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Ambigüidades do pensamento latino-americano: intelectuais e a idéia de

nação na Argentina e no Brasil


Marco A. Pamplona

1. Nacionalismo e intelectuais latino-americanos oitocentistas na articulação da


identidade nacional

É amplamente sabido que a nação, como constructo cultural, é sempre o trabalho


coletivo de muitos. Comunidades letradas e iletradas, grupos dominantes e dominados,
nacionalmente integrados ou excluídos, todos contribuem com distinta intensidade, de
modo diferente e em ocasiões diversas, para a produção desse dinâmico e mutável
“caldo” cultural ao qual o nacionalismo costuma vir identificado. Entretanto, nos
apropriamos apenas das expressões deste último, sob circunstâncias, tempos e formas
variados. O nacionalismo pode ser expresso por meio de discursos e imagens pictóricas,
rituais populares e cerimônias oficiais, ícones e lugares “sagrados”, mitos e costumes e
outra infinidade de formas de imaginar e de atitudes que nos permitem conjurar essa
comunidade bastante particular de vez em quando. 1
Embora não seja a única comunidade política imaginada possível, a nação é de um
tipo bastante especial. Ela é um constructo da imaginação concebido, ao mesmo tempo,
como “soberano e limitado” e exige fortes compromissos daqueles que dela fazem
parte. As pessoas devem sentir-se prontas para morrer por ela se for necessário, uma vez
que tal ato parece satisfazer a sua promessa de identificação com a posteridade,
permitindo ao indivíduo que a ela se sente ligado superar a terminalidade representada
quer pela morte, quer pelo esquecimento. Essa busca de conexão entre passado, presente
e futuro talvez seja o que permite à nação parecer eterna. A aura sagrada que envolve
muitos dos seus símbolos e rituais reforça igualmente a idéia de que ela é
transcendente. 2
Porém, a imaginação do Estado- nação emergindo no mundo ocidental ao tempo do
ocaso, ou ao menos da retração, de um universo cultural fortemente marcado pelas
influências da Igreja e da dinastia necessita de uma reflexão mais cuidadosa. De acordo
com a perspectiva de Anderson, para que essas relações se dessem, algumas condições
necessárias deveriam existir. Entre elas, uma de fundamental importância para o autor

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era o advento de uma nova concepção de tempo – o tempo “homogêneo, vazio e
cronológico” – ocupando o lugar das concepções medievais e da Antiguidade que
pensavam um “tempo simultâneo”.
Quando imaginadas ou concebidas desse modo, as nações apresentariam as
referências comuns que as tornariam singulares. Elas poderiam então ser identificadas a
alguns poucos heróis, associadas a certas paisagens naturais e espaços públicos e
mesmo a certos períodos cronológicos da história. De forma a aparecer vívida para
todos, a descrição de todos esses detalhes deve ser capaz de atingir, com a mesma
eficácia, todos os membros identificados com essas “nações culturais”. Daí a
importância atribuída por Anderson à difusão da imprensa em geral, aos jornais e
revistas, aos romances e às apresentações de teatro e ópera no século XIX, como formas
eficazes de vulgarização das referências comuns acima mencionadas. O advento da
“tecnologia do capitalismo editorial” – termo também cunhado por Anderson –, que
ampliou a produção em massa do livro impresso, somado ao progresso do transporte
transoceânico, teria contribuído bastante para a possibilidade de começar-se a imaginar
e narrar, precoce e simultaneamente, a nação nas Américas e na Europa. Tais
“condições operacionais” – como são por ele chamadas – para a difusão do novo
imaginário associado ao Estado- nação teriam existido desde o início dos tempos
modernos, embora o seu progresso mais intenso tivesse ocorrido apenas nos séculos
XVIII e XIX. 3
Comentando os desenvolvimentos da identidade nacional na Ásia de 1860 a 1920 (e
discutindo basicamente os casos da China e da Índia), Prasenjit Duara apresenta-nos
novas contribuições para esse debate. Duara chama a nossa atenção para o fato de que o
nacionalismo, como forma de identificação, embora necessariamente relacionado ao
sistema de Estados-nação modernos desenvolvidos no mundo ocidental, não deve
confundir-se com ele. Negando, pois, o excesso de linearidade e mesmo uma certa
teleologia, presentes no trabalho de Anderson, Duara analisa um tempo da história
chinesa em que identificações de grupos haviam se tornado politizadas e começavam a
aparecer como “nacionais”, ainda que permanecendo “pré- modernas” em grande
medida. Para Duara (1996: 152-4), foi o contato com um “outro” agressivo –
personificado pelas potências européias do século XIX – que acelerou na China a
transição de um certo “culturalismo” (aqui entendido como convicção natural de
superioridade cultural) para o “nacionalismo” (entendido como a politização da cultura
ou a sua proteção pelo Estado).

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É importante lembrar que essa análise constitui uma importante exceção à
interpretação clássica de Anderson. Em outras palavras, o nacionalismo passa a ser visto
como uma identidade relacional, mas esse sentido restrito de unidade não é considerado
nem único, nem exclusivo da sociedade moderna. Duara (1996: 153) afirma que
“indivíduos e grupos em sociedades quer modernas quer agrárias identificam-se
simultaneamente com várias comunidades, todas elas imaginadas. Tais identificações
são historicamente mutáveis e com freqüência conflituosas, internamente e umas com as
outras”. Enfatiza, em suma, que essas identificações políticas chamadas por alguns de
“pré-modernas” não necessariamente precisam se desenvolver no sentido de se tornarem
identificações nacionais dos tempos modernos. Nas sociedades que estuda, percebe, ao
contrário, como os novos vocabulário e sistema político também selecionam, adaptam,
reorganizam e recriam velhas identidades, fazendo assim com que as sociedades
modernas não sejam as únicas capazes de criar comunidades políticas conscientes de si
próprias como tal.
Creio que esse raciocínio pode ser aplicado não apenas às sociedades orientais, mas
igualmente a outras chamadas periferias do mundo ocidental – incluindo-se aqui a
América Latina, considerada por alguns como uma espécie de longínquo ou “Extremo
Ocidente” (Rouquié, 1989).
Conseqüentemente, apesar da aceitação inconteste de que o Estado-nação representa
uma “idéia histórica poderosa” que emergiu no Ocidente, como resultado do
desenvolvimento das “tradições do pensamento político e da linguagem literária”
(Bhabha, 1990), o modo como essa “idéia poderosa” apresentou-se e evoluiu em outras
culturas revela profundas singularidades. O modelo do Estado-nação foi legitimado
historicamente no Ocidente por duas experiências bastante bem-sucedidas: as da Grã-
Bretanha e da França. Não representa nenhuma coincidência que as idéias mais
influentes disseminadas a respeito do nacionalismo fossem referidas basicamente a
esses dois países e também à Alemanha, cujo importante papel cultural e político
também contribuiria para ofuscar os demais nacionalismos dispersos, desenvolvidos no
século XIX.
A análise que Mary Ann Perkins realiza sobre esses três casos permite-nos um
entendimento mais aprofundado do porquê do fenômeno mencionado acima. Seus
comentários detalhados sobre as relações entre a linguagem, a religião e as idéias
difundidas sobre o Estado-nação desde o Iluminismo, na Europa, revelam a importante
contribuição desses países.

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Na Inglaterra, diz-nos Perkins, a tradição e a lei serviram de esteio para o
nacionalismo. Baseando-se na idéia do “exemplo” histórico e político que deveria ser
mantido, a sua missão “divina” implicava a conservação da “velha nação”, isto é, a
relação entre a monarquia, a Igreja e a lei, tal como vinha estabelecida pela
“Constituição Sagrada”. As leis e liberdades da Inglaterra não eram consideradas
universais; eram enraizadas na Magna Carta de 1215, a qual, por sua vez, apresentava-
se como resultante de um conjunto ainda mais antigo de leis. E, embora o jus soli
estivesse aí profundamente presente, reforçando a idéia de uma “comunidade
territorial”, também as influências do romantismo, suas filosofias e o pensamento
alemão levaram à redescoberta do interesse na descendência teutônica. Assim, com a
adoção do princípio do jus sanguinis, da idéia de uma cidadania ou uma “comunidade
de origem”, a noção da Constituição como uma lei quase divina (Lex Sacra) se veria
reforçada e transformada na principal base para a supremacia da nacionalidade inglesa
(Acton, s.d.: 270-300).
Na França, inversamente, o nacionalismo enfatizou a secularização das leis, com a
passagem da soberania do rei para a soberania do povo. Ali, a importância de princípios
como o da razão pura – “la saine raison” – e o da comunidade moral eram lembrados, ao
mesmo tempo que se enfatizava a missão iluminadora da França Revolucionária. Como
Michelet repetidas vezes afirmou, cabia à França, que encarnara e se tornara sinônimo,
ela própria, da Revolução, servir de exemplo para o mundo, promovendo a libertação
dos demais povos do jugo da tirania. 4
Já na Alemanha, o nacionalismo identificou-se à lei do Volk, à reivindicação de uma
certa soberania messiânica, baseada na descendência comum e, por isso, assumindo o
pertencimento a uma certa comunidade de espírito que apenas poderia existir dentro de
circunstâncias dadas. Como a leitura cuidadosa de Herder5 e Fichte (1992: 239-53) bem
demonstra, a filologia, a poesia e a filosofia importavam bem mais do que a política e a
religião, quando a questão era o nacionalismo. A língua e a literatura (ou a identidade
lingüística do pensamento alemão) foram fundamentais, nesse caso, para a construção
do conceito e do sentimento de identidade nacional.
Para entendermos os modos como essas proeminentes idéias modelares sobre o
Estado-nação atingiram aquela “periferia” da Europa chamada América Latina no
século XIX (Lampërière, Lomné, Martinez e Rolland, 1998), como foram apropriadas e
re-significadas pelos seus intelectuais, algumas poucas palavras devem ser antecipadas
sobre a definição destes últimos como grupo.

