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OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA 2005

O que é o Observatório da Cidadania?


A idéia de estabelecer no âmbito da sociedade civil mecanismos permanentes
de monitoramento e avaliação do cumprimento da agenda do Ciclo Social
surgiu em 1995, entre ONGs que participavam da Conferência da ONU sobre
o Desenvolvimento Social, em Copenhague. Foi criado então o Social Watch.
Seu objetivo é garantir que o esforço de participação e advocacy – presente na
preparação e negociação das conferências – continue na implementação dos
compromissos sociais assumidos pelos governos, nacional e internacionalmente.
A articulação internacional de organizações da sociedade civil Social
Watch inspirou a criação da iniciativa brasileira Observatório da Cidadania,
animada pelo Ibase. Em 1997, o relatório internacional foi publicado pela
primeira vez em português, consolidando, assim, um grupo de referência
nacional do qual atualmente participam: Ibase, Fase, Inesc, Rede Dawn,
Cfemea, CESeC/Ucam e Criola. A edição brasileira também traz o perfil
socieconômico de diversos países, mas difere das demais por contar com
uma seção especial sobre o Brasil. As estatísticas, mostrando avanços e
retrocessos dos vários países, em relação às metas de desenvolvimento
social, estão no CD-ROM que acompanha a publicação.
OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA 2005
Rugidos e Sussurros
OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA

COMITÊ COORDENADOR INTERNACIONAL


Roberto Bissio (Uruguai, Secretariado), Leonor Briones (Filipinas), John Foster (Canadá), Yao Graham (Gana), Jagadananda (Índia), Patricia Jurewicz (Estados Unidos),
Rehema Kerefu Sameji (Tanzânia), Jens Martens (Alemanha), Iara Pietricovsky (Brasil), Ziad Abdel Samad (Líbano), Areli Sandoval (México), El Hassan Sayouty (Marrocos)
e Simon Stocker (Bélgica)

O Secretariado Internacional do Social Watch está sediado em Montevidéu, Uruguai, no Instituto do Terceiro Mundo (IteM).

OBSERVATÓRIO DA CIDADANIA – BRASIL


Coordenação executiva
Fernanda Lopes de Carvalho (Ibase)
Grupo de referência
Cândido Grzybowski e Fernanda L. de Carvalho (Ibase), Iara Pietricovsky (Inesc), Jorge Eduardo Durão (Fase), Sonia Corrêa (Rede Dawn), Guacira Oliveira (Cfemea),
Silvia Ramos (CESeC/Ucam) e Lúcia Xavier (Criola)

EQUIPE EDITORIAL
Edição internacional
Chefia de redação: Roberto Bissio
Edição: Jorge Suárez
Edição associada: Lucy Gray-Donald e Laura Pallares
Assistência editorial: Soledad Bervejillo
Produção: Ana Zeballos
Edição e pesquisa: Gustavo Alzugaray
Pesquisa de ciências sociais: Karina Batthyány (coordenadora), Daniel Macadar, Graciela Dede, Ignacio Pardo e Mariana Sol Cabrera
Tradução: Richard Manning, Alvaro Queiruga, Clio Bugel, Matilde Prieto e Mercedes Ugarte
Pesquisa e edição: Gustavo Espinosa
Assistência: Marcelo Singer
Revisão de textos: Lucía Beverjillo
Suporte técnico: Red Telemática Chasque

Edição brasileira
Coordenação: Fernanda Lopes de Carvalho
Assistente de coordenação: Luciano Cerqueira
Coordenação editorial: Iracema Dantas
Edição: Marcia Lisboa
Revisão: Marcelo Bessa
Revisão técnica: Fernanda Lopes de Carvalho e Luciano Cerqueira
Tradução: Jones de Freitas
Produção: Geni Macedo
Produção do CD-ROM: Socid – Sociedade Digital

Apoio: Novib (Organização Holandesa de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento)

© Copyright 2005

IteM – Instituto del Tercer Mundo


Jackson, 1.136
Montevidéu, 11200, Uruguai
item@item.org.uy
Fax: + 598-2-411-9222

Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas


Av. Rio Branco, 124/8o andar – Centro
CEP 20040-916 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: +55-21-2509-0660
Fax: +55-21-3852-3517
observatorio@ibase.br
www.ibase.br

O conteúdo desta publicação pode ser reproduzido por organizações não-governamentais para fins não-comerciais (enviem-nos cópia). Qualquer outra forma de
reprodução, armazenamento em sistema de recuperação de dados ou transmissão de qualquer forma ou por qualquer meio, com fins comerciais, requer autorização prévia
do IteM ou do Ibase.

Projeto gráfico: G. Apoyo Gráfico


Diagramação: Mais Programação Visual
Fotolitos: Ace Digital Ltda.
Impressão: J-Sholna Reproduções Gráficas Ltda.

ISSN: 1679-7035

Pedidos de exemplares e CD-ROMs podem ser feitos ao Ibase.


A INICIATIVA SOCIAL WATCH ESTÁ SENDO PROMOVIDA E DESENVOLVIDA PELOS SEGUINTES GRUPOS, ORGANIZAÇÕES E PARCEIROS:
África do sul: NLC – National Land Committee (Comitê Nacional da Terra), contact@nlc.co.za • Albânia: HDPC – Human Development Promotion Centre (Centro de Promoção e Desenvolvimento
Humano), hdpc@icc-al.org • Alemanha: Social Watch Germany (Social Watch da Alemanha), jens.martens@weed-online.org; Caritas Alemanha; EED – Church Development Service (Serviço
de Desenvolvimento da Igreja); DGB-Bildungswerk e.V.; Diakonisches Werk of the Protestant Church in Germany; Fundação Friedrich-Ebert; ; Pão para o Mundo; Terre des Hommes – Alemanha;
Vereinte Dienstleistungsgewerkschaft (ver.di); Werkstatt Ökonomie; Weed (Economia Mundial, Ecologia e Desenvolvimento) • Angola: Sinprof (Sindicato Nacional dos Professores),
mi21163@yahoo.es • Argélia: Associação El Amel para o Desenvolvimento Social, mselougha@yahoo.fr • Argentina: Cels-Desc (Centro de Estudos Legais e Sociais – Programa de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais), desc@cels.org.ar • Bangladesh: CDL – Community Development Library (Biblioteca de Desenvolvimento Comunitário), rdc@bol-online.com; Unnayan
Shamunnay, shamunnay@sdnbd.org • Barein: BHRS (Sociedade de Direitos Humanos de Barein), cdhrb@hotmail.com, sabikama@batelco.com.bh • Benin: Social Watch Benin (Social Watch
de Benin), hugsena2002@yahoo.fr • Birmânia: Burma Lawyers Council (Conselho de Advogados da Birmânia), aunghtoo@access.inet.co.th, blcms@cscoms.com • Bolívia: Cedla (Centro de
Estudos para o Desenvolvimento Trabalhista e Agrário), cedla@caoba.entelnet.bo; Seção Boliviana de DH, Democracia e Desenvolvimento; Aipe (Associação de Instituições de Promoção e
Educação); APDHB (Assembléia Permanente dos Direitos Humanos da Bolívia – CBB); APDH-NAL (Assembléia Permanente dos Direitos Humanos); Área Identidade Mulher e Trabalho da
Fundação Solón; Assembléia Permanente Direitos Humanos; Associação + Vida; Asofamd (Associação de Familiares de Presos Desaparecidos da Bolívia); Capacitação e Direito Cidadão; Cáritas
La Paz; Casa da Mulher; Casdel (Centro de Assessoramento Legal e Desenvolvimento Social); Católicas pelo Direito de Decidir; Ceades (Coletivo de Estudos Aplicados ao Desenvolvimento Social);
Cedib (Centro de Documentação e Pesquisa da Bolívia); Cenprotac (Centro de Promoção de Técnicas de Arte e Cultura); Centro Gregoria Apaza; Centro Juana Azurduy; Ceprolai (Centro de
Promoção dos Leigos); Cidem (Centro de Informação e Desenvolvimento da Mulher); Cipca NAL (Centro de Pesquisa e Promoção do Campesinato); Cisep (Centro de Pesquisa e Serviço Popular);
Cistac (Centro de Pesquisa Social, Tecnologia Apropriada e Capacitação); Coletivo Rebeldia; Comunidade Equidade; Coordenação da Mulher; DNI (Defesa da Criança Internacional); DNI-NAL
(Defesa da Criança Internacional); DNI-Regional CBB; Ecam (Equipe Comunicação Alternativa com Mulheres); Escritório Jurídico da Mulher; Fundação La Paz; Fundação Terra; Iffi (Instituto de
Formação Feminina Integral); Infante (Promoção Integral da Mulher e Infância); IPTK (Instituto Politécnico Tupac Katari); MEPB (Movimento Educadores Populares da Bolívia); Miamsi (Ação
Católica Internacional); Prodis Yanapakuna (Programa de Desenvolvimento e Pesquisa Social); Rede Andina de Informação; Unitas (União Nacional de Instituições para o Trabalho de Ação Social)
• Brasil: Grupo de Referência: Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, observatorio@ ibase.org.br; Cesec/Ucam – Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da
Universidade Candido Mendes; Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria; Criola-Rio; Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional; Inesc – Instituto de
Estudos Socioeconômicos; Rede Dawn; Abia – Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids; Abong – Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais; ActionAid; Afirma Comunicação
e Pesquisa; Agende – Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento; AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras; Articulação de Mulheres Negras Brasileiras; Attac – Ação pela Tributação das
Transações Especulativas em Apoio aos Cidadãos; Caces – Centro de Atividades Culturais, Econômicas e Sociais; Ceap – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas; Cebrap – Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento; Cedec – Centro de Estudos da Cultura Contemporânea; Cedim – Conselho Estadual dos Direitos da Mulher; Cemina – Comunicação, Informação e Educação
em Gênero; CEN/Fórum de Mulheres do Piauí; Centro das Mulheres do Cabo; Centro de Cultura Luiz Freire; Centro de Defesa da Criança e do Adolescente/Movimento de Emus; Centro de Defesa
dos Direitos Humanos Bento Rubião; Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Candido Mendes; Centro de Estudos de Defesa do Negro do Pará; Cepia – Cidadania Estudo Pesquisa
Informação e Ação; Cladem – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; CPT/Fian – Comissão Pastoral da Terra; Comunidade Baha’í; CUT – Central Única dos
Trabalhadores; Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria; Fala Preta; Faor – Fórum da Amazônia Oriental; Fórum de Mulheres de Salvador; Fórum de Mulheres do Rio Grande Norte; Geledés –
Instituto da Mulher Negra; Grupo de Mulheres Negras Malunga; Instituto Patrícia Galvão; Ippur/UFRJ – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional; Iser – Instituto de Estudos da
Religião; MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos; Nova; Observatório Afro-Brasileiro; Observatório da Cidadania; Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Estudos
Sociais; Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano; Rede Mulher de Educação; Rede Saúde; Ser Mulher – Centro de Estudos e Ação da Mulher Urbana e Rural; SOS Corpo; SOS Mata Atlântica;
Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero; Vitae Civilis Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz • Bulgária: BGRF (Fundação de Pesquisa e Gênero da Bulgária),
bgrf@fastbg.net; Attac – Bulgária; Bepa – Bulgarian-European Partnership Association (Associação da Parceria Búlgara-Européia); National Trade Union Federation of “Light Industry” (Federação
Nacional dos Sindicatos da Indústria Leve • Camboja: Silaka, silaka@forum.org.kh; ADD – Action on Disability and Development (Ação com Portadores de Deficiências no Processo de
Desenvolvimento); Adhoc (Associação de Direitos Humanos e Desenvolvimento do Camboja); CDPO – Cambodian Disabled People’s Organization (Organização Cambojana dos Portadores de
Deficiências); Cepa – Cultural and Environment Preservation Association (Associação pela Preservação Cultural e Ambiental); CHHRA – Cambodian Health and Human Rights Alliance (Aliança
Cambojana pela Saúde e Direitos Humanos); CLO – Cambodian Labor Organization (Organização Trabalhista Cambojana); CSD – Cambodian Women’s Development Agency (Agência de
Desenvolvimento das Mulheres Cambojanas); GAD – Gender and Development Agency (Agência de Gênero e Desenvolvimento); Khraco – Khmer Human Rights and Against Corruption Organization
(Organização Khmer pelos Direitos Humanos e contra a Corrupção); KKKHRA – Khmer Kampuchea Krom Human Rights Association (Associação Khmer Kampuchea Krom de Direitos Humanos);
KKKHRDA – Khmer Kampuchea Krom Human Rights and Development Association (Associação Khmer Kampuchea Krom de Direitos Humanos e Desenvolvimento); KYA – Khmer Youth Association
(Associação da Juventude Khmer); LAC – Legal Aid Association (Associação para Assistência Jurídica); Licadho; Padek – Partnership for Development in Kampuchea (Parceria para o Desenvolvimento
no Camboja); UPDF – Urban Poor Development Fund (Fundo de Desenvolvimento para os Pobres Urbanos); UPWD – Urban Poor Development Fund (Fundo de Desenvolvimento para os Pobres
Urbanos); URC – Urban Resource Center (Centro de Recursos Urbanos); USG – Urban Sector Group (Grupo do Setor Urbano); Vigilance (Vigilância) • Canadá: Social Watch Canada – Canadian
Centre for Policy Alternatives/The North–South Institute (Centro Canadense para Alternativas de Políticas Públicas/Instituto Norte–Sul), jfoster@nsi-ins.ca • Cazaquistão: Center for Gender
Studies (Centro de Estudos de Gênero), gender@academset.kz • Chile: Activa – Área Cidadania, activaconsultores@vtr.net; ACJR (Aliança Chilena por um Comércio Justo e Responsável);
Anamuri (Associação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas); CEM (Centro de Estudos da Mulher); Codepu (Corporação para Promoção e Defesa dos Direitos do Povo); Coletivo Con-Spirando;
Corporação La Morada; Eduk; Foro, Rede de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos; Fundação para Superação da Pobreza; Fundação Terram; Programa de Cidadania e Gestão Local; SOL
(Solidariedade e Organização Local) • China: Network (Research Center) for Combating Domestic Violence of China Law Society – Rede (Centro de Pesquisa) da Sociedade Jurídica da China
para Combater a Violência Doméstica, buwei@public3.bta.net.cn • Colômbia: Corporación Región, coregion@epm.net.co; Plataforma Colombiana de DH, Democracia e Desenvolvimento
• Coréia do Sul: CCEJ – Citizen’s Coalition for Economic Justice (Coalizão Cidadã pela Justiça Econômica), mmm@ccej.or.kr, dohye@ccej.or.kr • Costa Rica: Centro de Estudos e Publicações
Alforja, cep@alforja.or.cr; Agenda Cantonal de Mulheres Desamparadas; Ames (Associação de Mulheres da Saúde); Associação Nossas Vozes; Centro de Educação Popular de Vizinhos;
Coordenação de Bairros; Coordenação Técnica do Conselho Consultivo da Sociedade Civil; Fedeaguas-Guanacaste; Frente de Organizações para a Defesa da Seguridade Social; Limpal (Liga
Internacional de Mulheres Pró-Paz e Liberdade); Sebana (Sindicato dos Empregados do Banco Nacional); Sinae (Sindicato de Auxiliares de Enfermaria); Sindicato de Profissionais de Ciências
Médicas • Egito: NAHRD – National Association for Human Rights and Development (Associação Nacional para o Desenvolvimento e Direitos Humanos), lrcc@brainy1.ie-eg.com • El Salvador:
Cidep (Associação Intersetorial para o Desenvolvimento Econômico e o Progresso Social), cidep@cidep.org.sv; Apsal (Ação pela Saúde em El Salvador); Codefam (Comitê de Familiares de
Vítimas de Violações dos Direitos Humanos de El Salvador); Fuma (Fundação Maquilishuatl); Las Dignas (Associação de Mulheres pela Dignidade e a Vida) • Equador: CDES (Centro de Direitos
Econômicos e Sociais), cdes@cdes.org.ec • Espanha: Intermón Oxfam, intermon@intermon.org; Cáritas Espanhola; CONGDE – Coordinadora de ONG para el Desarrollo (Coordenadora de
ONGs para o Desenvolvimento) • Estados Unidos: IATP (Instituto para Políticas Agrícolas e de Comércio), iatp@iatp.org; AFL-CIO – American Federation of Labor and Congress of Industrial
Organizations (Federação Americana do Trabalho e Congresso das Organizações Industriais); Center of Concern/US; Gender and Trade Network (Rede de Comércio e Gênero); Inter-American
Forum & Global-Links Project (Fórum Interamericano & Projeto de Articulação Global-Local); Wedo – Women’s Environment and Development Organization (Organização de Mulheres para o
Ambiente e o Desenvolvimento) • Filipinas: Social Watch Philippines, sowat@info.com.ph; Accord (Organização Alternativa para o Desenvolvimento Rural Baseado na Comunidade); ACT
(Aliança dos Professores Conscientes); AER (Ação para as Reformas Econômicas); Afrim (Fórum Alternativo de Pesquisas em Mindanao); Alagad-Mindanao (Aliança contra a Aids em Mindanao);
Alay Kapwa-Social Action Center (Alay Kapwa-Centro de Ação Social); Albay NGO-PO Network (Rede de ONGs e Organizações Populares de Albay); Alliance of Community Development Advocates
(Aliança de Defensores do Desenvolvimento Comunitário); Angoc – Asian NGO Coalition for Agrarian Reform and Rural Development (Coalizão de ONGs Asiáticas pela Reforma Agrária e o
Desenvolvimento Rural); ATD Fourth World Philippines (Ajuda ao Quarto Mundo Filipinas); Bagasse (Aliança Bisaya para o Crescimento das Comunidades de Reforma Agrária e da Empresa
Açucareira Sustentável); Bangon (Aliança Bohol de Organizações Não-Governamentais); Bantay Katilingban; Banwang Tuburan; Bapaka; Bataan NGO-PO Network (Rede de ONGs e Organizações
Populares de Bataan); Beijing Score Board (Placar de Pequim); Bind – Broad Initiative for Negros Development (Iniciativa Ampla para o Desenvolvimento de Negros); Caret Inc.; Caucus on Poverty
Reduction (Caucus para Redução da Pobreza); CCAGG; CCF Reconciliation Center (Centro de Reconciliação); CMA-Phils – Center for Migrant Advocacy Philippines (Centro para a Defesa dos
Migrantes – Filipinas); CMLC; Code – NGO – Caucus of Development NGO Networks (Caucus de Redes de ONGs de Desenvolvimento); Compax – Cotabato; Co-Multiversity; Convergence; CPED
– Center for Policy and Executive Development (Centro de Políticas Públicas e Desenvolvimento do Poder Executivo); Daluyong Ugnayan ng mga Kababaihan – National Federation of Women’s
Group (Federação Nacional de Grupos de Mulheres); Dawn-Southeast Asia/ Women & Gender Institute (Rede Dawn-Sudeste Asiático/Instituto Mulher & Gênero); Ecpat Philippines; Elac – Cebu;
Emancipatory Movement for People’s Empowerment (Movimento Emancipatório pelo Empoderamento do Povo); E-Net – Civil Society Network for Education Reforms (Rede da Sociedade Civil
pelas Reformas da Educação); FDC (Coalizão pela Libertação da Dívida); Federation of Senior Citizens Association of the Philippines (Federação das Associações de Idosos das Filipinas); Feed the
Children Philippines (Alimentem as Crianças – Filipinas); Focus on the Global South – Philippine Program (Foco sobre o Sul Global – Programa Filipino); Free the Children Foundation (Fundação
pela Libertação das Crianças); Government Watch – Ateneo School of Government (Observatório de Governo – Escola de Governo Ateneo); IBASSMADC; IDS-Phils (Serviços de Desenvolvimento
Integral – Filipinas); IID (Iniciativas para o Diálogo Internacional); Iloilo Code of NGOs; Inam – Indicative Medicine for Alternative Health Care System Phils., Inc. (Medicina Indicativa para um
Sistema de Atendimento de Saúde Alternativo); IPD (Instituto para a Democracia Popular); Issa – Institute for Social Studies and Action (Instituto de Estudos e Ação Social); Jaro Archdiocesan
Social Action Center (Centro de Ação Social da Arquidiocese de Jaro); Jihad Al Akbar; JPIC-IDC – Justice for Peace and Integrity of Creation – Integrated Development Center (Justiça pela Paz e
Integridade da Criação – Centro de Desenvolvimento Integrado); Kamam; Kapatiran-Kaunlaran Foundation, Inc.; Kasamakapa – multi-sectoral organization of CSOs for environmental and
development in Marinduque (Organização multissetorial de OSCs pelo ambiente e desenvolvimento em Marinduque); Katinig (Kalipunan ng Maraming Tinig ng Manggagawang Inpormal); KFI
(Kasanyagan Foundation Inc.); KIN (Kitanglad Integrated NGOs); Kinayahan Foundation (Fundação Kinayahan); Konpederasyon ng mga Nobo Esihano para sa Kalikasan at Kaayusang Panlipunan;
La Liga Policy Institute (Instituto de Políticas Públicas La Liga); Labing Kubos Foundation, Inc. (Fundação Labing Kubos); LRC (Centro de Direitos Legais e Recursos Naturais); Lubong Salakniban
Movement; MAG – Medical Action Group (Grupo de Ação Médica); Midsayap Consortium of NGOs and POs (Consórcio de ONGs e Organizações Populares de Midsayap); Mindanawon Initiative
for Cultural Dialogue (Iniciativa pelo Diálogo Cultural de Mindanao); MLF (Fundação Agrária Mindanao); Mode – Management & Organizational Development for Empowerment (Gestão e
Desenvolvimento Organizacional para o Empoderamento); National Anti Poverty Commission Basic Sectors (Setores Básicos da Comissão Nacional Antipobreza); Natripal; NCCP – National
Council of Churches in the Philippines (Conselho Nacional das Igrejas nas Filipinas); NCSD (Conselho Nacional de Desenvolvimento Social); Negronet; NGO-LGU Forum of Camarines Sur; NGO-
PO Network of Quezon (Rede ONGs-Organizações Populares de Quezon); NGO-PO of Tobaco City; Niugan (Nagkakaisang Ugnayan ng mga Manggagawa at Magsasaka sa Niyugan); Nocfed
(Centro para o Desenvolvimento de Negros Oriental); Outreach Philippines, Inc.; Oxfam Grã-Bretanha; Pafpi – Positive Action Foundation Philippines, Inc. (Fundação Ação Positiva das Filipinas);
Pagbag-O (Panaghugpong sa Gagmayng Bayanihang Grupo sa Oriental Negros); Paghiliusa sa Paghidaet-Negros; Pahra (Aliança Filipina dos Defensores de Direitos Humanos); PCPD – Philippine
Center for Population & Development, Inc. (Centro Filipino de População e Desenvolvimento); PCPS – Philippine Center for Policy Studies (Centro Filipino de Estudos de Políticas Públicas); Peace
Advocates Network (Rede de Defensores da Paz); Pepe – Popular Education for People’s Empowerment (Educação Popular pelo Empoderamento do Povo); Philippine Human Rights Info Center
(Centro de Informações sobre Direitos Humanos das Filipinas); Philippine Partnership for the Development of Human Resources in Rural Areas – Davao (Parceria Filipina para o Desenvolvimento
de Recursos Humanos em Áreas Rurais – Davao); Phil-Net Visayas; PhilNet-RDI (Rede Filipina de Institutos de Desenvolvimento Rural); Pinoy Plus Association; Pipuli Foundation, Inc.; PLCPD
(Philippine Legislators Committee on Population and Development Foundation (Fundação da Comissão de Legisladores Filipinos sobre População e Desenvolvimento); PPI – Philippine Peasant
Institute (Instituto do Camponês Filipino); Process-Bohol – Participatory Research Organization of Communities and Education towards Struggle for Self Reliance (Organização pela Pesquisa
Participativa em Comunidades e Educação para a Luta por Autonomia); Provincial NGO Federation of Nueva Vizcaya (Federação Provincial de ONGs de Nueva Vizcaya); PRRM – Alliance of
Community Development Advocate (Aliança de Defensores do Desenvolvimento Comunitário); PRRM (Movimento para a Reconstrução Rural das Filipinas); RDISK (Instituto de Desenvolvimento
Rural de Sultan Kudarat); Remedios Aids Foundation; Research and Communication for Justice and Peace (Pesquisa e Comunicação pela Justiça e Paz); Eletrificação Rural e Crédito na Sociedade
Filipina (Reaps); Samapa (Samahang Manggagawa sa Pangkalusugan); Samapaco; Sarilaya; Save the Children Fund U.K.; Silliman University; Sitmo – Save the Ifugao Terraces Movement
(Movimento pela Salvação dos Terraços de Ifugao); Centro de Ação Social de Malaybalay Bukidnon; Tacdrup (Centro de Assistência Técnica para o Desenvolvimento dos Pobres Rurais e
Urbanos); Tambuyog Development Center (Centro de Desenvolvimento Tambuyog); Tanggol Kalikasan; Tarbilang Foundation; Tebtebba Foundation, Inc.; TFDP (Força-Tarefa Detentos das Filipinas);
The Asia Foundation (Fundação da Ásia); The Community Advocates of Cotabato (Defensores Comunitários de Cotabato); TWSC (Centro de Estudos do Terceiro Mundo); U.S. (Save the Children);
UKP (Ugnayan ng mga Kababaihan sa Pulitika); Ulap – Union of Local Authorities of the Philippines (União das Autoridades Locais das Filipinas); U-Lead! (União por Liderança Nova); UP-Cids –
UP Center for Integrative and Development Studies (Centro de Estudos Integrados e de Desenvolvimento); Urban Missionaries (Missionários Urbanos); WHCF – Women’s Health Care Foundation
(Fundação de Atendimento à Saúde das Mulheres); Womanhealth Philippines (Saúde da Mulher nas Filipinas); Women Alliance Movement for Peace and Progress (Movimento da Aliança das
Mulheres pela Paz e o Progresso); Young Moro Professionals (Jovens Profissionais de Moro) • Gana: Third World Network Africa (Rede do Terceiro Mundo África), contact@twnafrica.org;
Abantu for Development – Ghana (Abantu pelo Desenvolvimento – Gana); Centre for Democracy and Development (Centro pela Democracia e Desenvolvimento); Christian Council (Conselho
Cristão); Civic Response (Resposta Cívica); Consumers Association of Ghana (Associação de Consumidores de Gana); Friends of the Earth (Amigos da Terra); Gender Studies and Human Rights
Documentation Centre (Centro de Documentação de Estudos de Gênero e Direitos Humanos); General Agricultural Workers Union (Sindicato Geral de Trabalhadores Agrícolas); Ghana Association
of the Blind (Associação de Cegos de Gana); Ghana National Association of Teachers (Associação Nacional de Professores de Gana); Ghana Registered Nurses Association (Associação de
Enfermeiros Registrados de Gana); Integrated Social Development Centre (Centro para o Desenvolvimento Social Integrado); Islamic Council (Conselho Islâmico); National Union of Ghana
Students (União Nacional dos Estudantes de Gana); Network for Women’s Rights (Rede de Direitos da Mulher); Save the Children Ghana (Salvem as Crianças – Gana); Trades Union Congress
(Congresso dos Sindicatos); University of Ghana Students Representative Council (Conselho de Representantes dos Estudantes da Universidade de Gana) • Guatemala: Iniap (Instituto de
Pesquisa e Autoformação Política), iniap@intelnet.net.gt; Comitê Pequim; Coordenação “Sim, Vamos Pela Paz” • Holanda: NCDO (Comitê Nacional pela Cooperação Internacional e o Desenvolvimento
Sustentável), a.roerink@ncdo.nl; Novib/Oxfam Netherlands • Honduras: CEM-H (Centro de Estudos da Mulher – Honduras), cemh@cablecolor.hn; Cehprodec (Centro Hondurenho de Promoção
do Desenvolvimento Comunitário); Iniciativa da Marcha Mundial das Mulheres – Seção de Honduras • Iêmen: Yemen NGOs for Children’s Rights (ONGs do Iêmen pelos Direitos das Crianças),
fouziaabdallah@yahoo.com • Índia: Cysd (Centro para a Juventude e o Desenvolvimento Social), cysdbbsr@vsnl.net; Ncas (Centro Nacional de Estudos Jurídicos); Samarthan • Indonésia:
PPSW (Centro de Desenvolvimento de Recursos para a Mulher), ppsw@cbn.net.id; Asppuk – Association for Women in Small Business Assistance (Associação para a Assistência às Mulheres de
Pequenas Empresas); Pekka – Women Headed Household Enpowerment Program (Programa de Empoderamento de Mulheres Chefes de Família) • Iraque: Iraqi Al-Amal Association (Associação
Iraquiana El-Amal), baghdad@iraqi-alamal.org • Itália: Unimondo, jason.nardi@unimondo.org; Acli (Associação Católica de Trabalhadores Italianos); Arci (Associação Recreativa e Cultural
Italiana); Fundação Cultural Responsabilidade Ética; ManiTese; Movimondo; Sbilanciamoci • Japão: Parc – Pacific Asia Resource Center (Centro de Recursos do Pacífico Asiático), office@parc-
jp.org • Jordânia: Women Organization to Combat Illiteracy in Jordan (Organização de Mulheres para Combater o Analfabetismo na Jordânia) • Kosovo: Riinvest,
muhamet.mustafa@riinvestinstitute.org • Letônia: Letônia NGO Plataform (Plataforma Latívia de ONGs), info@lapas.lv • Líbano: Annd (Rede de ONGs Árabes para o Desenvolvimento),
annd@annd.org; Coordination of the NGOs working in the Palestinian communities in Lebanon (Coordenação de ONGs que Trabalham na Comunidade Palestina no Líbano); Lebanese Development
Forum (Fórum de Desenvolvimento Libanês); Movement Social (Movimento Social) • Lituânia: Kaunas NGO Support Centre (Centro de Apoio a ONGs Kaunas), podiumas@knopc.it • Malásia:
Consumers’ Association of Penang (Associação de Consumidores de Penang), meenaco@pd.jaring.my; Cini Smallholders’ Network (Rede de Pequenos Proprietários de Cini); Penang Inshore
Fishermen Welfare Association (Associação pelo Bem-estar dos Pescadores Costeiros de Penang); Sahabat Alam Malaysia (Friends of the Earth, Malaysia); Teras Pengupayaan Melayu; Third
World Network (Rede do Terceiro Mundo) • Malta: Kopin – Koperazzjoni Internazzionali (Cooperação Internacional), jmsammut@maltanet.net • Marrocos: Espace Associatif (Espaço Associativo),
espasso@iam.net.ma • México: Equipo Pueblo, pueblodip@equipopueblo.org.mx; Cátedra Unesco de Direitos Humanos (Unam); Centro de Análise e Pesquisa Fundar; Centro de Direitos
Humanos Econômicos, Sociais e Culturais; Centro de Direitos Humanos Miguel Agustín Pro-Juárez; Centro de Estudos Sociais e Culturais Antonio de Montesinos; Centro de Reflexão e Ação
Trabalhista; Comissão Mexicana de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos; Deca Equipo Pueblo; Defensoria do Direito à Saúde; Escritório Regional para a América Latina e o Caribe da Coalizão
Internacional do Habitat; Espaço de Coordenação das Organizações Civis sobre os Desc; Liga Mexicana pela Defesa dos Direitos Humanos; Red Nacional Milenio Feminista; Seção Mexicana de
Fian, Casa e Cidade, membro da Coalizão Habitat México • Nepal: Rural Reconstruction Nepal-RRN (Reconstrução Rural do Nepal), rrn@rrn.org.np; All Nepal Peasant Association (Associação
de Camponeses de Todo o Nepal); Alliance for Human Rights and Social Justice (Aliança pelos Direitos Humanos e Justiça Social); Centre Nepal: General Federation of Nepalese Trade Union
(Centro Nepal: Federação Geral dos Sindicatos Nepaleses); Child Worker Concern; Informal Sector Service Centre (Centro de Serviços do Setor Informal); NGO Federation of Nepal (Federação de
ONGs do Nepal) • Nicarágua: CCER (Coordenação Civil para a Emergência e a Reconstrução), ccer@ccer.org.ni • Nigéria: SRI – Socio Economic Rights Initiative (Iniciativa pelos Direitos
Socioeconômicos), s_watchngr@yahoo.com; Center for Human Rights and Development (Centro de Direitos Humanos e Desenvolvimento); Civil Resources Concern; CP – Concerned Professionals
(Profissionais Conscientes); Development Support Initiative (Iniciativa de Apoio ao Desenvolvimento); Devnet; Gender & Human Rights/Social Watch – Nigeria (Gênero e Direitos Humanos/Social
Watch – Nigéria); Ledap – Legal Defence and Assistance Project (Projeto de Defesa e Assistência Jurídica); Legislative and Leadership Project (Projeto Legislativo e de Liderança); Nigerian
Habitat Coalition (Coalizão Nigeriana do Habitat); Peoples’ Rights Organization (Organização dos Direitos dos Povos); Project Alert for Women’s Rights (Projeto Alerta pelos Direitos da Mulher);
Rural Women Empowerment Network (Rede de Empoderamento das Mulheres Rurais); Ruwen – Rural Women of Nigeria (Mulheres Rurais da Nigéria); South East Budget Network (Rede de
Orçamento do Sudeste); Transition Monitoring Group (Grupo de Monitoramento da Transição), Lagos State Branch; Uyo Youths Foundation (Fundação de Jovens de Uyo) • Palestina: Bisan
Center for Research and Development (Centro Bisan de Pesquisa e Desenvolvimento), bisanrd@palnet.com; Palestinian Non-Governmental Organisations’ Network – PNGO (Rede de ONGs
Palestinas) • Panamá: Fundação para o Desenvolvimento da Liberdade Cidadã, seção panamenha da Transparência Internacional, tipanama@cableonda.net; Ceaspa (Centro de Estudos e
Ação Social Panamenho) • Paquistão: Indus Development Foundation (Fundação de Desenvolvimento de Indus), qureshiaijaz@hotmail.com • Paraguai: Decidamos, direccion@decidamos.org.py;
Base-Ecta (Educação, Comunicação e Tecnologia Alternativa); CDE (Centro de Documentação e Estudos); Cepag (Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch); Equipe de Educação em D. H.;
Fé e Alegria Movimento de Educação Popular Integral; Ñemonguetara Programa de Educação e Comunicação Popular; Presencia Projeto de Formação e Capacitação da Mulher para a Vida Cívica;
Seas – AR (Serviço de Educação e Apoio Social); Sedupo (Serviço de Educação Popular); Serpaj – PY (Serviço Paz e Justiça do Paraguai); Tarea • Peru: Conades (Comitê de Iniciativa; Grupo de
Ação Internacional), hecbejar@yahoo.com; Ceas (Comissão Episcopal de Ação Social); Cedep (Centro de Estudos para o Desenvolvimento e Participação); Grupo de Economia Solidária e
Associação Nacional de Centros; Grupo Gênero e Economia Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Comitê Peru; Rede Jubileu 2000 • Portugal: Oikos, Cooperação e Desenvolvimento,
sec.geral@oikos.pt • Quênia: Social Development Network (Rede para o Desenvolvimento Social), sodnet@sodnet.or.ke; Action Aid Kenya; Beacon; CGD (Centro de Governança e Desenvolvimento);
Coalition Forum on Justice (Fórum da Coalizão sobre a Justiça); Daraja – Fórum de Iniciativas Cívicas; Econews Africa; Education Rights Forum (Fórum de Direitos Educacionais); Femnet (Rede
de Comunicação de Mulheres Africanas); Kendren – Kenya Debt Relief Network (Rede de Redução da Dívida do Quênia); Kenya Human Rights Commission (Comissão de Direitos Humanos do
Quênia); Kenya Land Alliance (Aliança Queniana pela Terra); Kewwo – Kenya Women Workers Organisation (Organização das Mulheres Trabalhadoras do Quênia); People Against Torture (Povo
contra a Tortura); Public Law Institute (Instituto de Direito Público); Release Political Prisoners (Soltem os Presos Políticos); Seatini – Southern and Eastern African Trade Information and
Negotiations Initiative (Iniciativa de Informação, Negociação e Comércio do Sul e Sudeste da África); Ujamaa Centre (Centro Ujamaa); Undugu Society (Sociedade Undugu) • República Theca:
Ecumenical Academy Prague (Academia Ecumênica de Praga), tozicka@mybox.cz • Romênia: Civil Society Development Foundation (Fundação para o Desenvolvimento da Sociedade Civil),
carmen-e@fdsc.ro • Senegal: Enda Tiers-Monde, enda@enda.sn; Adesen – Association Pour le Développement Économique Social Environnemental du Nord (Associação pelo Desenvolvimento
Econômico, Social e Ambiental do Norte) • Síria: Environmental Tourism Culture Centre – ETCC (Centro de Cultura do Turismo Ambiental), issamkh@hotmail.com • Sri Lanka: Monlar –
Movement for National Land and Agricultural Reform (Movimento pela Reforma Agrária e Agrícola Nacional), monlar@sltnet.lk • Sudão: National Civic Forum (Fórum Cívico Nacional),
h_abdelati@hotmail.com • Suíça: Swiss Coalition of Development Organisations/Coalizão Suíça de Organizações de Desenvolvimento (Bread for All, Caritas, Catholic Lenten Fund, Helvetas,
Interchurch Aid, Swissaid), mail@swisscoalition.ch • Suriname: Stichting Ultimate Purpose, maggiesc@yahoo.com; Cafra Suriname (National Department of Caribbean Association for
Feminist Research and Action/Departamento Nacional da Associação Caribenha pela Pesquisa e Ação Feminista) • Tailândia: Focus on the Global South (Foco no Sul Global), ranee@focusweb.org;
Arom Pongpangan Foundation (Fundação Arom Pongpangan); Center for Social Development Studies (Centro de Estudos sobre o Desenvolvimento Social); Chulalongkorn University Social
Research Institute (Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Chulalongkorn); Foundation for Children’s Development (Fundação para o Desenvolvimento da Criança); Foundation for
Women (Fundação para as Mulheres); Frontiers for the Advancement of Women (Fronteiras para o Progresso das Mulheres); Political Economy Center (Centro de Economia Política); Thai
Development Support Committee (Comitê de Apoio ao Desenvolvimento Tailandês) • Tanzânia: WLAC – Women’s Legal Aid Center (Centro de Assistência Jurídica da Mulher), wlac@raha.com;
Afreda (Ação para a Assistência de Desenvolvimento Emergencial); African Youth Development Alliance, Tanzânia Chapter (Aliança Africana para o desenvolvimento da Juventude, Filial Tanzânia);
Anistia Internacional (Tanzânia); APT – Association for the Prevention of Torture (Associação para a Prevenção da Tortura); Center for Social Ethics (Centro de Ética Social); Chawata (Chama cha
Walemavu Tanzania); CHRP (Centro para a Promoção dos Direitos Humanos); Dolased; Envirocare – Environment, Human Rights Care and Gender Organization (Organização pelo Ambiente,
Direitos Humanos e Gênero); Envirohuro – Environment and Human Rights Organization (Organização do Ambiente e Direitos Humanos); Federation of Women Economists in Tanzânia (Federação
das Economistas de Tanzânia); JET – The Journalists’ Environmental Association of Tanzânia (Associação Ambiental dos Jornalistas da Tanzânia); Kagde – Kagera Group for Development (Grupo
Kagera para o Desenvolvimento); Kiwahato (Kikundi cha Haki za wanawake na Watoto); Kiwashe (Kituo cha Wasaidizi wa Sheria); Koshika Women Group (Grupo de Mulheres Koshika); Kuleana –
Center for Children’s Rights (Centro dos Direitos da Criança); Kwieco – Kilimanjaro Women Information Exchange and Consultancy Organization (Organização para o Intercâmbio de Informações
e Consultoria das Mulheres de Kilimanjaro); LHRC – Legal and Human Rights Center (Centro de Assistência Jurídica e Direitos Humanos); Mbezi Biogas and Environment Conservation (Conservação
do Biogás e do Ambiente de Mbezi); Mwanza Women Development Association (Associação pelo Desenvolvimento das Mulheres de Mwanza); NYF – National Youth Forum (Fórum Nacional da
Juventude); TWG – Taaluma Women Group (Grupo de Mulheres de Taaluma); Tahea – Tanzania Home Economic Association (Associação de Economia Doméstica de Tanzânia); Tahuret – Tanzania
Human Rights Education Trust (Fundo para a Educação de Direitos Humanos da Tanzânia); Tamwa – Tanzania Media Women Association (Associação de Mulheres da Mídia de Tanzânia); Tanga
Paralegal Aid Scheme (Plano de Assistência Jurídica de Tanga); Tango; Tanzania Human Rights Association (Associação de Direitos Humanos da Tanzânia); Tawla – Tanzania Women Lawyers
Association (Associação de Advogadas da Tanzânia); Tawova – Tanzania Women Volunteers Association (Associação de Voluntárias da Tanzânia); Tayoa – Tanzania Youth Association (Associação
da Juventude da Tanzânia); TCRC – Tanzania Conflict Resolution Center (Centro de Resolução de Conflitos de Tanzânia); TGNP; UNA – United Nations Association (Associação das Nações Unidas);
Wamata (Walio katika Mapambano na Ukimwi Tanzania); WAT – Women Advancement Trust (Fundo para o Progresso da Mulher); WiLDAF – Women in Law and Development in África (Mulheres na Lei e
no Desenvolvimento na África); Women’s Research and Documentation Project (Projeto de Pesquisa e Documentação da Mulher); Zahura – Zanzibar Human Rights Association (Associação de
Direitos Humanos de Zanzibar) • Tunísia: LTDH – Tunisian League for Human Rights (Liga Tunisiana de Direitos Humanos), sjourshi@lycos.com • Uganda: Deniva (Rede de Desenvolvimento
da Associação Voluntária de Indígenas), deniva@utlonline.co.ug; Action Aid Uganda; Africa 2000 Network (Rede África 2000); Centre for Basic Research (Centro de Pesquisa Básica); Fort Portal
(Portal Fort); International Council on Social Welfare (Conselho Internacional do Bem-estar Social); Kabarole Research Centre (Centro de Pesquisa Kabarole); MS Uganda; Nurru; Rural Initiatives
Development Foundation (Fundação para o Desenvolvimento de Iniciativas Rurais); Sodann – Soroti District Association of NGOs Network (Associação de Rede de ONGs do Distrito de Soroti); Tororo Civil
Society Network (Rede da Sociedade Civil de Tororo); Uganda Debt Network (Rede da Dívida de Uganda); Uganda Rural Development and Training Programme (Programa de Desenvolvimento
Rural e Treinamento de Uganda) • União Européia: Eurostep (Solidariedade Européia para a Participação Igualitária do Povo), sstocker@eurostep.org • Uruguai: CNS Mujeres por Democracia,
Equidad y Ciudadania (Comissão Nacional de Seguimento Mulheres pela Democracia, Eqüidade e Cidadania), cnsmujeres@adinetcom.uy • Venezuela: Frente Continental de Mulheres; Comitê
de Base “Juana Ramírez, la Avanzadora”; Rede Popular de Usuárias do Banmujer • Vietnã: Gendcen (Centro de Estudos de Gênero, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável), que@hn.vnn.vn;
Vietnam Women’s Union (Sindicato de Mulheres do Vietnã), vwunion@netnam.org.vn • Zâmbia: WFC – Women for Change (Mulheres pela Mudança), wfc@zamnet.zm
Sumário

Prefácio
Por Fernanda Lopes de Carvalho ........................................................................................................... 9
Apresentação
Sussurros não bastam
Por Roberto Bissio .................................................................................................................................... 11

INFORMES TEMÁTICOS
Promessas quebradas, metas distantes ......................................................................................... 15
Gênero e pobreza: desigualdades entrelaçadas .......................................................................... 27

PANORAMA BRASILEIRO
Entre a política econômica e a questão social
Por Fernando J. Cardim de Carvalho .................................................................................................. 33
Desenvolvimento subordinado ao modelo exportador
Por Adhemar S. Mineiro .......................................................................................................................... 42
Para além da justiça distributiva
Por Amélia Cohn ........................................................................................................................................ 49
A luta continua: o combate ao racismo no Brasil pós-Durban
Por Jurema Werneck ................................................................................................................................ 56
Violência, insegurança e cidadania: reflexões a partir do Rio de Janeiro
Por Márcia Pereira Leite .......................................................................................................................... 66

PANORAMA MUNDIAL
Alemanha
Metas de Copenhague ainda muito distantes .................................................................................. 73
Chile
Menos pobreza, mais desigualdade .................................................................................................... 76
Equador
Bonança petrolífera, escassez de cidadania ..................................................................................... 79
Estados Unidos
Quando o bem-estar social não é prioridade ................................................................................... 82
Indonésia
Por uma definição plural de pobreza .................................................................................................. 85
Moçambique
Vulnerabilidade extrema .......................................................................................................................... 88
Quênia
Sem recursos para financiar o social ................................................................................................. 91

Fontes e recursos internacionais de informação ........................................................................ 94


ONGs de atuação global ........................................................................................................................ 97
Grupo de referência – Brasil .............................................................................................................. 101
Fontes nacionais de informação ...................................................................................................... 102
PREFÁCIO

Há dez anos, foram realizadas duas conferências do chamado melhor das hipóteses, para expor a falta de compromisso
ciclo social da Organização das Nações Unidas (ONU): a Cúpula efetivo de governos nacionais com a questão social. As boas
de Desenvolvimento Social, em Copenhague, e a Conferência da intenções que cercaram a criação da ONU, em 1945, nunca
Mulher, em Pequim. Naquele mesmo ano, surgiu a rede Social foram tão longe a ponto de produzir mecanismos pelos quais as
Watch. Seu objetivo é acompanhar (e cobrar) o cumprimento, decisões ali tomadas pudessem ser efetivamente
por parte dos governos signatários das declarações finais implementadas. Com isso, a aplicação de acordos assinados em
dessas conferências (e das seguintes), dos compromissos seu âmbito depende da disposição de cada governo em fazê-lo.
assumidos naqueles documentos. O resultado de tal trabalho de
monitoramento e cobrança tem sido apresentado nos relatórios Para muitos governos, as conferências pareceram ser pouco
anuais. Nesta décima edição, de número 9,1 intitulada “Rugidos mais que a oportunidade de seus e suas representantes
e Sussurros”, damos continuidade a esse esforço de exibirem dotes de retórica, enquanto suas políticas sociais
informação e mobilização em torno das metas sociais permaneceram, como diz o povo estadunidense, business as
acordadas pela comunidade internacional. usual. Os direitos humanos e o combate à pobreza, à
desigualdade, à discriminação, à exploração entre países e
As conferências do ciclo social multiplicaram-se depois de dentro deles próprios continuariam, em grande medida, tendo
1995, abordando aspectos variados da questão social, mas pouco peso na formulação de políticas econômicas e sociais.
podemos sintetizar seu espírito na definição de iniciativas no Políticas anti-sociais continuaram sendo promovidas em todo o
sentido de erradicar a pobreza e promover a eqüidade de gênero mundo. A busca, por parte dos países pobres, de estratégias
e étnica em todos os países. Essas reuniões buscavam também autônomas de desenvolvimento continuou ativamente
valorizar a ONU como espaço para o debate livre e pacífico entre desencorajada, de modo especial por países mais avançados.
as nações em torno de uma agenda de transformação social. Governos de países em desenvolvimento que, por distração ou
ingenuidade, considerassem as propostas aceitas nas
Apesar de a retórica das boas intenções usualmente exibida conferências como compromissos efetivos acabariam por
por representantes de governos, em reuniões dessa natureza, encarar a reprovação ativa de instituições como o Fundo
refletir-se poucas vezes no comprometimento real com as suas Monetário Internacional, cujos poderes jamais foram tocados
propostas, as conferências sociais tiveram um papel importante por essas conferências.
na mobilização internacional da sociedade civil nestes dez anos.
O trabalho de preparação e acompanhamento das reuniões da Desse modo, o balanço das conferências realizadas nesses dez
ONU, muitas vezes com o apoio da própria instituição, permitiu anos não pode deixar de ser severo. No entanto, para quem não
o aumento do grau de articulação internacional entre organizações tinha ilusões, é preciso reconhecer que, se governos mostraram
da sociedade civil de âmbito nacional, contribuindo para a falta de seriedade de seus compromissos com metas sociais,
busca de espaços próprios de debate, o que gerou iniciativas interna e externamente, a sociedade civil soube se valer delas
como o Fórum Social Mundial e a Chamada Global para a Ação para criar novos mecanismos de articulação, cobrança e
contra a Pobreza (GCAP, na sigla em inglês).2 pressão política. É nesse espírito que a continuidade do
trabalho da rede Social Watch deve ser vista.
Nesses espaços alternativos, tem sido possível examinar com
mais profundidade e persistência o desempenho dos governos A preparação dos artigos do relatório anual do Observatório da
na concretização das metas sociais apresentadas nas Cidadania leva vários meses. Por essa razão, não é incomum que
conferências sociais, bem como formular propostas mais o lançamento de cada edição se dê em contextos políticos, nacional
avançadas de ataque às causas da pobreza e da desigualdade, e internacional, imprevisíveis quando da finalização dos textos.
em todos os seus aspectos. O Brasil, neste segundo semestre de 2005, vive uma crise política
de grandes proporções e de desfecho totalmente incerto. A rapidez
Na verdade, jamais foram alimentadas ilusões quanto à eficácia com que se desdobra e a incerteza de sua solução impedem que
das conferências. Sempre se soube que elas serviriam, na mesmo um balanço provisório de seu impacto possa ser realizado
neste relatório. Vale lembrar que o Observatório da Cidadania,
1 O primeiro relatório foi de número 0. desde sua criação, está voltado para a análise de processos e
2 Ver <www.chamadacontrapobreza.org.br> ou <www.whiteband.org>. políticas de longo prazo, e não para a discussão de conjuntura.

Observatório da Cidadania 2005 / 9


Os Informes Temáticos tratam das diferentes abordagens da Amélia Cohn retoma a discussão sobre a dificuldade de
pobreza na Cúpula de Desenvolvimento Social de Copenhague e na articular políticas sociais e econômicas e a necessidade de as
Declaração do Milênio e apresentam os 11 pontos referenciais para últimas serem ditadas pelos parâmetros dos direitos sociais.
a erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades, Analisa os programas de transferência de renda com
elaborados por organizações da sociedade civil de todo o co-responsabilidade das pessoas beneficiárias, alertando
mundo e encaminhados ao presidente da Assembléia Geral da para as distinções entre “nova” e “velha pobreza” e os
ONU. Um dos artigos reafirma a necessidade de se considerar a desafios de criar redes de proteção social proativas. “Trata-se
ligação intrínseca entre gênero e pobreza nas metodologias de de introduzir na agenda pública a dimensão do bem-estar e da
avaliação da pobreza e na elaboração de estratégias para o seu justiça social, na ótica do acesso a condições concretas que
enfrentamento. Essas análises devem ser complementadas com garantam uma efetiva qualidade de vida dos indivíduos,
a observação dos dados contidos no CD que acompanha este dentre elas sua autonomia como cidadãos e cidadãs
volume, apontando os avanços e retrocessos de 181 países nas portadores(as) de direitos, e por conseqüência, sua
várias áreas de desenvolvimento social. O panorama mundial autonomia frente ao Estado.”
apresenta, ainda, relatórios analíticos da situação de 51 países
preparados pelas coalizões nacionais do Social Watch.3 Um elemento central no que se refere ao enfrentamento da
pobreza e da desigualdade no Brasil é, sem dúvida, a questão
No Panorama Brasileiro, são analisados os fatores responsáveis racial, aqui analisada por Jurema Werneck. A autora inicia o
pela persistência da pobreza e da desigualdade no país. texto lembrando que este é o ano da realização da 1a
O primeiro texto, de Fernando J. C. Carvalho, parte da constatação Conferência Nacional sobre a Desigualdade no Brasil e
de que, dez anos após a Conferência de Copenhague, o Brasil também do início do processo preparatório para a
pouco avançou na abordagem da questão social. Apesar de conferência Durban+5, que ocorrerá em 2006, em Santiago
haver prometido, no documento que encaminhou à conferência, (Chile).4 Com esse cenário em vista, faz uma rápida revisão da
que a questão social não mais teria um tratamento residual, situação da população negra, analisa a agenda de reivindicações
mas, ao contrário, informaria todas as ações governamentais, o do movimento negro e elabora um balanço das ações
país não avançou na superação da dicotomia política econômica governamentais nessa área nos últimos dez anos.
e política social e na promoção de mudanças estruturais para
alterar o perfil de distribuição de riqueza e renda. Enquanto, nos Um tema recorrente do Observatório da Cidadania, violência e
países desenvolvidos, o Estado foi um instrumento de insegurança nas metrópoles, é abordado por Márcia Pereira
redistribuição de renda, taxando proporcionalmente mais a Leite. A autora parte de informações de pesquisa qualitativa,
parcela rica da população, “no Brasil o Estado tornou-se cada baseada em entrevistas com pessoas residentes em favelas,
vez mais um Robin Hood às avessas – transfere rendas às para trazer suas vozes e perspectivas ao debate público sobre
classes médias e altas sob a forma de pagamento de juros”. violência e insegurança. A associação intrínseca entre favelas e
violência estigmatiza e criminaliza moradores e moradoras
No texto seguinte, Adhemar S. Mineiro questiona a forma de daquelas áreas, contribui para aprofundar o preconceito em
inserção comercial internacional do Brasil, baseada na expansão relação a essa população e cria ambiente favorável ao apoio a
de importações de produtos de baixo conteúdo tecnológico e políticas de segurança pública desvinculadas do respeito aos
intensivos em recursos naturais e ambientais. Essa opção pela seus direitos civis e ao pleno acesso à cidade.
expansão das exportações estaria inviabilizando um projeto de
desenvolvimento com inclusão social, fundado na expansão do Fernanda Lopes de Carvalho
mercado interno, além de se constituir numa política de Coordenadora da edição brasileira do Social Watch/
crescimento de curto fôlego. Observatório da Cidadania

4 A 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e


3 Encontram-se no CD que acompanha esta publicação. Intolerâncias Correlatas (CMR) foi realizada em 2001, em Durban, África do Sul.

Observatório da Cidadania 2005 / 10


APRESENTAÇÃO
Sussurros não bastam

“O povo rugiu, mas o G8 apenas sussurrou.” Essa foi a humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres
poderosa metáfora usada por Kumi Naidoo, presidente da e das nações grandes e pequenas”, juntamente com a resolução
Chamada Global para a Ação contra a Pobreza1 (GCAP, na sigla de “promover o progresso social e [...] elevar o nível de vida,
em inglês), ao expressar sua desilusão com o resultado da dentro de um conceito mais amplo de liberdade”.
reunião dos oito dirigentes políticos mais poderosos do mundo
na Escócia, em julho de 2005. Em 1995, quando o fim da Guerra Fria voltou a despertar as
esperanças de que finalmente seriam concretizadas as
Calcula-se que bilhões de pessoas viram os concertos promessas daquele documento, grupos de cidadãos e cidadãs
televisionados do Live 8, no dia anterior à reunião do G8. de todo o mundo se reuniram e criaram o Social Watch, para
Milhares delas enviaram mensagens por correio eletrônico ou apresentar relatórios anuais independentes sobre como os
celulares, exigindo decisões concretas e práticas do G8 contra a governos cumpriam suas próprias normas e promessas.
pobreza: mais ajuda e de melhor qualidade para o Naquela época, como agora, a atenção estava concentrada nas
desenvolvimento, o perdão da dívida para os países que não promessas solenes que fizeram os chefes de Estado de alcançar
podem oferecer serviços sociais básicos a suas populações e a igualdade entre os gêneros e erradicar a pobreza, “fazendo
relações comerciais mais justas. história” às vésperas do século XXI.

As expressões da opinião pública exigindo medidas contra a Este é o décimo relatório do Social Watch. Seu conceito
pobreza foram tão impressionantes que os oito dirigentes essencial não mudou: nossos governantes assumiram
decidiram demonstrar seu compromisso com a causa, compromissos e os cidadãos e as cidadãs têm o direito e a
assinando um comunicado final numa cerimônia pública – algo responsabilidade de exigir que os governos prestem contas de
pouco habitual nas reuniões do G8. No entanto, além de os suas promessas e obrigações legais. O que mudou na última
anúncios oficiais não terem atendido plenamente as esperanças, década foram as ferramentas de controle do Social Watch e a
mesmo antes de secar a tinta do comunicado, o representante amplitude de nossa rede.
dos Estados Unidos no encontro (principal assessor do
presidente George W. Bush) negou ter concordado com O primeiro relatório do Social Watch, de 1996, incluía as
qualquer aumento da ajuda estadunidense. conclusões das ONGs de 11 países. O relatório de 2005 reúne
as conclusões de mais de 50 coalizões nacionais de todos os
Naquele momento, a atenção do mundo estava focalizada nas continentes. Cada informe nacional2 foi composto por
bombas que explodiram no sistema de transporte de Londres. organizações e movimentos que realizam atividades ao longo
Assim, pouca gente se deu conta do enorme rugido, calado de todo o ano sobre os temas de desenvolvimento social.
rapidamente e transformado num sussurro envergonhado. Eles fazem uma reunião anual para avaliar as ações do governo
e seus resultados. Suas conclusões não se propõem apenas
O relatório de 2005 do Social Watch trata precisamente da como pesquisas, mas são usadas para interpelar as
distância que separa as promessas da ação. A pobreza e a autoridades e ajudar a desenhar políticas públicas melhores
discriminação entre os gêneros literalmente matam, e seria possível a favor das pessoas pobres.
evitar milhares de mortes silenciosas ocorridas diariamente.
Os relatórios do Social Watch não são feitos sob encomenda.
Há 60 anos, quando foi criada a Organização das Nações Unidas O tema específico de cada edição é discutido coletivamente e
(ONU), a motivação imediata era “preservar as gerações futuras cada grupo nacional decide suas próprias prioridades e ênfases.
do flagelo da guerra”. Porém, as pessoas visionárias que Os grupos arrecadam seus próprios recursos, usados
escreveram a Carta da ONU em San Francisco já sentiam que a majoritariamente em consultas aos movimentos sociais, para
“segurança coletiva” e a ausência de guerras não bastavam e solicitar provas e validar suas conclusões. O Secretariado
não podiam ser conquistadas sem “reafirmar a fé nos direitos Internacional tem o papel de processar todas essas informações
fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa e editar o relatório mundial. O Comitê Coordenador

2 No Panorama Mundial deste volume, são apresentados os relatórios de sete países.


1 <www.chamadacontrapobreza.org.br> Os demais estão disponíveis no CD que acompanha a publicação.

Observatório da Cidadania 2005 / 11


Internacional do Social Watch, eleito pelas plataformas mesmo as metas mínimas solenemente acertadas por chefes de
nacionais numa assembléia, proporciona orientação e liderança governo e de Estado, durante a Cúpula do Milênio em 2000.
a essa rede. Uma equipe de pesquisadores(as) sociais, radicada
em Montevidéu, sede do Social Watch, obtém as últimas A reunião do G8 na Escócia não gerou o impulso adicional
informações existentes, nacionais e internacionais, e as necessário para avançar na direção de um mundo livre da
processa com metodologias formuladas, testadas e analisadas a pobreza e com igualdade entre gêneros, raças e etnias. Os líderes
fundo nos últimos dez anos, para apresentar as estatísticas de mundiais tiveram nova oportunidade este ano, quando se
cada país e os resumos mundiais incluídos no CD que reuniram para celebrar o 60º aniversário da ONU, em
acompanha esta publicação. setembro, e terão uma última chance quando enviarem seus
ministros à reunião da Organização Mundial do Comércio
Também no CD, é apresentado um Índice de Capacidades (OMC) em Hong Kong, em dezembro.
Básicas – baseado na metodologia originalmente
desenvolvida pela coalizão das Filipinas para monitorar os Ao demonstrar que as promessas anteriores não foram
governos locais – e outro indicador também original: o Índice cumpridas, não fomentamos o ceticismo, porém exigimos
de Eqüidade de Gênero. As conclusões desses índices são ações. A história continua evoluindo. Ainda não foram ditas as
compatíveis com as dos informes nacionais e com a análise últimas palavras, e cidadãos e cidadãs podem, sim, fazer
detalhada de cada uma das dimensões da pobreza e da diferença. O momento de agir contra a pobreza é agora!
desigualdade (educação, saúde, nutrição e habitação).
Infelizmente, conclue-se que, sem uma mudança fundamental Roberto Bissio
nas tendências atuais, simplesmente não serão cumpridas até Secretariado Internacional do Social Watch

Observatório da Cidadania 2005 / 12


INFORMES TEMÁTICOS
Observatório da Cidadania 2005 / 14
Promessas quebradas, metas distantes

A menos que sejam feitas mudanças substanciais, os objetivos estabelecidos para 2015 pelos governos durante a Cúpula do
Milênio não serão alcançados. É o que comprovam os resultados apresentados por mais de 50 países. Em todas as áreas –
saúde, nutrição, educação ou provisão de serviços essenciais, como saneamento –, os avanços foram insuficientes e, com
grande freqüência, não houve nenhum progresso.

Equipe de pesquisa do Social Watch * grande freqüência, simplesmente não houve ne- Em outras palavras, o fato de o mundo só ter
nhum progresso. avançado a metade do necessário para atingir as
São fatos concretos, inquestionáveis. Dife- MDMs significa que a velocidade do progresso em
Nenhuma sociedade pode ser florescente e rentemente das promessas eleitorais de candida- desenvolvimento social vem diminuindo desde 1990
feliz, se a grande maioria de seus membros
tos e candidatas – muitas vezes vagas, genéricas e – a despeito de todas as promessas e declarações.
forem pobres e miseráveis.
difíceis de serem relacionadas a seu cumprimento A coalizão do Social Watch no Quênia desco-
Adam Smith, A riqueza das nações (1776).
real –, a maior parte dos objetivos estabelecidos briu que os gastos governamentais em serviços
Há quase cinco anos, o maior encontro já visto de coletivamente por líderes mundiais durante a Cú- sociais básicos tinham declinado de 20% do orça-
chefes de Estado e de governo fez esta promessa pula do Milênio, em 2000, no que ficou conhecido mento nacional em 1980 para 13% em 1995. Entre
solene aos povos do mundo: “Não pouparemos como as Metas de Desenvolvimento do Milênio 1997 e 2001, o país gastou 52% da receita total
nenhum esforço para libertar nossos semelhantes (MDMs), refere-se a objetivos e indicadores muito governamental com pagamentos da dívida.
– homens, mulheres e crianças – das condições concretos. Ao avaliar a evolução desses indica- O número de crianças que morrem antes de
abjetas e desumanizadoras da pobreza extrema”.1 dores, comparando com a posição em que cada seu primeiro aniversário não constitui somente uma
Já passaram quase dez anos desde que as lideran- país deveria estar para cumprir os objetivos fixa- das MDMs, mas é também um indicador válido de
ças mundiais assumiram o compromisso solene em dos para 2015, a conclusão inevitável é que, sem como um país se desenvolve. Três de cada quatro
Copenhague com “a meta de erradicar a pobreza do uma grande melhoria das tendências atuais, essas países para os quais há dados disponíveis tiveram
mundo, por meio de ações nacionais decisivas e metas não serão alcançadas. desempenho pior nos últimos 15 anos do que nas
da cooperação internacional, como um imperativo décadas de 1970 e 1980. Em 80% dos países, a
ético, social, político e econômico da humanidade”.2 Metas de Desenvolvimento do Milênio mortalidade de crianças menores de 5 anos estava
Essa é uma agenda ambiciosa. Tão ambiciosa caindo mais rapidamente antes de 1990.
que foi comparada por muitas lideranças à tarefa 1. Erradicar a pobreza extrema e a fome
Uma das metas do milênio é que todas as
histórica da abolição da escravatura no século XIX. 2. Atingir o ensino primário universal crianças estejam na escola aos 5 anos. No entanto,
Inspirados pela Declaração de Copenhague e pela 3. Promover a igualdade entre os gêneros o avanço da escolarização também teve seu ritmo
Plataforma de Ação de Pequim sobre a igualdade e empoderar as mulheres reduzido desde 1990. As regiões que progridem
entre os gêneros,3 grupos de cidadãos e cidadãs 4. Reduzir a mortalidade infantil em termos de freqüência às aulas na escola pri-
de todas as partes do mundo se juntaram para 5. Melhorar a saúde materna mária são a América Latina e a Europa, que já esta-
formar a rede do Social Watch. Desde então, todos 6. Combater o HIV/Aids, a malária vam em situação melhor em termos comparativos.
anos vem sendo publicado um relatório detalhado e outras doenças Paradoxalmente, nesse mesmo período, a edu-
para monitorar o cumprimento dos compromissos cação universitária cresceu de forma intensa em
7. Garantir a sustentabilidade ambiental
internacionais dos governos. todas as regiões do mundo. Isso aponta para o
8. Estabelecer uma parceria global para
Os resultados apresentados pelas coalizões cenário social real da última década: desigual-
o desenvolvimento
nacionais do Social Watch em mais de 50 países dade crescente. As elites estão em melhor situa-
e a análise dos indicadores disponíveis coincidem O que deu errado? Os objetivos eram exa- ção em toda parte. No lugar de vermos a dimi-
num ponto: em grande medida, as promessas não nuição da pobreza, somos testemunhas de um
geradamente ambiciosos ou irrealistas? Jan
foram cumpridas. A menos que, em breve, sejam Vandemoortele, que ajudou a estabelecer esses crescente hiato social.
feitas mudanças substanciais, os objetivos esta- objetivos quando trabalhou no Fundo das Nações Por exemplo, nas Filipinas, a coalizão do
belecidos para o ano 2015 não serão alcançados. Social Watch informa que a relação entre a renda
Unidas para a Infância (Unicef) e que, agora, é o
Em todas as áreas – saúde, nutrição, educação funcionário de mais alto nível do Grupo de Desen- do quintil mais rico da população e do quintil mais
ou provisão de serviços essenciais, como sanea- volvimento da Organização das Nações Unidas pobre era de 13 para um em 1990. Em 2000, essa
mento –, os avanços foram insuficientes e, com distância aumentou para 16 para um.
(ONU) encarregado de monitorar as MDMs, não
concorda com isso: “Em geral, os objetivos quan- Na Colômbia, que tem a segunda taxa mais
titativos foram estabelecidos com base na pre- alta de desigualdade do continente, depois do
* Karina Battyány (coordenadora), Marina Sol Cabrera, missa de que os avanços observados nas décadas Brasil, os 10% mais ricos dos domicílios tiveram
Graciela Dede, Daniel Macadar e Ignacio Pardo. de 1970 e 1980, em nível global, seriam manti- uma renda 30 vezes mais alta do que os 10% mais
1 Cúpula do Milênio, Nações Unidas, Declaração do pobres. Segundo os grupos locais do Social
dos nos 25 anos seguintes, de 1990 a 2015.
Milênio, parágrafo 11. Nova York, setembro de 2000.
Por exemplo, se os avanços na sobrevivência Watch , essas disparidades são ainda maiores nas
2 Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social,
infantil tivessem continuado como naquelas dé- áreas rurais, onde o conflito armado desloca cam-
Declaração de Copenhague sobre Desenvolvimento
Social, Compromisso 2. Copenhague, março de 1995. cadas, a taxa global de mortalidade infantil em poneses e camponesas de seus lares e terras.
3 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher. Declaração e 2015 seria dois terços menor do que em 1990” Tanto nos países ricos como nos pobres, os
Plataforma de Ação de Pequim. Pequim, setembro de 1995. (Vandemoortele, 2005). avanços da igualdade entre os gêneros são ainda

Observatório da Cidadania 2005 / 15


mais lentos. O sindicato da indústria metalúrgica aumentar sua ajuda ao desenvolvimento, uma das
alemã, IG Metall, faz referência ao “progresso a mais baixas, em termos per capita.
passo de cágado”. Observou o relatório nacional do Em setembro de 2005, monarcas, presidentes
Social Watch da Alemanha: “Caso os salários das e primeiros-ministros de todo o mundo se reuni-
mulheres na Alemanha Ocidental continuem a se ram novamente, desta vez na sede das Nações
aproximar dos salários dos homens no mesmo Unidas em Nova York, para avaliar sua gestão a
ritmo dos últimos 40 anos, serão necessários no respeito do cumprimento dos objetivos da Decla-
mínimo outros 40 anos para que as trabalhadoras ração do Milênio. Kofi Annan, Secretário Geral da
de atividades administrativas e intelectuais, e muito ONU, encorajou os líderes mundiais a atuar com
mais de 70 anos para as que realizam tarefas ma- audácia e em três direções: paz e segurança, direi-
nuais possam alcançar seus colegas masculinos.” tos humanos e democracia, e desenvolvimento
É um paradoxo clamoroso que os avanços e erradicação da pobreza. Infelizmente, os re-
mensuráveis em saúde, educação, saneamento e sultados da cúpula frustraram mesmo as mais
promoção das mulheres tenham diminuído de modestas expectativas.
ritmo imediatamente após o fim da Guerra Fria,
quando se esperava um grande “dividendo da paz”
e quando as lideranças políticas eram unânimes em
expressar seu compromisso com a luta contra a
pobreza e também quando o público, talvez como
resultado da expansão das comunicações globais,
mostrou sua generosidade, como na impressio-
nante “onda de solidariedade” que ocorreu logo
após o trágico tsunami de dezembro de 2004.
Uma campanha internacional pela cidadania,
a Chamada Global para Ação contra a Pobreza, foi
lançada, em janeiro de 2005, para exigir mais ajuda
oficial (e de melhor qualidade) a países mais po-
bres, justiça nas relações comerciais e cancela-
mento das dívidas como requisitos para cumprir
as metas que foram acordadas no plano interna-
cional. No Reino Unido, a campanha adotou o
ambicioso lema: “Façamos da pobreza uma coisa
do passado” (Make Poverty History).
Com a esperança de que o G8 (os oito países
mais poderosos do mundo cujos governantes se
reuniram na Escócia, em julho passado) tomas-
sem medidas reais contra a pobreza, milhões de
pessoas ostentaram faixas brancas, o símbolo da
campanha, e um grupo de celebridades organi-
zou a série de concertos “Live8”, televisionados
simultaneamente em todo o mundo, o que pode
ter resultado na maior audiência da história para
um evento. Em contraste com os concertos simi-
lares de “LiveAid” há 20 anos, a intenção não foi
arrecadar dinheiro para pessoas pobres, e sim
motivar seus governos a criarem condições que
permitam e esses cidadãos e cidadãs e a seus
países ganharem a vida de forma digna.
Em anos anteriores, manifestantes contra a
globalização ou “altermondialistes” (para usar sua
própria denominação em francês) procuraram
impedir as reuniões do G8, por acreditarem que
nada de bom resultaria de um encontro de homens
poderosos que não prestam contas a ninguém.
Algumas das reuniões, terminaram antes do pre-
visto, devido a distúrbios causados pelas legiões
que impediam a passagem nas ruas. Este ano, em
julho, nem sequer as bombas que explodiram em
Londres alteraram a reunião dos governantes, mas
as decisões adotadas não chegaram nem perto
das esperanças mais realistas. Poucas horas depois
de assinar o documento que se duplicava a ajuda
a África até 2010, o governo dos Estados Unidos
negou ter assumido um novo compromisso para

Observatório da Cidadania 2005 / 16


Pobreza e globalização
O que queremos dizer quando falamos sobre pobreza?

