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Curso Online de Filosofia – Transcrição da aula 087

(não revisada)

Boa noite a todos, sejam bem-vindos. O tema que eu queria explorar aqui é uma
continuação daquilo que foi dito nas gravações sobre o valor da educação literária, que foram
colocadas no Seminário não só para os alunos, mas para o público em geral. Vocês devem se
lembrar que, durante o primeiro ano do curso, eu dediquei várias aulas a uma espécie de
preparação para o ingresso no estudo filosófico e insisti muito na necessidade da educação
literária e artística de modo geral – o que, na época, nós chamamos de formação do imaginário. É
claro que a coisa vai muito além disso. Embora eu tenha dado, ali, algumas indicações que, na
época, me pareceram suficientes, vejo que a coisa parece não ter “pegado” completamente e vejo
isso pelo número de mensagens que eu recebo – ou por internet, ou até pessoalmente – de
pessoas dizendo: “Que livro eu devo ler?” Eu creio que eu já respondi isso, de uma vez para
sempre, nas primeiras aulas, quando disse: “Leiam a História da Literatura Ocidental, de Otto
Maria Carpeaux, e leiam os livros e autores que ele indica. Façam aí a sua lista de livros, os quais
vocês lerão pelos próximos 40 anos, e comecem a lê-los o mais rápido possível.” É claro que não
temos condição de dar um curso de literatura aqui, porque, senão, teríamos que mudar de
assunto. Então, como era uma parte apenas preparatória, limitei-me a algumas indicações
sumárias. Mas eu esperava que essas indicações fossem mais aproveitadas, fossem levadas mais
a sério e as pessoas entendessem que não é apenas uma sugestão que eu estou fazendo, mas é
praticamente uma lição de casa, uma coisa obrigatória. Quem não fizer isso jamais alcançará o
tipo de cultura literária que parece necessária para uma absorção correta dos debates filosóficos.

Vejam, o que é o processo de educação? A educação faz parte do processo mais geral de
maturação, de conquista da maturidade. O que é isso – o que é o desenvolvimento humano? Para
onde as pessoas se dirigem quando passam da infância para a adolescência e para a maturidade?
Qual é o conteúdo desse processo? Visto de fora, é a evolução biológica, digamos, o crescimento
do organismo e a conquista de certas possibilidades físicas que, para a infância, não existem.
Mas qual é o conteúdo interno disso? Isso pode ser explicado de muitas maneiras e uma delas, a
que escolhi hoje, foi extraída do filósofo espanhol Luis Cencillo. Ele explica que o
desenvolvimento humano consiste em você assumir progressivamente, de maneira cada vez mais
consciente e mais lúcida, o conhecimento e a posse que você tem de suas próprias dimensões, de
suas próprias possibilidades e também de suas incapacidades e deficiências – ou seja, há uma
espécie de ascensão de lucidez. Da infância para a adolescência, para a juventude, e para a idade
madura, você vai passando de uma espécie de nebulosidade geral até uma consciência mais clara
e mais lúcida de quem é você, o que é que você pode e não pode, quais são as suas limitações
etc.

Isso significa que podemos resumir tudo com a expressão a posse mental de si mesmo.
Nós sabemos, por exemplo, que uma criança, um adolescente, tem pouco controle do rumo de
sua vida, porque ele ainda nem sequer sabe quais são os seus verdadeiros impulsos, quais são

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seus desejos. Eles, de certo modo, o surpreendem, o pegam desprevinido, e ele, naturalmente, se
deixa levar por esses impulsos durante algum tempo. Ele não sabe se o impulso que está
atendendo no momento é uma coisa duradoura, estrutural, profunda ou se é apenas um capricho
do momento – ele não sabe disso. Ele precisa de alguma experiência, precisa que alguma
experiência passe, para que, aos poucos, se estabilize nele uma consciência do que realmente ele
está querendo. Mesmo assim, não existe possibilidade de você saber o que quer em todos os
domínios da vida. Quando eu digo “saber o que você quer”, estou me referindo a certos desejos e
aspirações específicas que se estabilizam. Não quer dizer, então, que o conjunto de suas
aspirações, desejos e impulsos se tornará claro para você, repentinamente; na verdade, não se
torna totalmente claro nunca.

Todo o processo do desenvolvimento humano é uma constante luta entre a claridade e a


névoa, entre a luz e as trevas. Quer dizer, no começo, você está totalmente imerso em um
conjunto de névoas, de onde aparecem desejos, temores, fantasias etc. e, à medida que se deixa
conduzir por esses impulsos e observa como eles operam em você, vai tomando consciência do
conjunto do material que está colocado dentro de você – colocado em uma desordem formidável,
hã? Mesmo no curso de uma vida inteira, muito dessa névoa inicial permanece obscura durante
uma boa parte da sua vida. Embora você não chegue jamais a um domínio mental completo de si
mesmo, a se conhecer de trás para diante, a ter um estado de transparência total para consigo, o
que importa, neste caso, é o esforço constante para que a parte luminosa, a parte transparente,
acabe abarcando o conjunto do seu ser de modo suficiente para que você possa ter alguma
certeza de que sabe o que está fazendo.

Então, isso que nós chamamos inteligência, consciência, mente, espírito etc. não é nada
mais que esse impulso de autotransparência, pelo qual você vai deixando de ser um estranho para
si mesmo e sabe o que pode esperar de si e qual será sua conduta em tal ou qual situação e sabe
quais são as limitações das quais você ainda padece e as quais você pode tentar superar dessa ou
daquela maneira. Isso tudo só é possibilitado por um fator, que é a reflexão sobre si mesmo. Quer
dizer, um indivíduo, da sua experiência, vai retirando elementos sobre os quais ele reflete. O
verbo refletir significa você dobrar-se uma vez mais para examinar alguma coisa; você teve uma
experiência, a qual colocou em ação certos impulsos, desejos etc., mas você não se limita a
vivencia-los na prática e, depois, reflete, volta lá para contar para si mesmo o que fez e para
estabelecer as ligações que essa conduta e essa situação têm com outros momentos que você
viveu, e assim por diante.

Então, aos poucos, existe uma ampliação – na medida em que você absorve novos
elementos de fora e de dentro, quer dizer, você toma conhecimento de novos fatos, impulsos e
dados – e existe um princípio de integração ou de unificação maior – na medida em que você não
se conforma em ser apenas a vítima ou o boneco passivo de seus próprios impulsos, mas quer
saber o que está fazendo e quer fazer escolhas conscientes, lúcidas, transparentes para você
mesmo. Note que, quando eu falo “impulsos”, entram, aí, não somente aqueles que vêm de
dentro de você, biologicamente, mas também aqueles que você apreendeu de fora. Muitos
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temores que o ser humano tem, muitas de suas inibições, são elementos puramente passionais,
como os próprios desejos, mas não vêm propriamente de dentro; vêm, às vezes, por uma
imposição do ambiente, pelo fato de, por exemplo, você ter se defrontado com situações
ameaçadoras quando fez isto ou aquilo, então fica com medo de fazer aquilo de novo – tudo isso
faz parte do mundo passional. Quer dizer que suas reservas, seus preconceitos, seus temores
morais, suas inibições etc. são tão passionais quanto seus impulsos sexuais, agressivos, de cobiça
etc. Tudo isso está no mundo passional; esses são os elementos materiais que compõem a sua
pessoa. [00:11:28]

O espírito, a consciência, é, ao contrário, a luz que você lança sobre tudo isso de modo a
fazer com que esses elementos – que, na sua origem, são obscuros – se tornem transparentes para
você. Quer dizer, para saber do que se tratam e, então, saber de onde os impulsos surgiram, como
eles operam, a que eles conduzem, quais serão as consequências de você agir dessa ou daquela
maneira e assim por diante. É claro que esse processo depende muito dos elementos intelectuais
dos quais você dispõe; a articulação desses vários elementos, por assim dizer, irracionais ou
instintivos depende de que você saiba nomeá-los, relacioná-los, saber qual a ligação que um tem
com o outro. Saber, por exemplo, que tipos de situações o levam a um estado de depressão
involuntária – quando você não quer estar triste, mas está. Existem fatores identificáveis que
podem produzir isso; quanto tempo o indivíduo leva para perceber o que produz aquele estado?
No início, ele simplesmente vivencia o estado como vítima passiva, como se o estado em que ele
se encontra lhe tivesse sido imposto de fora, ou imposto por uma força misteriosa; só aos poucos
ele vai percebendo que aquilo é um componente dele e que é uma maneira típica, por assim
dizer, de reagir nesta ou naquela circunstância. É absolutamente impossível esse processo de
integração e esclarecimento progressivos de sua pessoa para com você mesmo se você não
dispuser dos elementos linguísticos e simbólicos para dizer o que se passa com você. Então, de
cara, um primeiro elemento de obstáculo nesse desenvolvimento pessoal é exatamente a falta, a
carência, a pobreza dos meios expressivos dos quais o indivíduo dispõe para dizer até para si
mesmo o que está se passando com ele.