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A maioria dos historiadores que estudam o nacionalismo tem adotado uma definição
compreensiva dos intelectuais. Incluem nesta categoria professores, instrutores,
jornalistas e membros das profissões liberais que, talvez mais do que os escritores
criativos e os filósofos, tradicionalmente identificados como intelectuais, estariam
propensos a adquirir a habilidade e a destreza necessárias para a promoção do
nacionalismo. Essa coletividade, entretanto, aproxima-se mais da idéia de uma
intelligentsia, a qual, sem dúvida, prestou um enorme serviço na promoção do
nacionalismo. Há vários estudos sobre o seu envolvimento no processo de criação da
nação na Alemanha e na Rússia, e sobre a sua contribuição para a criação de identidades
nacionais nos Estados Unidos. 6
Em relação à América Latina, a difusão de um sentido de nacionalidade tem sido
atribuída usualmente ao Estado, especialmente de 1930 em diante. Esta foi uma época,
em muitos países, de disseminação da educação popular, de criação de uma grande
capacidade administrativa para se contrapor às bases do poder local e do uso do serviço
militar obrigatório para instigar o patriotismo (Miller, 1999: 12). Porém, os estudos para
o período prévio mostram-se menos afirmativos a esse respeito. Pode-se dizer que, para
o período de 1850-1920, o papel mais importante na institucionalização dos modos
particulares de se imaginar e narrar a nação tem sido atribuído não apenas aos
intelectuais, como também à intelligentsia e a outros membros das ativas comunidades
letradas das sociedades latino-americanas. 7
Entre os intelectuais, alguns poucos formaram o chamado “panteão de escritores”
nacionais, tornando-se conhecidos pelo estabelecimento de cânones para a linguagem e
pela disseminação de modos específicos de falar sobre, e perceber, a própria cultura. A
progressiva estandardização do sistema da escola secundária, a formação de um exército
de professores e a criação de uma enxurrada de livros-texto e compêndios para o estudo
da linguagem, da literatura e da história, todas essas medidas serviram para a
reprodução incansável desses cânones e padrões de pensamento à época.
A importância das escolas como legado da modernidade pode ser considerada
equivalente à da imprensa. As escolas ajudaram a difundir algumas dessas normas
consagradas e seus valores culturais. As normas, profundamente associadas ao uso da
linguagem, aos mais elogiados estilos literários daquele tempo e à criação da memória
coletiva, ajudaram a promover valores caros à “comunidade nacional” em construção. 8
Neste trabalho sobre a articulação da identidade nacional na Argentina e no Brasil,
em fins do século XIX, estarei privilegiando, sobretudo, o estudo de alguns desses

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homens letrados, em especial os chamados intelectuais “tradicionais” (no sentido
gramsciano do termo). 9 Todos eles possuíram fortes relações com o Estado – na maioria
das vezes, duplicaram as suas funções na condição de homens públicos –, mas também
continuaram a conceber-se primordialmente em termos da relação bastante particular
que mantinham com o conhecimento. Pode-se dizer, inclusive, que se a relação que
estabeleciam com o poder era tida como fundamental para a sua existência – e não
apenas material – também o era a ênfase que davam à sua vinculação com o
conhecimento. Era nesta última condição que eles se concebiam herdeiros de uma
abordagem do conhecimento menos pragmática e mais universal, a qual lhes conferiria
supostamente o status de verdadeiros livres-pensadores. E, ao enfatizarem o seu
compromisso com a busca da verdade e com o discurso da razão crítica, eles acabaram
sendo percebidos como estando de algum modo “acima” ou “fora” da sociedade, ou
como aquele grupo que embora dela não divorciado, “pairava” sobre a sociedade.
Assim, diferentemente do conjunto dos grupos de pessoas que normalmente se
encaixam no conceito mais amplo de intelligentsia – juristas, doutores, clero, militares,
profissionais liberais, professores etc. –, os intelectuais “tradicionais” buscam
apresentar-se como aqueles que podem e conseguem manter uma postura crítica sobre o
poder. Entre esses intelectuais “tradicionais” de fins do século XIX, se sobressaíram, na
América Hispânica, o uruguaio José Enrique Rodó, os argentinos Domingo Faustino
Sarmiento e Ricardo Rojas, o peruano Francisco Garcia Calderón e o chileno Ricardo
Palácios, apenas para mencionar alguns. 10 Os seus congêneres brasileiros mais
expressivos foram, entre outros, Capistrano de Abreu, Joaquim Nabuco de Araújo,
Manuel de Oliveira Lima e Ruy Barbosa. 11
O comentário de Liliana Weinberg, em seu artigo, sobre o impacto do J’accuse
de Émile Zola sobre os intelectuais europeus seus contemporâneos ajuda-nos a melhor
compreender como esses homens de letras costumavam entender a perspectiva crítica
que eles próprios se atribuíam. A posição radical de denúncia assumida por Zola frente
às autoridades públicas, à época do caso Dreyfus, é por ela analisada como símbolo
maior dessa nova percepção de uma atitude autônoma entre os intelectuais de fim do
século XIX, tanto na Europa, quanto na América. Ela acrescenta a essa afirmação um
breve comentário de Proust no período, que, também corroborando essa autopercepção,
define os intelectuais como aqueles pensadores que “tornam manifestas suas visões e
opiniões sobre a política, mas não se encarregam dela diretamente”. 12

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Cremos que, talvez pelo maior desenvolvimento, na Europa do Oitocentos, da
sociedade civil e, conseqüentemente, da expressão institucional de sua cultura – sistema
universitário, imprensa, indústria editorial de livros, revistas especializadas, academias
de ciência, mus eus e outros –, a separação entre os campos político e intelectual podia
ser percebida como existente de fato. 13 O caso da América Latina, no entanto, era
diverso. Aqui, onde a base institucional da vida intelectual era ainda frágil,
especialmente naqueles países em que uma continuidade institucional não acontecera,
uma tal percepção simplesmente não encontraria campo fértil para se desenvolver. Seria
enganoso, pois, separar a vocação pela política desse “desejo de saber”, ao se discutir os
nossos intelectua is do Oitocentos. Nesse ambiente em que a dependência cultural era
reiteradamente afirmada, coube ao Estado funcionar como a única e efetiva fonte de
validação cultural e de prestígio social para os intelectuais.
No que diz respeito à formação da nação como projeto, faço uso, aqui, em especial,
do conceito de “etnicidade fictícia”, empregado por Etienne Balibar (1996: 132-49),
para identificar o tipo de comunidade instituída pelo Estado- nação. Ou seja, proponho
que se discuta, no conjunto maior de “tradições inventadas”14 produzidas, a “etnicidade
fabricada” que os intelectuais latino-americanos, ajudados pela intelligentsia,
articularam.
Sabe-se que nação alguma possui naturalmente uma base étnica, mas, à medida que
formações sociais se tornam nacionalizadas, as populações nelas incluídas, 15 nelas
divididas, ou por elas dominadas costumam ser, com freqüência, “etnicizadas”. Isto é,
elas são representadas no passado ou projetadas no futuro como se formassem uma
comunidade natural (do tipo perene), trazendo consigo uma identidade de origem, uma
cultura e interesses que transcendem individualidades e condição social.
Essa “comunidade natural” construída pode ser apresentada como antiga o
suficiente, a ponto de se ver imersa em tempos imemoriais e míticos, ou pode ser
concebida como um fenômeno recente, até moderno, mas relacionado do mesmo modo
a algum tempo mágico, impossível de se demarcar efetivamente. Na América Latina, a
construção da comunidade do primeiro tipo pode ser ilustrada com as representações
míticas de uma suposta etnicidade incaica antiga, tal como aquela presente nos trabalhos
dos conhecidos autores boliviano e peruano, Arguedas e Mariátegui. Já a comunidade
do segundo tipo pode ser exemplificada pela imagem da raza cósmica, conjurada com
maestria pelo mexicano José Vasconcelos. 16

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No moldar dessas chamadas “etnicidades fictícias” há sempre o trabalho importante
e complementar da língua e da raça, para permitir que os povos sejam apresentados
como unidades absolutamente autônomas. Língua e raça são duas formas combinadas
de enraizar populações históricas em um “fato da natureza” (a diversidade das línguas e
das raças aparece predestinada) e, também, de dar sentido à sua contínua existência, ou
seja, de transcender a sua contingência.
Não apenas o trabalho intelectual foi sumamente importante para forjar essa
“identidade fictícia”. Como foi dito acima, a difusão das escolas secundárias na segunda
metade do século XIX, fazendo-se acompanhar da criação e afirmação de códigos e
normas comuns, foi igualmente fundamental.
A língua como tal tem um papel de integração bastante eficiente. Diferenças
regionais, sociais, raciais e outras certamente continuam a existir, e se expressam nos
diferentes modos de se falar uma dada língua nacional. Entretanto, essa discrepância e
esse choque diários entre “línguas étnicas e raciais” não apresentam contradição no que
diz respeito à instituição de uma língua nacional, mas são, outrossim, complementares a
ela. Como bem afirma Balibar (1996: 142),

todas as práticas linguísticas se alimentam de uma espécie de único “amor à


língua”, que não é dirigido à norma do livro-texto, nem a um dado uso particular
daquela, mas sim à “língua mãe” – isto é, ao ideal de uma origem comum
projetada em um passado distante, anterior aos processos de aprendizagem e
formas especializadas de uso, o qual por esse mesmo motivo se torna a metáfora
do amor que seus companheiros nacionais sentem um pelo outro.

