempre com o
mesmo padrão que vai sendo completado ao longo dos anos de acordo com a sua hierarquia no clã. As
mulheres, também tatuadas e de peitos descobertos, afiam os dentes para ficarem mais belas.
São animistas. A exuberância da natureza leva-os a acreditar que tudo o que os rodeia tem vida espi-
ritual. O Sol, a Lua, as árvores, os rios, os animais, as casas, tudo vive e tudo é respeitado como um
elemento do clã.
A morte de um animal para alimentar a família, de uma galinha, um porco ou macaco, é precedida de
uma conversa com ele justificando a nobre causa do seu sacrifício.
Os crânios dos macacos, as mandíbulas dos porcos e as armações dos veados são pendurados por toda
a casa, numa disposição macabra, para apaziguar os espíritos maléficos.
Os seus cantares relatam lendas que vão passando de geração em geração, e que constituem a única
fonte histórica deste povo.
As danças à luz da fogueira e ao som dos tambores, representadas pelos “shamans” que evocam os
espíritos bons ornamentados com grandes folhas e flores, são de uma beleza hipnotizante.
A vida do povo Mentawai decorre ao ritmo da luz do sol e das estações das chuvas, ao sabor das épocas
dos frutos, e ao som das cerimónias tradicionais e do canto das aves da floresta.
E apesar do seu aspecto intimidatório, quase nus e todos tatuados, de catana numa mão, lança na outra
e arco e flechas às costas, não podiam ser mais simpáticos e acolhedores.
Aleoita!
A Engrenagem Flutuante (capítulo Mentawai)
(por Gonçalo Cadilhe – retirado do livro “Planisfério Pessoal” Of. Do Livro 2005)

A malária é endémica no arquipélago das Mentawai, avisam os guias de bolso da Indonésia. “Não te pre-
ocupes com a malária, aqui não há mosquitos”, tranquiliza-me Yanto, enquanto esmaga um mosquito
com um bater de palmas infalível. Não dá qualquer importância à contradição entre as suas palavras e
as suas acções. Uma excepção só ajuda a confirmar a regra.
E, de qualquer das formas, não estamos exactamente no arquipélago das Mentawai. Estamos a flutuar
ao largo. Somos uma pequena cabana no meio do mar, uma estrutura ingénua de pregos e madeira,
bóias e redes, candeeiros de petróleo e contentores de água potável, rugas profundas e mãos calejadas,
sorrisos cansados, suor e sal.
A cabana é a base de subsistência de meia dúzia de pescadores de peixe-coral, uma espécie minúscula
de peixes coloridos muito apreciada na gastronomia chinesa. Os pescadores conservam o peixe-coral
vivo, dentro de gaiolas de rede amarradas à cabana, viveiros artesanais. De três em três semanas passa
uma traineira frigorífica que recolhe o peixe-coral, o congela e o exporta para os restaurantes de luxo
de Singapura e da China.
Yanto convidou-me a ficar uns dias aqui, nesta cabana que é da família do primo do cunhado, a um preço
simbólico. Era o único preço que eu podia pagar. Yanto é um guia de trekking, de surf e de mergulho
especializado no arquipélago das Mentawai. Costuma trabalhar com grupos de turistas, em conjunto
com as agências de viagem e os “resorts” da zona. Não costuma trabalhar com um turista solitário.
Naturalmente o preço que me pediu, pelos cinco dias que eu ainda tenho disponíveis na Indonésia, era
um preço de grupo. Incluía a dormida nos resorts, as refeições prontas, e o iate para navegar entre as
ilhas. Eu não podia pagar esse preço.
Chegámos a uma solução de compromisso: em vez de dormir num resort, estou a dormir na cabana
flutuante dos pescadores de peixe-coral. Em vez das refeições prontas, ofereço um saco de arroz de 10
quilos para a despensa comum, e em troca recebo a minha ração diária de peixe. Em vez do iate, des-
locamo-nos na canoa de Wantô, o primo do cunhado de Yanto. Fico a conhecer na mesma o arquipélago
das Mentawai, mas com outros níveis de conforto.
“Não sei se estás habituado a dormir no chão”, diz-me Yanto, para me avisar que o alojamento vai ser
muito básico. Não estou habituado a dormir no chão, nem a lavar os dentes com a água do mar, nem a
ter que mergulhar e nadar umas braçadas quando preciso de usar a casa de banho, porque a casa de
banho é o mar. Estou habituado a ter água corrente, luz eléctrica, e à hora das refeições costumo ter
uma cadeira para me sentar, uma mesa para comer, um garfo para levar a comida à boca. Aqui, não há
nada disso. Há uma cadeira, mas somos dez homens a comer, não vale a pena pensar mais na cadeira.
Por outro lado, a mesa só serve para colocar as ferramentas. É demasiado baixa para qualquer outro
uso.
Há outras coisas a que não estou habituado. A acordar com a brisa da manhã como um bom-dia. A
adormecer rodeado de ilhotas e atóis sem nome, línguas de terra firme que se sustentam em tapetes
mágicos de coral, jardins suspensos de palmeiras com a dimensão de um palácio da Antiguidade. Não
estou habituado a que o mundo pare de rodar quando chega o aguaceiro tropical, violento e breve. A

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