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A RE-SIGNIFICAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA
JURÍDICA NA RELAÇÃO
ENTRE O ESTADO E OS
CIDADÃOS:
a segurança como crédito de
confiança*
Judith Martins-Costa
RESUMO
Destaca a importância de decisão do Supremo Tribunal Federal que, ao viabilizar um direito fundamental a uma cidadã, reveste o conceito da segurança
jurídica de outra significação, situando-o como um subprincípio do Estado de Direito.
Demonstra que a Administração Pública não deve, para garantir a confiança, fundamento do Direito, limitar-se a uma abstenção, e sim atuar na
regulação e garantia dos variados mecanismos de realização dos direitos fundamentais e das legítimas expectativas que gera na esfera jurídica dos
particulares.
Dentro desse contexto, assere que a confiança é fator essencial à realização da justiça material e que um comportamento positivo da Administração
Pública na tutela da confiança legítima dos cidadãos segue paralelo ao crescimento, na consciência social, da relevância da conexão entre a ação
administrativa e o dever de proteger de maneira positiva os direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Constitucional; princípio – segurança jurídica, confiança, legalidade; estabilidade; direito fundamental; Supremo Tribunal Federal.
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Texto integrante de obra coletiva em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva, sob a coordenação do Professor Humberto B.
Ávila, com o título Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica na Relação entre o Estado e os Cidadãos
(a segurança como crédito de confiança).
O
tudante, tudo nos termos da funda- sos dessa evolução. O ponto inicial
Supremo Tribunal Federal, mentação” (fls. 64). da trajetória está na opinião ampla-
pelo voto de um dos seus O Tribunal Regional Federal da mente divulgada na literatura jurídica
mais ilustrados membros – o 4ª Região, ao julgar a apelação em de expressão alemã do início do sé-
Ministro Gilmar Mendes –, proferiu a mandado de segurança, reformou a culo de que, embora inexistente, na
seguinte decisão (publicada em seu sentença de 1º grau, forte no argu- órbita da Administração Pública, o
informativo semanal), que vale a pena mento de que a impetrante não pro- princípio da res judicata, a facul-
transcrever integralmente: vara a existência de vagas na univer- dade que tem o Poder Público de
sidade para a qual pretendia ingres- anular seus próprios atos tem limite
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA sar e, também, por considerar inapli- não apenas nos direitos subjetivos
JURÍDICA cável a transferência compulsória, dis- regularmente gerados, mas também
ciplinada pela Lei n. 9.536, de 1997, no interesse em proteger a boa-fé e a
DECISÃO: Cuida-se de ação aos empregados de empresa públi- confiança (Treue und Glauben) dos
cautelar com pedido de concessão ca que não gozam de status de fun- administrados.
de efeito suspensivo ao recurso ex- cionário ou servidor público federal. (...)
traordinário, interposto por Roberta de Ainda, nos termos do parágrafo úni- Esclarece Otto Bachof que ne-
Leon Valiente, contra acórdão da 3ª co do artigo 1º da Lei n. 9.536, de nhum outro tema despertou maior in-
Turma do Tribunal Regional Federal da 1997, assentou-se que a mudança de teresse do que este nos anos 50, na
4ª Região, que indeferiu a sua trans- cidade para assunção de cargo em doutrina e na jurisprudência, para con-
ferência de uma instituição de ensino razão de concurso público não dá di- cluir que o princípio da possibilidade
superior federal para outra, pleiteada reito à transferência compulsória de de anulamento foi substituído pelo da
em razão da assunção de cargo, para matrícula (fls. 96). impossibilidade de anulamento, em
o qual foi aprovada em concurso pú- Contra essa decisão, houve a homenagem à boa-fé e à segurança
blico. interposição de recurso extraordiná- jurídica. Informa ainda que a preva-
Preliminarmente, cabe anotar rio, com fundamento no art. 102, III, lência do princípio da legalidade so-
que, embora tenha sido apresentada, “a”, da Constituição Federal, em que bre o da proteção da confiança só se
tão-somente, a petição de fls. 2-6, se alega a violação dos arts. 5º, dá quando a vantagem é obtida pelo
dou por sanada a deficiência de ins- XXXIII, 37, 205 e 206, I e IV, da Carta destinatário por meios ilícitos por ele
trução dos autos, por já se encontrar Magna. utilizados, com culpa sua, ou resulta
nesta Corte o recurso extraordinário a Conforme a narrativa da reque- de procedimento que gera sua respon-
que ela se refere. rente, o inconformismo se deve ao sabilidade. Nesses casos não se pode
A requerente, por ter sido no- desrespeito à norma geral estabele- falar em proteção à confiança do fa-
meada para trabalhar em Porto Ale- cida na Constituição de que “o ensi- vorecido. (Verfassungsrecht,
gre, em decorrência de sua aprova- no é público e obrigatório em todos Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht in
ção no concurso público para o car- os níveis e para todos os cidadãos”. der Rechtssprechung des
go de técnico operacional júnior na E que, “diante do fato concreto, a Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen
Empresa Brasileira de Correios e Te- mínima providência deveria ter sido 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs.;
légrafos, em 1999, mudou seu domi- a verificação sobre a existência ou não vol. II, 1967, p. 339 e segs.).