Cabe notar a própria plasticidade da comunidade lingüística. Em outras palavras,


cabe lembrar a facilidade com que a língua “naturaliza” novas aquisições – como, por
exemplo, os imigrantes. Quando observamos a rápida integração lingüística dos filhos
dos imigrantes numa dada sociedade, não raro à custa de um processo de esquecimento
individual que promove após um certo tempo, entendemos o porquê da preocupação dos
governos com esse aspecto de integração da língua. Não investir nele, pode se tornar
problemático. Como bem nos chama a atenção Susana Rotker (2000: 85), ao tratar dos
cubanos residentes nos Estados Unidos, “a língua no exílio adquire o poder de território
e localidade”, o que sob circunstâncias especiais pode vir a ser extremamente
ameaçador à “comunidade fictícia”.

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Porém, o componente lingüístico é apenas uma das maneiras de enraizar populações
históricas, conferindo- lhes o estatuto de “fato da natureza”, com o objetivo de dar
sentido à sua continuada existência. Ele não cumpre essa tarefa isoladamente. O moldar
de uma identidade nacional com o objetivo de transcender a contingência conta também
com outros princípios e práticas tanto inclusivos como excludentes. E, no que tange aos
critérios de exclusão ou restrição, o mais importante papel nesse processo de etnicização
das populações coube à raça.
A ficcionização de uma identidade racial, de modo a representar algum tipo de
diferença natural e hereditária entre os povos de uma dada formação social, também
parece funcionar de maneira eficiente na produção da chamada “etnicidade fictícia.”
Balibar (1996: 147) entende esta última como resultante de um processo duplo e inter-
relacionado, expresso, a um só tempo, pela “verbalização da raça” e pela “racialização
da linguagem.”
A “racialização da linguagem” ocorre sempre que a representação ideal da
comunidade nacional começa a ser moldada pelo critério racial. Ao produzir tal
imaginário – desenvolvendo práticas de segregação e proibições que são de fato
constantemente transgredidas no cotidiano das sociedades em geral (migração,
casamentos inter-raciais etc.) – a idéia da ascendência de um grupo homogêneo
primordial, com uma “substância” biológica ou espiritual, ou ambas, acaba sendo
transmitida de geração a geração e pode vir a ser perpetuada pela memória coletiva. Os
chamados “povos predestinados” ou “escolhidos” derivam, via de regra, deste modo
particular de se produzir a etnicidade. 17
No entanto, no conjunto, a produção da “etnicidade fictícia” nacional deve ser vista
como um processo em contínua construção e transformação. A ambivalência estrutural
do próprio nacionalismo moderno, por um lado, e a historicidade da nação, por outro,
tornam o nacionalismo um lugar de permanente contestação e repressão de diferentes
concepções de nação. A percepção das ambigüidades que acompanham a construção da
identidade nacional necessita ser estudada na sua relação com outras identidades, em
construção, como Duara (1996: 161) bem salientou. Creio que também é assim que
deve ser interpretada a ênfase de Homi Bhabha (1990: cap. 6) à noção de entre-lugares
(ou between-spaces), na sua análise do discurso sobre a nação. É nesse momento que
podemos melhor perceber as ambigüidades e as tensões aflorando, as diferentes visões
chocando-se umas com as outras ou sendo negociadas.

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Assim, quando falamos de projetos de construção da nação, ou de “etnicidades
fictícias” promovidas pelo Estado, pelos intelectuais e pela intelligentsia, devemos nos
lembrar que a identidade que está sendo conjurada nunca é capaz de eliminar as demais
construções alternativas da nação. Em comunidades velhas e novas, há sempre
imaginações e narrativas, de fato diferentes, defendidas por outros grupos, as quais
podem em certas circunstâncias se apresentar como alternativas. Essas outras “visões”
ou entendimentos da nação não se encontram ausentes na narrativa da “nação oficial”.
Por isso, em vez de um discurso monológico e harmônico, o nacionalismo, mesmo o
oficial, pode sempre revelar-nos uma polifonia de vozes. Na narrativa, as “visões de
nação” transcendem seus próprios limites. Misturam, com freqüência, afirmações
ambíguas e contraditórias, estabelecem relações umas com as outras, opondo-se e
reafirmando-se, e negociam entre si (não sem conflito) as múltiplas concepções.
Durante esse intercâmbio de visões, os critérios utilizados costumam ser diversos.
Designados à inclusão – na maioria das vezes violenta – de alguns e à exclusão ou
marginalização de outros, eles compreendem desde definições lingüísticas, religiosas e
raciais, até o critério da experiência histórica comum.
Finalmente, pode-se dizer que independentemente do critério escolhido, como
relação entre constituintes, o “self” nacional também se define pelo “outro” ou “outros”.
Houve “outros” que resultaram de menor importância no passado, ou puderam ser
absorvidos, ou com os quais foi possível algum tipo de reconciliação. Porém, há
também o que podemos chamar de “outros” em potencial, que se fazem sentir no
presente. Estes permitem revelar o princípio performático que cria as nações – “o desejo
de existência de uma nação que deverá escolher privilegiar sua diferença e obscurecer
todos os laços culturais que a vinculam aos demais componentes do seu grupo
sociológico” (Duara, 1996: 163). Esses “outros” em potencial tornam-se a mais visível
expressão do nacionalismo como uma relação. Ao se lidar com o processo de
negociação das visões de nação, deve-se tentar trazer à luz exatamente esses “outros
ocultos”, aqui entendidos não apenas como outros grupos, mas também como os
próprios princípios alternativos de agrupamento defendidos pelas pessoas. Por meio de
diferentes narrativas – em que metáforas, metonímias e oposições binárias costumam
ser empregadas –, um certo significado é dado à nação. As expressões utilizadas ajudam
a formar, reprimir, negociar e deslegitimar as “visões de nação” existentes ou as formas
mesmas como as nações são imaginadas.

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“Outros” com quem se associar, ou em relação a quem manter distância, ignorar ou
relegar ao esquecimento, são sempre importantes componentes da identidade. Creio que
a compreensão correta dessa referência de alteridade nos permite o entendimento da
singularidade das interpretações brasileira e argentina.
Nos trabalhos dos dois intelectuais que passamos a comentar, todos os critérios por
nós mencionados aparecem. A interpretação que fazem dos contemporâneos europeus
permite a redefinição de significados originais sobre temas como a natureza, a raça, a
modernidade e a razão. Cada autor, a partir do seu respectivo contexto, fala da nação à
qual se sentia identificado, da “comunidade política imaginada” que desejava que
existisse ou que cria já existir, ou de ambas.

2. Interpretando as fontes européias e redefinindo os seus significados. A


singularidade das narrativas brasileira e argentina, exemplificada a partir dos
trabalhos de Domingo Faustino Sarmiento e Manuel de Oliveira Lima

Com o objetivo de melhor precisar o foco de nossa discussão, selecionei os


trabalhos de dois conhecidos autores do nosso panteão latino-americano: Domingo
Faustino Sarmiento (1811-1888) e Manuel de Oliveira Lima (1865-1928).
No tratamento do primeiro, estarei utilizando as seguintes obras: Facundo:
civilización y barbárie (1845) e Conflicto y armonías de las razas en América (1883).
De acordo com o próprio Sarmiento, este último livro representou a oportunidade de
confrontar e rever concepções defendidas no seu primeiro e mais famoso livro,
Facundo.18 Quanto ao segundo autor, Oliveira Lima, me ocuparei basicamente do seu
Pan-americanismo: Bolívar-Monroe-Roosevelt (1908) e das seis palestras por ele
proferidas na Leland Stanford University, no ano de 1912, mais tarde publicadas sob o
título de The Eevolution of Brazil compared with that of Spanish and Anglo-Saxon
America (1914). 19
Sarmiento foi jornalista, educador e diplomata. Como homem de vida pública
atingiu os mais altos escalões, tornando-se presidente de seu país de 1868 a 1874. Como
revelou em Mi defensa, Sarmiento foi abertamente unitário desde sua juventude, fez-se
um árduo combatente contra Rosas e terminou combatendo Urquiza, após a queda de
Rosas. Alberdi considerava-o um caso típico de inadaptação à ordem que se seguiu à
derrubada do regime de Rosas e costumava descrevê- lo como aquele que “a fuerza de