Uma experiência terrível que todo mundo tem é a de você ser um caso sui generis, na
qual tudo o que se passa dentro de você lhe parece tão diferente do que as outras pessoas estão
vivenciando que você imagina ser um caso à parte – portanto, a sua experiência não pode ser
expressa na linguagem das outras pessoas. Então, você tem, evidentemente, uma sensação de
isolamento, acompanhada, é claro, de um diagnóstico patológico que você faz sobre si mesmo –
aquela impressão que todo adolescente tem de que ele é louco. Todo adolescente teve isso algum
dia, quer dizer, ele acha que é um anormal, uma pessoa diferente dos outros. Na verdade, essa
impressão, esse sentimento, expressa apenas ignorância; quer dizer, como ele não tem linguagem
adquirida, modelos, símbolos etc., então ele imagina que aquelas coisas só se passam com ele.
Como essa experiência é extremamente desagradável, deprimente, o indivíduo, não conseguindo
elaborar aquilo, expressar, trabalhar e dar uma articulação racional para a coisa, o que é que ele
faz? Ele vai se apegar à experiências que sejam o contrário disso, que o façam sentir-se parecido

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com as outras pessoas e, portanto, integrado no grupo, aceito, amado etc. Assim, ele vai adquirir
uma série de condutas imitativas, mediante as quais ele espera se tornar uma pessoa normal, no
entender dele – tal como ele entende a normalidade naquele momento. Na verdade, isso cria uma
cisão entre o interior mais profundo e a imagem interior – e aí que você está entrando mesmo em
uma conduta patológica. Quer dizer que o esforço de sentir-se normal é um dos elementos mais
neurotizantes que existem; você está escondendo aquilo que é próprio, individual seu e está
tentando imitar o que aparece nos outros – mas você não sabe o que está dentro dos outros e,
muito menos, você sabe que eles estão passando pela mesma experiência que você.

Desde logo, não existe normalidade coletiva; a adaptação do indivíduo a um certo grupo,
a um certo meio, não significa, absolutamente, que ele seja normal. Não há como você entender a
normalidade como adaptação a uma conduta padronizada externa, porque essa conduta pode ser
usada simplesmente para encobrir a realidade profunda do indivíduo e, no caso, ele se divide. Aí
se cumpre aquilo que está, acho, na segunda carta de São Pedro Apóstolo, na qual ele diz que no
fim dos tempos viriam as pessoas que se ignoram a si mesmas. O ignorar-se a si mesmo tornou-
se, na sociedade moderna, quase que um hábito. Na medida em que a própria sociedade se torna
mais complexa, então o número de situações diferentes que você vive, de grupos e, portanto, de
exigências, de cobranças diferentes, tudo isso cria um problema de adaptação ao mundo exterior
que pode encobrir o próprio processo de desenvolvimento interno. Quer dizer, o indivíduo
abandona esse processo e passa a um processo de adaptação.

Essa adaptação é, em si mesma, neurótica, porque é a ruptura do indivíduo com a sua


própria vida interior e a adoção, então, de uma série de condutas que são meramente imitativas,
das quais algumas, é claro, podem lhe dar uma satisfação momentânea, no sentido de sentir que é
aceito. Mas esse sentimento de aceitação nunca é completo, sempre sobra uma dúvida, uma
suspeita, porque você sabe que está escondendo um monte de coisas – mas, daqui há pouco, não
se lembra mais que coisas são essas. Pelo simples fato de saber que está escondendo, você se
sente mais diferente dos outros quanto mais se esforça para ser igual a eles. Então, é claro que,
nesse caso, o próprio processo de desenvolvimento fica substituído por um outro processo; o
indivíduo confunde a evolução da sua personalidade com a adaptação ao meio social que ele
escolheu. Se ele não gosta de um determinado meio, ele vai para um outro que lhe parece mais
afim e tenta, de algum modo, se adaptar ali, sentir-se igual aos outros, amado, compreendido etc.
Mas, como esse tecido de relações se dá, exclusivamente, na base de códigos grupais mais ou
menos improvisados que têm pouco ou nada a ver com o verdadeiro desenvolvimento humano,
essa adaptação a um mundo exterior é, ela mesma, a causa de conflitos cada vez mais profundos.
Porém, esses conflitos, quanto mais profundos e quanto mais sérios, mais tendem a ser
soterrados e escondidos e a ser, cada vez mais, substituídos pela busca da adaptação. Pode ser a
uma profissão, a um determinado meio social, a determinados tipos de conduta... isso aí vai de
uma gama tal, que, por exemplo, você pode participar de um grupo punk, ou você pode arrumar
um emprego em uma multinacional – o problema é o mesmo, nos dois casos. Um lhe parece

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mais característico da sociedade, por assim dizer, oficial, e o outro lhe parece um pouco mais
marginal, mas o problema é o mesmo. [00:20:40]

Em todos os casos em que o processo adaptativo encobre o desenvolvimento humano,


você está sentado em cima de um barril de pólvora, e esse barril é você mesmo, porque você está
tentando se desconhecer, se ignorar e só pensar naqueles aspectos seus que coincidem com o
ambiente, que lhe parecem similares aos da conduta alheia. Embora essa adaptação social seja,
em si mesma, uma necessidade, ela não tem nada a ver com o desenvolvimento humano, ela é
uma outra necessidade. Mas quando ela encobre o desenvolvimento normal da personalidade,
então é claro que o que resulta daí é uma deformidade psicológica. Quando entendemos que o
destino do ser humano é exatamente chegar a essa autotransparência, na qual ele sabe quem ele
é, o que ele está fazendo e compreende todos os elementos antagônicos que tem dentro da sua
alma – e, portanto, da alma alheia – e, de algum modo, sabe articular esses antagonismos...
quando entendemos que essa situação, esse desafio de você conquistar alguma transparência em
cima da névoa da qual você se originou é um problema que se coloca a todos os seres humanos,
ao passo que a adaptação a este ou aquele grupo só se coloca a quem está naquele grupo, então
percebemos que isso não é uma necessidade universal. Veja, por exemplo, que o número de
pessoas com quem um indivíduo convive é muito variável conforme a sociedade onde ele está.
Se você mora em uma cidade pequena do interior, conviverá com um número relativamente
pequeno de pessoas, que serão sempre as mesmas; se você está em um meio urbano, então tem
um entra e sai de pessoas e um coeficiente enorme de convivências parciais e momentâneas, por
exemplo, com colegas de trabalho com quem você só vai se encontrar uma vez a cada três meses
– você vai passar naquele departamento e ver aquele sujeito que você nem sabe quem é. As
diferenças e necessidades adaptativas são enormemente variadas conforme a sociedade,
momento, lugar etc., mas o problema do desenvolvimento humano é o mesmo em todos os seres
humanos, não importando onde eles nasceram.

É claro que um desses problemas tem prioridade sobre o outro e que a própria
compreensão e eficiência do processo adaptativo depende do desenvolvimento humano.
Supondo-se que você tenha feito um esforço enorme para se adaptar ao seu grupo de juventude,
na escola, por exemplo, na primeira mudança de meio social, você estará completamente
deslocado de novo. Por exemplo, você arruma um emprego, ou vai para o exército, ou muda de
cidade e pronto, todo aquele seu investimento emocional foi perdido e você tem que fazê-lo de
novo. É claro que até essas adaptações se tornam imensamente mais fáceis se, em vez de estar
centrado no processo adaptativo, você estiver centrado no processo real de desenvolvimento da
personalidade – quer dizer, a personalidade está no centro e os seus vários papéis sociais estão
em volta. É claro que a adaptação a cada papel social se faz muito mais facilmente desde o
centro de sua personalidade do que desde a própria periferia. É com base nos elementos mais
estruturais, mais constantes e mais decisivos que você pode fazer adaptações bem-sucedidas a
diferentes meios nos quais lhe aconteça viver.