cílio para Porto Alegre. Assim, plei- de vagas, o estudo minucioso das Embora do confronto entre o
teou a transferência do curso de Di- particularidades (motivos do requeri- princípio da legalidade da Administra-
reito da Universidade de Pelotas – mento) e, somente após expedida a ção Pública e o da segurança jurídica
UFPEL, onde se encontrava matricu- decisão, sobre a possibilidade ou não resulte que, fora dos casos de dolo,
lada no 4º (quarto) semestre, para a da transferência”. culpa etc., o anulamento com eficácia
Universidade Federal do Rio Grande Alega, ainda, que o fato de a ex tunc é sempre inaceitável e o com
do Sul – UFRGS, com base no princí- requerida impedir a continuidade de eficácia ex nunc é admitido quando
pio constitucional estabelecido, prin- seus estudos em universidade públi- predominante o interesse público no
cipalmente, nos arts. 205 c.c. 206, I ca e gratuita, “sem demonstrar impos- restabelecimento da ordem jurídica
e IV, e 37 c.c. 5º, XXXIII. sibilidade por falta de vagas no se- ferida, é absolutamente defeso o
O pleito foi indeferido, adminis- mestre pretendido e sob alegação de anulamento quando se trate de atos
trativamente, ao entendimento de que que esta transferência não é obrigató- administrativos que concedam pres-
não se tratava “de funcionária públi- ria, segundo a Lei n. 9.536/97 e Instru- tações em dinheiro, que se exauram
ca federal removida ex officio, não se ção Normativa n. 001/2000, reprisa-se, de uma só vez ou que apresentem
enquadrando, portanto, na Lei 9.536/ é verdadeiro acinte aos princípios caráter duradouro, como os de índole
97 para ingresso na UFRGS” (fls. 21). constitucionais norteadores da Admi- social, subvenções, pensões ou
Daí ter impetrado mandado de nistração Pública, especificamente: proventos de aposentadoria.”
segurança, acolhido em sentença estudo público gratuito, direito de to- Depois de incursionar pelo Di-
datada de 21.12.2000, “(a) para reco- dos e dever do Estado”, causando reito alemão, refere-se o mestre gaú-
nhecer que a impetrante tem direito a prejuízos à sua profissionalização e cho ao Direito francês, rememorando
transferir-se e a freqüentar o curso de realização pessoal. o clássico “affaire Dame Cachet”:
Direito na UFRGS, a partir deste se- No âmbito da cautelar, a maté- “Bem mais simples apresenta-
mestre; (b) determinar à autoridade ria evoca, inevitavelmente, o princí- se a solução dos conflitos entre o
impetrada que imediatamente provi- pio da segurança jurídica. princípio da legalidade da Adminis-
dencie a transferência da parte A propósito do direito compa- tração Pública e o da segurança jurí-
impetrante, permitindo que a mesma rado, vale a pena trazer à colação dica no Direito francês. Desde o fa-
realize a matrícula, freqüente as ativi- clássico estudo de Almiro do Couto e moso ‘affaire Dame Cachet’, de 1923,
dades discentes e todas as demais Silva sobre a aplicação do aludido: fixou o Conselho de Estado o enten-