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pelear contra la tiranía no sabe hacer otra cosa. Es un caudillo de la pluma, producto
natural de la América despoblada.”20 Nesta última condição, a de escritor, tornou-se
conhecido e admirado pelos seus pares e também passou à posteridade.
O longo exílio de Sarmiento no Chile, especialmente entre 1840 e 1852,
constituiu o seu período mais profícuo como escritor. Ali publicou Facundo (1845), De
la educación popular (1849), Recuerdos de província (1850), Argirópolis (1850) e
Campaña en el Ejército Grande (1852). Nesse tempo, atingiu a maturidade teórica e
prática necessária para a confecção de uma igualmente instigante segunda obra,
Educación Común (1855), apresentada ao conc urso promovido pelo Consejo
Universitário de Chile. Na primeira e mais extensa parte deste livro, Sarmiento analisou
com detalhes a influência da educação comum – também chamada por ele,
indiferenciadamente, de educação primária ou popular – sobre o costume, os hábitos de
civilidade e a moralidade (Sarmiento, 1987: 53-101).
Oliveira Lima trilhou caminhos diferentes à sua época. Embora natural de
Pernambuco, mudou-se para Portugal ainda aos seis anos de idade, e lá completou a sua
educação formal. 21 Graduou-se em Filosofia e Literatura pela Universidade de Lisboa e
muito cedo começou a atuar como jornalista. Em Lisboa, fundou o Correio do Brasil
(uma revista política e literária mensal), e colaborou com importantes escritores
daqueles dias, tais como o português Eça de Queiroz e o brasileiro José Veríssimo. Sua
conexão com o Brasil nunca deixou de existir. De volta ao Rio, com vinte e poucos
anos, deu início à carreira diplomática e ingressou na Academia Brasileira de Letras,
tornando-se seu membro permanente. Entre 1892 e 1900 serviu às embaixadas
brasileiras de Berlim, Washington e Londres. Nos seus anos de maturidade como
diplomata, destacou-se na representação do país em Bruxelas, Tóquio e Caracas e
desempenhou um papel bastante importante na Terceira Conferência Pan-Americana, no
Rio, em 1906. Nunca deixou de escrever durante todos esses anos e, quando, em 1913,
abandonou a carreira diplomática, já era tido por todos como renomado historiador.
Entre os seus mais conhecidos trabalhos de história estão O reconhecimento do Império,
História diplomática do Brazil (1901), José Bonifácio e o movimento de independência
(1907) e Dom João VI no Brasil, 2 vols. (1909) – este último considerado sua obra-
prima. Durante os anos iniciais, na condição de adido nos Estados Unidos, deixou
registrada sua visão sobre aquela sociedade em Nos Estados Unidos, impressões
políticas e sociais (1899). Com o tempo, publicou Pan-americanismo: Bolivar-Monroe-
Roosevelt (1908), Formação histórica da nacionalidade brasileira (1911), The

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evolution of Brazil compared with that of Spanish and Anglo-Saxon America (1914), e
Na Argentina: impressões 1918-19 (1920).
É digno de nota o fato de que os dois autores tiveram suas trajetórias de vida
associadas ao serviço público em seus respectivos países. O envolvimento de Sarmiento
com a política começou mais cedo. Ele esteve entre as facções que fizeram oposição ao
regime de Rosas em 1835, alinhou-se às forças do general Urquiza durante a guerra
civil de 1852, e acabou aproximando-se de Mitre, endossando o governo instalado após
1861. Desde seu retorno do exílio no Chile, em 1855, passou a viver em Buenos Aires,
onde dirigiu o jornal El Nacional. Foi feito membro do Conselho Consultivo do
Governo e comandante em chefe das forças de reserva da província (Jefe de Estado
Mayor del Ejercito de Reserva de la Província de Buenos Aires). Em 1862, tornou-se
governador da província de San Juan. Entrou imediatamente em choque contra os
poderosos caudillos da província vizinha de La Rioja, e foi Mitre quem o ajudou a sair
do impasse, mandando-o em missão extraordinária como ministro aos Estados Unidos
(sua segunda viagem àquele país). Sarmiento retornou à Argentina somente em 1868,
quando foi eleito senador e tornou-se presidente da república, permanecendo no cargo
até 1874.
A vida pública de Oliveira Lima foi feita, sobretudo, no serviço diplomático.
Ela diferiu bastante da de seu conterrâneo, o bastante próximo colega Joaquim
Nabuco. 22 Oliveira Lima posicionou-se criticamente contra a política expansionista de
Theodore Roosevelt no Caribe e nas Filipinas, após a Guerra Hispano-Cubana-
Americana. Essa “pequena guerra esplêndida”, como a denominava o secretário de
Estado americano, John Hay, não apenas decidiu o destino político de Cuba, mas
também aumentou bastante a presença militar dos Estados Unidos no Pacífico e no
Extremo Oriente, de um modo que dificilmente poderia ter sido antecipado à época. Na
região caribenha, é desnecessário dizer, o corolário de Roosevelt alarmou as nações
próximas, especialmente após a Emenda Platt e o envio de canhoeiras e de marines
prontos para desembarcar no litoral da Venezuela, em 1903. Oliveira Lima, apesar de
duramente criticado pelos seus pares, por apoiar as reclamações do então ditador
venezuelano, general Cipriano Castro, manteve-se irredutível na oposição a essa nova
versão da doutrina Monroe. Em 1906, à época da Terceira Conferência Pan-
Americana, Oliveira Lima outra vez explicitou sua opinião sobre o que chamou de “o
cesarismo de Theodore Roosevelt” e contradisse duramente a posição defendida pelo
então secretário de Estado americano, Elihu Root, durante a conferência. 23 Na América

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do Sul, a crítica encaminhada por Oliveira Lima aos EUA foi comparada àquela antes
proferida pelo uruguaio José Enrique Rodó, ambas raridades no meio intelectual dos
seus respectivos países, à época. 24
Mas, de um modo ou de outro, todos os autores mencionados acima ajustam-se
ao padrão que marcou pelo menos as três últimas gerações de escritores oitocentistas
na América Latina. Aqueles da primeira metade do século encontravam-se mais
fortemente dependentes das carreiras na política local e das funções de Estado. Já os da
segunda metade do século, beneficiaram-se um pouco mais das profissões abertas pela
rápida modernização que atingia os principais centros urbanos. Foi quando novas
atividades associadas ao jornalismo, às universidades e ao exército passaram,
paralelamente, a ser procuradas à continuidade das carreiras mais tradicionais, ainda
diretamente relacionadas à política governamental. Para ambos os autores estudados,
no entanto, viver à sombra do Estado continuou sendo o principal modo escolhido para
a sobrevivência como escritores. 25
Quando analisamos as obras de Sarmiento e Oliveira Lima, podemos ver como
os dois autores expressaram modos bastante peculiares de criação de constructos sobre a
nação. Cada um, em seu cenário particular, dramatizou a imaginação da nação,
redefinindo os significados de termos como raça, linguagem, história comum e natureza,
tal como apareciam nas fontes européias em que se inspiraram inicialmente, forjando
novas identidades fictícias e tradições inventadas que suas culturas melhor
comportavam.
Presente na maioria das discussões sobre a historiografia e a literatura de ficção
na América Latina, está a percepção da relação indivisa entre modernidade e nação. Em
grande parte das formulações sobre a identidade produzidas pelos contemporâneos,
esses dois conceitos – modernidade e nação – freqüentemente se misturaram. Se
interpenetraram com freqüência e, de modo ambíguo, geraram oposições entre alguns
dos elementos constitutivos dessa mesma modernidade – tais como a paixão e a razão, a
especulação e o pragmatismo.
A visão de modernidade que até então havia predominado entre nós era, segundo
Jaime Alarski (1994: 343), extremamente “dependente” da cultura metropolitana. Era-
lhe atribuída uma certa ausência de tradição reflexiva, ao afirmar-se que, nos tempos
coloniais, tínhamos nos acostumado a definir- nos e a existir, efetivamente, apenas de
um “ponto de vista europeu”. Em outras palavras, a ambigüidade constitutiva, que uma
vez havia caracterizado o uso desses mesmos primeiros termos – paixão/tradição e

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razão/história – no velho mundo, tinha sido transplantada para a América sem a
suficiente dose de pensamento crítico. Somava-se a isso o fato de que nossa
intelligentsia crioula necessitava fabricar suas identidades nacionais em meio às
dramáticas transformações iniciadas com as guerras de independência. A recorrência
freqüente a meios práticos e contingentes de imaginação da nação de pronto tornou-se a
regra, ao longo do processo de construção dos Estados- nação e de consolidação de suas
soberanias políticas no continente.
Uma vez que a intelligentsia latino-americana nem sempre podia testar e refletir
sobre as idéias consagradas pelos seus modelos europeus neste início, não é
surpreendente que a tensão entre os componentes do segundo par da modernidade – a
especulação e o pragmatismo – tenha continuado a se manifestar ao longo de todo o
século XIX. Quando estes são exemplificados por outras expressões – especialmente o
idealismo e positivismo – percebe-se como a tensão inicial continuou a se manifestar,
condenando a idéia de nação nas Américas a viver tal ambigüidade constitutiva
repetidas vezes.
As reflexões iniciais dos pensadores latino-americanos sobre a nação estiveram
ligadas, como já dissemos, a sistemas de valores forâneos por vezes bastante
inadequados às realidades do Novo Mundo. Autores europeus como Jules Michelet,
Johan Gottlieb Fichte, John Stuart Mill, Lord Acton e Ernest Rénan – apenas para
mencionar os mais citados – acompanharam os nossos autores em suas “jornadas de
imaginação,” empreendidas com a intenção explícita de decifrarem suas próprias
realidades. 26
Ao imaginar suas nações, os pensadores latino-americanos não raras vezes
oscilaram, em seus escritos, entre o culto à razão e aquele à tradição. Em verdade,
acabaram cultuando a ambos, simultaneamente. De um lado, expressaram sua
admiração aos princípios abstratos e racionais a partir dos quais desejavam estruturar a
nova ordem política. Tais referências ajudavam a forjar a desejada unidade entre a idéia
da comunidade política em formação e a da nação. Tal elo fortalecia o mito da
necessária congruência entre Estado e nação, considerado positivo por todos aqueles
que há menos de um século haviam abandonado por vontade própria a condição de
súditos coloniais. Por outro lado, tinham de cultuar a tradição, pois havia igualmente a
inevitabilidade do fascínio exercido pela natureza, a qual intervinha diretamente em
suas vidas cotidianas. A natureza, porque exótica, tornou-se, na maioria das vezes, o
sinônimo do caro legado, cumprindo entre nós o papel da tradição ausente, e