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Os elementos que compõem a alma humana – os instintos, os desejos, os temores – são
mais ou menos os mesmos em todos os seres humanos, quer dizer, você tem uma certa
universalidade de estrutura nessa coisa. Embora não conheçamos totalmente essa estrutura,
sabemos que existem elementos que são universais e constantes, os quais, em si mesmos, são de
uma riqueza quase inabarcável e a capacidade de apreensão intelectual disso é bastante limitada
nas pessoas, justamente porque os elementos simbólicos, linguísticos e valorativos de que o
indivíduo vai dispor para manipular esse seu universo interior e para, inclusive, perceber o que
nele é universal, singular e grupal, [ser capaz de perceber], por exemplo: “tem certos elementos
em mim que são universalmente humanos, outros que vêm da cultura onde estou, ou do grupo
que eu frequento, ou da minha família etc.” Então, você distinguir e conseguir articular
categorialmente todos esses elementos. Os símbolos e modelos de que você se serve para fazer
essa articulação vêm todos da cultura que você adquiriu, e acontece que a cultura da alma, quer
dizer, o conhecimento de si mesmo, simplesmente não faz parte da educação hoje em dia.

Você vai para a escola, aprende geografia, matemática, informática – mas como é que
você vai lidar com você mesmo? Na nossa sociedade, só existe uma circunstância na qual o
indivíduo tem de refletir sobre ele mesmo; é quando ele entra em um grupo de psicoterapia. Mas
note bem, psicoterapia é algo que acontece quando você já tem um sintoma mórbido qualquer, já
tem um elemento de sofrimento. Isso quer dizer que o problema da alma humana só entra em
linha de conta quando a alma já está doente; não há um aprendizado normal do desenvolvimento
humano. Pode procurar em todas as escolas, você não vai encontrar. Pode encontrar, por
exemplo, cursos de autoajuda – mas você só vai procurar autoajuda quando você já está
necessitado de ajuda, hã? É como se dissessem: “Só existe atenção para a alma doente”, ou seja,
existe atenção para as doenças da alma, mas não para a própria alma. Quando você faz uma
psicoterapia, o que é que vai acontecer ali? O psicoterapeuta, por qualquer técnica que ele use,
vai habilitar você a expressar, de algum modo, aquelas tensões e contradições que, de maneira
muda e quase inconsciente, se agitam dentro de você. Ele não vai fazer nada mais do que isso,
quer dizer, ensinar você a expressar e, uma vez expressada a tensão ou contradição, ela pode ser
manipulada e integrada de alguma maneira. Mas como só se dá atenção a isso nos casos em que
já há algum distúrbio, então, praticamente, somente os neuróticos, os doentes, têm direito a um
desenvolvimento da alma – as pessoas normais, não. O que significa que, se você conversa,
depois de algum tempo, com uma pessoa que frequente um grupo de psicoterapia, sei lá, há
meses ou anos, você verá que ela já tem um certo traquejo em lidar com suas próprias emoções,
temores etc., e ela aprendeu isso no grupo de psicoterapia. E a pessoa que não teve distúrbio
nenhum e está aparentemente normal não aprendeu a lidar com nada disso. [00:29:46]

Mas é claro que a paralização do desenvolvimento da alma já é, em si, um elemento


mórbido. Acontece que esse elemento mórbido é, frequentemente, aceito socialmente; quer dizer,
você tem o mesmo tipo de deformidade mental que os outros do seu grupo, então você é aceito
ali e um confirma que o outro é normal. Bem no fundo, todos desconfiam que são malucos; não
tem uma única pessoa que não seja acossada muitas vezes pela sensação de sua propópria

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anormalidade, de que ela constitui uma individualidade à parte, não traduzível nos termos da
experiência alheia, de que o mundo dela é separado das outras por uma barreira linguística
intransponível – ninguém jamais te entenderá, porque você não pode expressar isso na mesma
linguagem dos outros. Repito, você só vai aprender essa linguagem quando vai para um grupo de
psicoterapia; então, há uma certa vantagem em você ficar neurótico. Claro que estou falando de
grupos de psicoterapia que funcionem normalmente e que tenham alguma boa intenção de ajudar
os outros – o que não é o caso na maioria das hipóteses. Talvez eu esteja me referindo a grupos
de terapia tal como existiam há 30 ou 40 anos atrás, não como existem hoje.

Mas, em todos os casos, você vê que o problema do desenvolvimento da alma, da


conquista da transparência, é um problema de linguagem no fim das contas, um problema de
meios de expressão. Veja que as experiências humanas mais banais e mais universais podem lhe
parecer singulares e incomunicáveis se você não tiver os instrumentos para falar a respeito delas.
O exemplo mais característico é o do meu filho Tales, que uma vez chegou para a mãe e falou:
“Mãe, às vezes eu fico falando, mas eu não estou falando, é só dentro da minha cabeça.” E daí
ela disse: “Pois é, isso aí chama-se pensar.” E ele: “Oh! Você também faz isso!?” Esse é um
exemplo de uma experiência infantil, mas ele nunca tinha parado para pensar que os outros
também pensam. Esse exemplo extremo mostra como experiências que são universais, vividas
por todos, podem ser vivenciadas por um indivíduo como se fossem uma singularidade dele e se
transformar, então, em um abismo que o separa das outras pessoas – embora os outros estejam
vivendo a mesma coisa. A partir daí, os erros de percepção das situações podem crescer a tal
ponto que a inadaptação à realidade se torna o padrão estrutural de conduta do indivíduo pelo
resto da vida dele.

O que eu pergunto é: de onde você vai tirar a linguagem para expressar o que se passa
dentro da sua alma, que é um mundo que não se compõe de elementos físicos estáveis no espaço,
mas de estados, às vezes, fugazes, sutis, que não se repetem sob comando – como você fará para
expressar esses estados e, à medida que você expressa cada um, descobrir outros e mais outros,
cada vez mais ricos e complexo, que estão todos dentro de você neste momento? Você só pode
fazer isso mediante analogia com a experiência de quem vivenciou coisas similares e conseguiu
expressá-las em linguagem. Bom, essa é uma das funções mais óbvias da literatura. Note que não
se trata de você categorizar os vários estados e fazer como se fosse um dicionário e encontrar,
portanto, um padrão uniforme da conduta humana – não é assim, isso é utópico. Todo o
conhecimento que o ser humano tem nessa área é baseado em experiências individuais, as quais
nunca são totalmente iguais nem totalmente diferentes das experiências dos outros, mas guardam
uma relação analógica com elas.

O analógico é uma mistura de semelhanças e diferenças. Isso quer dizer que, para cada
pessoa que você conhece, para cada pessoa que já existiu no mundo, o seu mundo interior tem,
com o dela, uma relação analógica – há elementos similares e diferentes. Saber quais são essas
semelhanças e diferenças entre você e uma determinada pessoa é conhecer-se a si mesmo através
da imagem da outra e conhecer a outra através da imagem de você mesmo – e isso é a chave de
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toda e qualquer convivência humana. Como, apesar dos esforços dos psicólogos, não é possível
reduzir essa coleção de mundos interiores a um catálogo de produtos prontos, mas como você
depende sempre dos depoimentos individuais, então praticamente não há limite para o que você
possa descobrir e também não há limite para o que você necessita saber para descobrir essas
coisas. Daí vem a cultura do conhecimento da alma a partir do conhecimento das outras almas.

