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LITERATURA BRASILEIRA
Introdução
Este livro tem por intenção traçar os portugueses as leis, costumes e va-
um panorama de nossa literatura, deli- lores de sua sociedade, marcados pela
neando o caminho percorrido por esta forte influência do cristianismo.
na busca de sua identidade, enfatizando Considerei, entretanto, o nosso
seus principais autores e comentando Quinhentismo como marco inicial da Li-
aspectos relevantes de algumas das teratura Brasileira, ainda que esta se
obras que compõem o sistema literário realize nos moldes portugueses sob a
brasileiro. influência do Classicismo e, sobretudo,
Destina-se, sobretudo, a estudan- de Camões.
tes de Ensino Médio, professores e aos Aos poucos nossa literatura vai
que iniciam seus estudos relacionados sofrendo transformações e passando
à literatura brasileira. a trabalhar com temas e “formas” que
Obviamente, ele não esgota o as- melhor expressam os sentimentos e a
sunto, devido à amplitude e complexida- realidade brasileiros.
de do mesmo, mas pode ser considera- Outro problema encontrado foi afir-
do um ponto de partida para reflexões mar com exatidão o início e o término de
posteriores. um período literário. Na verdade, esta
Ao iniciar o trabalho, deparei-me com tarefa é impossível, já que as transfor-
uma dificuldade: a impossibilidade de de- mações estéticas ocorrem de forma lenta
limitar com precisão o início de uma litera- e gradual, porém, pode-se estabelecer
tura efetivamente brasileira, pois o con- critérios para separar as escolas literá-
ceito de “começo” nela é muito relativo, rias. Procurei seguir um método comu-
como bem ressaltou Antônio Cândido em mente utilizado pelos estudiosos da área:
sua Iniciação à Literatura Brasileira. a publicação de obras decisivas para a
As literaturas que a preconizaram configuração dos movimentos. Eviden-
(portuguesa, francesa) foram se cons- temente, as transformações históricas
tituindo concomitantemente com a for- e sociais refletem-se no campo das ar-
mação dos respectivos idiomas. De tes; por isso não dispensarei uma con-
modo diverso, porém, no caso brasileiro textualização de cada período literário,
temos uma transposição da Língua Por- enfatizando as mudanças na sociedade
tuguesa, já constituída, para um outro brasileira no decorrer dos tempos.
ambiente. Além da língua, vieram com T. O. L.
— 161 —
Quinhentismo
A história da literatura brasileira tem
início em 1500, com a Carta de Pero Vaz de Literatura
Caminha, escrivão da frota de Pedro Álva-
res Cabral, enviada a D. Manuel I, comuni-
Informativa
cando a descoberta das terras brasileiras.
1
Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso. Os motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil,
Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
— 165 —
Resumo do Quinhentismo
Momento sócio-cultural • Destacamos a literatura informativa –
descrição das terras brasileiras, em
• É o momento das grandes navega- tom de deslumbramento, e a literatura
ções e descobertas: em busca de jesuítica –– obras que exaltam a fé cris-
riquezas, as nações européias en- tã, visando à conversão dos índios.
viam expedições marítimas, que as
põem em contato com outras cultu- Autores e obras
ras. Portugal é uma das principais • Pero Vaz de Caminha: Autor da
potências marítimas e possui colôni- Carta, documento de inestimável
as ou relações comerciais na Amé- importância por ser a primeira des-
rica, Ásia e África. crição do Brasil.
• Dois objetivos distintos (e até con- • Padre Manuel da Nóbrega: Impor-
traditórios) guiam as navegações tante figura do início da colonização
portuguesas: a expansão do cristia- e da catequese dos índios, escreveu
nismo e o desejo de conquistas e de Cartas do Brasil (1886) e Diálogo
enriquecimento. sobre a Conversão do Gentio (1557).
Características literárias • José de Anchieta: principal
humanista clássico do Brasil. Escre-
• A literatura produzida no Brasil do veu poemas religiosos que exalta-
século XVI não possui traços pró- vam a colonização e a primeira gra-
prios. Apenas descreve as carac- mática do tupi. Obras: Na Festa de
terísticas do território recém-desco- São Lourenço (1583). Arte de Gramá-
berto. É uma literatura sobre o Brasil tica da Língua mais Usada na Costa
e não uma literatura do Brasil. do Brasil (1595).
Afonso Romano de Sant’anna, Paródia, Paráfrase E Cia, São Paulo: Ática, 1991, p. 51.
2
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Barroco
O Barroco inicia-se com a publica- so e o profano, a metafísica e a racio-
ção do poema épico Prosopopéia, de nalidade, de modo a conciliar as pers-
Bento Teixeira, em 1601, e tem seu térmi- pectivas medieval e renascentista.
no em 1768, ano em que Cláudio Manuel
Este movimento caracteriza-se por
da Costa publica suas Obras Poéticas,
um profundo dinamismo, audácia, imagina-
marcando o princípio do Arcadismo.
ção e exagero. Apesar da existência de
Inicialmente, o termo Barroco expres- um espírito pagão, que valoriza o humano,
sava um fenômeno específico da pintura, instável e finito, ainda há um forte sentimen-
da escultura e da arquitetura, referente to religioso. Dois processos expressivos
aos séculos XVII e XVIII, comumente con- marcam este período: o cultismo e o
siderado monstruoso e de mau gosto. Pos- conceptismo. Um diz respeito ao som e à
teriormente, passou a ser valorizado e re- forma, criando imagens e sensações que
conhecido nas diversas manifestações superam as sugestões da realidade; já o
artísticas. outro centra-se no significado da palavra,
privilegiando o pensamento, a razão.
A Espanha foi o primeiro país a culti-
var a estética barroca, tendo Portugal re- Os escritores trabalham desde as-
cebido forte influência desta, já que se en- suntos triviais até grandes temas, mui-
contrava dominado pela mesma na época. tas vezes utilizando-se de vocábulos
raros, derivados do latim. Preocupam-se
Caracterizado por uma mentalidade
com a beleza, fazendo uso de recursos
pós-renascentista, se por um lado o ho-
da tradição clássica e renascentista,
mem barroco convive com valores medie-
beirando o exagero. Preferem sugerir
vais e cristãos, por outro participa das no-
luzes, cores e sons, transmitindo as con-
vidades pagãs e terrenas advindas do
tradições do ser humano, a nomear dire-
ressurgimento do espírito greco-latino.
tamente as coisas e os seres.
Dessa forma, ele vive em conflito, oscilan-
do entre a razão e a fé, o misticismo e o Cultivam tanto a prosa como a poe-
erotismo, entre o prazer da vida e os mis- sia, principalmente por meio da oratória
térios da morte, entre o material e o espiri- religiosa, merecendo destaque o Padre
tual. Tal estado de conflito interior do ho- Antônio Vieira. Além desta, realizam a
mem barroco pode ser percebido pelo oratória acadêmica, com objetivos his-
uso de artifícios e figuras de linguagem, tóricos ou laudatórios.
que demonstram a tensão entre o homem
A comédia e o drama sobressaem-
e o mundo.
se, tendo Lope de Vega como mestre,
O espírito da Contra-Reforma influen- tanto em Portugal como no Brasil. Entre
ciou o pensamento barroco, que buscou nós, seu grande seguidor é Manuel Bote-
reaproximar o homem e Deus, o religio- lho de Oliveira.
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3
Massaud Moisés, História da literatura brasileira, p.72.
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4
Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, p.45.
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que foi castigo dos cativeiros, que na neste mesmo ano tirou Deus a Sua Ma-
costa da mesma África começaram a jestade o primogênito dos filhos e a
fazer os nossos primeiros conquista- primogênita das filhas. Senhor, se alguém
dores, com tão pouca justiça como a pedir ou aconselhar a Vossa Majestade
que se lê nas mesmas histórias. maiores larguezas que as que hoje há
nesta matéria, tenha-o Vossa Majestade
As injustiças e tiranias, que se têm por inimigo da vida, e da conservação
executado nos naturais destas terras, da coroa de Vossa Majestade.
excedem muito às que se fizeram na
África. Em espaço de quarenta anos se Dirão porventura (como dizem) que
mataram e se destruíram por esta costa destes cativeiros, na forma em que se
e sertões mais de dois milhões de índi- faziam, depende a conservação e au-
os, e mais de quinhentas povoações mento do Estado do Maranhão; isto, Se-
como grandes cidades, e disto nunca se nhor, é heresia. Se, por não fazer um
viu castigo. Proximamente, no ano de pecado venial, se houver de perder Por-
1655, se cativaram no rio das Amazo- tugal, perca-o Vossa Majestade e dê por
nas dois mil índios, entre os quais mui- bem empregada tão cristã e tão gloriosa
tos eram amigos e aliados dos portugue- perda; mas digo que é heresia, ainda
ses, e vassalos de Vossa Majestade, politicamente falando, porque sobre os
tudo contra a disposição da lei que veio fundamentos da injustiça nenhuma cousa
naquele ano a este Estado, e tudo man- é segura nem permanente; e a experiên-
dado obrar pelos mesmos que tinham cia o tem mostrado neste mesmo Estado
maior obrigação de fazer observar a do Maranhão, e que muitos governado-
mesma lei; e também não houve casti- res adquiriram grandes riquezas e ne-
go: e não só se requer diante de Vossa nhum deles as logrou nem elas se logra-
Majestade a impunidade destes delitos, ram; nem há cousa adquirida nesta terra
senão licença para os continuar! que permaneça, como os mesmos mora-
dores dela confessam, nem ainda que
Com grande dor, e com grande re-
vá por diante, nem negócio que aprovei-
ceio de a renovar no ânimo de Vossa
te, nem navio que aqui se faça que tenha
Majestade, digo o que agora direi: mas
bom fim; porque tudo vai misturado com
quer Deus que eu o diga. A El-Rei Fa-
sangue dos pobres, que está sempre cla-
raó, porque consentiu no seu reino o
mando ao céu.
injusto cativeiro do povo hebreu, deu-lhe
Deus grandes castigos, e um deles foi
tirar-lhes os primogênitos. No ano de
1654, por informação dos procuradores As Academias
deste Estado, se passou uma lei com
tantas larguezas na matéria do cativeiro
dos índios, que depois, sendo Sua Ma- O Brasil, assim como Portugal, teve
jestade melhor informado, houve por bem a vida intelectual no século XVIII associa-
mandá-la revogar; e advertiu-se que da a sociedades literárias.