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simbolizando, é claro, a particularidade do lugar. Mas, porque também identificada a
elementos irracionais, ela deveria, do ponto de vista da perspectiva iluminista, ser
devidamente domada ou conquistada (tanto quanto os vestígios do passado colonial
deveriam ser eliminados). Sarmiento e Oliveira Lima, como muitos outros autores,
fizeram uso ampliado dessas imagens “emprestadas”, isto é, de termos e conceitos
derivados das doutrinas e teorias em voga na Europa. Tal utilização deve, entretanto, ser
analisada com cautela. Tais termos precisam ser vistos, sobretudo, como “ferramentas”
por meio das quais os nossos autores tentaram diagnosticar a terra natal e elaborar os
novos constructos que passariam a identificar à “nacionalidade” (Rama, s.d.).
Vejamos como esse ambíguo processo de “imaginar” e “narrar” a nação
apresentou-se para Sarmiento e Oliveira Lima. Na descrição de suas realidades, o que
omitiram ou o que tornaram explícito, o que perceberam como problemas sérios de seus
respectivos países e as soluções que apresentaram para superar tais obstáculos, tudo
revela-nos as múltiplas tensões existentes em cada sociedade.
Nos trabalhos que lidam especificamente com a instrução pública, Sarmiento
muitas vezes confirmou a importância que atribuía à educação na elevação dos seus
compatriotas e propôs a “igualdade de direitos entre os homens” como a verdadeira base
da organização social das repúblicas (Sarmiento, 1962: 163).
Em trabalhos de escopo analítico maior, no entanto, ele incansavelmente reiterou
a importância do meio físico e seus efeitos no moldar das ações humanas. Mais ainda,
Sarmiento enfatizou o papel da natureza como permanente contraponto à anelada
civilização, a qual, supostamente, deveria ser atingida pela via da educação dos homens.
Em uma das suas inúmeras observações a respeito da natureza, após mencionar os
vários perigos decorrentes da imensidão da “extensão do território” – nomeadamente o
“deserto”, a “solidão” e os “selvagens” –, ele afirma que tal incerteza sobre a vida é não
apenas costumeira, mas permanente no sertão. E, indo além, completa o pensamento
dizendo que é exatamente essa incerteza que “[imprime] a mi parecer en el carácter
argentino, cierta resignación estoica para la muerte violenta” (Sarmiento, 1982: 27).
A maneira mesmo como Sarmiento conjura Facundo Quiroga, o principal
personagem do livro, expressa a importância atribuída a tais elementos em sua narrativa.
Facundo é descrito como “la expresión fiel de una manera de ser de un pueblo, de sus
preocupaciones e instintos.” Seu perfil é atribuído não a qualquer “accidente de
caracter”, e sim a “antecedentes inevitables y ajenos de su voluntad”. Devido a isso, ele
nos diz, Facundo tornou-se “el personaje histórico más singular” (Sarmiento, 1982: 19).

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A relação entre natureza e destino do homem, ou entre a paisagem física e o destino
nacional, encontra-se enfatizada ao longo da sua principal obra. A dura e cruel geografia
do pampa teve na prosa argentina o mesmo papel reservado à “tradição” nos escritos
românticos dos europeus.
Ademais, de acordo com Sarmiento, este assim chamado elemento natural – la
pampa ou el desierto – podia ser descrito cientificamente. A paisagem moldava as
personalidades produzidas no seu meio, e estas, por sua vez, informavam o principal
elenco do seu épico sobre a nação. Ele progredia, assim, da descrição da natureza à
biografia, e desta para a vida em sociedade. Em suas Recordações de província, este
procedimento é relembrado, chamando-o de seu método: “O aspecto do solo me tem
mostrado, por vezes, a fisionomia dos homens e estes, quase sempre o caminho que hão
de tomar os acontecimentos” (Sarmiento, 1952: 36).
Nesse aspecto particular, seu método não diferia muito do de Michelet, um dos
intelectuais modelares que o inspirava. 27 Este autor, por exemplo, havia expressado
várias vezes a mesma relação tensional entre a tradição, a natureza e a fisiologia dos
homens, de um lado, e a razão, a vontade e a ação consciente dos homens, de outro. Em
seu famoso trabalho Le peuple, é fácil perceber-se tal ambigüidade. Nele, Michelet
(1977 [1846]) demonstra acreditar no papel crucial da natureza na forja do caráter,
quando diz que “les caractères nationaux ne dérivent nullement de nos caprices, mais
sont profondément fondés dans l’influence du climat, de l’alimentation, des productions
naturelles d’un pays, qu’ils se modifient quelque peu, mais ne s’effacent jamais”.
Porém, reforça, simultaneamente, o papel maior da secularização da lei e da soberania
popular trazidas pela Revolução. A lei – uma expressão da vontade geral – acabaria
definindo a cidadania e a nacionalidade conjuntamente. As muitas petites Frances
mencionadas pelo autor não passavam de partes de la Grande France. A nação era, sem
dúvida, uma “coleção de povos, partilhando uma linguagem, hábitos e costumes
comuns”, mas era, sobretudo, “definida a partir de um mesmo código de leis”, “aquele
muito especial produzido pela Revolução”. 28
Pode-se dizer que, em Sarmiento, a grande diferença é que o último elemento, o
volitivo, não estava dado a priori, e não poderia ser encontrado no passado “argentino”.
As bases para um projeto ilustrado de civilização – o pacto, a constituinte e o governo –
ainda precisavam ser construídas para o país. Sarmiento não identificava nenhuma
identidade de antecedentes políticos ou história comum entre seus compatriotas –
especialmente uma história que pudesse levar ao que John Stuart Mill (1995 [1861] : 41)

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uma vez chamara de “uma comunidade de lembranças” baseada quer em “orgulho ou
humilhação, associados aos mesmos incidentes do passado”. Ao contrário, o legado do
passado colonial, comumente visto como negativo, foi ignorado como elemento que
servisse de base para a construção da identidade nacional. A experiência colonial,
segundo os românticos, deveria ser superada para sempre. Diferentemente, as profundas
cicatrizes do deserto na fisiologia e no caráter dos homens não poderiam ser esquecidas
nem ignoradas tão facilmente. Lembradas a nós, com freqüência, pelos “de fora”,
particularmente os europeus, essas marcas passariam a constituir os reais desafios com
que deveríamos nos confrontar, e a luta para solucioná- los fez-se imperativa.
Ao longo da narrativa de Facundo, o termo civilização – também um sinônimo
para a cidade de Buenos Aires – assume lugar de destaque, revelando abertamente as
intenções e as expectativas do autor. Civilização significava, acima de tudo, o
entendimento da cidade como locus natural para o exercício da política. Implicava
promoção ampla da educação ampliada e institucionalização da vida política do país.
Sarmiento apresenta ao leitor a indagação sobre que caminho seguir para
encontrar uma solução própria e adequada ao impasse da sociedade argentina: “Hemos
de abandonar a un suelo de los más privilegiados de América a las devastaciones de la
barbárie (…)?” E ele mesmo responde:

No se renuncia porque la fortuna haya favorecido a un tirano durante


largos y pesados años: la fortuna és ciega. (…) No se renuncia porque todas las
brutales e ignorantes tradiciones coloniales hayan podido más, en un momento
de extravío, en el ánimo de las masas inexpertas: las convulsiones políticas traen
también la experiencia y la luz, y es ley de la humanidad que los intereses
nuevos, las ideas fecundas, el progreso, triunfen al fin de las tradiciones
envejecidas, de los hábitos ignorantes y de las preocupaciones estacionarias.
(Sarmiento, 1982: 16)

Os programas econômicos e as estratégias empreendidas para a reforma


educacional, à época de sua presidência, não atenderam as expectativas. Suas ações
foram duramente criticadas pelas gerações futuras, e apenas a sua imagem altamente
controversa – para uns, o grande visionário e respeitado ho mem público, para outros, o
protótipo da recusa dos valores autóctones – acabaria transcendendo a sua existência.
Foi nesta última acepção, a do “índio bravo norteamericanizado” que Borges o