Quando você é um gênio da psicologia, às vezes até consegue descobrir o que se passa
dentro da alma de um sujeito que não consegue se expressar de maneira alguma, um indivíduo
que está totalmente confuso, que se ignora totalmente, que vive só de fantasias e temores
epidérmicos, mas que não entende qual é o problema dele mesmo. Então, um bom psicólogo –
acho que hoje não existem mais bons psicólogos, mas eu conheci alguns antigamente – consegue
apreender a linguagem muda que existe dentro desse camarada. Um exemplo clássico é o Milton
Erickson, o homem que inventou a Programação Neurolinguística. Ele era um sujeito paralítico,
não podia se mover, então vivia dentro do próprio consultório e, pela sua escassez de
movimentos, ele desenvolveu uma carga extra de percepção. Então, começou, aos poucos, a
reparar – ele era psicólogo clínico – nos olhares, gestos, mudança de tonalidade da pele de seus
pacientes, e acabou criando, para seu próprio uso – ele nunca escreveu um livro ou sistematizou
isso aí –, uma espécie de vocabulário não verbal. Através disso, ele conseguia não somente
perceber a linguagem muda do sofrimento interior dos seus pacientes, mas conseguia falar com
eles nessa linguagem, também obtendo, por isso, muito sucesso clínico no tratamento de
pacientes que eram inacessíveis à psicoterapia por não ter um nível de verbalização suficiente
dos seus problemas. Por exemplo, se o camarada está esquizofrênico, a capacidade dele de
verbalizar os próprios problemas é praticamente nula, ele sempre falará de outras coisas. Isso
quer dizer que a “máquina pensante” de um esquizofrênico é realmente como se fosse uma
máquina de falar, e esta não tem mais uma conexão com a máquina de sentir do indivíduo, com o
centro da consciência dele; ela é uma outra coisa, autônoma. Quer dizer, por baixo de todo o
falatório do sujeito, existe algum princípio de coerência que é justamente a sua doença, a fonte
dos seus padecimentos, e o Erickson conseguia saltar por cima da tagarelice psicótica através da
comunicação não-verbal. Mas, normalmente, nós não temos essa capacidade; a maioria de nós
não tem – eu não tenho e acho que a maioria não tem. Então, nós só chegamos a uma
compreensão da alma alheia na medida em que conhecemos os seus análogos na nossa – e só
conhecemos esses análogos através dos símbolos que a própria cultura nos forneceu, ou que nós
adquirimos nela. [00:39:43]

No caso, essa cultura a que estou me referindo se constitui, essencialmente, de narrativas.


Porque, quando você tem um problema, um sofrimento, na melhor das hipóteses, você consegue
narrá-lo, contá-lo – você conta o que está acontecendo. Mesmo assim, a sua narrativa é,
geralmente, falha. Às vezes basta você contar a coisa como ela realmente se sucedeu e você está
livre do problema, na mesma hora. Mas essas simples narrativas podem ser enormemente
problemáticas, porque você não tem os símbolos, as palavras adequadas para isso. Então, a
compreensão de alma para alma já é analógica. Mas se o indivíduo está muito distante de si

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mesmo, se sua linguagem está muito inadequada, então você fará a analogia da analogia da
analogia e a coisa pode parar tão longe que se torna indecifrável. Quer dizer que um
psicoterapeuta com a formação usual de psicoterapia, sem ter estudado esses negócios do
Erickson, se verá totalmente impotente diante de um paciente que não tem a capacidade de
expressão suficiente para verbalizar os seus problemas. É esse registro da experiência humana,
da experiência interior, que é a literatura universal, Meu Deus do Céu! Isso quer dizer o seguinte:
a diferença que aí existe entre a pessoa que tenha cultura literária e a que não tenha é como se
fosse a diferença de um ser humano para um porco-espinho. A possibilidade que a pessoa de
mais cultura tem de se integrar e conquistar uma certa transparência, um domínio sobre o
conjunto dos fatores da sua existência, é imensamente maior, incomparavelmente maior! Isso
quer dizer que ela não tropeçará facilmente nos problemas em que a pessoa inculta tropeça.

Vamos supor um indivíduo que, uma vez na vida, tenha tido uma tentação de fazer algo
que não devia fazer. Por exemplo, se apropriar de um dinheiro que não era dele – estava aí em
cima da mesa e ele pegou –, ou mexeu com a mulher do próximo, ou cometeu alguma baixeza
qualquer. Ele não sabe porquê ele fez isso e não tem a menor condição de articular e dizer assim:
“Olha, o meu problema é este.” Então, o que ele fará? Ele vai encobrir esse problema embaixo de
outros e mais outros e vai tentar buscar algum tipo de alívio, que pode ser sob a forma de
esquecimento, de repetir o mesmo ato várias vezes para se dessensibilizar e parar de sofrer
quando faz aquilo... Aliás, é assim que começa uma carreira de bandido, você faz uma coisa
maligna mas pequenininha, depois faz outra e outra e outra e outra para se dessenbilizar. Você
veja que, em todas essas quadrilhas de bandidos, o ritual de dessensibilização pode chegar à
exigência do noviço matar uma pessoa, e às vezes matar várias pessoas, invadir uma casa e matar
uma família inteira. A quadrilha dirá que isso é para o indivíduo provar que ele é machão,
corajoso etc., mas, na realidade, é um ritual de dessensibilização. Esses rituais existem, por
exemplo, em alguns ensinos profissionais, como em faculdades de medicina; o sujeito que faz
uma residência médica, muitas vezes os seus professores o forçarão a tratar sem anestesia um
paciente que poderia ser anestesiado. Para quê? Para você se dessensibilizar do sofrimento
alheio, aumentar o seu coeficiente de resistência ao sofrimento alheio.

Curiosamente, você veja: isso é um processo de desenvolvimento da alma? Não, é um


processo de adaptação a uma exigência profissional exterior, porque o fato de o indivíduo se
tornar menos sensível ao sofrimento alheio não quer dizer que ele se torna menos sensível ao seu
próprio. Veja a diferença que existe entre esse caso, que é uma mera adaptação externa, e o
indivíduo que aprendeu a suportar o seu próprio sofrimento e que, por isso, é capaz de medir,
com certa exatidão, a quantidade de sofrimento que o outro pode aguentar quando for necessário.
Por exemplo, suponha que você seja um sargento de exército e terá que forçar os seus soldados
para fazerem coisas de que têm medo de fazer; você pode medir a resistência deles, porque você
conhece a sua, você teve a mesma experiência do medo e de ter de se dessensibilizar para o
medo, então sabe até que ponto pode forçá-los à dessensibilização. Mas, no caso da prática
médica, não é a mesma coisa, porque o médico não precisa ter passado pela mesma doença. No

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caso, você adquire a dessensibilização como um mero elemento da sua personalidade exterior, da
sua identidade social, e não como uma conquista real da sua personalidade verdadeira.

Muitas vezes um indivíduo que, num momento, cometeu um deslize, uma falta etc.,
aquilo pode complicar, de tal maneira, a vida dele, que tudo, no restante da sua biografia, se
torna fuga daquele negócio, daquele ponto dolorido. Tem pessoas cuja personalidade inteira foi
construída em torno disso. Veja, uma pessoa que tem uma certa cultura literária não cai nessa,
porque ela conhece uma variedade de situações, as quais ela absorveu imaginariamente através
da leitura da ficção. Então, ela vai manipular isso muito mais facilmente. Por exemplo, quando
você lê Crime e Castigo, há o Raskolnikov, que é um estudante que se acha um gênio, um
reformador da humanidade, uma figura providencial, e que não se conforma de estar tão pobre e
desprovido de meios de ação. Enquanto, no seu prédio, mora uma velha usurária, que empresta
dinheiro a juros escorchantes e que acumulou uma quantidade formidável de dinheiro – com o
qual ela não faz nada, que não lhe tem utilidade nenhuma –, e ele pensa assim: “Mas por que eu
não posso matar essa velha aí e pegar o dinheiro para mim, para pagar os meus estudos etc.”
Metade do livro é a exposição do tecido interno da tentação dele. Esse impulso que ele tem não
aparece como um impulso primário, em bloco; é todo um tecido de conjeturas, temores,
justificativas etc., até o momento em que ele realmente comete o crime. Veja, a estória inteira do
personagem Raskolnikov gira em torno disso.