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Nas academias discutiam-se as- dos Felizes, que durou de 1736 a 1740,
suntos diversos e recitavam-se com- localizada no Rio de Janeiro; a Acade-
posições. Dentre as academias que mia dos Seletos, também ambientada
se formaram podemos destacar a Aca- no Rio, porém no ano de 1752, e a
demia Brasílica dos Esquecidos, fun- Academia dos Renascidos, fundada
dada em 1724 na Bahia; a Academia em 1759 na Bahia.
Resumo do Barroco
Arcadismo
Ao remontarmos à segunda me- região mitológica da Grécia em que se
tade do século XVIII, encontramos a concretizou o ideal da vida rústica e
Europa em um importante momento de em harmonia com a natureza. Os es-
mudanças culturais. No ano de 1751 critores idealizavam a vida campestre,
foi publicada na França a Enciclopé- autodenominavam-se “pastores” e di-
dia, tendo como principais responsá- rigiam-se às mulheres como pastoras.
veis D’Alambert, Diderot e Voltaire, que
A importância atribuída à nature-
visavam compilar todo o conhecimen-
za em grande parte deve-se à figura
to científico da humanidade adquirido
de Rousseau, que propôs o retorno à
ao longo dos anos.
natureza, origem de todo bem. Traba-
A razão foi muito valorizada pe- lhou com a figura do “bom selvagem”,
los enciclopedistas, que enxergavam homem ainda não corrompido pela so-
nela uma possibilidade de progresso ciedade. Como bem enfatizou Antônio
social e cultural. No ano de 1789 ocor- Cândido 5 em Formação da Literatura
reu a Revolução Francesa e, como Brasileira, no século XVIII o herói lite-
conseqüência, assiste-se à queda da rário por excelência é o homem natu-
monarquia. ral, demonstrando toda a nobreza e ter-
nura do ser humano, como enxergava
Tais transformações compõem o
Rousseau.
que chamamos de Iluminismo, movi-
mento renovador que enfatiza a razão Os árcades criticam os exageros
como único guia infalível da sabedo- verbais do Barroco, propondo uma li-
ria e caracteriza o universo como uma
teratura mais simples e natural, em
máquina governada por leis inflexíveis
consonância com o pensamento do sé-
que o homem não pode desprezar,
culo XVIII. Enfatizam a importância dos
não havendo milagres ou intervenção
sentimentos, da clareza nas idéias, da
divina para modificar a ordem da na-
retomada da naturalidade dos escrito-
tureza.
res clássicos, sobretudo Teócrito e Vir-
O Arcadismo em Portugal teve iní- gílio. Tanto o campo intelectual como o
cio em 1756, com a fundação da Arcá- afetivo devem ser constituídos tendo
dia Lusitana. Esta procurava estrutu- como base a simplicidade. Por retoma-
rar-se da mesma forma que a Arcádia rem o equilíbrio dos clássicos antigos,
Romana, criada em Roma em 1690. A recebem a denominação de neoclás-
denominação Arcádia remonta a uma sicos.
A poesia deve ter seu cerne na ver- grupo de letrados, alguns deles ex-es-
dade e ser verossímil, ou seja, transmitir tudantes da Universidade de Coimbra,
algo que parece possível e encontra-se reuniram-se e tiveram importante papel
próximo da realidade. Dessa forma, ela na Inconfidência Mineira.
pode ser considerada bela, pois imita o
A literatura procurava distanciar-se
mundo físico e moral, como propunha a
dos moldes portugueses, apesar de ainda
mimesis aristotélica, que resultou na es-
realizar a imitação dos clássicos. Somado
tética da imitação.
a isso, tentava buscar uma identidade bra-
Apesar de ainda valorizarem a reli- sileira, valorizando o índio como um herói,
gião e a monarquia, voltam-se para as- caso dos poemas épicos O Uraguai, de
suntos mais ligados à vida material, tais Basílio da Gama e Caramuru, de Santa
como a virtude civil e a obediência às leis Rita Durão. Tal literatura possuía uma vi-
da natureza como forma de harmonia so- são crítica da realidade brasileira, como
cial. Dessa forma, envolvem-se mais com podemos perceber no poema satírico Car-
a política e acreditam na instrução e no tas Chilenas, de Tomás Antonio Gonzaga.
amadurecimento cultural como indicado-
Os poetas árcades passaram a tra-
res da felicidade humana. Influenciados
balhar temas universais, além de reno-
pela Ilustração (outro nome para o Ilumi-
var as técnicas artísticas. Com isso, a
nismo), vêem na razão e na ciência mei-
literatura brasileira foi se consolidando,
os para transformar a sociedade.
à medida que aumentava a consciência
O Arcadismo no Brasil iniciou-se em literária.
1768 com a publicação das Obras Poé-
A divulgação da literatura no país ocor-
ticas, de Cláudio Manuel da Costa e teve
ria nas Academias, sessões literárias pas-
seu término em 1836, com a obra Suspi-
sageiras e não muito densas. Após a
ros poéticos e saudades, de Gonçalves
vinda da Família Real, em 1808, a ativida-
de Magalhães, quando começou o Ro-
de intelectual cresceu e tornou-se mais
mantismo.
amadurecida. Foi difundido o primeiro jor-
O século XVIII no Brasil é tido como o nal – O Correio Brasiliense – e as pri-
século do ouro, pois há forte atividade de meiras revistas foram publicadas, como
extração mineral. Após a descoberta de O Patriota; estabeleceram-se novas es-
ouro e diamante, o eixo político deslocou- colas; houve a fundação da Imprensa
se para o Sul e a capital deixou de ser a Régia e a abertura da Biblioteca Real.
Bahia, passando a ser o Rio de Janeiro.
Portugal tinha como objetivo explorar sua
colônia, por isso aumentava os impostos Cláudio Manuel da Costa
sobre a extração dos minérios. (1729 – 1789)
Os Estados Unidos obtiveram sua
independência, além disso propagavam- Cláudio Manuel da Costa nasceu em
se idéias liberais, trazidas por estudan- 1729, em Minas Gerais. Estudou no Rio de
tes brasileiros. Como conseqüência, um Janeiro e posteriormente cursou Direito
— 181 —
6
Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, p. 61.
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Os grossos esmeris são depurados, Que inda nos lembra o mísero tributo,
Deixando ao dono em prêmio da Que pagam nossos pais, que já
[fadiga [tiveram
Os bons tesouros da fortuna amiga. A morada do Éden, e não puderam
Guardar por muito tempo a lei
Entre serras est’outro vai buscando [imposta.
As betas de ouro; aquele vai trepando
(Ó natureza ao Criador oposta!)
Pelo escabroso monte, e as águas
[guia Os pássaros se vêem de espécie
[rara,
Pelos canais, que lhe abre a pedra
[fria. Que o Céu de lindas cores emplumara,
Não menos mostra o gênio As feras e animais mais esquisitos
[a agricultura Todos no alegre mapa estão descritos;
Tão cara do país, onde a dura Os olhos deleitando, e entretendo
Força dos bois não geme ao braço O herói, que facilmente está crendo,
[armado
Ao ver, que destra mão dar-lhes
Derriba os matos, e se ateia logo [procura
Sobre a seca matéria o ardente fogo.
A vida, que lhes falta na pintura.
Da mole produção da cana loira
Mas já lavrado estava, e já firmado
Verdeja algum terreno, outro se doira; O termo, que escrevera o bom
O lavrador a corta, e lhe prepara [Pegado;
As ligeiras moendas; ali pára Quando mais que a eleição
[podendo o acaso,
O espremido licor nos fundos cobres:
Manda o herói que se extraiam
Tu, ardente fornalha, me descobres, [d’entre um vaso
Como em brancos torrões é já tornado Os nomes dos primeiros, a quem toca
A estímulos do fogo o mel coalhado. Reger a vara que a justiça invoca.
A ti te chama a sorte, ó grande Melo,
O arbusto está, que o vício tem
[subido E tu, Fonseca, em nobre paralelo
A inevitável preço, reduzido Cedes nos anos teus à precedência;
Possui uma visão do índio mais en- Vendo avançar-se a nau na via
quadrada nos moldes jesuíticos e colo- [undosa,
niais do que propriamente iluministas.
E que a esperança de o alcançar
O indígena encontra-se diante do [perdiam:
elemento colonizador e missionário, que Entre as ondas com ânsia furiosa
tenta persuadi-lo a modificar suas ati-
Nadando o esposo pelo mar seguiam,
tudes e postura diante da vida e abando-
nar práticas contrárias à moral e à reli- E nem tanta água que flutua vaga
gião portuguesas, tais como a antropo- O ardor que o peito tem, banhando
fagia. [apaga.