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descreveu. Em El tamaño de mi esperanza (1926), Sarmiento é considerado aquele que
odiava e interpretava de forma equivocada o “espírito criollo”, aquele que nos fez
europeus “con su fé de recién- llegado a una cultura de la cuál esperaba milagros.”
Ezequiel Martínez-Estrada também contestou o legado positivo atribuído pela
historiografia oficial a Sarmiento, ao questionar a sua insistência no elemento do
progresso. De acordo com Martínez-Estrada, um progresso tal como o concebido pelo
liberalismo de fins do século XIX nunca se concretizou, e o poder político dos grandes
proprietários e estancieiros permaneceu sólido como nunca na Argentina. 29 Entretanto,
quando pensado à luz do seu tempo, pode-se supor o quanto a crença iluminista de
Sarmiento na modernização e na formalização das instituições públicas pode ter soado
radical para muitos dos seus contemporâneos.
Na sua preocupação permanente em explicar o que considerava ser uma “falha
parcial das instituições republicanas num território de tão vasta extensão”, Sarmiento
compara a colonização espanhola na região do Prata com a inglesa na América do
Norte. É quando encaminha a discussão sobre a questão racial, a miscigenação e os
desenvolvimentos subseqüentes. E é quando apresenta a imigração como a principal
solução para este problema considerado grave. Finalmente, é, também, quando torna a
imagem do “outro” e o seu papel na construção de uma identidade nacional elementos
fundamentais para a sua análise.
A principal diferença acentuada por Sarmiento entre os dois passados coloniais
dizia respeito à questão racial. Ele afirmava que os anglo-saxões haviam se recusado a
assimilar as “raças indígenas”, e por isso negaram sua participação “quer como
parceiros, quer como servos” na construção da sociedade. Os espanhóis na América,
inversamente, teriam se contentado com a própria raça, “[uma raça que] não saíra
totalmente da idade média ao transladar-se para a América” e, que uma vez lá,
“absorvera em seu sangue uma raça pré- histórica e servil”. 30
Questionando-se profundamente sobre tal “peculiaridade da raça latina”, ele a
via como responsável pelo “ritmo vagaroso” da região: a lentidão do progresso e da
organização regular de governos representativos e livres naquela parte das Américas.
Perguntava-se se tal característica viria a ser, ou poderia ser, transformada um dia. Mas,
porque acreditava que a reprodução das espécies continuava a ser determinada pela
“natureza” – isto é, pelas “circunstâncias peculiares do clima, alimentação e aptidão
física” –, começou a considerar que a imigração era a solução possível. “Algo novo (sic)
na história da humanidade” estava acontecendo – afirmava – e era a “imigração em

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massa”. De acordo com Sarmiento, cerca de meio milhão de homens, mulheres e
crianças chegavam de diferentes partes do mundo, anualmente, aos Estados Unidos.
Perguntava-se por que, ao sul do Istmo do Panamá, os imigrantes da Europa e de outras
partes do mundo não haviam sido atraídos na mesma quantidade. Mais especificamente,
perguntava-se por que a essas regiões faltavam os recém-chegados daqueles lugares
comumente identificados aos centros de civilização. Por que, quando se deu a remoção
dos excessos populacionais da Europa, os Estados Unidos foram os escolhidos e não
algum outro “território vazio” ou “espaço pouco utilizado” das Américas? (Sarmiento,
1915: 451).
Talvez, respondia Sarmiento, o motivo seja que, para poder abrigar e bem
adaptar essas “forças ativas e progressos intelectuais”, deva ser feita antecipadamente
uma dupla intervenção (e cria que isso já tinha ocorrido no caso dos Estados Unidos). A
maneira de se extirpar para sempre a “barbárie” era, de um lado, por meio da promoção
da educação e, de outro, pela abertura total do país aos imigrantes, principalmente
àqueles pertencentes às “raças” ditas capazes de promover o progresso.
A educação era por ele vista como uma espécie de “vacina” para uma sociedade
em que “[estaban] mezcladas a nuestro ser como nación, razas indígenas, primitivas,
prehistóricas, destituídas de todo rudimento de civilización y gobierno.” E, ao utilizar-se
desta imagem fisiológica tão poderosa, atribuía à escola uma verdadeira ação redentora
– o extermínio dos traços de barbárie considerados há muito presentes entre a população
era o modo de criar melhores condições para os desenvolvimentos político-
institucionais desejados no futuro. Somente a escola, reafirmava, era capaz de “extirpar
la muerte que nos dará la barbarie insumida en nuestras venas” e “llevar al alma el
germen que en la edad adulta desenvolverá la vida social” (Sarmiento, 1915: 454).
A imigração, chamada em seu trabalho de “nube y lluvia fecundante”, era parte
importante do projeto de abrir o país para o capital e o trabalho forâneos. Do afluxo de
imigrantes, esperava a mais valiosa contribuição ao “nosso ser como nação” e, nos
recém-chegados, via a única oportunidade para de vez “enderezar las vías tortuosas en
que la civilización europea vino a extraviarse en las soledades de esta América.” Com a
exceção de tentativas isoladas com imigrantes italianos, a dos próprios argentinos e a
dos mexicanos, Sarmiento considerava a América espanhola ainda fechada aos
estrangeiros. E, para que aqueles que nela ainda representavam a chamada “raça latina”
não se desviassem da “missão providencial de serem um posto avançado da civilização
moderna”, fazia-se necessária uma ação imediata nesse sentido.

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Por isso, ao invés de opor-se àquele “outro” bastante visível nas Américas – os
Estados Unidos –, no seu ininterrupto movimento em direção ao progresso no final do
século XIX, achou mais prudente tentar aproximar-se daquele país. É digna de nota a
frase com que conclui seu livro, uma frase que se tornaria muitos anos mais tarde
motivo de sentimentos extremamente ambíguos entre os argentinos e que expressou a
solução então encontrada por Sarmiento ao seu dilema: “Seamos la América como el
mar es el Océano. Seamos Estados Unidos” (Sarmiento, 1915: 456).
A forma como a questão racial e a percepção da presença do “outro” são inferidas
do diagnóstico de Oliveira Lima sobre o Brasil revela-nos uma abordagem e modo
diferentes de se conjurar a identidade nacional. Para começar, a comparação com os
Estados Unidos está presente desde cedo em todos os trabalhos aqui analisados. Pode-se
bem perceber o papel central que esta nação desempenha nas suas considerações sobre o
“sentimento de nacionalidade”. Entretanto, é a Europa, e não os Estados Unidos, que
representa o “outro” com quem deve associar-se ou buscar identificar-se.
O primeiro modo encontrado por Oliveira Lima para identificar o Brasil com a
tradição de civilização européia foi destacar o fato de que, diferentemente das
repúblicas da América espanhola, o Brasil havia sido um Império no passado. A
continuidade “civilizacional” teria sobrevivido com os herdeiros da dinastia de
Bragança, após a volta de D. João para Portugal, ao longo do século XIX, tal como
ocorrera com os congêneres europeus. Ademais, o Império do Brasil tinha tido uma
constituição liberal precoce, e o seu processo de independência era percebido como
mais pacífico quando comparado ao dos países vizinhos, marcados pelo grande
derramamento de sangue. Nestes últimos, não apenas o processo de independência
resultara muito mais violento, mas também o seu produto, o advento de governos
republicanos frágeis, era visto como responsável pela imersão desses mesmos países na
anarquia, tornando-os mais “bárbaros” do que “civilizados”.
Um segundo elemento que reforçou a idéia de civilização apresentada pelo autor foi
a ação prévia das ordens religiosas no Brasil, em especial os feitos atribuídos aos
jesuítas. Os jesuítas eram constantemente relembrados por Oliveira Lima, a partir de
duas perspectivas. Primeiro, dizia que a sua presença eficaz desde os tempos coloniais
resultara na diminuição do grau de exploração a que eram submetidos os índios pelos
colonos. E o fato de a colônia portuguesa não possuir ouro e prata na abundância
encontrada nas colônias da Espanha era entendido por ele como razão suficiente para se
admitir a existência de menos ambição e exploração nas colônias portuguesas, por parte

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tanto da Igreja quanto do Estado. Segundo, o papel dos jesuítas era, também,
especialmente elogiado no campo da educação – sendo a missão dos jesuítas e os seus
esforços para educar e “salvar as almas dos índios” lembrados com freqüência.
Aos jesuítas, em suma, era atribuído o mais importante papel na “alimentação entre
nós de uma veia idealista”, desde o início. Oliveira Lima dizia que era essa veia a que,
enraizada na “herança cristã”, determinara o caminho das “soluções pacíficas” para o
país. Os jesuítas, na sua opinião, foram os verdadeiros protetores dos índios
vilipendiados, assim como os arautos das idéias liberais, quando da alvorada dos nossos
movimentos republicanos – como, exemplificava, na revolta pernambucana de 1817.
Tal como seu colega Nabuco, ele os enxergava como “sólidos receptores e curadores da
cultura européia” na colônia. 31
No que diz respeito, mais diretamente, à comparação entre o Brasil e os Estados
Unidos, Oliveira Lima nela buscava reforçar características semelhantes, mais do que as
diferenças. Via ambos os países como partes integrantes do mundo civilizado, animadas
pelas mesmas ondas de progresso. O Brasil apenas não tinha se desenvolvido com o
mesmo vigor da nação do Norte. Sua expectativa positiva em relação ao Brasil fora
influenciada pelo surto de crescimento industrial verificado sob o curto período de
Mauá, ainda nos dias de glória do Império. Sem dúvida um desenvolvimento bastante
franzino, se comparado ao verificado nos Estados Unidos, à mesma época. Mesmo
assim, o exemplo era utilizado para antecipar o tipo de futuro que se podia prever para o
Brasil. Pensava que, se os dois países ainda se encontravam distantes um do outro no
presente, eles seriam aproximados no porvir. E, para melhor corroborar essa desejada
visão do amanhã, nada melhor do que buscar reforçar algum tipo de identidade entre os
dois países, referida às tradições e valores de ambos do passado.
A idéia de federalismo (no Brasil, inversamente, um sinônimo de direito dos estados
e autonomia local) e a tradição do liberalismo (também muito diversamente concebida
entre nós, em função da leitura ibérica desses princípios, previamente mencionada) são
apresentadas por Oliveira Lima como reais similitudes históricas entre os dois países. O
forte poder local do período colonial no Brasil português era comparado à relativa
autonomia das colônias na América do Norte. Dessa forma, o localismo também se
tornava uma marca da colônia portuguesa, onde “each captaincy remained a separate
administrative unit, directly and exclusively bond to the metropolis”. Ele também
afirmava que cada uma dessas capitanias “led its own life in a more or less independent
way, very similar to what happened in the British colonies in America”. E, a partir desse