De acordo com o Programa de Ação da Cúpula ser vista como privação de capacidades básicas, milhão a mais do que em 2002). Na União Euro-
sobre Desenvolvimento Social, e não meramente como renda baixa” (Sen, 1999). péia, cerca de 70 milhões de pessoas eram con-
O Social Watch demonstrou ser possível usar tadas como pobres, das quais 5 milhões viviam
a pobreza tem várias manifestações, dentre
elas: a ausência de renda e recursos um índice de capacidades que não inclua a renda abaixo da linha internacional de pobreza. Na Amé-
produtivos suficientes para assegurar uma para refletir a situação dos países de forma consis- rica Latina, existem mais 200 milhões de pessoas
subsistência sustentável; fome e desnutrição; tente com o Índice de Desenvolvimento Humano vivendo na pobreza, partindo-se mais das defini-
saúde precária; acesso limitado ou inexistente (IDH) utilizado pelo Programa das Nações Unidas ções nacionais oficiais do que dos critérios interna-
à educação e a outros serviços básicos; para o Desenvolvimento (Pnud), tendo a vantagem cionais. Nos países de renda mais baixa, as defini-
crescente morbidade e mortalidade causadas
de permitir o monitoramento por província e muni- ções do Banco Mundial muitas vezes se tornaram
por doenças; ausência de habitação ou
habitação inadequada; ambientes inseguros; cípio. Entretanto, os índices refletem médias e não as oficiais, principalmente por causa da enorme
discriminação social e exclusão. Também é permitem contar as pessoas pobres. dependência desses países dos empréstimos em
caracterizada por falta de participação nos condições favoráveis e doações do Banco, o que,
processos decisórios e na vida civil, social e A contagem das pessoas pobres por outro lado, facilmente se traduz em depen-
cultural. A pobreza ocorre em todos os países: A cifra de 1,3 bilhão de pessoas pobres publi- dência da ideologia dessa instituição.
de maneira generalizada, em muitos países em
cada pelo Banco Mundial obteve sucesso instan- Para piorar as coisas, a maioria dos indica-
desenvolvimento; como bolsões no meio da
riqueza, em países desenvolvidos; com o tâneo e tem sido citada ad nauseam em qualquer dores de pobreza, incluindo aqueles não-baseados
resultado da perda dos meios de subsistência publicação ou discurso relacionado à pobreza. somente na renda, mas também na satisfação
resultante da recessão econômica; de forma No entanto, o Banco Mundial tem sido acusado de das necessidades básicas, estão fundados em
súbita, resultante de desastres ou conflitos; usar uma metodologia que subestima o número pesquisas domiciliares que consideram a família
atingindo trabalhadores e trabalhadoras com
de pessoas pobres (Reddy e Pogge, 2003), basi- como uma unidade e assumem que todos os
baixos salários; e levando à total miséria as
pessoas que ficaram fora dos sistemas de camente porque se baseia no “poder de compra membros de um domicílio partilham igualmente
apoio familiares, das instituições sociais e das paritário” das moedas locais, que é ajustado de a renda e os recursos disponíveis – não impor-
redes de proteção social.4 acordo com os preços médios nacionais, e não tando a idade nem o gênero. O resultado é uma
O Programa de Ação ainda enfatiza que a segundo os preços realmente pagos pelas pes- subestimação do número de mulheres que vivem
“pobreza absoluta é uma condição caracterizada soas que vivem na pobreza. na pobreza, pois muitas delas não conseguem
pela privação severa das necessidades humanas bá- O indicador de US$ 1 por dia também é satisfazer suas necessidades básicas, mesmo vi-
sicas, incluindo alimentação, água potável, sanea- inapropriado para muitas regiões do mundo. Na vendo em famílias que estão acima da linha de
mento, saúde, habitação, educação e informação. América Latina, a Comissão Econômica para a pobreza (Batthyány et al., 2004).
Ela depende não somente da renda, como do aces- América Latina e o Caribe (Cepal) usa US$ 2
so aos serviços sociais”.5 por dia para definir a linha de pobreza extrema. Mundo mais rico, pobres mais pobres
A Declaração do Milênio usa o termo “pobreza Nos Estados Unidos, esse limiar está em torno Precisamos realmente de uma única definição
extrema” provavelmente com o mesmo sentido de US$ 12 por dia. internacional de renda para a pobreza? Para mobi-
utilizado pela Cúpula Social, pois as duas declara- Enquanto os termos pobreza “extrema” ou lizar a opinião pública e fortalecer a vontade polí-
ções citam a cifra de “mais de um bilhão” de pes- “absoluta” tentam definir um mínimo para a sobre- tica requerida na implementação desses compro-
soas na pobreza absoluta ou extrema. No entanto, vivência biológica, o conceito de pobreza real- missos, os indicadores de progresso são, sem
as MDMs combinam referências às necessidades mente utilizado pelas pessoas e que influencia dúvida, necessários. Porém, a velocidade da re-
(alimentação, água) com os meios (renda) quando suas atitudes e decisões é definido socialmente. dução da pobreza pode ser avaliada e comparada
prometem reduzir à metade, até o ano 2015, “a Assim, no Reino Unido, a medida “ Breadline sem que tenhamos de recorrer a uma linha de
proporção de pessoas cujas rendas são menores Britain” define o domicílio como pobre se a maio- pobreza universal única. O que realmente importa
do que US$ 1 por dia” e “a proporção de pessoas ria das pessoas na Grã-Bretanha, na época desse é cada país reduzir a proporção e o número de
que passam fome”, assim como, até essa mesma cálculo, considerava que esse domicílio era pobre. pessoas pobres. Um avanço desse tipo seria coe-
data, reduzir à metade “a proporção de pessoas De acordo com tal medida, a pobreza cresceu no rente com o mandato do Pacto Internacional sobre
sem acesso sustentável à água potável”. Reino Unido de 21% para 24% entre 1991 e 2001. os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que
Ao adotar o indicador popularizado pelo Ban- Mesmo quando o padrão de vida geral se eleva, a não condena o Estado por causa da pobreza de
co Mundial de US$ 1 por dia para definir e medir pobreza também pode crescer, se a sociedade se seus cidadãos e suas cidadãs, mas exige clara-
a pobreza, a Declaração do Milênio se afasta dos tornar mais desigual. mente que “todos os meios apropriados” sejam
pontos de vista da Cúpula Social, assim como da Segundo análise preliminar de pesquisadores aplicados, até mesmo a cooperação internacio-
posição do economista Amartya Sen, ganhador e pesquisadoras do Social Watch, o uso de defi- nal, “no máximo dos recursos disponíveis, de
do Prêmio Nobel, segundo o qual “a pobreza deve nições nacionais de pobreza, no lugar da linha de modo a assegurar progressivamente o pleno
“pobreza extrema” internacional, resultaria num exercício” desses direitos.6
aumento de pelo menos meio bilhão de pessoas
pobres, levando em conta somente países de
4 Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social,
renda média e alta. Em 2003, havia, nos Estados
Programa de Ação, Capítulo II “Erradicação da pobreza”,
parágrafo 19. Copenhague, março de 1995. Unidos, 35,8 milhões de pessoas consideradas
6 Nações Unidas, Pacto Internacional sobre Direitos
5 Idem. oficialmente pobres (12,5% da população; 1,3 Econômicos, Sociais e Culturais, art. 2º, parágrafo 1º.

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Na verdade, o principal uso do indicador de observar quão distantes ainda estamos de que são uma expressão das necessidades mais
US$ 1 por dia é ideológico e político. Esse indica- concretizar esse potencial. O atual processo urgentes. No entanto, concretizar as MDMs não
de globalização está gerando resultados
dor tem levado pesquisadores e pesquisadoras do é somente outra tarefa humanitária para ser
desequilibrados, tanto entre os países como
Banco Mundial a alegarem que a “globalização está no interior deles. A riqueza está sendo enfrentada com um aumento da ajuda oficial
funcionando”, pois parece apontar que a proporção criada, mas um número demasiado grande para os países mais pobres.
de pessoas no mundo vivendo na pobreza está de países e de pessoas não compartilha Na verdade, se a ajuda internacional fosse
declinando num ritmo que torna alcançável a Meta seus benefícios. duplicada amanhã, o atual sistema macroeconô-
1 de Desenvolvimento do Milênio (MDM 1). O motivo disso já estava claro há 250 anos mico não permitiria que ela fosse gasta. O Banco
Quando examinamos os números mais deti- para Adam Smith. Em seu livro A riqueza das na- Mundial e os bancos de desenvolvimento regio-
damente, descobrimos que, mesmo de acordo ções, ele afirmava: “Em toda parte é sempre muito nais já possuem mais dinheiro disponível do que
com aquele indicador, a pobreza extrema não vem mais fácil a um rico comerciante obter o privilé- os países são capazes de absorver, segundo as
declinando e está até mesmo crescendo na África, gio de comerciar numa cidade corporativizada do regras do Fundo Monetário Internacional (FMI), e
na América Latina, no Oriente Médio, na Europa que a um pobre artífice trabalhar nela”. E Smith já recebem mais dinheiro dos países pobres do
do Leste e na maior parte da Ásia, com melhorias também escreveu: “Menos numerosos, os mestres que desembolsam para eles!
concentradas no Vietnã, na Índia e na China. Estes podem se unir muito mais facilmente e, além disso, Por exemplo, no período de 2002–2003,
dois últimos países tiverem um crescimento eco- a lei autoriza ou, pelo menos, não proíbe essas Uganda, que enfrenta uma grave crise de Aids,
nômico alto na última década, porém as ten- uniões – enquanto proíbe as dos trabalhadores. quase rejeitou uma doação de US$ 52 milhões
dências de longo prazo da pobreza na China são Não temos leis do Parlamento contra uniões para do Fundo Global de Luta contra a Aids, Tuber-
difíceis de estabelecer por causa da ausência de rebaixar o preço do trabalho, porém possuímos culose e Malária porque procurava respeitar as
séries estatísticas históricas confiáveis, ao passo muitas leis contra a união para aumentá-lo”. estritas limitações orçamentárias que tinha
que na Índia “há boas evidências de que as estima- Nos últimos 15 anos, durante os quais as acordado manter para poder ter acesso aos
tivas oficiais de redução da pobreza são otimis- desigualdades cresceram e os avanços sociais empréstimos do FMI.
tas demais, especialmente para as áreas rurais” diminuíram de ritmo, os direitos das corporações Na recente Conferência Internacional de Aids
(Kozel e Deaton, 2004). transnacionais foram expandidos por acordos em Bangcoc (julho de 2004), especialistas da ONU
A alegação de que a “globalização está fun- comerciais e de investimentos multilaterais, re- exigiram um aumento maciço de financiamento
cionando” cai por terra quando se leva em conta as gionais e bilaterais, sem que houvesse qualquer para os programas de Aids e defenderam que
questões de eqüidade. De acordo com o professor aumento paralelo nas suas obrigações, nos di- US$ 20 bilhões fossem fornecidos aos países em
James K. Galbraith, diretor do Projeto Desigual- reitos dos trabalhadores e trabalhadoras ou dos desenvolvimento até 2007. Contudo, o relatório
dade da Universidade do Texas, governos dos países em que essas corporações publicado em outubro de 2004 por quatro das
operam. O capital pode se deslocar muito mais maiores agências humanitárias (ActionAid, 2004)
o ‘elemento global’ da desigualdade interna
dos países foi estável de 1963 até em torno rapidamente do que há dois séculos, mas o mes- argumenta que as políticas do FMI, buscando
de 1971, declinou durante 1979 e depois mo não ocorre com trabalhadores e trabalha- manter a inflação em níveis muito baixos, fazem
cresceu fortemente e continuamente nos 20 doras, que são forçados a competir numa “corrida isso ao custo de bloquear gastos públicos mais
anos seguintes. Esse padrão é muito ao fundo do poço”,NT enquanto os governos se- altos para o combate à Aids. Um grande número
semelhante ao encontrado por Milanovic para de especialistas em economia acha que a infla-
dentos por investimentos competem oferecen-
a desigualdade entre os países. Acreditamos
do mais concessões e isenções fiscais. Regras ção e os gastos públicos podem ser maiores do
que isso revela uma forte evidência de que as
forças macroeconômicas globais e, em desequilibradas criam resultados desequilibrados. que os determinados sistematicamente pelo FMI.
particular, o aumento das taxas de juro, as Isso não deve surpreender economistas neoli- Assim, as políticas do Fundo solapam a luta glo-
crises da dívida, a pressão pela berais, pois é precisamente o que Adam Smith bal contra a Aids.
desregulamentação, a privatização e a observou e previu! O relatório também argumenta que as políti-
liberalização a partir de 1980 contribuíram cas do FMI tornam difícil para os países manter
Se esse é o diagnóstico, ou se reverte a glo-
para o aumento generalizado das
desigualdades econômicas nos países.7 balização ou alguma forma de governança do bem- trabalhadores e trabalhadoras da saúde, que são
estar global é atingida. Uma economia globalizada vitalmente importantes, em conseqüência dos
“Este trabalho, conclui Galbraith, “levanta
que pode garantir uma vida digna para todas as limites impostos pelo Fundo sobre as quantias
inevitavelmente sérias questões sobre o papel da
pessoas, mas não o faz, parece fadada a ser inse- que os países podem gastar com pessoal empre-
governança econômica global no aumento da desi-
gura e politicamente inviável. gado do setor de saúde pública.
gualdade e nas dificuldades presentes no processo
As metas de inflação baixa estabelecidas
de desenvolvimento”. O urgente e o necessário pelo FMI levam diretamente a limitações sobre
Pode-se argumentar que perseguir uma ambi- os orçamentos nacionais dos países pobres, o que
Globalização aumenta a pobreza
ciosa agenda de governança global é um projeto resulta em tetos para os orçamentos nacionais
A Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da
de longo prazo que não responde às necessi- de saúde. “A maior parte dos países gostaria de
Globalização (2004) chegou às mesmas conclusões:
dades urgentes das pessoas desesperadamente aumentar significativamente seus gastos no com-
A economia de mercado global tem pobres e famintas nos dias de hoje. As MDMs, bate à Aids”, afirma Joanne Carter, diretora legis-
demonstrado uma grande capacidade embora certamente não constituam um resu- lativa do Fundo Educacional Results, um grupo
produtiva. Administrada com sabedoria, pode mo de todas as conferências da ONU na década de lobby baseado nos Estados Unidos, cuja ação
produzir um progresso material sem
de 1990 e definitivamente não sejam um subs- está concentrada no combate à tuberculose e
precedentes, gerar empregos mais
produtivos e melhores para todos e contribuir tituto para elas, podem alegar legitimamente outras “doenças da pobreza” nos países em desen-
de forma significativa para reduzir a pobreza volvimento. “Porém, eles desistiram de tentar
no mundo. Porém, também podemos lutar contra o FMI porque sabem que têm de res-
peitar as exigências dos empréstimos do Fundo,
para manter seu acesso à ajuda externa nos níveis
NT Race to the bottom, no original. Descreve a prática de
certas empresas de vender seus produtos pelo menor atuais. Se você vai contra o FMI, arrisca ser cor-
7 University of Texas, Inequality Project, LBJ School, preço possível, reduzindo ao máximo os custos de tado de todas as outras fontes de ajuda externa”
acessível em: <http://utip.gov.utexas.edu>. mão-de-obra. (ActionAid, 2004).

Observatório da Cidadania 2005 / 18


Impostos em debate estrutura. Segundo um grande número de eco- de revisar a aplicação do Acordo sobre Aspectos
Na defesa de suas regras, o FMI tem argumen- nomistas, esses são investimentos que rendem dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacio-
tado que a ajuda internacional não pode ser con- melhor, e mais rapidamente, do que os grandes nados ao Comércio (Trips).
tada como uma fonte confiável de receita (como, projetos de desenvolvimento convencionais. Não existe um supremo tribunal mundial para
por exemplo, os impostos) para apoiar gastos decidir o que deve prevalecer quando há conflitos
correntes por causa de sua volatilidade e seu Promessas e mais promessas entre os direitos humanos e as regulamentações
caráter não-contratual. Isso coloca a bola de Essas idéias, juntamente com a exigência de uma comerciais. Os defensores dos acordos de comér-
volta ao campo dos países doadores e os desafia maior participação dos países em desenvolvi- cio e investimento e da OMC tentam fazer pressão
a redefinir os fluxos para os países em desenvol- mento no processo decisório das instituições de para priorizá-los em relação a outros tratados e
vimento, de modo que sejam previsíveis, confiá- Bretton Woods, já estavam presentes nas discus- normas nos principais fóruns internacionais: a im-
veis e não-voláteis. Foi exatamente esse o foco sões em torno do Consenso de Monterrey, que plementação da Cúpula de Johannesburgo sobre
de mais de cem países, reunidos no dia 20 de resultou da Conferência sobre Financiamento do Desenvolvimento Sustentável, o tratado contra o
setembro de 2004, em Nova York, ao exigirem a Desenvolvimento (2002). Entretanto, essas pro- tabaco ou as atuais negociações em torno da pro-
análise de novos mecanismos para financiar a messas ainda esperam para serem cumpridas, da teção da diversidade cultural. No momento, só é
erradicação da pobreza, proposta bloqueada pelo mesma forma que a promessa feita em Doha de possível ter coerência em nível de chefes de Estado
veto de um único país. iniciar uma rodada de desenvolvimento a fim de e de governo. Isso torna a Segunda Cúpula do
Confrontados com essas duras restrições tornar as regras do comércio mais favoráveis aos Milênio tão importante.
impostas externamente a seus orçamentos para países em desenvolvimento. Nenhuma dessas
o desenvolvimento e para as urgências sociais, promessas foi ainda concretizada. Ao contrário,
os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (do Bra- esses países estão sofrendo exigências adicionais
sil) e Néstor Kirchner (da Argentina) assinaram, em seus setores de serviços, com implicações
em 16 de março de 2004, o Ato de Copacabana, diretas na provisão de serviços básicos para as
conhecido formalmente como a Declaração sobre pessoas pobres, como um “preço” por conces-
a Cooperação para o Crescimento Econômico sões nas áreas agrícolas ou têxteis.
com Eqüidade, no qual denunciam uma “contra- De fato, cada uma das avaliações anuais
dição no atual sistema financeiro internacional dessas promessas que o Social Watch vem reali-
entre o desenvolvimento sustentável e seu finan- zando desde 1996 demonstrou que, em geral, os
ciamento”, pela ausência de “mecanismos ade- países em desenvolvimento estiveram mais perto
quados para a solução de crises”, e estabelecem de cumprir seus compromissos do que os países
um vínculo entre finanças e comércio, consi- desenvolvidos. Além disso, outras avaliações inde-
derado como “crucial” para o crescimento. Para pendentes mostram que, entre os países desenvol-
modificar o sistema, eles concordaram em “ne- vidos, os membros do G7 são aqueles que estão
gociar com instituições de crédito multilaterais mais atrasados no cumprimento das promessas.
de modo que não prejudique o crescimento e A adoção de compromissos, metas e objetivos
garanta a sustentabilidade da dívida, permitindo com prazos por parte da comunidade internacional
os investimentos em infra-estrutura”. possibilitou o estabelecimento de referenciais
Quando uma corporação privada investe em (benchmarks), com os quais governos e governan-
infra-estrutura, isso é contabilizado como criação tes podem ser julgados objetivamente. Em última
de ativos e somente um pequeno percentual do análise, é o julgamento da opinião pública que tor-
investimento total afeta o balanço anual como na possíveis as mudanças. No entanto, o processo
depreciação. Porém, as contas nacionais somente decisório que fará toda a diferença envolve uma
registram receitas e perdas, e todo o dinheiro multiplicidade de fóruns e instituições, ministros(as)
despendido é registrado como perda. O FMI impõe e funcionários(as) diferentes, com resultados fre-
um teto aos gastos governamentais para gerar um qüentemente contraditórios.
“superávit primário” e garantir a sustentabilidade Por exemplo, em 4 de outubro de 2004, o
da dívida. A proposta de Kirchner e Lula, depois Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da
endossada por todos os ministros da fazenda sul- Criança recomendou enfaticamente aos países da
americanos, foi proceder da mesma forma que as África Meridional a garantia de que “os acordos
corporações privadas: depreciar o investimento regionais e outros acordos de livre comércio não
público em infra-estrutura ao longo de vários tivessem um impacto negativo sobre a implemen-
anos, e não como perda no momento do gasto. tação dos direitos das crianças”. O acordo comer-
O efeito imediato dessa proposta, que atual- cial que está sendo atualmente negociado entre o
mente está sendo estudada pelo FMI, é natural- bloco regional e os Estados Unidos poderia “afetar
mente permitir maiores gastos governamentais. a possibilidade de fornecer às crianças e às outras
No entanto, as implicações de introduzir o con- vítimas do HIV/Aids remédios eficazes de forma
ceito de criação de ativos nas contas nacionais gratuita ou ao menor preço possível”.
têm grande alcance. Isso poderia levar ao fim da Esse tipo de resolução tem implicações glo-
exaustão dos recursos naturais, pois correspon- bais, pois os dispositivos do texto preliminar são
deria a perdas nas contas de ativos. Na proposta comuns a muitos acordos comerciais bilaterais.
argentina original, a formação de “capital huma- Discrepâncias similares entre o direito à vida e os
no” deve também ser isenta dos tetos de gastos direitos de propriedade intelectual das corporações
impostos pelo FMI. Os gastos com saúde e edu- farmacêuticas resultaram em uma declaração em
cação poderiam ser vistos como “investimentos”, Doha e numa extensão desse acordo antes da
do mesmo modo que as despesas com infra- Reunião Ministerial de Cancún, que teve o efeito

Observatório da Cidadania 2005 / 19


Recomendações
Referências da sociedade civil para a revisão de cinco anos
da Declaração do Milênio
No período de 14 a 16 de setembro de 2005, foi A segurança não pode ser garantida pela força. diretamente para gerar a pobreza e para sua ma-
avaliada a implementação da Declaração do Milênio Os conflitos não podem ser resolvidos com armas. nutenção, são aspectos centrais na geração e
à luz dos desdobramentos ocorridos desde sua Somente poderemos ter esperanças de um futuro manutenção da instabilidade.
adoção no ano 2000. Na época de sua adoção, a estável quando confrontarmos seriamente as desi- A revisão da Declaração do Milênio e as po-
declaração era vista como uma agenda para erra- gualdades que nos dividem, promovermos a justi- sições assumidas pelos governos na preparação
dicar a pobreza durante esta geração. ça social e assegurarmos os direitos humanos de dessa revisão serão analisadas à luz desses
A Declaração do Milênio está baseada nos todas as pessoas. eventos. Em setembro de 2005, e durante as pre-
compromissos adotados pela comunidade inter- Não se pode subestimar a urgência de realizar parações para a revisão nos meses precedentes,
nacional na década anterior, em uma série de con- isso. A ameaça muito real da destruição da vida a comunidade internacional teve a oportunidade
ferências e cúpulas, incluindo aquelas que trataram humana na sua forma atual, assim como da flora de confrontar os desafios cruciais de nosso tempo
de meio ambiente, direitos humanos, igualdade e e da fauna, pelo aquecimento global, ainda não foi e estabelecer uma estratégia ambiciosa, necessá-
eqüidade entre os gêneros, desenvolvimento so- enfrentada de forma adequada. O impacto sobre ria para assegurar o futuro do mundo para as pró-
cial, direitos da criança, população, direitos sexuais as pessoas começa a ser sentido, afetando mais as ximas gerações. O reconhecimento de todos os
e reprodutivos, direito à habitação e eliminação comunidades marginalizadas. Embora os efeitos direitos humanos deve ser um princípio diretor.
do racismo e da discriminação. devastadores do tsunami asiático possam não ser O êxito depende do envolvimento de todas as
Como parte de seus compromissos em 1995, resultado de mudança climática, eles certamente partes interessadas.
a Cúpula Social da ONU reconheceu que a erradi- enfatizaram a vulnerabilidade das comunidades Pessoas de todo mundo sabem o que está em
cação da pobreza era possível, e adotou uma estra- quando as forças da natureza são liberadas por jogo. Aquelas que viveram a experiência do tsunami
tégia para alcançar esse objetivo. Tal estratégia mudanças no mundo natural em que vivemos. asiático compreendem a fragilidade da vida. Os re-
se baseou em um conceito de desenvolvimento Sem dúvida, todos compartilhamos a respon- fugiados de Darfur entendem as conseqüências
que não apenas se pautava na pobreza, mas consi- sabilidade de garantir que as ameaças à vida e à da insegurança. As comunidades dizimadas pelo
derava o pleno emprego e a inclusão social as- sustentabilidade de nosso planeta sejam superadas, HIV/Aids lutam pela sobrevivência. Os agriculto-
pectos igualmente importantes. A sociedade civil até mesmo pela adoção de estilos de vidas respon- res e as agricultoras que perderam seus meios de
desempenhou um papel ativo nas conferências sáveis. No entanto, os governos e as pessoas em subsistência, dos quais dependiam suas famílias,
na década de 1990, cobrando os compromissos posição de poder têm uma responsabilidade parti- sabem o que significa a miséria absoluta. Para
adotados pelos governos para promover o desen- cular de assegurar que as práticas promovidas e essas pessoas, e para milhões como elas, as desi-
volvimento por meio da eliminação da pobreza, o permitidas por eles sejam coerentes com a susten- gualdades do mundo têm conseqüências reais.
estímulo ao pleno emprego e a redução da exclu- tabilidade permanente de nosso meio ambiente. Foi com base nesse tipo de experiência que as
são social. Esse compromisso desencadeou no A destruição colossal causada pelo terremoto organizações da sociedade civil de todo o mundo
surgimento de coalizões em todo o mundo que no oceano Índico e o subseqüente tsunami, junta- se uniram na Chamada Global para Ação contra a
controlam ativamente a implementação dos com- mente com suas conseqüências, não somente au- Pobreza em torno de reivindicações políticas bá-
promissos assumidos pelos governos. mentaram a consciência da responsabilidade inter- sicas: mais ajuda e de melhor qualidade para as
Desde a Cúpula do Milênio de 2000, ocorreram nacional, mas também destacaram as diferentes pessoas pobres, justiça nas relações comerciais,
eventos críticos que abalaram a comunidade inter- realidades de segurança para pessoas que vivem cancelamento da dívida e o estabelecimento de
nacional: dos ataques de 2001 contra os Estados em contextos distintos. Isso pode ser contrastado prioridades e políticas na luta contra a pobreza,
Unidos, e as subseqüentes intervenções militares com as conseqüências de outras crises, tais como com prestação de contas à cidadania. Essas idéias
no Afeganistão e no Iraque, ao tsunami asiático. a de Darfur (Sudão), que teve impacto igual sobre levaram à criação de um movimento de opinião
Vem prevalecendo um conceito militar de se- as pessoas diretamente afetadas. Da mesma forma, de grupos comunitários de todo o mundo, ONGs,
gurança que não está baseado numa noção de segu- pode ser contrastado com as mortes silenciosas, sindicatos, indivíduos, grupos religiosos, orga-
rança para todas as pessoas – na segurança huma- porém contínuas, de milhões de pessoas, que po- nizações de mulheres, ativistas dos direitos hu-
na em todas suas dimensões. Ao contrário, promo- deriam ser evitadas. Ao menos, o tsunami aguçou manos e muitos outros. Celebridades, pessoas
ve a segurança para algumas, pela concentração de a percepção pública da complexidade e da reali- que atuam na política, diplomatas e cidadãos(ãs)
poder nas mãos de poucas pessoas. Além disso, ao dade, eticamente intolerável, da desigualdade comuns têm expressado apoio a essas reivindi-
reconhecer publicamente uma doutrina de ação mi- entre as pessoas muito ricas e as muito pobres. cações usando uma pulseira branca, um dos sím-
litar preventiva unilateral, indo à guerra sem autori- Esses eventos destacam a natureza interli- bolos da campanha.
zação da comunidade internacional, com base numa gada do mundo em que vivemos, onde as conse- Quando o embaixador Jean Ping, presidente
decisão do Conselho de Segurança da ONU, os Es- qüências de decisões, ações e acontecimentos da Assembléia Geral da ONU, pediu às organiza-
tados Unidos e seus aliados solaparam os próprios ocorridos numa parte do mundo cada vez mais ções da sociedade civil visões mais específicas e
objetivos para os quais a organização foi criada. têm impacto sobre as pessoas e as comunidades recomendações para a nova Cúpula do Milênio,
Uma ordem mundial unipolar está sendo no plano global. Os eventos também ilustram centenas de organizações e indivíduos endossaram
criada. Nela, o poder dominante promove um claramente as conseqüências das desigualdades uma lista detalhada de 11 “referenciais”, listados
único conjunto de valores que abarcam todos os flagrantes existentes hoje, não somente na distri- a seguir, que resumem essas reivindicações.8
aspectos da vida: econômicos, políticos, cultu- buição de riqueza e renda, como no acesso às
rais, religiosos e éticos. É inevitável que as dife- pessoas que tomam decisões e ao poder, assim
renças sejam reforçadas, fortalecendo as divisões como no acesso aos recursos que sustentam a 8 O documento completo e a lista de signatários estão
e a intolerância geradoras de conflitos. própria vida. Tais desigualdades, que contribuem disponíveis em <www.socialwatch.org>.

Observatório da Cidadania 2005 / 20


Referencial 1: Os governos devem assumir o compromisso além de gerarem um maior controle dos interes-
Da erradicação da pobreza à diminuição de erradicar a pobreza e de alcançar a justiça social. ses corporativos sobre a agricultura e a pesca.
da desigualdade Esse referencial exige: Isso tem causado um crescente empobrecimento
O mundo tem os meios para erradicar a pobreza. • a reafirmação da convicção de que a pobreza de grandes setores das sociedades dos países em
E isso pode e deve ser realizado. A fome, a des- pode ser erradicada, como foi feito há dez desenvolvimento, para os quais não há alternativas.
nutrição e a condenação a uma vida na pobreza anos em Copenhague; A noção de que as medidas para aumentar o
são afrontas à humanidade e uma negação dos • o compromisso de erradicar a pobreza em comércio levariam à erradicação da pobreza não
direitos humanos básicos. Assim, temos a obri- cada um dos países até 2025, com a pobreza tem funcionado, como pode ser comprovado por
gação de erradicar a pobreza e devemos realizar sendo definida em cada país com base nas várias análises estatísticas que cobrem os 20 anos
todos as ações possíveis para garantir que esse diferentes realidades nacionais; decorridos desde a imposição de políticas de libe-
objetivo seja atingido. O que está faltando é a • o compromisso de que as estratégias nacio- ralização do comércio e dos modelos de desen-
vontade política de fazer com que isso aconteça. nais para a erradicação da pobreza sejam volvimento econômico voltadas para a exportação.
A comunidade internacional deve não somente definidas por cada país até 2007, elaboradas Embora os Planos Estratégicos de Redução da
reafirmar seu compromisso com a erradicação da em um processo de consultas transparentes, Pobreza (PRSP, na sigla em inglês)9 do FMI e do
pobreza em todo o mundo no menor prazo possí- com o engajamento ativo das pessoas pobres; Banco Mundial tivessem sido supostamente in-
vel, como cada governo deve reconhecer sua obri- troduzidos para enfrentar esses efeitos negativos,
• a implementação das políticas dedicadas à
gação individual e coletiva de implementar estra- isso não aconteceu.
redução das desigualdades, incluindo aquelas
tégias eficazes para sua erradicação. Em teoria, o objetivo desses planos estraté-
que garantam acesso universal e a custo aces-
A pobreza não é um dado estatístico e não gicos de assegurar que as estratégias de desen-
sível a serviços sociais públicos essenciais
pode ser definida pela renda de US$ 1 ou US$ 2 volvimento de um país fossem focalizadas adequa-
de qualidade, políticas fiscais redistributivas
por dia. Não há benefícios em separar as pessoas damente na pobreza e que a alocação da ajuda
e respeito às normas trabalhistas essenciais;
muito pobres daquelas que estão quase nessa para o desenvolvimento tivesse crescente “con-
• a suspensão das políticas de privatização e trole” do país recipiente estava de acordo com
situação e as pobres dentre as ricas dos países “liberalização” que levam à concentração dos
em desenvolvimento das pobres dentre as ricas espírito da MDM 8 e sua “parceria global para o
recursos em poucas mãos, que, com freqüên- desenvolvimento”. No entanto, a experiência
dos países desenvolvidos. Todas essas situações cia, são estrangeiras;
devem ser enfrentadas. A pobreza está baseada mostra que isso continua longe da realidade e que
• o fortalecimento das exigências de relató- numerosas condições macroeconômicas são
numa distribuição de renda radicalmente desigual,
rios e revisões do Pacto Internacional sobre ainda vinculadas à ajuda.
mas também na distribuição desigual de bens, no
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, para Os empréstimos do Banco Mundial apóiam
acesso desigual a trabalho, emprego, serviços e
assegurar revisões mais freqüentes e com- programas específicos de reformas, que incluem
benefícios sociais, na distribuição desigual do
pletas do cumprimento por parte dos Estados ações (condicionalidades) consideradas críticas
poder político e do acesso à informação e à parti-
de suas obrigações de direitos humanos em para o êxito do programa pelo Banco e pelo FMI.
cipação política. Em grande medida, isso é o re-
relação a seus cidadãos e cidadãs; As negociações de empréstimos são ainda condu-
sultado de desequilíbrios muito bem estabelecidos
e persistentes no funcionamento da economia • o compromisso de informar com regularidade zidas a portas fechadas nos ministérios da fazenda
global. De acordo com a Comissão Mundial sobre ao Conselho Econômico e Social da ONU e nos bancos centrais. As políticas macroeconô-
a Dimensão Social da Globalização, esses dese- (Ecosoc) sobre os avanços na implementação micas fracassadas no passado continuam a ser
quilíbrios são “eticamente inaceitáveis e politi- dessas estratégias. Os primeiros relatórios promovidas. Não é surpreendente que o “controle”
camente insustentáveis”. Com maior freqüência, devem ser apresentados até o ano 2007. das estratégias de desenvolvimento nacional não
as mulheres estão entre as pessoas que sofrem tenha correspondido às suas promessas.
Referencial 2: A retirada do Estado e a privatização da pro-
essas desigualdades.
A desigualdade e a injustiça social são fontes Melhores estratégias para o visão de serviços, como atendimento à saúde,
importantes da instabilidade e dos conflitos nacio- desenvolvimento – o papel das instituições água e educação, nega acesso cada vez mais às
nais e internacionais. Enquanto há pessoas lutan- financeiras internacionais (IFIs) pessoas que não podem pagar por algo que cons-
do em busca de meios de sobrevivência, outras As estratégias de desenvolvimento de um país de- titui um direito humano básico. A globalização e
possuem mais do que o suficiente e, com freqüên- vem estar informadas pelas experiências de seu a liberalização do comércio, a corporativização da
cia, procuram acumular ainda mais. Uma resposta povo. Nas últimas décadas, extensas condições agricultura e outras formas de produção não de-
adequada à pobreza somente será encontrada em macroeconômicas foram vinculadas ao forneci- vem ser os marcos de referência da agricultura.
iniciativas amplas e redistributivas, que confrontem mento de ajuda para o desenvolvimento e de em- Ao contrário, os princípios diretores devem ser:
todos os aspectos da desigualdade, com atenção préstimos, assim como ao cancelamento da dívida, os meios de subsistência locais e sustentáveis, a
particular à sua dimensão de gênero. Uma ênfase com conseqüências desastrosas para o desenvol- segurança alimentar, a regeneração ambiental e
concertada no desenvolvimento social constitui vimento social. As políticas de ajuste estrutural, as preocupações sociais.
uma contribuição fundamental para a erradicação liberalização e privatização aumentaram as desigual- Os governos devem promover estratégias de
da pobreza, focalizada na provisão de saúde bá- dades, tendo impacto mais severo sobre as comu- desenvolvimento baseadas nas necessidades e
sica, educação fundamental, água e saneamento. nidades e famílias que tinham menos acesso a tra- experiências das pessoas.
Alcançar as MDMs na cronologia acordada é so- balho digno e a meios de subsistência sustentáveis. Esse referencial requer:
mente a parte mais urgente do necessário a fazer Para a maioria das pessoas vivendo na po- • o fortalecimento da formulação nacional de
para cumprir essas exigências. breza – entre as quais há um número despropor- políticas públicas, baseadas nas necessidades
A segurança e a estabilidade só podem ser cional de mulheres e crianças –, a agricultura e a e prioridades definidas no plano nacional e iden-
atingidas quando a justiça social for assegurada, pesca são os únicos meios de subsistência viável tificadas por meio de processos participativos.
quando o direito de todas as pessoas aos meios para si próprias e suas famílias. As reformas eco-
de vida – água, saúde, alimento, habitação etc. – nômicas impostas aos países em desenvolvimento 9 Planos Estratégicos de Redução da Pobreza são
for respeitado, e quando todas tiverem acesso têm promovido a produção para a exportação, documentos de políticas exigidos pelo Banco Mundial e o FMI
aos meios de subsistência para si próprias, suas especialmente de produtos primários, cujos preços dos países pobres altamente endividados, como precondição
mundiais vêm declinando de forma dramática, para obter qualquer alívio em suas dívidas externas.
famílias e comunidades.

Observatório da Cidadania 2005 / 21


Isso deve ser definido num marco de referên- ser alcançados, mas não são suficientes. Para atin- Previsões estimam que, até o ano 2050, mais de
cia baseado nos direitos e permitir que os inte- gir a meta de eqüidade entre os gêneros, deve-se 1 milhão de formas de vida terá sido perdido.
resses autodefinidos dos(as) vendedores(as) de entender esse conceito de modo abrangente, não Quando medidas são implementadas, isso
rua, trabalhadores(as) industriais, pescadores(as) podendo ser somente limitado às questões incluí- ocorre de forma lenta e insuficiente, especialmente
e trabalhadores(as) do campo sejam clara- das nas MDMs. Outros aspectos cruciais, como con- se considerarmos as possíveis conseqüências
mente refletidos nas estratégias nacionais de flitos, violência, direitos sexuais e reprodutivos, as- calamitosas. A relutância de algumas nações,
desenvolvimento; sim como os direitos em geral, também devem ser particularmente daquelas desproporcionalmente
• a transparência no processo de estabelecer clara e explicitamente enfrentados. É imperativo que mais responsáveis pelas emissões que causam o
uma estratégia nacional de desenvolvimento as relações entre eqüidade de gênero, erradicação aquecimento global, em assinarem o Protocolo
que apóie a participação efetiva das partes da pobreza e promoção da justiça social sejam de Quioto não deve impedir a execução de ações
nacionais interessadas na formulação de amplamente incorporadas às estratégias futuras. urgentes. Com a entrada em vigor do protocolo em
políticas públicas nacionais; Os governos devem reconhecer plenamente fevereiro de 2005, a implementação da redução
• o estabelecimento de PRSPs que digam res- a centralidade da igualdade e da eqüidade entre das emissões e o financiamento dos compromis-
peito à apropriação real (ownership), por meio os gêneros para o êxito de qualquer estratégia de sos deveriam continuar em caráter de urgência.
de um processo decisório definido nacional- desenvolvimento. Além disso, considerando os indicadores recentes
mente, com participação efetiva da sociedade Esse referencial requer: sobre o ritmo e a profundidade do aquecimento
civil e transparência (accountability) perante • ênfase crescente em atingir a igualdade entre global, deveriam ser estabelecidas rapidamente
os parlamentos nacionais; os gêneros na implementação nacional, regio- novas e mais estritas taxas de redução dos gases
• reformas agrária e aquária realizadas para nal e internacional da estratégia de desen- que causam o efeito estufa.
garantir que agricultores e agricultoras, volvimento, por meio do estabelecimento de Os padrões de desenvolvimento aplicados
pescadores(as) e outras comunidades rurais objetivos significativos e de indicadores para pela humanidade nos últimos três séculos, espe-
tenham acesso, controlem e administrem os medir seus avanços; cialmente nas décadas mais recentes, são a prin-
recursos produtivos. É preciso focalizar espe- • identificação de medidas explícitas para alcan- cipal causa das emissões dos gases estufa respon-
cialmente nas mulheres, assegurando a ma- çar a igualdade entre os gêneros, no contexto sáveis pela mudança climática. As nações ricas,
nutenção de seu controle e acesso a recursos, da MDM 8, especialmente para assegurar que pelo estilo de vida de suas populações, têm gerado
tais como sementes. seja promovida nos PRSPs e na nova arqui- a maior parte dessas emissões. A ameaça que a
tetura da ajuda; mudança climática representa para toda a humani-
Referencial 3: • um acordo entre doadores e seus parceiros dade exige uma resposta conjunta, com a adoção
Alcançar a igualdade e a eqüidade para alocar 10% dos recursos à promoção de medidas radicais imediatas para reduzir essas
entre os gêneros da igualdade entre os gêneros e apoiar ativi- emissões e enfrentar suas conseqüências. A res-
A redução da pobreza e o empoderamento das dades específicas que promovam o empode- ponsabilidade primária de tais ações recai sobre
mulheres estão vinculados de muitas maneiras. ramento das mulheres; grupos que mais se beneficiaram de suas causas.
As mulheres constituem a maioria das pessoas • cada governo deve implementar seus com- Como parte da necessidade urgente de ações
pobres do mundo e muitas vezes suportam a carga promissos de promover a igualdade entre os radicais, as futuras estratégias de geração de ener-
social e econômica de cuidar dos indivíduos mais gêneros assumidos na Convenção sobre a gia devem priorizar fontes seguras, renováveis e
vulneráveis da comunidade, como crianças, pes- Eliminação de Todas as Formas de Discrimi- não-poluentes. Levando em conta a natureza
soas idosas e doentes. As mulheres e as meninas nação contra a Mulher – Cedaw (1978) e na dessa ameaça, que representa perigo para a vida,
que vivem na pobreza também correm mais riscos Declaração e Plataforma de Ação de Pequim os interesses da comunidade global não podem
de se tornarem vítimas da violência de gênero, (1995), assim como de adotar um protocolo ficar reféns daqueles poucos países que não se
têm mais probabilidade de serem infectadas pelo facultativo à Cedaw. unem ao esforço comum.
HIV/Aids, de morrerem ao nascer ou serem ven- Os governos devem tomar medidas urgen-
didas como escravas. Referencial 4: tes e ousadas para enfrentar a mudança climática
As reformas econômicas que desmantelam Tomar medidas urgentes diante e a degradação ambiental do nosso planeta.
as obrigações sociais do Estado e privatizam bens da mudança climática Esse referencial exige:
públicos têm um impacto desproporcional sobre O complexo equilíbrio ecológico de nosso planeta, • o reconhecimento explícito da ameaça grave e
as mulheres e aprofundam a desigualdade entre os que é a base da própria vida, enfrenta ameaças imediata representada pela mudança climática;
gêneros, uma vez que as mulheres são pressiona- sem precedentes, em grande parte como conse- • a implementação imediata das medidas de
das a preencher as lacunas deixadas pelo Estado. qüência das estratégias de desenvolvimento per- redução das emissões incluídas no Proto-
Ao mesmo tempo, as mulheres constituem agentes seguidas pela humanidade. Nossa própria sobre- colo de Quioto;
ativos vitais de qualquer estratégia para erradicar vivência pode depender de ações radicais e ime- • o início urgente das negociações para ime-
a pobreza. Bloquear o acesso pleno e livre das mu- diatas para combater as pressões insustentáveis que diata revisão dos compromissos existentes
lheres ao setor econômico e ao mercado de traba- criamos. Já podemos verificar crescentes ameaças e para um acordo sobre as ações de longo
lho não é somente uma negação de seus direitos às comunidades em todo o mundo. As pessoas prazo, dentro de um marco de referência
humanos básicos, mas também prejudica o de- mais afetadas pelas conseqüências imediatas da global eqüitativo, que evitará os impactos
senvolvimento econômico de um país. A pobreza degradação ecológica e das mudanças ambientais mais perigosos da mudança climática;
não pode ser enfrentada com êxito sem assegurar são as mais vulneráveis – especialmente as comu- • a provisão de recursos financeiros adicionais,
a igualdade de acesso aos meios de subsistência nidades marginalizadas e as que vivem na pobreza. por meio de aumento substancial do nível de
e a eqüidade de oportunidades entre homens e Muitos aspectos do equilíbrio ecológico do financiamento do Fundo Global para o Meio
mulheres. Embora a igualdade e a eqüidade entre mundo precisam ser enfrentados, mas o aqueci- Ambiente (GEF, na sigla em inglês), introdu-
os gêneros sejam objetivos fundamentais em si mento e a mudança climática globais representam ção de taxas de usuário relacionadas às emis-
mesmos, também são requisitos essenciais para uma ameaça significativa. As temperaturas mais sões no espaço aéreo internacional e nos
a erradicação da pobreza. altas já aceleraram o ritmo do degelo das geleiras oceanos, introdução de um imposto sobre o
Os objetivos das MDMs relacionados ao em- árticas, e estudos científicos recentes apontam que combustível de aviação com o objetivo de
poderamento das mulheres (MDMs 3 e 5) devem estarão reduzidas em 50% no fim deste século. compensar os danos climáticos causados

Observatório da Cidadania 2005 / 22


pelo tráfego aéreo e, ao mesmo tempo, acabar canalizadas para países com um histórico de pre- é necessário que haja um aumento substancial
com o subsídio indireto dado à indústria de cário respeito aos direitos humanos e para países da disponibilidade de financiamento para o de-
aviação, pela isenção de impostos sobre o em desenvolvimento que gastam mais com defesa senvolvimento. Isso somente pode ser atingido
combustível de aviação; do que com os serviços sociais básicos, desviando assegurando aumentos reais nas transferências
• medidas para preparar as comunidades mais recursos de áreas como saúde e educação. de financiamento dos países ricos para os mais
vulneráveis diante dos impactos inevitáveis, A comunidade internacional precisa demons- pobres, especialmente nos seguintes aspectos:
assim como medidas para proteger a flora e trar coerência com seus próprios compromissos
a fauna do mundo; de promover a paz e a estabilidade no mundo. • Aumento da ajuda
• o compromisso com o princípio de responsa- Os governos devem assumir o compromisso Para muitos países de baixa renda, a ajuda é a
bilidade comum, porém diferenciada, como foi de reduzir drasticamente os gastos militares e fonte mais importante de financiamento visando
acertado na Declaração do Rio, segundo a qual implementar controles estritos e legalmente vincu- o desenvolvimento e também a única fonte real
as pessoas e os países pagam os custos de latórios sobre a venda de armas. de investimento para a infra-estrutura social bá-
enfrentar a mudança climática em proporção Esse referencial requer: sica, vital quando se quer garantir o bem-estar de
à sua contribuição para os efeitos causadores; • o compromisso vinculatório de pelo menos re- suas populações e enfrentar a pobreza. A ajuda
• o compromisso com o uso crescente de for- duzir à metade os gastos militares de cada país somente será eficaz quando for sustentável e
mas renováveis de geração de energia. até o ano 2015 e utilizar o resultante “dividendo previsível, contribuindo para as estratégias de
da paz” para finalidades sociais e ambientais; desenvolvimento definidas pela própria nação.
Referencial 5: • o compromisso vinculatório de promover o Ela precisa ser livre de vinculações impostas pe-
Impedir a militarização desarmamento geral e de banir todas as ar- los doadores, que não somente distorcem seu
e a proliferação de armas mas nucleares e de destruição em massa; valor, como prejudicam o compromisso da nação
O “dividendo da paz”, que despertou muitas es- • a adoção de um tratado sobre o comércio glo- com as políticas de desenvolvimento.
peranças no fim da Guerra Fria, nunca se concre- bal de armas, que possa fornecer algumas Os governos devem garantir que os níveis
tizou. Surgiram novas formas de militarização, à de ajuda sejam aumentados substancialmente, de
salvaguardas para o que atualmente é um
medida que os governos, os movimentos de opo- mercado desregulamentado. Esse tratado modo que as estratégias de desenvolvimento pos-
sição e outros grupos buscavam impor sua von- asseguraria que todos os governos contro- sam ser implementadas.
tade por meio da força das armas. Qualquer que Em especial, isso exige:
lassem as armas de acordo com as mesmas
fosse a justificativa, as intervenções militares, em normas internacionais; • o compromisso com a duplicação imediata
quase todas as circunstâncias, não resultaram em da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento
• o compromisso de remover milhões de armas
estabilidade. Ao contrário, o resultado tem sido (AOD) até 2006 para financiar as MDMs;
ilegais e excedentes que já estão em circulação;
menos estabilidade, como ocorreu no Iraque. • o compromisso de cada governo doador de
• o compromisso de respeitar a neutralidade e
Além disso, o fornecimento de ajuda humanitá- prover pelo menos 0,7% do seu Produto
a imparcialidade da ajuda humanitária, tanto
ria, que deve estar disponível de forma não-dis- Nacional Bruto (PNB) no máximo até 2015;
em relação à sua distribuição como em relação
criminatória a pessoas diretamente afetadas por • cada governo doador que ainda não alcan-
às organizações humanitárias encarregadas
desastres e conflitos, tem sido cada vez mais asso- çou a meta da ONU deveria ter apresentado
dessa tarefa.
ciado a objetivos militares, por causa do uso de planos na cúpula de setembro sobre como
pessoal militar na distribuição da ajuda. Referencial 6: atingiria essa meta.
O comércio global de armas tem um enorme
O financiamento do desenvolvimento
impacto humano, agravando e sustentando con- • Cancelamento da dívida
É responsabilidade de todos os governos e das
flitos, promovendo a insegurança e solapando o Embora haja um reconhecimento claro de que,
pessoas de toda parte do mundo gerar os recursos
desenvolvimento em algumas das regiões mais para muitos países em desenvolvimento, as obri-
financeiros necessários para alcançar o desenvol-
pobres do mundo. A cada minuto, pelo menos uma gações do serviço da dívida solapam o desenvolvi-
vimento sustentável, no qual as necessidades bási-
pessoa morre em alguma parte do mundo em vir- mento, poucas ações foram realizadas para asse-
cas sejam atendidas e todas as pessoas tenham a
tude da violência armada. Em vários países, recur- gurar que os níveis da dívida fossem sustentáveis.
oportunidade de viver plenamente. As maiores
sos naturais preciosos, como diamantes e cobre, Os governos devem adotar medidas que, de
responsabilidades cabem às nações, corporações
estão sendo explorados em troca de armas utili- uma vez por todas, eliminem os níveis insusten-
e indivíduos mais ricos. Como foi claramente iden-
zadas para cometer atrocidades terríveis. As mu- táveis da dívida para todos os países em desen-
tificado no relatório do Projeto Milênio, os atuais
lheres e as crianças são especialmente vulnerá- volvimento, de renda baixa e média. A sustenta-
níveis de financiamento para o desenvolvimento
veis: jovens e adultas são estupradas sob a ameaça bilidade da dívida precisa ser medida, entre outros
são insuficientes até mesmo para atingir os obje-
de armas, enquanto crianças são usadas como fatores, em relação à necessidade de os países
tivos mínimos estabelecidos nas MDMs. Além
soldados – estima-se que 300 mil lutem em confli- endividados cumprirem as MDMs.
disso, muitas formas de financiamentos, supos-
tos em todo o mundo. A proliferação do comércio Isso exige, em especial:
tamente fornecidos para o desenvolvimento, na
de armas é um exemplo cruel da incoerência das • cancelar completamente as dívidas nos casos
realidade contradizem as metas que promoveriam.
políticas dos doadores internacionais. em que deixar de fazê-lo solaparia a capaci-
Embora reconhecendo a importância crucial do
Os Estados que mais lucram com esse comér- dade do país de atingir as MDMs;
comércio e do investimento na geração dos recur-
cio são os cinco membros permanentes do Conse- • promover um cancelamento substancial de
sos necessários para garantir formas sustentá-
lho de Segurança da ONU, que juntos controlam dívidas de países de baixa e média renda,
veis de desenvolvimento, isso continuará sendo
cerca de 80% das exportações registradas de ar- além da Iniciativa dos Países Pobres Altamen-
insuficiente para os países em desenvolvimento,
mas convencionais. Entre 1998 e 2001, os Estados te Endividados (HIPC, na sigla em inglês);
especialmente para aqueles de baixa renda.
Unidos, o Reino Unido e a França ganharam mais
• estabelecer imediatamente um procedimento
com o comércio de armas do que contribuíram
Geração do financiamento internacional de arbitragem justa e transparente para en-
para a ajuda internacional. Além disso, o relaxa-
para o desenvolvimento frentar as questões de dívidas insustentáveis,
mento dos controles de vendas de armas, depois
Para que a comunidade internacional cumpra seus dando o direito de expressão a todas as partes
do 11 de Setembro, está levando a uma nova proli- interessadas, protegendo as necessidades
compromissos e obrigações de erradicar a pobreza,
feração de armamentos. As armas continuam a ser

Observatório da Cidadania 2005 / 23


básicas dos devedores e instituindo uma especialmente por meio de impostos progressi- dívida, que determinam as políticas comer-
suspensão automática do serviço da dívida. vos e da taxação das corporações. ciais dos países em desenvolvimento;
Esse procedimento deve estar baseado num É necessário que os governos estabeleçam • tratamento especial, efetivo e transparente
organismo decisório neutro, independente sistemas fiscais eqüitativos em cada país. para os países em desenvolvimento no sis-
das instituições financeiras internacionais Em especial, devem: tema de comércio global;
(IFIs), da OMC e de instituições similares; • apoiar o fortalecimento de sistemas fiscais • abolição de toda forma de subsídio dos paí-
• assegurar que o financiamento para o can- progressivos no plano nacional; ses ricos que distorcem o comércio;
celamento da dívida seja adicional à meta do • assumir o compromisso da transparência nos • mais responsabilidade e transparência dos
doador de atingir seu compromisso de for- orçamentos e nas contas nacionais, incluindo governos e das organizações internacionais
necer 0,7% do PNB na AOD; a integração do orçamento de gênero, para em relação às bases populares na formula-
• realizar o cancelamento da dívida sem con- melhorar a prestação de contas dos governos ção das regras do comércio internacional e
dições impostas à política econômica, tais aos cidadãos e às cidadãs locais em relação das políticas nacionais de comércio, assegu-
como privatização e liberalização. ao uso dos recursos; rando a coerência das políticas comerciais
• definir uma convenção internacional para fa- com o respeito aos direitos de trabalhado-
• Instituição de impostos internacionais cilitar a recuperação e repatriação de fundos res e trabalhadoras e, mais amplamente,
Cada vez mais, tem sido reconhecida a necessi- apropriados ilegalmente dos tesouros nacio- aos direitos humanos;
dade de novas formas de financiamento interna- nais dos países em desenvolvimento; • mecanismos internacionais eficazes e transpa-
cional para o desenvolvimento. Agora é necessário • estabelecer um acordo multilateral sobre o com- rentes para apoiar os preços das commodities
que sejam assumidos compromissos para trans- partilhamento eficaz de informações fiscais e compensar os países em desenvolvimento
formar isso em realidade. Muitas das propostas entre os países, para controlar a evasão fiscal. pelas flutuações de preço.
feitas são justificadas e viáveis. Em muitos casos,
a implementação dos impostos propostos não Referencial 7: Referencial 8:
somente forneceria recursos adicionais para o Justiça nas relações comerciais Combate ao HIV/Aids
desenvolvimento, como cumpriria um papel cons-
Repete-se enfaticamente que o comércio tem muito e a outras pandemias
trutivo na regulamentação de ações que causam
mais potencial de financiar o desenvolvimento do Morte e incapacitação resultantes de doenças são
instabilidade nos sistemas econômicos globais ou
que a ajuda oficial. Isso só ocorre quando as regras catástrofes humanas permanentes e, muitas vezes,
têm impacto negativo sobre o meio ambiente.
do comércio internacional têm dispositivos efica- evitáveis. Essas catástrofes são comparativamente
Esses impostos internacionais precisam tratar do
zes para proteger os direitos e as necessidades muito maiores do que quase todas as outras.
uso dos bens comuns globais, de transações finan-
dos países em desenvolvimento e de seus produ- Constituem também uma limitação séria para o
ceiras e operações cambiais de curto prazo, e do
tores. Atualmente, o comércio é um veículo para desenvolvimento, atingindo as comunidades po-
comércio de itens com impacto internacional ne-
a liberalização indiscriminada das economias dos bres e marginais de forma desproporcional, espe-
gativo (como no equilíbrio ecológico mundial, na
países em desenvolvimento e a imposição de con- cialmente aquelas que têm acesso inadequado ao
promoção de conflitos etc.).
dições prejudiciais, em vez de apoiar o desenvol- atendimento à saúde. O HIV/Aids é uma ameaça
Os governos devem estabelecer mecanismos
vimento sustentável, a erradicação da pobreza e especial. A MDM relacionada ao HIV/Aids é escan-
de taxação internacional que não somente forne-
a eqüidade entre os gêneros. dalosamente modesta e inadequada no seu reco-
çam recursos financeiros adicionais para o desen-
As políticas comerciais precisam ser reorien- nhecimento do potencial de prolongamento da
volvimento, como controlem processos insusten-
tadas para promover o comércio justo e o desen- vida pelo acesso ao tratamento.
táveis e danosos.
volvimento sustentável. As regras e políticas comer- Na Assembléia Geral das Nações Unidas de
Isso exige, em especial:
ciais devem assegurar o direito dos países em 2001 sobre o HIV/Aids, os Estados membros ex-
• o compromisso de estabelecer impostos in-
desenvolvimento de perseguir suas próprias agen- pressaram sua preocupação de que a epidemia
ternacionais com base em uma ou várias das
das de desenvolvimento, colocando em primeiro constituía uma emergência global. Desde essa épo-
propostas atuais, especialmente do imposto
lugar os interesses de seus povos. Isso inclui medi- ca, a situação tem se deteriorado. Na Conferência
sobre transações cambiais e o imposto inter-
das para proteger os serviços públicos da libera- Internacional sobre Aids de 2004, líderes mundiais
nacional sobre combustível de aviação;
lização e da privatização forçadas, garantindo o presentes ao evento confirmaram que mais de 38
• o compromisso de desenvolver sistemas para direito à alimentação e o acesso a medicamentos milhões de pessoas viviam com Aids no mundo e
compartilhar informações sobre transferên- essenciais e reforçando a transparência empre- que a epidemia se espalhava em todas as regiões.
cias financeiras ao exterior e melhorar a coor- sarial. Os conhecimentos de pessoas que traba- O HIV/Aids afeta os países mais pobres de
denação global dos impostos, para aumentar lham na agricultura e as tecnologias indígenas de- forma desproporcional. A região mais atingida
as receitas fiscais e controlar a corrupção; vem ser devidamente reconhecidos, e a pesquisa é a África Subsaariana, onde quase 40% de todas
• o compromisso de adotar medidas que le- precisa ser reorientada para incluí-los. as mortes são causadas pela Aids. O enorme
varão à abolição imediata de todos os pa- Para muitos países em desenvolvimento, a impacto do HIV/Aids no capital humano desses
raísos fiscais. exportação de um ou mais produtos primários países é uma grave ameaça ao desenvolvimento.
Geração de financiamento nacional continua a ser a fonte da maior parte de suas re- Pelo seu efeito sobre as pessoas diretamente
para o desenvolvimento ceitas de exportação. O declínio dos preços das atingidas, assim como sobre seus filhos e filhas,
commodities tem corroído até 50% de suas recei- parentes e comunidades, a Aids solapa a capaci-
Todos os governos têm a obrigação de gerar re-
tas, agravando a dependência da ajuda e aumen- dade produtiva presente e futura. Outras doenças
cursos financeiros internos que possam ajudar a
tando a insustentabilidade de suas dívidas. pandêmicas tratáveis, como a malária e a tuber-
financiar suas estratégias de desenvolvimento.
Os governos devem assegurar que o siste- culose, agravam a ameaça à vida e aos meios de
Eles também estão obrigados a usar os recursos
ma de comércio global seja justo. subsistência de milhões de pessoas nos países
financeiros da forma mais eficiente possível, além
Esse referencial exige: em desenvolvimento.
de prestar contas de seu uso à população de
• o fim das condições impostas pelas insti- O tratamento das pessoas infectadas é pos-
maneira transparente e acessível. A mobilização
tuições financeiras internacionais e outros sível e está disponível. Porém, das milhões de
do financiamento doméstico é um meio impor-
doadores sobre a ajuda e o cancelamento da pessoas que necessitam de tratamento, somente
tante de confrontar as desigualdades nacionais,

Observatório da Cidadania 2005 / 24


algumas centenas de milhares têm acesso a ele. • a renovação do compromisso com a bem Responsabilidades de Empresas Transnacionais
Isso não ocorre apenas em conseqüência de ati- consolidada perspectiva de “saúde para todas e outros Empreendimentos com Relação aos Di-
tudes sociais e culturais, pelo estigma associado à as pessoas”, juntamente com aumentos reitos Humanos”.13 Essas normas representam um
doença e pela relutância dos governos em assumir substanciais dos fundos para reconstruir e marco e são uma reafirmação sucinta, porém
uma liderança enérgica, mas também pela defe- expandir os sistemas de saúde de todos os abrangente, dos princípios legais internacionais
rência aos privilégios e proteções dados às empre- países em desenvolvimento; aplicáveis às empresas com relação aos direitos
sas farmacêuticas. Somente a ampla e permanente • moratória sobre qualquer nova extensão dos humanos, à lei humanitária, à legislação traba-
campanha da sociedade civil e os projetos inova- termos de proteção de patentes para medi- lhista internacional, à legislação ambiental, à legis-
dores levaram alguns governos, como o do Brasil, camentos e sobre novas cláusulas do Trips lação do consumidor e às leis anticorrupção.
a prover acesso gratuito às pessoas afetadas e a nos acordos comerciais bilaterais e regionais. Os governos devem assumir o compromisso
um reconhecimento do direito à saúde por parte Nenhum Trips Plus; de fazer com que as empresas transnacionais e
da OMC. A vasta maioria de homens e mulheres • a criação de um mecanismo de respaldo pú- outros empreendimentos comerciais sejam res-
que precisam de tratamento ainda espera pelo blico à iniciativa de âmbito mundial Free by 5, ponsáveis perante a comunidade global e as gera-
reforço dos serviços e dos fundos que evitaria que garanta acesso ao tratamento gratuito e ções futuras.
milhares de mortes a cada semana. sem discriminações. Esse referencial exige:
Na Conferência Internacional de Bangcoc • o compromisso de apoiar as “Normas sobre
(2004), líderes mundiais admitiram que não faziam Referencial 9: as Responsabilidades de Empresas Transna-
o suficiente para prevenir o avanço do HIV/Aids ou Promoção da responsabilidade social cionais e outros Empreendimentos com Rela-
para diminuir seus efeitos. Assim, é necessário da empresa ção aos Direitos Humanos” e de tomar medi-
renovar o compromisso, apoiado na vontade po- das concretas para sua plena implementação;
As corporações transnacionais são as principais
lítica, de combater essa epidemia que representa • um instrumento internacional vinculatório para
protagonistas e beneficiárias da globalização,
um sério obstáculo ao desenvolvimento global e aumentar a transparência dos fluxos financei-
porém não são responsabilizadas globalmente.
reduzir seu impacto. Todas as intervenções devem ros entre as transnacionais, especialmente na
Elas estão permanentemente envolvidas na viola-
levar em conta a questão de gênero, pois as esta- indústria extrativa, e os governos, como foi
ção de normas sociais, ambientais e de direitos
tísticas mostram que 60% das pessoas adultas proposto pela campanha internacional “Publi-
humanos. As corporações e os governos têm res-
afetadas pelo HIV/Aids na África são mulheres. que o que você paga” (Publish what you pay).
pondido aos impactos negativos da atividade
Isso faz com que o seu empoderamento seja uma
empresarial, amplamente reconhecidos, por meio
questão vital na luta contra o HIV/Aids. Referencial 10:
de centenas de códigos de conduta por empresa
Deve ser dada ênfase especial ainda às polí- Democratização da governança
e setor, assim como por iniciativas de “parceria”
ticas e intervenções que tratem das crianças afe- internacional
voluntária. O Compacto Global, iniciado pelo se-
tadas pelo HIV/Aids, incluindo aquelas que ficaram
cretário geral da ONU, é o melhor exemplo de estra- Um sistema de governança aberto, transparente
órfãs por causa da doença. Foi iniciada na África
tégia política que visa predominantemente à auto- e acessível é vitalmente necessário para assegurar
e se espalha ao redor do mundo uma campanha
regulação voluntária da indústria. o desenvolvimento global eqüitativo. Nesse sis-
denominada Free by 5 (Gratuito até 2005)10, para
Com a ajuda dos exemplos das melhores prá- tema, os direitos humanos devem ser observados,
garantir a todas as pessoas o acesso eqüitativo
ticas, espera-se que as empresas envolvidas de- e o estado de direito, respeitado. A garantia disso
ao tratamento, sem taxa de usuário(a).
monstrem seu senso de responsabilidade em rela- é primariamente uma responsabilidade das auto-
Os governos devem reconhecer a luta crítica
ção à sociedade. No entanto, a influência da indús- ridades nacionais, num marco legal estabelecido
contra as pandemias que devastam inumeráveis
tria e os impactos das atividades corporativas no plano nacional. Esse marco deve ser coerente
comunidades e assegurar prioridade adequada a
transnacionais vão além desses campos políticos com os acordos e obrigações internacionais, espe-
seu enfrentamento.
soft. Por trás da cortina das iniciativas de parceria cialmente com aqueles que definem os direitos
Este referencial requer:
e dos processos de diálogo, muitas corporações e humanos aceitos internacionalmente. No entanto,
• o aumento radical do apoio financeiro à ini- a aplicação de leis nacionais não é sempre sufi-
associações empresariais continuam a perseguir
ciativa “3 by 5”11 da Organização Mundial da implacavelmente seus próprios interesses espe- ciente para a consecução da justiça e há uma
Saúde (OMS), seguida por uma iniciativa “6 necessidade crescente de fortalecer um marco
cíficos nas áreas hard da política. Suas atividades
by 7” (US$ 6 milhões até 2007) para estender legal internacional, de modo que governos, cor-
afetam seriamente a segurança humana das pes-
o tratamento. Além disso, deve ser assegu- soas em todo o mundo. Assim, existe a necessi- porações e indivíduos possam ser responsabili-
rado um financiamento sustentado e previ- zados por atos que violem os direitos humanos e
dade de instrumentos internacionais legalmente
sível para o Fundo Global de Luta contra a outros acordos internacionais.
vinculatórios, garantindo que as atividades das
Aids, Tuberculose e Malária; transnacionais sejam coerentes com as conven- A legitimidade de nosso sistema de gover-
• o lançamento de um serviço de emergência ções e normas acordadas internacionalmente. nança internacional está em jogo. O poder global
global e o fornecimento do tratamento anti- Na Cúpula de Johannesburgo, em 2002, os traz para governos, corporações e até mesmo
retroviral gratuito e administrado publica- governos assumiram um claro compromisso de indivíduos a responsabilidade e a necessidade de
mente (incluindo a vacinação, caso uma va- “promover ativamente a responsabilidade empre- prestar contas à comunidade internacional como
cina eficaz seja desenvolvida); sarial e a prestação de contas, baseadas nos Prin- um todo. Entretanto, o domínio efetivo de nossas
cípios do Rio, incluindo o desenvolvimento pleno instituições multilaterais por uma minoria de go-
e a efetiva implementação de acordos e medidas vernos, que utilizam sua posição para promover
10 A Declaração “Free by 5” é uma referência ao projeto intergovernamentais [...]”.12 Em 2003, a Subco- seus interesses específicos acima de todos os
“3 by 5“ – Tratar 3 milhões até 2005 – para enfatizar a
missão da ONU sobre Promoção e Proteção dos demais, não é mais aceitável, especialmente quan-
necessidade de tratamento gratuito a todas as pessoas
afetadas pelo HIV/Aids. Direitos Humanos aprovou as “Normas sobre as do aqueles mesmos governos deixaram de aderir
11 “Tratar 3 milhões até 2005” (3 by 5) é a iniciativa global da à vontade da maioria internacional.
OMS e do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre
HIV/Aids (Unaids), adotada em 2003, para fornecer, até o 12 Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável,
fim de 2005, terapia anti-retroviral a 3 milhões de Plano de Implementação, parágrafo 49. Johannesburgo, 13 Subcomissão da ONU sobre Promoção e Proteção dos
pessoas com HIV/Aids nos países em desenvolvimento. setembro de 2002. Direitos Humanos, resolução 2003/16.