Diogo Álvares, o Caramuru, é o
herói do poema. O termo, segundo o pró- XXXVII
prio autor, significa “filho do trovão”. Este
coloniza e ensina a doutrina cristã aos Copiosa multidão da nau francesa
índios, considerados bárbaros. Corre a ver o espetáculo
Caramuru [assombrada;
E ignorando a ocasião da estranha
Caramuru é composto por dez can-
[empresa,
tos e dividido em cinco partes: proposi-
ção, invocação, dedicatória, narrativa e Pasma da turba feminil, que nada:
epílogo. Assim como Camões em Os Uma, que às mais precede em
Lusíadas, faz uso do maravilhoso pa- [gentileza,
gão e do cristão. A narrativa gira em
torno do personagem Diogo Alves Cor- Não vinha menos bela, do que irada:
reia, o Caramuru, que naufraga e con- Era Moema, que de inveja geme,
segue escapar da morte. O texto carac-
E já vizinha à nau se apega ao leme.
teriza-se pela descrição da terra brasi-
leira, suas riquezas, fauna e flora. Além
XLII
disso, traz informações sobre os índios
e sua cultura. Destacam-se os perso-
nagens Diogo Alves Correia, o Caramu- Perde o lume dos olhos, pasma e
ru, Paraguaçu (sua esposa), Moema, [treme,
Sergipe, Gupeva. Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando
Canto VI [o leme,
XXXVI Entre as salsas escumas desce
[ao fundo:
É fama então que a multidão formosa Mas na onda do mar, que irado
Das damas, que Diogo pretendiam, [freme,
— 191 —
Resumo do Arcadismo
Momento sócio-cultural dismo é o bucolismo (exaltação da
• O centro sócio-econômico da colô- vida no campo, idealizada como tran-
qüila e feliz).
nia desloca-se do Nordeste para o
• Uso da mitologia clássica e dos prin-
Centro-sul, devido à descoberta de
cípios renascentistas: racionalismo,
ouro e diamantes em Minas Gerais.
equilíbrio, clareza.
• Ocorre um surto de urbanização em
Minas e Rio de Janeiro (que se torna Autores e obras
a nova capital da colônia), e aumen-
ta o número de intelectuais. • Cláudio Manuel da Costa: partici-
• Influenciada pelas idéias iluministas pante da Inconfidência Mineira, dei-
e pela Revolução Francesa, ocorre xou Obras Poéticas (1768) e o épi-
a Inconfidência Mineira, rebelião que co Vila Rica (1839).
intentava a independência do Brasil. • Tomás Antônio Gonzaga: outro
poeta que participou da Inconfidên-
Características literárias cia. Deixou obra muito influente, onde
• O Arcadismo opõe-se ao Barroco, os destaques são Cartas Chilenas
procura eliminar da arte os exces- (reunidas entre 1845-1863) e Marília
sos praticados pela literatura barro- de Dirceu (1792).
ca. Esse objetivo produziu uma arte • Basílio da Gama: escreveu O
simples, sem exageros formais, que Uraguai (1769), poema épico que
pretendia retratar a natureza de critica a ação dos jesuítas e enaltece
modo direto. Outra marca do Arca- o marquês de Pombal.
— 193 —
Romantismo
No século XVIII, há uma renovação No lirismo romântico são recorren-
nas formas de expressão, na escolha tes os temas de amor, religião, sentimen-
dos temas e na busca de modelos e to da natureza e da sociedade. O amor
fontes de inspiração, o que se denomi- procura livrar-se das conveniências e
na Pré-Romantismo e tem sua origem na convenções e a mulher deixa de ser ape-
Alemanha e Inglaterra. nas pura, tornando-se sedutora.
Tal renovação assume grandes pro- Insatisfeito com a realidade em que
porções no século XIX, adquirindo liberda- se encontra, o romântico foge do conví-
de formal e sentimento de contempora- vio em sociedade e cria um mundo imagi-
neidade, resultando no Romantismo. nário, em que a natureza expressa seus
O movimento romântico expressa estados de alma. Muitas vezes busca a
os anseios, dúvidas e inquietações inte- contemplação divina e em determinados
riores do artista, deixando transparen- momentos chega ao panteísmo.
tes suas grandezas e fraquezas. Deus é entendido como resposta aos
Através da experiência individual do questionamentos, refúgio e paz. Através
homem romântico, inserido em uma nova de sua contemplação, o homem percebe o
estrutura social, religiosa e econômica, atin- quanto é pequeno diante de sua grandeza.
ge-se a universalidade, ou seja, a partir de
Durante o período que envolve os
um contexto nacional, restrito a uma deter-
anos de 1833 a 1836, vários intelectuais
minada realidade, trabalham-se sentimentos
brasileiros, entre eles Gonçalves de Ma-
e valores universais do ser humano.
galhães, Manuel de Araújo Porto Alegre e
O romântico não mais encontra o equi- Francisco de Sales Torres Homem foram
líbrio em sua vida interior e a intuição e a para a Europa com o objetivo de apro-
fantasia passam a prevalecer em detrimen- fundar seus estudos. Em 1836, fundaram
to da razão. De modo diverso aos clássi- em Paris a Niterói-Revista Brasiliense de
cos, o romântico demonstra o desequilíbrio Ciências, Letras e Artes, a fim de divulgar
do mundo contemporâneo, perceptível na a cultura brasileira e esboçar idéias sobre
tristeza, aspirações vagas, desejo de mu- a construção de uma identidade nacional.
dança social, anseio de liberdade e nacio- A revista teve apenas dois números. No
nalismo. Atribui grande importância aos primeiro, Gonçalves de Magalhães publi-
sentimentos, o que o torna egocêntrico. Em cou o ensaio Discurso sobre a história
determinados momentos dedica-se ao da literatura do Brasil, com o propósito de
amor, já em outros busca o isolamento e a realizar a nacionalização da literatura bra-
identificação com a natureza. Nutre sua re- sileira através do resgate de sua paisa-
ligiosidade e cultiva o patriotismo. gem e cultura.
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No Brasil, o Romantismo tem início vés das ricas descrições da terra bra-
em 1836, com a publicação de Suspiros sileira que encantara o colonizador por-
Poéticos e Saudades, do mesmo Gon- tuguês.
çalves de Magalhães.
Em Portugal os escritores românti-
Após a vinda da família real para o cos procuravam retomar o passado his-
Brasil, em 1808, o Rio de Janeiro pas- tórico medieval. Já os autores brasilei-
sou a ter hábitos semelhantes aos da ros retomaram a época colonial reali-
sociedade aristocrática européia. Além zando a idealização do índio, que pas-
disso, D. João VI tomou medidas que sou a ser o nosso herói. Entretanto, o
possibilitaram o nosso crescimento cul- índio brasileiro possuía a mesma per-
tural, tais como a abertura dos portos, a feição física e moral do cavaleiro medi-
criação de bibliotecas e de escolas su- eval europeu. Além do passado históri-
periores e a permissão para o funciona- co, os românticos buscavam as paisa-
mento de tipografias. gens e civilizações exóticas. O Brasil
A economia brasileira era essen- dirige seu olhar à Europa e ao Oriente.
cialmente agrária e apoiada no latifún- Há, portanto, uma evasão temporal e
dio, escravismo e exportação, tendo espacial. Além disso, preferem a noite,
como detentores do poder a nobreza pois esta possibilita o sonho, a imagina-
fundiária e o alto clero. ção, enfim, a manifestação do incons-
ciente.
No período imperial, o Brasil pos-
suía grande número de analfabetos.
Dessa forma, havia um restrito público
leitor, mas este era ávido por uma litera- Poesia
tura que viesse ao encontro de seus
dramas sentimentais.
Os românticos rompem com a ri-
O movimento romântico possuía gidez formal, preferindo a liberdade de
forte ligação com a política e defendia a criação. A expressão de seus senti-
liberdade, assim como a construção de mentos não pode ficar presa a esque-
uma pátria brasileira. Percebia-se um mas rítmicos regulares, tais como o so-
forte anseio de criação de uma literatu- neto. Por isso, praticamente não o uti-
ra essencialmente brasileira, com estilo lizam.
próprio. Por isso, alguns temas eram tra-
tados de modo diverso ao da literatura Percebe-se o emprego dos versos
portuguesa. livres e de estrofes regulares e irregu-
lares. Além disso, dá-se importância à
A natureza expressava o universo musicalidade.
interior do poeta ou personagem, seus
sentimentos, aspirações e frustrações. Os estudiosos costumam dividir a
Além disso, refletia o nacionalismo atra- poesia romântica em três fases.
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voltou para o Maranhão, mas dois anos de- Minha terra tem palmeiras,
pois vai para o Rio de Janeiro, atuando co- Onde canta o Sabiá;
mo professor de Latim e História do Brasil
no Colégio Pedro II e redator da revista As aves, que aqui gorjeiam,
Guanabara. Seus escritos abrangem poe- Não gorjeiam como lá.
sia, teatro, etnografia e historiografia. Fale-
ceu em 1864, quando retornava de uma Nosso céu tem mais estrelas,
viagem à Europa, no naufrágio do “Ville de Nossas várzeas têm mais flores,
Boulogne”. Foi, segundo Massaud Moi-
Nossos bosques têm mais vida,
sés8 , o primeiro poeta realmente brasileiro
no que diz respeito à sensibilidade e à Nossa vida mais amores.
temática.
Em cismar, sozinho, à noite,
Realizou estudos na Amazônia so-
Mais prazer encontro eu lá;
bre a cultura indígena e enriqueceu seus
poemas com a mesma, além de acres- Minha terra tem palmeiras,
centar termos de língua indígena. Onde canta o Sabiá.
Escreveu Primeiros Cantos (1846), Minha terra tem primores,
Leonor de Mendonça (1847), Segundos
Cantos e Sextilhas de Frei Antão (1848), Que tais não encontro eu cá;
Últimos Cantos (1851), Os Timbiras Em cismar – sozinho, à noite –
(1857), envolvendo teatro, composições Mais prazer encontro eu lá;
lírico-amorosas e indianistas, poesia épi-
ca e medieval, além de um Dicionário da Minha terra tem palmeiras,
Língua Tupi (1858) e Obras Póstumas Onde canta o Sabiá.
(seis volumes), organizadas por Antônio
Henriques Leal. Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Canção do exílio
Sem que desfrute os primores
Kennst du das Land, wo Citronen Que não encontro por cá;
[blühen,
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
In dunkeln Laub die Gold-Orangen
[glühen? Onde canta o Sabiá.
Kennst Du es wohl? – Dahin, dahin!
Coimbra – Julho 1843.
Möcht’ich ... ziehn.
(Apud CÂNDIDO, Antônio e CASTELLO, José Aderaldo.
Goethe9 Presença da Literatura Brasileira, v.1, p. 180.)