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localismo (associado, não sem anacronismo, à idéia de “autogoverno” ou self-
government), “traços democráticos” semelhantes teriam se desenvolvido, permitindo-
lhe projetar a desejada aproximação entre as duas nações no futuro (Lima, 1914: 56).
Oliveira Lima considerou que a independência dos dois países pouco contrastou. No
Brasil, afirmou, ela foi produzida por um estado de espírito idêntico (an identical state
of mind) que diferiu em grau, mas não em substância (in degree but not in substance)
(Lima, 1914: 35). De acordo com esta versão, devia-se dar mais valor à atuação da
Câmara Municipal do Rio de Janeiro, transformada na mais positiva expressão desse
localismo, em função da sua “active participation in the events that led to the
establishment of the democratic (sic) Empire Brazil turned out to be and remained”
(Lima, 1914: 47). E, em que pese o grande contraste entre a república e a monarquia,
estes ditos “traços democráticos” comuns eram vistos como suficientes para tornar os
dois países semelhantes neste particular.
O liberalismo é o outro aspecto do passado fortemente valorizado pelo autor, que
busca aproximar os dois países no futuro. Afirmando ser largamente difundido na
colônia portuguesa e nas colônias britânicas, à véspera de suas respectivas
independências, ele apresentava, porém, uma diferença. Apenas – Oliveira Lima diz- nos
– a matriz francesa, e não anglo-saxônica, teria tido a maior influência na América
Latina. Nas suas próprias palavras, “it is curious to notice that in the assemblies where
the organic laws of independent Latin America were forged, the influence from the
moral point of view was not much yours, as it was directly French” (Lima, 1914: 99).
A distinção mais notável entre os dois processos só pode residir, então, conclui
Oliveira Lima, na ausência de participação popular ao longo do processo de criação e
consolidação das instituições políticas e civis no Brasil. Sob este aspecto, a experiência
brasileira teria contrastado enormemente com a americana, pontuada por demonstrações
populares que se misturaram aos clamores revolucionários, à época da independência.
No entanto, tal particularidade acabou sendo vista por ele como positiva. Pois, em
contraste com as convulsões políticas que haviam marcado outros países, os habitantes
do Brasil eram tidos como aqueles que souberam manter, diferentemente dos jacobinos
franceses, o “sagrado princípio da propriedade”. Este princípio, ele lembrava com
orgulho, nunca se viu ameaçado entre nós, mesmo mais tarde, quando do advento da
República e das transformações dela decorrentes. Em verdade, afirmava que nunca
houvera no Brasil uma diferença significativa entre a ordem monárquica e a
republicana. E a causa comumente atribuída a essa continuidade residia na trasladação

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da Corte portuguesa para a colônia, em 1808. O rei D. João, elogiado por Oliveira Lima
como o iniciador de um período cultural extremamente rico para a elite de plantadores
locais, teria sido, com essa atitude, o maior responsável pela “tolerância” e mesmo
“entusiasmo” dos colonos para com a ordem monárquica.
A miscigenação também era lembrada como um importante aspecto em sua aná lise,
e não era percebida apenas como negativa. Diversamente dos Estados Unidos, onde os
índios e os negros foram mantidos apartados, os portugueses se misturaram com ambos
desde o início. No caso específico dos negros, a fusão era apresentada como responsável
ela mesma por um certo efeito de abrandamento da escravidão entre nós e, ademais,
como tendo facilitado o subseqüente processo de abolição.
O caso particular da abolição era destacado para ilustrar o modo pacífico de se
resolver os impasses políticos e institucionais do país, tido como salutar. Esse modo
teria permitido aos brasileiros trilhar os caminhos da modernidade “in observance of
patriarchal values, without fratricide or violence,” declarava. Na sociedade que
recentemente emergira da escravidão, afirmava que as cicatrizes daquela peculiar
instituição se encontravam abrandadas. E, no futuro, a miscigenação, ou fusão das raças,
se encarregaria de solucionar os eventuais conflitos remanescentes. Tal solução pacífica
do problema racial, ele fazia questão de enfatizar, permitia que elevássemos o Brasil
acima do Haiti, em contraste à sanguinolenta emancipação lá ocorrida e também acima
dos Estados Unidos, que tiveram a sua União seriamente ameaçada durante a Guerra
Civil (Lima, 1914: 40).
Na visão de Oliveira Lima, pois, a miscigenação promoveria, a longo prazo, uma
fusão – “a fusion in which inferior elements would tend to hastily vanish.” Em outros
termos, ele queria dizer que os brancos acabariam sendo mais numerosos que os negros.
A solução para o que via como impasse era buscada novamente na miscigenação e na
imigração. Entretanto, a nova tentativa não deveria repetir os erros da miscigenação não
planejada do passado, na qual, pensava Oliveira Lima, “the marriage of races turned out
to be a drawback, moral and socially speaking.” A nova fusão deveria ter como
referência a imigração subvencionada de europeus, tal como a promovida por Mauá,
durante o segundo reinado, quando imigrantes suíços foram trazidos para o Brasil.
Apenas assim, aquela “grave fa lta” atribuída a séculos de imigração não planejada no
continente seria superada. Um novo tipo de fusão “organizada” poria fim “[to] the lack
of harmony (…), the incompatibility between the splendid ideals that were individually
and collectively made for her [Latin America] and the minor aspirations of certain parts

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of the new race or the sub-race that had been formed by the fusion all over its territory”
(Lima, 1914: 14).
À guisa de conclusão, podemos dizer, primeiramente, que tanto a busca por
semelhanças como o uso da dicotomia arquetípica representada pelo binômio
“civilização” e “barbárie” informam o tratamento dado pelos nossos autores aos temas
da realidade cultural e social de que faziam parte. Tais temas ora ocultavam, ora
tornavam explícitos os conflitos e tensões que vivenciavam. Mas, independentemente
do quanto se esforçaram para imitar os modelos e estilos europeus admirados, nossos
autores sempre estiveram falando e escrevendo, cada qual, sobre o seu tempo presente.
De uma tal atitude não puderam escapar. Mais que isso, permitiram que a força das
realidades políticas com as quais estavam envolvidos aparecesse subjacente aos seus
trabalhos, tornando impossível a consideração de sua obras apenas como dramas
estéticos. Defendo que admitir a historicidade dos seus textos, como a de qualquer outro
artefato cultural, torna-se a condição necessária para compreendermos as suas idéias.
Aqui, tomo emprestadas as palavras de Angel Rama (1985: 98), quando este afirma que
“não há texto que não esteja determinado por uma situação de presente e cujas
perspectivas estruturantes não partam das condições específicas dessa situação”. Uma
tal situação impõe a necessidade de re-significar um sentido já existente, e leva à
criação de novos significados. Mitos de origem, definição do “outro” e dos “outros”,
busca de vínculos específicos com o passado, presente e futuro, tudo isso costuma ser
feito em nome de uma supostamente “referendada” continuidade, que permite torná- los
parte da memória coletiva, com o tempo. Sarmiento e Oliveira Lima produziram
narrativas que confirmaram em muito a capacidade que tinham, como intelectuais, de
elaborar e desenvolver as potencialidades inerentes a um dado “sistema” (na falta de
uma palavra melhor) de valores culturais do qual partilhavam e, a capacidade de
rejeitar, igualmente, muitos dos valores herdados.
Finalizaremos com uma conhecida afirmação de John A. Pocock, a respeito das
muitas maneiras como os discursos institucionalizados podem expressar a preocupação
das sociedades organizadas em promover sua continuidade. Pocock diz- nos que todas as
sociedades têm de elaborar conceitos sobre sua existência no tempo e, especialmente,
têm de confrontar os “problemas que demandam mais consciência histórica (historical
awareness) e capacidade crítica (critical ability). Os intelectuais têm um papel
importante nesta tarefa, em que pese o fato de que as sociedades podem fazer isso de
forma bastante diferenciada e por meio de várias atividades e grupos, cujas vozes

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certamente não são uníssonas. A longo prazo, porém, são ainda os esforços coletivos
desses narradores os que se encarregam de tornar possível, para essas sociedades, a
“legitimação e o entendimento de suas existências como estruturas políticas contínuas”
(Pocock, 1971: 80).

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(Recebido para publicação em)

Notas
1
Essas idéias encontram-se desenvolvidas em numerosos trabalhos. Ainda que correndo o risco
de deixar muitos de fora, considero importante lembrar as seguintes abordagens: Connerton
(1992), Perkins (1999), Taminiaux (1996: 91-104), Smith (1998: 61-80) e Radcliffe &
Ewstwood (1996).