Observatório da Cidadania 2005 / 25


Há muito tempo é necessária uma reforma • o fortalecimento das instituições jurídicas – a • provisão de instalações de trabalho na pró-
de nosso sistema internacional de governança. Corte Internacional de Justiça e a Corte Crimi- pria ONU;
Ele precisa ser reconstruído para incorporar os nal Internacional – responsáveis pela imple- • a implementação da proposta de um fundo
princípios de justiça e democracia. As Nações mentação do estado de direito internacional. fiduciário ampliado para apoiar a partici-
Unidas ainda são a instituição mais legítima e re- pação da sociedade civil nos processos da
presentativa para garantir um sistema eficaz de Referencial 11: ONU, tanto em nível regional como na pró-
governança internacional, contudo a administração Envolvimento da sociedade civil pria sede da ONU;
dos enfoques globais das políticas econômicas, A participação das partes interessadas é central nas • um envolvimento significativo e efetivo com
monetárias e comerciais está efetivamente fora do estratégias de desenvolvimento bem-sucedidas. as organizações da sociedade civil na prepa-
âmbito da ONU, e sim nas instituições financeiras O conceito de apropriação (ownership) pelas partes ração da Cúpula de setembro de 2005, em
internacionais e na OMC. Essa ausência de cone- interessadas, promovido vigorosamente na Decla- Nova York e durante o evento, reconhecendo
xão com a ONU tem levado a desequilíbrios estrutu- ração do Milênio, nos PRSPs e nas estratégias de a legitimidade e o papel crucial da sociedade
rais no sistema de governança global que favore- ajuda ao desenvolvimento, requer um envolvimento civil em assegurar estratégias e políticas acei-
cem os paradigmas econômicos em detrimento dos atores em todos os níveis. Os processos de táveis e eficazes, assim como sua implemen-
do desenvolvimento humano, solapando as prio- participação nacionais devem formar a base do tação (o que, de fato, não ocorreu).
ridades políticas definidas no marco da ONU. engajamento da sociedade civil na identificação,
Isso precisa ser modificado, de modo que a formulação e implementação das estratégias que Fim das desculpas
ONU retome sua centralidade política global, com tratam das necessidades específicas dos países e
Chegou a hora de ousar e atuar de forma decisiva.
base em novos mecanismos que assegurem um do contexto nacional. Os governos precisam facili-
Qualquer outra atitude seria irresponsável. Em
processo decisório eficaz, democrático, transpa- tar o engajamento da sociedade civil, para que seja
setembro de 2005, líderes mundiais enfrentaram
rente e responsável. O Banco Mundial, o FMI e a aberto, transparente e inclusivo. Transformar os
decisões difíceis. No processo das negociações
OMC devem ser trazidos inteiramente para dentro governos locais em instituições democráticas efi-
preparatórias da Cúpula, a pressão de interesses
do sistema da ONU, com a redefinição de seus cazes é vital para que as comunidades possam
políticos de curto prazo deveria ter sido equili-
papéis. Suas estruturas de direção também pre- proteger seus interesses materiais e políticos.
brada pelas necessidades de longo prazo descritas
cisam ser reformadas, para refletir as mudanças Recursos básicos, como a água, podem ser prote-
anteriormente. Os acordos realizados pela comu-
na economia global. gidos e utilizados de maneira sustentável. Da mes-
nidade internacional estão cheios de concessões
Os governos devem assumir o compromisso ma forma, a participação da sociedade civil precisa
recíprocas. Contudo, as ameaças e os desafios
de realizar uma reforma radical no sistema multi- ser facilitada nos planos regional e global.
ao nosso patrimônio comum são mais urgentes
lateral de governança e de fortalecer e democra- O processo de revisão da Declaração do Mi-
do que nunca. Os recursos e a tecnologia existem.
tizar as Nações Unidas. lênio deve refletir o papel crucial da interação dos
Chefes de Estado e de governo de todo o mundo
Esse referencial requer: governos com a sociedade civil e dar amplo es-
deveriam ter mostrado uma vontade política comum
• o restabelecimento de um Conselho Econô- paço para que as organizações da sociedade civil
de sucesso, não somente assumindo um compro-
mico e Social da ONU reformado, no qual a envolvam-se de forma significativa no processo
misso coletivo com uma agenda ousada e radical,
participação como membro seja baseada nos de revisão. Em última análise, para que a Declara-
mas também perseguindo sua implementação.
princípios de representação, prestação de ção do Milênio e as MDMs tenham significado
O fracasso de algumas dessas lideranças em en-
contas e responsabilidade comum. O novo político real, o controle e o apoio da sociedade
frentar esse desafio pode condenar todos e todas
Conselho Econômico e Social deve ser a civil devem ser fatores vitais na sua promoção.
nós. Não podemos nos dar ao luxo de falhar.
autoridade legal global de última instância Embora a sociedade civil esteja pronta para esse
no que diz respeito a assuntos econômicos envolvimento, os governos que negociam a revi-
e sociais e suas decisões devem ser legal- são da Declaração do Milênio devem ouvi-la e Referências
mente aplicáveis; incorporar as preocupações dos cidadãos e das ACTIONAID Internacional EUA et al. Blocking progress: how
• a transformação da participação como mem- cidadãs. A ONU precisa garantir espaço para que the fight against HIV/Aids is being undermined by the
bro no Conselho de Segurança, de modo que essa interação seja produtiva, num verdadeiro World Bank and International Monetary Fund. 2004.
Disponível em: <www.actionaidusa.org/
sejam aplicados os mesmos princípios de espírito de metas comuns, promovidas de forma
blockingprogress.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2005.
representação, prestação de contas e respon- aberta, transparente e responsável.
BATTHYÁNY, Karina; CABRERA, Mariana; MACADAR, Daniel.
sabilidade comum; Os governos devem assegurar que o engaja- The gender approach in poverty analysis: conceptual
• a reforma do Banco Mundial, do FMI e de mento da sociedade civil no processo decisório – issues. Equipe de Pesquisa de Ciências Sociais, Social
nacional, regional e internacional – seja facilitado Watch Research Advance, 2004.
outras instituições financeiras internacionais,
de forma efetiva. COMISSÃO Mundial sobre a Dimensão Social da
juntamente com a OMC, para que adiram a Globalização. A fair globalization: creating
esses princípios, porém prestando contas em Esse referencial exige:
opportunities for all . 2004. Disponível em:
última instância ao Conselho Econômico e • o compromisso de assegurar que os proces- <www.ilo.org/public/english/fairglobalization/report/
Social reformado. Seus papéis devem ser sos nacionais de engajamento sejam trans- index.htm>. Acesso em: 21 ago. 2005.

redefinidos, de modo que o Banco Mundial parentes, abertos, acessíveis e coerentes; KOZEL, Valerie; DEATON, Angus. Data and dogma: the great
Indian poverty debate . 2004. Disponível em: <http://
seja um banco de desenvolvimento dentro • o estabelecimento e o fortalecimento de me- povlibrary.worldbank.org/files/15168_deaton_kozel_
do sistema da ONU, o mandato do FMI seja canismos de participação para as organiza- 2004.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2005.
focalizado na salvaguarda da estabilidade ções regionais; REDDY, Sanjay G.; POGGE, Thomas W. How not to count the
financeira global e a OMC fique restrita à regu- • a implantação de mecanismos no plano das
poor, Versão 4.5. 2003. Disponível em: <http://
lamentação do comércio internacional; www.columbia.edu/~sr793/count.pdf>.
Nações Unidas e outras organizações inter-
SEN, Amartya. Development as freedom. Nova York: Alfred
• o estabelecimento de revisões parlamentares nacionais que dêem transparência aos pro- A. Knopf, 1999.
públicas e regulares das políticas e ações das cessos de debate e decisões, acesso às agen- VANDERMOORTELE, Jan. Ambition is golden: meeting the
instituições econômicas multilaterais e do pa- das, aos documentos e relatórios, assim MDGs. Development, v. 48, n. 1, 2005.
pel e enfoque assumidos pelos governos na- como às próprias reuniões, mesmo às da
cionais, com participação da sociedade civil; Assembléia Geral;

Observatório da Cidadania 2005 / 26


Gênero e pobreza: desigualdades entrelaçadas

O enfoque de gênero no estudo da pobreza levou à revisão dos métodos mais convencionais de medição e à exploração de
novas formas, dando uma contribuição significativa ao atual debate sobre o tema. As medidas de renda familiar não
capturam as dimensões intrafamiliares da pobreza, porque assumem uma distribuição eqüitativa dos recursos entre seus
membros e consideram que todas as pessoas são igualmente pobres.

Equipe de pesquisa do Social Watch* destaca duas formas de assimetrias que se cruza- A divisão de trabalho em função do sexo que
ram: gênero e classe” (Kabeer, 1994). atribui às mulheres o trabalho doméstico limita suas
Embora a metodologia de medição da pobreza não As pesquisas que confirmam as desigualda- oportunidades de acesso a recursos materiais e
permita que o gênero seja refletido nas estatísti- des entre os gêneros, especialmente no acesso e sociais e à participação nas decisões políticas,
cas oficiais ou nas estratégias de redução da po- no atendimento das necessidades básicas, dão econômicas e sociais. Elas não somente possuem
breza, ambos estão inextricavelmente vinculados. suporte à afirmação de que “a pobreza feminina bens materiais limitados, como têm bens sociais
A despeito das freqüentes menções ao gênero não pode ser incluída no mesmo enfoque conceitual mais restritos (acesso à renda, bens e serviços por
como um tema transversal em muitas estratégias, da pobreza masculina” (Kabeer, 1994). Em geral, meio das conexões sociais) e bens culturais (edu-
é um tópico que, na prática, recebe pouca aten- os indicadores de pobreza são baseados em infor- cação formal e conhecimento cultural), o que as
ção nos planos de ação e nos projetos de desen- mações sobre a família, sem levar em conta as coloca numa situação de maior risco de pobreza.
volvimento específicos. A pobreza afeta homens, grandes diferenças entre gêneros e gerações que As conseqüências da disparidade persistem du-
mulheres, meninos e meninas, porém essa expe- nela existem. Numa perspectiva de gênero, no rante toda a vida da mulher, em diversas formas e
riência é vivida de forma diferente por pessoas de entanto, é necessário decodificar as situações em áreas e estruturas sociais diferentes.
idades, etnias, papéis familiares e sexos distintos. dentro da família, pois, nesse espaço de coabita-
Por causa da biologia e de seus papéis de gênero ção, as pessoas mantêm relações assimétricas e A situação descrita no relatório da Zâmbia pode
nele prevalecem os sistemas de autoridade. ser considerada como um paradigma da reali-
sociais e culturais, além da subordinação cultu-
Considerando isso, é importante levar em dade dos países menos desenvolvidos: “[...] o sis-
ralmente construída, as mulheres enfrentam con- tema educacional zambiano apresenta dispari-
dições desvantajosas, que acumulam e intensifi- conta os seguintes fatores:
dades entre os gêneros em todos níveis. Embora
cam os já numerosos efeitos da pobreza. • as desigualdades entre os gêneros nos con- tais disparidades sejam muito pequenas no
Os relatórios nacionais do Observatório da textos familiares, que resultam em acesso ensino primário, crescem no nível secundário
Cidadania/Social Watch 2005 apresentam uma diferenciado aos recursos do grupo domés- e aumentam consideravelmente na educação
série de argumentos e evidências sobre o vínculo tico, agravam a pobreza das mulheres, espe- terciária. Essas disparidades na educação se ma-
entre pobreza e gênero, as características das cialmente nas famílias pobres; nifestam depois no mercado de trabalho. A par-
mulheres pobres e os problemas que enfrentam cela de mulheres com emprego remunerado
• apesar das mudanças atuais, a divisão de tra-
caiu de 39%, em 1990, para 35%, em 2000”.
em relação aos homens pobres. Este texto tem balho por sexo dentro das famílias é ainda
dois objetivos: esclarecer os problemas metodo- muito rígida. Relatório da Zâmbia
lógicos de medição da pobreza que escondem as
questões de gênero e mostrar isso por meio de exem-
“As mulheres têm acesso limitado ao crédito. Por causa das limitações sofridas pelas mu-
plos retirados dos relatórios nacionais. Não há Como desde o início carecem de empodera- lheres oriundas da divisão do trabalho em função
intenção de que os exemplos sejam representa- mento financeiro, elas precisam recorrer a ins- do sexo e pelas hierarquias sociais baseadas nessa
tivos, mas somente ilustrativos.1 tituições de crédito em seus países para finan-
divisão, as mulheres têm acesso desigual às dife-
Os trabalhos sobre a pobreza do ponto de vista ciar suas atividades econômicas. No entanto,
tais instituições, quando existem, relutam em
rentes áreas sociais, principalmente aos sistemas
do gênero abrem uma nova perspectiva, que vem
prestar serviços às mulheres. Essa relutância estreitamente interligados: o mercado de trabalho,
ganhando importância desde a década de 1990.
deriva do preconceito de que a mulher seria os sistemas de assistência ou proteção social e
Os estudos realizados dentro desse marco de refe-
uma má administradora de recursos e que não as estruturas domésticas.
rência “examinam as diferenças entre os gêneros
pagaria o empréstimo. Quando existe a dispo- Em termos da dimensão relacional do gênero,
nos resultados e processos que geram a pobreza,
sição de prestar esses serviços às mulheres, que trata das relações entre homens e mulheres,
focalizando especialmente as experiências das mu- insistem que tenham avalistas masculinos.” a pobreza das mulheres é analisada levando-se
lheres e verificando se elas formam um contingente
Relatório da NigériaNR em consideração tanto a família como o ambiente
desproporcional e crescente entre as pessoas
social. Aplicada às famílias, a perspectiva de gêne-
pobres. Esta ênfase implica uma perspectiva que
ro melhora o entendimento de como uma família
funciona, pois desvela as hierarquias e os padrões
de distribuição de recursos e, assim, questiona a
* Karina Batthyány (coordenadora), Marina Sol Cabrera,
idéia de que os recursos da família são distribuídos
Garciela Dede, Daniel Macadar e Ignacio Pardo. NR Todos os relatórios de países citados no texto estão
eqüitativamente e que todos os seus membros
1 Os exemplos usados neste artigo foram extraídos de disponíveis no CD que acompanha esta publicação.
uma amostra de relatórios nacionais recebidos até 20 O relatório da Alemanha encontra-se também nesta têm as mesmas necessidades.
de maio de 2005. versão impressa.

Observatório da Cidadania 2005 / 27


domiciliares também são limitadas de acordo com
As desigualdades se manifestam em forma de a maneira pela qual obtêm a informação, pois o A violência de gênero não é normalmente in-
barreiras e limitações invisíveis, como está ilus- único recurso considerado é a renda, não sendo cluída nas discussões sobre pobreza, embora
trado no relatório da Coréia do Sul. “Embora a as estatísticas revelem a gravidade da situação.
levado em conta o tempo dedicado à produção
sociedade sul-coreana tenha fortalecido políti- “Atualmente, a cada nove dias uma mulher é víti-
familiar e à reprodução social.
cas e sistemas para promover a participação das ma de violência doméstica no Uruguai. Os abor-
mulheres na atividade socioeconômica desde Naila Kabeer (1994) destaca que, para com-
tos inseguros tornaram-se a principal causa da
a década de 1990, há barreiras informais e bar- pensar as limitações das medições de pobreza, as mortalidade materna. Para as mulheres, espe-
reiras invisíveis para as mulheres no mercado de informações devem ser desagregadas para levar cialmente para as pobres, é muito arriscado
trabalho. Além disso, seus salários são baixos, em conta as diferenças entre “ser” e “fazer” dentro romper com os modelos tradicionais de ‘mulher’
e 42,2% de todas as mulheres empregadas têm da família. De acordo com a autora, há necessidade ou de ‘mulher como mãe’.”
problemas decorrentes de trabalho irregular, de indicadores que reconheçam que as vidas das Relatório do Uruguai
temporário e de tempo parcial. As mulheres tam- mulheres são regidas por restrições sociais, direi-
bém precisam interromper sua participação no O relatório romeno apresenta resultados simi-
tos e responsabilidades diferentes (algumas vezes,
trabalho e na sociedade por causa das responsa- lares: “[...] uma de cada cinco mulheres sofre
mais complexos do que os dos homens) e que elas
bilidades domésticas, como as do casamento, abusos do marido ou parceiro [...] e, em geral,
gravidez, parto, cuidado das crianças e outros vivem, em grande medida, fora da economia formal.
Esse conceito mais amplo da pobreza incluiria a sociedade romena encara essas atitudes como
deveres familiares. O mercado de trabalho na normais. Outro estudo confirma que pelo me-
sociedade sul-coreana tem uma estrutura dupla. dimensões como a autonomia econômica e a vio-
nos 800 mil mulheres foram vítimas de violência
A parte superior é caracterizada por produtivida- lência de gênero, que raramente são levadas em doméstica em 2004”.
de alta, salários bons e emprego estável; a parte conta nos estudos de pobreza.
inferior tem como característica produtividade Relatório da Romênia
baixa, salários inferiores e emprego instável.
As tradições culturais nos diferentes países são Da mesma forma no Nepal, “[...] viúvas jovens,
Essa estrutura dupla, com os homens na parte
a origem de outras restrições enfrentadas pelas especialmente na comunidade indo-ariana, es-
superior e as mulheres na inferior, separa os
mulheres. “As normas culturais não somente tão sujeitas à violência psicológica e física por
sexos em categorias empresariais, posições e
impedem que as mulheres herdem a terra. Tradi- causa de disputas em torno de sua herança.
níveis salariais diferentes. A discriminação da
cionalmente, depois da morte do marido, a viú- Estima-se que anualmente 12 mil meninas e
mulher no mercado de trabalho resulta em famí-
va perde toda a propriedade do marido, que é mulheres – aproximadamente 20% com menos
lias pobres chefiadas por mulheres.”
distribuída entre os parentes dele do sexo mas- 16 anos – são traficadas como prostitutas para
Relatório da Coréia do Sul a Índia e outros países. A pobreza e o desem-
culino. Em 2001, o estado Enugu aprovou uma
lei que proíbe essa prática. No entanto, a lei não prego, causados pelo declínio progressivo da
Os efeitos desses processos no mercado tra- demanda por serviços dos artesãos das aldeias
foi aplicada, e a prática continua amplamente
balho são visíveis em hiatos de renda mesmo e pelo empobrecimento dos camponeses resul-
disseminada. Outros estados e o governo fede-
nos países desenvolvidos, como a Alemanha. tante da divisão das terras, têm forçado famíli-
ral continuam a funcionar como se não soubes-
“Caso os salários das mulheres na Alemanha as a venderem suas próprias filhas”.
sem da existência dessa tradição.”
Ocidental continuem a se aproximar dos salá-
rios dos homens no mesmo ritmo dos últimos Relatório da Nigéria Relatório do Nepal
40 anos, serão necessários no mínimo outros
40 anos para que as trabalhadoras que exercem Sobre esse assunto, o relatório da Índia é tam-
atividades administrativas e intelectuais e muito bém esclarecedor: “As mulheres também são
mais de 70 anos para que as mulheres que rea- marginalizadas porque não têm poder em dife- Medição da pobreza a partir
lizam tarefas manuais possam alcançar seus rentes atividades econômicas, sociais e políticas. de uma perspectiva de gênero
colegas masculinos. Pela média de todos grupos Dispositivos legais e práticas sociais relacionadas A medição da pobreza ajuda a torná-la visível e
ocupacionais, as mulheres ainda recebem 20% à propriedade e à herança prejudicam as mulhe- cumpre um papel importante no desenvolvimen-
a menos do que seus colegas homens para rea- res, exceto nas poucas áreas em que existem to e na implementação das políticas públicas.
lizar o mesmo trabalho. No caso das engenhei- estruturas familiares matrilineares. As estruturas
As metodologias de medição são estreitamente
ras, essa diferença atinge 30,7%.” sociais, políticas e familiares não incluem as
ligadas a conceituações específicas da pobreza;
mulheres nos processos de decisão. Isso não
Relatório da Alemanha portanto, os resultados podem diferir quando se
apenas afeta o lugar da mulher na sociedade,
na economia e na família, mas também contribui trata de aspectos diferentes da pobreza. Nenhuma
para sua baixa auto-estima”. metodologia é neutra – mesmo aquelas sensíveis
O enfoque de gênero no estudo da pobreza ao gênero e as consideradas mais precisas e
desmascara tanto a discriminação pública como Relatório da Índia
objetivas. Ao contrário, contêm elementos subje-
a familiar ao identificar as relações de poder e a dis- tivos e arbitrários.
O relatório do Uruguai nota as diferentes dimen-
tribuição desigual de recursos nas duas esferas. sões da desigualdade no mercado de trabalho: A perspectiva de gênero contribui para am-
A discussão conceitual da pobreza é vital, pois “As mulheres são especialmente afetadas pela pliar o conceito de pobreza ao identificar a neces-
sua definição determina que indicadores serão uti- flexibilidade do mercado de trabalho, a perda sidade de medir a pobreza de modo a levar em
lizados para sua medição, assim como o tipo de de normas trabalhistas claras, medo do desem-
conta sua complexidade e suas múltiplas dimen-
políticas a serem implementadas para combatê-la. prego, segmentação do mercado de trabalho
sões. O debate sobre a metodologia da pobreza
Como afirmou Feijoó (2003), “aquilo que não é por gênero, remuneração desigual para o mes-
mo trabalho, exclusão das posições de chefia não propõe o desenvolvimento de um indicador
conceituado também não é medido”. único que sintetize todas as dimensões da po-
em virtude de estereótipos de gênero, assédio
Como a pobreza é medida de acordo com as breza. Ao contrário, a idéia é explorar propostas
sexual e um sistema de seguridade social que
características socioeconômicas da família como um de medição diferentes, melhorando as técnicas
não leva em conta o envelhecimento da popu-
todo, é impossível identificar as diferenças entre lação e o mercado de trabalho informal”. de medida mais convencionais, observando
os gêneros no que diz respeito ao acesso a neces- suas vantagens e limitações, assim como crian-
Relatório do Uruguai
sidades básicas dentro da família. As pesquisas do novas medidas.

Observatório da Cidadania 2005 / 28


Medição da pobreza a partir entre homens e mulheres. Esses aspectos são conta o tempo que as mulheres gastam realizando
da renda familiar centrais para a caracterização da pobreza a partir de cada uma dessas atividades, elas se tornam visí-
A medição da pobreza de acordo com a renda é uma perspectiva de gênero. Estudos sobre o uso do veis e reconhecidas, facilitando a percepção das
atualmente um dos métodos mais amplamente tempo confirmam que as mulheres gastam mais desigualdades entre os gêneros nas famílias e na
utilizados, um indicador quantitativo muito bom tempo do que os homens em atividades não-remu- sociedade. Além disso, a alocação de tempo torna
para identificar as situações de pobreza. No que neradas. Isto indica que têm jornadas mais longas possível calcular o volume total da carga de tra-
diz respeito a modelos de medidas monetárias, em detrimento de sua saúde e níveis nutricionais. balho – um conceito que inclui tanto o trabalho
não há método mais efetivo. Além disso, há mais remunerado como o não-remunerado.
disponibilidade de dados por país para medição Medição da pobreza em termos Os levantamentos de uso de tempo ajuda-
da pobreza em termos monetários do que para de renda, a partir de gênero ram a gerar melhores estatísticas sobre trabalho
usar outros enfoques, tais como capacidades, Como foi mencionado, a autonomia econômica remunerado e não-remunerado, sendo uma fer-
exclusão social ou participação. A medição da ou o fato de ter renda para atender às suas ne- ramenta essencial para desenvolver um maior
pobreza pela renda permite comparações entre cessidades é outra dimensão da pobreza. Para conhecimento sobre as diferentes formas de tra-
países e regiões, além da quantificação da pobreza esse fim, uma medição individual é útil no estudo balho e emprego.
para o desenvolvimento de políticas públicas. da pobreza intrafamiliar. Não se trata de substi-
Um dos aspectos mais controvertidos da tuir uma medição por outra, mas de trabalhar com O parágrafo 206 da Plataforma de Ação de Pe-
medição de renda é sua capacidade ou incapaci- as duas medições, pois servem a objetivos dis- quim (1995) recomenda:
dade de refletir as dimensões múltiplas da pobreza. tintos. As medições de pobreza individual têm “(f) Desenvolver um conhecimento mais
Analistas argumentam que a medição da renda vantagens, pois são capazes de identificar situa- abrangente de todas as formas de trabalho e
ções de pobreza que permaneceriam ocultas em emprego, por meio do:
enfatiza a dimensão monetária da pobreza e, por-
tanto, somente leva em conta seus aspectos mate- medições tradicionais (como, por exemplo, pes- (i) melhoramento da coleta de dados sobre
riais, ignorando os culturais. Esses aspectos inclu- soas que vivem em famílias não-pobres, porém o trabalho não-remunerado, já incluído no Sis-
sem renda própria), revelando as limitações maio- tema de Contas Nacionais das Nações Unidas,
em as diferenças de poder, que determinam o
em áreas como a agricultura, especialmente a
acesso a recursos, mas, acima de tudo, incorporam res enfrentadas pelas mulheres para se tornarem
de subsistência, e em outros tipos de atividades
o trabalho doméstico não-remunerado, indispen- economicamente autônomas.
produtivas não voltadas ao mercado;
sável à sobrevivência das famílias, assim como ou- (ii) melhoramento das medições que atual-
tros indicadores que podem refletir melhor a pobre- Trabalho não-remunerado
mente subestimam o desemprego e subem-
za e as diferenças de bem-estar entre os gêneros. O trabalho não-remunerado é um conceito central prego das mulheres no mercado trabalho;
Outra crítica dessa medição da pobreza é no estudo da pobreza a partir de uma perspectiva
(iii) desenvolvimento de métodos, nos
que não considera o fato de as pessoas também de gênero. Analistas argumentaram que, embora fóruns adequados, para avaliar o valor em ter-
satisfazerem suas necessidades por meio de recur- essa atividade não seja valorizada monetariamente, mos quantitativos do trabalho não-remunera-
sos não-monetários, como redes comunitárias e ela satisfaz necessidades e possibilita as ativida- do que fica fora das contas nacionais, como o
apoio familiar. des de reprodução social. Há também quem afirme cuidado de dependentes e a preparação de ali-
A medição da renda familiar per capita apre- que existe uma forte relação entre o trabalho não- mentos, para que esse valor seja possivelmente
senta sérias limitações para capturar as dimen- remunerado e o empobrecimento das mulheres. refletido em contas satélite ou outras contas
A necessidade de medir o trabalho da mulher vem oficiais (que podem ser separadas, porém coe-
sões intrafamiliares da pobreza. Ela falha por ser
sendo destacada e resultou em diversas propos- rentes com as contas nacionais essenciais), na
incapaz de levar em conta o fato de homens e
perspectiva de reconhecer a contribuição eco-
mulheres experimentarem a pobreza de forma tas, que sugerem dar um valor monetário ao tra-
nômica das mulheres e tornar visível a distri-
diferente dentro da mesma família. Isso ocorre balho doméstico e incluí-lo nas contas nacionais. buição desigual do trabalho remunerado e não-
porque as famílias são tomadas como unidade de A medição do trabalho não-remunerado também remunerado entre mulheres e homens;
análise e se pressupõe que exista uma distribui- mostraria uma diferença importante na renda fa-
(g) desenvolver uma classificação interna-
ção eqüitativa dos recursos entre seus membros. miliar entre as famílias com uma pessoa dedicada cional de atividades para estatísticas de uso de
De acordo com essa medição, todos os integrantes ao trabalho e aos cuidados domésticos (famílias tempo que seja sensível às diferenças entre
da família são igualmente pobres. chefiadas por homens) e aquelas famílias sem mulheres e homens no trabalho remunerado e
O método é também limitado pela forma como essa pessoa e que devem assumir os custos priva- não-remunerado e coletar dados desagregados
mede as desigualdades entre os gêneros, pois não dos associados a esse tipo de trabalho (famílias por sexo. No plano nacional, condicionado às
chefiadas por mulheres). limitações nacionais:
considera como renda o trabalho doméstico não-
remunerado desenvolvido na família. O trabalho (i) realizar estudos de uso do tempo de
doméstico não-remunerado pode fazer diferença A medição do tempo dedicado forma regular para medir em termos quantita-
ao “trabalho não-remunerado” tivos o trabalho não-remunerado, incluindo o
considerável na renda da família. As famílias chefia-
registro daquelas atividades desempenhadas
das por homens têm mais probabilidade de dispor Outra maneira de medir e visualizar o trabalho não-
simultaneamente com as atividades remunera-
do trabalho doméstico gratuito da esposa e, assim, remunerado é por meio da alocação de tempo.
das ou com outras não-remuneradas;
evitar despesas associadas com a manutenção da Estão incluídos nesse conceito: o trabalho de sub-
(ii) medir em termos quantitativos o tra-
casa. Isso é menos provável de acontecer nas famí- sistência (produção de alimentos e vestimentas,
balho não-remunerado que não é incluído nas
lias chefiadas por mulheres, que geralmente pagam consertos de roupas), o trabalho doméstico (com- contas nacionais e trabalhar para melhorar os
os custos privados de realizar trabalho doméstico prar bens e serviços para a casa, cozinhar, lavar a métodos de avaliação que reflitam com precisão
não-remunerado. Esses custos incluem ter menos roupa, passar a ferro, fazer a limpeza, realizar ati- o seu valor nas contas satélite e em outras contas
tempo para o repouso e o lazer, o que afeta seus vidades relacionadas com a organização da casa oficiais, podendo ser separadas, porém coeren-
níveis de saúde física e mental. Da mesma forma, e com a distribuição de tarefas e fazer encargos tes com as contas nacionais essenciais”.
essas mulheres têm menos tempo para conseguir externos como o pagamento de contas etc.), cui-
acesso a melhores oportunidades de emprego e dados com a família (crianças e pessoas idosas)
menos tempo para a participação social e política. e serviços comunitários ou trabalhos voluntários
Em relação ao uso do tempo ou seus padrões de (serviços realizados por não-familiares por meio
gastos, o método também não mostra diferenças de organizações religiosas ou laicas). Levando em

Observatório da Cidadania 2005 / 29


Há precedentes para esse tipo de estudo sis- A crítica ao método de medição da renda do-
temático em países como Canadá, Cuba, França, miciliar tem como objetivo introduzir uma pers-
Itália, México, Nova Zelândia, Espanha e pectiva de gênero na medição tradicional da po-
Venezuela.2 Na Itália, “o aumento da participação breza. Uma questão que precisa ser levantada
feminina não foi acompanhado por uma distribui- vigorosamente é a necessidade de atribuir valor
ção mais justa das atividades familiares. A tarefa ao trabalho doméstico não-remunerado, como
não-remunerada de cuidar das crianças e as ativi- maneira de valorizar a contribuição das mulheres
dades de reprodução social recaem quase intei- e reconhecer como trabalho as atividades domés-
ramente sobre as mulheres, cujo número total de ticas, pois elas são essenciais para a satisfação
horas trabalhadas, remuneradas e não-remune- das necessidades básicas.
radas é, em média, 28% superior ao dos homens.
Dentre estes, 35,2% não dedicam nenhum tempo
à atividade de cuidados na família”. Referências
Esforços de outros países, embora não siste- AGUIRRE, Rosario. Trabajo no remunerado y uso del
tiempo: fundamentos conceptuales y avances empíricos
máticos, têm permitido estudos específicos dessas
– La encuesta Montevideo 2003. Santiago do Chile:
dimensões. É o caso do Uruguai, onde foi reali- Cepal, 2004.
zado um levantamento em 2003 sobre o uso do ARAYA, María José. Un acercamiento a las Encuestas sobre
tempo dos homens e das mulheres, com o objetivo el Uso del Tiempo con orientación de género. Santiago
de gerar indicadores que informassem e mostras- do Chile: Cepal, 2003. (Série Mujer y Desarrollo, n. 50).
sem as relações assimétricas entre os gêneros nas FEIJOÓ, María del Carmen. Desafíos conceptuales de la
pobreza desde una perspectiva de género. Documento
famílias (Aguirre, 2004).
apresentado na Reunião de Especialistas em Temas de
Pobreza e Gênero, Cepal/OIT, Santiago do Chile, ago. 2003.
Resumo KABEER, Naila. Reversed eealities: gender hierarchies in
O enfoque de gênero tem dado contribuições con- development thought. Londres: Verso, 1994.
ceituais e metodológicas valiosas ao estudo da
pobreza. Em termos conceituais, fornece uma
definição mais abrangente da pobreza, numa pers-
pectiva integrada e dinâmica que reconhece as
dimensões múltiplas e os aspectos heterogêneos
da pobreza. A perspectiva de gênero critica forte-
mente as definições de pobreza baseadas na renda
e destaca os componentes materiais, simbólicos
e culturais como aqueles que influenciam as rela-
ções de poder que, por seu lado, determinam o
acesso dos gêneros aos recursos materiais, sociais
e culturais. É possível sustentar que, sem uma
perspectiva de gênero, a pobreza não pode ser
entendida de forma adequada.
O enfoque de gênero no estudo da pobreza le-
vou à revisão dos métodos mais convencionais de
medição e a exploração de novos métodos, dando
uma contribuição significativa ao atual debate.
As medidas de renda familiar não capturam
as dimensões intrafamiliares da pobreza, incluindo
as desigualdades entre os gêneros, pois assumem
uma distribuição justa dos recursos entre seus
membros, homogeneizando as necessidades de
cada pessoa e considerando que todas são igual-
mente pobres. Esse método tem limitações para
medir a desigualdade entre gêneros porque não
reconhece, em termos monetários, a contribui-
ção para a família do trabalho doméstico não-re-
munerado. Finalmente, as medidas de renda são
incapazes de capturar as diferenças entre gêne-
ros em termos dos padrões de uso do tempo e de
gastos, duas dimensões que contribuem para
caracterizar a pobreza mais completamente e para
formular políticas públicas melhores.

2 Para mais informações sobre esses estudos, ver


Araya (2003).

Observatório da Cidadania 2005 / 30


PANORAMA BRASILEIRO
Observatório da Cidadania 2005 / 32
Entre a política econômica e a questão social

Passados dez anos da Conferência de Copenhague, não houve mudanças no relacionamento entre a política econômica e
a questão social no Brasil. Lula segue as práticas do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso: coletar impostos
gerados por um sistema regressivo e usá-los para transferir renda às classes média e alta, em uma perversa inversão das
estratégias de redistribuição.

Fernando J. Cardim de Carvalho* a idéia de pecado original para ilustrar a percep- da questão social não deverá ter caráter residual
ção de que o sofrimento redime e que o dia do e subsidiário; ao contrário, todas as ações gover-
As conferências sociais da Organização das Nações Juízo Final recompensará a virtude. namentais deverão estar permanentemente infor-
Unidas (ONU) na década de 1990, particularmente As políticas sociais são uma descoberta tar- madas pelo compromisso de fazer face, de forma
a de Copenhague, em 1995, perseguiram um obje- dia das economias de mercado. Na sua origem, sistemática, aos problemas sociais do País”. Para
tivo ambicioso: a transformação da maneira de são uma conquista sobre a caridade privada típica uso externo, o Brasil comprometeu-se com a van-
pensar políticas públicas, até mesmo a política dos primórdios do capitalismo. Seu papel sempre guarda da revolução cultural em torno da redefi-
econômica, de modo a explicitar (e, naturalmente, foi o de proteger as pessoas mais fracas, as inca- nição da natureza das políticas de governo e, em
mudar) seu conteúdo social. Propunha-se uma pazes de resistir aos sacrifícios necessários para particular, com a relação entre as políticas eco-
mudança cultural, no sentido maior da expressão. a construção do futuro, as caídas no processo de nômica e social. A questão social não seria mais
Era preciso, em particular, superar a dicotomia seleção promovido pelo mercado. A erosão do “subsidiária”, e sim uma dimensão fundamental
entre políticas econômicas e políticas sociais, pela ideário socialdemocrata e socialista no fim do da própria política econômica.
qual as primeiras são supostamente formuladas século XX deu nova força a essas idéias, que, na
segundo uma visão do que seriam os interesses realidade, nunca saíram completamente de cena, Retórica reformista
globais da nação, cabendo às políticas sociais mesmo no auge do Estado de bem-estar. Encerrado o ciclo FHC em 2002, certamente pou-
amenizar seus efeitos porventura negativos sobre Era precisamente o questionamento dessa cas pessoas se surpreenderam ao constatar, con-
grupos sociais mais vulneráveis. visão de uma política econômica dominante – por- tudo, que sua adesão efetiva à nova visão de po-
A política econômica, nesse tipo de raciocí- que tecnicamente desenhada e porque determi- lítica econômica foi menos do que pífia. O caráter
nio, contrasta com as políticas ditas sociais por nada de acordo com os interesses da nação,1 em claramente conservador da coalizão de centro-
duas características centrais: por um lado, ela é oposição a políticas sociais formuladas em favor direita liderada pelo presidente Cardoso surpreen-
formulada de acordo com princípios racionais, de grupos específicos – que, em variadas formas, deu mais antigos leitores e leitoras da obra publi-
técnicos; por outro, é também o campo da peni- foi proposto nas conferências sociais das Nações cada do sociólogo Fernando Henrique Cardoso
tência, do sofrimento inevitável, com o qual se Unidas. Em suas manifestações públicas, o go- que observadores e observadoras da cena política
compra um futuro melhor para o país em um hori- verno FHC foi grandiloqüente. No relatório brasi- brasileira. A seus leitores e leitoras, segundo se
zonte de tempo indefinido. As duas faces são na leiro apresentado à Conferência de Copenhague, o atribuiu na época, o próprio presidente teria se
verdade inseparáveis, como os dois pólos de um presidente Cardoso informava: “O enfrentamento encarregado de pedir que esquecessem o que tinha
magneto. Aprende-se que o sacrifício é necessário escrito em sua outra encarnação.
porque é o custo de um futuro melhor. Mas, para Assim, a política econômica de Cardoso mos-
que o sacrifício não seja em vão, a política precisa trou-se, afinal, completamente insensível à sua
1 Não se deve deixar passar que esses dois argumentos,
ser determinada por técnicos e técnicas que não por exemplo, são os utilizados pelo governo Lula para
dimensão social, levando à estagnação e ao desem-
se intimidam com os custos criados por ela no defender a independência do Banco Central. Segundo o prego sustentados por oito anos, à vulnerabilidade
presente, porque sabem que o prêmio será melhor ministro da Fazenda e as pessoas que lhe são próximas, externa, à regressividade 2 na distribuição de renda,
a independência do Banco Central se justifica pela ao privilégio do serviço da dívida pública interna,
para todas as pessoas. natureza “técnica” das decisões sobre taxas de juros.
Expressões como “fazer o dever de casa” lem- O ministro parece acreditar – e, ao que tudo indica, o
em condições absurdamente favoráveis a credores,
bram a quem passou pela escola que o tédio presidente da República também – que os juros altos em detrimento da produção de bens públicos que
mortal das horas de lazer perdidas na adolescência são o que a nação precisa. Para o presidente e o seu servissem à maioria da população.
ministro, a política monetária (e a política fiscal que a A seu crédito, inegavelmente, um grande
foi precisamente o custo pago pelo conhecimento ela fica subordinada quando os gastos do governo são
acumulado que hoje permite a ex-estudantes ga- determinados pelo que sobra do orçamento depois da
benefício: a consolidação da estabilização de pre-
nharem o seu salário. Outras expressões, de tom prioridade atribuída ao serviço da dívida pública ser ços, obtida ainda no governo anterior, presidido por
quase sadomasoquista, como a necessidade de respeitada) beneficia o país, e não, apesar das Itamar Franco, além de algumas políticas seto-
aparências, grupos sociais específicos. A proposta de riais, entre as quais se destaca a de saúde, espe-
“cortar na própria carne,” se apóiam nos variados independência do Banco Central visa garantir que a
complexos de culpa da civilização montada sobre instituição seja sempre capaz de tomar essas decisões
cialmente no combate ao HIV. O balanço, contudo,
que beneficiam o país, seja este qual for. Quem se opõe foi amplamente negativo e se manifestou nas urnas
a elas só pode ser tecnicamente incapaz (por não
conseguir compreender o sacrifício necessário à defesa
dos verdadeiros interesses da nação) ou representante
* Professor titular do Instituto de Economia da de grupos de interesse (como sindicatos interessados 2 São chamadas de regressivas as políticas ou
Universidade Federal do Rio de Janeiro em manter o nível de emprego, ou empresários iniciativas que acentuam a concentração de renda, em
(fjccarvalho@uol.com.br). interessados em manter seu nível de produção). vez de amenizá-la.

Observatório da Cidadania 2005 / 33


em 2002, quando o candidato apoiado por Cardoso economia fomenta, mesmo em jovens de incli- influenciados(as) pelas reações que suas iniciati-
foi inequivocamente batido no segundo turno.3 nação mais progressista, o ideal de manter a vas podem gerar nesse mercado, mais do que nos
Muito mais surpreendente que a inabilidade cabeça dura, ainda quando o coração é mole.4 outros e, certamente, muito mais do que as rea-
do governo de centro-direita de Cardoso em levar a Naturalmente, é na segunda frente, dos inte- ções de eleitores e eleitoras.
sério suas próprias palavras no documento envia- resses criados ou defendidos pela orientação da De qualquer modo, não há nada de inevitá-
do à Conferência de Copenhague, foi certamente política econômica, que se esperará encontrar a vel nessa preeminência. Ela foi construída pelas
a mesma incapacidade demonstrada pela coali- resistência mais encarniçada à redefinição de mudanças institucionais liberalizantes das déca-
zão que se apresenta como de centro-esquerda, prioridades, mas o avanço rápido e avassalador das de 1980 e 1990, e nada em princípio impede
liderada por Luiz Inácio Lula da Silva. Após um da ideologia neoliberal a partir da década de 1980 que uma reavaliação dessas mudanças eventual-
discurso de posse na presidência em janeiro de nos ensina que crenças enraizadas não são remo- mente leve a um balanço de forças diferentes no
2003 marcado pela retórica reformista, iniciada vidas com facilidade. Quando essas crenças ou futuro. Se a resistência dos mercados for quebrada,
com a palavra “mudança”, a política econômica ideologias se apresentam travestidas de ciência, a mudança da relação entre políticas econômica
que se seguiu manteve todos os parâmetros da sob a forma de proposições fraseadas muitas ve- e sociais pode ser tecnicamente mais simples do
política econômica de Cardoso, agravando mes- zes em um palavreado ininteligível para muitas que se pode pensar.
mo alguns deles. O governo Lula, tanto quanto o pessoas, em esquemas de raciocínios no mínimo
de Cardoso que o precedeu, manteve a natureza incomuns, paradoxalmente, seu poder se torna O custo social das decisões
basicamente estagnacionista e concentradora da ainda maior, o encantamento das palavras sobre Na verdade, em grande parte, essa mudança já
política econômica, continuou subordinando a o público em geral se acentua. Mesmo jovens foi (ou está sendo) feita em outras áreas. Tome-
produção de bens públicos ao serviço da dívida economistas progressistas têm de se esforçar para se, por exemplo, a área ambiental. Atualmente, a
pública em termos injustificadamente favoráveis resistir à ideologia do sofrimento. Muitas vezes formulação de política econômica para a área de
aos credores e, principalmente, manteve o confi- sucumbem à síndrome do pai que espanca filhos energia já contempla, em grau bastante acentua-
namento das “preocupações sociais” em papel e filhas, mas que diz (e sente) doerem os golpes do, a preocupação com a preservação do meio
secundário, isto é, no campo das políticas de mais nele que nas crianças. ambiente. Políticas agrícolas e agrárias também
defesa de grupos mais vulneráveis. A segunda frente é mais facilmente compre- levam em conta, ainda que de forma talvez insufi-
A incapacidade (ou indisposição) para pen- endida: são os interesses beneficiados pela con- ciente, preocupações ambientais.
sar a política econômica em termos mais amplos figuração atual de políticas econômicas e seu O caminho para a superação do papel “resi-
se manteve. A política econômica de Lula premia domínio sobre todas as outras políticas públicas. dual e subsidiário” da questão social perante a
os mesmos interesses antes contemplados por O colapso do chamado socialismo real do Leste política econômica é o mesmo. Tecnicamente,
Cardoso e mantém a mesma retórica que reco- Europeu e a perda de prestígio (hoje, contudo, já basta submeter as decisões de política macroe-
menda a quem perde com essas políticas satisfa- mais atenuada) dos regimes socialdemocratas, conômica – isto é, a política fiscal, a política mone-
zer-se com a vitória sobre a inflação, obtida há especialmente os escandinavos, tornou a funcio- tária, a política cambial etc. – a critérios de custo/
mais de dez anos e com o futuro melhor que um nalidade de mercado o critério essencial para o benefício que identifiquem também a incidência
dia essa vitória trará. Como o presidente mesmo julgamento da validade e da adequação de políti- destes em termos de grupos sociais, superando
insiste, trata-se de “vender otimismo”, cuja função cas econômicas específicas. a fantasia ideológica de que existe um interesse
parece ser facilitar a espera de um novo milênio A liberalização financeira doméstica e inter- “nacional” acima do interesse das pessoas que
que tarda a chegar. nacional que se espalhou por quase todo o mundo constituem esta nação.
nas décadas de 1980 e 1990 estreitou ainda mais Nenhuma política é neutra. Qualquer inicia-
Ideologia do sofrimento e mercado os critérios de escolha de políticas econômicas. tiva de governo redistribui a renda (e, possivel-
Mudar a relação entre a política econômica e a As políticas agora devem agradar “ao mercado”. mente, a riqueza) da sociedade em algum grau.
política social enfrenta oposição em duas frentes. Por mercado, devem-se entender instituições finan- Objetivos abstratos podem ser apresentados de
De um lado, o treinamento acadêmico de econo- ceiras e investidores em títulos, especialmente forma neutra, mas políticas neutras simplesmente
mistas privilegia a idéia de que “não existe o al- títulos públicos. A predominância desse mercado não existem. Ao objetivo de austeridade fiscal, por
moço grátis”, na famosa expressão de Milton sobre os outros é resultado de uma evolução com- exemplo, em que o governo gasta apenas aquilo
Friedman. O conceito em si é importante, e, em plexa, que não pode ser explorada aqui. Mas certas que arrecada com impostos, podem correspon-
muitos debates, o papel de economistas é certa- características do mercado financeiro moderno der políticas que aumentam impostos sobre as
mente lembrar que quase toda opção em favor de garantem sua dominância sobre outros segmentos. pessoas mais ricas ou as mais pobres, ou que
um caminho envolve algum custo em termos de Em particular, mercados financeiros reagem muito cortam a oferta de bens públicos a um ou a outro
possíveis alternativas. Isso se chama de custo de mais rapidamente do que os outros a qualquer desses dois grupos.
oportunidade e é uma idéia cara a economistas informação que lhes interesse. Cada política escolhida distribui esses cus-
de todos os matizes. Um grande número de pro- Se um governo sai da linha, os detentores de tos e benefícios de forma diferente. A política
fissionais, no entanto, absolutiza esse conceito e títulos da dívida pública podem colocá-los à venda fiscal de FHC e de Lula persegue algum grau de
se especializa não apenas em exagerar quaisquer rapidamente, tornando o financiamento da ativida- austeridade fiscal, por meio do corte de bens pú-
custos de mudança do statu quo, mas também de pública imediatamente mais difícil. O mesmo se blicos às pessoas mais pobres e de investimen-
imaginar alguns custos que possivelmente nem dá com as firmas que vendem papéis no mercado. tos públicos para manter elevada a remuneração
existam realmente. Freqüentemente, o ensino de Esse poder de reação rápida põe sempre o setor da dívida pública, que beneficia classes médias e
financeiro em vantagem quando se trata de avalia- de altas rendas. A explicitação desses custos e
ção de políticas. Por isso mesmo, formuladores(as) benefícios permitiria evitar que as políticas so-
de políticas acabam sendo desproporcionalmente ciais servissem apenas atenuar o impacto da polí-
tica econômica. No momento, no Brasil como em
3 O cumprimento das decisões de Copenhague no muitos outros países, a política fiscal é estabele-
primeiro governo FHC foi discutido detalhadamente no
cida em grande medida pela minimização de es-
Observatório da Cidadania, de 2000 (Kerstenestzky
e Carvalho, 2000). As políticas econômica e sociais de 4 Esse é o título (Hard heads, soft hearts) de um livro de forço. É bem mais fácil adotar políticas que não
seu segundo mandato foram objeto de vários artigos Alan Blinder, economista progressista estadunidense, contrariam (muito pelo contrário) interesses do-
nos números seguintes do Observatório. ligado ao Partido Democrata. minantes do que o oposto.

Observatório da Cidadania 2005 / 34


Os impactos (custos) dessa decisão sobre de plantio. A consideração simultânea dos dois disfarça a predominância de interesses de gru-
os segmentos da sociedade são ignorados no objetivos, expandir a produção agrícola e promo- pos bem definidos, como o que ocorreu com a
processo de decisão sobre taxa de juros, superá- ver a preservação da cobertura florestal, condu- política macroeconômica de FHC e Lula.
vits primários, taxa de câmbio etc. Às pessoas zirá a decisões de política diversas daquelas ori- Por outro lado, essa seria uma mudança pos-
sacrificadas no processo, por outro lado, oferece- entadas pelo objetivo exclusivo de produção ou sível, mesmo numa perspectiva mais conserva-
se alguma compensação, sob a forma de bolsas- mesmo da decisão de expandir a produção infor- dora, que buscasse meramente contemplar os
escola, bolsas-família, cestas básicas etc. A polí- mada pelos efeitos potenciais sobre a cobertura impactos maiores das decisões de governo so-
tica social, assim, é um instrumento utilizado a de florestas (em que a preservação não é, de qual- bre a sociedade. Não é necessário que o governo
posteriori, de atenuação dos efeitos de uma polí- quer forma, um objetivo de mesma importância esteja buscando promover mudanças sociais mais
tica econômica desenhada sem que seus custos que a expansão da produção). amplas (que, na verdade, não estão na agenda de
sobre os diversos segmentos da sociedade se- Do mesmo modo que o sacrifício de árvores Lula, como nunca estiveram na de FHC), como a
jam considerados. já é considerado, quando se trata de política agrí- mudança na estrutura de distribuição de renda e
cola, é preciso considerar os custos para segmen- riqueza no país.
Saúde e Educação como protagonistas tos da sociedade, ou seja, o sacrifício de pessoas, Esses novos métodos podem ser defendidos
A solução, portanto, nada tem de “mágica”, pa- quando se determina a política monetária, a polí- simplesmente à base de preocupações com a efi-
lavra predileta do presidente e de seu ministro tica fiscal ou qualquer outra política econômica. ciência da política econômica, uma vez que au-
da Fazenda, nem está além da capacitação téc- A consideração da dimensão distributiva (até mentam a precisão do cálculo de custos e benefí-
nica de funcionários e funcionárias públicos. mesmo na decisão de quais bens públicos pro- cios de cada política. Mudanças mais profundas,
Ela se baseia exatamente no conceito de custo duzir e como alocá-los) exigiria que o processo de quando houver governo que as busque, visando
de oportunidade, tão caro a economistas e tão decisão de política econômica envolvesse direta- reduzir a extrema desigualdade na distribuição da
importante em sua formação. Tecnicamente, ela mente os ministérios provedores desses bens, renda e riqueza brasileiras, não serão justificadas
envolve pouco mais do que a mudança de trata- como, por exemplo, Saúde e Educação. por fatores de eficiência, mas pela vontade políti-
mento de variáveis como o Produto Interno Bruto Esses ministérios participariam da tomada de ca de transformação. Mesmo aqui, contudo, os
(PIB), por exemplo, para renda dos diversos seg- decisão como protagonistas, e não apenas como métodos propostos permitirão que governantes
mentos sociais. assessores, já que cada receita e cada despesa prevejam melhor os efeitos de suas decisões.6
Com isso, pode-se analisar, por exemplo, até teriam de ser analisadas em termos de sua prove- Um foco de resistência importante a iniciati-
onde os ganhos esperados da aplicação de uma niência (quem paga a receita) e destinação (quem vas que concretizem o espírito das conferências
determinada política não estarão excessivamente recebe). Os ministérios de finanças perderiam, sociais está localizado nas instituições financei-
concentrados em um grupo social, à exclusão de com isso, o poder que hoje detêm sobre o resto ras multilaterais, especialmente o Fundo Monetá-
outros. É possível que a perda dos segmentos dos governos (e, no Brasil, sobre os próprios rio Internacional (FMI). O Fundo, em documento
prejudicados supere os benefícios obtidos por presidentes, como nos casos de FHC e de Lula). publicado recentemente, analisou o fracasso das
outros, fazendo com que outra política seja pre- Em troca, seria obtida uma consideração muito reformas liberais na promoção do crescimento (e
ferida. Além disso, a desagregação de custos e mais equilibrada dos diversos interesses a serem da redução da pobreza e das desigualdades so-
benefícios segundo os grupos sociais atingidos contemplados no processo de formulação de ciais) na América Latina. Nesse documento, o FMI
permite a fixação simultânea de metas macroe- política econômica. defendeu o que vem se tornando há algum tempo
conômicas e sociais, favorecendo-se objetivos e Essa visão certamente seria qualificada de o mantra dessas instituições: as reformas libe-
instrumentos de políticas econômicas de acordo populista nas críticas de pessoas mais conserva- rais não fracassaram por serem inadequadas,
com seu impacto distributivo.5 doras, especialmente as que crêem (ou declaram mas porque não foram implementadas até o fim.
Como já observado, em sua dimensão técni- crer) na tecnicidade e objetividade da teoria eco- Assim, não cabe voltar atrás, mas, ao contrário,
ca, esse procedimento não é essencialmente di- nômica. Contudo, nada há nela de populista. O que intensificar o processo de reforma, atingindo os
ferente da formulação de uma política de produ- se propõe quando se trata de considerar a questão setores que, na América Latina, foram ainda
ção agrícola, por exemplo, que leva em conta tam- social na formulação de política econômica não é pouco tocados, como um mercado especial-
bém a perda que ela possa implicar em termos de distributivismo irresponsável, mas, o que já seria mente querido pelo Fundo e seus admiradores: o
cobertura florestal, causada pela expansão da área quase revolucionário, a consideração mais fina de mercado de trabalho.
custos e benefícios, diferenciando-se uns e ou- Para o FMI, o obstáculo ao emprego não é a
tros pelos segmentos da sociedade atingidos. combinação de juros elevados, investimento pú-
Não há nada aqui que implique irresponsabili- blico estrangulado, vulnerabilidade externa, vo-
5 Esses princípios, já defendidos em Kerstenetszky dade, curto-prazismo (por exemplo, privilegiar o latilidade cambial, mas a dificuldade do empresa-
e Carvalho (2000), foram também recentemente
consumo imediato da renda nacional sem preo- riado em demitir trabalhadores e trabalhadoras
explicitados em documento das Nações Unidas, ainda
que de forma um pouco mais estreita: “[...] é preciso cupação com a necessidade de intensificação de que viessem a contratar. Assim, o remédio ao
facilitar a ‘visibilidade’ dos efeitos sociais das políticas investimentos, exportações etc.) ou qualquer outro desemprego é a maior facilidade em desempre-
econômicas. Isto exige, entre outras coisas, um exame desvio de conduta. gar, não a ativação sustentada da economia, não
periódico por parte das autoridades macroeconômicas
dos efeitos esperados de suas políticas sobre o
emprego e as rendas dos setores mais pobres; normas
Resistência do FMI
que exijam que os projetos de lei de orçamento e de A análise dos custos e benefícios de qualquer
reforma tributária incorporem uma análise dos efeitos medida deve levar em conta que emergem em 6 Como no caso, por exemplo, de uma eventual mudança
distributivos dos gastos públicos e dos tributos, do sistema de impostos brasileiro, que reduza o peso dos
datas distintas, dependendo da política adotada.
e a obrigação das entidades públicas encarregadas da impostos indiretos e aumente os impostos sobre renda,
política tecnológica, industrial e agropecuária de Uma política de sacrifícios de curto prazo pode permitindo concentrar o seu peso nos grupos de rendas
analisar regularmente a quem beneficiam os seus ter um saldo final favorável quando se pensa mais mais altas (impostos progressivos). Esse instrumento
programas. Este deveria ser o ponto de partida rumo ao a longo prazo. O elemento novo a ser conside- foi decisivo tanto nas experiências socialdemocratas
desenho de sistemas eficazes de coordenação entre as européias como no caso estadunidense, de Roosevelt
rado é apenas a distribuição desses custos e be-
autoridades econômicas e sociais, para que as a Lyndon Johnson, para a redução das desigualdades
prioridades sociais se incorporem no próprio desenho nefícios em termos dos diversos segmentos da de renda. Nem o agrupamento nominalmente
das política econômica, isto é, da política fiscal, sociedade, em vez do discurso ideológico do ob- socialdemocrata brasileiro, nem o PT do governo atual
tecnológica ou produtiva” (Nações Unidas, 2005, p. 18). jetivo nacional que, quase sempre, apenas (mal) parecem sequer cogitar uma mudança desse tipo.

Observatório da Cidadania 2005 / 35


o investimento público e privado, não a expan- inflação, ao contrário do dinheiro que essas pes- Robin Hood às avessas
são da demanda agregada (impedida pela política soas tinham na carteira ou no jarro dentro de casa. Tanto quanto o combate à inflação era não apenas
de juros altos e superávits fiscais excessivos que Ainda assim, esses grupos sempre acabavam o uma política econômica como também uma polí-
o Fundo sugere e os governos brasileiros perse- mês com uma renda real menor que a anterior, tica social, as políticas de consolidação da esta-
guem com o entusiasmo fundamentalista dos enquanto as classes médias e de altas rendas dei- bilidade eram também políticas sociais, mas de
recém-convertidos). xavam o seu dinheiro no banco, ganhando juros natureza muito mais regressiva. A combinação
Ao contrário do que foi acordado nas confe- diários com aplicações em dívida pública. taxa de juros doméstica elevada e moeda local
rências das Nações Unidas, o Fundo lamenta a A inflação brasileira até 1994 era um me- valorizada, ao tornar importações mais fáceis,
falta na América Latina de “procedimentos orça- canismo extremamente concentrador de renda também reduziu em muito a capacidade de con-
mentários ‘hierárquicos’ que dêem relativamente e seu fim, com o Plano Real, representou uma corrência das firmas nacionais. O resultado disso
mais poder ao executivo que ao Congresso, e ao enorme transferência de renda real para esses foram as falências e o desemprego, especialmente
ministério das finanças mais do que aos ministé- grupos. A eleição em primeiro turno de Fernando entre as empresas industriais, atingindo de forma
rios gastadores” (Singh, 2005, p. 39). O FMI res- Henrique Cardoso, identificado como o inspi- particularmente forte o proletariado industrial pau-
salva a experiência do Chile como o país que rador da reforma, durante o governo Itamar lista, o segmento mais bem remunerado do setor
mais se aproximou de sua concepção de ideal de Franco,7 para presidente em 1994, contra Lula e industrial. Algumas empresas foram vendidas a
reformas. Pelo menos no que se refere à domi- o PT – que não pareciam ter entendido seja a empresas estrangeiras, até mesmo alguns sím-
nância do Ministério da Fazenda na definição das importância, seja a lógica do Plano Real –, ao lado bolos da indústria brasileira, como a Metaleve.
políticas de governo, o Fundo não teria o que de mais alguns candidatos mostrou o que a esta- A desnacionalização da economia é uma mudança
lamentar na experiência de FHC, no seu segundo bilização de preços representou para esses seg- permanente. O crescimento do desemprego, por
mandato, e no de Lula. mentos da população. sua vez, também se mostrou durável e, até o pre-
A consolidação da estabilidade de preços sente, continua bastante elevado, em torno de 10%
As políticas econômica e social de FHC alcançada com o Plano Real, por outro lado, en- da força de trabalho.
O relatório brasileiro à Conferência de Copenha- volveu políticas econômicas de conseqüências Um segundo aspecto importante foi a manu-
gue, citado no início deste texto, falseou inteira- sociais muito mais complexas. Se, por um lado, tenção de taxas de juros elevadas. Como conse-
mente o processo de formulação de política eco- o controle definitivo da inflação (em contraste com qüência, mesmo os setores que puderam resistir
nômica no governo FHC. Em nenhum momento as tentativas anteriores de estabilização, como o à concorrência estrangeira não conseguiram ou
de seus dois períodos de governo, a política so- Plano Cruzado, por exemplo) foi extremamente não tiveram estímulos à expansão, condenando a
cial deixou de ter caráter “residual e subsidiário” positivo em termos sociais, os instrumentos de economia brasileira a prosseguir na trajetória de
à formulação de política econômica, que, por sua consolidação dessa estabilidade foram ampla- estagnação herdada da década de 1980. Inaugu-
vez, seguiu padrões inteiramente ortodoxos, mente danosos a vários segmentos da população. rou-se um ciclo conhecido entre economistas
distribuindo suas benesses do modo mais costu- A expansão das importações, alimentada pela va- como de stop-and-go, isto é, de pequenos arran-
meiro, com o especial favorecimento de rentistas, lorização do real – que resultou da manutenção ques, sucedidos por pequenas quedas, também
aqueles cuja riqueza é remunerada pelo paga- de taxas de juros domésticos elevadas – impediu conhecido como “vôo de galinha”. Nesse perío-
mento de juros. o ressurgimento da inflação. do, cada vez que a economia encontrava alguma
A grande política social de FHC foi, na ver- A estratégia utilizada era relativamente sim- razão para se expandir, a situação externa se tor-
dade, um subproduto de sua política econômica. ples. Tentativas de aumento de preços por parte dos nava mais frágil (por causa do crescimento das
O bem-sucedido Plano Real cortou drasticamente produtores domésticos de bens encontrariam pela importações que normalmente acompanha o cres-
o processo inflacionário que assolava a socie- frente a concorrência de produtos importados a cimento da renda nacional): ou aumentavam as
dade brasileira há mais de 20 anos. Muito embora preços mais baixos. A garantia de que os preços taxas de juros para poder atrair capitais de modo
não se possa afirmar que a ênfase no controle da dos importados seriam baixos era dada pela ma- a poder pagar pelas importações, ou se esfriava a
inflação fosse resultante da preocupação com a nutenção do real valorizado,8 além das reduções economia para que se importasse menos. Assim,
corrosão crescente das rendas reais dos seg- de tarifas de importação que ocorreram quando o à desnacionalização e ao crescimento do desem-
mentos mais pobres da população, já que, aos país liberalizou seu comércio exterior. prego, a política econômica de FHC acrescentava
níveis alcançados por volta de 1993, a inflação Essa estratégia, no entanto, enfrentaria um a estagnação e a fragilidade externa.
ameaçava a própria sobrevivência da economia problema: como pagar pelas importações adicio- Finalmente, as altas taxas de juros faziam com
brasileira, seria mesquinho e inútil não reconhe- nais? O mesmo mecanismo que torna as impor- que a conta a pagar do governo pela sua dívida
cer que o fim da inflação acelerada representou tações mais baratas faz com que seja mais difícil pública interna crescesse muito. Na verdade,
uma enorme e imediata melhoria na qualidade de exportar. Comprando mais e vendendo menos, a quanto mais crescia a dívida, mais tinha o gover-
vida daqueles segmentos. única forma de manter a estratégia antiinflacio- no que oferecer aos aplicadores financeiros para
Uma inflação elevada como a vivida no Brasil nária funcionando seria tomando dinheiro empres- que comprassem os títulos públicos. No primeiro
até 1994 destruía rapidamente a renda real de tado no exterior. Para isso, seria preciso manter governo FHC, o pagamento de juros (chamado de
quem não tinha acesso a aplicações financeiras, as taxas de juros pagas no país elevadas, de modo serviço da dívida) não sacrificava outros gastos
exatamente como é o caso dos segmentos mais a interessar os credores a emprestar ao Brasil. do governo de forma significativa. Já no segundo
pobres da população brasileira. Esses indivíduos Em meado da década de 1990, quando o Plano mandato, depois da crise de 1998, quando a estra-
tinham diante de si apenas duas escolhas: ver o Real foi implementado, tomar dinheiro empres- tégia anterior apoiada na combinação juros altos/
poder de compra do seu dinheiro ser violenta- tado no exterior era facilitado pela abundância de real valorizado/endividamento externo desmoro-
mente diminuído a cada dia ou gastar todo o seu dólares no mercado financeiro internacional. nou, a política fiscal tornou-se também mais acen-
salário no momento em que fosse pago, mesmo tuadamente regressiva.
que em produtos que não o atraíssem realmente. Com a política econômica brasileira coloca-
Era comum naqueles tempos a cena dos super- da sob a tutela do FMI como condição para que a
mercados lotados nos dias de pagamento, com 7 O Plano Real era, inicialmente, conhecido como instituição socorresse o governo, o serviço da
muitos carrinhos cheios de latas de óleo, um pro- Plano FHC. dívida teria de ser garantido pela geração dos
duto de vida relativamente longa, fácil de arma- 8 No segundo semestre de 1994, o dólar chegou a chamados superávits primários, isto é, pelo ex-
zenar e cujo valor pelo menos acompanhava a valer R$ 0,80. cesso de receitas sobre os gastos do governo em

Observatório da Cidadania 2005 / 36


bens e serviços. O governo federal passaria a re- profundas na orientação da economia – somado ao Argumentos equivocados
colher mais impostos e/ou cortar gastos em bens que se imaginava ser a orientação predominante do Há muitos problemas com esse raciocínio, quali-
e serviços para garantir que sobrasse uma parcela partido, isso serviu para inquietar esses mesmos ficado certa vez por um economista de “macroe-
suficiente da receita de impostos para o pagamento mercados financeiros. A turbulência que tomou conomia do lar”, a começar pelo princípio de que a
dos juros da dívida pública. conta deles por volta de maio/junho de 2002 ini- analogia é simplesmente falsa. Um “pai de família”
Assim, uma terceira dimensão socialmente ciou-se com a recusa dos aplicadores financeiros não tem outras formas de acesso a meios de paga-
perversa da estratégia de estabilização de preços em aceitar títulos da dívida pública com venci- mento de seus compromissos, senão sua renda
revelou-se na regressividade da intervenção do mento posterior à posse de Lula, temerosos de que corrente ou a obtenção de crédito de instituições
governo. Enquanto, em países mais avançados, o novo governo resolvesse repudiar essa dívida financeiras ou agiotas. Sua renda corrente é limita-
o Estado foi importante instrumento de redistri- (dar um calote, na linguagem mais popular). da por seu salário, cujo valor é normalmente fixo.
buição de renda para a população mais pobre, ao Na ausência de oportunidades de aplicação Governos não têm renda fixa, porque podem fazer
taxar mais pesadamente a renda das pessoas mais financeira no país, já que a dívida pública é pratica- crescer seu “salário”, aumentando os impostos
ricas, usando-a para suprir bens às mais pobres, mente o único mercado financeiro de fato atraente que cobra. Todos os cidadãos e as cidadãs con-
como saúde e educação, o Estado brasileiro tor- no Brasil, os aplicadores promoveram uma fuga denam o apelo freqüente ao aumento de impostos,
nou-se cada vez mais um Robin Hood às avessas, de capitais que levou a uma desvalorização acen- mas o próprio governo Lula tem se valido disso
dependendo pesadamente dos chamados impostos tuada do real em relação ao dólar. Tal desvalori- desde seu início, como os outros antes dele.
indiretos (sobre produtos) que incidem, também, zação, por sua vez, aterrorizou as empresas bra- Apesar da gritaria que sempre acompanha
sobre produtos de consumo popular, utilizando sileiras que haviam tomado dinheiro emprestado aumentos de impostos, especialmente em um país
uma proporção excepcionalmente alta dessas re- no exterior (para evitar pagar as enormes taxas de de estrutura de impostos tão regressiva e irracional
ceitas para transferir rendas às classes médias e juros cobradas no país). Essas empresas resol- como a brasileira, seria concebível um aumento de
altas sob a forma de pagamento de juros.9 veram antecipar o pagamento de suas dívidas, impostos que não incidisse sobre as rendas mais
Desse modo, além de sua política social ex- antes que o dólar subisse tanto a ponto de levá-las baixas ou sobre gastos de que o país necessita,
plícita que nunca deixou de ser “residual e subsi- à falência. Com isso, o dólar subiu ainda mais, e como, por exemplo, a realização de investimentos.
diária”, consistindo fundamentalmente na atenua- a situação pareceu virtualmente fora de controle Nada disso é possível ao “pai de família”.
ção dos efeitos mais perversos de suas políticas no início do segundo semestre de 2002. Em segundo lugar, o governo tem a chance
econômicas, a política social mais importante do Acuado, o candidato Lula foi levado a repu- (que deve ser usada com muita cautela, é verdade,
governo FHC foi mesmo aquela implícita em sua diar explicitamente os antigos slogans de cam- especialmente em países com a história inflacio-
estratégia macroeconômica. Ao fim de seu segun- panha do PT, por meio de sua famosa Carta aos nária do Brasil) de emitir dinheiro para pagar suas
do mandato, a herança de FHC estava realmente Brasileiros. Nesse documento, apesar dos seus dívidas, em casos extremos, como há também a
bastante próxima da caracterização que Lula lhe termos vagos, Lula praticamente comprometeu- possibilidade de obter recursos por meio de colo-
atribuiu, de herança maldita: desemprego, inca- se com a continuidade da política econômica de cações compulsórias de dívida pública.12 Nada
pacidade de crescimento, juros elevados, vulne- Cardoso, eliminando qualquer possibilidade de disso também é acessível ao “pai de família”.
rabilidade externa e política fiscal regressiva do reorientação de rumos com relação à economia. O que esses argumentos mostram não é,
ponto de vista redistributivo, apenas atenuadas A expressão-chave da famosa Carta era o “respeito naturalmente, a possibilidade de os governos
por políticas assistenciais voltadas para “susten- à santidade dos contratos”, expressão cifrada para gastarem o que desejem, mas sim que restrições
tar o fundo do poço”.10 o compromisso com a manutenção dos métodos e limites à sua atuação nada têm a ver com o que
de serviço da dívida praticados até então.11 enfrenta um “pai de família” às voltas com as de-
A campanha eleitoral de 2002 Essa idéia tem sido utilizada com freqüência mandas de seus “filhos” (como são descritas, no
O caráter do governo Lula, que se iniciou em 1º (além de outra proposta defendida por Lula e seu mesmo estilo de retórica, as demandas apresen-
de janeiro de 2003, ao que tudo indica, foi deter- ministro da Fazenda de que alternativas de política tadas pelos vários grupos sociais). Confundir as
minado ainda na campanha eleitoral, quando, no econômica são “mágicas”) para justificar a ausên- dimensões é comum, mas governantes deveriam
meado de 2002, o país atravessou período de séria cia de iniciativas na política macroeconômica. ser mais bem informados a respeito das especifi-
turbulência no mercado de capitais e na sua fren- Explica o presidente, em sua metáfora favorita, cidades da ação de governo.
te externa. A turbulência resultou da confluência que o Estado está limitado pelos mesmos fatores A diferença entre a administração de gover-
de dois fatores: o primeiro foi a tentativa do en- que uma família (ou um “pai de família”, como nos e a administração de famílias também se
tão presidente Cardoso de repetir sua vitoriosa prefere Lula): não pode gastar mais do que ganha, mostra na questão dos contratos de dívida (na
estratégia política de 1998, acenando ao público tem de se conformar com os termos dos contratos verdade, de quaisquer tipos de contratos, não
com os riscos que a eleição de Lula poderia acar- que assina etc. Administrar o governo como se apenas os de dívida). O papel do governo aqui é
retar à economia do país, com a alegação de que administra uma família: essa parece ser a orien- muito mais complexo do que supõem as pessoas
seria preferível manter a medíocre trajetória de seu tação básica do governo iniciado em 2003. que entoam permanentemente a ladainha da “san-
governo a arriscar-se com uma novidade temida tidade dos contratos”. O governo não é apenas
pelos mercados; e o segundo referiu-se aos do- “mais um” participante do sistema, preso pelas
cumentos de campanha publicados pelo PT, mas mesmas regras que prendem os indivíduos. Ele
11 Isso parece ter sido entendido pelo governo Lula não
nunca realmente endossados em público pelo apenas como o respeito a maturidades, termos etc., mas é, na sua acepção mais ampla, quem garante os
candidato Lula, que preconizavam mudanças mais também à rentabilidade dessas aplicações. O presidente do contratos, o árbitro de sua validade e aplicabili-
Banco Central escolhido por Lula, Henrique Meirelles, dade. Isso não quer dizer, como pode parecer à
criticou quem defendia reduções mais acentuadas da
taxa de juros para diminuir o serviço da dívida como
primeira vista, que o governo garanta que qual-
uma forma de calote, já que os(as) aplicadores(as) quer contrato seja cumprido à risca.
9 As classes médias repartem esses benefícios compraram títulos na expectativa de ser muito bem
principalmente sob a forma de retornos sobre fundos remunerados, embora nada no contrato da dívida, como se
de investimento. mostrará abaixo, implique a manutenção das taxas nos
10 Políticas que não visam mudar estruturalmente o perfil níveis atuais. Sabe-se, porém, que a ausência de inovações
de distribuição de renda e riqueza, confinando-se a na política econômica do governo Lula não se estende 12 Por exemplo, ao requerer que o sistema bancário
tentar impedir que a situação dos grupos mais ao campo do discurso e dos conceitos formulados pelo investisse parte de seus recursos líquidos em papéis
vulneráveis se deteriore indefinidamente. próprio presidente e por seus/suas auxiliares. da dívida pública.