Assim como esse caso, existem inumeráveis outros dos quais você toma posse
imaginativamente, quer dizer, usando a experiência alheia. O próprio escritor, para escrever isso,
usou a experiência alheia; ele não matou velhinha nenhuma. Ele simplesmente ouviu um caso
aqui, outro ali e, juntando vários casos diferentes, compôs, imaginativamente, esse, no qual se
condensam, então, inúmeras experiências interiores humanas. Na narrativa desse último caso,
aparece ali uma riqueza de informação sobre a alma humana que é um negócio extraordinário.
Então, pelo simples fato de ter lido isso e pensado “o quê eu faria nesta situação?”, você já
encontrará ali um análogo para explicar mil e uma idéias, mil e um impulsos que você teve. E, à
medida que você progride nessas leituras e vai conhecendo essa variedade de existências
humanas possíveis, você adquire todos os meios para expressar o quê quer que esteja se agitando
dentro de você, até o ponto em que você chega àquela transparência que assinala, então, a
maturidade. [00:50:00]

Isso quer dizer que não existe maturidade fora de uma certa maturidade intelectual – isso
não existe. As pessoas que, num determinado meio social – brasileiro, por exemplo –, parecem
pessoa maduras, são apenas imitações externas de condutas estereotipadamente maduras. Então,
a maturidade passa a ser definida em termos meramente externos, de agir de certa forma; então,
por exemplo: a pessoa madura é aquela que tem a sua vida econômica regrada, não come a
mulher do próximo – e, quando come, consegue esconder direitinho, de maneira que ninguém
fica sabendo e não cria problema para ele, apenas para o coitado marido da outra – e assim por
diante. Então, é uma pessoa que está bem encaixada no meio social; mas, quando você vê, a alma
dessa pessoa é um conjunto de deformidades, às vezes, pior do que do camarada que está
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internado no hospício. É só você arranhar um pouquinho a casca e encontra isso; por isso que
tem aquele famoso ditado: “visto de perto, ninguém é normal”. Ora, se você não é normal de
perto, não é normal de maneira alguma; você só tem a aparência de normalidade. Na verdade, o
conceito certo não seria normalidade, mas sanidade.

A sanidade humana é marcada, justamente, não por uma conduta x ou y, igual a dos
outros, mas é marcada por essa transparência e por essa posse de si mesmo que o indivíduo tem.
Ou seja, ele sabe o quê está dentro dele; inclusive, sabe quais são os elementos antagônicos que
estão dentro dele e que ele não poderá vencer nunca – então, sabe suas limitações. Por exemplo,
ele sabe que tem determinadas condutas, mas já está livre delas; há outras, porém, que
constantemente se oferecem a ele, de novo e de novo, e que às vezes ele resiste, às vezes não.
Então, ele vai perceber, ali, uma espécie de linha de menor resistência dentro da organização da
sua psique. Ter essa autotransparência não significa ter o domínio total da situação; mas
significa, inclusive, saber onde você não pode ter domínio nenhum. Na hora que você conseguiu
mapear esse conjunto dentro de você e sabe onde estão suas forças e fraquezas, em nível
profundo – portanto, em níveis que as outras pessoas que convívem com você jamais
conseguirão imaginar que existam dentro de você, a não ser que você diga... tudo isso se reflete
na palavara “transparência” e não “domínio”; não há um domínio efetivo. É claro que ele
aumenta, mas nunca se realiza, porque qualquer alteração da sua situação física, social etc. pode
fazer com que toda a sua transparência vá para o brejo em cinco minutos.

Por exemplo, vamos supor que você sofra uma operação, uma cirurgia; você toma
anestesia, fica totalmente à mercê de outras pessoas, todos os seus autocontroles são desligados e
você, realmente, perde o fio da meada. Isso quer dizer que, depois de uma cirurgia, você tem
todo um processo de autoreconstrução, no qual você tem que puxar de novo, da memória, tudo o
que você sabia antes. Ou uma situação traumática que pareça, para você, superior às suas forças
em um determinado momento e na qual você não consiga agir à altura do que a situação
demanda. Hoje mesmo, eu assisti a um filme sobre um sujeito que era um médio, o único que
tinha na cidade, e tinha uma mulher lá que havia levado um tiro e ele precisava tirar a bala. Mas
acontece que, naquele dia, ele estava bêbado, e foi operar a mulher e ela morreu. Ele, daí, passa
vários anos sem conseguir mais praticar uma cirurgia; vê um bisturi e já quer distância. Então, a
conduta de longo prazo desse personagem foi decidida por uma situação traumática, na qual ele
não foi capaz de reagir à altura.

Se você não conseguiu reagir à altura, significa que você perdeu o controle intelectual
dos mecanismos de ação que tem dentro de você e já não sabe o que consegue ou não consegue
fazer; então, você se tornou, novamente, opaco para si mesmo e, daí, você perde completamente
a autoconfiança. Mas o problema não está nessa perda. O que o personagem perdeu não foi,
diretamente, a autoconfiança, mas sim a transparência, o conhecimento que ele tinha dos
elementos em jogo; de repente, ele vê que tem algo nele que não sabia existir. Ele descobriu: “Eu
sou um camarada capaz de cometer uma irresponsabilidade dessa e matar uma pessoa sem
querer! Então, eu não tenho o controle de mim mesmo. Se eu não estou controlando a mim
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mesmo, quem está? Que fatores obscuros determinam a minha conduta?” Então, a transparência
foi toda para o brejo em cinco minutos. Em todas as situações em que você se decepciona
profundamente consigo mesmo, o problema não está tanto na decepção – ela é apenas o
sentimento que se segue à situação –, mas na perda da transparência. Quer dizer, você se tornou
opaco, estranho a si mesmo. Se você não conseguiu lidar com a própria situação concreta, que
você enfrentou mal ou não soube enfrentar, como vai lidar com a opacidade que se segue a isso?
Fica mais difícil ainda, hã?

Nesses casos, aí é que existe todo o mecanismo da confissão, de você carregar o peso do
que você fez – não no sentido de acusar-se, não é isso; é no sentido de admitir que a
transparência que você imaginava ter não era real, que você conhecia pouco o que estava dentro
de você e que, portanto, agora você tem que conhecer mil vezes mais, ou não vai se sentir
seguro. Geralmente, as pessoas que passam por esse tipo de drama vivenciam a situação somente
do ponto de vista dos sentimentos morais e têm uma espécie de arrependimento emocional que
não serve para coisa nenhuma, que pode prolongar o problema indefinidamente, mas não
percorrem a curva do arrependimento real, que é mergulhar na situação profunda e entender o
que ela está exigindo de você. Quer dizer, em um primeiro momento, a situação exigiu algo que
você não foi capaz de enfrentar. E agora, a situação que se segue a essa – o que ela está exigindo
de você? Por exemplo, você pode, como o personagem desse filme a que assisti, viver, durante
um certo período, em um permanente ritual de autopunição. Por exemplo, se perguntam se ele é
médico, ele diz: “Eu era médico; agora não sou mais”. Como é possível deixar de ser médico?
Uma vez que você estudou medicina e ganhou um diploma de médico, é medico para sempre,
exerça ou não. Mas ele não se reconhece mais a si mesmo como médico; então, ele se rebaixou
de posição social. O rebaixamento de posição social pode ter um efeito curativo, em certas
circunstâncias, mas pode se tornar, por sua vez, outro mecanismo neurótico, quando você não
entende exatamente o que você está fazendo e qual a relação da sua conduta com a situação
anterior. [00:59:45]

Se você se perguntar assim: “Qual o valor efetivo desta minha autopunição? Eu estou me
redimindo? Em que o meu sofrimento beneficia Fulano, Fulano e Fulano?” Nada; então,
objetivamente, não funciona. “Este meu sofrimento está me melhorando ou me piorando?” –
muitas pessoas se castigam através de bebida, droga etc. ou rituais de sado-masoquismo. Por que
um sujeito vai em um clube de sado-masoquismo, levar chicotada? Ele sente a necessidade disso.
E para que serve a chicotada? Ele não lembra mais, nao sabe mais porquê está fazendo aquilo e,
no entanto, aquilo passa a ser vivido como uma compulsão irresistível. Se ele se lembrar de onde
surgiu sua necessidade de se submeter a essa humilhação, então não é compulsivo mais; agora é
um ato de livre escolha. Em tudo entra, aí, o problema da transparência e da lucidez, quer dizer,
o processo de amadurecimento é um processo de conquista da lucidez, da transparência, da
luminosidade; então, é uma perpétua luta da luz contra as trevas. Acontece que algumas pessoas,
um dia, adquirem esse impulso de busca da luz e da transparência como sua verdadeira vocação
e missão na vida, e são essas pessoas que chegam realmente a ter o nível de transparência

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desejável, porque isso se tornou a preocupação obsessiva delas, ou única. São as pessoas que
buscam adquirir informação, cultura e formação para aumentar a transparência da sua visão de si
mesma e do mundo, essas é que se tornam verdadeiras pessoas cultas e, nesse sentido, muito
mais humanas do que as outras, porque realizam mais plenamente a capacidade humana
fundamental, que é justamente essa capacidade da transparência – não a transparência total,
evidentemente; só Deus tem isso – mas ele não precisa lutar para tanto, ele é a própria
transparência. Ele não vive entre a luz e as trevas, como nós vivemos.