9
Esses versos compõem a “Canção de Mignon” de Goethe e foram traduzidos do seguinte modo por Manuel
Bandeira: “Conheces o país onde florescem as laranjeiras? / Ardem na escura fronde os frutos de ouro... / Conhecê-
lo? – Para lá, para lá quisera eu ir!”.
— 197 —
Em sua popular Canção do exílio, Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Gonçalves Dias exalta sobremaneira o Um quê mal definido, acaso podem
Brasil, enfatizando sua paisagem e con-
Num engano d’amor arrebatar-nos.
trapondo-a à paisagem européia.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Demonstra forte nacionalismo, che- Devaneio, ilusão, que se esvaece
gando a exagerar na descrição da na-
tureza brasileira e não demonstrando Ao som final da orquestra, ao
senso crítico em relação à realidade. [derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer
Se Se Morre de Amor! [despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o
Meere und Berge und Horizonte zwischen
[chamam,
[den
D’amor igual ninguém sucumbe à
Liebenden – aber die Seelen versetzen
[sich
[perda.
aus dem staubigen Kerker und treffen Amor é vida; é ter constantemente
[sich im Alma, sentidos, coração – abertos
Paradiese der Liebe. Ao grande, ao belo; é ser capaz
Schiller, Die Räuber [d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Se se morre de amor! – Não, não se
Compr’ender o infinito, a
[morre,
[imensidade,
Quando é fascinação que nos
E a natureza e Deus; gostar dos
[surpreende [campos,
De ruidoso sarau entre os D’aves, flores, murmúrios
[festejos; [solitários;
Quando luzes, calor, orquestra e Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
[flores
E ter o coração em riso e festa;
Assomos de prazer nos raiam
[n’alma, E à branda festa, ao riso da nossa
[alma
Que embelezada e solta em tal
Fontes de pranto intercalar sem
[ambiente
[custo;
Nos ouve, e no que vê prazer
Conhecer o prazer e a desventura
[alcança!
No mesmo tempo, e ser no mesmo
Simpáticas feições, cintura breve, [ponto
Graciosa postura, porte airoso, O ditoso, o misérrimo dos entes;
— 198 —
O Canto do Piaga
Segunda Fase:
I
O Mal-do-século ou
Ó Guerreiros da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Geração Byroniana
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Mais precisamente entre as décadas
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi. de 1840 e 1850, o romantismo atinge seu
ponto culminante e mais egocêntrico com
Essa noite – era a lua já morta – o Ultra-Romantismo ou mal-do-século.
Anhangá me vedava sonhar; Esta fase recebeu forte influência de poe-
Eis na horrível caverna, que habito, tas europeus, principalmente do inglês
George Gordon Byron (1788 – 1824), mais
Rouca voz começou-me a chamar.
conhecido como Lord Byron. Este criou
Abro os olhos, inquieto, medroso, heróis sonhadores, que viviam grandes
aventuras e contestavam as convenções
Manitôs! que prodígios que vi!
morais e religiosas aceitas pela burguesia.
Arde o pau de resina fumosa, Byron teve uma vida conturbada, defen-
Não fui eu, não fui eu, que o acendi! deu a liberdade, integrou diversos movi-
mentos revolucionários e veio a morrer na
Eis rebenta a meus pés um Grécia, juntamente com os gregos que al-
[fantasma, mejavam a independência na luta contra
Um fantasma d’imensa extensão; os turcos. Em vários países teve imitado-
res e admiradores. No Brasil, vários escri-
Liso crânio repousa a meu lado.
tores da segunda geração tinham profun-
Feia cobra se enrosca no chão. da admiração por sua figura; por isso esta
geração também é conhecida como byro-
O meu sangue gelou-se nas veias,
niana. Álvares de Azevedo parece ter si-
Todo inteiro – ossos, carnes – do o poeta que mais se inspirou em Byron
[tremi, para escrever seus poemas, além de citá-
Frio horror me coou pelos membros, lo com freqüência em seus versos.
Frio vento no rosto senti. Nesta fase, a produção poética bra-
sileira acentua o subjetivismo, trabalha com
Era feio, medonho, tremendo,
os temas do amor e da morte e, sobretu-
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi. do, com as questões do tédio existencial.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O ultra-romântico fecha-se em si
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi! mesmo, pois se vê insatisfeito com a rea-
(Apud MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira lidade circundante. Dessa forma, por ve-
através dos textos, p. 127-129.) zes parte para o devaneio, para o erotis-
— 200 —
Esta noite eu ousei mais atrevido Oh! meu Deus! era um rol de
[roupa suja!
Nas telhas que estalavam nos
[meus passos
Mas se Werther morreu por ver
Ir espiar seu venturoso sono, [Carlota
Vê-la mais bela de Morfeu nos Dando pão com manteiga às
[braços! [criancinhas
Se achou-a assim mais bela, – eu
Como dormia! que profundo sono!...
[mais te adoro
Tinha na mão o ferro do
[engomado... Sonhando-te a lavar as camisinhas!
Como roncava maviosa e pura!... É ela! é ela! meu amor, minh’a alma,
Minh’alma é Triste
Laurindo Rabelo
Mon coeur est plein – je veux pleurer!
Lamartine
(1826 – 1864)
IV
Laurindo José da Silva Rabelo nas-
Minh’alma é triste como o grito agudo ceu em 1826 no Rio de Janeiro. De ori-
Das arapongas no sertão deserto; gem mestiça e humilde, cursou a Esco-
la Militar, porém optou por Medicina, vin-
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
do a formar-se na Faculdade da Bahia.
Longe da praia que julgou tão perto! Ficou muito conhecido por seus repen-
tes e solos de violão; compôs quadras,
A mocidade no sonhar florida
publicadas em 1853 intituladas Trovas.
Em mim foi beijo de lasciva virgem: Serviu no Exército durante alguns anos
- Pulava o sangue e me fervia a vida, como oficial médico e permaneceu como
professor adido à Escola Militar pouco
Ardendo a fronte em bacanal
antes de sua morte, em 1864. Utilizou
[vertigem.
fontes populares de forma criativa e
De tanto fogo tinha a mente cheia!... simples.
No afã da glória me atirei com ânsia...
Terceira Fase:
E, perto ou longe, quis beijar a s’reia
Que em doce canto me atraiu
[na infância.
Condoreira
Ai! loucos sonhos de mancebo
[ardente! Os poetas da terceira geração ro-
Esp’rança altas... Ei-las já tão rasas!... mântica voltam sua atenção para a
- Pombo selvagem, quis voar decadência da monarquia e para as lu-
[contente... tas abolicionistas. Entre os temas re-
correntes figura o sofrimento dos es-
Feriu-me a bala no bater das asas!
cravos, merecendo destaque no trata-
Dizem que há gozos no correr mento desta questão o baiano Castro
[da vida... Alves, que ficou conhecido como “o
poeta dos escravos”. Esta geração é
Só eu não sei em que o prazer chamada de condoreira devido ao sim-
[consiste! bolismo do condor, ave que voa a gran-
- No amor, na glória, na mundana lida, des alturas, transmitindo-nos a sensa-
Foram-se as flores – a minh’alma ção de liberdade. Além disso, os poetas
[é triste! nesse momento demonstram altivez e
(Apud Massaud Moisés, A Literatura Brasileira através grandiloqüência, características que se
dos textos, p. 172-177.) assemelham à ave.
— 212 —
10
Antonio Candido e José Aderaldo Castello, Presença da Literatura Brasileira, p. 194.
— 216 —
Era uma bela tarde de janeiro. Dois - Pois vamos lá com isso, Margari-
meninos brincavam à sombra das pai- da, exclamou Eugênio, vindo ao chão de
neiras: um rapazinho de doze a treze um salto, e ambos foram ajuntar as pou-
anos e uma menina, que parecia ser cas vacas que ali andavam pastando.
pouco mais nova do que ele.
- Arre! Com mil diabos!... que bezer-
A menina era morena, de olhos rada mofina! – exclamou o rapaz tan-
grandes, negros e cheios de vivacida- gendo os bezerros. – Por que é que es-
de, de corpo esbelto e flexível como o tes bezerros da tia Umbelina andam
pendão da imbaúba. sempre assim tão magros?
O rapaz era alvo, de cabelos cas- - Ora! Pois, que é que você quer?
tanhos, de olhar meigo e plácido e em Mamãe tira quase todo o leite das va-
sua fisionomia como em todo o seu ser cas, e deixa um pinguinho só para os
transluziam indícios de uma índole pa- pobres bezerros. Por isso mesmo qua-
cata, doce e branca. se nenhuma cria pode vingar, e algum
A menina, sentada sobre a relva, que escapa mamãe vende logo.
despencava um molho de flores silves-
- E por que é que ela não te dá uma
tres de que estava fabricando um rama- bezerrinha? aquela vermelhinha estava
lhete, enquanto seu companheiro, atra-
bem bonita para você...
cando-se como um macaco aos galhos
das paineiras, balançou-se no ar, fazia - Qual!... não vê que ela me dá!... e
mil passes e piruetas para diverti-la. eu que tenho tanta vontade de ter a mi-
nha vaquinha. Há que tempo Dindinha
Perto deles, espalhados no var-
prometeu de me dar uma bezerra e até
gedo, umas três ou quatro vacas e mais
hoje estou esperando...
alguns reses estavam tosando tranqüi-
lamente o fresco e viçoso capim. - Mamãe?... ora!... é porque ela se
O sol, que já não se via no céu, to- esqueceu... deixa estar, que eu hei de
cava com uma luz de ouro os topes abau- falar com ela... mas não, eu mesmo é
lados dos altos espigões; uma aragem que hei de te dar uma novilha pintada
quase imperceptível mal rumorejava pe- muito bonitinha que eu tenho. Assim como
las abas do capão e esvoaçava por assim, eu tenho de me ir embora mesmo,
aquelas baixadas cheias de sombra. que quero eu fazer com a criação?
Ibid, p. 127.