Observatório da Cidadania 2005 / 37


A função de garantidor inclui também a fun- que vem, a taxa de juros subir, por qualquer abriu mão de reger a política monetária, permitindo
ção de examinar cláusulas contratuais que eventual- razão, para, digamos, 30% ou 40%, os 19,75% ao Banco Central desprezar completamente os im-
mente tenham de ser mudadas diante das circuns- de hoje parecerão irrisórios. Por isso, quem apli- pactos de suas decisões sobre o emprego e a renda
tâncias. A própria teoria econômica reconhece ca tem preferido sempre contratos de dívida re- da sociedade. A questão social, nesse caso, não
que, quando contratos são assinados, é impossí- munerados pela taxa de juros de curto prazo, para chega sequer ao status de “residual e subsidiária”:
vel às pessoas contratantes prever tudo o que se beneficiar com cada aumento promovido pelo ela simplesmente é ignorada por quem tem o po-
poderá ser relevante no futuro. Novidades acon- Banco Central. der de tomar decisões. A nomeação de dirigentes
tecem e, às vezes, essas novidades exigem a Em 30 de abril de 2005, cerca de 60% da particularmente de perfil conservador para o Banco
reinterpretação ou mesmo a mudança de com- dívida pública em mãos de investidores e investi- Central tornou a situação ainda mais difícil.
promissos contratuais.13 doras era remunerada pela taxa de juros de curto A gravidade dessa opção do governo Lula
prazo (taxa Selic). Note-se: a remuneração pela reside no que economistas chamam de “domi-
Lições de Keynes taxa de juros de curto prazo é parte do contrato. nância monetária”, isto é, no fato de que a política
John Maynard Keynes, o mais influente econo- Se o governo decidisse reduzir o serviço da dívi- monetária praticada pelo Banco Central domina
mista do século XX, há quase cem anos respondeu da pública, a fim de ter mais recursos orçamentá- todo o processo de decisão de política econô-
às pessoas que se apoiavam na “intocável santi- rios para os investimentos ou para o provimento mica do governo.
dade dos contratos” (a expressão é dele mesmo) de mais e melhores bens públicos, não seria pre- Tomemos, por exemplo, a política fiscal. O ob-
para impedir a busca de soluções para a dívida ciso violar nenhum contrato: bastaria reduzir dras- jetivo maior da política fiscal de Lula é produzir o
pública européia, que sufocava as economias do ticamente a taxa Selic, que remunera quase dois maior superávit primário possível, cuja única fun-
continente: “Nada pode preservar a integridade terços dessa dívida! ção é assegurar ao mercado que o governo será
dos contratos entre indivíduos exceto a autoridade Assim, apresentar a questão em termos de capaz de gerar e reter a proporção necessária de
discricionária do Estado para revisar o que se tor- calote serviu apenas para intimidar, com total su- receitas que permitam pagar as altíssimas taxas
nou intolerável”. Keynes acrescentou: “Aqueles cesso, um futuro governo Lula ainda durante sua de juros que o Banco Central determina.
que insistem que nestas matérias o Estado está campanha eleitoral. Temeroso de ser tratado como Nestes quase três anos de governo Lula,
exatamente na mesma posição dos indivíduos um caloteiro, o governo aceitou ser imobilizado mesmo os gastos públicos orçados de forma a
tornarão impossível, se predominarem, a conti- mesmo com respeito a mudanças que poderia possibilitar alcançar a meta de superávit primário
nuidade de uma sociedade individualista, que fazer respeitando as cláusulas contratuais então fixada em 4,25% do PIB são reprimidos, alcan-
depende da moderação para existir”. em vigor. Vale ressaltar que, ao assumir o novo çando o governo (e se congratulando por isso),
Alguns indivíduos dirão que um Estado as- governo, em janeiro de 2003, a proporção da dí- na prática, valores muito maiores, às custas do
sim não é confiável. A esses, respondia Keynes: vida pública remunerada pela taxa de juros de estrangulamento de investimentos, da oferta li-
curto prazo era, como agora, de cerca de 60%.15 mitada de bens públicos, freqüentemente de má
O Estado não deve nunca negligenciar a
importância de agir em matérias ordinárias de qualidade, à população. Assim, a política fiscal é
modo a promover a certeza e a segurança dos As políticas econômicas do governo Lula dominada pela política monetária, limitando-se
negócios. Mas, quando grandes decisões têm de No governo Lula, foram mantidas intactas, ou fundamentalmente a administrar os resíduos dei-
ser tomadas, o Estado é um corpo soberano mesmo reforçadas, as duas principais caracterís- xados no orçamento pelo serviço da dívida, nos
cujo propósito é promover o bem maior para o ticas que marcaram os governos FHC: o isolamento termos determinados pelo Banco Central.
todo. Quando, portanto, entramos o campo da
das políticas econômicas em relação a questões A dominância da política monetária se esten-
ação do Estado, tudo deve ser considerado e
pesado em seus méritos.14 “sociais”; e a natureza basicamente assistencia- de aos outros campos da política econômica,
lista da política social, voltada para conter a dete- como a política cambial, por exemplo, como se
Há uma certa ironia em toda essa discussão,
rioração da posição de quem está no fundo do vê todos os dias nos jornais. O governo se empe-
porque a questão da dívida pública, que tem se
poço, mais do que transformar estruturas ou ata- nha, na verdade, em reforçar a blindagem da po-
constituído no principal nó de dificuldades à con-
car o problema da desigualdade na distribuição lítica econômica em relação a pressões da socie-
cepção e implementação de políticas econômicas
de riqueza e de renda. dade, como se vê na resistência a demandas de
alternativas, de diferente conteúdo social, nem se-
A “blindagem” das decisões de política macro- ampliação do Conselho Monetário Nacional ou
quer exige pensar-se em soluções que passem
econômica em relação a influências e demandas na insistência na proposta de transformação do
pela violação das regras contratuais (ao contrário
da sociedade resultou da independência, para to- Banco Central numa instituição independente,
do caso argentino, por exemplo, ao qual as obser-
dos os efeitos práticos, total concedida ao Banco mesmo contra a vontade de fração considerável do
vações de Keynes se aplicariam mais fortemente).
Central na fixação da taxa Selic. Repetindo a ale- próprio partido do presidente, apelando o ministro
Quem compra papéis do Tesouro Nacional há mui-
gação (falsa) de que a fixação da taxa de juros é da Fazenda para manobras como o aliciamento
to se recusa a investir em títulos remunerados a
um problema meramente técnico ,16 o governo de políticos de outros partidos a fim de patroci-
taxas de juros prefixadas porque, neste país, nunca
nar a proposta no Congresso.
se sabe o que acontecerá no futuro. A taxa de
Afastadas de modo radical dos processos
juros, hoje aparentemente atraente, pode deixar
de decisão de política econômica, as questões
de sê-lo. Assim, ganhar do Tesouro 19,75% por
15 Mais exatamente de 59,79%. sociais são relegadas às políticas sociais, cujo
ano, pode parecer muito bom, mas se, no ano
16 Essa afirmação é falsa porque a taxa de juros afeta espaço, como visto, é residual. Com relação a
dois objetivos macroeconômicos simultaneamente, essas questões sociais, prossegue-se na estraté-
mas em direções diferentes. Uma alta dos juros, em gia de “suporte do fundo do poço”, que caracte-
princípio, deveria reduzir a inflação, o que é positivo,
rizou o governo anterior. É possível avaliar se os
mas reduz também o emprego e o crescimento, o que
13 Tomemos um exemplo escandaloso: quem é negativo para o país. Assim, a fixação da taxa de programas assistenciais do governo Lula funcio-
defenderia a santidade dos contratos de compra e juros depende da avaliação de até onde o sacrifício nam melhor ou se atingem uma camada maior da
venda de escravos e escravas? Esses eram contratos do emprego e do crescimento vale a pena para população “pobre” do país, mas a ausência de
“perfeitos”, como juristas gostam de dizer, e que reduzir em algum grau a taxa de inflação. Isso não é
foram violados quando se resolveu que a escravidão iniciativas mais ousadas de mudança estrutural
um problema técnico, e sim de escolha política,
era inaceitável. dependente do valor dado, de um lado, à redução da continua sendo notável em um país onde um
14 Essas três citações foram extraídas da publicação A tract inflação e, de outro, à perda de empregos e de partido de trabalhadores sucedeu a uma agre-
on monetary reform (Keynes, 2000, p. 67 e 68). fôlego para crescer. miação socialdemocrata.

Observatório da Cidadania 2005 / 38


Altas taxas de juros em ‘tempos de paz’ Dez anos após a Conferência de Copenha-
Ainda é cedo, certamente, para avaliar de forma gue, o Brasil encontra-se no mesmo ponto em
definitiva o desempenho do governo Lula, mesmo que estava em 1995. A mudança do relaciona-
se não houver um segundo mandato. Até o mo- mento entre política econômica e as questões
mento, a sua trajetória não se distingue essen- sociais proposta pelo governo FHC relevou-se
cialmente daquela vivida sob os governos FHC. puramente retórica. Nada nos procedimentos
O desemprego permanece elevado, depois de um efetivos dos governos FHC mudou, apesar das
agravamento acentuado em 2003, em virtude das belas declarações de boas intenções feitas no
políticas contracionistas implementadas por Lula palanque da ONU.18
em seu primeiro ano, e de uma redução com a O governo Lula manteve os mesmo parâme-
recuperação da economia em 2004. A taxa de cres- tros de decisão em política econômica, contri-
cimento econômico alcançada em 2004 (4,9%), buindo para isolá-la ainda mais das preocupações
só foi notável em contraste com os anos ante- sociais ou das pressões (legítimas) dos grupos
riores, marcantes pela continuidade da prolon- sociais. A urgência da questão da pobreza, por
gada estagnação que marca a economia brasi- outro lado, obscureceu completamente a questão
leira desde a década de 1980. Em 2005, já se ame- da desigualdade e das mudanças estruturais neces-
açava uma nova perda de fôlego mesmo antes do sárias para a promoção de mudanças no perfil de
agravamento da situação política em função de distribuição de riqueza e de renda.
denúncias de corrupção, cujo impacto é sempre Notavelmente para partidos que se apresen-
muito difícil de avaliar. tam ou como socialdemocratas ou como à es-
O governo também tem sido ajudado pela querda da socialdemocracia, nada foi feito com
conjuntura externa excepcionalmente benigna dos relação à regressividade do regime de impostos
últimos dois a três anos, quando não houve nenhu- vigente na economia brasileira. O tamanho da
ma crise ou comoção financeira internacional – a carga fiscal, isto é, da relação entre total de im-
economia estadunidense voltou a crescer após a postos coletados e o produto da economia, domi-
recessão do início da década, e a China continua na o debate em torno de reformas do regime de
se movendo em ritmo vertiginoso, garantindo a impostos, em detrimento da progressividade que
expansão do comércio internacional –, e pelas seria desejável imprimir.
exportações brasileiras, fundamentais para a recu- Assim, é inevitável concluir que, para além
peração de 2004, mas que são insistentemente da retórica descompromissada, o espírito da Con-
postas em risco pelas políticas do Banco Central. ferência de Copenhague nunca foi realmente assu-
Considerando-se a excepcionalmente favo- mido no Brasil. Os procedimentos de tomada de
rável conjuntura externa, o argumento de que as decisão em política econômica não abrem qualquer
taxas de juros praticadas pelo Banco Central têm espaço para a mudança de atitude que o país pro-
sido menores que as taxas médias no período punha em sua declaração à conferência. O balanço
FHC perde muito de sua força. Aquele período foi desses dez anos passados, desde 1995, é claro:
marcado por uma seqüência de choques externos o choque entre a retórica e a realidade resolveu-se
importantes, que levaram a repetidas altas de ju- do modo de sempre, o esquecimento da retórica.
ros com o fito de interromper fugas de capitais.
Descontado esse efeito, a taxa de juros desde
2003 tem se mantido notavelmente elevada para
Referências
épocas de relativa calmaria externa. Torna-se, en- KERSTENETZKY, C.; CARVALHO, F. J. C. Até que ponto o
Brasil honrou os compromissos?. Observatório da
tão, inevitável questionar: se o Banco Central tem Cidadania, Rio de Janeiro, Ibase 4, 2000.
a liberdade de praticar essas taxas em “tempos de KEYNES, J. M. A tract on monetary reform. Amherst:
paz”, o que não fará ele se (ou, como é mais prová- Prometheus Books, 2000.
vel, quando) novos choques externos ocorrerem? NAÇÕES UNIDAS. Objetivos de desarrollo del milenio: una
O impacto fundamentalmente regressivo das mirada desde América Latina y el Caribe. Santiago:
políticas de juros do governo Lula permanece.17 Nações Unidas, 2005.

Ele segue praticando a política de FHC em seu SINGH, A. et al. Stabilization and reform in Latin America: a
macroeconomic perspective on the experience since the
segundo governo, que é a de coletar impostos early 1990s. Washington: International Monetary Fund,
gerados por um sistema regressivo e usá-los para 2005. (Occasional Paper 238).
transferir renda às classes média e de altas ren-
das, na exata e perversa inversão das mais bem-
sucedidas estratégias de redistribuição aplicadas
no século XX.

18 Esse ponto, aliás, tem estado, de diversas formas, na


raiz das críticas que se avolumam contra a instituição.
Critica-se precisamente a falta de poder da organização
17 Não se pode ignorar que abrir mão da influência sobre a para implementar os compromissos assumidos pelos
política monetária não absolve o governo de países membros. A conferência Financiamento para o
responsabilidade pelo que a diretoria do Banco Central Desenvolvimento, por exemplo, teve resultados práticos
decidir, já que a independência que a instituição passou pífios, apesar de toda a retórica de solidariedade que
a gozar resultou de uma decisão unilateral do governo alimentou. Isso também parece ocorrer com muitas
federal, não de uma imposição legal. outras das conferências do chamado “ciclo social”.

Observatório da Cidadania 2005 / 39


Evolução recente da economia brasileira

Há mais de duas décadas, a economia brasileira Tabela 1 – Evolução do PIB real O baixo crescimento da economia brasileira, espe-
deixou de exibir o padrão de crescimento acelerado Total e per capita – 1993 = 100 cialmente a partir das crises da segunda metade
que marcou o período que vai do fim da Segunda da década de 1990, aliado à reestruturação pela
ANO PIB PIB PER CAPITA
Guerra Mundial a meado da década de 1970. Desde qual passou a economia brasileira desde o Plano
então, o crescimento econômico mal tem sido sufi- 1993 100 100 Real, com a desnacionalização ou fechamento de
ciente para sustentar algum crescimento mais per- 1994 106 104 empresas, especialmente as industriais, elevou as
sistente na renda per capita (isto é, a renda por 1995 110 107 taxas de desemprego, especialmente na área me-
habitante) brasileira. No período que se seguiu à 1996 113 107
tropolitana de São Paulo, onde se concentra parte
adoção do Plano Real até 1997, a economia bra- preponderante do parque industrial brasileiro.
1997 117 110
sileira pareceu ter recuperado pelo menos parte
1998 117 108
de seu antigo dinamismo. Livre da influência Tabela 2 – Taxa de desemprego (%)
desorganizadora da inflação acelerada, cresceu o 1999 118 108
Regiões Metropolitanas – Médias
consumo e, com ele, aumentou a produção. 2000 123 111
trimestrais
Empresários e empresárias que conseguiram 2001 125 111
DATA TOTAL SÃO PAULO
resistir à concorrência das importações (auxiliadas 2002 127 111
pelo real valorizado e pelas baixas taxas de juros 2003 128 110 out./dez. 01 11,3 12
que as empresas estrangeiras tinham de pagar em 2004 135 114 jan./mar. 02 12,2 13
seus países de origem, comparadas às taxas pagas abr./jun. 02 12 12,8
no Brasil) fizeram investimentos que lhes permiti- Fonte: Banco Central do Brasil, séries históricas 1.208;
jul./set. 02 11,7 13,1
ram aumentar a produtividade e melhorar sua posi- 1.210, (www.bcb.gov.br). Elaboração do autor.
out./dez. 02 10,9 12
ção competitiva. Mas, como visto, o modelo de
jan./mar. 03 11,6 13,5
estabilização adotado aumentou muito a vulnera- Neste cenário, as taxas de desemprego deram
bilidade externa da economia brasileira. A partir um salto, passando (e se mantendo teimosamente abr./jun. 03 12,7 14,5
de 1997, com a sucessão de crises financeiras nos nesses patamares) para os dois dígitos. O Instituto jul./set. 03 12,9 14,7
países emergentes (incluindo a que atingiu o Brasil Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), respon- out./dez. 03 12 13,6
no fim de 1998), a economia brasileira perdeu sável pelo levantamento das taxas de desemprego, jan./mar. 04 12,2 13,7
novamente o fôlego e voltou a exibir taxas de cres- alterou seus procedimentos em 2001, tornando abr./jun. 04 12,3 13,8
cimento que, nos bons tempos, são apenas me- os dados reportados a partir de então incompará-
jul./set. 04 11,2 12,3
díocres. A tabela 1 e o gráfico abaixo mostram o veis com os anteriores. Por isso, a Tabela 2 mostra
out./dez. 04 10,2 10,7
comportamento do PIB total e do PIB per capita, médias trimestrais da taxa de desemprego apenas
em termos reais, desde 1993. a partir do trimestre outubro/dezembro de 2001. jan./mar. 05 10,5 11,4
Fonte: Banco Central do Brasil, séries históricas
Evolução do PIB real total e per capita 1993–2004 (1993 = 100) 10.777; 10.782 (www.bcb.gov.br).

Em um mercado de trabalho com essas carac-


terísticas, não deveria surpreender o comporta-
mento da remuneração real dos trabalhadores e tra-
balhadoras, que se mostrou, na melhor das hipó-
teses, estagnada durante o mesmo período (pelas
mesmas razões explicadas anteriormente, a série
se inicia também em outubro de 2001).
Essas informações ilustram um dos princi-
pais argumentos do artigo, qual seja, o de que a
principal política “social” da seqüência de gover-
nos FHC e Lula tem sido, afinal, a política econô-
mica que mantém o crescimento do produto me-
díocre, o desemprego elevado e a remuneração
Fonte: Banco Central do Brasil, séries históricas 1.208; 1.210, (www.bcb.gov.br). Elaboração do autor. do trabalho estagnada, quando não declinante.

Evolução mensal da remuneração real do trabalho

Fonte: BCB, séries 10.790; 10.791; 10.792


Observação: os picos mostrados, especialmente na remuneração total e dos trabalhadores e trabalhadoras com carteira, devem-se ao pagamento do décimo terceiro salário,
concentrado em dezembro de cada ano.

Observatório da Cidadania 2005 / 40


Política fiscal e distribuição de renda

Praticamente todas as experiências bem-sucedi- tudo, até mesmo bens de consumo demandados Os gastos com o serviço da dívida pública,
das de distribuição de renda no século XX pas- praticamente apenas pelas camadas mais pobres inflados pela política monetária do Banco Central,
saram pela redistribuição de renda por via fiscal. da sociedade. É justo reconhecer que, nesse par- que, ao aumentar a taxa de juros continuamente,
A coleta de impostos progressivos, pela qual as ticular, o governo Lula reduziu ou eliminou alguns faz crescer a conta a pagar pelo governo aos deten-
pessoas ricas pagam proporcionalmente mais im- desses impostos sobre determinados produtos de tores e às detentoras dessa dívida, superam qual-
postos que as pobres, e o direcionamento desses consumo popular. Mas a iniciativa foi limitada em quer outro item de gasto social, como educação,
recursos para prover bens públicos a estas foram o termos de produtos, não prosseguiu depois das saúde e saneamento ou habitação. Além disso, o
canal mais importante e durável de redistribuição primeiras medidas, e o consumo da população serviço da dívida flutua intensamente (mas sem-
de renda, não apenas naqueles países em que a mais pobre ainda hoje é uma fonte importante de pre em níveis muito altos), o que impede o plane-
socialdemocracia deitou raízes, como nos escan- receita pública, apesar de sua natureza profunda- jamento eficiente das políticas públicas e reduz o
dinavos, no resto da Europa Ocidental e até mesmo mente regressiva. potencial de crescimento da economia.
nos Estados Unidos, país no qual os presidentes Por outro lado, os impostos diretos no Brasil A maioria dos títulos públicos federais (que
Franklin Roosevelt, na década de 1930, e Lyndon são marcados pela regressividade. As alíquotas são são, de longe, a maior parte da dívida pública total
Johnson, na década de 1960, implementaram baixas e abundam as possibilidades de redução dos no país) tem sua remuneração determinada pela
políticas que alteraram drasticamente o perfil de impostos a serem pagos apenas pelas camadas taxa Selic, fixada pelo Banco Central.22 Assim, toda
renda de suas sociedades.19 mais ricas da população. Incentivos e deduções ate- vez que o Banco Central aumenta a taxa de juros,
A experiência brasileira, em contraste, é ca- nuam amplamente o impacto que alíquotas de im- a política do governo se torna mais regressiva,
racterizada pela combinação exatamente oposta: posto já muito baixas teriam na redução das imen- porque significa que uma parte maior dos impos-
impostos amplamente regressivos financiam gas- sas diferenças de renda pessoal que marcam o país. tos coletados, já por si mesmos de forma regres-
tos que transferem renda para as classes média e Se o sistema de impostos têm sido histori- siva, será destinada ao pagamento de juros às clas-
de renda mais elevada. Essas características não camente regressivo, a estrutura de gastos do go- ses média e de renda alta, sacrificando para isso
são novas. Não foram nem os governos FHC nem verno passou a contribuir para a concentração de não apenas despesas sociais, mas também inves-
Lula que as criaram. O notável, no entanto, é que, renda a partir do fim da década de 1990 de forma timentos públicos.
apesar da intensa retórica em prol da redistribui- muito mais intensa que no passado. O perfil de Em suma, é na atuação do próprio governo
ção, nenhum dos dois governos tenha realmente gastos é dominado pelo serviço da dívida pública que encontramos a fonte mais imediata de viola-
tomado medidas que mudassem a situação. (isto é, pelo pagamento dos juros sobre os títulos ção dos compromissos de Copenhague. A falta
A estrutura de impostos no Brasil é regressiva da dívida pública emitidos pelo governo) que su- de iniciativa, seja na mudança do perfil de impos-
por dois aspectos centrais. Por um lado, ela repou- pera todos os outros itens de despesas sociais, tos, seja no perfil de gastos públicos, dos suces-
sa primordialmente na coleta de impostos indiretos como se vê no gráfico a seguir.21 sivos governos desde 1995 (quando a declaração
(sobre produtos ou atividades) em vez de diretos foi assinada), inviabiliza qualquer mudança mais
(impostos sobre a renda ou a riqueza do contri- ampla no quadro de desigualdades (e de estag-
21 Analistas com perfil conservador costumam
buinte). Segundo a Comissão Econômica para a incluir, entre os gastos sociais, as despesas com nação) da sociedade brasileira.
América Latina e o Caribe (Cepal), em 1999/2000, aposentadorias, de modo a fazer inflar o total gasto
os impostos diretos representavam 9,4% do PIB; em “políticas sociais”. O sistema de previdência
os indiretos, 11,1%; e as contribuições à segu- brasileiro inclui realmente uma parcela de gastos
rança social, mais 12,6%.20 Esse tipo de estrutura que poderiam ser classificados de sociais, como o 22 Em períodos de turbulência do balanço de
de impostos responde não apenas a interesses de pagamento de aposentadorias rurais ou outras que pagamentos, quando se espera que o valor do dólar
não envolvam prévia contribuição. O núcleo do venha a subir muito, crescem também as emissões
grupos de renda mais alta, mas também a conve-
sistema de previdência, no entanto, foi criado para de dívida atreladas à moeda dos EUA. Como o valor
niências do próprio Estado: impostos indiretos e
ser financiado por contribuições de do dólar vem caindo em 2005, o mercado não quer
contribuições são mais fáceis de coletar que impos- trabalhadores(as) e empregadores(as), não cabendo, comprar papéis indexados ao dólar, e a participação
tos diretos e, assim, permitem ao governo extrair da portanto, incluir todos os gastos, nem mesmo sua desses papéis no total vem caindo, pelo menos até
sociedade as parcelas da renda nacional que desejar maior parte, como despesas sociais. a próxima crise.
com mais rapidez e menos fricções.
Impostos indiretos são pagos por quem com- Evolução do gasto público (1995/2004 – itens selecionados)
pra bens e serviços, não importa sua renda. Seria
possível dar-lhes uma natureza mais progressiva,
se esses impostos incidissem apenas sobre pro-
dutos consumidos por grupos de renda mais alta.
No entanto, no Brasil, impostos como IPI (sobre
produtos industrializados) ou ICM (sobre circula-
ção de mercadorias) incidem sobre praticamente

19 As políticas implementadas por Roosevelt e


Johnson são detalhadamente descritas no livros
Freedom from fear. the american people in Depression
and War, 1929/1945 (Nova York: Oxford University
Press, 1999), de David Kennedy, e Lyndon Johnson
and the great society (Chicago: Ivan R. Dee, 1998),
de John Andrew III. Além de um número imenso de
obras que tratam do assunto, as políticas de
redistribuição da socialdemocracia são analisadas,
por exemplo, no número especial da revista Oxford
Review of Economic Policy (volume 14, n. 1, 1998).
20 Nações Unidas, 2005, gráfico 1.3, p. 12. Fonte: Banco Central e Secretaria do Tesouro Nacional

Observatório da Cidadania 2005 / 41


Desenvolvimento subordinado ao modelo exportador

A aceleração das discussões sobre comércio internacional, por conta dos encurtamentos de prazos da Rodada Doha da
Organização Mundial do Comércio (OMC), serviu para retomar a discussão sobre os rumos de desenvolvimento no Brasil,
a partir do governo instalado em 2003. Esse debate, no entanto, não vem sendo feito de forma explícita, ao contrário do
que ocorreu durante a construção do programa de governo do candidato Lula. Perduram as indefinições quanto à estratégia
de desenvolvimento, envolvendo uma ativa expansão das exportações do país, e suas conseqüências sociais.

Adhemar S. Mineiro* participação do país no comércio internacional a tom geral, esboçado em uma política de alianças
curto prazo, com geração simultânea de expres- mais ampla, defendida taticamente como fórmula
O atual governo brasileiro, que recebeu uma he- sivo resultado positivo na balança comercial. para o sucesso eleitoral e a implementação do pro-
rança complicada e, ao mesmo tempo, convive com Pelo fato de esse pragmatismo do ajuste das grama. Desse documento, que apresenta como sub-
um conjunto contraditório de forças políticas, contas externas ser divulgado como uma estratégia título “A ruptura necessária”, cabe destacar, logo de
optou por certo “pragmatismo de curto prazo”, na de sucesso, com efeitos no crescimento econômi- saída, que a implementação do programa de go-
gestão da política econômica, refletido na priori- co e nas possibilidades de desenvolvimento do país, verno deveria representar uma ruptura, embora
zação do ajuste das contas externas em busca de ele impõe, antes de tudo, uma discussão sobre as já embutisse algumas importantes ponderações
ampliação rápida do saldo da balança comercial, relações entre comércio internacional e desenvol- quanto à forma e ao ritmo de levar isso adiante.3
em vez de mudanças na regulação e na estrutura vimento, e, em especial, a respeito dos efeitos que Apesar das ponderações, o documento era
dos fluxos financeiros com o exterior. Ao mesmo poderia ter tal estratégia de desenvolvimento sobre suficientemente claro na sua proposta de ruptura
tempo, procurou grandes superávits primários, a redução da pobreza, apontada permanentemente com o modelo econômico baseado na abertura
superiores até mesmo aos 4,25% outrora compro- como objetivo fundamental do atual governo. ao livre fluxo de capitais e na dependência externa,
metidos com o Fundo Monetário Internacional Em seguida, é importante debruçar-se sobre as e ao confrontar o resgate dos direitos sociais com
(FMI), e também constantes no Plano Plurianual conseqüências da inserção internacional na estru- os limites do chamado “pragmatismo” – do ajuste
(PPA) em curso, ou seja, práticas internalizadas tura produtiva e o efeito que pode ter uma estra- fiscal ou orçamentário –, impostos pela política
na legislação nacional. O objetivo era sinalizar de tégia de “sucesso” nas negociações comerciais econômica. Não se conformava, dessa maneira,
forma firme aos credores financeiros do Estado em curso, especialmente na OMC, para atender à com os limites da racionalidade baseada em uma
que seus pagamentos continuariam a ter priori- meta de ampliação dos saldos comerciais, sobre visão econômica da hegemonia dos mercados
dade em relação a outros compromissos fiscais. o uso dos recursos e potencialidades do país. financeiros. Além disso, apresentava como uma
Esse tipo de estratégia, se, de um lado, evi- das raízes do problema a própria estruturação de
tou o enfrentamento com os credores financeiros
Estratégia de desenvolvimento1 um modelo de funcionamento assentado no fluxo
externos e internos, além da turbulência que isso Tratar da proposta de desenvolvimento desenhada de capitais externos.4
poderia causar a curto prazo, por outro, mantém pelo conjunto de forças políticas que contribuiu para Como objetivo da necessária ruptura e de
a vulnerabilidade externa potencial pelo aspecto a eleição de Lula e para o governo instalado em maior autonomia em relação aos capitais externos
financeiro. Embora tenha usufruído nos últimos 2003 é tarefa das mais difíceis, não apenas pela e às chamadas “políticas de ajuste”, no documento
anos de uma bonança financeira e comercial que heterogeneidade dessas forças, mas principal-
vem permitindo manter razoável tranqüilidade, o mente pela dinâmica com que se foram movimen-
3 “A implementação de nosso programa de governo para
país fica extremamente dependente da dinâmica tando, negociando e agregando elementos ao novo o Brasil, de caráter democrático e popular, representará
comercial e dos humores financeiros dos merca- projeto eleitoral e de governo. Para levar adiante uma ruptura com o atual modelo econômico, fundado
dos. Também os limites impostos pela necessi- essa reflexão, tomamos como base alguns docu- na abertura e na desregulação radicais da economia
nacional e na conseqüente subordinação de sua
dade do superávit primário aos investimentos mentos,2 nos quais as idéias são apresentadas.
dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro
sociais e em infra-estrutura esgarçam, de forma No documento “Concepção e diretrizes do globalizado. [...] Será necessário, de igual modo, avaliar
crescente, o tecido social e a estrutura física da programa de governo do PT para o Brasil” são com objetividade as restrições e potencialidades do
produção e circulação de bens e serviços. expressas posições mais tradicionais, construídas atual quadro sociopolítico e econômico do país, para
evitar um voluntarismo que poderia frustrar a proposta
Não é intenção deste texto avançar no segun- ao longo de várias campanhas pelas forças que,
de transformação da economia e da sociedade
do aspecto. Entretanto, a estratégia buscada para desde 1989, se agruparam em torno da chamada brasileiras.” (“Concepção e diretrizes”, item 1)
o ajuste do setor externo, objetivando elevar rapi- Frente Brasil Popular, embora amenizadas por um 4 “A dependência de capitais externos e a manutenção de
damente os saldos comerciais em curto prazo, im- uma taxa de juros extremamente elevada, resultantes
daquelas políticas, tiveram impactos destrutivos sobre as
pôs um “desenho” geral de desenvolvimento que, 1 Para uma discussão mais detalhada sobre alguns finanças públicas, produzindo um volumoso
mesmo de forma implícita, é a conseqüência dessa aspectos desse ponto, ver Mineiro (2004 a). endividamento do Estado e transformando os juros no
opção pragmática: uma enorme pressão sobre os 2 Os documentos “Concepção e diretrizes do programa de principal vetor do déficit público (embora a carga tributária
recursos naturais do solo e do subsolo do país, governo do PT para o Brasil”, “Programa de governo tenha se expandido bastante no período). As políticas
2002” e “Carta ao povo brasileiro” estão disponíveis na de ajuste adotadas devido aos acordos com o FMI, ao
onde existe a possibilidade de ampliação rápida da
área de documentos do site <www.pt.org.br>, e o Anexo I eliminarem a propensão ao endividamento, levaram a
(“Orientação estratégica de governo”) da Lei 10.933, de priorizar o pagamento dos encargos financeiros da
11 de agosto de 2004, que dispõe sobre o Plano dívida pública, com o sacrifício dos investimentos em
* Economista, técnico do Departamento Intersindical de Plurianual para o período 2004–2007, está disponível infra-estrutura, em ciência e tecnologia, e dos gastos
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). no site <www.planobrasil.gov.br>. sociais do Estado.” (“Concepção e diretrizes”, item 8)

Observatório da Cidadania 2005 / 42


“Concepção e diretrizes” estava ainda presente de uma transição entre a realidade econômica embora não identificasse naquele momento contra-
uma proposta de alteração profunda do modelo, naquele momento e o quadro no qual pretende im- dições entre estas e a expansão das exportações,
transformando as reformas sociais e a redistri- plementar as políticas alternativas, embora dando particularmente da grande agricultura comercial.
buição da renda e da riqueza em motor do desen- prioridade à necessidade do crescimento econô- Todos os itens do “Programa de governo
volvimento, uma forma de reafirmar a estruturação mico11 e à busca de alternativas à chamada “âncora 2002” citados até aqui estão no primeiro capítulo,
de um “mercado de consumo de massas”, aliado a fiscal” da estabilidade macroeconômica. intitulado “Crescimento, emprego e inclusão so-
um conjunto de políticas sociais, que daria dina- O “Programa de governo 2002” apresenta cial” (p. 12-25). O capítulo seguinte, “Desenvol-
mismo ao novo modelo de desenvolvimento. ainda três itens interessantes, que se confrontam vimento, distribuição de renda e estabilidade”
Tomando em consideração o tema da vulnera- parcialmente com a ênfase na estabilidade e nas (p. 26-40) volta ao tema, tentando combinar a idéia
bilidade externa, o texto do documento é bastante concessões aos interesses financeiros (apontada do crescimento do mercado interno de massas e
crítico em relação a uma inserção internacional anteriormente), além de fazerem uma ponte im- do aumento da competitividade do país.
dependente5 e subordinada pelo seu aspecto finan- portante com a volta de uma visão mais centrada
O desenvolvimento com justiça social implica
ceiro. Entretanto, ao pensar alternativas, trata com na expansão da produção. Eles reforçam a pro- uma ruptura com duas tendências históricas
cuidado a prioridade da abertura comercial, defen- posta de políticas ativas por parte do Estado como da sociedade brasileira: a excessiva
dendo a combinação de políticas claramente ofen- componente essencial de reformulação da estru- dependência externa e a aguda concentração
sivas na busca da elevação do saldo comercial6 com tura produtiva e da viabilização de um novo mo- de renda, que gera forte exclusão social.
políticas e estratégias defensivas em relação aos delo de desenvolvimento, no qual trabalhadoras Por isso mesmo, a dimensão social tem de ser
o eixo do desenvolvimento, e não mero
efeitos negativos que poderiam advir da amplia- e trabalhadores assalariados e empresárias e
apêndice ou um suposto resultado natural do
ção da inserção comercial internacional do país.7 empresários produtivos encontram espaço para crescimento econômico. A recuperação da
Procura ainda reduzir a dependência dos chamados o seu crescimento. Um desses itens aponta uma capacidade de definir e operar políticas
“grandes mercados” (Estados Unidos, União Euro- idéia a ser retomada, com ênfase, no “Plano Brasil econômicas ativas, a ampliação do mercado
péia, Canadá e Japão), por meio da ampliação de para todos”, que diz respeito à possibilidade de, interno de massas, o aumento da
uma inserção comercial diversificada8 no mundo. pela expansão da produção no mercado interno, competitividade brasileira e o impulso às
exportações constituem aspectos
serem criadas as bases de ampliação das expor- indissociáveis do novo estilo de
Ênfase produtivista tações, decorrentes do aumento das escalas de desenvolvimento, voltado para o
O “Programa de governo 2002” da candidatura produção e dos ganhos de produtividade.12 fortalecimento da economia nacional.14
Lula e da frente política que o sustentou na cam- Nesse ambiente de crescimento desenhado, No segundo capítulo, é dada ênfase produti-
panha apresenta, entretanto, ambigüidades e o “Programa de governo 2002” ampliou suas preo- vista e faz-se crítica às aberturas comercial e finan-
relativizações quanto à discussão sobre o modelo cupações, incluindo as questões ambientais, 13 ceira.15 Entretanto, convém observar no seu item
de desenvolvimento para o país, caminhando em 10: “O Brasil é hoje, com poucas exceções, um
vários sentidos no rumo de “suavizar” a idéia de importador de bens de elevado conteúdo tecnoló-
11 “Nosso governo vai iniciar, sem atropelos, uma
ruptura presente no documento anterior e traba- transição para um novo modelo de crescimento gico e um exportador de commodities largamente
lhando com a perspectiva de alternativa. sustentável, com responsabilidade fiscal e compromisso intensivas em recursos naturais; em alguns casos,
Na área do comércio exterior, o texto do “Pro- social. Trabalhará com a noção de que só a volta do
crescimento pode levar o País a contar com um
intensivas em escala ou capital. [...]”.
grama de governo 2002” enfatiza o papel do agro- E segue a ênfase nos aspectos voltados ao
equilíbrio fiscal consistente e duradouro.” (“Programa
negócio9 e flexibiliza sutilmente a posição ante o de governo 2002”, item 31) aumento da produção, agora vistos pelo lado
processo negociador da Área de Livre Comércio 12 “O desenvolvimento de nosso imenso mercado, com a dos seus efeitos sobre o emprego e o mercado
das Américas (Alca).10 Destaca ainda a necessidade criação de empregos e a geração de renda, revitalizará e de trabalho:
impulsionará o conjunto da economia, oferecendo ainda
bases sólidas para ampliar as exportações. As ações O aumento do desemprego e a precarização
5 “Ao elevar as necessidades de financiamento externo a níveis para ampliar nosso comércio internacional serão do emprego, a estagnação dos níveis de renda
críticos e abolir as restrições ao movimento de capitais, as coordenadas por uma Secretaria Extraordinária de e a continuidade de sua má distribuição, o
políticas aplicadas transformaram a dependência do capital Comércio Exterior, subordinada diretamente à aumento da concentração da propriedade e o
estrangeiro em um mecanismo de internalização da Presidência da República e articulada com o trabalho na
encarecimento dos serviços públicos
instabilidade do mercado financeiro globalizado e de área externa desenvolvido pelo Ministério das Relações
essenciais caracterizam a situação de exclusão
subordinação do funcionamento da economia nacional às Exteriores.” (“Programa de governo 2002”, item 34)
social produzida pelas políticas liberais que
prioridades e interesses dos credores e investidores 13 “Nosso governo trabalhará por um novo padrão de
externos.” (“Concepção e diretrizes”, item 11)
urge corrigir. O sentido geral do nosso
desenvolvimento, com crescimento econômico, inclusão
programa é diminuir esses grandes
6 “Concepção e diretrizes”, item 47. social e justiça ambiental, de modo que, resguardado o
desequilíbrios, convertendo o social no eixo
7 “Concepção e diretrizes”, item 48. direito das gerações futuras, todos tenham acesso justo
do novo modelo de desenvolvimento.
e eqüitativo aos recursos naturais. Na última década, a
8 “Concepção e diretrizes”, item 52.
sociedade brasileira foi marcada por baixas taxas de
A constituição do novo modelo priorizará três
9 “A agroindústria é hoje um dos maiores bens do Brasil e crescimento econômico e altos índices de danos aspectos: (a) o crescimento do emprego; (b) a
deve ser incentivada, inclusive por seu papel estratégico socioambientais. Nosso governo se comprometerá com geração e distribuição de renda; (c) a
na obtenção de superávits comerciais.” (“Programa de a melhoria da qualidade ambiental como geradora de ampliação da infra-estrutura social.16
governo 2002”, item 23) novas oportunidades de inclusão social, através de três
10 “A persistirem essas condições, a Alca não será um estratégias: (a) adoção de critérios socioambientais de
acordo de livre comércio, mas um processo de anexação sustentabilidade para as políticas públicas, fortalecendo
14 “Programa de governo 2002”, capítulo 2, item 2.
econômica do continente, com gravíssimas conseqüências os sistemas nacionais de meio ambiente, recursos
para a estrutura produtiva de nossos países, especialmente hídricos e defesa do consumidor; (b) estabelecimento 15 “A abertura comercial, por sua forma e velocidade,
para o Brasil, que tem uma economia mais complexa. de metas de melhoria dos indicadores socioambientais – produziu em muitos casos uma regressão do setor
Processos de integração regional exigem mecanismos desmatamento, focos de calor, emissão de CO2 e CFC, produtivo, enfraqueceu as cadeias produtivas e
de compensação que permitam às economias menos esgotamento e tratamento sanitário, abastecimento de comprometeu nossa competitividade e capacidade
estruturadas poder tirar proveito do livre comércio, e água, controle de vetores, resíduos sólidos, qualidade exportadora. Disso resultou uma ampliação do
não sucumbir com sua adoção. As negociações da Alca do ar, acesso aos bens naturais, consumo de energia, coeficiente importado, sem a contrapartida do aumento
não serão conduzidas em um clima de debate tecnologias limpas; (c) controle social por meio da das exportações, implicando perda de participação no
ideológico, mas levarão em conta essencialmente o participação popular, da educação e da informação mercado internacional, atrofia do mercado interno e
interesse nacional do Brasil.” (“Programa de governo ambientais, e da valorização das iniciativas da redução dos encadeamentos intersetoriais.” (“Programa
2002”, item 18) Vale apontar a posição sobre o mesmo população e da sociedade civil organizada.” (“Programa de governo 2002”, capítulo 2, item 9)
tema expressa no documento de “Diretrizes”, item 53. de governo 2002”, item 38) 16 “Programa de governo 2002”, capítulo 2, item 24.

Observatório da Cidadania 2005 / 43


Interesses contraditórios documento parece apontar a negociação como dívida interna aumente e destrua a
caminho para permitir a convivência de interes- confiança na capacidade do governo de
O item 25 do segundo capítulo do programa chama
honrar os seus compromissos.
atenção para a importância de observar não apenas ses conflitantes em um projeto comum.
o crescimento, mas o estilo desse crescimento. A “Carta” segue mostrando sua aderência ao Mas é preciso insistir: só a volta do
Isso parecia uma sinalização de que deveria prio- momento de turbulência financeira, mas, ao mes- crescimento pode levar o país a contar com
rizar os setores mais intensivos em mão-de-obra, mo tempo, aproveita para enfatizar o compromisso um equilíbrio fiscal consistente e duradouro.
e menos em capital: do futuro governo com a garantia aos merca- A estabilidade, o controle das contas públicas
dos financeiros, talvez o seu principal objetivo. e da inflação são hoje um patrimônio de todos
O aumento do emprego depende em grande os brasileiros. Não são um bem exclusivo do
Os problemas do modelo nas “Diretrizes”, subs-
medida da taxa de crescimento do PIB. Mas atual governo, pois foram obtidos com uma
não somente. O próprio estilo de crescimento, tituídos pelas fragilidades macroeconômicas do grande carga de sacrifícios, especialmente
vale dizer, os setores líderes sobre os quais se “Programa de governo 2002”, foram alterados dos mais necessitados.
fundamenta, também joga um papel relevante para a idéia da falta de confiança dos mercados.19
na dinâmica da criação de postos de trabalho. As mudanças de redação não parecem grandes, Postura ‘amigável’ diante dos mercados
Assim, por exemplo, um modelo que enfatiza a mas existem enormes diferenças do ponto de vista
ampliação da infra-estrutura social, segmento Quando observamos o Anexo I (“Orientação estra-
das políticas a serem conduzidas entre alterar o tégica de governo”) da Lei 10.933, de 11 de agos-
intensivo em construção civil e mão-de-obra,
cria mais empregos do que outro centrado na modelo (ou romper com o modelo anterior), cor- to de 2004, podemos notar que permaneceram
ampliação do consumo privado. rigir as vulnerabilidades macroeconômicas ou embutidas no documento aprovado as diferentes
O texto reitera a centralidade do mercado in- ganhar a confiança dos mercados. Afinal, a idéia visões que, com ênfases diversas, já vinham cons-
terno de massas como motor da dinâmica de cres- de mudar o modelo, garantidor de rentabilidade tando anteriormente nos documentos discutidos.
cimento proposta.17 Já a “Carta ao povo brasileiro” aos mercados financeiros, não parece ser a melhor A grande ressalva é que, ao ser transformada em
é quase um resumo do “Programa de governo maneira de ganhar a confiança desses mesmos lei – e, portanto, política de Estado e de governo –,
2002”, mas apresenta interessante ênfase em al- mercados financeiros. a convivência de visões diferenciadas demanda
guns aspectos relativos à conjuntura de volatili- No âmbito da política de comércio exterior, ajustes não apenas de redação, mas de adminis-
dade e crise financeira do período eleitoral de continua a linha expressa no “Programa de Go- tração política. Essas três visões seguem presen-
2002, durante o qual foi negociado e assinado verno 2002” de administrar ao mesmo tempo tes, sendo aqui abordadas no período de sua pre-
novo acordo com o FMI. os interesses (ofensivos comercialmente) do valência, correspondente aos primeiros 18 meses
Além dessa resposta à conjuntura econô- agronegócio com os interesses (defensivos) da do governo Lula, anterior à aprovação da lei.
mica, o documento refletia a adesão de novos se- agricultura familiar. Assim, não é estranho que o debate legis-
tores sociais e políticos à candidatura Lula. O grau Aqui ganha dimensão uma política dirigida a lativo predominante fosse centrado no superávit
de heterogeneidade revela-se também pela suave valorizar o agronegócio e a agricultura primário, uma vez que esse objetivo estratégico
alteração da “parceria” proposta aos setores so- familiar. A reforma tributária, a política fazia parte do Plano Plurianual apresentado e pre-
ciais, acrescida de um chamado à negociação, alfandegária, os investimentos em infra- dominou nos primeiros 18 meses do novo governo
estrutura e as fontes de financiamento
mostrando que, além de heterogêneos, os inte- – em função do modelo e das turbulências herda-
públicas devem ser canalizados com
resses somados ao projeto passavam a ser tam- absoluta prioridade para gerar divisas. dos da gestão anterior e da conjunção de forças
bém contraditórios.18 Nossa política externa deve ser reorientada hegemônicas na condução da política econômica
Ao afirmar posteriormente que o novo mode- para esse imenso desafio de promover do governo Lula. As restrições, que antes deveriam
lo não poderá ser produto de decisões unilaterais nossos interesses comerciais e remover ser contornadas, se transformavam em objetivos
graves obstáculos impostos pelos países
do governo, nem será implementado por decreto estratégicos de governo ao longo do PPA (2004–
mais ricos às nações em desenvolvimento.
– mas sim “fruto de uma ampla negociação na- 2007), como pode ser observado:
cional, que deve conduzir a uma autêntica aliança Finalmente, e mais uma vez, o que talvez sirva
para identificar mais claramente os seus efetivos Neste contexto de transição, o planejamento
pelo país, a um novo contrato social, capaz de estratégico das ações de Governo nos
assegurar o crescimento com estabilidade” –, o destinatários, a “Carta” reafirmava o compromisso
próximos anos será essencial para
com o superávit fiscal primário, para mais uma compatibilizar os objetivos de alcançar o
vez tranqüilizar os mercados financeiros: máximo crescimento possível, ampliar a
inclusão social, reduzir o desemprego e as
A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio
17 “Especificadas as linhas estratégicas do novo modelo, disparidades regionais e fortalecer a
fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos
cabe apontar os aspectos gerais da dinâmica de cidadania com as restrições decorrentes da
equilíbrio fiscal para crescer, e não apenas
crescimento proposta. O motor básico do sistema é a necessidade de consolidar a estabilidade
para prestar contas aos nossos credores.
ampliação do emprego e da renda per capita, e macroeconômica no País: manutenção do
conseqüentemente da massa salarial que conformará o ajuste do balanço de pagamentos e
assim chamado mercado interno de massas. O crescimento Vamos preservar o superávit primário o
conseqüente necessidade de harmonizar o
sustentado a médio e longo prazo resultará da ampliação quanto for necessário para impedir que a
ritmo de crescimento da demanda com o da
dos investimentos na infra-estrutura econômica e social capacidade produtiva doméstica e
e nos setores capazes de reduzir a vulnerabilidade manutenção de um superávit primário
externa, junto com políticas de distribuição de renda.” consistente com a necessidade de
(“Programa de governo 2002”, item 35) 19 “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito financiamento público ao longo do tempo.20
18 “A crescente adesão à nossa candidatura assume cada aos contratos e obrigações do país. As recentes
vez mais o caráter de um movimento em defesa do turbulências do mercado financeiro devem ser Apesar dessa prevalência da política econô-
Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual mica, segue presente, com força, na Lei 10.933 –
enquanto nação independente. Lideranças populares, modelo e de clamor popular pela sua superação. À parte e também em discussões que buscam confrontar
intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados manobras puramente especulativas, que sem dúvida
a permanência de taxas de desemprego elevadas
matizes ideológicos declaram espontaneamente seu existem, o que há é uma forte preocupação do mercado
apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e financeiro com o mau desempenho da economia e e um quadro de baixos investimentos –, uma visão
parlamentares de partidos não coligados com o PT com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à
anunciam seu apoio. Parcelas significativas do capacidade de o país administrar sua dívida interna e
empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de externa. É o enorme endividamento público
uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso
que busca abrir novos horizontes para o país.” que preocupa os investidores.” 20 Lei 10.933, Anexo 1, p. 7-8.

Observatório da Cidadania 2005 / 44


mais centrada na necessidade de ampliação da A sedimentada idéia do “mercado de con- Balanço de pagamentos brasileiros –
produção, alavancada por uma maior participação sumo de massas” segue presente, cada vez mais 2002/2004
no mercado externo, aqui assumida com mais referida como um objetivo estratégico ou de Indicadores selecionados (em US$ milhões)
ênfase do que nos documentos anteriores, com “longo prazo”, mas presente e disputando seu ANO BALANÇA BALANÇA SALDO EM CONTA DE
foco nos dois setores que encabeçam a lista de espaço.22 Entretanto, vale ressaltar que, algumas COMERCIAL DE SERVIÇOS TRANSAÇÕES CAPITAIS E
investimentos a serem impulsionados: atividades vezes, em documentos anteriores, a idéia do mer- CORRENTES FINANCEIRA

agropecuárias e mineração. cado de consumo de massas se associava ao 2002 13.121 -23.147 -7.718 8.856
crescimento mais rápido dos setores de mais 2003 24.825 -23.627 4.051 5.543
O elemento que dá sustentação ao processo
de crescimento e à contínua ampliação da baixa produtividade da economia brasileira (e, 2004 33.693 -25.293 11.669 -7.310
produtividade e da competitividade é o portanto, com efeitos mais rápidos sobre, por Fonte: Banco Central do Brasil.
investimento em expansão de capacidade exemplo, o nível de emprego). Tal como apresen-
produtiva e em inovações. A taxa de formação tado nessa formulação, a visão do mercado de O saldo da balança comercial cresce quase
de capital brasileira se encontra deprimida há consumo de massas tende a se aproximar de uma 89% em 2003, em relação ao ano anterior, e volta
muito tempo, e há necessidade de elevá-la em
visão mais centrada no aumento da produção dos a crescer 36% em 2004, em relação ao ano ante-
alguns pontos percentuais do PIB.
setores modernos da economia, sejam indus- rior. Para sentir ainda mais o impacto do cresci-
O governo fará, por meio do PPA 2004–2007, triais ou de serviços. mento das exportações, basta observar: em 2002
um grande esforço de coordenação e Apesar de os principais elementos terem se e 2003, as importações ficaram aproximadamente
mobilização financeira e empresarial para mantido em todos os documentos, o sentido geral no mesmo patamar (US$ 47,2 bilhões e US$ 48,3
impulsionar os investimentos, nas atividades da formulação (e, especialmente, da execução, a bilhões), mas em 2004 cresceram cerca de 30%
agropecuárias, minerais, industriais e de
partir da posse do novo governo em 2003) foi o (para US$ 62,8 bilhões). Entretanto, tomando
serviços. A ênfase será colocada nos
investimentos destinados à ampliação da de se tornar mais “amigável” aos mercados, espe- apenas em consideração os últimos dois perío-
geração de divisas estrangeiras, seja pela via cialmente aos mercados financeiros, relativizando dos, as exportações saltaram de cerca de US$ 73,1
da expansão e diversificação das muito fortemente as posturas mais abertamente bilhões em 2003 para US$ 96,5 bilhões (cresci-
exportações, seja pela via da produção transformadoras ou “heterodoxas”. Se isso é mais mento de 32%).
substitutiva de importações. Trata-se de
visível em relação às questões financeiras, pode Esse crescimento geral das exportações em
fórmula indispensável para superar a
vulnerabilidade externa da economia nacional. também ser observado na estratégia de ajuste do 2004 pode ser atribuído basicamente a dois fato-
Também serão concentrados esforços na balanço de pagamentos, que transita para uma res. De um lado, é preciso lembrar que foi um ano
recuperação dos hoje deprimidos níveis de ênfase forte na obtenção no curto prazo de saldos de condições extremamente generosas do ponto
investimentos em infra-estrutura. comerciais crescentes, assentada em um cresci- de vista do mercado mundial, com crescimento
mento muito rápido das exportações. de preços e também de volumes negociados, em
As políticas de investimento nas cadeias
especial em setores em que o Brasil se destaca,
produtivas exportadoras e competidoras com
importações serão objeto de cuidadoso
Desenvolvimento versus ajuste externo ou em países com os quais tem importantes rela-
detalhamento, de acordo com as Se a estratégia de desenvolvimento não é explí- ções comerciais, sejam antigas (caso da Argentina)
especificidades e potencialidades setoriais. cita, ou está sujeita a um jogo de forças e interes- ou mais recentes (China). De outro, não é de menor
A seleção de prioridades terá como critério a ses heterogêneos que compõem a base social e importância a política extremamente agressiva de
capacidade de geração de divisas por meio de política do novo governo, a estratégia implemen- promoção do comércio exterior por parte do go-
vantagens comparativas estáticas (setores
tada para o ajuste das contas externas, ao con- verno Lula, buscando não apenas o crescimento
com alta competitividade, mas taxa de
investimento insuficiente diante dos trário, é bastante clara: um vigoroso crescimento em mercados já conhecidos, mas também a aber-
requisitos de expansão da produção e das das exportações objetivando ampliar rapida- tura de novos mercados para produtos brasileiros
exportações) e de vantagens comparativas mente o superávit comercial. (Oriente Médio, África e Índia).
dinâmicas (setores de baixa competitividade De fato, o saldo comercial praticamente do- Ao se analisar a composição das exportações
atual, mas boas perspectivas de
bra de 2002 (último ano do governo anterior) para brasileiras, destacam-se alguns elementos. O país
competitividade a médio e longo prazos).
2003 (primeiro ano do novo governo) e segue teve o dinamismo de suas exportações e a expli-
Um princípio básico ordenador do crescendo rapidamente, como se pode verificar cação para o seu saldo comercial expressivo ba-
megaobjetivo de fortalecimento da economia nos números a seguir. seados em setores de baixa intensidade tecnoló-
nacional é o de que o mero início de um ciclo gica.23 Concentraram-se em produtos primários e
de investimentos em bens comercializáveis, industriais intensivos em recursos naturais, como
mesmo em segmentos produtivos em que os
os da indústria agroalimentar (intensivos em re-
prazos de maturação são longos, por si só já
conduz a expectativas favoráveis sobre o cursos minerais e energéticos). Entre estes, desta-
risco-país, já que aponta para a melhoria da que entre os primários para a soja, o ferro e o
capacidade de pagamento dos 22 “No longo prazo, objetiva-se, com o PPA 2004–2007, alumínio, carnes (bovinos e aves), sucos cítricos
compromissos internacionais. 21 inaugurar um processo de crescimento pela expansão e manufaturados de ferro e aço.
do mercado de consumo de massa e com base na
Vale ressaltar que, em um quadro de preva- Embora não exista uma estratégia clara de
incorporação progressiva das famílias trabalhadoras
lência da hegemonia dos interesses financeiros, ao mercado consumidor das empresas modernas. desenvolvimento, a que foi adotada, até aqui com
mesmo essa visão mais voltada para a ampliação O modelo é viável, já que está inscrito na lógica de
da produção é apresentada em meio a importan- operação da economia brasileira: toda vez que ocorre
aumento do poder aquisitivo das famílias
tes referências do discurso dominante, como seus
trabalhadoras, o que se amplia é a demanda por bens
impactos sobre o chamado “risco-país” e sua in- e serviços produzidos pela estrutura produtiva 23 De acordo com estudo do Instituto de Estudos para o
fluência sobre a capacidade de pagamento dos moderna da economia (alimentos processados, Desenvolvimento Industrial (Iedi), “O país é grande
compromissos (financeiros) internacionais. vestuário e calçados, artigos de higiene e limpeza, exportador de produtos de baixa e média-baixa
produtos farmacêuticos, equipamentos eletrônicos, intensidade tecnológica (que representam 78% de
eletrodomésticos, materiais de construção, nossas exportações), enquanto, do lado das
mobiliário, serviços de supermercados, serviços de importações, é grande comprador de produtos de alto e
transporte, de energia elétrica, de telefonia, de cultura médio-alto conteúdo tecnológico (45% das
21 Lei 10.933, Anexo 1, p. 32-33. e entretenimento).” (Lei 10.933, Anexo 1, p. 8) importações)” (Iedi, 2005).

Observatório da Cidadania 2005 / 45


sucesso, para ajuste das contas externas vem As commodities têm seus preços determina- potenciais de mercados agrícolas, como foi o caso
esboçando uma rota de crescimento, na qual alguns dos pelo chamado mercado internacional, isto é, do processo negociador entre o Mercosul e a
setores, pela capacidade rápida de resposta que pelos grandes consumidores e pelos controlado- União Européia.
podem ter no resultado positivo das exportações, res do circuito de comercialização (em sua maioria, No caso específico da OMC, a grande barga-
são incentivados e crescem mais do que outros. corporações transnacionais, com a exceção de nha deste momento da Rodada Doha envolve aber-
Isso tem um impacto sobre o desenho futuro da uma ou outra commodity, como o petróleo). Por tura de mercados agrícolas, em troca, fundamen-
economia e da sociedade brasileira, que está lon- outro lado, a concentração de sua produção nes- talmente, de concessões em bens industriais (co-
ge de ser neutro. ses bens faz com que esses países se tornem nhecidos como Nama, sigla em inglês de Non-
importadores de outros bens industriais, além dos Agricultural Market Access, Acesso a Mercados
Comércio externo e redução da pobreza24 serviços a eles associados (assistência, desen- de Não-Agrícolas), serviços (que rebateriam em
A discussão recente nos processos de negocia- volvimento tecnológico, design, propaganda e novas atualizações do General Agreement on Trade
ções comerciais – como as da OMC, da Alca, do outros), fornecidos por empresas (de novo, cor- in Services – Gats, Acordo Geral sobre Comércio
Mercosul e da União Européia – e aquelas sobre porações transnacionais), que podem fixar seus de Serviços) e propriedade intelectual (atualiza-
desenvolvimento levadas adiante por instituições preços, dado o controle exercido sobre a tecno- ção do acordo Trips – Trade-Related Aspects of
financeiras internacionais, como o Banco Mundial logia, a mídia, o poder financeiro e outras vanta- Intellectual Property Rights, Acordo sobre Aspec-
e o FMI, têm enfatizado a chamada coerência en- gens. Trata-se de uma velha e bem conhecida dis- tos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacio-
tre políticas de liberalização comercial, liberaliza- cussão, com uma roupagem nova. nados a Comércio).
ção financeira e estratégias de desenvolvimento. No caso de bens agrícolas, a situação é ain- Em linhas gerais, um acordo dessa natureza,
Discute-se ainda como as instituições financei- da mais complicada. Os produtores procuram se levado adiante, poderia implicar que, em troca
ras podem ajudar a integração econômica e o cres- disputar o mesmo mercado já intensivo em con- da abertura para a exportação de produtos agrí-
cimento dos fluxos comerciais e, por outro lado, sumo e saturado, qual seja, o norte da Europa, o colas, processados ou não, o país tivesse de fa-
como estes podem ser uma via importante para a Canadá, o Japão e os Estados Unidos. Enquanto zer concessões que limitariam sua capacidade de
obtenção de divisas a fim de arcar com os com- isso, as grandes populações, para as quais con- fazer política industrial, apoiando setores indus-
promissos financeiros. sumir os alimentos pode ser a diferença entre a triais com proteções tarifárias, e tivesse que ex-
O pensamento econômico liberal hegemônico vida e a morte, ficam fora da possibilidade de por mais o seu setor industrial à concorrência.
reafirma permanentemente a convicção de que o consumo ou dependem de caridade – por falta de Isso teria eventuais efeitos sobre o nível de em-
livre comércio e o livre fluxo de capitais podem, poder de compra, seja pela renda, pelo crédito ou prego, por exemplo, ou demandaria recursos para
juntos, gerar um ambiente econômico capaz de pelas políticas sociais. Tal modelo, ao mesmo redução de custos, entre os quais os de mão-de-
estimular o desenvolvimento e responder às de- tempo em que resulta em fome para as popula- obra, gerando demissões e/ou reduções dos pa-
mandas sociais. No entanto, não costuma respon- ções de nações mais pobres, provoca uma dis- tamares de remuneração.
der à análise de que o comércio não pode ser livre puta árdua pelos mercados de alguns poucos Seriam necessárias também concessões na
para países que precisam enfrentar o peso dos países, que não afeta apenas os produtores lo- área de serviços, que, além de impactos sobre o
encargos da dívida externa e das remessas rela- cais, mas principalmente os produtores de ou- emprego e/ou a remuneração do setor, ou à pró-
cionadas à liberalização dos fluxos financeiros, tros exportadores. pria sobrevivência das empresas, poderiam pro-
obrigando-os à geração de enormes superávits Isso gera uma pressão permanente para a vocar duas complicações para o país: uma de
comerciais. Para esses países, o comércio interna- deterioração dos preços agrícolas. Essas pressões natureza macroeconômica e outra relacionada ao
cional aparece como uma obrigação, e não como podem ser momentaneamente contrabalançadas, conceito de cidadania. A primeira ocorreria por-
uma estratégia possível, uma opção. por exemplo, com a entrada da China como grande que, paralelamente ao aumento na importação de
Em geral, a pressão sobre os países menos país comprador, mas permanecerão estrutural- serviços, as empresas internacionais que entras-
desenvolvidos é feita no sentido de que se inte- mente e voltarão a se manifestar. sem no setor passariam a remeter divisas ao ex-
grem mais no fluxo internacional de comércio, terior, pressionando, dessa forma, o balanço de
para tornar possíveis as transferências financei- A barganha da Rodada Doha pagamentos. A segunda complicação se justifica
ras relacionadas aos pagamentos de dívidas e Apesar dessas aparentes contradições – espe- pelo fato de alguns serviços, em geral públicos,
outros passivos externos. A opção dada a esses cialmente em um país onde, de um lado, crescem serem tratados como “direitos”, isto é, todas as
países é a integração nos fluxos do comércio in- as exportações de produtos agrícolas ou agroin- pessoas deveriam ter garantido esse acesso, en-
ternacional pela produção de commodities, prin- dustriais vinculados à alimentação, e, de outro, quanto, nas negociações internacionais de co-
cipalmente, produtos primários agrícolas e mine- destaca-se um programa nacional de combate à mércio, eles aparecem como “mercadorias”, ou
rais. No caso dos primeiros, surgem problemas fome –, o governo segue na sua estratégia inter- seja, o acesso a tais serviços está limitado por
com aqueles produtos que podem afetar interes- nacional de busca de mercados. Nas várias nego- uma disponibilidade de renda.
ses de produtores em economias hegemônicas, ciações comerciais em curso, particularmente nas Na área de propriedade intelectual, essa
como o algodão nos Estados Unidos ou o açúcar da OMC, que dominam este ano de 2005, grande barganha pode significar ainda concessões de
na Europa, por exemplo. Normalmente, a produ- ênfase é dada nas posições ofensivas agrícolas, reconhecimento de propriedade intelectual a
ção dessas mercadorias é intensiva quanto ao uso na tentativa de abrir cada vez mais os mercados grandes empresas da área de fármacos, reco-
de área e recursos naturais, e especialmente agres- internacionais aos produtos da grande agricultura nhecendo patentes e evitando medidas para
siva ao ambiente. Além disso, a defesa da con- comercial brasileira. contornar a sua existência, o que poderia cau-
centração de países mais pobres nessas produ- Em outros processos negociadores, a raiz do sar problemas de acesso a medicamentos, ou
ções representa um retorno de quase 50 anos no impasse normalmente foi mais o fato de que os maiores custos para seu uso. Tal medida seria
debate econômico, uma volta à velha discussão parceiros relutaram quanto ao caráter ofensivo das também muito complicada para países com pro-
sobre os termos de troca. posições brasileiras quanto a seus mercados, e gramas de saúde contingenciados por defini-
menos por posturas defensivas do Brasil em rela- ções orçamentárias, além de poder representar
ção a ameaças potenciais que pudessem repre- vida ou morte para muitas pessoas doentes –
sentar para um projeto de desenvolvimento nacio- ou seja, um direito garantido de forma superlati-
nal as concessões que o Brasil estaria disposto a va em negociações comerciais estaria se sobre-
24 Baseado em Mineiro (2004 b). fazer em outras áreas a fim de obter concessões pondo ao direito à vida.