Então, essa busca da luz pode se transformar, desde muito cedo, em um empenho
formidável de adquirir cultura como meio de cultura de si mesmo, de melhoramento humano, e
de aperfeiçoamento da sua personalidade – não só como uma coisa bonita que você exibirá para
todo o mundo, embora a exibição do que tem de bom na sua personalidade seja uma obrigação.
Cristo diz “Você não acende uma vela para escondê-la” – está aqui, em Mateus 5,16: “Deixe que
a sua luz brilhe entre os homens, para que eles possam ver as suas boas obras e dar a glória a seu
Pai que está nos céus.” Essa é a verdadeira vocação que justifica e torna imprescindível,
obrigatório, o impulso de adquirir cultura. Esse impulso pode aparecer dentro das pessoas, mas
também vai se expressar na linguagem e com os símbolos da cultura ambiente na qual você está.

Como é que aparece isso no Brasil? Se você pegasse o Brasil de 50 anos atrás,
encontraria uma multidão de escritores, pensadores, artistas etc., pessoas altamente elaboradas,
muito conscientes, muito transparentes, e que podiam dialogar – seja através de suas obras, seja
pessoalmente – em um nível de consciência humana muitíssimo elevado. Claro, isso se refere à
sua intercomunicação tanto sobre sua vida pessoal quanto sobre sua vida intelectual, sua função
na sociedade etc. E hoje você não tem mais essas pessoas, não tem uma comunidade intelectual
que possa servir de modelo para as pessoas. Então, isso quer dizer que um indivíduo como vocês,
que têm um vislumbre dessa coisa, ele explicará isso, a si mesmo, nos termos da cultura
ambiente. Ora, na cultura ambiente, como não existe mais a figura do homem de cultura, só
existe então as figuras dos modelos profissionais que, vamos dizer, não são homens de cultura
mesmo, mas são os seus símbolos coisificados – então você tem a profissão de professor
universitário, de jornalista, de escritor etc. Mas é claro que esses meros papéis sociais não
indicam nenhum caminho para você seguir, são apenas nomes de profissões.

Mas nós não estamos falando da aquisição de um papel social, mas daquela de um poder
mental sobre si mesmo, de se tornar, como dizia o Lipot Szondi, o homo pontifex, o homem
construtor de pontes – é o indivíduo que constrói pontes entre os seus impulsos mais
antagônicos. Por exemplo, ele constrói uma ponte entre a luz e as trevas; ele não tampa as trevas
para viver na luz, porque isso é impossível. Ele tem que elaborar as suas trevas e,
gradativamente, introduzir a luminosidade dentro dela, no sentido do que Santo Agostinho dizia:
“As virtudes são feitas da mesma matéria que os vícios.” Então, você vai partir dos vícios, de
uma natureza viciosa, obscura, confusa, destrutiva e, aos poucos, vai trabalhar aquilo. Ora, não é
muito mais fácil você adquirir um papel social de uma pessoa religiosa? Daí você faz de conta
que as trevas não existem mais em você e, quando vê um pontinho de treva no outro, sai
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acusando, como esses pastores protestantes, toda hora, aparecem na televisão, uns falando mal
dos outros: “Ah, você é adultero, você é ladrão, você é narcotraficante, você é pedófilo.” Cada
um deles é uma figura sacrossanta que vive imersa na luz, na qual não há sequer um pontinho de
trevas. Quer dizer, são pessoas que fugiram ao desafio da vida, que não é o de adquirir um papel
social de pessoa boazinha, mas de trabalhar o mal e a confusão que existem dentro de você até
adquirir o domínio mental e a transparência sobre aquilo. Daí, naturalmente, a sua luz começa a
brilhar, sem que você precise sequer esconder os pontos obscuros que estão lá, porque não se
trata, vamos dizer, de um contraste absoluto entre luz e trevas, mas de uma luminosidade e de
uma obscuridade relativas.

Então, basta que, na composição geral, a luz, a transparência, predomine. Em quanto? Sei
lá, 51, 52% - esse, às vezes, é o máximo que o ser humano consegue. Mais ainda, o que importa
não é o que você conseguiu, mas que você não abandonou a luta pela transparência ou
luminosidade, está constantemente buscando-a. Ora, mas se você está constantemente buscando
a luminosidade, então está constantemente buscando os elementos culturais de que você
necessita para adquiri-la – isso quer dizer que você não pára de buscar conhecimento, 24 horas
por dia. Por isso, quando as pessoas perguntam para mim o que é que tem que ler: você tem que
ler tudo o que existe de melhor em todos os domínios do conhecimento que lhe são acessíveis!
Mas, no Brasil, quando a pessoa tem o impulso de ler um livro, ela já acha que realizou uma
grande coisa; e tem pessoas que acham que podem progredir nisso lendo um ou dois livros por
ano. Isso é absolutamente impossível. Quer dizer que a leitura de livros fundamentais é
obrigação constante, você nunca pode parar! Quando você tiver lido um volume considerável –
mas o problema não é só ler, você tem que guardar alguma coisa, trabalhar aquilo profundamente
para que a coisa se integre em você. [01:10:30]

Quando você tiver feito isso, verá que se abrem possibilidades de diálogo, de
comunicação, que você nunca tinha imaginado e que, quando você encontra pessoas que estão,
mais ou menos, no seu nível de formação, a troca é imediata, em dois minutos. Quer dizer, o
nível de compreensão mútuo aumenta de uma maneira que, para a pessoal sem cultura, é
totalmente impensável. Para aqueles que acreditam que é possível aproveitar alguma coisa da
vida intelectual sem ter a ambição de saber tudo o que você pode saber, o que eu tenho a dizer é
o seguinte: desistam! O número de elementos que você pode precisar conhecer para alcançar a
transparência da sua própria alma e poder, também, se comunicar com outros em nível mais
profundo é ilimitado – e o que importa não é o volume do que você adquiriu; o que importa é não
parar de adquirir, não deixar a bola cair e que nenhum outro interesse se sobreponha a esse.
Porque, mesmo do ponto de vista moral – pois a pessoa pode dizer: “Não, mas o que vai salvar a
sua alma não é o conhecimento que você tem, é a prática das virtudes” – só tem um caminho
para a prática das virtudes, meus filhos: é a conquista da transparência e a longa e dificultosa
transmutação dos seus vícios originários em alguma virtudezinha. É só isso que existe; o resto é
fingimento de virtude, meu filho.

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Tem pessoas que são assim: o sujeito entrou em uma igreja, então tem o receituário de
conduta e diz “agora vou fazer assim, assim e assim” e acha que isso vai salvar a sua alma. Eu
digo: “Não, meu filho! Você acabou de tampar a sua alma! Você não sabe o abismo que tem
dentro dela! Você está se fazendo de inocente – quer dizer, você não tem a verdadeira
consciência do pecado! Então, a sua conduta exterior, que lhe parece tão bonitinha e que pode
servir de modelo para os outros, é uma coisa que foi construída em cima da sua verdadeira
personalidade, para escondê-la!” Então, a coisa já é baseada em uma mentira. Por exemplo, você
pode fazer a lista da virtude e dos pecados; você verá que, de alguns, tem um relativo controle e,
de outros, não tem praticamente nenhum – e que isso é assim depois de muitos anos de esforço.
Então, se você acha, por exemplo, que a instrução religiosa pode te ajudar... ela não pode te
ajudar de maneira alguma. Ela só pode servir se você tiver feito esse trabalho primeiro, se não,
ela não serve para nada, apenas para você virar, como diz na Bíblia, um sepulcro caiado – quer
dizer, tem lá um sepulcro, está tudo morto, você chega lá e pinta de branco.