12
— 223 —
mas; e, inimigo invencível, porque não - Não, minha senhora, o único par-
tinha fraco por onde fosse atacado, era tido que eu procuro e tenho conseguido
por isso temido e arriscado. Deixemo-la, tirar, é o sossego de que há algum tem-
pois, correr e saltar, aparecer e desapa- po gozo.
recer ao mesmo tempo; nem à nossa pena - Como?
é dado o poder de acompanhá-la, que
ela é tão rápida como o pensamento. - É uma história muito longa, mas que
eu resumirei em poucas palavras. Com
Finalmente, o pobre Augusto en- efeito, não sou tal qual me pintei durante
controu uma senhora que teve piedade o jantar. Não tenho a louca mania de
dele. Estão afastados do resto da com- amar um belo ideal, como pretendi fazer
panhia, e conversavam. Vamos ouvi-los. crer; porém, o certo é que eu sou e que-
- Com efeito, disse a srª d. Ana, ro ser inconstante com todas e conser-
devo confessar que me espantei ouvin- var-me firme no amor de uma só.
do-o sustentar com tão vivo fogo a in- - Então o senhor já ama?
constância do amor.
- Julgo que sim.
- Mas, minha senhora, não sei por - A uma moça?
que se quer espantar!... é uma opinião.
- Pois então a quem?
- Um erro, senhor!... ou, melhor ain-
- Sem dúvida bela?...
da, um sistema perigoso e capaz de pro-
duzir grandes males. - Creio que deve ser.
- Pois o senhor não sabe?...
- Eis o que também me espanta!
- Juro que não.
- Não senhor, nada há aqui que
- O seu semblante?
exagerado seja; rogo-lhe que por um
instante pense comigo: se o seu siste- - Não me lembro dele.
ma é bom, deve ser seguido por todos; - Mora na corte?...
e se assim acontecesse, onde iria as- - Ignoro-o.
sentar o sossego das famílias, a paz
- Vê-a muitas vezes?
dos esposos, se lhe faltava a sua base
– a constância?... - Nunca.
- Como se chama?
Augusto guardou silêncio e ela con-
tinuou: - Desejo sabê-lo.
- Que mistério!...
- Eu devo crer que o sr. Augusto
pensa de maneira absolutamente diver- - Eu devo mostrar-me grato à bon-
sa daquela pela qual se explicou; con- dade com que tenho sido tratado, satis-
sinta que lhe diga: no seu pretendido fazendo a curiosidade que vejo muito
sistema, o que há é muita velhacaria; avivada no seu rosto; e, pois, a senho-
finge não se curvar por muito tempo di- ra vai ouvir o que ainda não ouviu ne-
ante de beleza alguma, para plantar no nhum dos meus amigos, o que eu não
amor-próprio das moças o desejo de tri- lhes diria, porque eles provavelmente
unfar de sua inconstância. rir-se-iam de mim. Se deseja saber o
— 224 —
Resumo do Romantismo
Momento sócio-cultural Autores e obras
• Recém independente, o Brasil pro- • Gonçalves Dias: considerado o pri-
cura afirmar sua individualidade meiro poeta genuinamente nacional,
como nação, busca o reconhecimen- deixou obra vasta, destacando-se Pri-
to perante outras nações. meiros Cantos (1847), Os Timbiras
• Ascensão da burguesia e de seus (1857), Últimos Cantos (1851).
valores: liberdade individual e libera- • Álvares de Azevedo: maior nome
da geração mal-do-século. Escreveu
lismo. Porém, logo surge insatisfa-
Lira dos Vinte Anos (1853), Noite
ção com o cotidiano da vida burgue-
na Taverna (1855), Macário (1855).
sa, o que gera um sentimento de
• Castro Alves: expoente da gera-
tédio e desencanto com o mundo, ção condoreira, denunciou a escra-
expressos pela arte romântica. vidão, defendeu a liberdade e exal-
Características literárias tou a mulher. Deixou Espumas Flu-
tuantes (1870), A Cachoeira de Pau-
• Negação dos valores pregados pelo
lo Afonso (1876).
Arcadismo: a arte deve ser subjeti- • José de Alencar: defensor de uma
va, emotiva, sua força deve estar literatura realmente brasileira, que ali-
no conteúdo; o artista expõe seu asse consciência nacional ao rigor
mundo interior. estético. De sua vasta e influente
• O culto à forma é rejeitado. Em nome obra, destacamos O Guarani
da liberdade de expressão o artista (1857), Iracema (1865), Ubirajara
dispõe da forma como bem entende. (1874), O Sertanejo (1875).
• Os temas principais do Romantismo • Manuel Antônio de Almeida: dei-
(introversão, tédio, nacionalismo, xou Memórias de um Sargento de
amor, morte) são tratados de forma Milícias (1855), importante retrato do
sentimental e imaginativa. Rio de Janeiro do período joanino.
— 226 —
Realismo-Naturalismo
A economia açucareira encontra- enunciar a noção de evolução. Todavia,
se em decadência e esta situação agra- foi Darwin quem expôs os processos
va-se ainda mais com a extinção do trá- pelos quais a evolução das linhagens
fico negreiro em 1850. Com isso, o eixo determina a das populações. O avanço
econômico desloca-se para o Sul e há da medicina e das ciências biológicas é
um ambiente favorável ao pensamento percebido em sua obra A Origem das
liberal, abolicionista e republicano. O país Espécies (1859).
recebe influências do Positivismo e Evo-
lucionismo. Com tais idéias em voga, há um
campo propício para o desenvolvimento
O Positivismo foi criado por Augusto de uma nova estética literária: o Realis-
Comte (1798-1857) com o Curso de Fi- mo, que se opõe ao Romantismo, con-
losofia Positiva, obra em seis volumes, trapondo-se ao caráter espiritualista e
publicada entre 1830 e 1842. Nela de- idealizador do mesmo.
fende a importância crucial da Ciência
para a vida do homem em sociedade. O Realismo tem início no Brasil em
Propõe o abandono da Teologia e da 1881, com a publicação de Memórias
Metafísica e sugere a busca do conhe- Póstumas de Brás Cubas, de Machado
cimento “positivo” da realidade, ou seja, de Assis. Paralelamente ao Realismo,
concreto, objetivo e obtido através da caminha o Naturalismo, que principia
análise e experimentação. no mesmo ano, com a publicação de O
Mulato, de Aluísio de Azevedo. O Rea-
A filosofia positiva influenciou ou- lismo-Naturalismo tem seu término em
tros pensadores, entre eles Proudhon, 1902, com o surgimento de Os Sertões,
que forneceu a base para as idéias so- de Euclides da Cunha, e Canaã, de Gra-
cialistas por meio de seus escritos em ça Aranha, obras que marcam o princí-
jornais e obras como Filosofia do Pro- pio de um novo período literário: o Pré-
gresso (1835) e Sistemas das Contra- Modernismo.
dições Econômicas (1846). Além des-
te, Hipólito Taine baseou-se nas idéias Os escritores desse período pro-
de Comte para apresentar a sua teoria curam descrever os costumes e as re-
determinista da obra de arte, condicio- lações entre os seres humanos com
nada a alguns fatores: herança, meio e maior realidade.
momento histórico.
O Naturalismo pode ser conside-
O Evolucionismo é uma teoria fun- rado como o Realismo levado até as
damentada na idéia de evolução dos últimas conseqüências. Procura dar ex-
seres vivos. Lamarck foi o primeiro a plicações científicas para o comporta-
— 227 —
mente seguindo uma ordem linear, mas um autor defunto, mas um defunto au-
acompanhando o fluxo das lembranças. tor, para quem a campa foi outro berço;
Entre outras coisas, recorda a paixão a segunda é que o escrito ficaria assim
adolescente pela prostituta Marcela e o mais galante e mais novo. Moisés, que
grande amor de sua vida: Virgília, espo- também contou a sua morte, não a pôs
sa de Lobo Neves. no intróito, mas no cabo: diferença radi-
cal entre este livro e o Pentateuco.
Brás Cubas sempre almejou a imor-
talidade. Não obteve os meios para con- Dito isto, expirei às duas horas da
segui-la em vida: não se casou, não teve tarde de uma sexta-feira do mês de agos-
filhos, não foi político, tampouco reali- to de 1869, na minha bela chácara de
zou grandes contribuições científicas, Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro
apesar de sua tentativa, o emplasto. anos, rijos e prósperos, era solteiro, pos-
Entretanto, após sua morte, consegue suía cerca de trezentos contos e fui
realizar seu intento escrevendo uma acompanhado ao cemitério por onze
obra póstuma. amigos. Onze amigos! Verdade é que
não houve cartas nem anúncios. Acres-
O capítulo a seguir é o primeiro do ce que chovia – peneirava – uma chuvi-
livro, em que o narrador apresenta-se nha miúda, triste e constante, tão cons-
como um “defunto autor” e inicialmente tante e tão triste, que levou um daqueles
reflete sobre a própria construção da fiéis da última hora a intercalar esta en-
narrativa, discutindo como deveria genhosa idéia no discurso que proferiu
começá-la. Em seguida, relata sua mor- à beira de minha cova: - “Vós, que o
te e reconstrói o quadro de seu enterro, conhecestes, meus senhores, vós po-
mostrando com sutileza e ironia os jo- deis dizer comigo que a natureza pare-
gos de interesse e as atitudes dissimu- ce estar chorando a perda irreparável
ladas dos indivíduos e desmascarando de um dos mais belos caracteres que
a hipocrisia da sociedade. Merece des- têm honrado a humanidade. Este ar som-
taque a caracterização psicológica dos brio, estas gotas do céu, aquelas nu-
personagens, realizada com maestria vens escuras que cobrem o azul como
pelo escritor. um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua
CAPÍTULO I e má que lhe rói à natureza as mais ínti-
mas entranhas; tudo isso é um sublime
ÓBITO DO AUTOR louvor ao nosso ilustre finado.”