Observatório da Cidadania 2005 / 46


Entre exportações e carência alimentar outros países e dependente de uma dinâmica ex- agrícola no Norte, Centro-Oeste e Nordeste do país,
Como visto anteriormente, a ênfase no comércio portadora, aumentos de renda de trabalhadores e sem contar com o efeito de longo prazo que a ex-
internacional – e, mais do que isso, em áreas des- trabalhadoras e/ou de seus direitos e conquistas pansão da grande agricultura comercial tem sobre a
se comércio nas quais é aparentemente possível passam a ser vistos principalmente como novos concentração de terra e o agravamento dos proble-
seguir obtendo ganhos no curto prazo – pode aumentos de custos, que dificultam a capacidade mas sociais e de violência no campo brasileiro.
determinar um desenho de projeto de desenvol- de competição das empresas. A tentativa oficial de coordenar, em um pro-
vimento econômico, mesmo quando não esteja O que pode parecer uma complicada discus- jeto de desenvolvimento, os interesses expansi-
claramente esboçado. A partir dessa percepção, são de economistas é traduzida na linguagem vos e ofensivos da grande agricultura comercial
surgem três grandes perguntas: qual a natureza empresarial sobre o aumento do “custo Brasil” de exportação com um modelo que torne, ao
de um processo de funcionamento da economia como mais um argumento contra conquistas da mesmo tempo, viável e dinâmica a agricultura fa-
derivado desse tipo de alavancagem? Quais os classe trabalhadora. Em um país com os padrões miliar é muitas vezes inviabilizada pelo próprio
efeitos desse processo no longo prazo sobre a desastrosos de concentração da renda nacional dinamismo econômico da grande agricultura co-
sociedade brasileira? Que fôlego pode ter tal pro- como o Brasil, curiosamente a inserção interna- mercial voltada às exportações, tão importante
cesso em um país como o Brasil? cional pela ampliação dos fluxos de comércio in- para a estratégia de geração de grandes superá-
Provavelmente, não há resposta segura a to- troduz mais um elemento contrário à melhoria da vits comerciais de curto prazo.
das essas indagações. Entretanto, cabe considerar remuneração da população trabalhadora em geral A insistência em uma inserção exportadora
elementos que podem ajudar a refletir um pouco, e à obtenção de conquistas nos setores mais orga- de baixo conteúdo tecnológico deve ser vista
especialmente sobre os efeitos sociais. Alguns nizados, que têm poder de negociação – ou seja, também pelos efeitos que pode ter sobre as prio-
deles já foram tangenciados ao longo deste texto. a redução da chamada “competitividade” de nos- ridades da educação e do impulso ao desenvol-
O primeiro, e importante, é a contradição entre a sos produtos, especialmente aqueles de mais baixo vimento de geração de tecnologia e conheci-
produção de um saldo exportável de produtos de conteúdo tecnológico, em virtude do impacto do mentos no país. Efetivamente, se pode ser vista
consumo alimentar e uma população com carên- custo da mão-de-obra no valor final dos produtos. como uma estratégia, é de natureza absolutamente
cias alimentares. Não estamos aqui falando de perversa do ponto de vista de pensar as priori-
uma cesta de produtos exportáveis composta de Competitividade perversa dades e a definição de uma estratégia de educa-
frutas exóticas, vinhos ou carnes nobres, mas de É preciso considerar, ainda, a questão ambiental ção para o país. É perversa porque esse tipo de
produtos básicos de alimentação, como soja, mi- e os efeitos da estratégia exportadora sobre os opção de crescimento depende pouco da popula-
lho, carne bovina e de aves, cítricos e outros. recursos naturais do país. Parte dessa estratégia ção com maior escolaridade – não se pretende
Ou seja, existe em algum grau contradição está baseada na possibilidade de uso intensivo desenvolver uma capacidade própria intensiva de
entre a expansão da exportação dessa cesta de dos recursos naturais do país. Grande extensão geração de conhecimento e tecnologia, já que esse
produtos básicos de alimentação e a expansão de terras potencialmente agricultáveis, disponi- tipo de estratégia gera pouquíssimas demandas
da renda da população mais pobre, seja pelo cres- bilidade de extensões territoriais a baixo custo, nessa área e parte dos “pacotes” tecnológicos é
cimento econômico puro e simples, seja pela re- abundância de água em grande parte do territó- importada. E também porque sua própria dinâ-
distribuição de renda. No curto prazo, políticas rio, sol durante todo o ano e pouca ou nenhuma mica tem baixa capacidade de inclusão da popu-
de crescimento que acelerassem o incremento da ocorrência de catástrofes naturais são inegáveis lação nacional no sistema educacional formal,
renda da população de mais baixa renda, permi- vantagens competitivas do país, além da ocorrên- o que não significa que não possa ser feito por
tindo a elevação de seus padrões alimentares, cia de recursos minerais que a própria extensão uma decisão política.
poderiam ter como conseqüência a redução de territorial torna possível. Para além dessa questão, a baixa prioridade
excedentes exportáveis, para atender a esse au- Porém, o uso intensivo visando ao comércio à pesquisa e ao desenvolvimento de tecnologia
mento da demanda interna. internacional de parte importante dessa potencia- nesse padrão de inserção internacional requer
Por outro lado, a transformação da quase lidade competitiva implica degradar, em curto es- poucos investimentos nessas áreas, gerando
totalidade da grande produção agrícola comercial paço de tempo, uma situação peculiar que pode- poucas oportunidades de trabalho em uma área
em commodities exportáveis provoca uma vincu- ria permitir tranqüilidade às gerações futuras em potencialmente nobre que seria a de desenvolvi-
lação entre preços (em moeda nacional) no mer- um mundo onde esses recursos terão cada vez mento de tecnologia e ciência.
cado interno e preços (em divisas) no mercado mais valor. Ao exportar recursos minerais ou pro- A insistência em uma estratégia comercial
internacional. Isso faz com que variações positi- dutos agrícolas, estamos exportando também internacional ofensiva nos fóruns internacionais
vas de preços no mercado internacional, com esses recursos naturais, já que muito dessa pro- de discussão, a exemplo da OMC, como parte da
impacto positivo sobre a receita das importações, dução exportável embute água, terra e recursos estratégia de ajuste do setor externo nacional e
tenham impacto negativo sobre a renda real da energéticos fornecidos a preços baixos para via- de tentativa de contornar os estrangulamentos da
população mais pobre, que vê seu poder de con- bilizar a capacidade dinâmica das exportações. vulnerabilidade externa da economia brasileira, se
sumo diminuir nesses casos. Os efeitos destrutivos da construção de bar- de um lado configura a definição de uma estratégia
Outro efeito, que decorre da inserção inter- ragens para a produção de energia mais barata e de desenvolvimento, por outro se baseia em ele-
nacional baseada em produtos de baixo conteú- a exploração mineral em grandes extensões terri- mentos do que poderíamos chamar de uma com-
do tecnológico, é a pressão por uma “espiral” de toriais do Brasil são apenas um exemplo. Talvez o petitividade perversa pelos seus efeitos sociais,
redução dos custos da mão-de-obra, que pode mais gritante no período recente seja a expansão ambientais e no mundo do trabalho no país.
ser a remuneração ou outras conquistas e/ou da grande agricultura comercial sobre as áreas
direitos legais da classe trabalhadora, vistos de parques e florestas, sobre as formas de produ- Opção pela estratégia exportadora
apenas como custo. Se, em uma economia menos ção e de viver mais tradicionais no interior brasi- Como já apontado neste texto, as discussões de
dependente da dinâmica do comércio internacio- leiro, impulsionadas pelo dinamismo do padrão de comércio internacional e da estratégia exportadora
nal e menos exposta aos movimentos desse co- inserção comercial internacional do país, espe- nacional envolvem questões que vão muito além
mércio, incrementos de renda de trabalhadores e cialmente em produtos como soja, algodão e da agricultura. Dizem respeito à própria discussão
trabalhadoras são transformados dinamicamente bovinocultura. Tais produtos provocam aspectos sobre estratégias de desenvolvimento em geral,
em aumento do volume de vendas – gerando au- negativos do ponto de vista ambiental e da segu- o que inclui o debate acerca do papel reservado à
mento da produção em uma trajetória virtuosa –, rança pública, com o aumento da violência cau- agricultura nesse processo e o tipo de agricultura
em uma economia exposta às exportações de sado pela expansão dessas culturas na fronteira sobre a qual estamos falando.

Observatório da Cidadania 2005 / 47


As opções tomadas nos processos de nego- de dinamismo econômico a qualquer preço, quer
ciação em que o Brasil está envolvido (sendo a para um bloco de forças políticas que chega ao
Alca um dos mais importantes) e que privilegiam poder e tem de governar com estratégias de desen-
os interesses do agronegócio vinculam-se, ao volvimento em disputa.
menos passivamente, a uma estratégia possível Exatamente nesse último ponto reside o pe-
de integração que reforça a manutenção da subor- rigo de, pelo pragmatismo de decisões tomadas
dinação aos centros econômicos hegemônicos e por um elemento que deveria ser apenas um dos
às empresas a eles vinculadas. Tais opções difi- componentes da estratégia geral de desenvolvi-
cultam, se não inviabilizam, estratégias alternati- mento, se possa desenhá-la com todos os riscos
vas de desenvolvimento que têm como objetivo embutidos. Ou seja, a parte está definindo o todo
ou motor o combate à exclusão social e o atendi- e condicionando, a partir da postura de inserção
mento de demandas da maior parte da sociedade: comercial, todos os elementos de mudança de
a população trabalhadora. uma sociedade. Dessa forma, mais uma vez as
A partir do governo Lula, entretanto, essa es- forças que buscam a transformação social e eco-
tratégia que mantém o privilégio dos interesses nômica são domadas pela imposição de supos-
do agronegócio não ocorre sem conflitos, uma tas necessidades pragmáticas.
vez que o novo governo procura contemplar, no Apontar esse perigo permite recompor a ca-
conjunto de interesses a serem levados em con- pacidade de colocar na ordem do dia novamente
sideração no processo negociador, as possibili- a discussão clara e explícita acerca do projeto de
dades de obter margem de manobra para maior desenvolvimento que se quer construir. Permite
autonomia da política nacional de desenvolvimen- ainda pôr a questão do comércio internacional e as
to e a incorporação de alguns dos interesses da definições macroeconômicas ou diplomáticas que
agricultura familiar visando à integração interna- sobre ele são feitas dentro dos marcos de um
cional. A incorporação desses novos elementos às projeto mais geral de país, do qual ela é apenas
preocupações dos negociadores brasileiros amplia parte, e, como tal, deve ser pensada em relação ao
as contradições, mas ao mesmo tempo estende conjunto da estratégia de desenvolvimento.
os argumentos e dá maior mobilidade a essa estra- Pensar dessa forma permite identificar graves
tégia negociadora, em um cenário de múltiplos e problemas potenciais nas definições feitas hoje nos
simultâneos processos de negociação. processos negociadores nos quais o país está en-
A escolha da via exportadora como a opção volvido, particularmente a OMC, e nas dramáticas
de contornar as restrições externas pode não ser conseqüências que tudo isso pode ter sobre o futuro
definitivamente uma estratégia de desenvolvi- do país e seus indicadores de desenvolvimento.
mento, mas vai esboçando efetivamente um de- Essa estratégia, se é para ser vista como tal,
senho de política de crescimento, que pode ter aparenta conter fortíssimas contradições com
fôlego curto em um país das dimensões do Brasil, uma agenda social explícita do governo Lula.
mas que, quando levada adiante, tem importante Por isso, é necessário recolocar as questões
influência nas definições sobre as posições nego- dessa agenda como centro das preocupações, e
ciadoras brasileiras nos processos em que o país a inserção comercial internacional como com-
está envolvido, particularmente as da OMC neste ponente que permita, no futuro, efetivar – e não
ano de 2005. Cristalizadas na forma de acordos, inviabilizar – essa agenda social.
podem ter efeitos de longo prazo sobre os dese-
nhos da economia e da sociedade brasileira.
Conforme tentamos argumentar anterior- Referências
mente, as conseqüências seriam bastante com- IEDI. O comércio exterior brasileiro em 2004. 2005.
Disponível em: <http://www.iedi.org.br/admin/pdf/
plicadas do ponto de vista de pensar uma socie-
20050214_comex.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2005.
dade e uma economia menos desigual e mais
MINEIRO, A. Participação popular, estratégia de
justa. O mesmo ocorreria em relação aos efeitos desenvolvimento e política de ajuste: limitações do
que podem ser imaginados sobre o futuro de in- processo de discussão do PPA 2004–2007. Texto
dicadores ambientais, educacionais, de padrões de apresentado ao seminário “O desenvolvimento que
temos. O desenvolvimento que queremos”, Inter-Redes,
remuneração e relações de trabalho e de saúde
São Paulo, nov. 2004 a. Não publicado.
no país, entre outros.
. Da “Alca light” ao impasse de Puebla: Alca,
agricultura e contradições. In: REBRIP. Negociações
Pragmatismo imposto comerciais internacionais na era Lula: criação do G-20 e
O dinamismo de uma inserção comercial interna- embates entre o agronegócio e a agricultura familiar. Rio
de Janeiro: Rebrip, 2004 b, p. 65-76.
cional baseada em produtos de baixo conteúdo
tecnológico e intensivo em recursos naturais e
ambientais é contraditório com a definição de um
projeto de desenvolvimento que se queira capaz
de gerar um dinamismo próprio, baseado na ex-
pansão do mercado interno e na ampliação da
inclusão social. Esses são elementos fundamen-
tais sobre os quais deveríamos nos debruçar, pois
nem sempre ficam claros, quer para uma socie-
dade que às vezes parece ansiosa por uma busca

Observatório da Cidadania 2005 / 48


Para além da justiça distributiva

A pobreza e a desigualdade social são estruturais na nossa economia, seja qual for a maneira como se manifestam em
termos da questão social ao longo da história brasileira. Apesar dos avanços nos últimos anos, persiste um vazio no debate
sobre o que seja desenvolvimento sustentado com inclusão social. O desafio atual tem sido o de articular políticas sociais e
econômicas, de forma que estas últimas também sejam ditadas pelos parâmetros dos direitos sociais. No centro dos problemas
enfrentados pelos programas recentes de transferência de renda com co-responsabilidade das pessoas beneficiárias, está a
autonomia de cidadãos e cidadãs em situação de extrema pobreza ante a presença normatizadora do Estado.

Amélia Cohn* então, reconhecidas como tais – de modo subal- da economia de subsistência no Brasil1 mostra
terno aos interesses do capital e filtrados a partir como, em apenas meio século (1930–1980) de
É consenso entre pesquisadores e pesquisado- de um projeto nacional. crescimento industrial do país, ocorreu um pro-
ras da área social que, independentemente das As décadas sucessivas de crescimento e de- cesso de urbanização do conjunto da sociedade
formas como aparece na sociedade, a pobreza senvolvimento econômico via substituição de im- brasileira, absorvendo nas metrópoles e nas cida-
no Brasil segue uma trajetória particular como portações vieram acompanhadas de políticas que des de médio porte um imenso contingente demo-
problema social a ser enfrentado pelo Estado. instituíram no país a “cidadania regulada” (ver San- gráfico do chamado setor de subsistência rural.
Conhecer seus traços essenciais é importante tos, 1971), isto é, um padrão de extensão de direi- Delgado chama a atenção, no entanto, para o fato
para que se entendam as complexas questões tos sociais vinculado à condição de assalariados(as), de que essa transposição demográfica da popu-
enfrentadas pela sociedade brasileira nos últi- configurando-se, em conseqüência, como privi- lação agrícola para o meio urbano não se traduziu
mos anos, para tentar dar conta da “nova” e da légios de determinados segmentos dessa classe tão-somente num crescimento da massa assala-
“velha pobreza”. O primeiro problema é o da de trabalhadores e trabalhadoras, que têm acesso a riada do setor urbano, mas também num enorme
associação entre políticas de combate à pobreza esses direitos por meio de um sistema contribu- contingente de trabalhadores e trabalhadoras sem
e políticas de promoção da cidadania. O tema tivo compulsório, cujo pré-requisito é a inserção vínculo com a economia formal.
levanta a relação entre a lógica da igualdade e no mercado de trabalho. A análise reforça o que outros estudos igual-
a da emancipação, ou seja, de um lado as polí- No decorrer das décadas do período desen- mente recentes sobre a pobreza no Brasil vêm
ticas de combate à pobreza que buscam dimi- volvimentista, que se esgotou no início da década demonstrando: tanto ela quanto a desigualdade
nuir a desigualdade social no país e de outro de 1980, a questão social não foi identificada social, independentemente de como se manifestam
as políticas sociais para a construção da cida- como relativa à pobreza, uma vez que era inerente à em termos da questão social ao longo da nossa his-
dania. Isso significa que tais políticas precisam própria concepção daquele modelo a interpreta- tória, são estruturais na nossa economia (Rocha,
enfrentar nossa dupla tradição: um traço assis- ção de que o desenvolvimento social se daria auto- 2003; Pochmann e Amorim, 2003), delas fazendo
tencialista (que nega os direitos sociais) e, ao maticamente com o desenvolvimento econômico, parte a informalidade, a economia de subsistên-
mesmo tempo, um traço clientelista e contro- pela incorporação à economia das pessoas excluí- cia, o desemprego e inúmeras formas de estraté-
lador das pessoas pobres. das do mercado formal de trabalho. Nesse período, gias de sobrevivência. Não é de se espantar, por-
Desde Getulio Vargas, em 1930, a pobreza o crescimento econômico vinha acompanhado da tanto, que durante a década de 1970, já estando
tornou-se um tema de políticas específicas do promessa da mobilidade social dos indivíduos, completo aquele ciclo de crescimento industrial
Estado na regulação das relações entre capital e constituindo a política econômica um antídoto à de meio século calcado no modelo desenvolvi-
trabalho, formuladas a partir da ótica da constru- marginalidade social. mentista, verifica-se uma extensão de determi-
ção de um Estado nacional e de um projeto de A carteira de trabalho significava o passaporte nados direitos previdenciários desvinculados do
industrialização. Desse período data a fundação para o acesso ao sistema de proteção social bra- mercado formal de trabalho, até mesmo da con-
do nosso sistema de proteção social, estreita- sileiro, cabendo à filantropia ou a serviços resi- tribuição compulsória, como no caso dos traba-
mente articulado com a legislação trabalhista e duais do Estado a cobertura de direitos mínimos lhadores e das trabalhadoras rurais.
sindical, formando-se o famoso tripé (Estado a quem era extremamente pobre. A pobreza não
nacional, industrialização e leis trabalhistas) se configurava como um fenômeno estrutural da Espaço recente na agenda pública
que permitiu, no processo de modernização do nossa sociedade, e o papel estabelecido para as No início da década de 1990, surgiu uma expres-
país, incorporar determinados interesses das políticas sociais consistia em criar condições ao são mais contundente da pobreza: as pessoas po-
classes assalariadas – as pessoas pobres de desenvolvimento da economia. Daí, por exemplo, bres passaram a ser denominadas “descamisadas”
a prioridade atribuída à educação e à saúde, na
perspectiva de gerar um contingente de pessoas
qualificadas para o mercado de trabalho para de- 1 Segundo o autor, caracteriza-se por um “conjunto de
* Docente do Departamento de Medicina Preventiva da sempenhar funções no novo padrão tecnológico atividades econômicas e relações de trabalho que
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo de produção que estava sendo montado, em par- propiciam meios de subsistência e/ou ocupação para uma
(FMUSP), pesquisadora do Centro de Estudos de parte expressiva da população, mas tais relações não são
ticular, no parque industrial brasileiro.
Cultura Contemporânea (Cedec), professora reguladas pelo contrato monetário de trabalho assalariado,
colaboradora do Mestrado em Saúde Coletiva da Um estudo recente, feito por Guilherme Costa nem visam primordialmente à produção de mercadorias ou
Universidade Católica de Santos (Unisantos). Delgado (2004), sobre a gênese e a reprodução de serviços mercantis com fins lucrativos” (p.22).

Observatório da Cidadania 2005 / 49


pelo presidente eleito, Fernando Collor de Mello, e condições para seu enfrentamento, mas também no total da renda nacional, acompanhada de uma
que trouxe ao discurso político oficial os segmen- em relação à conformação de um conjunto de queda acentuada do poder de compra do salário
tos miseráveis da população, mas sem que isso políticas sociais que desenhem uma rede de pro- mínimo e do aumento da concentração de renda
se traduzisse numa agenda pública de ação do teção social para superar os brutais patamares no país. Segundo dados dos Censos Demográficos
Estado. Só nos governos posteriores a pobreza de pobreza e de desigualdade vigentes. do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
voltou a ganhar importância na agenda pública, Não é de se espantar, portanto, a existência (IBGE), o percentual da renda do trabalho no total
mais particularmente a partir do primeiro mandato de uma profusão de estudos e debates sobre a da renda nacional passou de 55,5%, em 1960, para
de Fernando Henrique Cardoso, com o Programa configuração da pobreza na realidade brasileira, 50,0%, em 1980, e para 37,2%, em 2000. O índice
Comunidade Solidária. mais recentemente enriquecida pela incorporação do poder de compra do salário mínimo caiu de 100,3
Portanto, apenas a partir do fim da primeira de estudos e reflexões sobre a parcela rica no para 61,78 e 32,71 nesses mesmos anos. Já a
metade da década de 1990, as políticas sociais país.2 Dentre essa produção, pode-se destacar, por relação entre a renda média per capita da parcela
passaram a ser formuladas levando-se em conta exemplo, a de Campos, Pochmann, Amorim e Silva dos 10% mais ricos e a dos 40% mais pobres
a pobreza como questão social. Não se pode deixar (2003), que enfatiza o capitalismo brasileiro de 1960 apresentou comportamento inverso, passando de
de registrar, no entanto, que isso foi antecedido a 1980 como portador de um “grande charme” 13,5 para 20,3 e 21,2, conforme a tabela abaixo.
por uma série de experiências de governos muni- explicitado no fenômeno da mobilidade social que
cipais em toda a área social (entre elas saúde, ocultou um “violento processo de crescimento na
educação e assistência social) e programas de desigualdade de renda e a incapacidade de banir 1960 1980 2000
transferência de renda que precederam progra- a velha exclusão social”. % da renda do trabalho/
mas federais similares, como o Bolsa Escola, o Os autores enfatizam como esse padrão renda nacional 55,5 50,0 37,2
Bolsa Alimentação e outros. mudou radicalmente entre as décadas de 1980 e % do emprego formal/
total da ocupação 19,6 45,4 42,7
A partir de 2003, acentuou-se a tendência de 2000, quando a evolução da exclusão social pas-
Índice do poder de compra
a questão social assumir um papel de maior cen- sou a combinar baixa expansão das atividades do salário mínimo 100,3 61,78 31,71
tralidade na agenda pública, no que se refere às econômicas com avanços significativos no proces- 10% + ricos / 40% + pobres 13,5 20,3 21,2
políticas macroeconômicas, à busca de metodo- so de democratização política do país (Campos
Fonte: IBGE (apud Campos et al., 2003, p. 39).
logias de diagnósticos e medidas da pobreza e da et al., 2003). Temos, então, no país, segundo os
desigualdade social ou ao debate sobre os pro- autores, dois períodos distintos na trajetória da
gramas de combate à pobreza implementados pelo articulação entre economia e política, que deno- Para não ficarem fadadas ao âmbito circuns-
governo Lula, como o Fome Zero e o Bolsa Família. minam “díades contraditórias”: o primeiro (de 1960 crito da assistência social ou do alívio imediato
Apesar dos avanços nessa área, vem ocorrendo a 1980) caracterizou-se pela acentuada expansão da pobreza, as políticas sociais têm de assumir,
um enorme vazio em relação às discussões acerca econômica e um regime político autoritário; e o na atual conjuntura, duas funções. Uma delas é o
do desenvolvimento social, no contexto atual – segundo (de 1980 a 2000) promoveu baixa ex- papel clássico de regulação social, vale dizer, de
ou, em outras palavras, do desenvolvimento sus- pansão econômica e avanços significativos no diminuição dos conflitos sociais que a desigual-
tentado com inclusão social. regime político democrático. dade e a pobreza produzem. A outra é de serem
Paradoxalmente, isso não significa que, do A presença dessas “díades contraditórias” efetivamente redistributivas, quer do ponto de
ponto de vista teórico-conceitual, a pobreza e a no cenário brasileiro, por sua vez, trouxe grandes vista da riqueza produzida socialmente, quer da
desigualdade social não continuem a ser objeto de implicações para os processos de exclusão e de perspectiva de criarem mecanismos para que os
preocupação de estudiosos e estudiosas (Rocha, desigualdade sociais. No primeiro período, am- indivíduos em situação de pobreza e de vulnera-
2003; Henriques, 2000; Schwartzman, 2004; Cam- pliaram-se as desigualdades socioeconômicas, ao bilidade social tenham condições de suplantarem
pos et al., 2003; Kerstenetzky, 2001). Ao contrário, mesmo tempo que, paradoxalmente, ocorreu uma essa situação, uma vez que não contem mais com
a literatura brasileira é cada vez mais rica nessa melhoria dos indicadores sociais e prevaleceu o políticas sociais estatais de suporte para sua
área e, atualmente, tende a se desdobrar em duas discurso da impossibilidade de se promover uma sobrevivência imediata.
grandes linhas, presentes na formulação das polí- distribuição mais justa da renda. Já o segundo
ticas sociais do atual governo. A primeira delas tem período foi marcado por um avanço acelerado da Exclusão e vulnerabilidade
como principal preocupação os desafios para men- “nova” exclusão social, fruto da ausência de um A pobreza, durante o período de 1960 a 1980, era
surar a pobreza de maneira precisa, gerando, em crescimento econômico sustentado, ao mesmo concebida fundamentalmente como sinônimo de
conseqüência, formulações de políticas e progra- tempo em que se retomou o regime democrático carência de determinados segmentos sociais, no
mas de combate orientados pela ótica da precisão e se fortaleceu a organização dos distintos seto- que diz respeito ao acesso a patamares de renda
em atingir seu público-alvo – as pessoas pobres res da sociedade. condizentes com a satisfação de um conjunto de
e as extremamente pobres –, com baixo custo e É importante frisar que esses 40 anos foram necessidades sociais básicas e também a deter-
grande eficiência operacional. A segunda enfatiza marcados por um mesmo fenômeno: a diminuição minados serviços sociais básicos, em particular,
a dimensão da cidadania e da conquista dos di- significativa do percentual da renda do trabalho educação e saúde. Na década de 1980 e, mais
reitos sociais por parte dos segmentos pobres da acentuadamente, na de 1990, tanto na literatura
população, acentuando o caráter público de tais sobre o tema como nos próprios discursos oficiais,
políticas e programas. A partir da ênfase nessas verifica-se a presença crescente do conceito de
políticas, será feito a seguir o balanço das políticas 2 Quanto à profusão de debates sobre o tema da nova pobreza, destinado a caracterizar a situação
de combate à pobreza desse período mais recente. pobreza e da desigualdade social, registre-se o Fórum daqueles setores que sofreram um processo de
Nacional, promovido pelo Instituto Nacional de Altos
empobrecimento mais recente, em contraposição à
Estudos (Inae) em setembro de 2004 sobre o tema, e
‘Díades contraditórias’ para o qual redigi um artigo que serve de base para pobreza estrutural, característica daquele “charme”
É também consenso entre especialistas da área este texto. Quanto aos estudos sobre as pessoas ricas do nosso capitalismo, antes referido.
social que o período mais recente vem apresen- no país, além dos trabalhos publicados por Elisa Reis Ao conceito da nova pobreza associam-se
sobre como as nossas elites percebem a pobreza e a
tando uma melhoria significativa de determinados outros dois – o de exclusão social e o de vulnera-
desigualdade (ver, por exemplo, Reis, 2000) e da
indicadores sociais, principalmente saúde e edu- recente publicação de Campos et al. (2004) sobre o bilidade social –, tendo em vista as configurações
cação. É necessário fazer um esforço não só em “atlas dos ricos no país”, há textos publicados pelo sociais mais recentes da questão social no Brasil,
termos conceituais sobre pobreza, desigualdade Ipea, como o de Medeiros (2004). embora esse fenômeno não seja estritamente

Observatório da Cidadania 2005 / 50


brasileiro ou latino-americano. Na perspectiva da sociais e do controle exercido por cidadãos e ci- mas sim em um conjunto de ações e programas
exclusão social, a pobreza é entendida como um dadãs sobre as políticas públicas, e neste caso apresentando uma matriz básica que articule in-
fenômeno de marginalização de determinados em particular sobre as políticas sociais, torna-se clusão e emancipação social.
segmentos sociais do processo de crescimento fundamental para a constituição de um sistema Não por acaso, na literatura a respeito do
econômico, que geralmente atinge pobres com de proteção social mais justo e ativo. tema, sobretudo nos textos mais recentes, são
baixo nível de escolaridade, negros(as) e mulheres. identificados três regimes de políticas sociais: o
Já o conceito de nova exclusão social refere- Políticas de longo prazo liberal clássico (e sua variante atual, o neoliberal),
se ao processo de marginalização social que vem É necessário refundar o que se entende por desen- o conservador corporativo e o social democrata.
atingindo os segmentos sociais até então incluídos volvimento social. No período desenvolvimentista, Cada um deles apresenta uma relação e uma arti-
socialmente e relativamente protegidos de cair na o termo “questão social” denominava os problemas culação distinta entre as três instituições sociais
situação de pobreza. A exclusão social torna-se um oriundos das condições sociais da população envolvidas nessas políticas – o Estado, o mercado
fenômeno mais abrangente, envolvendo as esferas pobre, num contexto em que o desenvolvimento e a família –, identificadas por vários autores como
econômica, política, cultural e social da rede de econômico a incorporaria ao mercado formal ou o “triângulo do bem-estar social” porque estão
sociabilidade dos indivíduos. A partir dessa ampli- mesmo informal da economia. Hoje, o termo sempre presentes em qualquer regime, variando
ação, o conceito de exclusão social remete-se ao “questão social” tende a designar uma concep- apenas o peso da presença de cada uma e a arti-
de vulnerabilidade social , ou de grupos social- ção particular que, quando referida ao âmbito culação entre elas.
mente vulneráveis, ou, ainda, de grupos em situ- econômico teórico, segue o modelo neoclássico, Independentemente de cada concepção de
ação de risco (Cohn, 2003). e, quando referida ao âmbito de como organizar a política de desenvolvimento social, nas econo-
Quanto às necessidades sociais básicas, veri- sociedade, adota o modelo neoliberal, no qual mias capitalistas, ela possui um mecanismo de
fica-se um processo de naturalização da desigual- o mercado e a liberdade individual passam a compensação e/ou de superação da pobreza, sem,
dade social, que deriva, em países periféricos de ocupar um lugar central. no entanto, poder dispensar a criação de empre-
modernização recente, como é o caso do Brasil, Por sua vez, porém, essa concepção vem gos, envolvendo, desse modo, políticas de cres-
na produção de subcidadãos e subcidadãs. Esse sendo construída no âmbito de um projeto de cimento econômico. Exatamente nesse ponto,
fenômeno de massa tem duas interpretações: uma reorganização integral da sociedade, que Laurell verifica-se que a diferença entre o aumento do
vê suas raízes na herança pré-moderna da nossa (2000) identifica como o assim denominado desemprego e o crescimento da desigualdade e
sociedade e a outra o percebe como conseqüência “modelo neoliberal”. Para ele, existem duas va- da pobreza é explicado pelo marco institucional
do processo de modernização de grandes propor- riantes dessa nova noção de desenvolvimento da presença ou não de uma rede de proteção
ções pelo qual passou o país. social: a ortodoxa, na qual prevalece a idéia de social para as vítimas dos ciclos econômicos,
No último caso, que coincide com a análise combate à pobreza com programas específicos, incluindo, no nosso caso, as vítimas das medidas
aqui feita, a representação social e política sobre e a do desenvolvimento humano e de inversão no de ajuste estrutural da economia.
a exclusão social estaria vinculada aos valores e capital humano , centrada na função do desen-
às instituições modernas prevalecentes no mundo, volvimento social como um conjunto de meca- Direitos sociais e co-responsabilidade
e por nós importados, nos quais se destaca a im- nismos gerador de condições de igualdade de Outro elemento fundamental quando se pensa a
pessoalidade. Isso torna difícil a sua percepção oportunidades para a competição dos indivíduos questão social da pobreza e da exclusão social da
na vida cotidiana e traz sérios obstáculos – desde do mercado. A partir das duas últimas décadas, perspectiva do desenvolvimento social é a sua
os orçamentários e estritamente técnicos aos pro- prevalece a definição de questão social como pro- dimensão política propriamente dita, exatamente
venientes de nossa tradição política clientelista e blemas advindos das condições de vida da popu- porque esse conceito, por ser amplo o suficiente
patrimonialista – à tarefa de definir e implementar lação, em especial aqueles gerados pelas graves para comportar vários significados, traduzindo
políticas sociais de combate à pobreza e de eman- condições de pobreza e pela falta de acesso a distintas conotações econômicas, jurídicas e
cipação dos segmentos socialmente vulneráveis. um mínimo de proteção social para a satisfação sociais, traz sempre consigo uma associação
Conforme observa Jessé de Souza, “para que das necessidades humanas desses segmentos da natural com o tema da pobreza.
haja eficácia legal da regra de igualdade, é neces- população pobre. Apesar disso, a literatura sobre o tema revela
sário que a percepção da igualdade na dimensão Não se trata, porém, de qualquer pobreza, divergências radicais quando se busca determinar
da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada” mas de uma extrema e massificada (Campos, se as pessoas são pobres por não terem habilida-
(2004, p. 87, grifo nosso). Em geral, isso não 2000). Esse fenômeno não pode ser confundido des suficientes para superarem sua condição, ou
ocorre nos países periféricos. Embora o autor com a desigualdade social. Nos países latino- porque, mesmo as possuindo, enfrentam uma
esteja tratando das políticas públicas e das formas americanos, não se vislumbram taxas de cresci- organização social cuja estrutura não apresenta
de regulação social por meio de redes de proteção mento sustentado que permitam por si sós, pela canais que possibilitem sua mobilidade social
social, essa perspectiva ajuda a entender como, no via do emprego, combater a pobreza extrema. ascendente. Se, no primeiro caso, o foco privile-
caso brasileiro, a definição que vem norteando as Embora importante, não é suficiente “atenuar ao giado de ação passaria a ser o sistema educacio-
políticas sociais foi e continua sendo regida pela máximo a transmissão intergeracional da pobre- nal, no segundo, está em jogo um redesenho da
ótica da satisfação de níveis mínimos de necessi- za”, como propalam especialistas em políticas estrutura produtiva e da execução de políticas
dades sociais. Assim, em vez de promover maiores sociais filiados à corrente ortodoxa de desen- públicas promotoras de uma mobilidade social
graus de igualdade social, gera uma enorme dife- volvimento social. ascendente, vale dizer, do que podem ser deno-
rença quanto ao acesso aos serviços sociais bási- No centro da questão, uma vez mais, está a minadas políticas de bem-estar.
cos de qualidade a favor da parcela rica da popu- forma de definir um conjunto de programas de Dessa forma, a satisfação das necessidades
lação, em detrimento da pobre (Souza, 2004). política social de Estado inspirados numa visão sociais da população (em particular, a das pessoas
Daí a importância de todo e qualquer projeto de longo prazo, mas que também apresente re- que estão em um contexto de pobreza massifi-
de desenvolvimento sustentado com inclusão sultados a curto e médio prazos. É nesse sentido cada) e a promoção do desenvolvimento social
social incorporar, como núcleo central, a dimensão que as políticas sociais não se constituem tão- passam a estar estreitamente associadas à capa-
da esfera pública. Numa sociedade na qual a tra- somente em um conjunto de políticas específi- cidade de o sistema econômico gerar riqueza. Essa
dição histórica é caracterizada por políticas clien- cas, no qual cada uma responde isoladamente a capacidade pode ser de dois tipos: a que enfatiza
telistas e assistencialistas, a consolidação de es- uma necessidade social identificada (no geral, por a capacidade individual, o assim denominado
paços que fortaleçam a presença dos segmentos especialistas em cada uma das áreas setoriais), capital humano (sendo a educação um de seus

Observatório da Cidadania 2005 / 51


principais pilares); e a que destaca a capacidade indivíduos para aproveitarem possíveis acessos fortalece o acesso da população pobre à saúde e
tecnológica do próprio sistema econômico, envol- a fontes de renda autônomas e sustentadas, contri- à educação (pelo menos nos níveis básicos), tal
vendo mudanças significativas, no que diz respeito buindo assim para a construção de sua autonomia processo não está livre de contradições, no que
aos meios de produção e ao capital. em relação ao Estado e aos benefícios sociais vin- diz respeito à valorização da dimensão política da
Nesse ponto, a questão social da pobreza e culados aos programas de transferência de renda. vida cotidiana (ver boxe abaixo).
da exclusão social assume um papel importante, Quanto às condicionalidades, em geral, elas
uma vez que as pessoas pobres não têm habili- se concentram em associar o acesso aos benefí- Da igualdade à emancipação
dades suficientes para o exercício da cidadania, cios e serviços ao cumprimento de determinados As políticas sociais têm que considerar uma rea-
para se comportarem como agentes econômicos compromissos, tais como: a freqüência escolar e lidade na qual não se trata simplesmente da ques-
eficazes no mercado, e tampouco detêm conhe- aos serviços de saúde para crianças e gestantes tão da pobreza, e sim de uma pobreza extrema
cimentos para alcançar um entorno vital com ele- da família, e a retirada de filhos e filhas de ativi- massificada. Entre as políticas sociais desenvol-
vada qualidade de vida. É exatamente por isso que dades de trabalho. No caso brasileiro, existe ainda vidas nos últimos dois anos, os programas de
a tradução imediata da pobreza passa a ser a exclu- a vantagem de essa vinculação estar associada transferência de renda assumem um lugar de
são social, traduzida também como exclusão da ao acesso a direitos universais inscritos na Cons- especial importância para o seu enfrentamento.
prática dos direitos de cidadania, da participação tituição de 1988. No entanto, se de um lado isso No entanto, deve-se indagar se eles vêm partindo
nos processos geradores e redistributivos de bens
econômicos, além das distintas instâncias e dos
espaços deliberativos das sociedades, que deman-
dam determinados níveis de educação e de infor-
mação para se efetivar.
A perspectiva de beneficiários e beneficiárias
Daí a importância da idéia de políticas sociais
associadas à construção da cidadania como um Não resta dúvida de que a expectativa dos(as) Verifica-se o perigo da extrapolação da pre-
processo de habilitação substantiva ao desenvol- beneficiários(as), ao contrário do que se afirma sença do Estado no espaço privado, normati-
vimento das capacidades dos indivíduos, para se correntemente, é o acesso a uma atividade que zando-o a partir de uma racionalidade pública em
organizarem tanto na defesa e na representação lhes garanta uma fonte de renda regular e sus- detrimento das estratégias de sobrevivência es-
de seus interesses de forma efetiva e eficiente tentável, sempre referida como “trabalho”. De fato, colhidas pelos indivíduos e, também, de sua rede
como na produção de bens econômicos, sendo pesquisa realizada com beneficiários(as) do Pro- de solidariedades. Exemplo disso foi uma denún-
capazes de aproveitar possíveis acessos a formas grama Renda Mínima do município de São Paulo cia anônima (grifo nosso), a partir da qual uma
sustentadas de geração de renda e, ainda, de parti- (Cohn et al., 2003) revela que, para essas pessoas, mãe de família recebeu a visita de uma assistente
cipar das esferas e das redes societárias. Só assim, o benefício é bem-vindo, porém o ideal seria uma social, funcionária municipal, que a teria obrigado
em sociedades com alto grau de desigualdade, política que criasse emprego, porque: “O traba- a deixar de trabalhar nos fins de semana para
como a brasileira, os direitos reconhecidos legal lho dignifica o homem, e não é porque ele não não deixar os filhos sozinhos. A mãe teve de “es-
e juridicamente podem transformar-se em direitos trabalha que não merece respeito, mas sem trabalho colher entre o trabalho e os filhos”. Diante da
efetivos, compondo, de forma articulada, as polí- ele fica fora da sociedade”. Mas só o trabalho ameaça da perda da guarda destes, desistiu do
ticas sociais, desde que pautadas pela promoção não resolve, porque não se trata de qualquer um, trabalho dos fins de semana, perdendo, assim, a
pois: “É muito diferente uma pessoa que tem car- única fonte de renda relativamente estável que a
do bem-estar social, de forma igualitária, para
teira assinada e outra que não tem; se você vai família possuía. “O jeito é eu ficar dentro de casa,
todos os membros da sociedade.
fazer uma compra, chega no lugar e não tem car- enquanto [fulano, o marido] procura serviço para
Nessa perspectiva, programas e políticas
teira assinada, tudo é mais difícil”. fichar. Porque, por enquanto, ele não é fichado,
sociais com a co-responsabilização de benefi-
Ao mesmo tempo, seja no caso do recebi- trabalha só fazendo bico”.
ciários e beneficiárias (as assim denominadas
mento de benefício em renda ou do acesso a ser- Outra face do ponto de vista de beneficiários
condicionalidades) podem vir a constituir um pilar
viços essenciais, isso é um direito quando vale e beneficiárias do programa pode ser observada,
fundamental na construção de um sistema de pro-
para todas as pessoas “necessitadas”: “Se a Pre- no entanto, quando uma mãe de família de um
teção social voltado ao bem-estar da sociedade,
feitura fez esse benefício para toda a comunidade, município pernambucano afirma que sua vida
mas desde que articulem de forma criativa e virtuo-
eu acho que é um direito do cidadão, desde que mudou muito com o Programa Bolsa Família, por-
sa Estado, mercado e família (ver boxe na página ele precise. Todos precisam, mas aqueles que têm que, além de ter o cartão que lhe dá acesso ao
54). Para tanto, uma primeira condição funda- a prova de que precisam [...]”. Também chama banco, ele lhe traz a dignidade de poder comprar a
mental é que não fiquem restritos à necessidade, atenção a importância da escola e das lides do- comida para sua família, e com isso ela não precisa
tão bem exercitada pela econometria. Se assim for, mésticas na ocupação dos indivíduos e na pers- “agradecer e dizer ‘muito obrigada’ por um prato
eles tendem a reforçar tão-somente a dimensão pectiva de ser “socialmente útil”. A escola é vista de comida de arroz com palha e feijão bichado”.
do direito individual, em detrimento do direito como espaço que protege as crianças dos perigos Aqui se torna oportuna a análise de Nogueira
social. Isso explica o imperativo de que sejam da rua, e a escolaridade, como algo necessário (2001) quando advoga a tese da necessidade do
regidos por outros parâmetros, referentes à jus- para que “os filhos não tenham o mesmo desti- resgate da dimensão política propriamente dita
tiça distributiva, transformando-se num sistema no dos pais”. na implementação das políticas públicas, uma vez
de proteção social ativo que atua sobre as relações Por fim, merecem destaque as condiciona- que a dimensão burocrático-administrativa vem
socioeconômicas quando um dos pilares centrais lidades que, se trazem a dimensão da co-respon- avançando em detrimento daquela, o que faz com
dos Estados de Bem-Estar Social, a relação de sabilidade, também carregam um lado sombrio, que prevaleçam análises e padrões de definição
pleno emprego, não está mais presente no cenário que pode reforçar nossa cultura social autoritária de prioridades pautados por questões opera-
das economias capitalistas. e punitiva. Tomando como exemplo o Programa cionais, restringindo-se aos estreitos limites da
Apenas dessa forma, esse conjunto de polí- Bolsa Família, são freqüentes os casos em que a equação custo/efetividade, no lugar de negocia-
ticas poderá ter êxito quanto à sua capacidade de mãe, sabendo da obrigatoriedade da freqüência ções entre interesses divergentes ou diferencia-
atuar sobre a superação da pobreza, uma vez que escolar, conta: “Segunda-feira mesmo, ele disse dos, traduzindo-se, assim, no que o autor designa
terá de dar ênfase às denominadas “portas de que não ia para a escola. Queria soltar pipa. Foi como sendo a predominância da “política dos
saída”, isto é, às políticas complementares volta- preciso apanhar para ir à escola...”. técnicos” em vez da “política dos cidadãos”. ■
das ao aumento da habilidade e da capacidade dos

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do princípio de não se constituírem num fim em geradas pelo mercado. O desafio atual consiste interferir no modo como cidadãos e cidadãs se
si, em que pese seu traço de alívio imediato da exatamente em como articulá-las, imprimindo às relacionam com o Estado, pois acaba misturando a
pobreza, mas num instrumento particularmente políticas econômicas um novo sentido, devendo esfera pública e a privada. De fato, não é despre-
valioso, por suas implicações econômicas e elas também ser ditadas pela ótica dos parâme- zível a capilaridade social de programas como o PSF
sociais, para combater, de forma conseqüente, a tros dos direitos sociais. e o PBF, que trazem consigo um enorme potencial
superação da pobreza em nossa sociedade. de levar o poder público a controlar e normatizar
A promoção do desenvolvimento social exige Contradições e ambigüidades a vida privada dos indivíduos. Fica, assim, com-
políticas intersetoriais e capacidade do Estado de O conjunto de iniciativas do governo Lula no com- prometida a qualidade da esfera pública como um
remodelar seus sistemas de proteção social e sua bate à pobreza e à desigualdade social não signi- espaço de construção de identidades autônomas
prática histórica de ação na área social, que sem- fica necessariamente que se tenha avançado de com relação ao Estado.
pre se caracterizou por dois traços fundamentais: modo substancial no que se diz respeito a forjar O ponto aqui consiste num desafio bem pre-
do ponto de vista da gestão, por ações segmen- um perfil do modelo de proteção social brasileiro. ciso, que se traduz na questão fundamental: como
tadas e setorializadas, o que torna as políticas e A construção de um novo espectro de ação pública transformar essas políticas e programas sociais em
os programas sociais competitivos entre si e sem- do Estado na área social não está livre de contra- instrumentos de construção de novas identidades
pre resultando na superposição dos públicos-alvo; dições e ambigüidades, sobretudo quando se sociais que não comprometam, nesse processo,
e, do ponto de vista político, pelo seu traço clien- observa nossa tradição nessa área, marcada não a autonomia dos sujeitos sociais? Se desconsi-
telista, mesmo naqueles casos em que a descen- só por uma setorialidade competitiva como por derarmos a ponderação de Amartya Sen, no sen-
tralização das políticas sociais avançou, como um forte traço clientelista, patrimonialista e cor- tido de que a falta de liberdade econômica, na
ocorre no setor da saúde, que reproduzem a subor- porativista, que a tornou incapaz de enfrentar a forma da extrema pobreza, torna a pessoa presa
dinação dos segmentos pobres da população à dinâmica reprodutiva da pobreza em nosso país, fácil de outros tipos de violação da sua liberdade,
vontade das elites e sua dependência em relação num contexto de agudas desigualdades sociais. o problema está em como torná-la autônoma na
ao Estado, na condição de clientela. Entre essas contradições e ambigüidades, a construção de sua identidade ante a capilaridade
Sendo políticas que devam contemplar tanto primeira, e mais óbvia, reside no fato de o ambiente da presença normatizadora do Estado que essas
a dimensão do alívio imediato da pobreza como econômico não se constituir num bom parceiro políticas e programas trazem consigo.
a sua superação, os programas de transferência nesse processo, pois, mesmo que se registrem Como são programas voltados aos segmentos
de renda com condicionalidades não devem ser curvas de crescimento da economia, elas não se mais pobres da população, na sua maioria abso-
concebidos como um fim em si mesmos, mas como traduzem na atualidade em geração de emprego e luta à margem do mercado de trabalho formal ou
instrumentos ou estratégias de um conjunto de renda nos moldes clássicos da sociedade salarial, informal, essas políticas constituem-se, inicial-
políticas que permitam o enfrentamento conse- como antigamente era o caso de o emprego se mente, em paralelo à sociedade do mercado de
qüente da questão social da pobreza. E de outro configurar como um passaporte para o direito à trabalho. Torna-se necessário, portanto, buscar
lado, não devem ter caráter impositivo e punitivo, saúde e à previdência social. Além disso, poucos mecanismos de inserção desses segmentos so-
mas permitir o acesso a bens e serviços essenciais, entre esses programas estão relativamente ilesos ciais a formas de acesso a fontes de renda, reme-
de caráter universal, que possibilite a transforma- à política de superávit fiscal, como o Bolsa Família tendo ao desafio de promover políticas econômi-
ção dessas pessoas de meros beneficiários(as) (PBF), que conta com um “contingenciamento cas ditadas pelos parâmetros dos direitos a um
em cidadãos e cidadãs. positivo” a seu favor, em virtude do contrato de padrão digno de vida.
Não se trata de conceber as políticas de trans- empréstimo com o Banco Mundial. Daí porque não é suficiente fazer bons pro-
ferência de renda como panacéia para a questão A segunda contradição diz respeito à neces- gramas sociais de transferência de renda, saúde,
social da pobreza, da desigualdade e da exclusão sidade de se reverter a lógica de articulação das educação, habitação, saneamento, emprego, entre
sociais, muito menos de substituir o padrão clás- diferentes políticas de seguridade social, com- outros, do ponto de vista de sua gestão, embora
sico de inserção dos indivíduos na sociedade via posta por uma vertente voltada ao mercado de isso seja de fundamental importância, se o obje-
trabalho, mas, sim, assumi-las pelo que são: polí- trabalho (as pessoas incluídas) e outra à popula- tivo é o combate à pobreza da perspectiva de sua
ticas e programas que, apesar de terem um caráter ção excluída, funcionando como um espelho do superação. Essa boa gestão – responsabilidade
redistributivo, trazem consigo a possibilidade de mercado de trabalho e, assim, reforçando os direi- pública inerente ao Estado – deve estar necessa-
se transformarem em medidas estruturantes de tos individuais em detrimento dos direitos sociais. riamente acompanhada da construção de uma
um novo padrão de relações socioeconômicas. O desafio aqui é como enfrentar esse traço, bus- esfera pública consolidada e favorecer a criação
Nesse ponto específico, ganha especial relevo a cando uma nova articulação entre o sistema de de espaços de construção de diferentes identida-
sua articulação com um conjunto de programas e previdência social e de proteção social – calcado des e redes de solidariedades a partir da possi-
políticas das outras esferas do Estado, que respon- nos direitos sociais e institucionalizado pela Cons- bilidade que esses programas trazem consigo no
dam ao desafio maior de como incorporar a igual- tituição de 1988 – e a construção de novos direi- estabelecimento de novos contratos de civilidade
dade para além da justiça distributiva impressa tos sociais a partir de políticas como o PBF, que (Zaluar, 1997). Isso requer que se esteja atento
nas políticas sociais até então conformadas pela não encontram respaldo imediato no contrato para a configuração da cidadania para além do
situação de pleno emprego. social vigente para se configurarem plenamente seu sentido universal e abstrato, buscando des-
Aqui se frisa que o parâmetro a reger as polí- como políticas de direitos sociais, tema que vai velar suas possibilidades e ambigüidades inscri-
ticas e os programas de transferência de renda muito além do seu caráter contributivo ou não. tas no próprio tecido social.
não deve ser a lógica da igualdade, por não con- Uma questão importante suscitada pela ênfase
templar a justiça distributiva e reduzi-la à neces- na promoção da construção da autonomia dos Redes de proteção proativas
sidade (ou ao grau de carência dos indivíduos), mas sujeitos sociais, por meio de políticas sociais, é a Associar políticas sociais com desenvolvimento
a lógica da emancipação. Como conseqüência, tendência verificada hoje na América Latina, e no social, ou pensar a questão social da pobreza e da
perde sentido a freqüente dicotomia entre polí- Brasil em particular, de se implantar programas desigualdade articulada a um projeto de desen-
ticas econômicas e políticas sociais, já que estas sociais que busquem sua clientela (como no caso volvimento social, demanda necessariamente que
sempre apresentam um forte componente eco- do Programa Saúde da Família/PSF) e associem o se pense o desenvolvimento como a ampliação
nômico e aquelas um forte componente social. acesso ao benefício ao cumprimento de determi- da capacidade dos indivíduos, tal como afirma Sen
Perde também sentido entender as políticas so- nadas condicionalidades voltadas à capacitação (2004), para realizarem atividades livremente elei-
ciais como compensatórias das desigualdades social de beneficiários e beneficiárias. Isso pode tas e valorizadas que lhes permitam exercer suas

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funcionalidades, promovendo-se, assim, um desen- questão social hoje no país, a partir de suas raízes, Se as políticas sociais e de transferência de
volvimento social que os torne cidadãos e cidadãs e não exclusivamente de sua manifestação final. renda não serão capazes, a curto prazo, de enfren-
independentes do Estado, e não clientes deste. Esse projeto, a nosso ver, está ainda no âm- tar a questão da desigualdade e da injustiça social,
Para isso, só buscando uma nova equação entre bito das intenções inspiradoras de várias das polí- certamente, por serem um instrumento fundamen-
as políticas dos políticos, as políticas de técnicos ticas e dos programas sociais que vêm sendo imple- tal nesse processo, não poderão perder de vista
e técnicas e as políticas dos cidadãos e cidadãs. mentados, mas certamente ainda não se logrou a essa dimensão. Caso contrário, ficarão sempre de-
Ou, como aponta uma vez mais Sen, tomar como formulação de uma proposta articulada para que terminadas pelas políticas macroeconômicas, num
eixo da concepção de desenvolvimento social a as iniciativas estatais na área social não continuem contexto em que os sistemas de proteção social
interdependência entre qualidade de vida e pro- fortemente demarcadas pelos limites estreitos da como mecanismos compensatórios das desigual-
dutividade econômica para que se supere a dico- racionalização dos gastos estatais. dades geradas pelo mercado numa sociedade sa-
tomia entre bem-estar e acumulação acelerada. Para tanto, é preciso permanentemente ques- larial já estão superados pela própria história.
Isso não nos exime de apontar os desafios e tionar a racionalização das ações do Estado não No entanto, em grande medida, é dessa forma
a complexidade da implementação de programas como um fim em si, mas como um meio para se que o Estado brasileiro continua atuando na área
e políticas sociais com capilaridade social e vincu- atingir um objetivo, o que extrapola em muito os social, haja vista a extrema vulnerabilidade do
lados a condicionalidades. Dentre eles, destacam- limites da mera busca da racionalidade custo/efe- orçamento social do governo à lógica dos ajustes
se, sobretudo no caso do Brasil, a questão fede- tividade impressa na teoria do capital humano. macroeconômicos. Com isso, a possibilidade de o
rativa, no que diz respeito às políticas comple- Trata-se de introduzir na agenda pública a dimen- país enfrentar de forma conseqüente a pobreza e as
mentares, e principalmente as questões relativas são do bem-estar e da justiça social da ótica do desigualdades sociais vê-se postergada, deixando
à dimensão da esfera pública. É um desafio for- acesso a condições concretas que garantam uma o gosto amargo da perda de uma oportunidade
mular um projeto de desenvolvimento social que efetiva qualidade de vida dos indivíduos, entre elas histórica única para a construção de uma socie-
se traduza num sistema e numa rede de proteção sua autonomia como cidadãos e cidadãs porta- dade mais justa e democrática. É esse o salto de
social proativa e seja capaz de enfrentar o con- dores de direitos e, por conseqüência, sua auto- qualidade, ou o “pulo-do-gato”, não vislumbrado
junto dos problemas sociais que conformam a nomia perante o Estado. até o momento, que tanto nos frustra.

Os programas sociais no governo Lula

Bolsa Família – Criado em outubro de 2003, o Para a família ingressar no programa, é neces- Ao contrário da forma como vem sendo im-
Programa Bolsa Família (PBF) unificou os progra- sário que esteja cadastrada no CadÚnico – sistema plementado o processo de descentralização na
mas não-constitucionais de transferência de de cadastramento único para programas sociais do área social, a proposta do PBF apresenta uma
renda até então vigentes: Bolsa Escola, Bolsa governo –, criado em 2001. Mas o fato de a famí- característica que favorece a possibilidade de se
Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação. lia estar cadastrada não significa participar neces- conformar como um programa matricial para a
Atualmente é entendido pelo Executivo federal sariamente do programa, e cabe ao município a res- articulação com os programas e ações sociais
como um dos programas que fazem parte do Fome ponsabilidade pelo cadastramento das famílias, das demais esferas de governo: a denominada
Zero. Consiste na transferência de renda com arcando com esse custo. O excedente de indiví- descentralização pactuada . Isso significa que o
condicionalidades (freqüência escolar e cartão de duos cadastrados acaba representando um ônus governo federal busca realizar pactos com esta-
vacinação completo das crianças, nas idades político e financeiro para os governos locais, agra- dos e municípios na implementação do programa
respectivas, e acompanhamento pré-natal das vado pelo fato de até muito recentemente os mu- de tal forma que estes, uma vez tendo programas
gestantes) e na transferência de um valor fixo de nicípios não terem acesso ao programa. próprios de transferência de renda, os articu-
R$ 50 e um variável de R$ 15 por criança de até A proposta atual é que o CadÚnico se torne lem com o programa federal e promovam pro-
15 anos, num total de até três crianças. As famílias um instrumento efetivo para a formulação e im- gramas complementares.
com renda per capita de até R$ 50 recebem o plementação das políticas públicas, passível de ser Procura-se, com isso, uma articulação na
valor fixo e o valor variável correspondente; as que utilizado pelas distintas esferas de governo. Além área social que seja horizontal entre as distintas
possuem renda per capita entre esse valor e R$ disso, nesse banco de dados, a cada membro da esferas de governo, sempre com prioridade para
100 recebem somente o valor variável, segundo família é atribuído um número de identificação o público-alvo dos programas de transferência
as mesmas regras. social (NIS), que permitirá maior discernimento como foco de articulação das distintas políticas
O PBF resgata uma das características dos por parte do Estado sobre o público-alvo de suas em desenvolvimento. Tal proposta implica que os
programas anteriores similares: o benefício variá- múltiplas ações e programas, podendo, assim, governos das distintas esferas da federação pro-
vel por número de crianças da família, no total de identificar duplicidades e buscar convergências movam simultaneamente um olhar para dentro de
até três. No entanto, inova quando elege a família entre as políticas implementadas. Mais importante: si mesmos e para fora, isto é, para os demais
como beneficiária, e não cada um de seus mem- procura-se, com isso, infundir-lhes um caráter entes federados, tidos como parceiros de fato num
bros isoladamente, como nos casos anteriores do republicano, isto é, o predomínio de critérios uni- processo maior de remodelação do padrão clás-
Bolsa Escola e do Bolsa Alimentação. Inova também versais para a concessão do benefício, o que se sico de ação do Estado na área social.
ao não estipular quotas de número de bolsas para contrapõe ao traço clientelista que vêm marcando Na sua formulação, o PBF tinha como pres-
cada município, já que é meta do governo atingir as políticas ao longo da nossa história, em parti- suposto original que não se trataria de um pro-
até dezembro de 2006 todo o universo dos 11,2 cular quando voltadas aos segmentos mais po- grama de transferência de renda com condicio-
milhões de famílias pobres, segundo a Pesquisa bres da população. nalidades como um fim em si, mas, para ter êxito,
Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad) precisaria obedecer a duas premissas básicas:
de 2001, revisada pelo Instituto de Pesquisa Eco- 3 Em abril de 2005, o PBF atingiu aproximadamente a primeira, ao responder ao tempo do governo,
nômica Aplicada (Ipea).3 66% dessa meta. criando raízes que o vinculem às políticas de

Observatório da Cidadania 2005 / 54


inserção social, seja no que diz respeito a polí- (Peti) atende quase 1 milhão de crianças e ado- aquisição de alimentos pelo Programa Fome Zero
ticas de geração de ocupação e renda, seja no lescentes e está presente em mais da metade dos etc.), ao saneamento básico, aos programas
tocante a políticas setoriais na área social, levan- municípios brasileiros. habitacionais, que, ao transferirem recursos para
do em conta a integração territorial da população; Outros investimentos governamentais – Se esses fins, acabam não só dinamizando as eco-
e a segunda, que se tornasse parceiro num pro- continuarmos a trabalhar em termos do que deno- nomias locais, mas também gerando empregos
cesso mais amplo de transformar as políticas mino de “gincana dos números”, isto é, ver qual ou ocupações. Ao lado desses, existem progra-
públicas virtuosas entre si, ao contrário do ve- governo investiu mais na área social, não resta mas que dizem respeito aos serviços essenciais à
lho padrão competitivo, em relação aos respec- dúvida de que, nos últimos dois anos, o Brasil satisfação das necessidades básicas da popula-
tivos públicos-alvo ou às fontes orçamentárias. sofreu uma injeção significativa de recursos na ção, como saúde, educação e assistência social.
Tratava-se, assim, de traduzir as políticas públi- área social, boa parte deles repassados diretamente Nesses casos, verifica-se uma tendência a se ter
cas em mecanismos transformadores e promo- à sociedade, por meio de programas de transfe- um pouco “mais do mesmo”, isto é, um aumento
tores do desenvolvimento social no Brasil a partir rência de renda. A novidade desses programas ligeiro dos recursos alocados em tais setores, tri-
da heterogeneidade dos seus problemas e das reside exatamente nisto: as transferências de renda lhando as mesmas prioridades do período anterior.
suas potencialidades. realizadas por tais programas não encontram in- Nada contra, não fosse a possibilidade de se ino-
Saúde da Família – Já por demais estudados termediação dos governos estaduais e municipais, var nessas áreas, que já contam com uma larga
e divulgados, desde o início da década de 1990, como é o caso das transferências de recursos em experiência dos governos municipais.
quando começaram a ser implantados, os progra- saúde e educação, por exemplo. Aliás, foi o que o governo federal fez nos ca-
mas Saúde da Família (PSF) e Agentes Comunitá- Em conseqüência, quando se tem orçado só sos dos programas de transferência de renda:
rios de Saúde têm hoje aproximadamente 21.475 no Ministério do Desenvolvimento Social R$ 16,9 aproveitou-se das experiências dos programas
equipes e estão presentes em 4.800 municípios. bilhões com esses programas, isso significa que locais para formular os nacionais. O mesmo, no
Para seu controle e funcionamento, contam com tal volume de recursos passa a circular nas eco- entanto, não se verifica nas áreas de saúde e edu-
um sistema de dados do Datasus, especialmente o nomias locais, representando, em vários municí- cação. No caso da saúde, teve continuidade a
Sistema de Informações da Atenção Básica (Siab), pios, em média 50% dos recursos repassados por ênfase na atenção básica, com a criação do pro-
ainda não articulado à base de dados do CadÚnico. meio dos Fundos de Participação Municipal (FPM). grama Farmácia Popular, e na assistência odon-
O PSF é, juntamente com o controle dos dados Para as regiões Norte e Nordeste, isso significa tológica, com o programa Brasil Sorridente, atual-
sobre educação, aquele que mais perto estaria dos 18,4% e 30,5% do valor equivalente ao FPM. mente contando com aproximadamente 2.800
programas de transferência de renda, dadas as O potencial dinamizador das atividades econômi- novas equipes de saúde bucal. Na área da educa-
condicionalidades destes. São os programas com cas locais e regionais com esses recursos adicio- ção, registra-se a presença de programas de alfa-
maior capilaridade social, no que diz respeito a nais não é desprezível, mas necessitaria de uma betização de pessoas adultas, de educação de jo-
adentrar na vida privada dos indivíduos. política articulada de desenvolvimento sustentá- vens, do Fundo de Desenvolvimento da Educação
Ao PSF juntam-se outros programas de vel que possibilitasse novas formas de inserção Básica (Fundeb) – em substituição do Fundef,
transferência de renda, entre eles o Benefício de social das famílias contempladas para superarem restrito à educação fundamental –, voltado tam-
Prestação Continuada (BPC) – não como um pro- sua situação de pobreza. bém ao ensino médio e à permanência dos jovens
grama de governo, mas como direito assegurado Tampouco é desprezível o volume de re- na escola, além do Programa Universidade para
pela Constituição brasileira, beneficiando 5,8 mi- cursos destinados à agricultura familiar (R$ 5,6 Todos (ProUni), destinando bolsas ao ensino
lhões de pessoas em abril de 2005. Por outro lado, bilhões em 2004, associados a programas de superior em instituições privadas de ensino, que
o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil garantia de safra, regularização fundiária, de tanta polêmica vem causando. ■

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Observatório da Cidadania 2005 / 55


A luta continua: o combate ao racismo no Brasil pós-Durban

A criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial significou um reconhecimento das deman-
das apresentadas pela população negra, inscrevendo o combate ao racismo na agenda governamental. No entanto, o
conjunto de ações desenvolvidas pelos governos FHC e Lula mostra que pouco foi feito para reverter a brutal distância
entre pessoas negras e brancas no Brasil. Quase cinco anos após a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, realizada
em Durban, na África do Sul, em 2001, o país ainda carece de políticas que fomentem a justiça social, estabelecendo a
dignidade da população negra.

Jurema Werneck* para combater o racismo e a desigualdade racial. Ao contrário, a denúncia do racismo e suas
Dez anos depois, novamente nos preparamos conseqüências – bem como a oferta de propos-
E para que pudesse se concretizar o ideal de para confrontar o Estado brasileiro, exigir res- tas das mais variadas para seu enfrentamento e
democratização do Brasil implicaria que os postas e compromissos. a promoção da igualdade racial – foram combus-
que lutam pela democracia e pela liberdade Escrito às vésperas da realização da Confe- tível na mobilização de uma das principais arti-
assumissem também a luta em favor da rência Nacional de Promoção da Igualdade Racial culações políticas ao longo do século XX. Essa
igualdade racial.
(Conapir), este texto é uma tentativa de analisar articulação política, identificada genericamente
Fernando Henrique Cardoso, discurso de os resultados do processo de Durban, fazendo como movimento negro, representa a reunião de
recepção da Marcha Zumbi dos Palmares, 20
referências aos pressupostos que nortearam a par- diferentes movimentos sociais conduzidos por
de novembro de 1995.
ticipação das organizações negras, bem como as mulheres e homens negros, com diferentes pro-
A superação do racismo requer políticas expectativas envolvidas no processo. A conferên- postas e formas de atuação ao longo do tempo,
públicas e ações afirmativas concretas. cia foi convocada pelo governo federal como parte mas cujo território comum advoga o anti-racismo
Luiz Inácio Lula da Silva, instalação da de sua agenda de consultas sociais, mas tem sido como ação estatal, capaz de alterar estruturas
Secretaria Especial de Políticas de Promoção ignorada por grande parte da sociedade. políticas e produtivas, e também de envolver
da Igualdade Racial, 21 de março de 2003. Aproximando-se da marca de dois terços do toda a sociedade na proposição de novas formas
Qual o impacto da 3ª Conferência Mundial contra mandato governamental, cabe indagar até onde de inserção da população negra na sociedade
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e o processo de consultas nacionais, promovido brasileira, com base em princípios de eqüidade,
as Intolerâncias Correlatas (CMR) cinco anos nessa gestão, é capaz de conduzir as demandas justiça e dignidade.
depois? De que modo seus processos e acordos da população. Temos elementos suficientes para A partir do momento da assunção nos dis-
influenciam o desenvolvimento de ações para a afirmar que o governo Lula desperdiçou as opor- cursos hegemônicos nacionais do conceito de
promoção da igualdade racial no Brasil? É possí- tunidades que a mobilização social lhe ofereceu raça – e, principalmente, do racismo – como uma
vel afirmar que estamos numa nova era da luta para fazer as mudanças necessárias ao país e que das mais pesadas âncoras do modelo de hie-
pela igualdade racial no país? marcaram a sua eleição. rarquização social em fins do século XIX e início
A partir de que marcos é possível avaliar os Vivemos um impasse, mas há setores da so- do século seguinte, o anti-racismo articulado
esforços da sociedade brasileira para romper com ciedade que não desistiram nem se confundiram pela população negra se posiciona como seu prin-
as diferentes formas de privilégio desenvolvidos com o abandono do segmento da esquerda que cipal interpelador.
pela população branca no país ou dirigidos a ela? chegou ao poder. Uma parte substancial da socie- Aquilo que se tem denominado de silêncio
Quais os ganhos? Quais as derrotas? Que cami- dade organizada não sucumbiu à traição de alguns deve ser compreendido como efeito de um conjun-
nhos estão postos no cenário? partidos. Grande parte das organizações negras to de políticas estatais, discursos, práticas coti-
Essa é uma pequena amostra de uma série se coloca nessa posição. dianas de representação e produção de discrimi-
de perguntas que estão sendo feitas e que se nação negativa e violência contra negras e negros.
multiplicarão em virtude da existência de múlti- Contra o silêncio Tais efeitos abarcam, ainda, a ignorância dos
plos atores envolvidos na luta contra o racismo. Depois da queda do mito da democracia racial mecanismos de resistência empreendidos por
No Brasil, tais perguntas, mais do que se referi- no Brasil, graças a uma intensa mobilização e nós, população negra, ao longo dos tempos.
rem à agenda governamental ou à da Organização ação política das organizações anti-racistas no Na outra face, esse silêncio tem significado
das Nações Unidas, buscam fundamentar as es- último século, o momento agora exige a derru- um mecanismo redutor para descrever e princi-
tratégias de preparação da Marcha Zumbi dos bada de outra crença recorrente: a que afirma ser palmente desqualificar a intensa luta política con-
Palmares + 10, reedição da ação empreendida em o silêncio um mecanismo fundamental de manu- traposta pelas organizações negras, contrária às
1995 pelo movimento negro. Naquela marcha, tenção e propagação do racismo. O silêncio se- propostas e práticas de aniquilamento dos movi-
milhares de ativistas foram a Brasília demandar ria, segundo essa visão, uma potente ferramenta mentos anti-racistas e suas resistências, e tam-
do governo federal o desenvolvimento de ações para tornar invisível a violência racial em suas bém à estrutura racista do país. Ou seja, trata-se
diferentes formas, responsável pela baixa per- inicialmente de afirmar a perspectiva ruidosa do
cepção das pessoas brancas quanto à estrutura racismo e suas conseqüências. E fundamental-
de privilégios raciais em que se movimentam na mente de reconhecer o anti-racismo como vetor de
* Médica e coordenadora da ONG Criola. sociedade brasileira. luta política empreendida por parte significativa

Observatório da Cidadania 2005 / 56


da população negra, que se desenvolveu ao longo O ano de 2005 deflagrou também o processo Federal de Minas Gerais, e o Radar social (2005),
de todo um século e que vem se propagando e de avaliação dos resultados da Conferência das do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
renovando nos dias atuais. Américas e da Conferência Mundial contra o Racis- (Ipea). As duas publicações formam uma ex-
Por outro lado, é preciso destacar uma das mo, uma vez que o próximo ano, 2006, marcará tensa reunião de dados que dá visibilidade a
principais estratégias explicitadas nos diferen- o quinto ano da celebração de seus acordos em diferentes aspectos das desigualdades raciais.
tes momentos desta luta: o reconhecimento do Santiago (Chile) e Durban (África do Sul). Entre eles, destacamos:
papel do Estado como principal agente promotor Do ponto de vista da sociedade civil e do
da igualdade racial. Esse reconhecimento é ex- movimento negro, este é um momento interessante Diferenciais de pobreza
presso na demanda continuada da reversão da de análises e avaliações das iniciativas nacionais Tem sido uma constante nas disputas ideológicas
ação dos aparelhos do Estado comprometida e locais, bem como a revisão dos passos já dados. entre o movimento negro e os demais movimentos
com o racismo e de engajamento ativo de modo Ainda assim, cabe assinalar que mobilização dessa sociais – e entre as organizações anti-racistas de
a possibilitar o desenvolvimento de políticas pú- magnitude ainda não está suficientemente presente um lado e o Estado e a academia de outro – a
blicas capazes de instaurar um ciclo virtuoso na agenda do conjunto de movimentos que lutam tentativa de redução das desigualdades raciais à
de justiça e dignidade. por transformação social. categoria (aparentemente mais aceitável para
Não há milagre nem remédio caseiro no hori- muitas pessoas) de desigualdades sociais. Os da-
zonte do combate ao racismo e à desigualdade Indicadores apontam distância dos disponibilizados pelo Pnud contradizem essa
racial. Essa é a compreensão que emerge da luta Uma profusão de dados tem permitido quantifi- manobra (ver gráfico 1).
anti-racista. Ela reivindica um Estado forte e iguali- car a extensão das desigualdades entre pessoas Afirma a equipe de pesquisa do Atlas racial
tário, capaz de romper com as oligarquias brancas negras e brancas, mulheres e homens. Essas in- brasileiro:
que o controlam, com alguma alternância de cor- formações serão repetidas aqui como forma de
Não se verifica nenhum avanço na diminuição
rentes, desde a fundação, e criar novos pactos reiterar as urgências que justificam este texto e dos diferenciais entre negros(as) e
sociais que incluam os demais grupos presentes toda e qualquer forma de atuação efetiva no con- brancos(as) pobres. A proporção de
na sociedade. Ou, para dizê-lo nas palavras da fronto com o racismo. negros(as) abaixo da linha de pobreza no total
extraordinária ativista Lúcia Xavier, um Estado Entre os dados mais recentes, destacamos da população negra no Brasil é de 50%,
capaz de “trair o racismo” em nome da justiça. aqueles contidos em duas coletâneas: o Atlas ra- enquanto a de brancos(as) no conjunto da
população branca é de 25% desde 1995.
cial brasileiro (2004), uma realização do Progra-
2005: avaliação dos resultados ma das Nações Unidas para o Desenvolvimento Quando nos debruçamos sobre a pobreza
Já temos elementos para constatar que a socie- (Pnud), com o Centro de Desenvolvimento e Pla- extrema, também definida como indigência, a si-
dade brasileira tem produzido ao longo de sua nejamento Regional (Cedeplar) da Universidade tuação é similar (ver gráfico 2).
história, em especial nos anos recentes, consen-
sos suficientes capazes de legitimar iniciativas de
ampla magnitude para a reversão dos padrões Gráfico 1 – Proporção da população abaixo da linha de pobreza, por raça, no Brasil
racistas em vigor. Tais consensos têm penetrado
o Estado e produzido ações, em especial a partir
da década de 1980, conforme assinala o pes-
quisador Marcelo Paixão em documento produ-
zido como contribuição ao processo da Conapir
(Paixão et al., 2004).
No entanto, é possível constatar também a
imensa distância que separa esses consensos da
implementação de soluções estatais e sociais que
signifiquem a produção de políticas públicas de
longo prazo, de efetivação de direitos e confronto
do racismo. Essas soluções devem ser capazes de
alterar a vida cotidiana de negras e negros (e de
brancas e brancos), sem negligenciar a mobiliza-
ção social, em especial a do movimento negro. Pnud/Cedeplar. Atlas racial brasileiro, 2004.
Tais elementos precisam impregnar o mo-
mento atual. Sendo 2005 definido como Ano da Gráfico 2 – Proporção da população abaixo da linha de indigência, por raça, no Brasil
Promoção da Igualdade Racial, por iniciativa do
governo federal,1 foi convocada neste ano a Conapir,
que integra o ciclo de consultas sociais empreen-
didas pelo governo Lula desde o início do man-
dato. O processo desse encontro envolveu a reali-
zação de 27 conferências estaduais e uma reunião
nacional com cerca de 1.500 delegados(as) e
convidados(as) na capital federal, realizada de 30
de junho a 3 de julho.