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2
É importante mencionar que, embora incorporando as críticas feitas aos autores, a idéia de
nação com a qual estarei lidando neste trabalho é devedora das reflexões há algum tempo
iniciadas por Benedict Anderson (1991) e mais tarde corroboradas por Paul James (1996).
3
Cf. Anderson (1991: 9-46) e James (1996: 1-17 e 123-50).
4
“Nous sommes les fils de ceux qui, par l’éffort d’une nationalité héröique, ont fait l’ouvrage
du monde, et fondé, pour toute nation, l’évangile de l’égalité.” Michelet (1977 [1846]: 308-9).
5
Passagens selecionadas de Johann Gottfried von Herder encontram-se em Dahbour e Ishay
(1995: 48-57).
6
Ver os artigos presentes em Suny e Kennedy (1999). Para os Estados Unidos, há o trabalho de
Gerstle (2001). E, embora não tratando diretamente do tema do nacionalismo, a relevância do
trabalho de Thomas Bender sobre os intelectuais tampouco pode ser ignorada aqui (ver Bender,
1987).
7
Rama (1984 e 1985). Segundo Rama, as “comunidades letradas” da segunda metade do século
XIX eram sobretudo urbanas, tendo se desenvolvido conjuntamente à expansão do setor
terciário na America Latina. Inicialmente seguindo caminhos similares, Florencia Mallon vai
além e acrescenta às ativas “comunidades letradas” dos grandes centros, o intelectual local ou
de aldeia: “The people who led the process of discursive transformation were local intellectuals.
In the villages, local intellectuals were those who labored to reproduce and rearticulate local
history and memory, to connect community discourses about local identity to constantly shifting
patterns of power, solidarity, and consensus. Political officials, teachers, elders, and healers –
these were the ones who knew.” (Mallon, 1995: 12).
8
Ver Milo (1986: 517-62). Consultar também, para a discussão das convenções e normas que
comumente emolduram a produção e interpretação das falas conforme as diferentes culturas, o
interessante trabalho de Mignolo (1993: especialmente 122-6).
9
Gramsci (1975: 1.261, 1.361, 1.767, 1.772, e 2.042). Ver também Gramsci (1978: 137-58).
10
José Enrique Rodó [1871-1917], Ariel (1900); Domingo Faustino Sarmiento [1811-1888],
Facundo (1851) e Conflicto y armonía de las razas en América (1872); Ricardo Rojas [1882-
1957], Blasón de Plata: meditaciones y evocaciones... sobre el abolengo de los argentinos
(1912) e La argentinidad (1916); Francisco Garcia Calderón [1883-1953], Le Pérou
contemporain (1907) e Les démocraties latines de L'Amérique (1912); e Nicolás Palácios [1854-
1911], Raza chilena (1904).
11
Joaquim Nabuco [1849-1910], O abolicionismo (1883), Minha formação (1900), “The spirit
of nationality in Brazilian history”(Yale, 1908); “The coming together of the two Americas”
(Chicago, 1908) e “The share of America in civilization” (Wisconsin, 1909); Oliveira Lima
[1865-1928], O reconhecimento do Império , história diplomática do Brazil (1901), Dom João
VI no Brasil (1909), Pan-americanismo: Bolivar, Monroe e Roosevelt (1908), The evolution of

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Brazil compared with that of Spanish and Anglo-Saxon America (Stanford, 1914); e Ruy
Barbosa [18 -1923], Cartas de Inglaterra (1896) entre outros trabalhos publicados em suas
Obras completas (3 vols.).
12
No original, “aquellos que opinan sobre política, pero que no hacen política”. Ver Magis
(1999: 67).
13
As observações de Pierre Bourdieu sobre o alto grau da modernização e secularização cultural
observadas na França (originalmente no seu Homo Accademicus, 1984) foram retiradas de
Miller (1999: 28).
14
Para uma avaliação crítica da conotação atribuída por Hobsbawm a esse termo, ver Motyl
(1999: 57-78).
15
Balibar (1996: 140) lembra-nos que da mesma forma que há a etnicização daqueles que
“devem fazer parte deles” (“included within them”), há a daqueles “por eles excluídos”
(“excluded by them”). Ou seja, a etnicização do “outro” ou dos “outros” é concomitante à
etnicização dos “nacionais”.
16
José Maria Arguedas, Formación de una cultura nacional indoamericana; José Carlos
Mariátegui, Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana (1928), e José Vasconcelos,
La raza cósmica: misión de la raza iberoamericana (1925).
17
Algumas idéias sobre o tema, relacionadas à experiência norte-americana no período, podem
ser vistas no livro de Jacobson (2000). Ver especialmente o capítulo 2, a respeito das imagens
de progresso e das teorias sobre o desenvolvimento produzidas nas academias da época.
18
Utilizo duas edições dos trabalhos de Sarmiento (1982 e 1915).
19
Utilizo duas edições de Oliveira Lima (1980 e 1914).
20
Citado nas notas biográficas de José Augustín Mahieu, apresentadas como apêndice à acima
mencionada edição do Facundo (Sarmiento, 1982: 306-7).
21
Sua mãe era brasileira, de descendência portuguesa, e seu pai era natural da cidade do Porto.
A família mudou-se para Lisboa em 1873.
22
Além de diplomata, Nabuco esteve precocemente envolvido na política partidária, tanto no
seu estado quanto no nível federal. Nos anos 1880, acabou sobressaindo-se como líder do
movimento abolicionista e fundador da Sociedade Brasileira contra a Escravidão,
conjuntamente com Joaquim Serra, José do Patrocínio e André Rebouças. Finalmente, com o
advento da República, em 1889, e não disfarçando a sua inclinação pela monarquia, desligou-se
das atividades político-partidárias. Permaneceu, entretanto, a serviço do país em várias missões
diplomáticas, até o final de sua vida, em 1910.
23
“Nos Estados Unidos da atualidade se está justamente dando alguma coisa de muito
semelhante ao que se passou na República Romana quando de agrícola se tornou comerciante,
de retraída se tornou conquistadora, de austera se tornou imoral.” Lima (1980: 166). A posição

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em favor da Venezuela e a animosidade em relação a Root criaram para Oliveira Lima relações
complicadas e estressantes junto ao serviço diplomático brasileiro. O seu “anti-Monroismo” era
ferozmente combatido pelo barão do Rio Branco, seu superior imediato e o encarregado das
Relações Exteriores. Nabuco também o criticava violentamente, e, em carta pessoal a Oliveira
Lima, assim se lamentou: “O senhor me escreve com somente o propósito de me fazer passar un
mauvais quart d’heure (...) o senhor parece interessado em que a Conferência naufrague, toma o
partido da Venezuela e condemna os que me auxiliaram aqui” (Lima Library Manuscripts,
Letters from Nabuco, March 01, 1906).
24
“That powerful federation is effecting a kind of moral conquest among us. Admiration for its
greatness and power is making impressive inroads in the minds of our leaders and, perhaps even
more, in the impressionable minds of the masses, who are awed by its incontrovertible victories.
And from admiring to imitation is an easy step” (Rodó, 1988: 71).
25
No caso do Brasil, esta afirmação foi verdadeira para a primeira geração oitocentista de
escritores. Por exemplo, Domingos Gonçalves de Magalhães, algumas vezes chamado de “pai
do romantismo” no Brasil, serviu como diplomata na Europa, tinha assento no Parlamento e
mais tarde no Conselho de Estado, e costumava freqüentar a Corte na condição de amigo
pessoal do imperador. José de Alencar, outro conhecido romântico, também tinha o seu lugar no
Parlamento, tornou-se ministro da Justiça e finalmente entrou para o Conselho do Estado. Na
segunda metade do século XIX, entretanto, oportunidades mais diversificadas apareceram
quando de uma ainda modesta ampliação do mercado editorial de livros e da proliferação inicial
de revistas e jornais. Com o crescimento dos setores médios urbanos e das oportunidades de
trabalho nos grandes centros, alguns escritores viram-se atraídos pelas novas profissões – por
exemplo, Aluísio de Azevedo (jornalista), Euclydes da Cunha (militar) e Silvio Romero
(professor). Outros, no entanto, talvez por uma questão de extração social, continuaram a
buscar, como nos velhos tempos, o emprego público de prestígio e as sinecuras governamentais
– Oliveira Lima, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa exemplificaram esse último comportamento.
26
Ernst Renan, “Qu’est-ce qu’une nation?” (1882) e Johann Gottlieb Fichte, “Discours à la
nation allemande” (1871) – extratos publicados em Roman (1992); Michelet (1977 [1846], cap.
4, 5 e 6); Stuart Mill (1861, cap. 16 e 18); Dahbour e Ishay (1995), e Acton (1996 [1862]).
27
De acordo com Botana (s.d.: 103), Sarmiento toma emprestado o mito romântico da
“barbárie” de Gibbon, Michelet, Guizot, e Tierry, e o transforma no principal componente de
seu argumento.
28
Para enfatizar o vínculo passado com o mundo antigo, Michelet (1977 [1846]) apresentava a
nação francesa como a “filha mais velha da Igreja Romana” e a “herdeira da genialidade romana
no que diz respeito às leis e às questões de governo”.
29
Borges e Martínez-Estrada apud Kirkpatrick e Masiello (s.d.: 4-5).

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30
No texto original, “mal éxito parcial de las instituciones republicanas en tan grande extensión
y en tan distintos ensayos por la resistencia de inercia (…) ni como socios, ni como siervos en
su constitución social (…) hizo monopolio de su propria raza, que no salía de la edad media al
transladar-se a América (...) absorbió en su sangre una raza prehistórica y servil” (Sarmiento,
1915: 449).
31
Cf. Lima (1914: 99) e Nabuco (1909: 64).

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