Algum tempo hesitei se devia abrir Bom e fiel amigo! Não, não me arre-
estas memórias pelo princípio ou pelo pendo das vinte apólices que lhe deixei.
fim, isto é, se poria em primeiro lugar o E foi assim que cheguei à cláusula dos
meu nascimento ou a minha morte. Su- meus dias; foi assim que me encaminhei
posto o uso vulgar seja começar pelo para o undiscovered country de Hamlet,
nascimento, duas considerações me le- sem as ânsias nem as dúvidas do moço
varam a adotar diferente método: a pri- príncipe, mas pausado e trôpego como
meira é que eu não sou propriamente quem se retira tarde do espetáculo. Tar-
— 229 —
(Machado de Assis, Quincas Borba, São Paulo: Globo, Tudo era matéria às curiosidades
1997, p. 6-9.) de Capitu. Caso houve, porém, no qual
— 233 —
Entretanto, das portas surgiam ca- cansavam, era um abrir e fechar de cada
beças congestionadas de sono; ouvi- instante, um entrar e sair sem tréguas.
am-se amplos bocejos, fortes como o Não se demoravam lá dentro e vinham
marulhar das ondas; pigarreava-se gros- ainda amarrando as calças ou as saias;
so por toda a parte; começavam as xí- as crianças não se davam ao trabalho
caras a tilintar; o cheiro quente do café de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no
aquecia, suplantando todos os outros; capinzal dos fundos, por detrás da es-
trocavam-se de janela para janela as talagem ou no recanto das hortas.
primeiras palavras, os bons dias; reata-
O rumor crescia, condensando-se;
vam-se conversas interrompidas à noi-
o zunzum de todos os dias acentuava-
te; a pequenada cá fora traquinava já, e
se; já se não destacavam vozes dis-
lá dentro das casas vinham choros aba-
persas, mas um só ruído compacto que
fados de crianças que ainda não an-
enchia todo o cortiço. Começavam a fa-
dam. No confuso rumor que se forma-
zer compras na venda; ensarilhavam-
va, destacavam-se risos, sons de vo-
se discussões e resingas; ouviam-se
zes que altercavam, sem se saber onde,
gargalhadas e pragas; já não se falava,
grasnar de marrecos, cantar de galos,
gritava-se. Sentia-se naquela fermen-
cacarejar de galinhas. De alguns quar-
tação sangüínea, naquela gula viçosa
tos saíam mulheres que vinham pendu-
de plantas rasteiras que mergulham os
rar cá fora, na parede, a gaiola do papa-
pés vigorosos na lama preta e nutriente
gaio, e os louros, à semelhança dos
da vida, o prazer animal de existir, a
donos, cumprimentavam-se ruidosamen-
triunfante satisfação de respirar sobre
te, espanejando-se à luz nova do dia.
a terra.
Daí a pouco, em volta das bicas era (...)
um zunzum crescente; uma aglomera-
(Aluísio Azevedo, O cortiço, São Paulo: Ática, 1975.
ção tumultuosa de machos e fêmeas. p. 28-29. )
Uns, após outros, lavavam a cara, inco-
modamente, debaixo do fio de água que
escorria da altura de uns cinco palmos.
O chão inundava-se. As mulheres pre- Outros autores
cisavam já prender as saias entre as
coxas para não as molhar; via-se-lhes a
tostada nudez dos braços e do pesco-
ço, que elas despiam, suspendendo o Inglês de Sousa
cabelo todo para o alto do casco; os
homens, esses não se preocupavam em (1853 – 1918)
não molhar o pêlo, ao contrário metiam a
cabeça bem debaixo da água e esfrega- Herculano Marcos Inglês de Sou-
vam com força as ventas e as barbas, za nasceu no Pará em 1853. Graduou-
fossando e fungando contra as palmas se em Direito em São Paulo. Colaborou
da mão. As portas das latrinas não des- para a Revista Nacional de Ciências,
— 239 —
Resumo do Realismo-Naturalismo
Momento sócio-cultural abolicionista desgastam o governo
de D. Pedro II, que perde continua-
mente o apoio dos grandes proprie-
• O Segundo Reinado está em crise: a
tários rurais.
Guerra do Paraguai (que custou
muitas vidas e dinheiro ao país) e a • O eixo econômico e de poder deslo-
cada vez mais intensa campanha ca-se para o Sul, devido à decadên-
— 240 —
Parnasianismo
No plano da prosa, a reação contra nos. Este último preconizou a teoria da
o Romantismo constituiu o Realismo. Já “arte pela arte”, ou seja, a idéia de que a
no plano da poesia, o combate ao senti- palavra deveria ser encarada como um
mentalismo produziu o que chamamos objeto e a estética teria que ser busca-
de Parnasianismo. da através de engenhoso trabalho e não
simplesmente por meio da inspiração. A
O movimento parnasiano iniciou-se
beleza seria, dessa forma, a única fina-
em 1882, com a publicação das Fan-
lidade da arte.
farras, de Teófilo Dias e prolongou-se até
aproximadamente 1922, quando recebeu Vale ressaltar que, além da Fran-
severas críticas dos modernistas. ça, o Brasil foi o único país em que se
manifestou o Parnasianismo.
O nome Parnasianismo tem sua ori-
gem no Parnasse Contemporain, uma A arte de escrever poesia foi com-
antologia de escritos de diversos poe- parada ao trabalho do escultor, pintor e
tas franceses que reagiam contra as até mesmo do ourives, pela paciência e
tendências românticas, organizada por atenção aos detalhes, que devem pos-
Lemerre em 1866. suir os poetas. Para tanto, deveriam
atentar para a rigidez formal, cuidando
Parnaso era o nome de um monte
da versificação, rima, sonoridade (ob-
grego, dedicado na Antiguidade às Mu-
tida através das aliterações e asso-
sas e a Apolo. De acordo com a mitolo-
nâncias).
gia, neste lugar havia a fonte Castália,
cujas águas inspiravam os poetas. O Os mais importantes poetas parna-
vocábulo Parnaso também foi utilizado sianos brasileiros compõem a “tríade
com o sentido de “grupo de poetas”, parnasiana”. São eles: Alberto de Olivei-
“antologia” e até mesmo de “poesia”. ra, Raimundo Correia e Olavo Bilac. Me-
Os escritores inspiravam-se em recem destaque também Vicente de Car-
Leconte de Lisle, que iniciou a descri- valho, Francisca Júlia e Artur de Aze-
ção objetiva do mundo e dos objetos, vedo.
utilizou temas da história antiga e dos
povos orientais e teve grande preocu-
pação com a forma, construindo versos Alberto de Oliveira
com ritmo, vocabulário raro e elementos (1857 – 1937)
sensoriais.
Visões que n’alma o céu do exílio Em vão tateiam tuas mãos trementes
[incuba,
As entranhas da noite erma, infinita,
Mortais visões! Fuzila o azul Onde a dúvida atroz blasfema e
[infando... [grita,
Coleia, basilisco de ouro, ondeando E onde há só queixas e ranger de
O Níger... Bramem leões de fulva [dentes...
[juba...
A essa abóbada escura, em vão
Uivam chacais... Ressoa a fera tuba [elevas
13
Ibid, p. 377.
— 246 —
Que outro – não eu! – a pedra corte E que o lavor do verso, acaso,
Para, brutal, Por tão sutil,
Erguer de Atena o altivo porte Possa o lavor lembrar de um vaso
Descomunal. De Becerril.
Mais que esse vulto extraordinário, E horas sem conto passo, mudo,
Que assombra a vista,
O olhar atento,
Seduz-me um leve relicário
A trabalhar, longe de tudo
De fino artista.
O pensamento.
Invejo o ourives quando escrevo:
Porque o escrever – tanta perícia,
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo Tanta requer,
Faz de uma flor. Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo: Assim procedo. Minha pena
O alvo cristal, a pedra rara, Segue esta norma,
O ônix prefiro. Por te servir, Deusa serena,
Por isso, corre, por servir-me, Serena Forma!
Sobre o papel Deusa! A onda vil, que se avoluma
A pena, como em prata firme
De um torvo mar,
Corre o cinzel.
Deixa-a crescer; e o lobo e a espuma
Corre; desenha, enfeita a imagem, Deixa-a rolar!
A idéia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem Blasfemo, em grita surda e horrendo
Azul-celeste. Ímpeto, o bando
Venha dos Bárbaros crescendo,
Torce, aprimora, alteia, lima
Vociferando...
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima, Deixa-o: que venha e uivando passe
Como um rubim. - Bando feroz!
Via-láctea In Extremis
Nunca morrer assim! Nunca
“Via-láctea” compõe a segunda
[morrer num dia
parte do livro Poesias, constituída de
trinta e cinco sonetos. A temática cons- Assim! de um sol assim!
tante destes é o amor. Tu, desgrenhada e fria,
XX Fria! postos nos meus os teus
[olhos molhados,
Olha-me! O teu olhar sereno e
E apertando nos teus os meus
[brando
[dedos gelados...
Entre-me o peito, como um largo
[rio E um dia assim! de um sol assim!
De ondas de ouro e de luz, [E assim a esfera
[límpido, entrando Toda azul, no esplendor do fim da
O ermo de um bosque tenebroso [primavera!
[e frio.
Asas, tontas de luz, cortando o
Fala-me! Em grupos doudejantes, [firmamento!
[quando
Ninhos cantando! Em flor a terra
Falas, por noites cálidas de [toda! O vento
[estilo,
Despencando os rosais,
As estrelas acendem-se, [sacudindo o arvoredo...
[radiando,
Altas, semeadas pelo céu E, aqui dentro, o silêncio... E este
[sombrio. [espanto! e este medo!
Nós dois... e, entre nós dois,
Olha-me assim! Fala-me assim! [implacável e forte,
[De pranto
A arredar-me de ti, cada vez
Agora, de ternura cheia, [mais, a morte...
Abre em chispas de fogo essa
[pupila... Eu, com o frio a crescer no
[coração, - tão cheio
E enquanto eu ardo em sua luz, De ti, até no horror do derradeiro
[enquanto [anseio!
Em seu fulgor me abraso, uma Tu, vendo retorcer-se
[sereia [amarguradamente,
Soluce e cante nessa voz A boca que beijava a tua boca
[tranqüila! [ardente,
(Poesia, Rio de Janeiro: Garnier, 1902) A boca que foi tua!