1 Decreto assinado pelo presidente e pelo ministro da


Cultura em 30 de dezembro de 2004. Pnud/Cedeplar. Atlas racial brasileiro, 2004.

Observatório da Cidadania 2005 / 57


A proporção de indigência no total da popu- pessoas brancas com 25 anos ou mais era de 6,76 Desigualdade ao nascer, adoecer e morrer
lação negra, segundo a equipe de pesquisa, é de anos, ao passo que a média desse mesmo indica- Uma série de indicadores de saúde tem sido utili-
25%, enquanto, na população branca, essa pro- dor entre as negras era de 4,66 anos. zada para avaliar as condições de vida da popula-
porção equivale a 10%. A escolaridade média de 6,4 anos de estudo ção e, mais recentemente, a extensão das desi-
Cálculos apresentados pelo Radar social assi- para o conjunto da população brasileira traduz gualdades raciais e da ação do racismo nesse
nalam que o Brasil possuía, em 2003, 53,9 milhões também taxas de freqüência no ensino médio e campo. Esperança de vida ao nascer, taxas de
de habitantes vivendo na pobreza. Ou seja, 31,75% superior ainda muito baixas. Entre jovens de 18 mortalidade infantil, materna e de pessoas adultas,
da população vivia com renda domiciliar de até meio a 24 anos de idade, 46,4% dos(as) brancos(as) entre outros, permitem visualizar condições de
salário mínimo per capita. Segundo os cálculos freqüentam o curso superior, enquanto entre jo- vida que incluem precário acesso a serviços públi-
para indigentes, ou seja, a parcela da população vens negros(as) esse número é somente de cos de saúde (profissionais e instalações) de qua-
com renda domiciliar per capita de até um quarto 14,1%. Nessa faixa etária, 30,9% de estudantes lidade e saneamento básico etc. Esses números
do salário mínimo, tínhamos 21,9 milhões de pes- negros(as) ainda estão freqüentando o ensino permitem, de forma indireta, apontar a crueldade
soas, equivalendo a 12,9% da população total. fundamental, segundo dados da Pnad de 2003. do racismo, na limitação de vidas e produção de
Entre as pessoas situadas abaixo da linha de Ao manter a desigualdade de acesso e per- sofrimento. Vejamos:
pobreza, a maioria é composta de negros e negras manência no sistema educacional entre negros(as) Esperança de vida ao nascer – trata-se de
(quase 36 milhões). Considerando-se que a popu- e brancos(as), o que está posto é a continuidade um indicador que estima quantos anos uma
lação negra equivale a 47,3% da população brasi- da desigualdade racial e da pobreza da população criança nascida em determinada data poderá
leira (80 milhões), é visível a sobre-representação negra no futuro do país. Ou seja, por meio dos viver em média. Esse indicador é sensível às
de pessoas negras entre as pobres. Temos um diferenciais de educação, a desigualdade racial e desigualdades raciais e de gênero, conforme se
contingente expressivo de pessoas negras, vivendo a violação dos direitos de cidadania de negras verifica no gráfico 4.
cotidianamente situações no limite da sobrevivên- negros se perpetuam.
cia material. Por outro lado, a população negra está
sub-representada entre o grupo 1% mais rico da
população, no qual somente 13,2% são negros(as), Gráfico 3 – Média de anos de estudo de pessoas com 25 anos ou mais por raça no Brasil
segundo dados da Pesquina Nacional por Amos-
tra de Domicílios (Pnad) de 2003.
Ao incluirmos aqui os gráficos publicados
no Atlas racial brasileiro, a intenção principal é
deixar bem explícita a extensão da desigualdade
racial no Brasil, expressa de forma gritante no
paralelismo das linhas que indicam a situação de
negros(as) e brancos(as), há décadas. As linhas
paralelas delineiam um retrato do passado e do
presente e informam uma desigualdade inaba-
lável ao longo do tempo, que se pode contar em
anos, como se vê no gráfico, décadas ou séculos.
E apontam, mais ainda, para mecanismos de perpe-
tuação da desigualdade no futuro, na perspectiva
de continuidade inscrita nas paralelas, por defini-
ção incapazes de se encontrarem.
É preciso insistir: as linhas paralelas afirmam
que, até o momento, as estruturas que produzem
a desigualdade projetam uma ordenação futura. Shicasho, S.Tiê (org). Desigualdade racial: indicadores socioeconômicos 2003.
Mesmo com algumas inflexões, as distâncias têm
se mantido. De forma categórica, tal situação exige Gráfico 4 – Brasil: esperança de vida ao nascer, por sexo e cor/raça 1980, 1991, 2000
medidas efetivas capazes de romper essa tendên-
cia de continuidade das injustiças e violências que
atingem mulheres e homens negros.

Desigualdade na educação
Ao acompanhar os dados relativos ao acesso à
educação para negros(as) e brancos(as) ao longo
da última década do século XX, pesquisadores(as)
do Ipea apontaram o paralelismo da desigualdade
entre a população negra e a branca (Shicasho,
2002), apesar de o acesso à educação descrever
trajetória ascendente nos dois grupos raciais,
conforme vê-se no gráfico 3.
Segundo dados do Radar social, a taxa de
analfabetismo no Brasil, para a população com
15 anos ou mais, em 2003, era de 11,6%. Entre
as pessoas negras, no entanto, havia 12,9% anal-
fabetas, ao passo que, entre as brancas, a taxa
era de 7,1%. A média do tempo de estudo das Pnud/Cedeplar. Atlas racial brasileiro, 2004.

Observatório da Cidadania 2005 / 58


Segundo a equipe de pesquisa do Atlas raci- A taxa de mortalidade por Aids é, • se negros(as) e brancos(as) tivessem taxa
al brasileiro: “Se o ritmo de crescimento da espe- atualmente, maior na população negra do idêntica de homicídios, 5.647 pessoas ne-
que na branca. Segundo indicadores
rança de vida dos homens negros permanecer gras não teriam sido assassinadas no Brasil,
levantados por Luís Eduardo Batista e
o mesmo daquele observado entre 1991 e 2000, equipe, com base nos dados do Sistema de em um único ano;
ainda levarão cerca de 20 anos para alcançar a Informações sobre Mortalidade do Banco de • as taxas homicídios de pessoas “pretas” e
taxa das mulheres brancas em 2000, que era Dados do Sistema Único de Saúde (SIM/ “pardas” são estatisticamente diferentes.
de 73,8 anos”. Datasus), a taxa de mortalidade causada por As “pretas” em 2000 tiveram taxa de
Apesar da evolução positiva da esperança de HIV/Aids foi de 10,6 mortes em 100 mil
vitimização por homicídios 24% mais alta do
mulheres brancas, enquanto para as negras
vida ao nascer no Brasil para toda a população, as que as “pardas”, indicando que a cor da pele
este indicador foi de 21,5 mortes por 100 mil.
desigualdades entre populações brancas e negras Entre os homens brancos, a razão de influenciou o risco de ser assassinada e que,
vêm aumentando. A distância entre as mulheres mortalidade por HIV/Aids foi de 22,77 por 100 quanto mais preta, são maiores as chances
brancas e negras cresceu entre 1980 e 2000 de mil, ao passo que para os homens negros de morrer dessa forma.
2,85 para 4,28 anos. Entre os homens, a diferença este indicador foi de 41,75 por 100 mil.
cresceu de 1,73, em 1980, para 4,97 anos, em 2000. (Paixão et al., 2004, p. 64) Desigualdade no mercado de trabalho
Assim, apesar do ganho em esperança de vida Ao lado dos agravos à saúde da população A presença negra no Brasil está vinculada, de
para todos os grupos, a desigualdade aumentou. negra ou à sua falta de acesso ao sistema de saúde, forma intensa, ao mundo do trabalho do período
Taxa de mortalidade infantil – reflete direta- um dos principais fatores das altas taxas de mor- escravista à República. Ele tem sido local privile-
mente o impacto das condições de vida. A morta- talidade de pessoas adultas no país está vinculado giado de produção e afirmação da diferença e da
lidade infantil vem decrescendo no país, porém ao tema da violência e segurança pública. Estudo desigualdade entre brancos(as) e negros(as).
ainda permanece alta, a despeito das iniciativas de Gláucio Soares, pesquisador do Instituto Univer- Isso ocorre não apenas na hierarquização de posi-
de longo prazo em desenvolvimento. sitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), ções, mas também na elaboração de acessos
Um dado importante para a compreensão da Universidade Candido Mendes (Ucam), apon- capazes de garantir a manutenção dessa desigual-
dos diferenciais entre pessoas negras e brancas tou que a taxa de morte por homicídios entre as dade no longo prazo.
produzidos pela presença do racismo na socie- pessoas brancas, em 2000, foi de 20,1 por 100 O gráfico 5, elaborado por Marcelo Paixão,
dade e na condução das políticas públicas foi mil habitantes, enquanto, para as pessoas negras, exemplifica tais desigualdades.
apontado por Estela Cunha, em estudo compara- chegou a 34,6 (Soares e Borges, 2004). Entre os diferenciais apresentados no merca-
tivo desenvolvido em 2001 (Brasil, 2004). Ao ana- Soares observou, ainda, durante o seminário do de trabalho, destaca-se a maior precariedade da
lisar os impactos das políticas universalistas de Violência e Racismo, promovido pela Ucam e inserção de negros(as). Tal situação repercute não
redução da mortalidade infantil no país, a pesqui- ocorrido em setembro de 2002: apenas na vida cotidiana, no que se refere a dife-
sadora apontou que, de 1980 a 2000, a diferença renciais de renda e pobreza, mas também, a longo
• com base nas taxas por 100 mil habitantes,
entre os níveis de mortalidade infantil de pessoas prazo, no acesso diferenciado à previdência social
em 2001, para cada cem pessoas brancas
negras e brancas menores de um ano passou de e, conseqüentemente, no maior grau de pobreza
assassinadas havia 170 negras (soma de
21% para 40%, ou seja, praticamente dobrou a e indigência entre idosas e idosos negros em rela-
“pretas” e “pardas”);
diferença entre os dois grupos. ção a brancos e brancas na mesma faixa etária.
Taxa de mortalidade materna – capta a exis-
tência de outros determinantes para além de fa-
tores biológicos e fisiológicos, capazes de alte- Gráfico 5 – Distribuição percentual da população ocupada de 16 anos ou mais de idade
rar as expectativas sobre gravidez e parto, além
por posição na ocupação, segundo a cor ou a raça, Brasil 2001
de retratar, de modo enfático, a conseqüência
das desigualdades.
Dados coletados por Luís Eduardo Batista e
sua equipe (Brasil, 2004) apontavam que “em
2000, a taxa de mortalidade das mulheres negras
de 10 a 49 anos, por complicações de gravidez,
parto e puerpério, foi 2,9 vezes maior que a apre-
sentada para as mulheres brancas”. Esse resulta-
do complementa as pesquisas empreendidas por
Alaerte Martins (Brasil, 2004) no estado do Paraná,
que já haviam constatado ser o risco relativo de
morte materna 7,4 vezes maior para as negras,
entre 1993 e 1998.
O principal fator por trás dos diferenciais de
mortalidade apresentados refere-se a causas evitá-
veis relacionadas ao acompanhamento pré-natal
e à assistência ao parto de modo adequado, que
demandariam medidas para a superação do racis-
mo embutido nas relações entre profissionais de
saúde e as mulheres negras pacientes, bem como
medidas capazes de melhorar o acesso das mulhe-
res negras a serviços de saúde em seus diferentes
graus de complexidade.
Taxa de mortalidade de adultos(as) – expressa
como as condições de vida influem, de modo con-
tundente, na determinação da forma da morte. Paixão, Marcelo et al., Conferência pela promoção da igualdade racial, 2004, p. 56.

Observatório da Cidadania 2005 / 59


Políticas públicas para reverter o quadro a determinados grupos, o Estado brasileiro é reco- • definição de medidas de eqüidade, visando
Em diferentes momentos da história do Brasil, o nhecido como capaz de atender a necessidades à distribuição não-racial das oportunidades
Estado definiu políticas voltadas à população ditas específicas. Esse reconhecimento abre cami- de trabalho, no campo da macroeconomia,
negra. Na maior parte das vezes, elas se dirigi- nho para a construção de um conceito de univer- combinadas a ações de superação do acesso
ram à contenção e ao controle da população, por salidade e de caráter público das políticas, fun- desigual ao mercado de trabalho;
meio de ações envolvendo fundamentalmente os dado no empreendimento de ações diferenciadas • acesso a infra-estrutura, incluindo habitação,
aparelhos repressores do estado. voltadas para necessidades diversas de grupos saneamento, transporte, direito à terra urbana
Entre as ações voltadas para a população específicos, mas buscando atender ao princípio e rural, entre outros, de modo a possibilitar
negra ou que a envolviam prioritariamente, estão: constitucional da isonomia. patamares aceitáveis para o desenvolvimento
a instituição e a extinção do tráfico transatlântico Cabe ressaltar que a construção do conceito econômico e social das comunidades negras;
de africanos(as); a libertação de grupos espe- de políticas públicas como direito de todas as
• acesso à justiça, considerando o enfrenta-
ciais de escravos(as), como crianças e idosos(as); pessoas, formalizado na Constituição de 1988,
mento do racismo entranhado nos meca-
e o combate acirrado às diferentes formas de orga- em muito se beneficia dos debates e da mobili-
nismos judiciários, traduzido na presença
nização negra durante e depois da escravidão – no zação criada pela luta anti-racista e das propos-
majoritária de negros e negras em prisões,
qual se inclui não apenas as expedições militares tas de promoção de igualdade racial. No entanto,
com penas mais extensas, comparativa-
para destruição de quilombos, como a proibição o pleno significado de universalização que daí
mente à reclusão e à condenação de brancos e
às organizações urbanas e rurais de cunho étnico, emerge não está disponível até o momento à
brancas pelos mesmos crimes. Ao mesmo
cultural ou religioso. população negra.
tempo, negras e negros têm tido bloqueado
A implantação da República explicitou um viés seu acesso às medidas reparatórias das vio-
de controle populacional para esse segmento, mar- Ações afirmativas
lações de seus direitos;
cadamente influenciado por teorias darwinistas e As iniciativas de promoção da igualdade racial via
eugenistas surgidas no século XIX. A presença políticas públicas, a rigor, deveriam debruçar-se • ampliação ou redefinição do conceito de de-
de tais teorias no Brasil buscava dar substância a sobre diferentes aspectos, considerando a multi- mocracia, para além do jogo político que até
um projeto republicano que valorizava a branqui- plicidade de mecanismos racistas presentes nas o momento privilegia brancos e brancas. Isso
tude e a “pureza” racial, manifestando desejos de mais variadas esferas, dentro e fora das políticas implica não apenas a definição de políticas
limitação ou extinção da população negra, para a públicas. Para muitos desses aspectos, dados têm capazes de atuar na reversão das desigual-
produção de um país branco (“belo e puro”, como sido produzidos e apresentados, capazes de fun- dades raciais, mas também a efetiva partici-
afirmou Silvio Romero). damentar estratégias e políticas capazes de rever- pação da população negra como interlocu-
Nesse capítulo, incluem-se iniciativas que vão são da condição de desvantagem com que a popu- tora, formuladora e gestora dessas políticas;
desde a importação e o estímulo ao desenvolvi- lação negra participa da sociedade brasileira e do • aprofundamento do diagnóstico das dispari-
mento econômico e ao enraizamento cultural de acesso aos bens produzidos. dades e da extensão do racismo. Apesar da
pessoas brancas européias (ou quase brancas, Uma perspectiva importante, porém não ex- disponibilidade crescente de dados sobre as
como as japonesas, judias, árabes, entre outras) clusiva, é a que aponta como condição o desen- desigualdades raciais, serão necessárias
às ações de eliminação física de negros(as), por volvimento de ações afirmativas, considerado novas modalidades de investigação que pos-
meio do controle da capacidade de procriação princípio constitucional em 2001 pelo Supremo sibilitem o aprofundamento das análises,
das mulheres, da indisponibilidade ou disponibi- Tribunal Federal. Conforme fartamente divulgado, para além da profusão de dados. O racismo
lidade precária e insuficiente de mecanismos de tem o objetivo de tratar desigualmente os desi- e a extensão de seus impactos individuais e
contenção de epidemias e outros agravos, como guais, como forma de superar desvantagens e coletivos sobre pessoas negras, brancas e
subnutrição, doenças diversas e miséria. Soma- possibilitar a igualdade. demais grupos da sociedade ainda demandam
se a esses danos, o assassinato maciço de ho- Entre as diferentes ações necessárias para estudos capazes de substanciar medidas de
mens negros, para além das altas taxas de mor- confrontar as desigualdades raciais, por meio de reparação e superação;
talidade infantil. políticas públicas, nós, ativistas, apontamos: • monitoramento e análise dos impactos das
É preciso ressaltar, ainda, outro forte viés da • redistribuição e integração dos recursos de políticas públicas no enfrentamento das desi-
política de controle da população negra: o livre financiamento, de infra-estrutura e pessoal gualdades raciais, via produção de indica-
acesso das polícias a suas casas e comunidades, envolvidos na formulação e implementação dores específicos, de modo que os resultados
de modo violento e muitas vezes letal. Além disso, das políticas, de modo a contemplar, priori- sejam compatíveis com os compromissos de
esse contingente é sistematicamente excluído do tária e adequadamente, aquelas capazes de realização de direitos;
acesso às demais políticas e serviços disponibili- reverter as desigualdades; • realização de campanhas de mídia e outras
zados pelo Estado ao restante da população (no- • desenvolvimento de processos educativos de reeducação da sociedade, com o objetivo
tadamente, as pessoas brancas). capazes de levar em conta a necessidade de de confrontar o racismo nas esferas simbóli-
De fato, o que se afirma aqui é a desigualdade superação do racismo no sistema educacio- cas e na produção de um ambiente compro-
racial como fruto de políticas estatais intensivas, nal, em seus mecanismos de desenvolvi- metido com a superação das desigualdades;
que têm atacado mulheres e homens negros ao mento e nas relações sociais como um todo,
longo dos séculos no Brasil, na maior parte dos • incremento da cooperação internacional, re-
até mesmo com a implementação de ações conhecendo-se que o racismo e as iniciativas
casos, com a conivência dos demais segmentos afirmativas voltadas à população negra;
sociais. A apropriação do Estado por grupos espe- de sua superação não se restringem a um
• estabelecimento de condições igualitárias único Estado nacional. O diálogo e a ação
cíficos tem significado a produção de políticas
de acesso à saúde, pelo reforço ao Sistema cooperativa entre Estados e sociedades é
adequadas aos desejos e às necessidades de bran-
Único de Saúde (SUS) e pelo preparo conti- fundamental para a produção de novos pata-
cos e brancas (em que pese a força do sexismo).
nuado deste para atender adequadamente mares de atuação criativa.
Essa apropriação tem sido o motor e a garantia
aos agravos mais comuns entre a população É importante salientar que as políticas devem
dos privilégios desses segmentos, não impor-
negra, além de fomentar, de modo perma- incorporar a perspectiva da transversalidade do
tando os regimes políticos em voga.
nente, mecanismos de enfrentamento do combate ao racismo e o princípio de ação afirmativa
Assim, visto a partir de sua capacidade de
racismo institucional; como parte da gestão. Ou seja, as administrações
produzir condições adequadas de sobrevivência

Observatório da Cidadania 2005 / 60


públicas nos diferentes níveis devem criar meca-
nismos de incorporação de negras e negros em
seus quadros, incluindo os cargos de chefia. Medidas adotadas nos governos FHC
Outra necessidade é a produção de informa-
ções e a divulgação contínua de dados, relatórios
e elementos capazes de explicitar para gestoras e Levantamento empreendido por Marcelo Paixão • elaboração do Manual de doenças mais im-
gestores públicos e a população o compromisso e colaboradoras (2004, p. 93-96) aponta 41 portantes por razões étnicas na população
permanente do Estado com o combate às desi- medidas no âmbito do poder executivo, durante brasileira afrodescendente;
gualdades raciais. o governo FHC, distribuídas por nove ministé-
• inclusão do quesito raça/cor nos formulários
rios – Educação, Relações Exteriores, Cultura,
de Declaração de Nascidos Vivos e de Decla-
O que foi feito nos últimos dez anos Saúde, Justiça, Desenvolvimento Agrário, Plane-
ração de Óbitos;
É preciso reconhecer que datas, eventos e efe- jamento, Orçamento e Gestão, Trabalho e Em-
mérides não são suficientes para a ação contun- prego – e a Secretaria de Comunicação da Presi- • elaboração do Programa de Direitos Humanos,
dente no enfrentamento do racismo. Trata-se, dência da República. com um capítulo dirigido à população negra;
portanto, de reconhecer e destacar o caráter Entre as medidas empreendidas durante o
• criação de núcleo de estudo sobre raça e
sistêmico e continuado da luta contra o racismo. governo FHC, resultantes ou não da elaboração
gênero e seus impactos sobre a reforma
É a partir dessa perspectiva que empreendemos do GTI, cabe destacar as seguintes:
agrária, no âmbito do Ministério do Desen-
a análise dos efeitos da 3ª CMR no Brasil. • criação de Parâmetros Curriculares Nacionais volvimento Agrário;
A convocação da 3ª CMR significou uma para o ensino fundamental, considerando a
oportunidade inédita de mobilização do Estado necessidade de valorização da população negra; • estabelecimento de uma linha de estudos e
brasileiro e da sociedade civil em torno dos temas pesquisas sobre desigualdades raciais, discri-
• criação do Programa Diversidade na Univer-
relacionados ao racismo, permitindo não só uma minação e políticas públicas entre o Pnud e
sidade, para a promoção do acesso ao ensino
o Ministério do Planejamento, Orçamento e
observação de sua incidência no país, mas tam- superior de grupos excluídos, em particular
Gestão, por meio do Ipea;
bém um olhar sobre a diáspora africana, em espe- as populações negras e índias;
cial na América Latina e no Caribe. As análises • concessão de bolsas de estudo a negras e ne- • implementação de ações afirmativas no âm-
compartilhadas por diferentes vertentes do mo- gros para curso preparatório do Instituto Rio bito da publicidade do governo federal e defi-
vimento de mulheres negras e do movimento Branco, destinado à carreira diplomática; nição de orientações básicas antidiscrimina-
negro apontavam para uma oportunidade única tórias na publicidade contratada;
• articulação entre o Ministério da Cultura e o Ins-
de confronto do racismo, por meio da mobili-
tituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá- • implementação do Programa Brasil Gênero
zação maciça em torno do Estado e dos demais ria (Incra) para titulação de terras quilombolas; e Raça – Todos Unidos pela Igualdade de
segmentos da sociedade civil, para a produção Oportunidades, no âmbito do Ministério do
de ações efetivas capazes de alterar a vida da • programas de ações afirmativas nos Ministé-
rios da Cultura, da Justiça e do Desenvolvi- Trabalho e Emprego;
população negra. Na compreensão de muitas
mento Agrário, com reserva de 20% de cargos • criação do Grupo de Trabalho para Eliminação
pessoas, era dar o passo adiante dos resultados
de direção e assessoramento superior (DAS) da Discriminação no Emprego e na Ocupação;
produzidos pela Marcha Zumbi dos Palmares, em
para negros(as) e de contratação de serviços
1995, e demandar do Estado soluções mais efeti- • inclusão do quesito raça/cor nos formulários
de terceiros. No ano 2002, foi criado o Progra-
vas de combate ao racismo. ma Nacional de Ações Afirmativas, que abrange de informação sobre emprego e desemprego
Desde então, organizações de mulheres e toda a administração pública federal; (Relação Anual de Informações Sociais – Rais;
homens negros passaram a delinear uma agenda Cadastro de Empregados e Desempregados;
• elaboração de proposta de política de saúde
intensa para a participação expressiva do país – Plano de Qualificação Profissional – Planfor);
da população negra, que tem entre seus itens:
governo e sociedade – na conferência, passo im-
a efetivação do Programa de Anemia • assinatura de protocolo de cooperação entre
portante para a produção de resultados nacionais.
Falciforme – doença sangüínea hereditária que o Ministério do Trabalho e Emprego e o Minis-
Uma estratégia definida por setores das organi-
atinge principalmente afrodescendentes –, o tério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos
zações negras que também deve ser destacada apoio a pesquisas sobre o tema e o treina- Humanos, para a promoção da igualdade racial
foi a de incluir no processo a mobilização da po- mento de profissionais; e étnica no trabalho.
pulação branca, suas organizações e outros movi-
mentos sociais até então ausentes ou que tiveram
presença limitada na luta anti-racismo.
Diferentes setores avaliam que, de fato, o pro-
cesso e os acordos da 3ª CMR vieram a significar, Em 1995, FHC já afirmava, em seu discurso de em fevereiro de 1996, teve como atribuição desen-
antes de tudo, a ampliação dos espaços de dis- posse, o reconhecimento da vigência de problemas volver propostas de ação para a igualdade racial.2
puta contra o racismo, bem como a mobilização específicos enfrentados pela população negra na Também no período, o poder judiciário em-
de novos atores e a inserção em novas estruturas sociedade brasileira. preendeu medidas relativas a ações afirmativas
estatais. Para analisar os passos dados desde Confrontado diretamente pela mobilização na contratação de serviços de terceiros, com cota
Durban até aqui, é interessante debruçarmo-nos provocada pela Marcha Zumbi dos Palmares, o de 20% para negros e negras (Tribunal Superior do
sobre dois diferentes aspectos da ação: o que governo FHC tomou, no período entre 1995 e Trabalho e Superior Tribunal Federal). Além disso,
se refere às políticas estatais e o relacionado à 2002, uma série de medidas para a produção de
sociedade civil. respostas estatais à desigualdade racial. Entre
No campo das políticas públicas, o processo elas, devemos assinalar a criação do Grupo de 2 Suas atividades foram organizadas em subgrupos para o
de Durban e seus acordos abarcam os governos Trabalho Interministerial (GTI) para Valorização da trabalho em 16 áreas: informação (quesito cor); trabalho
População Negra, vinculado ao Ministério da Jus- e emprego; comunicação; educação; relações
de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio
internacionais; terra (remanescentes de quilombo);
Lula da Silva. O governo FHC participou efetiva- tiça, formado por oito representantes de diferentes
políticas de ação afirmativa; mulher negra; racismo e
mente da conferência na África do Sul, tendo ne- ministérios e oito da sociedade civil. Esse grupo, violência; saúde; religião; cultura negra; esportes;
gociado e ratificado as propostas apresentadas. lançado em 20 de novembro de 1995 e instalado legislação; estudos e pesquisas; e assuntos estratégicos.

Observatório da Cidadania 2005 / 61


todas as instâncias judiciárias comprometeram-se • promover a igualdade e a proteção dos direitos - apoio aos projetos de etnodesenvolvimento
a fazer cumprir os dispositivos constitucionais e de indivíduos e grupos raciais e étnicos afeta- das comunidades quilombolas;
legais que vedam a discriminação racial. dos pela discriminação e demais formas de - desenvolvimento institucional em comuni-
A característica principal do conjunto de intolerância com ênfase na população negra; dades remanescentes de quilombos;
medidas desencadeadas nesse período é a frag- • acompanhar e coordenar políticas de diferen- - apoio sociocultural a crianças e adoles-
mentação e sua incapacidade de produzir mudan- tes ministérios e outros órgãos do governo centes quilombolas;
ças estruturais tanto no racismo institucional, que brasileiro para a promoção da igualdade racial;
impregna as políticas e seus diferentes órgãos • incentivo à adoção de políticas de cotas nas
• articular, promover e acompanhar a execu- universidades e no mercado de trabalho;
executores, como na melhoria das condições de
ção de diversos programas de cooperação
vida da população negra. Não deixa de ser emble- • incentivo à formação de mulheres jovens
com organismos públicos e privados, nacio-
mático o fato de o GTI e grande parte das medidas negras para atuação no setor de serviços;
nais e internacionais;
elencadas jamais terem sido extintos, ainda que • incentivo à adoção de programas de diversi-
sua operacionalidade tenha sido esvaziada ao • promover e acompanhar o cumprimento de
dade racial nas empresas;
longo dos anos de governo FHC, sem continui- acordos e convenções internacionais assina-
dos pelo Brasil, que digam respeito à pro- • apoio aos projetos de saúde da população
dade no governo Lula.
moção da igualdade e ao combate à discri- negra;
No entanto, é preciso assinalar que as medidas
partiam de proposições elaboradas e inseridas na minação racial ou étnica; • capacitação de professores e professoras
agenda federal pela mobilização política negra, a • auxiliar o Ministério das Relações Exteriores nas para atuar na promoção da igualdade racial;
partir de ações que contaram com pouco – ou políticas internacionais, no que se refere à apro- • implementação da política de transversali-
nenhum – respaldo dos demais setores da socie- ximação de nações do continente africano. dade nos programas de governo;
dade civil interessados em transformação. Em 20 de novembro de 2003, data que marca • ênfase à população negra nos programas de
o Dia Nacional da Consciência Negra, a Presi- desenvolvimento regional;
Secretaria especial dência da República instituiu, por decreto, a Polí- • ênfase à população negra nos programas de
Ao governo Lula, empossado em 2003, coube a tica Nacional de Promoção da Igualdade Racial urbanização e moradia;
vantagem de assumir a direção da política nacio- (PNPIR), cujo objetivo é:
nal imediatamente após a 3ª CMR e da implan- • incentivo à capacitação e aos créditos es-
tação de diferentes iniciativas no plano federal, Redução das desigualdades raciais no Brasil, peciais para apoio ao(à) empreendedor(a)
com ênfase na população negra, mediante a negro(a);
tendo encontrado um ambiente propício à tomada
realização de ações exeqüíveis a longo, médio
de decisões para o aprofundamento do anti-racis- e curto prazos, com reconhecimento das • celebração de acordos de cooperação no âm-
mo no Brasil. Nessa época, resultados de iniciativas demandas mais imediatas, bem como das bito da Área de Livre Comércio das Américas
empreendidas no governo anterior, principalmente áreas de atuação prioritária. (Alca) e do Mercado Comum do Sul (Mercosul);
estudos e pesquisas, forneciam ao governo federal Tal objetivo, ainda segundo o decreto pre- • incentivo à participação do Brasil nos fóruns
uma profusão crescente de dados para fundamen- sidencial, deveria ser alcançado mediante a rea- internacionais de defesa dos direitos humanos;
tação das ações que lhe caberiam desenvolver. lização de objetivos específicos de defesa de • celebração de acordos bilaterais com o
Isso sem falar da intensa mobilização social, em direitos, ação afirmativa e articulação temática Caribe, países africanos e outros de alto con-
especial a do movimento de mulheres negras e de raça e gênero. tingente populacional de afrodescendentes;
do movimento negro, intensificada pela produção
de uma agenda capaz de permitir a eleição de um Propostas da Seppir • realização de censo de servidores(as)
candidato não-branco, nordestino e de baixa esco- públicos(as) negros(as);
As ações definidas pela Presidência a serem em-
laridade para a liderança da nação. preendidas pela Seppir, em parceria com os demais • identificação do Índice de Desenvolvimento
Nesse contexto, em março de 2003, foi cria- órgãos da administração federal e com base no Humano da população negra;
da, por medida provisória, a Secretaria Especial orçamento já vinculado a esses órgãos, eram: • construção do mapa da cidadania da popu-
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial lação negra no Brasil.
• implementação de modelo de gestão da po-
(Seppir), vinculada à Presidência da República e No documento de apresentação dessa polí-
lítica de promoção da igualdade racial, que
que dá status de ministra à sua secretária, ainda tica nacional de promoção da igualdade racial, a
compreenda conjunto de ações relativas à
que o órgão não tenha a estrutura (tampouco o Seppir afiança que:
qualificação de servidores e gestores públicos,
orçamento) de um ministério.
representantes de órgãos estaduais e muni- [...] a despeito das experiências registradas
Transformada na Lei 10.678, de 23 de maio
cipais e de lideranças da sociedade civil; anteriormente, localizadas, dispersas e
de 2003, as atribuições da Seppir estão assim
• criação de rede de promoção da igualdade provisórias, institui-se agora, para além de
definidas: uma política de governo, uma política de
racial, envolvendo diferentes entes federati-
o
Art. 2 - À Secretaria Especial de Políticas de Estado, uma política perene que inscreve a
vos e organizações de defesa de direitos; promoção da igualdade racial como uma
Promoção da Igualdade Racial compete
assessorar direta e imediatamente o • fortalecimento institucional da promoção da das prioridades da agenda política do
Presidente da República na formulação, igualdade racial; Estado brasileiro.
coordenação e articulação de políticas e Como passo adiante da Política de Promoção
• criação do Sistema Nacional de Promoção da
diretrizes para a promoção da igualdade da Igualdade Racial, foi convocada uma conferên-
racial, na formulação, coordenação e Igualdade Racial:
cia nacional (Conapir), com a atribuição de estabe-
avaliação das políticas públicas afirmativas de - aperfeiçoamento dos marcos legais;
promoção da igualdade e da proteção dos lecer diretrizes a um Plano Nacional de Promoção
direitos de indivíduos e grupos raciais e
• apoio às comunidades remanescentes de da Igualdade Racial.
étnicos, com ênfase na população negra, quilombos; As ações empreendidas pela Seppir no pri-
afetados por discriminação racial e demais • incentivo ao protagonismo da juventude meiro ano de governo (2003–2004) são apre-
formas de intolerância [...]. quilombola: sentadas no quadro a seguir, preparado segundo
Os objetivos da Seppir incluem: levantamento de Marcelo Paixão e sua equipe
(2004, p. 97-98).

Observatório da Cidadania 2005 / 62


Ações do governo federal para a promoção da igualdade racial, 2003–2004
AÇÕES ATIVIDADES

Apoio às comunidades remanescentes • Projeto Juventude Quilombola: Ampliando Horizontes, parceria da Seppir com a Organização
de quilombolas Internacional do Trabalho (OIT).
• Programa Petrobras Fome Zero, desenvolvido em dez comunidades prioritárias.
• Programa Fome Zero, em 150 comunidades.
• Programa Comunidades Quilombolas no estado de Alagoas.
• Ação Kalunga.
• Regularização fundiária, em 116 comunidades.
• Eletrificação rural, em 29 comunidades.
• Abastecimento de água e saneamento básico, em 13 comunidades.
• Programa Nacional de Agricultura Familiar, em dez comunidades.
• Projetos de desenvolvimento sustentável e geração de renda para 11 comunidades.

Inclusão e desenvolvimento econômico: • Programa de Ações Afirmativas do Instituto Rio Branco: relançamento do programa
trabalho, emprego e renda para a de concessão de bolsas a candidatos(as) afrodescendentes para o curso preparatório
população negra da carreira de diplomacia.
• Programa Primeiro Emprego e Projeto Empreendedores Afro-brasileiros.
• Programa de Fortalecimento Institucional para a Igualdade de Gênero e Raça, Erradicação
da Pobreza e Geração de Emprego. Foram firmados convênios com a região do grande ABC paulista,
o estado da Bahia, o Vale do Jequitinhonha e o município de São Paulo.
• Projeto Desenvolvimento de uma Política Nacional para Eliminar a Discriminação no Emprego
e na Ocupação e Promover a Igualdade Racial no Brasil.

Cultura negra e combate à intolerância religiosa • Campanhas educativas de combate ao preconceito e à discriminação: Campanha Ação Afirmativa
– Atitude Positiva, em parceria com o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap)
e Projeto Identidade e Resistência – 90 anos e Arte de Abdias do Nascimento.
• Projeto História e Cultura Afro-Brasileira.
• Projeto Cantando História.
• Projeto Sergipe Igual para Todos – Semear.
• Projeto A Cor da Cultura.

Produção do conhecimento • Apoio à pesquisa “Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil”, realizada pela Fundação
Perseu Abramo.

Inclusão da população negra no sistema educacional • Programa de Inclusão da População Negra na Educação Brasileira.
• Implementação da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, referente ao ensino de história da África
no ensino público.
• Ações voltadas à capacitação de professores(as), tendo em vista a aplicação da Lei 10.639.
• Convênio com o Programa Diversidade na Universidade.
• Elaboração de Projeto de Lei, pela Seppir em parceria com o MEC, voltado para garantir o sistema
de reserva de vagas para pessoas negras e indígenas nas instituições de ensino superior.
• Apoio à implantação, na Universidade de Brasília (UnB), do curso de pós-graduação lato sensu
“Culturas negras no Atlântico”.

Saúde da população negra • Assinatura do termo de compromisso com o Ministério da Saúde para implantação da Política
Nacional de Saúde da População Negra.
• Apoio à realização da 12ª Conferência Nacional de Saúde.
• Apoio à realização do seminário “Saúde da população negra no plano nacional de saúde: ações
afirmativas para avançar na eqüidade”.

Observatório da Cidadania 2005 / 63


Poucos avanços fundamentais para a implantação e disseminação que nunca se desdobram, iniciativas de curto es-
A Seppir foi a promessa governamental do desen- do capitalismo no mundo, o racismo estrutura a pectro, incapazes de impactar a vida da nação, de
volvimento de ações aprofundadas contra a discri- modernidade capitalista brasileira, em sua auto- fomentar a justiça social, restabelecer a digni-
minação racial e a desigualdade (apesar de passar afirmação democrática. dade da população negra, independentemente da
ao largo, em seus textos oficiais, do confronto retórica que utilizem.
ideológico em torno do racismo). No entanto, já Apenas experiências-piloto
alcançada a metade do mandato governamental As mudanças recentes no mundo, definidas como Os desafios de Durban
de Lula, é possível afirmar que os objetivos defi- globalização ou neoliberalismo, tiveram nos gover- A 3ª CMR é afirmada pelo movimento anti-racista
nidos não foram e não serão alcançados, exceto nos FHC e Lula aliados potentes. Fórmulas gene- como fundamental para o processo de alarga-
parcialmente e de forma fragmentária. ralistas e perniciosas disseminadas pelo Banco mento de agendas e de aprofundamento das ações.
O Congresso Nacional tem em tramitação, Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional No entanto, ela tem sido considerada apenas por
desde o ano 2000, o Projeto de Lei 3.198, apre- foram produzindo um quadro de privilégio do sis- nós, ativistas no Brasil e em outros países da
sentado pelo então deputado Paulo Paim, que tema financeiro, em detrimento de toda a socie- América Latina.
“institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defe- dade, com sacrifícios e violações de direitos inten- O neoliberalismo tem confrontado as Nações
sa dos que sofrem preconceito ou discriminação sificados contra os grupos populacionais subor- Unidas, como forma de desqualificar os resultados
em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras dinados. No Brasil e fora daqui, a população negra (parcos) de sua agenda social. Estão sob ataque
providências”. Esse projeto, atualmente com um encabeça a lista dos mais espoliados. A regra da os direitos humanos, o desenvolvimento, os direi-
substitutivo, dispõe-se a garantir novo arcabouço acumulação implica desde sempre espoliação tos das mulheres e das crianças e o combate ao
legal para ações de enfrentamento da desigual- (que outras correntes de pensamento chamavam racismo. Dirigentes das nações têm subordinado
dade racial em diferentes áreas (saúde, educação, de mais-valia), e a vantagem neoliberal é fazer isso suas agendas aos interesses dos fluxos de capi-
cultura, esporte, lazer, religião, mercado de traba- a partir de comandos transmitidos eletronica- tais instáveis, velozes, monopolizados, ao passo
lho e sistema de cotas), mas até o momento não mente, distantes do contato face a face. que países como os Estados Unidos subordinam
foi votado em definitivo. Isso apesar de o governo Vale recordar que essa implementação neo- suas agendas militares e políticas (na verdade, a
federal, tanto na gestão de FHC como na de Lula, liberal – dita modernizante – tem sido denuncia- primeira substitui a segunda) aos interesses ime-
ter tido maioria suficiente no legislativo capaz de da e atacada desde então por diferentes setores, diatos das empresas.
votar ações para o combater as desigualdades, e até mesmo pelo movimento social anti-racista. Imediatamente ao fim da conferência de
a despeito de o próprio Congresso ter instituído Suas principais conseqüências são: a ampliação Durban, houve o ataque em Nova York, por ativistas
uma frente parlamentar para tratar desses temas. das disparidades e a redução do espaço público e da Al Qaeda, e muitas nações não hesitaram em
De acordo com o texto-base da 1ª Conapir, da ação do Estado. Isso ocorre por meio da reti- trair seus acordos recém-pactuados em nome de
rada maciça dos recursos destinados às políticas uma guerra de civilizações. Neste contexto, quan-
desde a abolição da escravatura, em 1888, até
públicas, transferindo-os de forma perniciosa para tos se comprometeram com o anti-racismo?
os dias de hoje, pela primeira vez, o governo
federal propõe à sociedade brasileira o debate o setor financeiro, sob o eufemismo de superávit Ao que parece, a resposta possível é a de que
público em torno da construção de uma primário, pagamento de dívida e coisas do tipo. a sociedade não desistiu, principalmente o movi-
política de Estado voltada para a erradicação Se a desigualdade racial se estabelece e se mento de mulheres negras, o movimento negro e
das desigualdades raciais [...]. (Brasil, 2005) mantém pela distribuição seletiva dos bens públi- alguns outros movimentos sociais que, por dife-
Apesar de o governo federal estar dando maior cos, fica visível que a manutenção das formas rentes maneiras, advogam o anti-racismo como
destaque à questão racial, é preciso assinalar o econômicas que privilegiam os setores financeiros parte das ações de justiça, de eqüidade e trans-
exagero da afirmação e o não-reconhecimento dos nacionais e internacionais e o aprofundamento de formação social. Ao mesmo tempo, continuam
créditos devidos ao movimento negro, uma vez que políticas redutoras da esfera pública e social nos fazendo pressão sobre o Estado com suas deman-
o debate, inaugural e abrangente, tem sido tarefa padrões das últimas décadas inviabilizam qualquer das, no sentido da manutenção e ampliação dos
exercida por tal movimento, com exclusividade. objetivo de “redução das desigualdades raciais espaços já conquistados.
Não há novidade na tentativa de apagamento no Brasil”, como se dispôs o governo Lula. O maior impacto de Durban, de fato, está na
das lutas sociais e na autopromoção, mas a afir- Ora, a ação estatal é o eixo fundamental no ação política da sociedade organizada, principal-
mativa feita anteriormente ocorre numa gestão enfrentamento do racismo e da desigualdade mente no Brasil. Afinal, são poucas as agendas que,
que se define como tributária e parceira da socie- racial. Isso tem sido afirmado há décadas pelas ao advogarem as lutas de transformação social,
dade civil. Essa desvalorização do movimento organizações negras. À medida que governos ainda resistem em incorporar o anti-racismo (ao lado
negro marcou não só os governos FHC, como tem agem para a redução da esfera estatal, a partir do anti-heterossexismo3) como fundamento da ação.
sido característica do governo Lula, e precisa das fórmulas neoliberais de Estado mínimo, dimi- Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que
ser desmascarada. nuem as possibilidades de esse Estado se tornar o processo da conferência permitiu tensionar um
No que se refere à ação governamental pro- agente de justiça e cidadania. Retrato disso são pouco mais governos dos diferentes níveis, apesar
priamente dita para o confronto do racismo e as reduções sistemáticas do orçamento desti- de suas respostas serem ainda pífias. A sociedade
suas conseqüências, pelos resultados apresen- nado às políticas sociais, os contingenciamentos civil não-negra também necessita ir além e radi-
tados até o momento, a palavra-chave empre- das verbas e as iniciativas débeis de confronto à calizar nas ações adequadas aos compromissos
endida é a retórica. desigualdade racial. assumidos. No entanto, novas alianças nos apa-
O racismo e a produção da inferioridade de Ainda assim, é preciso reconhecer que a cria- relhos de Estado, bem como na sociedade, têm
grupos populacionais baseados em critérios ção de estruturas como o GTI e a Seppir significam sido realizadas, possibilitando a ampliação do
difusos (fenotípicos e/ou culturais) não são novi- um reconhecimento das demandas apresentadas ambiente comprometido com a ação de mudança.
dade no mundo. Conforme já observamos neste pela população negra, bem como suas ações par- Além disso, deve-se à movimentação de Durban a
texto, eles têm sido ferramenta fundamental na tem de proposições elaboradas pelo movimento
construção das diferentes fases da república social e satisfazem a alguns aspectos da luta.
brasileira. E vêm se beneficiando de diferentes Por outro lado, o conjunto de políticas em-
estruturas e sistemas de administração estatal, preendidas pelos governos ao mesmo tempo 3 Por heterossexismo, entende-se a crença de que a
penetrando nos distintos territórios da vida so- desautoriza seu alegado compromisso anti-racista heterossexualidade é o único modelo possível para as
cial, econômica e política. Como uma das bases e pela eqüidade. Serão sempre experiências-piloto relações românticas ou sexuais.

Observatório da Cidadania 2005 / 64


potencialização de propostas de ações afirmativas,
que, neste momento, impactam as universidades
brasileiras e reduzem um pouco a margem de atu-
ação das pessoas privilegiadas.
Aproxima-se a reunião das Nações Unidas
para a análise dos ganhos produzidos pelos acor-
dos da 3ª CMR. A participação do Brasil deverá
ser desenvolvida com cuidados por parte da socie-
dade civil, em razão da simples constatação de
que, se acompanharmos o comportamento dos
indicadores socioeconômicos da população negra
desde Durban até hoje, é possível dizer que sua
situação se manteve estável ou piorou.
No entanto, na perspectiva do simbólico, a
existência da Seppir (com seu quadro majorita-
riamente negro), o reatamento das relações com
o continente africano, o perdão pela escravidão e
outras medidas do atual governo fazem parecer
que algo está sendo feito. E está. Contudo, a aná-
lise dos números, tão ao gosto da facção econo-
micista da gestão federal, exige muito mais do
que gestos simbólicos.
A desigualdade racial ocorre em ambos os
planos, material e simbólico, é verdade. Mas é no
campo da sobrevivência material que se está pro-
duzindo a maior quantidade de mortes e mais
sofrimento. Portanto, a conivência com a retórica
governamental deve ser fortemente desautorizada
por todas e todos.
E mais, quando se avizinha a Marcha Zumbi
dos Palmares + 10, ou seja, a intensificação da
mobilização das organizações negras em direção à
capital federal, de forma maciça, é preciso que o
joio seja separado do trigo. É o que estamos fa-
zendo. A marcha é e será uma resposta às mano-
bras diversionistas e à retórica governamental para
encobrir a traição das causas sociais e da causa
anti-racista em particular. Mais uma vez, e como
sempre, a população negra seguirá em busca de
um novo pacto. O lado de lá que se prepare.

Referências
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do Seminário Nacional de Saúde da População Negra.
Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
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igualdade racial. 2005. Disponível em: <http://
www.presidencia.gov.br/seppir/conferencia_base.pdf>.
Acesso em: 25 set. 2005.
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em: 25 set. 2005.
PAIXÃO, Marcelo et al. Conferência pela promoção da
igualdade racial. 2004. Disponível em: <http://www.lpp-
uerj.net/olped/documentos/ppcor/0339.pdf>. Acesso
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SHICASHO, Sônia Tiê (Org.). Desigualdade racial:
indicadores socioeconômicos, Brasil 1992–2001.
Brasília: Ipea, 2002
SOARES, G. A. D. ; BORGES, D. A cor da morte. Ciência
Hoje, Rio de Janeiro, v. 35, n. 209, p. 26-31, 2004.

Observatório da Cidadania 2005 / 65


Violência, insegurança e cidadania: reflexões a partir
do Rio de Janeiro

Particularismo e intolerância vêm marcando a percepção social sobre os direitos de cidadania e estimulando uma crescente
segmentação do território urbano. No caso da cidade do Rio de Janeiro, a atribuição de um vínculo social e moral entre
moradores(as) de favelas e o crime violento reedita o tema das “classes perigosas”, renovando e aprofundando velhos
estigmas, e altera significativamente o lugar das favelas e das pessoas que habitam a cidade.

Márcia Pereira Leite* dólares e envolve sofisticados circuitos de comer- É sobre este tema que me detenho neste
cialização no atacado e de lavagem de dinheiro, artigo. Analiso o lugar das favelas e de seus
Desde meado da década de 1980, a violência asso- além de se articular ao tráfico de armas. Com a habitantes no Rio de Janeiro, demonstrando sua
ciada ao tráfico de drogas vem crescendo em alta lucratividade da distribuição de drogas, os estreita vinculação ao particularismo e à intole-
freqüência e intensidade nas grandes cidades bra- confrontos armados entre quadrilhas rivais pelos rância que vêm marcando a percepção social sobre
sileiras. Assaltos, roubos, seqüestros, tiroteios e pontos de venda e os embates desses bandos os direitos de cidadania e à crescente segmen-
balas perdidas somam-se a homicídios de jovens,1 com a polícia tornaram-se freqüentes, levando-os tação do território urbano. Examino algumas for-
rebeliões em presídios e instituições de jovens a desenvolverem estratégias de controle cada mulações de moradores(as) de favelas e dirigen-
infratores(as), paralisações do comércio, escolas vez mais estrito sobre os territórios onde essa tes de suas organizações comunitárias (igrejas,
e serviços públicos por ordens de bandidos, mui- ponta de distribuição se concentrou – favelas, associações, grupos de mulheres e de direitos
tas vezes emitidas do interior de prisões de “alta conjuntos habitacionais, loteamentos clandes- humanos) sobre suas experiências com as diver-
segurança”. Experimentados diretamente pela tinos, bairros pobres e periféricos – e sobre sua sas modalidades de violência em seus locais de
população ou compartilhados pela mídia, esses população residente. moradia, isto é, com o terror e a violência pratica-
atos geram a percepção e o sentimento de que, As razões dessa concentração vão desde as dos tanto por quadrilhas de traficantes de drogas
doravante, a vida nas metrópoles só será possí- condições morfológicas – no caso das favelas como por grupos policiais em tese dedicados a
vel sob o domínio do medo, o cerceamento da cariocas, seus traçados de ruas labirínticos, de seu combate. Por fim, indico muito brevemente
sociabilidade, o controle dos territórios e o enco- difícil acesso às partes mais internas ou elevadas alguns cursos de ação que esse contexto torna
lhimento do espaço público,2 produzindo estados e, quando situadas em morros, sua excelente virtualmente possíveis, considerando-os como
de opinião que encontram tradução nas metáfo- visibilidade das ruas (Silva, 2002) – até sua con- desafios para uma democratização substantiva
ras de guerra e de cidades partidas, amplamente dição de territórios quase desérticos de insti- da vida social.
difundidas nas referências à violência urbana tuições estatais e serviços públicos que mate- O foco no Rio de Janeiro deve-se não só a
em nosso país. rializem um efetivo acesso de seus moradores razões de tempo e espaço, conforme é usual
No Rio de Janeiro da década de 1980, os ele- e moradoras à cidade. 3 alegar em textos desse tipo, mas à minha escolha
vados índices de violência expressavam o novo Neste cenário, o medo do crime violento as- por realizar pesquisas qualitativas que, ouvindo
perfil do tráfico de drogas, que se conectara aos sociou-se ao aumento do preconceito e da discri- a população mais vulnerável à violência – mo-
cartéis internacionais para promover a entrada de minação em relação à população que vive nesses radores e moradoras dos territórios favelados –,4
cocaína em larga escala no mercado brasileiro. territórios, gerando apoios, mais ou menos explí- possa trazer outras vozes ao debate público sobre
Desde então, o tráfico de drogas tornou-se um citos, de consideráveis segmentos das camadas violência e insegurança. E ainda ao rendimento
negócio oligopolizado que movimenta bilhões de médias e abastadas e setores da mídia, a políti- analìtico de tomar a cidade como caso exemplar,
cas repressivas de segurança pública, que pres- sem deixar de considerar alguns estudos que
supõem a incompatibilidade entre resultados efi- analisam, com profundidade e consistência, dinâ-
cientes no combate à violência urbana e respeito micas correlatas em outras metrópoles brasilei-
aos direitos civis de moradores e moradoras dos ras. Entretanto, pela visibilidade e ressonância que
territórios favelados. Assim, vêm se renovando e a criminalidade violenta alcançou no Rio de Janeiro,
aprofundando as barreiras para seu pleno direito a cidade representa hoje uma espécie de labo-
* Socióloga e professora da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj).
à cidade e à cidadania. ratório de políticas relacionadas aos conflitos urba-
1 “Educação de jovens em situação de risco”, pesquisa nos e à segurança pública no país.
realizada pelo Viva Rio com base nas estatísticas
oficiais, revelou que, em 2001, 65% das mortes de
rapazes de 15 a 19 anos, na cidade do Rio de Janeiro,
foram provocadas por armas de fogo. O risco de um
jovem dessa faixa etária ser assassinado no Rio é
quatro vezes maior do que na média do conjunto de 3 Essa questão parece ser hoje – mais do que a da 4 Refiro-me aos depoimentos recolhidos nas pesquisas
moradores e moradoras, especialmente se pobre, negro propriedade, que é muito diversa nas próprias favelas sobre violência, cidadania e ação coletiva que venho
ou mestiço, morador de favela e com alguma – um dos principais elementos a definir na percepção realizando desde 1999: entrevistas com cerca de 80
proximidade das redes de tráfico, como indicou a social uma mesma condição que aproxima, na moradores(as) e lideranças de favelas, registros de
pesquisa pioneira de Soares e colaboradores (1996). qualidade de territórios favelados (como adiante me suas falas em diversas reuniões, fóruns de
2 Ver, por exemplo, os artigos reunidos no excelente refiro indistintamente a esses locais), conjuntos movimentos sociais e atos públicos, bem como
volume organizado por Ribeiro (2004) e o balanço habitacionais, loteamentos clandestinos, bairros entrevistas em jornais e sites de ONGs e de
efetuado por Lago (2005). pobres e periféricos e favelas. movimentos sociais

Observatório da Cidadania 2005 / 66


Entre medos e metáforas da população urbana.7 Atualmente, cerca de 20% de serviços de baixa qualidade, pela cooptação
As favelas são um fenômeno antigo na cidade do dos 5.858 mil da cidade do Rio de Janeiro moram das lideranças de favelas, pelo clientelismo e ine-
Rio de Janeiro. As primeiras surgiram no fim do em suas 752 favelas.8 ficiência das instituições estatais, pela brutali-
século XIX, quando a população de baixa renda, Políticas de urbanização das favelas vêm sen- dade policial e desrespeito aos direitos civis de
que não tinha condições de pagar aluguéis nos do desenvolvidas, de modo intermitente, desde a seus habitantes, que não têm reconhecido e ga-
subúrbios, nem o transporte cotidiano para o tra- década de 1980.9 Ainda hoje, entretanto, os equi- rantido seu estatuto de cidadania (Miranda e
balho, começou a ocupar os morros próximos às pamentos e serviços urbanos não foram universa- Magalhães, 2004; Silva, 2002).
fábricas, ao comércio e/ou às habitações das ca- lizados nas favelas e sua qualidade é consideravel-
madas médias e abastadas, em busca de emprego. mente inferior à proporcionada nas áreas formais Tráfico de drogas, violência e estigma
Cronistas, reformadores sociais e administradores (bairros) do Rio de Janeiro. Além disso, seu fun- Até o fim da década de 1980, a representação
públicos foram os primeiros a produzirem relatos cionamento, sua generalização e/ou sua expan- negativa das favelas como locais da pobreza e da
sobre as favelas, construindo uma imagem nega- são ainda estão, muitas vezes, condicionados a marginalidade era contrabalançada por sua valo-
tiva que até hoje perpassa pelo imaginário da políticas clientelísticas tradicionais no país (Silva, rização como berço do samba, do carnaval e da
cidade. Elas foram representadas como locus da 1967). A população residente em favelas é consti- cultura popular. A partir da década de 1990, entre-
pobreza e da marginalidade. Os relatos enfatiza- tuída, em sua maioria e apesar de sua conhecida tanto, quando as favelas passaram a ser temati-
vam a degradação sanitária do local, associando-a heterogeneidade (Preteceille e Valladares, 1999), zadas sobretudo pela violência e pela inseguran-
às características das pessoas que as habitam. de trabalhadores e trabalhadoras pobres e sem ça que trariam aos bairros, adensaram-se os es-
Argumentavam que só se adaptariam àquele am- qualificação profissional, analfabetos(as) ou com tigmas sobre seus moradores e suas moradoras.
biente pessoas moralmente degradadas, ou seja, poucos anos de estudo, cuja fragilidade no mer- O aumento do número de habitantes nesses lo-
malandros, prostitutas, indivíduos que recusavam cado de trabalho revela-se nas altas taxas de cais e mesmo seu trânsito pelas áreas em torno
o trabalho honesto, não aceitavam as normas desemprego e em sua inserção marginal e/ou foram recebidos como ameaças de favelização da
sociais, desafiavam as leis e as autoridades pú- temporária no trabalho informal, com baixos sa- cidade. Criminalizada por nelas residir, a popula-
blicas. Envolveriam, portanto, um potencial de lários/renda, sem proteção legal e sem acesso ção favelada foi aproximada dos bandidos em uma
violência e ruptura passível de ser atualizado a aos direitos sociais. lógica que considera sua convivência forçada com
qualquer conflito (Valladares, 2000). Sua cidadania é precária: não lhes são ga- bandos de narcotraficantes como sintoma de co-
Mesmo consideradas um problema social e rantidos os direitos à habitação, ao saneamento, nivência. A submissão à lei do tráfico foi percebi-
estético, estigmatizadas, proibidas e, algumas ao lazer e à cultura, nem o pleno acesso à justiça. da na forma de uma escolha entre esta e a lei do
vezes, removidas, as favelas expandiram-se em À urbanização deficiente nesses locais soma-se a país, como uma opção por um estilo de vida que
número de unidades, domicílios e população resi- inexistência do reconhecimento e da proteção de rejeitaria as normas e os valores da ordem social
dente. De 1940 a 1980, quando o país experimen- seus direitos civis, 10 uma vez que não há um em uma reatualização das formulações do início
tou o “ciclo de ouro” de sua industrialização, o cres- sistema permanente e eficiente de segurança do século passado.11
cimento das favelas estava fortemente associado à nas favelas que reconheça sua dignidade como Essa interpretação desconhece ou naturaliza
migração interna.5 As favelas eram praticamente pessoas e se volte para a proteção de suas vidas, o despotismo do tráfico sobre a população resi-
a única alternativa de moradia para a população liberdades e posses. dente nas favelas, tematizando a violência na/da
rural que chegava à cidade sem possibilidade de Essa função foi delegada pelo Estado, em cidade como “os conflitos do morro chegando ao
se inserir em seu mercado formal de habitação. meado do século passado, às associações de asfalto”, especialmente a ocorrência de crimes, os
Migrantes ocupavam uma área ainda pouco habita- moradores; a polícia no máximo permanecia na confrontos entre a polícia e os bandidos e a inci-
da, alugavam “barracos” ou moravam de favor na entrada das favelas com o claro objetivo de pro- dência das “balas perdidas” nas ruas dos bairros.
casa de familiares instalados em favelas mais teger os bairros das favelas. Hoje, não se trata de Por isso mesmo, as soluções propostas usual-
consolidadas. Já na década de 1990, com o esgota- dizer que o Estado esteja ausente das favelas. mente restringem-se a exigir “mais segurança”.
mento desse modelo, o crescimento do número de Mas sua presença caracteriza-se pela prestação Esse é um eufemismo que se traduz não só em
favelas e de sua população residente desvinculou- reforma e reaparelhamento da polícia, mas na rejei-
se do êxodo rural, encontrando sua dinâmica nas ção a políticas de direitos humanos e no apoio a
altas taxas de desemprego6 e no empobrecimento 7 Dados de 2001 revelam que 23% da população do políticas repressivas de segurança pública que
estado do Rio de Janeiro tem renda familiar per capita pressupõem a incompatibilidade entre resultados
abaixo da linha de pobreza, isto é, inferior ao
eficientes e respeito aos direitos civis dos(as) habi-
nível mínimo necessário à satisfação das necessidades
básicas; enquanto cerca de 8% se encontram abaixo da tantes das favelas, o que é muitas vezes referido
linha de indigência, pois sua renda é inferior ao custo como políticas “mais duras” para criminosos(as)
5 As políticas de modernização capitalista promovidas
de uma cesta básica suficiente para as necessidades de e suspeitos(as) em geral.
pelo Estado brasileiro, no período, estimularam uma
consumo calórico mínimo de um indivíduo. Quanto à
forte corrente migratória das regiões Norte e Nordeste para Além disso, demandam o reforço às frontei-
concentração de renda, mostram que, no estado do Rio,
o Sul e o Sudeste (grandes e médias cidades), oferecendo ras territoriais, sociais e morais entre esses dois
os 40% mais pobres retêm cerca de 9% da renda, ao
aos(às) migrantes o sonho de acesso aos benefícios de
passo que os 10% mais ricos apropriam-se de espaços, seja pela renovação das propostas de
uma sociedade desenvolvida pelo trabalho árduo e a
aproximadamente 46% da renda total (Iets, 2002). remoção das favelas das áreas “nobres” da cidade,
possibilidade de mobilidade social para os(as)
descendentes que se integrassem ao sistema educacional. 8 Dados do Cadastro de Favelas do Instituto Pereira seja pela alocação de grandes efetivos policiais
A participação de migrantes na população das favelas da Passos, Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.
nas entradas dos territórios favelados e formas
cidade alcançou 62% em 1950, declinando para 53% 9 Sobre o tema, ver a excelente análise de Burgos (1998).
diversas de vigilância e limitação do trânsito de
em 1960 e 48% em 1970 (Leite, 2001; Ribeiro, 1996). 10 Refiro-me às liberdades e aos direitos civis instituídos
6 Em 2001, a taxa de desemprego no estado do Rio de pela Constituição brasileira de 1988, que foram
Janeiro atingiu 12,2% contra 9,4% da média nacional, sintetizados no relatório da pesquisa Lei, Justiça e
incidindo particularmente sobre mulheres, Cidadania como consistindo nos direitos “à 11 Embora eventualmente recorram a mecanismos de favor,
afrodescendentes, jovens e pessoas menos inviolabilidade do lar, ao ressarcimento de danos ajudando moradores e moradoras das favelas em suas
escolarizadas: 16% da população economicamente ativa infligidos à pessoa, à honra e à propriedade, liberdade necessidades mais prementes, os chefes das quadrilhas
(PEA) feminina, 14,4% da PEA negra e 25% do universo de circular em paz, direito ao tratamento respeitoso por exercem um poder despótico sobre essa população,
de jovens entre 15 a 24 anos. A média de anos de parte das autoridades e de outros cidadãos, à igualdade designado como a lei do tráfico: dirimem conflitos de
estudo de desempregados(as) é inferior a oito anos perante a lei e a uma justiça rápida e acessível” todo tipo, impõem-lhes o silêncio sobre suas atividades
(ensino fundamental incompleto) (Iets, 2002). (Carvalho et al., 1997, p. 4). e a obediência incondicional.