Dificilmente eu conheci algum homem religioso, no Brasil, que não fosse um sepulcro
caiado. Quase todos eles são; pode ser católico, protestante, judeu, são todos sepulcros caiados.
Por quê? Pois não fizeram esse trabalho! Eles não entenderam que o conhecimento de Deus
passa pelo conhecimento da sua alma, e este passa por essa transmutação alquímica dos vícios
em virtudes, a qual não pode se realizar, de maneira alguma, não é sem extensa cultura, mas sem
a busca incessante de uma cultura ilimitada! Então, o que você tem que saber, o que tem que ler?
Você tem que saber tudo o que precisa saber para chegar a ter o máximo de transparência na sua
própria alma e poder falar com responsabilidade – responsabilidade de quem viveu, observou,
refletiu e conhece, e não de quem, apenas, acabou de ler uma frase bonitinha e é capaz de repeti-
la. Também, o simples fato de você ser capaz de distinguir o que é um homem de substância, que
tem experiência, que tem cultura verdadeira... a cultura verdadeira só acontece quando o
conjunto dos elementos adquiridos através de leituras, de estudo etc. se transformou em
instrumento de autotransparência e, portanto, de transparência, também, nas suas relações com a
realidade total; só aí existe cultura. Fora disso, não. Se você, simplesmente, leu um montão de
coisas e esqueceu logo em seguida, você não aprendeu nada; e se as leituras que você fez não
tiveram um impacto profundo sobre a sua própria alma, então, também, você não aprendeu nada.

Quando você lê literatura de ficção, por exemplo, a identificação profunda com os


personagens é importantíssima, porque, em algum ponto, você é similar àquele sujeito – a uns
mais, outros menos, mas todas as paixões humanas estão presentes dentro de todos os corações.
Então, por mais diferente que o personagem seja de você, tem algum equivalente dele em você.

O doutor Szondi dizia que a personalidade humana se compõe dos seguintes elementos:
você tem, em primeiro lugar, uma camada instintiva – seus impulsos básicos hereditários, que
você desconhece completamente; você já nasce com eles e, por isso mesmo, não os conhece. Em
seguida, você tem as paixões, que são aqueles elementos instintuais que, com mais frequência, se
traduzem na sua conduta – é nessa faixa que entram todos os elementos da teoria szondiana das
pulsões. Quais são os impulsos que acabam predominando? Ele delineia ali oito impulsos de cuja
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combinação se forma uma variedade alucinante de figuras diferentes. Em terceiro lugar, você
tem o ambiente social, subdivido, por exemplo, no ambiente imediato, no comunitário e no
societário. Então você tem, por exemplo, família, grupo de amigos e, em cima, o estado, as leis, a
econômia etc. Em cima disso, você tem o ambiente cultural e intelectual e, em cima disso, o
espírito, que é quem faz as escolhas, em última análise.

Tem pessoas que pretendem pular diretamente da sua natureza instintual para o espírito e,
daí, viram pessoas religiosas – e tudo o que tem que fazer no meio foi saltado. Então, por
exemplo, o indivíduo acha que tem que praticar esta ou aquela virtude, mas não tem a menor
idéia de quais são os impulsos que ele recebeu do ambiente e que se impregnaram
profundamente na sua pessoa, determinando juízos, valores, reações etc. – então, realmente, ele
não se conhece. E, se você não se conhece, o que vai confessar? Você pode pegar uma lista
padronizada de pecados e dizer “fiz isso, assim, assim e assim.” Mas, note bem, na igreja
católica existe um treco chamado exame de consciência, e esse exame, por exemplo, no livro do
padre Tanquerey, se traduz em uma infinidade de perguntas que a pessoa tem que fazer a si
mesma para que ela possa confessar. Eu sei que, se você entregar aquela lista de perguntas às
pessoas, elas simplesmente não sabem responder. Não sabem por quê? Porque sua memória é
confusa, porque não têm os elementos para narrar para si mesmas o que se passou dentro delas.
[01:20:24]

Então, elas não têm aquela transparência necessária para poder chegar a fazer uma
confissão, nem mesmo perante o próprio Deus. Então, sua única chance é que Deus confesse os
seus pecados, porque ele sabe. Mas isso é mais complicado ainda, quer dizer, eu vou falar uma
coisa genêrica e Deus vai me informar o resto. Eu digo: “Meu filho, você não é capaz de ler um
livro, como é que vai falar com Deus? O livro está dizendo para você um monte de coisas, agora
você vai falar com Deus, vai ter uma linha direta com ele, ele vai dar tudo prontinho para você?
Porquê Deus deve valorizar de tal modo a sua preguiça moral e intelectual? Porquê ele deve
premiar a sua preguiça? Deus te ajuda a fazer uma coisa que você está se esforçando para fazer,
que você quer fazer, desde que haja, nesse esforço, a sinceridade e que você tenha chegado no
limite das suas possibilidades humanas – aí Deus te socorre. Mas se você nem começou a fazer o
serviço, porquê ele vai dar o serviço pronto para você?” Isso é uma presunção blasfema e, no
entanto, eu vejo tanta gente agindo assim e achando lindo.

Então, é o seguinte: lembre-se do que eu disse no começo. O que é para você ler? Bom,
em princípio, toda a grande literatura universal – todinha. Porque esses são os elementos que
você terá para dialogar com pessoas que são capazes de dialogar nesse nível – pessoas que têm
toda a constelação dos análogos criados pela literatura universal; está tudo à disposição delas.
Ela, portanto, se absorveu isso corretamente, sempre sabe o que está se passando. Não que ela
tenha uma explicação científica para isso; não, mas ela tem a linguagem analógica necessária
para falar. E é em cima dessa linguagem analógica que se constrói todo o conhecimento
científico ou filosófico da alma humana. Este é o único ponto no livro do padre Antonin
Sertillanges do qual eu discordei: quando ele diz que não é para ler muitos romances. Muito bem,
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ele está escrevendo para quem? Para pessoas que tiveram educação secundária francesa, na qual
já adquiriram toda a leitura dos clássicos. Então, se você está já empenhado em um trabalho
intelectual definido, por exemplo, você é um historiador, ou um cientista político, e está fazendo
um trabalho aí, é claro que você tem que se concentrar no trabalho e a leitura dos romances pode
ser postergada. É disso que ele está falando. Mas na situação social brasileira, nós temos que
prover a nós mesmos a cultura literária que a escola não nos deu; ela nos deu, antes, uma
deseducação, então temos que ir atrás.

Eu não considero que as dicas que dei no começo sejam suficientes. Além da extensa
leitura de literatura, é necessário você ter uma meditação sobre o que é a obra de arte literária,
quais são as suas possibilidades, os seus limites – onde é que ela não pode chegar; para isso, você
terá que ler os grandes críticos e teóricos da literatura, pessoas que meditaram sobre ela, com a
condição de que sejam pessoas que o fizeram com plena seriedade moral, porque também existe
nesse meio um monte de diletantes – a própria aquisição de cultura literária pode se tornar
apenas uma atividade prazeirosa, lúdica, que não vai penetrar profundamente na alma do sujeito,
mas que é algo que o encanta, que ele gosta de fazer. Essas são aquelas pessoas viciadas em ler
obras literárias, mas que você vê que nada se incorporou realmente; aquilo é usado apenas para,
vamos dizer, brilhar um pouquinho no meio social, ou virou apenas um vício. É claro que essa
não é a finalidade da literatura; se você acha que Dante escreveu a Divina Comédia ou que
Dostoiévski escreveu Crime e Castigo só para a sua diversão, então você não está entendendo
absolutamente nada, porque tudo o que eles estão falando ali é mortalmente sério – são as
situações extremas da alma humana, hã? Então, se você não conseguiu viver essas situações
extremas imaginativamente, com a devida profundidade e seriedade, então você não aprendeu
nada. Ressalvado esse caso do vício, então a aquisição da cultura literária e da meditação sobre
obras de artes literárias – para você saber o que não dá para fazer por meio delas, ou o que você
vai ter que completar por outros meios (sobre os quais depois conversaremos) – continua sendo a
base de toda educação.