— 248 —
Resumo do Parnasianismo
Simbolismo
A publicação das obras Missal e Os poetas fecham-se numa “torre
Broquéis de Cruz e Sousa em 1893 de marfim” e fazem culto do vago e do
marca o início do movimento simbolista, misterioso.
que se estende até 1902, com a publi-
cação de Os Sertões, de Euclides da
Cunha e Canaã, de Graça Aranha. Cruz e Sousa
Diferentemente do Parnasianismo, (1861 – 1898)
seu contemporâneo, não se assemelha
em nenhum aspecto ao Realismo-Natu-
João da Cruz e Sousa nasceu em
ralismo. Aproxima-se do Romantismo por
Santa Catarina em 1861, filho de escra-
seu caráter subjetivo.
vos negros. Concluiu o curso secundá-
Os simbolistas procuram recupe- rio no Ateneu Provincial Catarinense e
rar a unidade entre o material e espiritu- passou a exercer a função de profes-
al, assim como os românticos. Contudo, sor. Faleceu em 1898, vítima de tuber-
diferem destes por buscá-la aqui mes- culose.
mo na terra e não em uma vida após a
morte. Escreveu Tropos e Fantasias
(1885), Missal (1893), Broquéis (1893),
Acreditam na idéia do místico sue- Evocações (1898), Faróis (1900), Últi-
co Swedenborg de que tudo que existe mos Sonetos (1905).
no mundo natural depende do mundo
espiritual e, portanto, todos os elemen- Além de ter introduzido o Simbolis-
tos da natureza são correspondências. mo no Brasil, Cruz e Souza foi o escritor
Os objetos do mundo real constituem mais significativo desse movimento em
símbolos do mundo espiritual e devem nosso país.
ser decifrados.
Recebeu influência dos realistas,
Influenciados também por Mallarmé, compondo textos marcados por profun-
consideram a poesia como expressão do pessimismo e materialismo, e dos
dos mistérios da existência humana e parnasianos, demonstrando excessiva
buscam a sugestão através do uso do preocupação com a forma.
símbolo. Este é usado para revelar um
estado de alma.
Antífona
A música é tida pelos simbolistas
como a arte que melhor realiza a suges- Neste poema encontramos elemen-
tão. Por isso, elaboram textos que ex- tos tipicamente simbolistas: vaguidão,
pressam musicalidade. fluidez, utilização de objetos litúrgicos
— 250 —
14
Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, p. 274.
— 251 —
Resumo do Simbolismo
Momento sócio-cultural vida, mas sem nomear esses misté-
rios. Deve sugeri-los, utilizando o som
• O fim do século XIX é de profundo
e o símbolo.
pessimismo e desânimo. A civiliza-
• Em suma, a poesia simbolista é mis-
ção industrial produz desencanto e
tério e imprecisão.
vazio, vazio este que leva o homem
a procurar o espiritual e o absoluto. Autores e obras
Características literárias • Cruz e Sousa: o mais importante
simbolista brasileiro (e um dos maio-
• Essa ânsia pelo absoluto leva os sim- res do mundo). Escreveu Missal
bolistas a tentarem unificar matéria (1893), Broquéis (1893), Faróis
e espírito por meio de uma arte que (1900), Últimos Sonetos (1905).
é pura sugestão, fluidez e musica- • Alphonsus de Guimaraens: autor
lidade, negando a poesia fria dos de obra mística e que idealiza a ama-
parnasianos. da morta. Deixou Setenário das Do-
• Para os simbolistas a poesia deve res de Nossa Senhora (1889), Kiriale
expressar os mistérios da alma e da (1902), A Escada de Jacó (1938).
— 254 —
Pré-Modernismo
No Brasil do começo do século XX, renovadoras, apresentando novas con-
os proprietários rurais de São Paulo e cepções estéticas e temáticas.
Minas Gerais compõem a elite dominan-
Marcam o início deste período, que
te da República Velha, que vai de 1894 a
não pode ser considerado uma estética
1930. A economia tem por base a dupla
literária, as obras Os Sertões, de Eucli-
“café com leite”, ou seja, centra-se na
des da Cunha, e Canaã, de Graça Ara-
lavoura cafeeira e na pecuária.
nha. Estende-se até 1922, quando ocor-
Por outro lado, há um aumento da reu a Semana de Arte Moderna e princi-
industrialização e um crescimento da piou o Modernismo no Brasil.
classe operária. Cada vez mais imigran-
tes europeus dirigem-se ao centro-sul e
os negros, recém-libertados, compõem Euclides da Cunha
a classe marginalizada em vários pon- (1866 – 1909)
tos do país.
Com a ascensão do café de São Euclides Rodrigues da Cunha nas-
Paulo, a cultura canavieira do Nordeste ceu em Cantagalo, Rio de Janeiro, em
entra em decadência. 1866. Após os estudos secundários,
cursou a Escola Politécnica, mas aban-
Ex-escravos, imigrantes e proleta- donou-a por motivos financeiros e mu-
riado integram a camada menos favore- dou-se para a Escola Militar, saindo des-
cida da sociedade, ao contrário da clas- ta como tenente e engenheiro. Seguiu
se conservadora, detentora de dinheiro também a carreira jornalística, que lhe
e poder. Este quadro gera uma série de propiciou a ida, como correspondente
revoltas por várias regiões do país. En- do jornal O Estado de São Paulo, para o
tre os acontecimentos estão: No nor- arraial de Canudos, no sertão baiano.
deste - fenômeno do cangaço, fanatis- Em seguida vai para São José do Rio
mo religioso centrado na figura do pa- Pardo, onde escreve Os sertões, publi-
dre Cícero, guerra de Canudos; no Rio cado em 1902 e responsável por sua
de Janeiro – revolta contra a vacina obri- notoriedade. Entrou para a Academia
gatória contra a febre amarela e Revolta Brasileira de Letras e foi professor de
da Chibata; em São Paulo – greves ope- Lógica no Colégio Pedro II, em 1909.
rárias; no sul – Guerra do Contestado. Morreu assassinado nesse mesmo ano.
Nesse contexto desenvolvem-se Escreveu também Peru versus Bo-
tendências conservadoras ainda influ- lívia - 1907, Contraste e Confrontos -
enciadas pelo Realismo-Naturalismo, 1907, À Margem da História - 1909, Ca-
Parnasianismo e Simbolismo e atitudes nudos (Diário de uma Expedição) – 1939.
— 255 —
Tido como louco, vai para o hospí- podia levar um trem de vida superior
cio. Em seguida dedica-se à agricultura. aos seus recursos burocráticos, go-
Na revolta contra o Marechal Floriano, zando, por parte da vizinhança, da con-
apresenta-se para servi-lo, chefia uma sideração e respeito de homem abas-
guarnição, mas é preso como traidor e tado.
condenado à morte.
Não recebia ninguém, vivia num
I isolamento monacal, embora fosse cor-
tês com os vizinhos que o julgavam es-
A LIÇÃO DE VIOLÃO quisito e misantropo. Se não tinha ami-
Como de hábitos, Policarpo Qua- gos na redondeza, não tinha inimigos,
resma, mais conhecido por Major Qua- e a única desafeição que merecera,
resma, bateu em casa às quatro e quin- fora a do doutor Segadas, um clínico
ze da tarde. Havia mais de vinte anos afamado no lugar, que não podia admi-
que isso acontecia. Saindo do Arsenal tir que Quaresma tivesse livros: “Se não
de Guerra, onde era subsecretário, era formado, para quê? Pedantismo!”
bongava pelas confeitarias algumas O subsecretário não mostrava os
frutas, comprava um queijo, às vezes, livros a ninguém, mas acontecia que,
e sempre o pão da padaria francesa. quando se abriam as janelas da sala de
Não gastava nesses passos nem sua livraria, da rua poder-se-iam ver
mesmo uma hora, de forma que, às três as estantes pejadas de cima abaixo.
e quarenta, por aí assim, tomava o bon-
Eram esses os hábitos; ultimamen-
de, sem erro de um minuto, ia pisar a
te, porém, mudara um pouco; e isso pro-
soleira da porta de sua casa, numa rua
vocava comentários no bairro. Além do
afastada de São Januário, bem exata-
compadre e da filha, as únicas pesso-
mente às quatro e quinze, como se fos-
as que o visitavam até então, nos últi-
se a aparição de um astro, um eclipse,
mos dias, era visto entrar em sua casa,
enfim um fenômeno matematicamente
três vezes por semana e em dias cer-
determinado, previsto e predito.
tos, um senhor baixo, magro, pálido,
A vizinhança já lhe conhecia os com um violão agasalhado numa bolsa
hábitos e tanto que, na casa do Capitão de camurça. Logo pela primeira vez o
Cláudio, onde era costume jantar-se aí caso intrigou a vizinhança. Um violão
pelas quatro e meia, logo que o viam em casa tão respeitável! Que seria?
passar, a dona gritava à criada: “Alice,
E, na mesma tarde, uma das mais
olha que são horas; o Major Quaresma
lindas vizinhas do major convidou uma
já passou.”
amiga, e ambas levaram um tempo per-
E era assim todos os dias, há qua- dido, de cá para lá, a palmilhar o pas-
se trinta anos. Vivendo em casa pró- seio, esticando a cabeça, quando pas-
pria e tendo outros rendimentos além savam diante da janela aberta do es-
do seu ordenado, o Major Quaresma quisito subsecretário.
— 258 —
Resumo do Pré-modernismo
Momento sócio-cultural Autores e obras
• Parte do Brasil se industrializa e se • Euclides da Cunha: jornalista, es-
urbaniza rapidamente. Milhares de creveu Os Sertões (1902), obra-pri-
imigrantes europeus se estabelecem ma que relata a guerra de Canudos.
no país. Enquanto o Centro-sul se
• Lima Barreto: escritor simples e ob-
moderniza, conflitos em regiões como
jetivo, denunciou os vícios e precon-
Canudos expõem a miséria de gran-
ceitos da sociedade brasileira. Escre-
de parte do país.
veu Triste Fim de Policarpo Quares-
Características literárias ma (1915), Clara dos Anjos (1948).