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seus(suas) moradores(as) pelos bairros, ou ainda e descompromisso, na certeza de que se tratam protegem sua cidadania e cuja presença no terri-
pela privatização de espaços públicos como forma de demandas espúrias de pessoas praticamente tório, eventual e agressiva, se faz sempre contra
de evitar contato com essa população.12 tidas como não-cidadãs. os(as) moradores(as).
A representação das favelas como territórios Criticando as teses da convivência dos(as)
da ilegalidade e do crime propicia ainda a legiti- A visão de quem vive nas favelas habitantes de favelas com a criminalidade violenta,
mação da política dos órgãos de segurança pú- A população que vive nas favelas ressente-se dos muitas pessoas entrevistadas, especialmente diri-
blica do Rio de Janeiro no sentido de promover limites (sociais, simbólicos, mas também impos- gentes das associações de moradores ou de outras
uma “guerra” contra as favelas (e não simples- tos pelas forças policiais) à sua circulação na ci- organizações comunitárias, revelam sua fragili-
mente às quadrilhas de traficantes ali sediadas, dade (como o impedimento de freqüentar deter- dade diante do poder dos traficantes de drogas
nem mesmo ao narcotráfico em seu conjunto). minadas praias, ruas, praças, shoppings etc.) e à em seus locais de moradia e ponderam que, diante
Tal política caracteriza-se pela corrupção e bruta- convivência com moradores e moradoras dos dos confrontos entre narcotraficantes e polícia ou
lidade policiais, além de se traduzir em desres- bairros.16 Critica, sobretudo, o estigma e os pre- das guerras de facção entre os primeiros, sua
peito sistemático aos direitos daquela população. conceitos que inspira e a criminalização de suas única alternativa é a neutralidade. A situação de
Isso é usualmente explicado pelas autoridades ações coletivas daí decorrentes. Reconhece que confrontos entre quadrilhas é considerada ainda
públicas como “excessos”, lamentáveis, mas ine- as quadrilhas de traficantes de drogas fizeram das mais difícil, pois qualquer gesto pode ser inter-
vitáveis em uma “situação de guerra”.13 favelas um território privilegiado da violência, pretado como uma tomada de posição e cobrado
Outro lado da atividade policial é o extermí- mas recusa-se a deixar que as favelas sejam re- em um momento posterior por um dos lados em
nio de bandidos, meninos(as) de rua e de jovens sumidas pela violência e pelo tráfico de drogas. conflito ou pela própria polícia.
favelados(as) tomados(as) como suspeitos(as) de A polícia, que sobe os morros para combater Entretanto, mesmo em tempos de relativa paz
envolvimento em redes de droga. Grande parte des- as quadrilhas sem o cuidado de proteger quem nas favelas, o convívio com esses bandos arma-
ses crimes permanece impune, a despeito dos es- lá vive e/ou que se associa ao tráfico e recebe dos nas favelas leva dirigentes das associações
forços de muitos de seus familiares que se mobi- suas propinas, é apresentada como um dos pro- de moradores a se equilibrarem em um fio de
lizam, protestando contra a violência policial, de- dutores de violência. navalha. É impossível alguém permanecer na
nunciando presumíveis culpados(as) e exigindo Essas práticas tornam corriqueira a formu- direção de uma associação de moradores contra
justiça.14 Para além da ineficiência e corrupção do lação que ouvi de inúmeros(as) moradores(as) a vontade expressa das quadrilhas de traficantes,
aparato policial e da lentidão do judiciário, a im- de favelas: “Não é que a gente goste dos trafican- que se manifesta com imposição de renúncia,
punidade prospera com a diferença de tratamento tes, mas a gente não confia na polícia”. A banali- expulsão da favela, ameaças de morte e/ou as-
e repercussão dos episódios violentos ocorridos zação da frase não deve ocultar a simplicidade sassinatos. Dirigir uma associação de moradores
com moradores(as) das favelas e com moradores(as) brutal do diagnóstico que realizam sobre seu e/ou outra organização comunitária, no entanto,
dos bairros no restante da cidade. lugar na cidade e na sociedade em que vivem. não significa necessariamente contar com tal
Como pude verificar em pesquisas anterio- Não podem confiar em uma política de segu- apoio, ainda que, muitas vezes, essas entidades
res (2001; 2004), são bastante diversos: o des- rança que não os(as) contempla, em agentes busquem interferir diretamente em suas ativi-
taque que lhes confere a mídia, a indignação e do Estado que neles(as) não reconhecem qual- dades. Um líder de favelas relatou-me um pouco
postulação por justiça que despertam, a solida- quer dignidade humana, não consideram nem de sua experiência com essa delicada e perigosa
riedade às vítimas e/ou aos familiares que envol- relação, envolvendo a conquista do respeito dos
vem, o compromisso e empenho dos poderes grupos de tráfico por um trabalho que estaria
públicos com a apuração e a punição dos respon- 15 Várias pesquisas, realizadas nas duas últimas décadas, revertendo em benefício da comunidade, manten-
sáveis que acarretam, e as mobilizações sociais revelam a relação entre o crescimento da violência e da do-se à distância deles e utilizando-se da polícia
que suscitam.15 As vítimas e as pessoas de sua insegurança e a emergência de um pensamento que, como um contrapoder ao “tráfico”: uma outra
distanciando-se dos temas da solidariedade e da justiça
família, quando provenientes dos territórios explicação para a sua necessária neutralidade
social que presidiram a ampliação da cidadania nas
favelados, encontram na criminalização prévia sociedades modernas, é refratário à garantia da cidadania entre ambos.
da população ali residente o viés que marca e da população favelada quando se coloca em questão, real Elemento complicador dessa relação é, sem
limita a atuação da burocracia do Estado em ou retoricamente, o combate à violência. O caso do Rio de dúvida, o recurso de muitos(as) moradores(as)
Janeiro – ver Leite (2001) – encontra correspondência em
relação a suas queixas e exigências quanto a de recorrer aos chefes das quadrilhas de tráfico
outras grandes cidades brasileiras como São Paulo,
inquéritos, procedimentos e reparações, usual- conforme demonstram os estudos realizados por Caldeira de drogas para, por exemplo, resolver problemas
mente respondidas com indiferença, desrespeito (2000), Pierucci (1987) e Zaluar (1995). Os resultados pessoais e arbitrar conflitos com vizinhos(as), em
da pesquisa Lei, Justiça e Cidadania são elucidativos a detrimento da mediação que lhes pode oferecer a
esse respeito, ao mostrarem como coexistem, na Região
associação de moradores, pelo fato de não terem
Metropolitana do Rio de Janeiro, o desconhecimento
12 Sobre os pontos destacados, ver os estudos de Caldeira por parte dos(as) cidadãos(ãs) de seus direitos e das acesso à justiça para a solução desses conflitos.
(2000), para o caso de São Paulo, e de Leite (2001), garantias legais e uma percepção dos direitos das Esse procedimento termina por legitimar o poder
Mello (2001) e Ribeiro (2003), para o Rio de Janeiro. outras pessoas que admite a violação dos direitos civis das quadrilhas de traficantes de drogas nesses
13 Para a análise de alguns casos, ver Leite (1995; 2001). sob o argumento do controle da criminalidade: 63,4%
locais, propiciando um forte argumento às teses
O número de mortos em confrontos com as polícias dos(as) entrevistados(as) concordam totalmente (e 6,9%
militar e civil subiu de 397 (em 1998) para 834 (em 2002), tendem a concordar) que os bandidos não devem ter de “conivência” com base na escolha da lei do
evidenciando o que há muito se sabe: a polícia do Rio é direitos respeitados; 51,8% toleram linchamentos, tráfico em vez da lei da nação como fundamento
uma das que mais matam no Brasil, pois o confronto mesmo quando consideram errado esse tipo de da sociabilidade nas favelas.
direto é a estratégia privilegiada para combater a violência civil (40,6%). Por fim, 40,4% justificam o uso
A esse respeito, contudo, vale lembrar que o
criminalidade. Dados do Anuário Estatístico do Núcleo de métodos violentos para confissão de suspeitos(as)
de Pesquisa e Análise Criminal da Secretaria de em alguns casos, ao passo que 4,1% justificam sempre recurso ao poder do tráfico nos territórios favela-
Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, a violência policial. Esses dados indicam “um forte dos decorre da própria modalidade de presença do
divulgados pelo Jornal do Brasil em 30 de dezembro de compromisso com uma idéia mínima de direito civil (a Estado nesses locais, onde, como ressaltam Silva e
2002. Para a apresentação e discussão das estatísticas integridade física de pessoas sob a guarda do Estado)”
colaboradores, “não há qualquer institucionalida-
relativas a homicídios no Brasil e no estado, ver Cano (Carvalho et al.,1997, p. 44).
(2003) e Ramos e Lemgruber (2004). de acessível e confiável para regular as relações
16 Para exemplos desses processos no Rio de Janeiro, em
14 Consultar sobre o tema os artigos reunidos em São Paulo e em Belo Horizonte, além da bibliografia cotidianas da comunidade”. Refletindo sobre essas
Birman e Leite (2004) e os casos descritos em Justiça anteriormente indicada, consultar respectivamente Leite circunstâncias, os autores lançam a mesma ques-
Global (2004). (2001), Ferreira (2004) e Andrade (2004). tão para quem vive fora das favelas:

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[...] não é incomum que variados grupos e humanos, contra a violência e pela cidadania, líde- para não serem coniventes com a criminalida-
setores da própria formação brasileira não res de movimentos de organização de base em de violenta, reconhecia não ser possível entrar
recorram aos trâmites legais e às instituições
favelas e dirigentes de suas organizações comu- “em conflito com o poder dos bandidos” e ar-
pertinentes para a resolução de seus problemas
individuais ou coletivos. Se falta a expectativa de nitárias. Entretanto, elas pouco têm sido ouvidas, gumentava: “O tráfico é a coroa de espinhos na
que podemos recorrer às instâncias formais para diluídas pelo discurso da “guerra” ou desqualifica- cabeça do povo”.20
dirimir conflitos ou satisfazer precariedades, o das como uma opção pelos “direitos dos bandidos” De fato, tal como os padres, moradores(as)
que dizer de esferas de sociabilidade que não em detrimento dos direitos (à vida, à propriedade, e líderes de favela andam em uma corda bamba ,
contam com a presença efetiva da à liberdade de ir e vir) das “pessoas de bem”. entre dois fogos: não confiam em policiais, mas tam-
institucionalidade estatal ou pública? Quem
Protestos e ações coletivas nas/das favelas, bém não podem se opor frontalmente a trafican-
recorre ao tráfico nas favelas repete um
procedimento lamentavelmente usual no particularmente aqueles contra a violência policial, tes, nem denunciá-los à polícia. Espancamentos,
conjunto da sociedade: remete-se às são respondidos com a criminalização de quem ali humilhações diversas, castigos, estupros, assas-
instâncias de poder que são “acessíveis”. Não se vive: representantes do Estado usualmente argu- sinatos e casos de expulsão de suas casas fazem
deve fazer do reconhecimento deste fato o elogio mentam que as vítimas da violência policial per- parte do repertório de respostas dos bandos ar-
de uma razão cínica, que transforma o vício tencem a quadrilhas de traficantes e que estes or- mados àquelas pessoas que ousam lhes resistir.
em virtude. Mas não se pode negar a existência
deste dispositivo de reprodução cotidiana de
ganizariam os protestos, submetendo dirigentes das Em decorrência, são intensos os deslocamentos de
pessoas cercadas por todos os fogos. associações de moradores de favelas à sua políti- quem se opõe a traficantes, até mesmo de muitos(as)
A insegurança pessoal e o medo correspondente ca. Dessa forma, eximem-se de reconhecer como dirigentes de associações de moradores e de ou-
são características fundamentais da vida legítimas as demandas pelo respeito aos direitos tras organizações comunitárias forçados(as) a
cotidiana nas favelas cariocas. (2005, p. 5) civis de moradores e moradoras de favelas e esva- migrar para outras favelas. Durante muitos anos,
Do ponto de vista das pessoas que entrevis- ziam suas críticas à banalização da violência nes- entretanto, esses deslocamentos eram tão inten-
tei, a questão central desse debate é: se a violên- ses locais pela ação de policiais e traficantes.17 sos quanto invisíveis, pois, em virtude da confi-
cia tem sido uma das faces das favelas, nem ela Nesse contexto, ganham importância as crí- guração que examinamos, não eram percebidos
está só nesses locais, nem as favelas são só vio- ticas da Igreja Católica, um ator que tradicional- como uma das modalidades de violência que o
lência, como freqüentemente supõem moradores mente tem legitimidade perante o Estado e a socie- tráfico de drogas impõe à cidade.21
e moradoras dos bairros. Em relação ao primeiro dade para falar no espaço público por seu “reba- Vários depoimentos que recolhi também re-
ponto, destacam especialmente as conexões do nho”.18 Representantes da hierarquia da Igreja e latam ameaças e perseguições de policiais a líderes
tráfico de drogas fora das favelas e os limites da militantes católicos(as) têm se pronunciado publi- de favelas e dirigentes de organizações comuni-
política de segurança pública quanto ao seu com- camente a respeito das intimidações praticadas tárias com todas as suas conseqüências em termos
bate. Já ao se referirem ao segundo ponto, não por quadrilhas de traficantes sobre a população de isolamento e vulnerabilidade. São efeitos de
aludem a uma compreensão intelectual da questão. residente em favelas, pondo em destaque o des- difícil alteração, sem acesso ao espaço público,
Ao contrário, reconhecem que a maioria dos(as) potismo do tráfico e relativizando a possibilidade sem apoio da mídia e/ou de outros atores e movi-
moradores(as) dos bairros é capaz de, em tese, de resistir a ele sem a proteção permanente e eficaz mentos sociais. Esses casos, quando noticiados,
discriminar entre a gente boa e honesta que mora das forças de segurança pública.19 Dom Felipe não lograram cobertura na imprensa similar à que
no morro e os bandidos e traficantes. Santoro, bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de foi dada à violência produzida pelas mesmas qua-
Entretanto, ao entrarem em contato com os(as) Janeiro, por exemplo, ao denunciar que traficantes drilhas sobre moradores(as) dos bairros.
moradores(as) das favelas, fazem-no a partir do escondem armas e drogas em igrejas situadas nas O deslocamento forçado, porém, não é uma
fantasma da violência e com base no estigma asso- favelas, ponderou que, apesar de alertar os padres modalidade de violência produzida apenas por
ciado às favelas: serão criminosos(as), traficantes? narcotraficantes. Muitos(as) moradores(as), líde-
Assim, quando dizem que as favelas não são só res de favelas e dirigentes de suas organizações
violência, o que reivindicam os(as) entrevistados(as) comunitárias também vêm sendo expulsos(as) de
é não serem abordados(as) e tratados(as) como seus locais de moradia por policiais quando não
favelados(as), mas sim serem reconhecidos(as) 17 Essa foi, por exemplo, a reação das autoridades de se submetem a suas práticas corriqueiras de
segurança pública do estado do Rio de Janeiro às
como moradores e moradoras da cidade, cidadãos extorsão, brutalidade e desrespeito aos direitos
manifestações do Movimento Popular de Favelas (MPF),
e cidadãs, seres humanos. organizado em 2000 e congregando cerca de 60 humanos e/ou quando as denunciam. Em todas
De outro ângulo, destacam e criticam o poder dirigentes de associações de moradores e organizações as situações, a expulsão é um golpe terrível na
despótico que os traficantes detêm nas favelas e comunitárias das favelas. Ao esvaziarem politicamente o vida dessas pessoas. Obrigadas a abandonar seus
MPF, que reivindicava cidadania plena para
que exercem sobre (e contra) as pessoas que ali locais de moradia, perdem a posse das casas
moradores(as) de favelas, tendo por eixo a luta contra a
residem, em especial, dirigentes comunitários(as). violência da polícia e do tráfico de drogas, as (logo ocupadas pelo tráfico) e de seus bens, suas
Sustentam, contudo, que falar publicamente con- autoridades públicas solaparam uma importante ruptura redes de sociabilidade e suas referências terri-
tra o despotismo do tráfico, expondo-se a retalia- com a posição usual desses segmentos de não toriais, bases de sua identidade de morador(a).
confrontar traficantes (Leite, 2003 b).
ções e ameaças, é uma alternativa disponível ape- Além disso, muitas vezes perdem também seus
18 Ainda que, com as recentes mudanças no campo religioso
nas para as lideranças mais antigas e prestigiadas pequenos negócios nas favelas e, assim, suas
brasileiro e, especialmente, com o crescimento das igrejas
de favelas, conhecidas e respeitadas por mora- evangélicas, essa posição não seja mais monopólio da alternativas de sobrevivência.
dores e moradoras que representam, por quem Igreja Católica. Ver a respeito Birman e Leite (2004).
vive em outras favelas e/ou quem integra ou apóia 19 A defesa dos direitos humanos tem sido, desde a
o movimento de organização de base em favelas. ditadura (1964–1984), uma linha de atuação importante
da Igreja Católica no Brasil, comprometendo não só a 20 “Tráfico tenta até esconder armas e drogas em igrejas.
E, mesmo assim, dentro de certos limites. Ou seja, Bispo diz que padres precisam pedir licença para
chamada Igreja da Libertação, mas também setores da
depende de reconhecimento e apoio social dentro hierarquia católica tradicional. Vale notar que seu eixo procissão”, O Globo, 22 de junho de 2002.
e fora dos territórios favelados. foi se deslocando desde então e à proporção que se 21 Além dos muitos casos que chegaram a meu
alteraram os grupos especialmente vulneráveis à ação conhecimento por relatos de terceiros(as), dois
Crime violento e direito à cidade violenta e autocrática dos aparatos de Estado: do foco presidentes de associações de moradores que
em presos(as) políticos(as) durante a ditadura a entrevistei foram assassinados e mais de uma dezena de
Decerto há críticas à estigmatização das favelas e presos(as) comuns, bandidos (muitas vezes outros líderes foi obrigada a se afastar das associações
de quem lá vive, especialmente por parte de inte- sumariamente executados pela polícia) e, mais e/ou de seus locais de moradia. Sobre o tema, ver Leite
lectuais, militantes de movimentos de direitos recentemente, moradores(as) de favelas. (2001) e Miranda e Magalhães (2004).

Observatório da Cidadania 2005 / 69


Desafios da ação coletiva moradoras de favelas também vêm procurando dar LAGO, Luciana Corrêa do. Avaliação crítica dos trabalhos
sobre segregação residencial urbana em São Paulo e
No caso específico dos(as) dirigentes comuni- visibilidade às modalidades de violência que sofrem
no Rio de Janeiro . 2005. Disponível em: <http://
tários(as), a expulsão também representa sua des- nesses locais e, ao mesmo tempo, legitimar suas www.ippur.ufrj.br/observatorio/download/
qualificação política. As associações de moradores demandas por segurança e justiça como direitos lago_segregacao.pdf>. Acesso em: jun. 2005.
de favelas são representações territoriais. Pertencer de cidadania que também lhes concernem.23 LEITE, Márcia Pereira. As mães em movimento. In: BIRMAN, P.;
Trazendo esses temas para o debate público, LEITE, M. P. Um mural para a dor: movimentos cívico-
a um território favelado, conviver com os(as) mora-
religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
dores(as), submeter-se às mesmas condições de buscam conquistar apoio e produzir alianças, pro-
. Imagens, escolhas e dilemas de uma cidade em pé
vida e moradia, participar de suas lutas e projetos, curando fazer com que suas reivindicações sejam de guerra, Revista Proposta, ano 23, n. 66, Fase,
enfim, das experiências do cotidiano em uma deter- incorporadas às estratégias de ação coletiva de set./dez. 1995.
minada territorialidade é a base da condição de atores e movimentos sociais pela paz e pela cida- . Miedo y representación comunitaria en las favelas
representação. Ser cria do morro, ser morador(a) dania no Rio de Janeiro e, sobretudo, atendidas pelo de Rio de Janeiro: los exilados invisibles de la violência ,
Conferencia Flujos translocales: Ciudades, desigualda-
antigo(a) que conhece os seus problemas e sabe as aparato estatal. Reivindicam, assim, uma paz que
des y subjetividad en las Américas, Social Science
soluções possíveis é usualmente percebido como os(as) inclua, confrontando a criminalização sofri- Research Council, México, 2003 a.
uma das condições para bem representar o con- da e criticando a concepção restritiva de cidada- . Novas relações entre identidade religiosa e
junto de moradores e moradoras desses territórios. nia, o medo e a insegurança correlatos. Se forem participação política no Rio de Janeiro hoje: o caso do
bem-sucedidos(as), incidirão vigorosamente sobre Movimento Popular de Favelas. In: BIRMAN, P. Religião
Entretanto, ameaçados(as) pelas quadrilhas
e espaço público. São Paulo: Attar, 2003 b.
de traficantes de drogas ou pela polícia, dirigen- a sociabilidade que se tece nesta cidade. O desafio
. Para além da metáfora da guerra: percepções
tes das associações de moradores de favelas são que enfrentam é o de ampliar, democratizando-o, sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro
obrigados(as) a renunciar a seus cargos, afastan- o direito à cidade no Rio de Janeiro. carioca. 2001. Tese (Doutorado em Sociologia) –
do-se de suas entidades e/ou forçados(as) a aban- Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
donarem as favelas, abrindo mão não só de sua
moradia, mas também da condição que fundamenta
Referências Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
MELLO, Marco Antônio. Selva de Pedra: apropriações e
e legitima sua atividade política.22 Isso cria proble- ANDRADE, Luciana T. de et al. Espaços públicos: novas
reapropriações dos espaços públicos de uso coletivo no
sociabilidades, novos controles. Trabalho apresentado
mas a essas lideranças, à organização de base em Rio de Janeiro. In: ESTERCI, N.; FRY, P.; GOLDEMBERG,
ao 28º Encontro Anual da Anpocs, seminário temático
M. (Orgs.). Fazendo antropologia no Brasil. Rio de
favelas e aos movimentos sociais a elas vinculados. Metrópoles: segmentação, sociabilidade e cidadania,
Janeiro: DP&A, 2001.
O que fazer para enfrentar o medo e dar continui- 2004. Não publicado.
MIRANDA, Moema; MAGALHÃES, Paulo. Reflexões a partir
dade à atividade política tanto nos territórios fave- BIRMAN, Patrícia; LEITE, Márcia P. Um mural para a dor:
da Agenda Social. In: MACHADO DA SILVA, L. A. et al.
movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto
lados como no espaço público? Como reverter as Rio: a democracia vista de baixo. Rio de Janeiro:
Alegre: UFRGS, 2004.
perdas territoriais, identitárias e políticas e recons- Ibase, 2004.
. What happened to what used to be the largest
tituir de outro lugar na cidade sua relação com PIERUCCI, Anntônio Flávio. As bases da nova direita. Novos
catholic country in the world?. Daedalus – Journal of
Estudos , São Paulo, 19, 1987.
moradores(as) e ativistas das favelas? the American Academy of Arts and Sciences, Richmond,
EUA, 129, 2, 2000. PRETECEILLE, Edmond; VALLADARES, Lícia. Favela, favelas e
Violência, insegurança e medo não são prerro- desigualdades socioespaciais. Trabalho apresentado ao
BURGOS, Marcelo. Dos parques-proletários ao Favela-
gativas dos(as) habitantes do “asfalto” na cidade seminário O Futuro das Metrópoles: Impactos da
Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de
do Rio de Janeiro, mas fazem parte do cotidiano Metropolização, Teresópolis, 1999. Não publicado.
Janeiro. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Orgs.). Um século
de muitos(as) moradores(as) de favelas. Se quem de favelas. Rio de Janeiro: FGV, 1998. RAMOS, Silvia; LEMGRUBER, Julita. Criminalidade e
respostas brasileiras à violência. OBSERVATÓRIO DA
mora nos bairros tenta se proteger da violência CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: crime,
CIDADANIA: medos e privações – obstáculos à
com aparatos de segurança, controlando horários segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo:
segurança humana, Rio de Janeiro: Ibase, 2004.
ed. 34, 2000.
e itinerários e evitando os espaços públicos, as RIBEIRO, Luiz César de Queiroz (Org.). Metrópoles: entre a
CANO, Ignacio. Execuções sumárias no Brasil: o uso da
alternativas para quem vive nas favelas parecem força pelos agentes do Estado. In: JUSTIÇA GLOBAL.
cooperação e o conflito. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
se encontrar em outro campo. É verdade que o Execuções sumárias no Brasil: 1997-2003. Centro de . Rio de Janeiro: exemplo de metrópole partida e
sem rumo?. Novos Estudos, São Paulo. 45, 1996.
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Janeiro: 2003. et al. Proximidade territorial e distância social:
cantes de drogas ainda é amplamente dominante
CARVALHO, José Murilo et al. Lei, justiça e cidadania: direitos, reflexões sobre o efeito do lugar a partir de um enclave
nesses territórios, mas já parece ser possível, em urbano. A Cruzada São Sebastião no Rio de Janeiro.
vitimização e cultura política na região metropolitana do
certas circunstâncias, decerto ainda muito restritas Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 1997. Trabalho apresentado ao 27º Encontro Anual da Anpocs,
e protegidas, enunciar e denunciar a criminalidade 2003. Disponível em: <http://www.ippur.ufrj.br/observatorio/
FARIAS, Juliana. “Posso me identificar?” Moradores de favelas
download/texto_lcqr_cruzada.pdf>. Acesso em: jun. 2005.
violenta. Por outro lado, é preciso ressaltar que, por justiça, cidadania e direito à cidade. Revista Proposta,
Rio de Janeiro, ano 29, n. 104, mar./maio 2005. SILVA, Luiz Antônio Machado da. A política na favela.
em muitas de suas ações coletivas, moradores e Cadernos Brasileiros, IX, 41, 1967.
FERREIRA, M. Inês Caetano. Trajetórias urbanas de
. O problema da favela. In: OLIVEIRA, L. (Org.).
moradores de favelas do sofisticado distrito da Vila
Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
Andrade: os processos de disputa pelos bens urbanos
numa realidade de segregação socioespacial. Trabalho . Sociabilidade violenta: por uma interpretação da
22 De acordo com os dados de pesquisa realizada pela criminalidade contemporânea no Brasil urbano. In:
apresentado ao 28º Encontro Anual da Anpocs,
Comissão de Direitos Humanos e Justiça da Assembléia
seminário temático Metrópoles: segmentação, RIBEIRO, L. C. de Queiroz (Org.). Metrópoles: entre a
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, divulgados pelo
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deputado Carlos Minc em diversos pronunciamentos
INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE. Rio et al. As dominações, a violência e o direito à
públicos, no período compreendido entre 1992 e 2001,
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Metropolitana do Rio de Janeiro foram assassinados(as), 2002. Número especial. SOARES, Luiz Eduardo et al. Violência e política no Rio de
expulsos(as) ou cooptados(as) por traficantes. Desse total, JUSTIÇA GLOBAL. Violência policial e insegurança pública: Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
metade estaria associada ou submetida às quadrilhas de Relatório Rio. Rio de Janeiro: Centro de Justiça Global, 2004. VALLADARES, Lícia. A gênese da favela carioca. A produção
narcotraficantes sediadas nos territórios favelados; 300 anterior às ciências sociais. Revista Brasileira de
teriam sido expulsos(as) de seus locais de moradia e, pelo Ciências Sociais , 15, 44, 2000.
menos, cem teriam sido mortos(as) por traficantes (O Globo, ZALUAR, Alba. O medo e os movimentos sociais. Proposta,
20 de junho de 2002). Esses dados têm sido usados pela n. 66, 1995.
mídia sobretudo como argumento relativo à tese da 23 Refiro-me, entre outros, aos movimentos “Posso me
conivência da população favelada com a criminalidade identificar?”, “Mães do Rio” e “Rede de Comunidades e
violenta. Assim, no mínimo se desconhece a dimensão de Movimentos Sociais contra a Violência”. Para uma
resistência/confrontação que o número das expulsões e primeira leitura a respeito desses movimentos, consultar
mortes indica. A respeito disso, ver Leite (2003 a). Birman e Leite (2004) e Farias (2005).

Observatório da Cidadania 2005 / 70


PANORAMA MUNDIAL
Observatório da Cidadania 2005 / 72
ALEMANHA

Metas de Copenhague ainda muito distantes


O fato de a Alemanha ser um dos países mais industrializados do mundo não evitou o crescimento
ininterrupto do número de pessoas vivendo em situação de risco de pobreza, a redução no poder
de compra dos trabalhadores e trabalhadoras e maior desigualdade na distribuição de renda.
As mulheres continuam a receber salários 20% menores do que os dos homens pelo mesmo tipo
de trabalho, e a ajuda para o desenvolvimento ficou estacionada em 0,28% da renda nacional
bruta em 2004.

Observatório da Cidadania da Alemanha de 15 anos (atualmente 15%, em comparação com calculava7 que o poder de compra dos trabalha-
Cúpula do Fórum Social Mundial 13,8% em 1998), adolescentes e jovens adultos(as) dores tinha diminuído “numa média anual de 0,7%”
Uwe Kerkow (19,1%, em comparação com 14,9% em 1998) e entre 1991 e 2000. “No total, houve uma queda
desempregados(as) (40,9%, em comparação com de 5,9% no poder de compra, desde 1991”.8
“Lucros crescem fortemente, salários estagnados”
33,1% em 1998). Pessoas solteiras com filhos(as),
foi a manchete de um dos principais jornais diá-
na maioria mulheres, são especialmente atingidas: Famílias endividadas
rios da Alemanha no início de 2005. O texto infor-
seu risco de pobreza tem se mantido sem altera- Em vista desses acontecimentos, não é nenhuma
mava que, somente em 2004, a renda nacional
ções em 35,4%, desde 1998. surpresa que exista um hiato crescente na distribui-
tinha crescido 3%, atingindo 1.616 trilhão de
Tendo em vista o alto índice de pobreza in- ção da riqueza privada da Alemanha, estimada em
euros (US$ 2.006 trilhões). No entanto, há gran-
fantil, Jürgen Gohde, presidente da Diakonisches 5 trilhões de euros (US$ 6,44 trilhões). Enquanto
des hiatos na distribuição dessa renda. Enquanto
Werk, a organização da Igreja Protestante alemã para as famílias da metade inferior da escala de rendas
a assistência governamental às pessoas necessi-
trabalho social e de assistência, exigiu que o gover- “possuem menos de 4% da riqueza líquida total,
tadas e os salários estavam estagnados em 1.132
no federal adotasse medidas especiais em políticas as 10% famílias mais ricas [...] são proprietárias
trilhão de euros (US$ 1.405 trilhão), “houve um
da família, quando falava numa conferência de im- de cerca de 47%. A proporção do que as 10%
aumento substancial, de 10,4%, na renda gerada
prensa organizada pelo Observatório da Cidadania pessoas mais ricas detinham aumentou uns 2%,
pelas atividades empresariais e pelos ativos de
da Alemanha, no dia 11 de março de 2005. “O índi- entre 1998 e 2003”, observava o Segundo Rela-
capitais, atingindo atualmente 484 bilhões de
ce mais alto de dependência da assistência social tório sobre Pobreza e Riqueza.9
euros (US$ 601 bilhões)”.1
está entre menores de 3 anos”, afirmou Gohde,5 e A crescente desigualdade fica clara no au-
Essa notícia não foi surpresa, pois, um mês
esse é o motivo da urgência de adotar uma “renda mento da dívida de muitas famílias. O relatório
antes, o governo federal tinha publicado uma ver-
básica para as crianças”. O compromisso 2 da De- observava que “o número total de famílias muito
são preliminar do Segundo Relatório sobre Pobreza
claração de Copenhague obrigava os Estados sig- endividadas aumentou 13% entre 1999 e 2002 –
e Riqueza, intitulado Situações de vida na Alema-
natários a “reduzirem substancialmente a pobreza de 2,77 milhões para 3,13 milhões”.10 Enquanto
nha . O documento revelava que o crescimento
no menor tempo possível”. “Em muitas áreas”, dis- 1.634 consumidores e consumidoras declararam
uniforme do índice de risco de pobreza2 entre 1983
se Gohde, “ainda temos que percorrer um longo falência em 1999, esse número disparou para 9.070
e 1998 havia continuado nos cinco anos subse-
caminho para alcançar as metas de Copenhague”. em 2001. Em 2003, 32.131 pessoas fizeram soli-
qüentes. Em 2003, 13,5% das pessoas residentes
A causa principal do crescimento do risco de citações de certidões formais de insolvência.
na Alemanha corriam alto risco de pobreza, ao
pobreza na Alemanha é o fato de que cada vez um O índice de risco de pobreza para as mulhe-
passo que esse percentual era de 12,1% em 1998.3
número maior de pessoas depende da assistência res cresceu de 13,3% para 14,4%, entre 1998 e
O relatório também destacava muitas das
governamental de forma permanente.6 Contudo, 2002. Não representa nenhum consolo saber que
debilidades das políticas sociais: os índices mais
sem contar o fato de que cada vez mais um número as estatísticas para os homens estão atualmente
altos de risco de pobreza4 afetam crianças menores
menor de pessoas têm emprego adequado, o cres- se aproximando dos dados das mulheres, em virtu-
cimento das rendas de salários também indica um de do aumento do percentual de homens em risco
falta de equilíbrio financeiro. Isso fica claro ao exa- de pobreza. Enquanto 13,3% das mulheres e
1 Süddeutsche Zeitung, 14 jan. 2005, p. 19.
minarmos as tendências salariais nos anos recen-
2 Lebenslagen in Deutschland. Der 2. Armuts - und
Reichtumsbericht der Bundesregierung [Situações de tes: em 2001, a Confederação Alemã de Sindicatos
vida na Alemanha. Segundo Relatório sobre Pobreza e
Riqueza do governo federal], versão preliminar de 14 de
dezembro de 2004. Infelizmente, o relatório não mede a
pobreza relativa. No lugar disso, utilizando complexos 7 “Zur Einkommensentwicklung in Deutschland:
métodos estocásticos, calcula o número de pessoas que Arbeitnehmerkaufkraft seit 1991 stetig gesunken”
correm o risco de se tornarem relativamente pobres. [Tendências da renda na Alemanha: o poder de compra
5 A conferência de imprensa marcou o décimo aniversário
Isso mostra que o risco de pobreza é especialmente alto dos trabalhadores cai continuamente desde 1991],
da Declaração de Copenhague, adotada na Cúpula
para as pessoas que têm menos de 60% do valor Executiva Nacional da DGB, 06/01, 18 de setembro de
Mundial sobre Desenvolvimento Social, em 1995.
mediano da renda disponível da família média, ponderada 2001, p. 5. Disponível em: <www.igmetall.de/download/>.
6 Lebenslagen in Deutschland, op. cit., p. 54. Em 1980,
de acordo com a nova escala da Organização para a 8 Não foi possível mudar essa tendência recentemente,
esse número era inferior a 1 milhão de pessoas; em
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). como fica claro no primeiro parágrafo deste relatório.
1990, era um pouco menos de 2 milhões e, desde 2000,
3 Ibidem, p. 15. esse número tem permanecido em torno de 3 milhões, 9 Lebenslagen in Deutschland, op. cit., p. 24.
4 Ibidem, p. 17. incluindo 2 milhões de cidadãos e cidadãs alemães. 10 Ibidem, p. 26.

Observatório da Cidadania 2005 / 73


10,7% dos homens corriam alto risco de pobreza As perspectivas educacionais das crianças filhas 0,28% da renda bruta nacional.19 Em 2002, o go-
em 1998, esses percentuais subiram quatro anos de imigrantes ou de famílias socialmente neces- verno federal prometeu formalmente aumentar os
depois para 14,4% e 12,6% das mulheres e dos sitadas são muito piores do que as de crianças gastos com a AOD para 0,33% da renda bruta
homens, respectivamente.11 de famílias abastadas. De acordo com o Segundo nacional até 2006. O ministro do Desenvolvimento,
A Alemanha ainda tem um considerável ca- Relatório sobre Pobreza e Riqueza do governo Heidemarie Wieczorek-Zeul, comentou, de forma
minho a percorrer em relação à distribuição de federal, 81% das crianças de famílias com status autocrítica, que o governo federal “ainda precisa
renda de acordo com os gêneros. O sindicato da socioeconômico mais alto atingiram um nível edu- realizar um considerável esforço” para atingir essa
indústria metalúrgica, IG Metall, faz referência ao cacional que lhes dá direito a entrar na universi- meta imposta a si próprio.20
“progresso a passo de cágado”. “Caso os salários dade. O percentual para as crianças de grupos O governo federal teve de engolir críticas
das mulheres na Alemanha Ocidental continuem populacionais classificados como de baixo status igualmente fortes das ONGs que trabalham na área
a se aproximar dos salários dos homens no mes- social era somente de 11%.15 Taxas universitárias de desenvolvimento. Em março de 2005, Peter
mo ritmo dos últimos 40 anos, serão necessários estão sendo atualmente cobradas em muitos es- Mucke, diretor executivo do Terre des Hommes,
no mínimo outros 40 anos para que as trabalha- tados, uma tendência que provavelmente aumen- resumiu as reivindicações principais de muitas
doras de atividades administrativas e intelectuais tará ainda mais essas desigualdades. ONGs de desenvolvimento ao governo federal.21
e muito mais de 70 anos para as mulheres que Um vislumbre de esperança numa visão ge- Ele exortava o governo federal a:
realizam tarefas manuais possam alcançar seus ral sombria das tendências sociais e políticas dos • adotar um programa passo a passo para atin-
colegas masculinos”.12 Pela média de todos gru- últimos anos é a forte queda no número das pes- gir a meta de 0,7% da renda bruta nacional
pos ocupacionais, as mulheres ainda recebem soas sem teto. Em 1998, cerca de 530 mil esta- em gastos para o desenvolvimento até 2010;
20% a menos do que seus colegas homens para vam registradas como sem moradia, incluindo
• dar apoio ao lançamento de um Fundo de
realizar o mesmo trabalho. No caso das enge- aquelas em risco direto de se tornarem sem-teto
Financiamento Internacional (IFF, na sigla em
nheiras, essa diferença atinge 30,7%. (emergências habitacionais). Em 2002, esse nú-
inglês) como um marco temporário, com a
mero tinha caído 38%, para cerca de 330 mil, inclu-
introdução de impostos internacionais sobre
Acesso desigual à educação indo 75 mil mulheres (23% do total) e 72 mil crian-
a aviação internacional e a especulação com
Nos últimos anos, falhas importantes foram iden- ças e adolescentes (22% do total).16
moedas, como forma de refinanciar o IFF;
tificadas no sistema educacional da Alemanha.
Em especial, de acordo com o Programa para a Ajuda para o desenvolvimento estagnada • assumir o compromisso de trabalhar de for-
Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa, na “Hoje, política de desenvolvimento é política estru- ma proativa para conseguir substanciais
sigla em inglês) da Organização para a Cooperação tural global, que tem como objetivo melhorar as medidas adicionais de alívio da dívida e por
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a quali- condições econômicas, sociais, ambientais e políti- um processo justo e transparente de media-
dade do ensino de matemática somente chega à cas nos países em desenvolvimento. É orientada, ção para os países endividados. Isso deve
média dos países da OCDE. A Alemanha está clas- entre outras coisas, pela visão do desenvolvi- ser baseado num conceito mais amplo de
sificada abaixo da Coréia do Sul, de Hong Kong e mento global sustentável”, diz o acordo da coalizão sustentabilidade da dívida, que também le-
Macau, e seu desempenho medíocre desencadeou entre o Partido Socialdemocrata e a Aliança 90/ varia em conta indicadores de desenvolvi-
um debate público no país.13 Partido Verde, que está no poder desde outubro mento social;
No entanto, um escândalo muito maior em de 1998.17 • comprometer-se com uma iniciativa articu-
termos de políticas sociais tem sido, em grande Infelizmente, essa nova orientação política lada para eliminar progressivamente os sub-
parte, ignorado: em praticamente nenhum outro não foi acompanhada de compromissos financei- sídios europeus às exportações agrícolas;
país da OCDE os resultados educacionais e o ros adequados. Ao contrário, enquanto a Ajuda • usar sua influência para democratizar os pro-
nível de escolaridade (assim como a educação Oficial para o Desenvolvimento (AOD) represen- cessos de decisão do Fundo Monetário Inter-
universitária) são tão dependentes do status tava 0,42% da renda bruta nacional em 1990, esse nacional (FMI) e do Banco Mundial e para es-
socioeconômico dos pais quanto na Alemanha.14 percentual caía para 0,26% em 1998. Desde aquela tabelecer um órgão de alto nível responsável
época, o financiamento para o desenvolvimento pelos temas econômicos e financeiros inter-
estagnou-se em nível baixo. Em 2000, a AOD repre- nacionais, no marco das Nações Unidas.
sentava 0,27% da renda bruta nacional e teve um
11 Ibidem, p. 17.
pequeno aumento para 0,28%, em 2003.18 Novas fontes
12 Ver <www.igmetall.de/daten_fakten_grafiken/direkt/
Em 2004, a política de desenvolvimento ale- Houve algum avanço na posição do governo ale-
einkommen/index.html>. Em 3 de março de 2004, o
Escritório Federal de Estatística (Statistisches mã também estava estagnada em termos finan- mão durante a preparação da Cúpula do Milênio+5,
Bundesamt, Destatis) publicou os resultados de sua ceiros, com a AOD ainda representando somente que foi realizada em setembro de 2005. Embora o
comparação das rendas de homens e mulheres em
governo tivesse rejeitado por anos a idéia de um
2003. O documento afirmava que a renda média das
mulheres em 2003 tinha sido 30% inferior à renda programa obrigatório de passo a passo para atingir
média dos homens (ver o texto “New evidence on
gender wage gap and low pay”, disponível em
<www.eiro.eurofound.eu.int/2004/04/feature/
de0404205f.html>). 15 Lebenslagen in Deutschland, op. cit., p. 84 e 88. 19 Comunicado de imprensa da BMZ n. 35/2005, 11 abr.
13 Programa para a Avaliação Internacional de Estudantes 16 Ibidem, p. 46. 2005, disponível em: <www.bmz.de/de/presse/pm/
da OCDE. First Results from PISA 2003, Executive 17 Ver, por exemplo, <www.bmz.de/de/service/infothek/ presse200504111.html>.
Summary. Paris, 2003. Disponível em: fach/spezial/spezial42/spezial042_1.html>. 20 Ibidem.
<www.pisa.oecd.org>. 18 Ver as edições de 2001 a 2004 do relatório do 21 Conferência de imprensa do Observatório da Cidadania
14 Ibidem, p. 20-23. Social Watch. da Alemanha, 11 de março de 2005.

Observatório da Cidadania 2005 / 74


a meta de 0,7%, os ministros de Relações Exteri- dos fundos formalmente prometidos têm sido de
ores e de Desenvolvimento agora têm defendido fato aprovados; e, mesmo nesses casos, somen-
essa posição publicamente.22 te na forma de empréstimos”.25 É também questio-
Até recentemente, impostos internacionais nável a adequação de algumas formas de ajuda,
eram um assunto tabu para o chanceler e seu como a doação aos países atingidos pelo tsunami
ministro da Fazenda, porém no Fórum Econômico de barcos pesqueiros que estavam fora de serviço
Mundial de Davos (janeiro de 2005) e na reunião na União Européia.26
da primavera do FMI e do Banco Mundial, em abril Entretanto, o que merece ser notado é o grau
de 2005, eles expressaram publicamente seu de solidariedade internacional manifestado pela po-
apoio à introdução desses impostos. Um com- pulação alemã, em seguida ao desastre. Este povo
promisso de vários anos com o financiamento emitiu um claro sinal que o governo faria bem em
para o desenvolvimento foi rejeitado pelo ministro considerar em sua política de desenvolvimento.
da Fazenda, alegando as regras da legislação orça-
mentária alemã, porém isso parece não constituir
mais um problema para financiar o IFF.
Um sinal público dessa mudança de política
foi a entrada da Alemanha no “Grupo do Lula” –
composto pelo Brasil, França, Chile e Espanha –,
depois de uma reunião entre o chanceler Gerhard
Schröder e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
no Fórum Econômico Mundial de Davos. Esse
Grupo trabalha ativamente para identificar fontes
inovadoras de financiamento para o desenvolvi-
mento, especialmente impostos coordenados no
plano internacional.23

Um show de solidariedade
O desastre causado pelo tsunami na Ásia Meridio-
nal e no Sudeste Asiático deslanchou uma res-
posta sem precedentes na Alemanha. Em parte,
isso pode ter acontecido pelo fato de o desastre
ter atingido diretamente turistas alemães que es-
tavam de férias no sul da Tailândia e em Sri Lanka.
Nas primeiras semanas após o desastre e suas
conseqüências, houve uma cobertura detalhada,
especialmente na mídia eletrônica. Durante os pri-
meiros dois meses depois do tsunami , foram
coletados mais de 500 milhões de euros (US$ 621
milhões) em doações privadas. O governo federal
prometeu formalmente mais 500 milhões de euros
de ajuda, distribuída ao longo de cinco anos, além
dos fundos já propostos no orçamento.24
No entanto, o cumprimento dessas promes-
sas deve ser rigorosamente monitorado, pois, nos
últimos anos, “em geral não mais do que 40%

22 Reforma da ONU: declaração feita pelo embaixador dr.


Gunter Pleuger no debate da AG sobre o relatório do 25 REESE, Niklas. Breakwater? Tsunami-inspired
secretário geral “In Larger Freedom”, 7 de abril de 2005. reflections on the politics of development. Asia House
23 Declaração conjunta adotada em Brasília em 11 de Germany, jan. 2005. Disponível em:
fevereiro de 2005 pelo Brasil, Chile, França, Alemanha <www.asienhaus.de/public/archiv/breakwater.pdf>. Após
e Espanha. UN Doc. A/59/719 de 1º de março de o terremoto na cidade iraniana de Bam, de um total de
2005, Apêndice. US$ 1 bilhão de ajuda formalmente prometido, somente
24 No total, o governo federal proveu 84,6 milhões de US$ 17 milhões foram de fato aprovados.
euros (US$ 105 milhões) em ajuda emergencial. 26 REESE, Niklas. Business as usual. Asia House Germany,
Ver <www.bmz.de/de/presse/aktuelleMeldungen/ mar. 2005. Disponível em: <www.asienhaus.org/flut/
20050322_Tsunami/index.html>. nachdemtsunami.pdf>.

Observatório da Cidadania 2005 / 75


CHILE

Menos pobreza, mais desigualdade


No Chile, a incorporação de políticas de governo para a eqüidade entre os gêneros se dá em um
ritmo lento. Ainda é baixa a participação feminina tanto no mercado de trabalho como nos
espaços públicos e de decisão. Ao mesmo tempo, a desigualdade na distribuição da renda gera
segmentação e frustração social, mesmo quando a pobreza diminui.

Centro de Estudos para o Desenvolvimento da o cumprimento das disposições legais, a fim de Como conseqüência, falta acesso à informação, à
Mulher (Cedem) 1 ampliar a cobertura e aprofundar os programas educação e aos serviços de saúde sexual e repro-
Fundação Terram sociais, incorporando a dimensão de gênero às dutiva. Um exemplo claro é a oferta limitada de
Pamela Caro / Marco Kremerman políticas e à gestão das entidades governamen- métodos anticoncepcionais, especialmente dos
tais. Ainda persistem imagens sociais e compor- emergenciais. Também existem dificuldades de
No início do século XXI, as transformações vivi-
tamentos estereotipados em relação ao papel das acesso à esterilização feminina e masculina no
das pela sociedade chilena configuram um cená-
mulheres que condicionam a vontade política de sistema de saúde pública (Corporación La Mora-
rio tanto de possibilidades como de obstáculos
quem formula e aplica as leis e as políticas públicas da, 2003, p. 119).
ao desenvolvimento das mulheres e à eqüidade
(Corporación La Morada, 2003, p. 13). Um avanço legislativo posterior a Pequim é
entre os gêneros (Caro e Valdés, 2000). A 4ª Con-
De acordo com o último censo (2002), so- a norma legal que garante às jovens grávidas e às
ferência Mundial sobre a Mulher (Pequim) e a
mente 35,6% da população economicamente mães o direito de continuar estudando. Essa nor-
Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social
ativa do sexo feminino participava da força de ma tem grande importância, pois a gravidez e a
(Copenhague), ambas realizadas em 1995, foram
trabalho (Caro e Cruz, 2004, p. 3). Não participar maternidade são a primeira causa de evasão es-
caracterizadas pela presença ativa da sociedade
do mercado de trabalho, como ocorre com a colar entre as adolescentes (Maturana, 2004).
civil, que teve a capacidade de dar visibilidade a
grande maioria das mulheres, além de ter im- Vem aumentando o número de mulheres em
temas ausentes das agendas oficiais e de influir
pactos econômicos negativos no lar, constitui altos cargos dos poderes executivo e legislativo,
nas resoluções, por meio de estratégias de pres-
um fator de dependência e subordinação no em governos regionais e locais e nos partidos
são e lobby. A importância da participação das
espaço privado, sobretudo quando analisamos políticos. Em 1990, 283 mulheres ocupavam es-
organizações cidadãs foi assinalada na Plataforma
as relações de poder. sas posições em todo o país. Quinze anos depois,
de Ação de Pequim, que deu à sociedade civil o
De acordo com a Pesquisa Nacional de Ca- esse número foi duplicado, atingindo 620 mulhe-
mandato de envolver-se ativamente na sua imple-
racterização Socioeconômica (Casen, na sigla em res. No entanto, tal presença é insuficiente se a
mentação e no seu monitoramento, embora con-
espanhol) de 2003, a renda média das mulheres compararmos ao número total de cargos exerci-
siderando a limitação de não ter força vinculatória.
que viviam em áreas urbanas correspondia a dos nesse espaço de poder, que alcançavam 3.116
Embora tenha havido avanços na consecu-
77,2% da renda dos homens no mesmo ano em 2005. Em outras palavras, somente 19,9% dos
ção dos compromissos relativos ao gênero, por
(Valdés et al., 2005, p. 32). A pesquisa Casen 2000 cargos públicos disponíveis estão ocupados por
meio da formulação e implementação de políticas
dá informações indicando que, quanto mais anos mulheres.3 Além disso, a participação é desigual,
específicas, ainda falta o cumprimento de muitos
de escolaridade, maior a distância entre os salá- de acordo com o tipo e a qualidade do espaço de
acordos e a incorporação de diversas propostas.
rios de homens e mulheres em igual posição no poder ocupado – quanto menos poder, maior a
Entre outras, destaca-se a necessidade de instalar
mercado de trabalho. Uma mulher que tem entre participação feminina, como fica revelado pela
mecanismos de acompanhamento e avaliação que
zero e três anos de estudos ganha 18,6% a me- maior proporção de mulheres nos governos mu-
permitam a cidadãos e cidadãs exigir das autori-
nos que um homem com o mesmo nível educa- nicipais, regionais e nas subsecretarias do poder
dades de governo a prestação de contas de suas
cional, porém uma mulher com 13 ou mais anos de executivo, em contraste com a menor proporção
ações (Valdés et al., 2005, p. 8).
formação ganha 35,7% a menos do que o homem de prefeitas, administradoras e ministras.
O discurso sobre a igualdade de oportunida-
de igual nível (Caro e Cruz, 2004). Ao mesmo O aumento da participação política feminina
des tem permeado certos estratos da sociedade.
tempo, a proteção à maternidade, conforme esta- é maior no poder executivo do que em cargos de
No entanto, ainda existe uma distância entre os
belecida no Código do Trabalho, está limitada a representação popular. Enquanto em 2005 a par-
avanços lentos nas instituições e as mudanças
um setor restrito de trabalhadoras. ticipação das mulheres no poder executivo oscila
resultantes de novas práticas sociais. A incorpo-
entre 17% no gabinete ministerial e 27% nas
ração da eqüidade entre os gêneros pelo Estado Espaços públicos de decisão subsecretarias, no Parlamento, as mulheres re-
é ainda débil, tanto do ponto de vista progra-
Diferentemente de outros países da região, no presentam 5% no Senado e 13% na Câmara de
mático e de institucionalização como em relação
Chile os direitos sexuais e reprodutivos não são
à provisão de recursos. Há vários obstáculos para
reconhecidos no plano constitucional ou legal.2

1 O Cedem integra o Grupo Iniciativa Mulheres e a 3 Ver Hardy (2005), com base nos dados da pesquisa em
Red Puentes Latinoamericana en Responsabilidade 2 Existe um projeto de lei sobre direitos sexuais e curso na Fundação Chile 21 sobre a participação das
Social Empresarial. reprodutivos cuja tramitação parlamentar está paralisada. mulheres no mercado de trabalho e na política do Chile.

Observatório da Cidadania 2005 / 76


Deputados. Nos governos locais, há 12% de mu- Tabela 1 - Distribuição da renda autônomaNR, 1990–2003
lheres nas prefeituras e 21% nas câmaras de
DECIL 1990 2003
vereadores (Hardy, 2005).
RENDA AUTÔNOMA RENDA AUTÔNOMA
% DA RENDA % DA RENDA POR DOMICÍLIO 2003 TAMANHO MÉDIO PER CAPITA 2003
Dois Chiles num mesmo território TOTAL TOTAL (EM PESOS) DO DOMICÍLIO (EM PESOS)
Atingir a paridade no número de representantes I 1,4 1,2 63.866 4,31 14.818
femininos e masculinos permitirá uma redistri-
buição progressiva do poder social e político e II 2,7 2,7 144.442 4,42 32.679
desafiará as instituições a tomarem consciência III 3,6 3,6 191.812 4,20 45.670
da proposta ética e política da democracia, como
sistema de relações e representação. IV 4,5 4,7 250.284 4,18 59.877
A geração de oportunidades iguais é funda- V 5,4 5,5 291.995 3,85 75.843
mental para a incorporação plena das mulheres
ao trabalho produtivo. Porém, isso requer uma VI 6,9 6,6 348.773 3,66 95.293
infra-estrutura maior para o cuidado das crianças VII 7,8 8,3 437.417 3,57 122.526
e a melhor divisão das tarefas no lar. O país preci-
sa avançar na implementação de uma política de VIII 10,3 10,8 568.279 3,43 165.679
eqüidade salarial. IX 15,2 15,3 810.931 3,19 254.210
A Plataforma de Ação Mundial de Pequim
continua sendo uma meta a ser atingida. No en- X 42,2 41,2 2.177.245 2,83 769.345
tanto, não é menos importante a ratificação do Total 100,0 100,0 528.507 3,76 140.560
protocolo facultativo à Convenção sobre a Elimi-
nação de Todas as Formas de Discriminação con- Índice 20/20 14,0 14,5

tra a Mulher (Cedaw, na sigla em inglês). 4 Índice 10/10 30,1 34,3


O Chile se transformou num caso paradig-
mático entre os países latino-americanos e as US$ 1 equivale a cerca de 600 pesos chilenos.
economias emergentes, pois apresenta indica- Fonte: Fundação Terram, a partir de dados da pesquisa Casen 2003, do Ministério do Planejamento e da Cooperação.
dores macroeconômicos excelentes: inflação
baixa, risco-país baixo, taxa de crescimento mé-
dio anual do PIB próxima a 5,5% nos últimos 15 Menos pobreza Em termos de saúde, acaba-se de implemen-
anos, contas fiscais ordenadas, liderança nas Em relação à situação da pobreza, foram obser- tar a reforma que pretende assegurar qualidade,
classificações internacionais de liberdade econô- vados avanços importantes, de acordo com os acesso e proteção financeira para tratar 56 doen-
mica e contexto institucional e político favorável padrões nacionais. Enquanto 38,6% dos chilenos ças vinculadas aos maiores índices de mortalida-
ao investimento estrangeiro. e chilenas viviam abaixo da linha de pobreza em de nacional. Na política de habitação, o programa
No entanto, essa fachada sólida da econo- 1990,5 havia, em 2003, 18,8% nessa situação – Chile Bairro pretende erradicar os assentamentos
mia coexiste com uma realidade muito diferente. cerca de 3 milhões de pessoas. Nesse mesmo precários em todo o país.
O país é, hoje, fragmentado, com desigualdades período, foi constatada uma diminuição da indi-
enormes na distribuição do poder e das oportuni- gência de 12,9% para 4,7%. Embora a situação Um mal oculto
dades e, conseqüentemente, da renda. A despeito tenha melhorado, esse percentual equivale a mais O país sofre de outra enfermidade crônica que,
da modernização, há um clima de desconfiança e de 720 mil chilenos e chilenas vivendo na pobre- embora tenha sido historicamente ocultada por um
descontentamento na população. za mais extrema (Chile, 2004 a). grande setor da esfera política, veio à tona nos
No Chile, não há problemas graves de subnu- O plano Chile Solidário é uma iniciativa im- últimos meses por causa de pressões geradas por
trição, nem de doenças como a malária e a tuber- portante do governo para combater a pobreza alguns informes internacionais. Trata-se da desi-
culose. A maior parte da população tem acesso aos extrema, atendendo as 225 mil famílias mais po- gualdade, originada há mais de dois séculos num
serviços básicos, mas cerca de 2% do total de bres do país. Tem como finalidade igualar as ca- processo de divisão desigual de ativos, no qual a
habitantes vive com menos de US$ 1 por dia. pacidades básicas, garantir os direitos sociais, elite acumulou grande parte da riqueza e influiu nas
econômicos e culturais, desenvolver um sistema decisões políticas e na conformação das institui-
integrado de benefícios sociais, combinar assis- ções. O processo é hoje evidente nos principais
tência com promoção e, além disso, intervir mais grupos econômicos, que controlam cerca de 80%
sobre a família do que sobre os indivíduos. da produção nacional (Fundação Terram, 2004).
4 O Chile ratificou a Convenção sobre a Eliminação de No Chile, existe uma matriz cultural da desi-
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher em
gualdade que, tanto tácita como explicitamente,
1989, porém ainda não ratificou seu protocolo
facultativo. Esse é o instrumento que estabelece reconhece a existência de cidadãos e cidadãs de
mecanismos para tornar exigíveis os direitos classe A e de classe B com acesso a um conjunto
consagrados pela Convenção, quando o país que a NR Salários, pensões, rendas e juros.
de serviços sociais e instâncias democráticas
ratificou não garante esses direitos. A Convenção se 5 A linha nacional da pobreza corresponde a US$ 72,80
totalmente diferente e segmentado.
refere aos direitos civis e à condição jurídica e social mensais para os setores urbanos e US$ 49,10 para os
das mulheres, assim como à reprodução e a fatores rurais. A linha de indigência (pobreza extrema) equivale O poder é distribuído desigualmente, e os
culturais que condicionam as relações entre os sexos. a US$ 36,40 e US$ 28,10 mensais, respectivamente. arranjos institucionais reproduzem esse cenário.

Observatório da Cidadania 2005 / 77


Como resultado lógico, há uma péssima distri- Referências
buição de renda. De acordo com o Informe sobre BANCO MUNDIAL. Desigualdad en América Latina y el
o Desenvolvimento Humano de 2004, a economia Caribe: ¿Ruptura con la Historia?. 2003.
chilena é uma das dez economias sobre as quais CARO, Pamela; CRUZ, Catalina de la et al. Responsabilidad
existem dados disponíveis que tem pior distribui- social empresarial y género: problemáticas que
enfrentan las mujeres en el campo laboral. Santiago do
ção de renda. Os 10% mais ricos detém 41,2% da Chile: Cedem, 2004.
renda total, e os 10% mais pobres ficam somente CARO, Pámela; VALDÉS, Alejandra. Control ciudadano en
com 1,2% – uma distância maior do que a obser- educación y género: monitoreo de acuerdos
vada em 1990, e equivalente a 35 vezes. internacionales. Santiago do Chile: Cedem, 2000.
Além disso, um domicílio pertencente aos CHILE. Ministério do Interior. Encuesta Nacional Urbana de
10% mais pobres da população tem uma renda Seguridad Ciudadana. 2004 b. Disponível em: <http://
www.bcn.cl/pags/home_page/
per capita equivalente a US$ 25 mensais. Por outro ver_articulo_en_profundidad.php?id_destaca=308>.
lado, num domicílio pertencente ao decil mais rico, Acesso em: 24 ago. 2005.
a renda mensal por pessoa alcança US$ 1.282. . Ministério do Planejamento e Cooperação.
Em 60% dos domicílios, a renda mensal por pes- Pobreza, distribución del ingreso e impacto distributivo
soa não ultrapassa US$ 160, ou seja, US$ 5,3 por del gasto social. 2004 a. (Série Casen 2003, vol. 1).
Disponível em: <http://www.purochile.org/
dia. Isso é um valor bastante baixo para um país Casen_2003.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2005.
que, em 2004, registrou um produto interno per CORPORACIÓN LA MORADA (Coord.). Informe sombra
capita (ajustado pela paridade do poder de com- Cedaw 2003. Santiago do Chile, 2003.
pra) de US$ 11 mil. FUNDAÇÃO TERRAM. Distribución del ingreso en Chile: una
bomba de tiempo. Análisis de Políticas Públicas , n. 29,
Fragmentação social ago. 2004. Disponível em: <http://www.terram.cl/docs/
App29_desigualdad.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2005.
Esses níveis extremos de desigualdade fazem com
HARDY, Clarisa. Mujeres y poder. El Mostrador, 8 mar. 2005.
que as pessoas pobres se sintam mais pobres e
MATURANA, Camila. El monitoreo como práctica de control
gerem problemas de anomia, desconfiança e falta ciudadano: monitoreo del programa de acción de la
de coesão social. O aumento dos índices de delin- Conferencia Internacional sobre Población y Desarrollo,
qüência é parte desses sintomas. Uma de cada El Cairo, 1994. Chile: Fórum-Rede de Saúde e Direitos
três pessoas no Chile foi vítima de delitos em 2003 Sexuais e Reprodutivos, 2004.

e 2004 (Chile, 2004 b). VALDÉS, Teresa; MUNÑOZ, Ana María; DONOSO, Alina.
1995-2003: ¿Han avanzado las mujeres? – Indice de
O Banco Mundial tem afirmado que, além de compromiso cumplido latinoamericano. Santiago do
ser negativo em si mesmo, um alto nível de desi- Chile: Flacso, 2005.
gualdade dificulta o trabalho de reduzir a pobreza e
desacelera o crescimento econômico nos países
(Banco Mundial, 2003). Esse ponto de vista – e não
um imperativo ético ou de justiça social – fez o Chile
começar recentemente a reagir a esse problema.
Outra dimensão da desigualdade tem oca-
sionado que a maioria das políticas públicas não
esteja conseguindo um impacto real na popula-
ção, ao se chocar com uma barreira cultural e ins-
titucional que conforma sistemas absolutamente
segmentados no plano educacional, de saúde e no
mercado de trabalho, segundo o poder aquisitivo
de cada pessoa no Chile. Enquanto não forem
abordadas as causas da desigualdade, este pano-
rama será mantido, a despeito das promessas
feitas em períodos eleitorais.

Observatório da Cidadania 2005 / 78


EQUADOR

Bonança petrolífera, escassez de cidadania


As mobilizações da cidadania que culminaram com a destituição do presidente Lucio Gutiérrez,
em abril de 2005, manifestaram a repulsa popular a uma política econômica que pouco fez para
distribuir eqüitativamente as receitas excedentes recebidas pelo Equador depois do aumento do
preço do petróleo e que, paradoxalmente, aumentaram sua dívida externa. O novo governo ex-
pressou sua intenção de priorizar as necessidades dos setores mais vulneráveis. Se isso for concre-
tizado, é possível que haja avanços na direção da inclusão social.

Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES) dência de aumento dos preços internacionais dos O impacto desproporcional e diferenciado
Martha Moncada / Juana Sotomayor hidrocarbonetos revela uma clara intenção de da deterioração das condições de vida é ainda
privilegiar o pagamento da dívida, assim como mais crítico nos setores vulneráveis, entre os
A inserção do Equador no mercado internacio- outros gastos desvinculados dos serviços sociais. quais se destacam a população indígena, as crian-
nal tem sido caracterizada pela exportação de Com os excedentes obtidos com o aumento ças e adolescentes, as mulheres e pessoas idosas.
matérias-primas. O modelo econômico imperante dos preços, o governo criou o Fundo Petroleiro Não se tem feito um esforço sistemático e opor-
está baseado na exploração intensiva dos recursos de Estabilização para o financiamento da polícia tuno no país para coletar informações que refli-
naturais. Embora tenham sido feitas tentativas de nacional (10%), investiu na construção da rodo- tam as iniqüidades entre os gêneros, desconhe-
diversificar as exportações, a geração de divi- via-tronco amazônica (35%) e no atendimento às cendo-se os compromissos assumidos na 4 a
sas concentra-se na atividade petrolífera desde províncias de Esmeraldas, Loja, Carchi, El Oro e Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim,
a década de 1970. Galápagos (10%). Os restantes 45% formaram 1995) e outros instrumentos internacionais de
No período de 1995 a 2004, a contribuição do o Fundo de Estabilização, Investimento Social e direitos humanos.
petróleo ao Orçamento Geral do Estado atingiu a Produtivo e Redução do Endividamento Público No entanto, as pesquisas conduzidas por
média anual de 34,5%, como informa publicação (Feirep), cujos recursos se destinam a recomprar organizações sociais e alguns departamentos de
do Banco Central do Equador (2005). Segundo o os títulos da dívida pública (70%) e a criar um governo chamam a atenção para os impactos nega-
jornal El Comercio (2004), estima-se que esse fundo de estabilização das receitas petrolíferas tivos, com características especialmente graves
aporte será de 23% em 2005. Com o objetivo de (20%) – deixando apenas os restantes 10% para para as mulheres.
obter um fluxo maior de divisas, o governo propi- os investimentos sociais. O analfabetismo afeta quase dez de cada
ciou a ampliação e a intensificação da exploração cem mulheres, enquanto entre os homens repre-
petrolífera e a construção de um novo oleoduto. Exclusão maior para mulheres senta 7% (Pnud, 2004). As diferenças são ainda
Acatando com rigor os postulados neoliberais, Em conseqüência, o aumento dos volumes e dos mais significativas nas áreas rurais. Em 2003, o
a política governamental foi dirigida ao pagamento preços do petróleo não impediu que a pobreza subemprego feminino era de 50% e, entre os ho-
da dívida externa e interna, no lugar de cumprir suas continuasse a se aprofundar. Para a grande maio- mens, 25%, enquanto os dados do desemprego
obrigações constitucionais com os direitos funda- ria da população, a satisfação mínima de direitos eram de 11% e 6,5%, respectivamente (Larrea
mentais da população, numa concordância clara com como habitação, acesso à saúde pública de qua- Maldonado, 2004).
as orientações econômicas, comerciais, sociais e lidade, à educação universal e gratuita e à seguran- A exclusão e as práticas discriminatórias so-
políticas da década de 1980 e início da década de ça alimentar se converteu em ilusão inalcançável. fridas pelas mulheres estão evidenciadas na re-
1990, do chamado Consenso de Washington. Os dados do Sistema Integrado de Indica- muneração menor pela realização de atividades
Diversos fatores internacionais determinaram dores Sociais do Equador relativos ao consumo similares, se comparada à dos homens (Conselho
um aumento sem precedentes do preço do petró- indicam que 61,3% da população enfrenta situa- Nacional das Mulheres, 2005).2 Além disso, nota-se
leo nos últimos anos, gerando receitas para os ções de pobreza. Dessa parcela, 31,9% vivem na uma crescente precarização do emprego, especial-
cofres públicos que superaram as previsões mais indigência, com diferenças significativas entre a mente do feminino, e limitações no exercício dos
otimistas. Por exemplo, em 2003, na elaboração cidade e o campo, onde existem carências mate- direitos relacionados à maternidade e à saúde re-
do orçamento nacional foi considerado o preço riais de vários tipos, assim como distâncias mais produtiva. Por outro lado, muitas atividades desen-
de US$ 18 por barril de petróleo, porém as receitas profundas dos setores indígenas e afrodescen- volvidas pelas mulheres não são remuneradas.
adicionais atingiram US$ 74,6 milhões, com o dentes, se comparados à população mestiça. Em termos da propriedade da habitação, so-
preço médio do barril em US$ 25,66, segundo o Segundo o Índice de Desenvolvimento Hu- mente 68% das mulheres chefes de família dis-
boletim da Secretaria Técnica do Observatório da mano, o país teve um retrocesso. Se, em 1999, o põem de casa própria ou ainda a estão pagando.
Política Fiscal (OPF) (2004 c). Em 2004, o preço Equador ocupava a 69a posição entre 175 países
previsto no orçamento foi de US$ 18, quando, na do mundo para os quais havia informações dis-
realidade, atingiu a média de US$ 32, segundo poníveis, em 2003 passou para a 97a posição e,
dados do boletim do OPF (2005 b). em 2004, para a centésima.1 2 Em 2003, a renda média mensal das mulheres nas áreas
O preço subestimado do petróleo não pode urbanas era de US$ 167, enquanto a dos homens
ser entendido como resultado de má previsão eco- atingia US$ 249. A situação é mais grave no campo,
1 Ver as edições de 1999, 2003 e 2004 do Informe de onde as mulheres recebem mensalmente US$ 126,
nômica. Ao contrário, a decisão de formular o or-
Desarrollo Humano, publicação do Programa das enquanto a renda média dos homens é US$ 192 e a
çamento governamental sem levar em conta a ten- Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). cesta básica familiar está em torno de US$ 350.

Observatório da Cidadania 2005 / 79


Levando em conta que há uma tendência cres- nesta área, superando apenas a Nicarágua, que É possível reorientar as prioridades?
cente ao aumento do número de famílias chefiadas investiu US$ 28. Como conseqüência desse baixo Se em tempos de bonança, com os altos preços
por mulheres, pela emigração de seus companhei- investimento, cerca de 700 mil crianças e adoles- do petróleo, a pobreza continua se aprofundando
ros ou pelo aumento do número de divórcios, os centes, entre 6 e 17 anos, não puderam ingressar e o pagamento da dívida externa tem prioridade
impactos diferenciados sofridos por esse setor no sistema educacional em 2004, assim aponta a sobre as políticas públicas sociais, então, quando
afetam com força inusitada o conjunto da socie- Secretaria Técnica do OPF (2004 b). Embora essa poderemos esperar mudanças?
dade, especialmente crianças e pessoas idosas informação não esteja disponível com dados desa- O aspecto paradoxal do modelo econômico
que estão sob seus cuidados (Conselho Nacional gregados por sexo, certamente são as mulheres é evidenciar que a superação da pobreza e a garan-
das Mulheres, 2005). as mais excluídas da sala de aula. tia do pleno exercício dos direitos da população
Além de alocar migalhas para o investimento equatoriana não têm relação diretamente propor-
A estreiteza das políticas sociais social, os programas governamentais, seguindo cional com a disponibilidade de mais recursos
Diante da situação de risco enfrentada pelos seto- a linha imposta pelo Banco Mundial e pelo Fundo econômicos. Essa afirmativa não desconhece a
res majoritários do país, o Estado equatoriano tem Monetário Internacional (FMI), foram caracterizados importância da dimensão econômica na cons-
demonstrado uma total falta de eqüidade na formu- por respostas imediatistas e assistencialistas, não trução do desenvolvimento. No entanto, questio-
lação e na execução de suas políticas públicas, contribuindo para a criação de capacidades e opor- na a relação linear e causal entre receitas maiores
tanto fiscais como sociais. Além disso, não ex- tunidades, não promovendo a sustentabilidade e e a melhoria da qualidade de vida da população,
pressou a vontade política de enfrentar as formas nem levando em conta na sua formulação e apli- num contexto no qual os setores sociais mais
tradicionais de discriminação em função da ida- cação de aspectos essenciais como o gênero, a vulneráveis carecem de poder efetivo para influir
de e do gênero. Diversas estimativas3 indicam que ruralidade, a idade e a cultura. nas decisões fiscais e orçamentárias – o que faria
o investimento público social no país reflete um As intervenções do Estado estão dirigidas ao uma diferença real para garantir seus direitos
dos índices mais baixos em relação a outros paí- alívio temporário e pontual de algumas carências econômicos sociais.
ses da região, com percentuais que só represen- materiais básicas, como a falta ou insuficiência O exemplo equatoriano é eloqüente a esse
taram 4,5% do PIB em 2003. de alimentos para mulheres grávidas e crianças respeito. Embora nos últimos 35 anos o país tenha
Apesar da maior disponibilidade de receitas pequenas, e outros casos. Essas políticas con- recebido grandes volumes de divisas pelas ven-
fiscais provenientes das exportações de petróleo sistiram numa transferência limitada de recur- das do petróleo, isso não se refletiu na melhoria
e do processo de aprofundamento da pobreza, a sos a setores em situação de pobreza extrema. das condições de vida de sua população. Parado-
política fiscal equatoriana continua a diminuir os Por exemplo, o chamado “bônus solidário”, que, xalmente, o aumento das receitas públicas durante
recursos destinados a investimentos sociais, ao com enfoque de caridade pública, não permite o chamado “boom petroleiro” (1972–1982) deu
ponto em que o país não pôde sequer recuperar superar as precárias condições de vida dos início a um processo surpreendente de endivi-
os níveis desses investimentos de mais de uma homens e das mulheres que recebem esse sub- damento externo.
década passada. Em 1992, os investimentos so- sídio. Como podem essas pessoas superar a A alta polarização social no país e a pouca
ciais representavam 5,2% do PIB; 11 anos antes, pobreza se recebem mensalmente US$ 15 por capacidade de organização, influência e partici-
em 1981, alcançavam 6,3%, segundo dados da serem mulheres que chefiam famílias ou US$ pação da sociedade civil nas decisões sobre polí-
Secretaria Técnica do OPF (2004 a). 11 por serem idosas? ticas públicas são fatores que limitaram a dis-
No contexto internacional, a população equa- A intervenção governamental no âmbito so- cussão de novas prioridades que, entre outros
toriana, cuja maioria tem até 25 anos, recebe uma cial não pretende afetar as causas estruturais da elementos, subordinasse o pagamento da dívida
parcela muito limitada de recursos para a satisfa- pobreza e tem dado pouca ou nenhuma impor- externa à solução dos problemas que afetam a
ção de seus direitos básicos, tais como dez anos tância à iniqüidade na distribuição de riquezas no maior parte da população.
de educação gratuita e universal, acesso a serviços país. Enquanto 20% da população se apropria de Num contexto de crescente liberalização do
de saúde (com prioridade para mulheres grávidas, 58% da riqueza, no outro extremo os 20% mais comércio, a possibilidade de a produção nacional
crianças menores de 5 anos e pessoas idosas), sa- pobres têm acesso a somente 3,3% (Pnud, 2004). ter posições vantajosas no mercado internacio-
neamento básico, habitação e emprego. Segundo Também não foram feitos esforços para reativar a nal dependerá, além da qualidade dos bens de
dados de 2001, o investimento público em saúde produção de pequenos agricultores e agricultoras exportação, do acesso a fatores competitivos.
atingiu somente US$ 16 por habitante ao ano, e de camponeses e camponesas, responsáveis Lamentavelmente, com taxas de inflação mais
sendo o mais baixo entre os 18 países da região e pelo abastecimento de alimentos ao mercado in- altas em relação ao contexto internacional, assim
obrigando as famílias a assumirem diretamente terno, e para melhorar as condições de saúde e como taxas de juros internas pouco atrativas para
48,6% do total desse gasto, como informa a Se- educação da população. os investimentos, a possibilidade de reduzir os
cretaria Técnica do OPF (2005 a). Nesse contexto, é difícil prever que os direi- custos está quase exclusivamente na diminuição
Em 2001, o Equador investiu US$ 45 anuais tos econômicos, sociais e culturais consagrados dos salários, na flexibilização trabalhista e na con-
por habitante em educação, ficando em penúltimo na Constituição serão garantidos na realidade. seqüente perda de benefícios para trabalhadores
lugar entre os países da região quanto aos gastos Se forem mantidas as prioridades que põem em e trabalhadoras. Além disso, há uma precariza-
primeiro lugar os avanços macroeconômicos, nem ção do trabalho cada vez maior, até mesmo com
será possível cumprir as Metas de Desenvolvi- o crescimento da inserção de crianças, jovens e
mento do Milênio aprovadas pela Organização das mulheres camponesas e indígenas nos setores de
Nações Unidas (ONU) em 2000. Essas metas, produção e de serviços.
apesar de suas limitações em termos de direitos Por outro lado, o aprofundamento da libera-
3 Ver Badillo (2001) e os dados fornecidos pelo Sistema
Integrado de Indicadores Sociais do Equador e pelo humanos, constituem uma oportunidade de melho- lização econômica ameaça aumentar os níveis de
Observatório da Política Fiscal. ria para a grande maioria da população. iniqüidade e a perda dos meios de subsistência

Observatório da Cidadania 2005 / 80


de populações tradicionais que vivem em áreas
onde atualmente se realizam atividades produ-
tivas destinadas às exportações.
Inaugurado com a destituição, em abril deste
ano, do presidente Lucio Gutiérrez (depois de uma
inusitada mobilização da cidadania que recla-
mava a restituição e a vigência dos mecanismos
democráticos como base para uma nova relação
com o poder), o atual cenário político do país pode
ser um momento propício para acolher as reivin-
dicações da cidadania e rever a forma como se
tem distribuído os excedentes do petróleo que
alimentam o Feirep.
O atual ministro da Economia, Rafael Correa,
propõe alocar 40% dos recursos desse fundo à
reativação econômica – especialmente para
camponeses(as) e pequenos(as) produtores(as)
–, 30% a investimentos sociais, 10% à ciência e
tecnologia e 20% a contingências. Essa proposta
modifica as prioridades de investimento e os gas-
tos dos recursos governamentais em benefício
dos setores mais vulneráveis da população.
Se for concretizada, tal proposta poderá abrir
caminho para o cumprimento dos direitos sociais
e culturais da população equatoriana em seu con-
junto e dos grupos tradicionalmente excluídos
em função de gênero, idade e etnia. Além disso,
poderá ser a base para mudar as ações governa-
mentais focalizadas e desarticuladas e universali-
zar as políticas sociais, superando o caráter restrito
das soluções de “remendos”, que impossibilitam
os grupos mais pobres de escapar dos círculos
perversos da pobreza.