Então, sempre que me perguntam “o que eu devo ler?”, eu digo: “Você deve ler toda a
grande literatura primeiro. Você já leu Shakespeare inteiro? Não. Você já leu Dante? Não.
Homero? Dostoiévski? Tolstói? Não. Então, por que me pergunta o que deve ler? Se você pegar
os nossos professores de literatura, você verá que todos eles dizem que “você deve ler aquilo que
gosta de ler.” Ora, essa resposta não diz absolutamente nada. Porque, se você vai ler somente o
que você gosta, então vai continuar gostando sempre das mesmas coisas. Por exemplo: eu,
quando era moleque, era viciado em estórias em quadrinhos – digamos, entre os oito e os onze
anos; acho que, com onze, me livrei do vício. Então eu lia todas as estórias em quadrinhos que
caíam na minha mão, porque era disso que eu gostava. Se é para “ler só o que gosta”, eu estaria
lendo só estórias em quadrinhos até hoje. Nós não gostamos sempre da mesmas coisas, hã? O seu
gosto tem que se abrir para uma coisa que você não gosta. Eu conheci um guru argentino que
tinha uma norma terrível: “que te guste lo que no te gusta.” Acho que esse é um princípio
pedagógico fundamental. Por exemplo, às vezes você vê que meninos novos, de onze, doze anos,

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não gostam de meninas – têm horror a elas. O que acontece mais tarde, hã? Eles aprendem a
gostar de uma coisa que não sabiam ser boa.

Além do círculo do que você gosta, existem mundos e mundos e mundos, universos
inteiros; então o que você tem que fazer não é ler o que você gosta, meu filho, mas saber o que as
pessoas de grande nível cultural e intelectual leram e ler isso. Você não precisa gostar, no
começo; não estou falando para você gostar ou se divertir, mas para aprender! Só que, depois de
fazer isso duas ou três vezes, vai acabar gostando, é claro. Outra coisa da qual me lembro de ter
falado no começo é que aprender a organizar a bibliografia de um assunto de uma área do
conhecimento que você vai estudar é até mais importante do que ler os livros que estão listados
na bibliografia, porque essa vai te dar a forma do conjunto da coisa e a informação básica sobre
cada obra e também as articulações entre elas. Então, por que as pessoas continuam me
perguntando o que devem ler? A resposta já está completamente dada nessas dicas aqui, ainda
com essa sorte extraordinária que nós temos de que, em nosso país, há a melhor história da
literatura que alguém já fez no mundo, que é a História da Literatura Ocidental do Otto Maria
Carpeaux – isso é um tesouro! Não tem nada que se pareça com isso, no mundo inteiro. Eu já vi
milhares de histórias da literatura; não há nada que tenha tanta unidade de critério, riqueza
humana colocada ali – não há. Então, este é o caminho das pedras: ler a História da Literatura
Ocidental, ler os livros que estão lá, fazer sua lista de livros. Primeiro, você leia a História da
Literatura Ocidental do começo ao fim, com a única finalidade de fazer a lista. [01:30:31]

No Brasil, não conheço ninguém que fez isso; bom, tem dois ou três alunos aí que
parecem estar fazendo. Conheço gente que anota título de livro não para ler ou aprender aquilo,
mas para publicá-lo e ganhar algum dinheiro com isso. Disso, o Brasil está cheio; você dá um
curso, vêm quinze neguinhos para pegar título de livro, abrir uma editora e ganhar fama com
isso. Mas isso é a mesma coisa que, por exemplo, você estar oferecendo remédio para a indústria
farmacêutica e não para os doentes – eu não estou aqui para cuidar dessa indústria; estou falando
de pessoas, de seres humanos reais.

Também dizem as pessoas: “Ah, mas tem a limitação da língua.” Eu digo: “Escuta, mas a
limitação da língua, se não for vencida, você nunca vai chegar nesse ponto que eu estou
falando.” Com uma língua só, você não faz nada; não compreende nem mesmo a sua língua.
Agora, quando você tem uma longa experiência com outras línguas, você acaba vendo que
existem milhares de coisas que não dá para dizer na sua língua e outras milhares que não dá para
dizer na língua do vizinho – não dá mesmo. Quer dizer, não tem o sentimento equivalente, a
experiência humana equivalente, a construção equivalente – não tem nada equivalente. Então,
você entende que uma língua é um condensado de experiências humanas que são, praticamente,
intransferíveis e intraduzíveis. O melhor tradutor é aquele que sabe o que não dá para traduzir; o
meu falecido amigo Daniel Brilhante de Brito era um protótipo. Você conversava com o Daniel,
ele fazia citações, de memória, em quinze línguas; por que ele fazia isso? Por que era um
pedante? Não, o Daniel era a pessoa mais humilde do universo. Mas é porque aquilo que ele
estava querendo transmitir, naquele momento... Era como se ele quisesse mencionar um trecho
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de música e ele falasse sobre o trecho de música. Então, em vez de falar sobre o trecho, ele o
tocava. Poesia é a mesma coisa! Ele citava versos de Pushkin em russo, depois levava duas horas
para explicar, mais ou menos, o que aquilo queria dizer em português. Mas o som que o negócio
tinha em russo... eu não falo russo, evidentemente, mas o som que a coisa tinha, acompanhado da
explicação do Daniel, criava uma terceira coisa.

A experiência das outras línguas é absolutamente fundamental; uma outra língua é como
uma outra dimensão da sua personalidade. Por exemplo, é muito comum você tentar explicar, em
francês, uma coisa que você conseguiu dizer na sua língua; você tenta dizer aquilo em francês e
chama um francês experiente e ele diz: “Isso não se diz em francês.” Eu digo: “Como é que se
diz em francês?” e ele diz: “Não, isso não se diz em francês.” Quer dizer, ele sabe que aquela
coisa existe, mas que não dá para entrar com ela dentro das estruturas do idioma; você terá que
dizer outra coisa e, em seguida, explicar que essa outra coisa não é bem aquela da qual você está
falando. Então, aprender uma língua [estrangeira] é como você aprender a ser como outra pessoa;
é uma experiência de tipo stanislavskiana, hã? Você vai aprender a sentir como um determinado
personagem que você não é e que não será nunca, mas que tem uma analogia com você. Então,
ninguém que queira se tornar uma pessoa de cultura tem o direito de fugir à experiência de
aprender novas línguas – com a condição de que, desde o início, você tente aprendê-las como
instrumentos de alta cultura, o que significa você aprendê-las para ler alta literatura.

O que pode acontecer é você adquirir uma profunda compreensão daquela língua mas ser
incapaz de manter uma conversa [simples], como entrar em um boteco e pedir um cachorro-
quente. Por exemplo, o Bruno Tolentino me contou que ele tinha escrito poemas já em italiano e,
um dia, alguém pediu para ele pegar uma coisa no armário; disseram a palavra armário e ele
disse: “o que é isso?” E ele viu que não sabia esta palavra banal: armário! Quer dizer, ele não
tinha aprendido italiano de turista, mas para ler Dante, Manzoni e coisas desse tipo – e para
poder falar como eles, na língua deles. Como nenhum deles tinha pronunciado a palavra armário,
por uma coincidência, isso ficou fora do universo dele. Então, [a idéia] não é [fazer] esses
cursinhos para turistas.

Também, eu acho que é bom você aprender a língua estrangeira com uma certa
estranheza; em vez de você se amoldar a ela naturalmente, como se ela fosse a sua língua nativa,
conserve o sentido da diferença entre a sua língua e aquela, porque, com isso, você estará
aprendendo uma terceira língua, que é daquilo que não dá para dizer nem em uma língua, nem na
outra. Como nosso aprendizado visa o aprofundamento do conhecimento da própria alma e não
turismo ou o exercício de qualquer profissão, você verá que, às vezes, vale a pena contriar o que
a maioria dos cursos de idioma recomenda. Se você quiser fazer imersão total, faça, mas
conserve um pé atrás. Bem, acho que por hoje é só; tenho outras explicações sobre isso, mas
darei em uma próxima aula. [01:36:53]

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