Referências
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el contexto latinoamericano. Ajuste con Rostro Humano,
Quito, Unicef, n. 8, 2001.
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después. Quito, 2005.
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. Boletim, Quito, n. 8, mar. 2004 c.
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6, out. 2004 b.
. Cartilla educativa sobre macroeconomía, Quito, n.
2, jun. 2004 a.

Observatório da Cidadania 2005 / 81


ESTADOS UNIDOS

Quando o bem-estar social não é prioridade


Um corte no orçamento federal de US$ 143 bilhões nos programas de desenvolvimento social
para compensar um déficit que pode ainda crescer, causado pelo aumento dos gastos militares de
quase US$ 200 bilhões, põe em risco a rede de seguridade social, como o tíquete-alimentação,
empréstimos a estudantes e serviços médicos públicos. Segundo muitas pessoas, o emprego não é
suficiente para escapar da pobreza. Além disso, a discriminação sexual e a racial continuam a
reduzir as rendas das mulheres e da população negra.

Instituto de Agricultura e Políticas Comerciais não é suficiente para livrá-las da pobreza. Embora a e trabalhadoras na pobreza. Em 2003, as medi-
Centro de Consciência Social (Center of Concern) / renda real per capita tenha crescido 66% entre 1973 das de reforma da assistência social haviam dei-
Rede de Gênero e Comércio dos Estados Unidos e 2000, o percentual de famílias empobrecidas xado 35,9 milhões de cidadãos e cidadãs estadu-
Fórum Interamericano & Projeto de Vínculos
permaneceu no mesmo nível – pouco acima de nidenses e residentes abaixo da linha nacional de
Globais-Locais
Federação Americana do Trabalho e Congresso das 11% (Mishel, Bernstein e Allegretto, 2005, p. 12). pobreza, segundo publicação do Departamento do
Organizações Industriais (AFL-CIO) Em parte, a pobreza persiste porque os preços Censo dos Estados Unidos (2004, p. 9).
Patricia Jurewicz / Kristin Dawkins / Alexandra / das necessidades básicas, como alimentação, mo-
Spieldoch / Tanya Dawkins / Thea Lee radia e transporte, crescem mais rapidamente do Distância entre gêneros e entre raças
que os salários. Em 2004, a maior parte dos salá- Por três anos seguidos, vem aumentando o nú-
Os Estados Unidos estão longe de alcançar seus
rios de trabalhadores e trabalhadoras, descon- mero de mulheres abaixo do limiar de pobreza.
compromissos de erradicação da pobreza e de
tada a inflação, permaneceu no mesmo nível ou Atualmente, 13,8 milhões de mulheres adultas –
inclusão social, especialmente para as mulheres,
decresceu, enquanto somente 5% da população que uma de cada oito – vivem na pobreza nos Estados
conforme foi acordado há dez anos na Cúpula
ganha mais teve a renda aumentada (Greenhouse, Unidos. Para mães solteiras não-brancas, a situ-
Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copen-
2005). Trabalhadores e trabalhadoras que rece- ação é muito pior: aproximadamente uma de cada
hague, 1995) e na 4a Conferência Mundial sobre
bem o salário mínimo federal (US$ 5,15/hora) não quatro vive na pobreza por causa da discrimina-
a Mulher (Pequim, 1995). Em 2004, uma de cada
tiveram aumentos desde 1997. Como a lei não ção racial, segregação ocupacional, diminuição
oito mulheres adultas no país vivia na pobreza,
indexa o salário mínimo à inflação, seu valor é do acesso à educação de qualidade e níveis despro-
como informa publicação da Organização de
corroído com o passar do tempo. porcionalmente altos de desemprego, como infor-
Mulheres para o Meio Ambiente e o Desenvol-
Trabalhadores e trabalhadoras que hoje ga- ma o Instituto de Pesquisa de Políticas da Mulher
vimento (Women’s Environment & Development
nham salário mínimo recebem um terço do salário- (Institute for Women’s Policy Research, 2004, p. 31).
Organization, 2005, p. 162). Em conseqüência da
hora médio considerado pelo governo federal O programa federal de seguridade social é
crescente pressão para acabar com a assistência
necessário para manter uma família de quatro a única fonte de renda de uma de cada quatro
governamental às mães de baixa renda, mais
pessoas livre da pobreza (um déficit de US$ 8 mil mulheres idosas, e duas de cada três mulheres
mulheres pobres têm empregos, porém suas vidas
na renda anual). Segundo dados da Federação recebiam pelo menos a metade de sua renda da
e as de suas famílias não melhoraram. O custo de
Americana do Trabalho e Congresso das Organi- seguridade social (Lee e Shaw, 2003, p. 23-24).
vida nos Estados Unidos tem aumentado conti-
zações Industriais (AFL-CIO, 2005), 15 estados Estudos prevêem que, sem esse benefício, dois
nuamente, sem aumentos correspondentes de
aprovaram leis com salário mínimo mais alto, e terços das mulheres não-casadas com mais de
salários. O atendimento médico básico ficou de-
cinco deles exigem um mínimo de US$ 7/hora, 65 anos que vivem sozinhas estariam na pobreza
masiado caro, e as mulheres têm menos tempo
valor ainda insuficiente para que uma família de (Lee e Shaw, 2003, p. iii).
para ficar em casa.
quatro pessoas fique acima da linha de pobreza. Há uma década, os Estados Unidos aceita-
A pobreza e a exclusão social não são somen-
O número de pessoas de famílias pobres que ram a Convenção sobre a Eliminação de Todas as
te problemas das mulheres, mas afetam todas as
trabalham tem crescido significativamente na Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw)
famílias e comunidades. Diariamente, mais de 6
última década. A reforma realizada pelo presi- e assumiram o compromisso de atingir a igualda-
milhões de crianças ficam sozinhas em casa de-
dente Clinton no programa de assistência social de entre mulheres e homens. No entanto, hoje,
pois da escola nos Estados Unidos. Quase 900
(welfare) em 1996, considerada um sucesso por as mulheres ganham em média somente US$ 0,76
mil são vítimas de abuso ou abandono a cada ano
ter reduzido à metade o número de pessoas que para cada US$ 1 recebido pelos homens. Em 1995,
e aproximadamente uma criança ou adolescente
recebem assistência social do governo, empur- eram US$ 0,71, como indica o Departamento do
morre em virtude de arma de fogo a cada três
rou ex-beneficiários(as) da assistência social para Censo dos Estados Unidos (2004, p. 34). Entre
horas, segundo comunicado de imprensa do
empregos denominados de workfareNT – postos as minorias, a distância salarial é ainda maior,
Fundo de Defesa da Criança (Children’s Defense
de trabalho sem benefícios de seguro-saúde e com quando comparada aos salários do homem branco
Fund, 2005). Até o governo dos Estados Unidos
salários tão baixos que mantinham trabalhadores em 1999. As mulheres afro-americanas ganhavam
reconhecer que 13 milhões de crianças vivem
62,5%, as indígenas recebiam 57,8% e as hispâ-
em dolorosa pobreza dentro de suas fronteiras e
nicas, 52,5% do salário médio pago ao homem
tomem medidas corretivas, a segurança e o
branco (Institute for Women’s Policy Research,
bem-estar estão ameaçados no país. NT Workfare ( welfare to work programs ) eram
2004, p. 20). A discriminação racial, combinada
Para um grande e crescente número de famí- programas de assistência social que trocavam
benefícios por trabalho. com a segregação ocupacional, cria barreiras
lias estadunidenses, o fato de terem um trabalho

Observatório da Cidadania 2005 / 82


tremendas ao emprego, às promoções e a rendas (Featherstone, 2005). Um estudo da Comissão de Mais da metade das reduções de impostos
mais altas. As mulheres não-brancas estão ainda Educação e Trabalho da Câmara Federal determi- vai beneficiar famílias com rendas anuais acima
flagrantemente sub-representadas em muitos nou que, em 2004, os empregados e empregadas de US$ 1 milhão (0,2% das famílias), e quase 80%
empregos de alta remuneração. A discriminação da Wal-Mart tiveram direito a US$ 2,7 bilhões em dos cortes de impostos beneficiarão 3,1% das
em função do sexo e da raça continua a reduzir a assistência federal (Miller, 2004). Em essência, famílias que ganham mais de US$ 200 mil por
renda das mulheres (Institute for Women’s Policy os(as) contribuintes dos Estados Unidos estão ano (Instituto de Medicina, 2004). Como conse-
Research, 2004, p. 22). subsidiando os lucros da empresa. qüência direta desses cortes e dos anteriores, as
Existem leis contra a iniqüidade salarial e de receitas federais, como uma parcela da economia,
gênero desde a década de 1960, porém elas não A promoção da insegurança estão no nível mais baixo desde a década de 1950.
são aplicadas de forma adequada. A administração A proposta de orçamento federal para 2006 do Se os cortes propostos se estenderem, reduzirão
do presidente George W. Bush tem cortado inicia- presidente George W. Bush corta US$ 143 bilhões as receitas governamentais em US$ 2,1 trilhões
tivas para financiar a aplicação de leis contra a em gastos opcionais nos próximos cinco anos, até 2015 (Friedman, Carlitz e Kamin, 2005).
discriminação salarial e está deixando de coletar eliminando 150 programas nacionais. Ela também
dados sobre as trabalhadoras, chegando ao ponto elimina US$ 30 bilhões de vários programas cujo Crianças deixadas para trás
de retirar informações sobre a distância salarial financiamento é obrigatório por lei – os chamados Reduções severas do apoio federal à população
entre os gêneros do website do Departamento do programas de direitos a benefícios sociais (Horney, pobre agravaram os problemas enfrentados pelos
Trabalho (Women’s Environment & Development 2005). Esses cortes draconianos não somente 50 estados, que têm a obrigação de assistir quem
Organization, 2005, p. 156 e 161). A desigualdade prejudicam as escolas, o desenvolvimento comu- passa fome e não tem moradia. Trinta e um estados
e a discriminação continuarão a ocorrer se não nitário, o transporte, a pesquisa científica e o meio registraram despesas superiores às previstas nos
forem gerados os dados desagregados por sexo ambiente, como também solapam programas de seus orçamentos de 2005. Em relação ao orça-
necessários para uma análise de gênero. proteção social de larga data, entre eles o tíquete- mento federal proposto para 2006, a Conferência
alimentação, empréstimos estudantis e o progra- Nacional dos Legislativos Estaduais identificou
O peso da Wal-Mart para a sociedade ma de reembolso de despesas médicas (Medicaid).NT pelo menos US$ 30 bilhões de custos transferi-
A rede de supermercados Wal-Mart tem sido pro- Mais de 45 milhões de pessoas não possuem dos do governo federal aos governos estaduais,
cessada com mais freqüência do que qualquer seguro-saúde. O programa de reembolso de incluindo um corte geral de 1% no orçamento do
outra empresa privada dos Estados Unidos. Em despesas médicas, que já tem 40 anos e oferece Departamento de Educação.1
1991, seis mulheres iniciaram um dos mais conhe- benefícios médicos a 35 milhões de pessoas, será A legislação conhecida como “Nenhuma crian-
cidos processos contra a Wal-Mart, que se trans- alvo de um corte de US$ 45 bilhões nos próxi- ça deixada para trás” (NCLB, na sigla em inglês)
formou numa das maiores ações populares de mos dez anos. Os estados já prevêem serem for- do presidente Bush exige que todas as crianças
direitos civis da história, envolvendo mais de 1 çados a terminar seus programas de reembolso das escolas primária e secundária alcancem uma
milhão de mulheres acusando a empresa de discri- de despesas médicas por causa da falta de fundos. pontuação anual em testes nacionais padronizados.
minação sistemática nos salários e nas promoções. Quase a metade dos imigrantes sem cidadania Se essas metas não forem atingidas, a escola so-
Atualmente, menos de 15% dos gerentes de lojas estadunidense (45,3%) não tem seguro-saúde, fre conseqüências na forma de “reestruturação”,
são mulheres, embora elas constituam dois terços enquanto a média nacional de pessoas nessa “perda de financiamento” ou “ação corretiva”.
da força de trabalho da companhia. situação é de 15,6% (Departamento do Censo dos Legisladores e legisladoras estaduais, profes-
Como a maior empregadora da nação, com Estados Unidos, 2004, p. 17). O Instituto de Me- sores e professoras e defensores e defensoras dos
aproximadamente 1,3 milhão de empregados(as), dicina estima que a falta de cobertura de seguro- direitos das crianças têm pedido ajustes na legis-
a Wal-Mart mudou o cenário varejista dos Estados saúde causa aproximadamente 18 mil mortes lação. Solicitam que o governo federal elimine o
Unidos, fazendo grandes esforços para evitar a desnecessárias anualmente e custa de US$ 65 método de medição igual, reconhecendo os desa-
organização sindical dos empregados e empre- bilhões a US$ 130 bilhões por ano em perdas de fios especiais enfrentados pelas crianças porta-
gadas, reduzindo seus planos de saúde e pagando recursos, segundo comunicado de imprensa do doras de deficiências e/ou que não falam o inglês
salários abaixo da linha de pobreza. A empresa Instituto de Medicina (2004). como idioma nativo. Também pedem a remoção
exige que funcionários e funcionárias assinem Esses cortes nos programas de desenvolvi- dos obstáculos que sufocam as inovações dos
formulários concordando em não entrar em sin- mento social foram propostos para compensar o estados e o financiamento integral do programa.2
dicatos, numa violação flagrante das leis traba- déficit orçamentário de mais de US$ 400 bilhões No caso das escolas primárias, estima-se que
lhistas do país (Featherstone, 2004). Comparada criado em somente quatro anos, a despeito de ocorra um déficit de financiamento de pelo menos
a outros varejistas, a Wal-Mart possui um per- um superávit de mais de US$ 200 bilhões no ano US$ 12 bilhões em 2006, sendo o déficit cumula-
centual maior de empregados(as) sem cober- 2000. No entanto, mesmo com a eliminação des- tivo de quase US$ 40 bilhões desde que a lei foi
tura de plano de saúde. ses programas, espera-se que o déficit cresça em aprovada, em 2002.3
Em todo o país, 66% de todos os trabalha- US$ 168 bilhões nos próximos cinco anos por
dores e trabalhadoras recebem benefícios de causa do aumento dos gastos militares de quase 1 Ver o texto “States still struggling to keep budgets
saúde de seu empregador ou de sua empregadora, US$ 200 bilhões, dos cortes de impostos para os balanced” (2005), disponível no site da Conferência
porém menos de 46% dos empregados e empre- ricos de US$ 106 bilhões e dos US$ 36 bilhões Nacional dos Legislativos Estaduais.
gadas da Wal-Mart têm cobertura do seguro- gastos com os juros da dívida interna. 2 Ver o texto “State legislators offer formula for improving
no child left behind act” (2005), disponível no site da
saúde (Miller, 2004). O Departamento de Pessoal
Conferência Nacional dos Legislativos Estaduais.
dessa rede de supermercados distribui material
3 Ver o texto “Deep cuts in the President’s budget;
escrito explicando como solicitar o tíquete-alimen- NT Benefícios de saúde fornecidos pelo Estado para as Committees ready to act” (2005), disponível no site da
tação do governo e o seguro de saúde pública pessoas mais pobres. Coalition on Human Needs.

Observatório da Cidadania 2005 / 83


Além disso, o governo Bush tem cortado nu- Há várias ações imediatas que o governo . Will labor take the Wal-Mart challenge?. The
Nation , 28 jun. 2004.
merosos programas que envolvem atividades fora deve realizar para cumprir seus compromissos de
FRIEDMAN, Joel; CARLITZ, Ruth; KAMIN, David. Extending
da escola, o que afeta a capacidade de aprendi- desenvolvimento humano feitos dez anos atrás.
the tax cuts would cost $ 2.1 trillion through 2015.
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STATES still struggling to keep budgets balanced. NCSL News,
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14 abr. 2005. Disponível em: <http://ncsl.org/programs/
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transferindo empregos para fora do país ou amea- assumir posições gerenciais. Se tratarem seus <http://www.wedo.org/library.aspx?ResourceID=31>.
Acesso em: 25 ago. 2005.
çando se mudar para outros países. Em escala trabalhadores e trabalhadoras de forma adequada,
nacional, os novos empregos pagam em média as grandes empresas possibilitarão que o governo
21% a menos do que os antigos. Ao tentarem ajude quem realmente necessita. Só então, pode-
competir com a Wal-Mart, os supermercados rivais remos dizer que somos uma nação de mulheres,
alegam que não podem mais cobrir os custos homens e crianças com vida segura e digna.
de seguro médico.
Tradicionalmente, a população estadunidense Referências
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fundamentais. Em situações calamitosas, o go-
050323.aspx>. Acesso em: 25 ago. 2005.
verno ajudava seus cidadãos e cidadãs a se recu-
DEEP cuts in the President’s budget; Committees ready to
perarem. Infelizmente, nem o governo nem as act. Coalition on Human Needs, 25 fev. 2005. Disponível
corporações estão fornecendo benefícios, salários em: <www.chn.org/dia/organizations/chn/humanneeds/
ou programas que muitas famílias e mulheres, 050225a.html>. Acesso em: 25 ago. 2005.
especialmente em comunidades não-brancas, pre- DEPARTAMENTO DO CENSO DOS ESTADOS UNIDOS.
cisam ter, hoje, para não dormirem com fome. Income, poverty, and health insurance coverage in the
United States: 2003. Washignton, DC: Imprensa Oficial
do Governo, 2004.
4 Ver o texto “High school dropout rates”, disponível no FEATHERSTONE, Liza. Down and out in Discount America.
site Child Trends DataBank. The Nation, 3 jan. 2005.

Observatório da Cidadania 2005 / 84


INDONÉSIA

Por uma definição plural de pobreza


Os programas de redução da pobreza devem levar em conta as disparidades regionais e incluir
metodologias e estratégias sensíveis ao gênero, assim como permitir a participação e a contribui-
ção das organizações civis das mulheres. Além disso, o governo precisa implementar medidas
específicas para cumprir as Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDMs) e aplicar mecanismos
que busquem reduzir a corrupção e a burocracia.1

Programa de Empoderamento das Famílias Chefiadas Entretanto, a contribuição das mulheres para Esforços ineficazes para reduzir pobreza
por Mulheres (Pekka) a economia não pode ser ignorada. Cerca de Nos últimos dez anos, houve muitas estratégias
Nani Zulminarni2 33,5% realizam trabalho não-remunerado para de redução da pobreza, programas e atividades
assegurar a sobrevivência de suas famílias e três realizadas por meio de vários projetos de alívio
Em 2004, a população da Indonésia era estimada vezes mais mulheres do que homens trabalham da pobreza desenvolvidos pelo governo e por
em 210 milhões de pessoas, a metade delas cons- no exterior, em países como Arábia Saudita, ONGs. Entre os exemplos, estão incluídos o Pro-
tituída de mulheres. Calcula-se que 55,6% vivem Malásia, Cingapura, Brunei e Coréia do Sul, e em jeto Presidencial de Aldeias Subdesenvolvidas,
em áreas rurais e 65,6% estão na faixa etária pro- Hong Kong. Essas trabalhadoras migrantes não criado pelo regime da Nova Ordem,NT assim como
dutiva (15–64 anos de idade). Dados oficiais reve- recebem praticamente nenhuma proteção do país projetos de geração de renda organizados por
lam que a renda per capita média anual é US$ 621 hospedeiro ou do governo indonésio durante seu ONGs. Um programa emergencial para pessoas
e que 18,4% dos indonésios e indonésias vivem período no exterior e todos os anos são relatados pobres, similar às redes de proteção social, foi
abaixo da linha de pobreza, com menos de US$ 1 casos de violência contra elas. também desenvolvido antes da crise econômica
por dia. No entanto, o bem-estar da população tam- Outro fenômeno na Indonésia é o número de 1997, juntamente com o Programa de Recu-
bém pode ser medido pelos gastos mensais com crescente de mulheres chefiando famílias, incluin- peração Comunitária estabelecido pelo governo.
necessidades básicas. Segundo esse critério, os do viúvas e solteiras. Dados de 1993 mostravam Apesar do aumento da renda das famílias pobres
gastos médios mensais de mais de 49% da popu- que 10% das famílias eram chefiadas por mulhe- e da satisfação das necessidades básicas durante
lação são inferiores a 200 mil rupias indonésias res. Em 2003, esse percentual havia crescido para o período do projeto, não foi notado um impacto
(US$ 21) – ou seja, menos de US$ 1 por dia. Isso 13,19%, embora o número real pudesse ser mais mais amplo na eliminação da pobreza.
indicaria a existência de um número maior de alto do que a estimativa oficial. Conflitos perma- As ONGs desenvolveram vários programas de
pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza do nentes em algumas regiões do país e pobreza empoderamento comunitário para organizar homens
que o registrado pelos dados oficiais. extrema em outras (na Indonésia Oriental) causa- e mulheres e formar redes de pessoas pobres, tais
Estatísticas de 1993 mostram níveis de po- ram a migração dos homens em busca de uma como o Consórcio de Pobres Urbanos, a Rede de
breza muito inferiores, com somente 4,3% das vida melhor. Com freqüência, os homens deixam Mulheres de Pequenas Empresas, a Associação
famílias, ou 10% da população vivendo abaixo da para trás suas mulheres. As famílias chefiadas por de Agricultores Indonésios, a Associação de Traba-
linha de pobreza. Esses dados parecem confirma- mulheres são em geral relativamente mais pobres, lhadores Indonésios e a Organização de Mulhe-
dos pelo Informe de 2004 do Programa das Nações se comparadas com aquelas chefiadas por ho- res Chefes de Família. Embora essas tentativas
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), cujo Índice mens. Estatísticas de 1999 em diante mostram tenham aumentado a conscientização e permitido
de Desenvolvimento Humano (IDH) classifica a que o número de famílias chefiadas por mulheres que as pessoas defendessem seus direitos, não
Indonésia na 111a posição entre 177 países (em vivendo abaixo da linha de pobreza está aumen- foram capazes de produzir grandes mudanças ou
2001, ocupava a posição 112a entre 175 países). tando, ao passo que diminui entre aquelas che- de reduzir a pobreza.
Alguns indicadores revelam que as mulheres fiadas por homens. O último esforço governamental foi desen-
estão em situação pior do que os homens. A taxa A renda média diária das famílias chefiadas volver o Plano Estratégico de Redução da Pobreza
de mortalidade materna é ainda alta, de 373 para por mulheres está em torno de 7 mil rupias indo- (Perp), como diretriz para eliminar a pobreza na
cada 100 mil crianças nascidas vivas, enquanto a nésias (US$ 0,73). Elas têm, em média, três depen- Indonésia, cumprindo exigências de instituições
taxa de mortalidade infantil é 40 para cada mil dentes e muitas vivem em áreas rurais e remotas. doadoras. Entretanto, o conceito do Perp ainda
crianças nascidas vivas. A educação é outro indi- O nível educacional das pessoas dessas famílias ignora a questão de gênero, e o envolvimento de
cador revelador, pois mostra que o número de é muito baixo. Mais da metade tem somente edu- grupos de mulheres na revisão do plano, no senti-
mulheres analfabetas ou com pouca educação é cação primária. Seus membros trabalham princi- do de incluir uma perspectiva de gênero, encontrou
duas vezes maior do que o dos homens. Dados de palmente nos setores informal, como pequenos(as) forte resistência de parte da equipe de trabalho,
2002 estimam que 12,79% das mulheres e 5,85% comerciantes, trabalhadores(as) diaristas em dominada por homens. Além disso, o governo
dos homens não sabem ler nem escrever. pequenas plantações de arroz ou como também assumiu o compromisso de implemen-
pequenos(as) agricultores(as).3 tar as MDMs, para complementar suas obrigações
1 Este relatório adota os últimos dados da Pesquisa
Socioeconômica Nacional realizada em 2002 e dados do
relatório de 2000.
2 Coordenadora nacional do Pekka. 3 Dados obtidos pelo Pekka em 200 aldeias em 2003. NT Governo do general Suharto.

Observatório da Cidadania 2005 / 85


internacionais. As MDMs focalizam o tema da programas de redução da pobreza, é a dispersão Dependência dos países doadores e das
pobreza e aspectos a ela relacionados. No entanto, dos recursos antes que atinjam as pessoas pobres. instituições financeiras internacionais
as medidas estratégicas para transformar as Um sistema burocrático ineficiente e a corrupção Com uma dívida total de US$ 144 bilhões, a In-
MDMs em políticas públicas concretas ainda não em todos os níveis é parte integrante do sistema. donésia é um dos países mais endividados do
se tornaram claras, e a opinião pública sequer tem Como conseqüência, as pessoas pobres não são mundo. Quase a metade do orçamento nacional é
conhecimento da existência dessas metas. beneficiadas por muitos dos programas de de- absorvida pelos pagamentos de juros da dívida.
senvolvimento, e a distância destas para as ricas Em conseqüência, o governo indonésio depende
No marco de um mundo injusto continua a crescer. muito dos países doadores e não tem indepen-
Há muitos fatores interligados que explicam a si- dência para desenvolver suas políticas sociais.
tuação da Indonésia. Uma ideologia patriarcal dominante Sob pressão dos doadores, o governo adotou
A ideologia patriarcal predominante leva as mu- os programas de ajuste estrutural para integrar
Políticas socioeconômicas centralizadas lheres a terem baixa autonomia pessoal e pouco suas políticas ao sistema de mercado e à economia
e insensíveis ao gênero poder social na sua vida cotidiana. A autonomia global. Isso ocorreu em detrimento dos direitos
Os dados nacionais nem sempre refletem a situa- das mulheres se refere à autoridade que têm sobre sociais das pessoas, que, entre outras perdas, tive-
ção regional e local da população, pois a Indoné- si próprias em comparação com os homens, en- ram sacrificado seu acesso a serviços de saúde.
sia é um arquipélago com grandes diferenças de quanto o poder social é a autoridade que possuem A dependência da Indonésia dos empréstimos
uma região para outra. Uma política de desenvol- (ou não) sobre as outras pessoas da família, assim estrangeiros também causou sofrimentos econô-
vimento muito centralizada e injusta, focalizada como na sociedade. Vários indicadores mostram micos. O país teve dificuldade de se recuperar da
somente nas áreas próximas à capital, tem levado que as mulheres pobres não têm nenhuma auto- crise econômica que atingiu a região asiática
a que algumas áreas permaneçam menos desen- nomia ou poder social. Quando o trabalho é distri- em 1997. O crescimento econômico atingiu seu
volvidas do que outras, especialmente na parte buído em função do gênero e o papel primário da ponto mais baixo em 1998, e a taxa de câmbio da
oriental do país. A proporção de pessoas vivendo mulher é na família, ela é duplamente sobrecarre- rupia em relação ao dólar dos Estados Unidos
abaixo da linha de pobreza é muito maior nessas gada ao ser forçada a trabalhar fora de casa para ficou abaixo de 25%.
áreas do que o indicado pelos dados nacionais. superar a pobreza da família. Além disso, os baixos
Portanto, essas informações não podem ser usa- níveis educacionais resultam na pequena partici- O impacto da globalização
das para retratar a condição real de todas as áreas, pação das mulheres nos processos decisórios, Como membro da Organização Mundial do Co-
nem para desenvolver uma estratégia nacional de tanto na família como na sociedade. mércio (OMC), a Indonésia está presa à econo-
redução da pobreza. mia globalizada, e isso é muito prejudicial ao país.
A discriminação entre os gêneros não é com- Conflitos em curso Sua posição e seu status desiguais, se compa-
preendida nem levada em conta pelos formula- O conflito que atingiu a Indonésia em 1998 resul- rados aos dos países desenvolvidos, põem a
dores de políticas públicas. Isso é ilustrado pela tou num país em situação de pobreza crônica, economia nacional sob o controle de agentes
atenção mínima dada aos problemas de recursos com muitas pessoas perdendo seus meios de sub- econômicos globais, como as corporações mul-
sociais e humanos que afetam o desenvolvimento, sistência ou tendo de interromper seus estudos. tinacionais. Isso pode ser observado pelo acele-
tais como saúde e educação, duas áreas problemá- Outras pessoas terminaram em campos de rado crescimento dos hipermercados, o rápido
ticas para as mulheres. A alocação orçamentária refugiados(as), e a morte de muitos homens sig- fluxo de produtos importados e pela criação de
para os dois programas é inferior a 5% do PIB. nificou que mulheres tiveram de assumir a chefia zonas de livre comércio e de zonas industriais
Além disso, a política macroeconômica foca- da família em condições muito duras. As ativi- livres em várias regiões. A presença dos agentes
lizada no aumento da taxa de crescimento econô- dades econômicas ficaram paralisadas e o sen- econômicos globais no mercado local tem causa-
mico pela industrialização, por salários baixos, timento de segurança se perdeu, prejudicando do a falência das pequenas empresas e microem-
pela exploração dos recursos naturais e pela esta- principalmente mulheres e crianças. presas, que davam emprego a muitas mulheres
bilidade política tem ignorado os impactos negati- e pessoas pobres.
vos do desenvolvimento econômico. A migração Desastres naturais A abertura para o mercado global também tem
dos homens para as cidades deixa as mulheres A Indonésia está situada num continente muito causado a privatização de serviços sociais, como
com uma sobrecarga duplicada, pois precisam frágil, com alto potencial de grandes desastres educação e saúde, mesmo quando são de respon-
trabalhar por salários baixos e ainda enfrentar as naturais, como tsunamis, terremotos, erupções sabilidade do governo. Isso tem criado uma dis-
tarefas de chefe de família. vulcânicas e tufões. A ausência de sistemas de tância ainda maior entre pessoas ricas e pobres.
O papel reprodutivo das mulheres é visto alerta tem causado mortes e perda de propriedade Outro efeito da globalização é o aumento da explo-
como obstáculo à sua atuação no setor produtivo. para muitas pessoas. Por exemplo, o terremoto ração das mulheres, como trabalhadoras do sexo.
As mulheres também precisam lutar para provar seguido de um tsunami que atingiu a parte norte da Pobres e muito jovens, elas são enganadas com
que suas qualificações são iguais às dos homens ilha de Sumatra no fim de 2004 matou centenas de promessas de um futuro melhor e recrutadas pelo
na economia e na política. Isso está refletido na milhares de pessoas e transformou outras centenas tráfico sexual para trabalhar como “acompanhan-
baixa presença das mulheres em empregos de alto de milhares em deslocadas. O tsunami causou tes” de trabalhadores em regiões industriais e
valor econômico e nos processos decisórios em uma devastação completa em algumas áreas e são em outros países.
diferentes níveis. necessários muitos recursos para a reconstrução.
Além disso, uma longa estação seca, causada por Para avançar
Burocracia e corrupção no governo mudanças climáticas, fez com que agricultores(as), Nas circunstâncias atuais, não existe uma maneira
O principal problema de muitos dos programas especialmente na parte oriental do país, perdes- única de eliminar a pobreza e a injustiça. Estraté-
de desenvolvimento implementados, incluindo os sem suas fontes de produção. E trouxe a fome. gias múltiplas em níveis diferentes precisam ser

Observatório da Cidadania 2005 / 86


desenvolvidas e aplicadas, assim como várias
organizações e países precisam ser envolvidos.
• Em termos econômicos, a pobreza está ligada
a problemas de renda. No entanto, é preciso
aplicar uma definição plural de pobreza, pois
o conceito baseado na renda não pode
explicá-la plenamente, especialmente nas
áreas rurais, onde as pessoas são pobres em
termos materiais e estão debilitadas fisica-
mente, isoladas, vulneráveis e indefesas.
• Metodologias, estratégias e abordagens base-
adas no gênero devem ser aplicadas para
desenvolver os programas de redução da
pobreza. O marco de referência e a Declaração
de Pequim continuam válidos e relevantes,
devendo ser utilizados como diretriz no desen-
volvimento de uma política nacional de redu-
ção da pobreza.
• É preciso ter enfoques descentralizados nas
políticas e estratégias de desenvolvimento,
para enfrentar melhor as particularidades re-
gionais. Deve-se dar atenção especial às áreas
de conflito, regiões remotas e isoladas, assim
como às áreas menos desenvolvidas.
• Um sistema de governo transparente deve ser
promovido e desenvolvido, por meio da apli-
cação das leis contra a corrupção, levando a
julgamento todos os casos e punindo os(as)
culpados(as).
• Todas as leis, regulamentos e práticas admi-
nistrativas devem ser revistos, para assegurar
direitos e acesso iguais aos recursos econô-
micos às pessoas pobres, especialmente as
mulheres. A abordagem baseada nos direitos,
no marco de “justiça para todos e todas”,
precisa ser integrada a todas as leis, às polí-
ticas públicas e aos regulamentos.
• Devem ser construídas alianças com pessoas
de diferentes níveis, para melhorar seus meios
de subsistência, sua capacidade de liderança e
a habilidade para defender seus direitos.
• Precisam ser desenvolvidas forças regionais
e internacionais para combater a globaliza-
ção econômica e o domínio das corporações
multinacionais e pressionar contra a intro-
dução das políticas da OMC que prejudicam
os países pobres.
• É necessário fortalecer a cooperação entre
os países pequenos e pobres, tanto em nível
de governos como no plano das sociedades
civis, para diminuir o domínio das superpo-
tências e também para pressionar instituições
e países doadores pela redução da dívida.

Observatório da Cidadania 2005 / 87


MOÇAMBIQUE

Vulnerabilidade extrema
Com somente três décadas de independência, 16 anos de guerra devastadora até 1992 e indicadores
que o classificam como um dos países mais desfavorecidos do mundo, Moçambique tem urgência
em atingir as Metas de Desenvolvimento do Milênio. Uma governança transparente é essencial
nesse esforço.

Direitos Humanos e Desenvolvimento Comunitário problema grave em várias regiões por causa das Também requerem atenção especial as ques-
Custódio Dumas variações climáticas. Mais da metade da popu- tões ligadas ao gênero, pois as mulheres são um
lação (53%) sofre de desnutrição e 26% das crian- setor majoritário da população e estão em situação
Em 2005, Moçambique comemora seu 30o ani- ças menores de 5 anos têm peso baixo para sua muito vulnerável. Tanto os índices de pobreza
versário como um país independente da domina- idade (Pnud, 2004). como os de analfabetismo são muito altos entre
ção colonial portuguesa. Sua população supera A proporção de pessoas que vivem abaixo as mulheres. De acordo com o Fundo das Nações
19,4 milhões (INE, 2005 a), sendo composta por da linha de pobreza nacional atinge 69,4%. Com Unidas para a Infância (Unicef), a alfabetização
numerosas etnias, originárias do tronco banto. menos de US$ 1 diário, vivem 37,9% da popula- atingia 60% dos homens em 2000, mas somente
A maioria da população urbana é cristã ou mu- ção, enquanto 78,4% vivem com menos de US$ 29% das mulheres (Unicef, 2005). Para aquele
çulmana, a qual predomina no norte. 2 por dia (Pnud, 2004). Em 2002, o PIB cresceu ano, a mortalidade materna era calculada em mil
Em 2004, o país adotou uma nova Constitui- quase 8%. A renda per capita anual de 2002 foi para cada 100 mil nascidos vivos.
ção que substituiu a de 1990. O marco mais im- calculada em US$ 230 (Moçambique, 2004 b). O desemprego afeta quase 60% da popula-
portante dessas Constituições são os princípios O orçamento do governo continua extremamente ção economicamente ativa2 e é apontado como
do multipartidarismo e da liberdade de expres- dependente da ajuda externa. uma das causas da pobreza e da criminalidade.
são, que possibilitam a participação ativa de Para enfrentar a pobreza extrema, o governo Deve-se somar a isso o aumento do custo de vida,
pessoas de diversas opiniões na construção da adotou como objetivo central em 2001 o Plano a instabilidade da moeda nacional diante da
democracia. Esses princípios estavam ausentes de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta, com altíssima inflação, o acesso difícil aos serviços
da primeira constituição do país, que foi adotada, a meta de promover o desenvolvimento humano públicos e o consumo de drogas.
sob a ideologia marxista, em 1975, ano da inde- e criar um ambiente favorável ao crescimento rá- A distribuição desigual de infra-estrutura, de
pendência nacional.1 A nova constituição amplia pido, inclusivo e amplo (Moçambique, 2001). pessoal qualificado e da riqueza favorece a região
as garantias de respeito pleno aos direitos e às Suas áreas de ação fundamentais são: educação, sul em prejuízo do norte do país. Por exemplo, de
liberdades da cidadania, criando mais órgãos de saúde, agricultura e desenvolvimento rural, infra- cerca de 300 advogados existentes no país, me-
soberania e mecanismos de aplicação (artigos 56, estrutura, boa governança e gestão macroeconô- nos de 15 trabalham no norte, onde vivem quase
73 e 133) (ver Moçambique, 2004 a). mica e financeira. Esse programa, além de ser 8 milhões de habitantes (Moçambique, 2004 b).
Moçambique é um dos países menos desen- totalmente desconhecido pela população do país, A falta de alimentos e de infra-estrutura viá-
volvidos do mundo. De acordo com o Índice de na sua maioria analfabeta, não atende à realidade ria, estradas e pontes dificulta muito a vida de
Desenvolvimento Humano (IDH), está na posição e deixou clara a omissão do Estado em sua fun- cidadãos e cidadãs. Em algumas localidades, o
171 num total de 177 países, com um índice de ção de provedor de serviços básicos. hospital ou a escola mais próximos localizam-se
0,354 (Pnud, 2004). O novo governo, eleito no fim de 2004, as- de 20 a 50 quilômetros de distância.3
Cerca de 70% das pessoas que moram nas sumiu o compromisso de radicalizar o combate à Sem acesso à água potável, mais de 65% da
áreas suburbanas e rurais mantêm uma econo- pobreza absoluta e de expandir a rede de sanea- população usa água de rios, açudes e poços casei-
mia doméstica, baseada na agricultura de subsis- mento e de escolas, com base numa governança ros no consumo diário. O saneamento precário e
tência. A insegurança alimentar continua a ser um participativa. Isso está declarado no seu Plano a falta de habitação adequada tornam as pessoas
Qüinqüenal, que, no entanto, não descreve ações vulneráveis a catástrofes e epidemias. A epide-
concretas (Moçambique, 2005). Até agora, os mia principal e mais freqüente é a da malária.
esforços para melhorar a qualidade de vida da
1 Em 1975, a Frente de Libertação de Moçambique
população pela redução da pobreza têm sido Mais da metade de pessoas analfabetas
(Frelimo) declarou a independência e, dois anos depois,
adotou o marxismo-leninismo como orientação ofuscados pelo alto nível de corrupção em que Entre as pessoas com mais de 15 anos, 53,5% eram
ideológica. Em 1990, o governo iniciou negociações vive o país, o que distancia ainda mais o governo analfabetas em 2002 (Pnud, 2004). Das alfabeti-
com a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo),
das metas públicas propostas. zadas, somente 4% têm formação universitária e,
facilitadas pela Constituição promulgada naquele ano,
que admitia um sistema multipartidário. A Organização na maioria, moram na capital, Maputo.
das Nações Unidas (ONU) se envolveu em 1992 com um Graves riscos
Plano de Paz, e, nas eleições de 1994, o candidato do Em 2002, 44% dos moçambicanos e moçambi-
partido Frelimo e presidente desde 1986, Joaquim 2 www.ine.gov.mz/publicacoes. Acesso em: 3 set 2005.
canas tinham menos de 15 anos, o que torna ur-
Chissano, obteve mais de 53% dos votos. Chissano foi 3 Segundo dados da Organização para o Desenvolvimento
reeleito em 1999. Em 2005, assumiu a presidência gente e prioritária a abordagem dos problemas Comunitário referentes à pesquisa realizada em 2003 na
Armando Guebuza, empresário da Frelimo. que afetam a infância no país (INE, 2005 b). província de Manica, nos distritos de Macossa e Tambara.

Observatório da Cidadania 2005 / 88


Os serviços educacionais são ineficientes, homens conheçam pelo menos duas maneiras de de justiça formal: o sistema civil e penal e o
principalmente para quem vive nas zonas rurais. prevenir o HIV/Aids, somente 6% das mulheres sistema militar. O Supremo Tribunal de Justiça
A falta de material escolar (livros, caderno e esfe- e 12% dos homens declaram ter usado preser- administra o sistema civil e penal, e o Ministé-
rográficas), a ausência de professores(as) e a in- vativo na última relação sexual (Moçambique rio da Defesa Nacional comanda os tribunais
suficiência de escolas tornam impossível o aces- e INE, 2002). militares (STJ, 2005).
so à educação. Embora o ensino primário básico Como existe uma forte penetração da Frelimo
tenha sido declarado gratuito, tem havido cobran- Altos níveis de corrupção nos tribunais e no aparato estatal, o abuso de
ças de taxas com o pretexto da manutenção e da Depois da assinatura dos acordos de paz em Roma poder e a impunidade dos infratores tornam
ação social da escola. Como resultado, quase a (1992), entre o partido da Frente de Libertação cada vez mais difícil o combate à corrupção e à
metade das crianças em idade escolar está fora de Moçambique (Frelimo) e a Resistência Nacio- má governança.
do sistema de educação nacional. Em 2004, 60% nal Moçambicana (Renamo), que puseram fim a Entre 2000 e 2004, cresceu bastante o índice
das crianças ingressaram no ensino primário, uma guerra de quase 16 anos, há um crescente de criminalidade. Alguns agentes da polícia e
porém somente 52% delas chegaram à quinta clima de paz, favorecendo o crescimento social, outros funcionários públicos operam como mem-
série (Pnud, 2004). econômico e cultural. No entanto, a gravidade da bros ou cúmplices do crime organizado. A cor-
corrupção na administração pública e a fragilidade rupção estendeu-se a todos níveis, e a polícia, mal
Atendimento precário à saúde do sistema judicial são fatores que retardam o remunerada e sem profissionalismo, utiliza a vio-
O atendimento à saúde também é deficiente. desenvolvimento socioeconômico.5 lência e as prisões para intimidar as pessoas,
Segundo o Pnud, havia dois médicos para cada Na província de Inhambane, a corrupção foi impedindo a denúncia dos abusos e extorquindo
100 mil habitantes em 2003 e, em 2002, somente identificada como maior obstáculo ao desenvolvi- os vendedores de rua (Mosse, 2005).
44% dos partos foram atendidos por pessoal qua- mento econômico. Nessa localidade, as empresas
lificado. Em 2002, a vacinação contra o sarampo gastam em média 9,5% de seus lucros líquidos Crise nas prisões
atingiu 58% das crianças menores de 1 ano, a em comissões ilegais (Mosse, 2005). As condições das prisões são extremamente du-
mortalidade infantil alcançou 125 para cada mil Em 2003, o relatório do Fórum Econômico ras e ameaçam a vida humana. Duas Direções
nascidos vivos e a mortalidade de menores de 5 Mundial sobre competitividade na África colocou Nacionais de Prisões (DNP), uma sob a tutela do
anos chegou a 197. Moçambique na 19a posição, entre 21 países, em Ministério da Justiça e outra do Ministério do In-
O índice de prevalência do HIV/Aids conti- termos de subornos ilegais em operações de terior, dirigem as prisões em todas as capitais
nua preocupante. A doença afeta cerca de 16% importação e exportação; na 17a posição quanto provinciais. As DNPs também enviam alguns pri-
da população adulta4 e a esperança de vida baixou ao suborno de altos funcionários governamentais; sioneiros para uma penitenciária agrícola em
para 38,1 anos. Se não tivessem sido afetados e também na 17a quando se tratava da falta de Mabalane e para penitenciárias industriais em
pela pandemia, moçambicanos e moçambicanas independência do aparato judicial (Fórum Econô- Nampula e Maputo. A maior parte dos presos re-
teriam uma esperança de vida de 64 anos, coe- mico Mundial, 2005). cebe somente uma refeição por dia, composta
rente com a média de crescimento global. Em outubro de 2003, a Assembléia da Repú- de feijão com farinha de mandioca. As famílias
Depois da malária, a Aids é a principal causa blica aprovou a Lei Contra a Corrupção, que pre- costumam levar comida para os prisioneiros,
de mortalidade. Além disso, o número de crian- tende conter a corrupção nos gabinetes de go- porém existem alguns relatos de guardas exigin-
ças órfãs e de famílias mantidas por menores verno, polícia, hospitais e escolas. do propina para autorizar esse tipo de entrega
de idade vem crescendo nos últimos dez anos. A fragilidade do sistema judicial é causada (Moçambique, 2004 b).
Em 2001, havia 418 mil crianças órfãs de pais e principalmente pela falta de juízes formados, pois Há um grande número de mortes dentro das
mães por causa do HIV/Aids. Estima-se que um muitos tribunais funcionam com pessoal sem for- prisões, em sua grande maioria causadas por
milhão de crianças foram diretamente afetadas mação universitária. Além disso, o número de de- doenças. Em 2005, alguns presos morreram de
pela doença, segundo notícia divulgada, em 2005, fensores públicos não consegue atender à deman- um suposto envenenamento.
no site Stop. A pandemia causa, além disso, a da da população (STJ, 2005). O país tem menos As instalações carcerárias estão superlotadas
perda dos poucos quadros técnicos existentes. de 200 juízes. Há dois sistemas complementares e geralmente abrigam de duas a seis vezes sua
Isso representa um obstáculo para o desenvolvi- capacidade máxima. Em 2001, a organização não-
mento e um dos motivos da redução gradual da governamental Associação Nacional de Apoio e
renda per capita nacional, de 0,3% a 1% no perío- Proteção aos Prisioneiros realizou uma pesquisa
do de 1997 a 2010, segundo dados da pesquisa sobre as cadeias do país e verificou que, entre
“Pobreza e bem-estar em Moçambique: segunda outras, a Prisão Central de Beira alojava 705 re-
5 Ver a reportagem “Polícia e Justiça, os piores no
avaliação nacional” (2004). clusos em um recinto previsto para 400 pessoas.
Relatório sobre Corrupção e Governança”, de 3 de junho
Segundo dados do governo, 58% das pes- de 2005, no site Stop (www.stop.co.mz/news). Em Nampula, havia 724 pessoas em uma prisão
soas que vivem com o HIV/Aids são mulheres e A pesquisa sobre corrupção e governança realizada pela construída para cem, e a Prisão Central de Maputo,
jovens e 75% das pessoas infetadas entre 15 e Austral Consultores revelou que 60,8% dos prevista para 800 pessoas, alojava 2.450.
funcionários públicos afirmam que a corrupção no
24 anos são mulheres (Moçambique e INE, Em contraste, a Prisão de Segurança Máxi-
setor público é “grave” ou “muito grave”, 34,9%
2002). Ainda que 44% das mulheres e 60% dos consideram o pagamento de suborno como uma ma de Machava, em Maputo, com capacidade para
prática comum, 33,3% das empresas pagaram 600 presos, tinha um número consideravelmente
subornos a serviços públicos, 20% dos usuários menor de reclusos. Cerca de 7.180 pessoas esta-
disseram haver pago subornos a serviços públicos,
vam detidas em prisões administradas pelo Mi-
12% das pessoas entrevistadas declararam que haviam
4 Em Moçambique, cerca de 700 pessoas são infectadas violado as regras dos concursos públicos e 11% nistério da Justiça (Moçambique, 2004 b).
diariamente. revelam terem desviado fundos.

Observatório da Cidadania 2005 / 89


Urgência PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVI-
MENTO (Pnud). Human Development Report 2004:
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acordadas na esfera da ONU, são uma ferramenta Disponível em: <http://.hdr.undp.org/reports/global/
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socioeconômicos num país que atravessa tantas SIDA afecta um milhão de crianças moçambicanas. Stop, 16
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extremas em todos setores e é urgente atendê-las. crian%E7as+infectadas&tipo=>. Acesso em: 5 set. 2005.
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níveis de corrupção na administração pública e


privada tornam a transparência um objetivo impe-
rioso na realidade moçambicana.
Além disso, espera-se que o perdão da dívida
de 18 países pobres, inclusive Moçambique, anun-
ciado em julho de 2005 pelos sete países mais
industrializados e a Rússia (G-8), incentive inves-
timentos maiores na saúde, na educação e no
combate à corrupção.

Referências
DIREÇÃO NACIONAL DE PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO et
al. Pobreza e bem-estar em Moçambique: segunda
avaliação nacional. 2004. Disponível em:
<www.sarpn.org.za/documents/d0000777/P880-
Mozambique_P_042004.pdf>. Acesso em: 3 set. 2005.
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Report 2003. 20 jul. 2005. Disponível em:
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MOSSE, Marcelo. Corrupção em Moçambique. Zambésia
Online, 20 jul. 2005. Disponível em:
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em: 3 set. 2005.

Observatório da Cidadania 2005 / 90


QUÊNIA

Sem recursos para financiar o social


Embora tenha implementado os mecanismos de políticas públicas para cumprir as Metas de
Desenvolvimento do Milênio (MDMs), o Quênia gasta atualmente uma parcela desproporcional
de suas receitas no serviço da dívida. Isso deixa poucos recursos para a redução da pobreza, a
promoção de educação e saúde. O país conclama as nações industrializadas a cumprirem suas
metas de doadores e a atenderem aos interesses comerciais dos Estados em desenvolvimento –
duas ações que ajudariam a provisão de fundos para os serviços sociais básicos.

Coalizão do Observatório da Cidadania do Quênia O serviço da dívida tem pressionado exces- Política de saúde
Edward Oyugi – Rede de Desenvolvimento sivamente a capacidade de o governo investir em Os objetivos2 das MDMs 4, 5 e 6 requerem políticas
Social (Sodnet) serviços sociais básicos, como saúde, educação, públicas eficazes e melhor alocação de recursos.
Oduor Ong’wen – Iniciativa do Quênia sobre água, saneamento e habitação de baixo custo. Em 1994, o governo desenvolveu um Marco de
Informações e Negociações Comerciais na África Entre 1997 e 2001, o país gastou 490 bilhões de Referência para Políticas de Saúde no Quênia, a
Meridional e Oriental (Seatini)
xelins quenianos (US$ 34 bilhões) em pagamentos fim de “promover e melhorar as condições de
Lumunba Odenda – Aliança da Terra do Quênia
da dívida. Isso equivale a 52% do total de receitas saúde da população, por meio de uma cuidadosa
Njuki Githethwa – Rede Queniana para a Redução da
Dívida (Kendren) governamentais no período, que totalizaram 936 reestruturação do setor de saúde, para tornar
Wahu Kaara da Campanha MDM da Kendren bilhões de xelins (US$ 12,4 bilhões). todos os serviços de saúde mais eficientes, aces-
Andiwo Obondo – Daraja Também o serviço da dívida vem desvalori- síveis e de baixo custo até 2010”. O Marco de
Alloys Opiyo – Sociedade Undugu do Quênia zando as receitas de exportação a um ponto em que Referência estabelece seis imperativos estraté-
os agricultores do Quênia produzem e exportam gicos para melhorar o acesso eqüitativo à saúde
Em setembro de 2000, foi adotada a Declaração basicamente para pagar o serviço dos emprésti- e ao atendimento médico:
do Milênio das Nações Unidas, juntamente com mos. No período entre 1997 e 2001, era de 16% • alocação eqüitativa de recursos governamen-
suas oito MDMs, tendo como foco a redução da a relação entre o serviço da dívida externa e as tais, para reduzir as disparidades nas condi-
pobreza à metade até 2015. Essas metas repre- exportações. Isso significa que, para cada US$ 10 ções de saúde;
sentavam a aspiração de melhoria humana ex- de exportações, quase US$ 2 ia para o paga-
pressa em um conjunto de 18 objetivos numéri- • melhoria da eficiência na alocação e no uso
mento da dívida ou para agências de crédito para
cos e com prazo para serem atingidos, que tam- de recursos;
exportação (Cadec, 2003).
bém incluem 48 indicadores. Em 2003, as exportações totais de bens e • administração do crescimento populacional;
Porém, com a sobrecarga do serviço da dívi- serviços não-atribuídos a fatores1 atingiram 183,2 • melhoria do papel regulatório do governo
da e a desregulamentação do comércio, investi- bilhões de xelins (US$ 2,4 bilhões) (ver Quênia, em todos os aspectos da provisão do aten-
mentos e finanças – aspectos importantes da 2004). O montante gasto no serviço da dívida dimento à saúde;
globalização –, o esforço feito pelos países em naquele ano foi de mais de US$ 500 milhões. • criação de um ambiente favorável a um cres-
desenvolvimento, como o Quênia, para atingir O Quênia é um país onde 7 milhões de pessoas, cente envolvimento do setor privado e da
essas metas e objetivos é o mesmo que “correr numa população total de 30 milhões, subsistem comunidade na provisão e financiamento dos
atrás de uma miragem”. com menos de US$ 1 por dia (Pnud, 2004). Seria serviços de saúde;
O Quênia vai deixar de cumprir por larga possível eliminar a pobreza no país, se o que é
margem os dois objetivos da MDM 1 – reduzir à • aumento e diversificação dos fluxos de finan-
gasto com o serviço da dívida fosse investido em
metade até 2015 o número de pessoas vivendo com ciamento per capita para o setor de saúde.
programas de erradicação da pobreza. No perío-
menos de US$ 1 por dia e daquelas que passam do 2001–2002, o governo gastou 80 bilhões de Um Plano Estratégico Nacional do Setor de
fome – em virtude do desvio de recursos dos ser- xelins (US$ 1 bilhão) no serviço da dívida e alocou Saúde para o período 1999–2004 foi também
viços sociais básicos e da criação de emprego para somente 16 bilhões de xelins (US$ 212 milhões) desenvolvido pelo Ministério da Saúde com a meta
o serviço da dívida externa. Até junho de 2004, o para a saúde e 57 bilhões de xelins (US$ 755 mi- de prover “pacotes [de saúde] essenciais, que
estoque total da dívida do Quênia era de 643,4 lhões) para a educação. sejam aceitáveis, de baixo custo e acessíveis a
bilhões de xelins quenianos (US$ 8,5 bilhões). quenianos e quenianas em todos os níveis, en-
Contra o pano de fundo de receitas anuais quanto é criado um ambiente favorável a fim de
de 237,4 bilhões de xelins (US$ 3,1 bilhões) e que outras partes interessadas possam contribuir
um PIB de 1 trilhão de xelins (US$ 13,3 bilhões),
a dívida do país está em cerca de 65% do PIB e
representa mais de 300% das receitas anuais. 1 A Organização para Cooperação o Desenvolvimento
Econômico (OCDE) define os serviços não-atribuídos a 2 “Entre 1990 e 2015, reduzir em dois terços a taxa de
O estoque da dívida interna alcança 290,4 bilhões fatores como serviços de transporte, viagem, mortalidade das crianças menores de 5 anos”, “Entre
de xelins (US$ 3,8 bilhões) da dívida total. Em comunicações, construção, seguros, financeiros, 1990 e 2015, reduzir em três quartos a taxa de
julho de 2004, a composição da dívida do Quênia serviços computacionais e de informação, royalties e mortalidade materna”, “Até 2015, cessar a
era: 57% multilateral, 35% bilateral e 8% relacio- taxas de licenças e outros serviços empresariais, disseminação do HIV/Aids, a incidência da malária e
assim como serviços pessoais, culturais, recreativos de outras doenças principais e iniciar sua reversão”,
nados a créditos comerciais e de exportação. e governamentais. respectivamente.

Observatório da Cidadania 2005 / 91


para a redução do ônus das doenças e das neces- pobreza continua a crescer: de menos de 40% O objetivo do Mpet é cessar e inverter o de-
sidades não atendidas”. O Plano Estratégico tem durante a década de 1980 para 57% em 2003. clínio da matrícula escolar, diminuir as taxas de
os seguintes objetivos e metas: Atualmente, pelo menos 12 crianças de cada cem evasão e aumentar a participação, independente
• 90% de cobertura de todas as vacinas, quan- nascidas vivas não chegam ao quinto aniversário de gênero, região, nível de renda familiar ou defi-
do atualmente essa cobertura é de 63% em (Unicef, 2005). ciência. Esse plano enfatiza a qualidade da edu-
85% dos distritos; Recentemente, o governo propôs o Plano cação e apresenta diretrizes de políticas públicas
• 30% de redução da desnutrição entre crian- Nacional de Seguro de Saúde Social, que garantiria e estratégias para melhorar o acesso e a partici-
ças menores de 5 anos; a cada cidadão e cidadã o acesso a serviços de pação, assim como a qualidade, a relevância e a
saúde pública e a tratamento médico. No entanto, gestão do sistema educacional. As duas estraté-
• redução de 30% nas taxas de morbidade e
o presidente Emilio Mwai Kibaki negou-se a trans- gias principais do plano são: desenvolver progra-
mortalidade causada pela malária;
formar o plano em lei, em parte por causa da inter- mas educacionais e de treinamento que estejam
• redução de 10% na prevalência do HIV/Aids
venção do Fundo Monetário Internacional (FMI) e racionalmente ajustados às políticas fiscais em
e de 50% na prevalência das doenças sexual- das pressões das grandes empresas. nível micro, com normas claras de responsabili-
mente transmissíveis (DSTs); dade e sustentabilidade; e desenvolver novas abor-
• aumento da cobertura dos serviços de saú- Política educacional dagens para melhorar a coordenação central das
de reprodutiva e planejamento familiar de No manifesto das eleições de 1963, o governo da funções profissional e orçamentária, tornando
60% para 75%; União Africana Nacional do Quênia assumiu o mais eficiente a infra-estrutura administrativa e
• redução de 70% para 40% da morbidade das compromisso de oferecer um mínimo de sete anos gerencial e descentralizando a responsabilidade
crianças menores de 5 anos atribuída a sa- de educação primária gratuita. Isso foi reiterado para instituições e comunidades locais.
rampo, pneumonia, diarréia e desnutrição; em subseqüentes manifestos e planos de desen- Como conseqüência desse plano, o Mest
• aumento de 30% na provisão de água potá- volvimento nacional. Entre 1974 e 1978, houve desenvolveu o Guia Nacional sobre Educação para
vel e saneamento nas áreas rurais. tentativas de cumprir esse compromisso com a Todos – Ano 2000 e Além, que esboça um pro-
Os dois documentos citados constituem os abolição das taxas e impostos escolares em todas grama abrangente de desenvolvimento da primeira
instrumentos políticos e operacionais necessários as escolas primárias públicas. Esses avanços fo- infância, especialmente voltado a crianças vulne-
para perseguir até 2015 as metas de redução de ram paralisados quando os PAEs impuseram taxas ráveis e desprivilegiadas. Está também focaliza-
dois terços da taxa de mortalidade das crianças de usuário e o congelamento da contratação de do na melhoria da qualidade da educação, para
menores de 5 anos, conter a disseminação do HIV/ novos(as) professores(as). que todas as crianças alcancem resultados de
Aids e reverter a incidência da malária e de outras Enquanto na década anterior ao ajuste es- aprendizado reconhecidos e mensuráveis, espe-
doenças principais. trutural (1972–1982), a matrícula na escola pri- cialmente na alfabetização, cálculos numéricos e
O governo desenvolveu o Plano Nacional mária cresceu 8,2%, ela diminuiu de ritmo para habilidades vitais. Além disso, busca assegurar que
Estratégico de HIV/Aids para o período de 2000 a somente 2,7% durante a primeira década do ajuste a necessidade do aprendizado de jovens e pessoas
2005, cuja meta era conter a epidemia e reduzir (1982–1992) e declinou 6,3% na década seguinte adultas seja atendida pelo acesso eqüitativo a pro-
seu impacto, pela diminuição entre 20% e 30% (1992–2002). A matrícula na escola secundária gramas de aprendizado e de habilidades vitais.
da prevalência do HIV até o fim deste ano, na faixa apresentou a mesma tendência, crescendo 9,1% O guia também inclui os seguintes objetivos:
etária de 15 a 24 anos, aumentando o acesso ao durante o período 1972–1982 e declinando para • assegurar que, até 2015, todas as crianças,
atendimento médico e o apoio às pessoas infec- 3,2% durante os anos 1982–1992. O declínio tam- especialmente as meninas, em circunstân-
tadas e afetadas pelo HIV/Aids, além de refor- bém foi refletido na matrícula dos cursos de prepa- cias difíceis e aquelas que pertencem a mi-
çar a capacidade de resposta e coordenação em ração de professores(as), nos quais tinha havido norias étnicas, tenham acesso à educação
todos os níveis. um aumento contínuo de 8.683 candidatos(as) primária obrigatória, gratuita, completa e
Apesar do trabalho mencionado, a mortali- ao magistério em 1972 para 21.011 em 1990, de boa qualidade;
dade infantil, que teve grande queda no período seguido de um declínio para 19.154 em 1992 –
• eliminar, até 2015, as disparidades entre os
de 1960 a 1990, voltou a crescer. De mais de 190 uma queda que o próprio governo atribui aos
gêneros na escola primária e secundária;
mortes para cada mil nascidos vivos na década PAEs. Sem dúvida, isso conspirou contra a meta
de garantir que meninos e meninas completas- • alcançar, até 2015, uma melhoria de 50%
de 1960, a média de crianças mortas menores de
sem o ensino primário até 2015, eliminando a dis- na alfabetização de adultos(as) em todos
5 anos diminuiu para menos de cem por mil, na
paridade entre os gêneros nas escolas primárias os níveis, assim como o acesso eqüitativo
década de 1990, porém aumentou outra vez para
e secundárias, de preferência até 2005 e, no mais à educação básica e continuada, especial-
123 por mil nascidos vivos em 2003 (Unicef,
tardar, até 2015. mente das mulheres.
2005). A redução substancial no período de 1960
Em 1998, o Ministério da Educação, Ciência Os gastos reais no setor social vêm decli-
a 1990 foi atribuída às políticas governamen-
e Tecnologia (Mest, na sigla em inglês) publicou nando continuamente nos últimos dez anos, ten-
tais de controle da malária, da tuberculose, do
o Plano Diretor de Educação e Treinamento (Mpet, do havido uma redução do investimento per
sarampo, da cólera e de outras doenças alta-
na sigla em inglês) para 1997–2010. O Plano capita. Um estudo realizado pelo governo sobre
mente transmissíveis, assim como à política de
nacionaliza os resultados das Conferências serviços sociais básicos em 1998 concluiu que
atendimento médico gratuito.
Mundiais sobre Educação para Todos realiza- houve um declínio geral nos gastos públicos com
Com a adoção dos Programas de Ajuste Es-
das em Jomtien, Tailândia (1990) e em Dacar, serviços sociais básicos. Em 1995, caíram para
trutural (PAEs), o governo reduziu seus investi-
Senegal (2000), assim como do Marco de Refe- somente 13% dos gastos públicos, enquanto re-
mentos nas medidas de controle das doenças trans-
rência para a Ação da Educação para Todos na presentavam 20% em 1980. No ano fiscal de
missíveis e começou a cobrar taxas de usuário.
África Subsaariana (1999). 2003–2004, o governo gastou 0,4% em serviços
O número de pessoas vivendo abaixo da linha de

Observatório da Cidadania 2005 / 92


sociais básicos. Isso foi uma melhoria em rela- Comércio (OMC), têm tornado impossível aos PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O
DESENVOLVIMENTO (Pnud). Human Development
ção ao 0,3% gasto em 2002–2003 e a somente países pobres implementar políticas e instituições
Report 2004: cultural liberty in today’s diverse world.
0,1% no ano fiscal de 2001–2002. Com gastos de desenvolvimento autônomas. 2004. Disponível em: <http://hdr.undp.org/reports/
combinados de somente 1,2% em habitação, Apesar das promessas de realização de uma global/2004/pdf/hdr04_overiew.pdf>. Acesso em: 3 set.
água e saneamento, os objetivos da MDM 73 tam- rodada sobre desenvolvimento nas negociações 2005.
bém ficarão longe de ser alcançados. sobre o comércio, nada foi concretizado para atrair . Kenya Human Development Report 2001:
addressing social and economic disparities. 2002.
países pobres, como o Quênia, ao sistema de co-
60:40 – solução ou fantasia? mércio multilateral. Como os interesses dos países QUÊNIA. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento
Nacional. Economic survey 2004. Nairóbi: Impresa
A implementação plena do orçamento do Marco em desenvolvimento parecem contraditórios em Governamental, 2004.
de Gastos de Médio Prazo requer adesão estrita relação à agenda dos governos dos países desen- . Multiple Indicator Cluster Survey (MICS) 2000.
às prioridades de redução da pobreza identifi- volvidos e das grandes empresas, a estratégia dos Nairóbi: Imprensa Governamental, 2000.
cadas no processo de consultas do Plano Estra- países desenvolvidos tem sido a de ignorar, deixar QUÊNIA. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento
tégico de Redução da Pobreza. Embora essa seja de lado, fazer oposição, adiar, chantagear ou evitar Nacional; NAÇÕES UNIDAS. Millennium Development
Goals: progress report for Kenya 2003.
a maneira mais sensata de demonstrar o compro- ao máximo que os países em desenvolvimento
metimento do país com a redução da pobreza, na evoluam com a ajuda do comércio.
realidade, os compromissos assumidos antes Os últimos anos foram caracterizados por pra-
desse processo ainda são legalmente vincula- zos perdidos e promessas quebradas. As matérias
tórios. Portanto, o governo não pode simples- de interesse dos países pobres – reforma da agri-
mente abandonar aqueles compromissos por um cultura, avaliação da liberalização dos serviços,
novo sistema, sem correr o risco de enfrentar acesso a remédios essenciais e o tratamento espe-
batalhas legais com empreiteiras e provedores de cial e diferencial – têm sido deixadas de lado pelos
serviços aos quais deve grandes somas. países poderosos. Ao contrário, as potências comer-
Para chegar a um acordo com concessões ciais vêm perseguindo uma agenda de liberalização
mútuas, foi introduzida a fórmula dos “60:40”, comercial, privatização e desregulamentação dos
pela qual 60% do orçamento era baseado em con- investimentos nos países pobres, pela expansão dos
siderações históricas e incrementais, ao passo que atuais acordos da OMC, tais como o Acordo Geral
os restantes 40% eram alocados de acordo com sobre o Comércio de Serviços, e pela criação de
as prioridades de redução da pobreza. novos acordos, como os temas de Cingapura.4
Uma análise preliminar do orçamento mostra Os países industrializados podem facilitar o
que essa fórmula nunca foi implementada. O deslo- cumprimento das MDMs ao alcançar o objetivo
camento dos 40% nunca ocorreu. Ao contrário, de 0,7% de ajuda, assumir o compromisso de can-
desde 2001, somente uma parcela decepcionante celar dívidas, controlar as corporações transna-
de 10% a 15% foi utilizada para as prioridades de cionais, reduzir ainda mais as emissões de gases
redução da pobreza. estufa e respeitar o espaço político africano. De
A derrocada da fórmula ocorreu quando foi outra forma, os mercadores não vão se retirar do
decidido designar fundos de acordo com o histó- templo. Atualmente, eles estão ocupados 24 horas
rico de gastos, pelo qual 86% das despesas eram por dia nos caixas automáticos.
feitas na capital e somente 14% nos distritos. Essa
decisão entregou um poder substancial de aloca-
ção de recursos à capital, tornando impossível
aplicar a fórmula dos 60:40 às prioridades de re- Referências
dução da pobreza nos distritos. ABAGI, O. Status of education in Kenya: indicators for
planning and policy formulation. Nairóbi: Ipar, 1997.
Parceria para o desenvolvimento CANCEL THE DEBT FOR THE CHILD CAMPAIGN (Cadec). Lift
the yoke, cancel Kenya’s debt. Nairóbi: The Chambers of
A Meta 8 dos Objetivos do Milênio espera que os
Justice, 2003.
governos dos países desenvolvidos forjem parce-
CONSELHO NACIONAL DE CONTROLE DA AIDS. Kenya
rias para o desenvolvimento voltadas ao cumpri- National HIV/Aids Strategic Plan, 2000–2005. Nairóbi:
mento das outras sete MDMs. Entretanto, esses Imprensa Governamental, 2000.
países poderosos e as instituições globais con- FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (Unicef).
troladas por eles, tais como as entidades finan- The State of the World’s Children. 2005. Disponível em:
<www.unicef.org/sowc05>. Acesso em: 3 set. 2005.
ceiras internacionais e a Organização Mundial do

3 “Até 2020, reduzir à metade a proporção de pessoas


sem acesso sustentável à água potável e conseguir 4 Os temas de Cingapura são: comércio e investimento,
melhorias significativas na vida de pelo menos 100 políticas de concorrência, transparência nas aquisições
milhões de moradores de favelas.” governamentais e facilitação do comércio.

Observatório da Cidadania 2005 / 93

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