• Esse período é uma transição para o • Monteiro Lobato: denunciou muitos
Modernismo e não possui os traços problemas nacionais, em obras como
de uma escola literária. Vemos o iní- Urupês (1918), Idéias de Jeca Tatu
cio de tendências e temas que se (1919), Cidade Mortas (1919), Negri-
firmam no Modernismo. nha (1920).
— 259 —
Modernismo
O movimento modernista teve início fase (1945 até a atualidade), também
em São Paulo, com a Semana de Arte conhecida como Pós-Modernismo.
Moderna, em 1922. Logo em seguida ex-
pandiu-se por todo o país, renovando a
idéia de literatura e de escritor.
O pintor Lasar Segall em 1913 fez Bandeira e Ribeiro Couto. Além disso, Mário
uma exposição, influenciada pelas Van- de Andrade fez uma pequena palestra
guardas Européias, em São Paulo. Em sobre a exposição de artes plásticas, se-
1914 foi a vez de Anita Malfatti, ocasião guido do bailado de Yvonne Daumerie e
em que recebeu severas críticas de do concerto de Guiomar Novais.
Monteiro Lobato. Já no ano de 1915 Ro-
No dia 17, Villa Lobos fez um con-
nald de Carvalho colaborou com a publi-
certo e foi muito vaiado.
cação da revista Orpheu, que marca o
início do Modernismo na literatura portu-
guesa.
liderado por Menotti de Picchia, Cassiano sos livres e abandonam as formas fi-
Ricardo e Plínio Salgado e marcado pela xas, como o soneto. A linguagem colo-
defesa de um nacionalismo ufanista, quial é recorrente, assim como a au-
tendendo para o conservadorismo. O sência de pontuação. Combatem valo-
grupo autodenominou-se Escola de res tradicionais; valorizam elementos
Anta e identificou-se com o Integralismo. do cotidiano e do progresso; reescre-
vem textos do passado, com lirismo ou
parodiando-os; as linguagens da poe-
do Modernismo metalinguagem.
(1922-1930)
Mário de Andrade
Durante as primeiras décadas do
(1893 – 1945)
século XX, ocorrem algumas mudanças
na economia brasileira. A industrializa- Mário Raul de Morais Andrade nas-
ção cresce, sobretudo em São Paulo. ceu em São Paulo em 1893. Formou-se
Importa-se mão-de-obra, tanto para a no Conservatório Dramático e Musical,
lavoura cafeeira como para as indústri- onde posteriormente lecionou História
as. O anarquismo é trazido pelos italia- da Música. Trabalhou como professor
nos, provocando protestos, reivindica- de piano, jornalista e funcionário públi-
ções e greves, ou seja, lutas por melho- co. Em 1934 passou a dirigir o Departa-
res condições de trabalho. Mas a eco- mento de Cultura da Prefeitura de São
nomia ainda centrava-se na cafeicultu- Paulo, permanecendo até 1937. Um ano
ra paulista e na pecuária mineira. Entre depois se transferiu para o Rio de Ja-
os anos de 1922 a 1930 intensifica-se o
neiro. Foi crítico literário, professor de
Tenentismo, cria-se a Coluna Prestes e
Estética na Universidade do Distrito Fe-
o Partido Comunista é considerado ile-
deral e idealizou a Enciclopédia Brasi-
gal pelo governo.
leira do Ministério da Educação. No ano
Em 1929 o preço do café no mer- de 1940 retornou a São Paulo, onde foi
cado internacional cai, devido à quebra funcionário do Serviço do Patrimônio
da Bolsa de Nova Iorque, e muitos fa- Histórico e faleceu em 1945.
zendeiros vão à falência. Imigrantes são
Além da literatura, Mário de Andra-
presos pela participação em greves.
de era um amante e estudioso da músi-
Getúlio Vargas é candidato à presidên-
ca, das artes plásticas e do folclore
cia da República.
brasileiro. Desejava construir os alicer-
Durante a primeira fase modernis- ces de uma cultura verdadeiramente
ta, os escritores fazem uso dos ver- nacional.
— 262 —
(...)
Manifesto Antropófago
(Mário de Andrade, Macunaíma, São Paulo: Klick
Editora, 1999, p. 13)
(fragmentos)
Só a Antropofagia nos une. Social-
mente. Economicamente. Filosoficamente.
Oswald de Andrade *
(1890 – 1953) Única lei do mundo. Expressão mas-
carada de todos os individualismos, de
José Oswald de Sousa Andrade todos os coletivismos. De todas as reli-
nasceu em São Paulo em 1890. De 1911 giões. De todos os tratados de paz.
— 264 —
* (...)
Tupi, or not tupi that is the question. A luta entre o que se chamaria
Incriado e a Criatura – ilustrada pela con-
* tradição permanente do homem e o seu
Tabu. O amor cotidiano e o modus-vivendi
Contra todas as catequeses. E con-
capitalista. Antropofagia. Absorção do
tra a mãe dos Gracos.
inimigo sacro. Para transformá-lo em
* totem. A humana aventura. A terrena
finalidade. Porém, só as puras elites con-
Só me interessa o que não é meu.
seguiram realizar a antropofagia carnal,
Lei do homem. Lei do antropófago.
que traz em si o mais alto sentido da
* vida e evita todos os males identifica-
dos por Freud, males catequistas. O que
(...) se dá não é uma sublimação do instinto
Tínhamos a justiça codificação da sexual. É a escala termométrica do ins-
vingança. A ciência codificação da Ma- tinto antropofágico. De carnal, ele se
gia. A Antropofagia. A transformação torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o
permanente do Tabu em totem. amor. Especulativo, a ciência. Desvia-
se e transfere-se. Chegamos ao avilta-
*
mento. A baixa antropofagia aglomera-
(...) da nos pecados de catecismo – a inve-
De William James a Voronoff. A ja, a usura, a calúnia, o assassinato.
Transfiguração do Tabu em totem. An- Peste dos chamados povos cultos e
tropofagia. cristianizados, é contra ela que estamos
agindo. Antropófagos.
*
*
(...)
(...)
Antes dos portugueses descobri-
rem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a Contra a realidade social, vestida e
felicidade. opressora, cadastrada por Freud – a
realidade sem complexos, sem loucura,
* sem prostituição e sem penitenciárias
do matriarcado de Pindorama.
(...)
Somos concretistas. As idéias to- Oswald de Andrade
mam conta, reagem, queimam gente nas Em Piratininga.
praças públicas. Suprimamos as idéias Ano 374 da Deglutição do Bispo
e as outras paralisias. Pelos roteiros. Sardinha.
Acreditar nos sinais, acreditar nos ins-
trumentos e nas estrelas. Revista de Antropofagia, Ano I, Nº 1,
* maio de 1928.
— 265 —
Pneumotórax
Manuel Bandeira
(1886 – 1968) Febre, hemoptise, dispnéia e
[suores noturnos.
Manuel Carneiro de Sousa Bandei- A vida inteira, que podia ter sido
ra Filho nasceu no Recife, Pernambuco, [e que não foi.
em 1886. Realizou os estudos secun- Tosse, tosse, tosse.
dários no Rio de Janeiro, no Colégio
Pedro II. Iniciou o curso de Engenharia Mandou chamar o médico:
em São Paulo, mas devido à tuberculo-
se que contraíra teve que deixá-lo. Em - Diga trinta e três.
busca de melhora, foi para diversos lu- - Trinta e três... trinta e três...
gares, entre eles a Suíça. Iniciada a Pri- [trinta e três...
meira Guerra, retorna ao Brasil, vindo a - Respire.
publicar em 1917 seu primeiro livro, A
......................................................
Cinza das Horas. Além de escritor, foi
também jornalista, inspector do ensino - O senhor tem uma escavação
secundário, professor no Colégio Pedro [no pulmão esquerdo
II e na Faculdade Nacional de Filosofia, [e o pulmão direito infiltrado.
vindo a aposentar-se em 1956. Foi mem- - Então, doutor, não é possível
bro da Academia Brasileira de Letras. [tentar o pneumotórax?
Faleceu no Rio de Janeiro em 1968.
- Não, a única coisa a fazer é
Escreveu poesias (Carnaval – [tocar um tango argentino.
1919, Libertinagem – 1930, Estrela da (Apud Massaud Moisés, A literatura brasileira através
Manhã – 1936, Estrela da Tarde – 1963, dos textos, p. 417)
Estrela da Vida Inteira – 1966) e prosa
(Itinerário de Pasárgada – 1954, Frauta
de Papel – 1957).
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Soube adequar muito bem a poesia
à linguagem coloquial da primeira fase Do lirismo bem-comportado
modernista, além de manejar com per- Do lirismo funcionário público com
feição os versos livres, dotando-os de [livro de ponto expediente
ritmo. Tornou-se um “clássico” entre os [protocolo e manifestações de
modernistas, pois expressava com sim- [apreço ao sr. diretor
plicidade os sentimentos mais profun-
Estou farto do lirismo que pára e
dos do ser humano. Não se submeteu a
[vai averiguar no dicionário o
formas literárias fixas, mas produziu uma
[cunho vernáculo de um vocábulo
obra poética rica em lirismo, mesmo ao
tratar de fatos do cotidiano. Abaixo os puristas
— 266 —
Segunda Geração
Prosa Regionalista
do Modernismo
(1930-1945) O grupo regionalista ou nordestino,
organizando-se a partir das idéias de
Gilberto Freyre, retomou uma tendência
A segunda geração modernista ini- iniciada no Romantismo: retratar a reali-
cia-se em 1930 e estende-se até 1945, dade brasileira.
— 268 —
A tremura subia, deixava a barri- 1934, Fogo Morto – 1943 e Usina – 1936);
ga e chegava ao peito de Baleia. Do “Ciclo do cangaço, misticismo e seca”
peito para trás era tudo insensibilidade (Pedra Bonita – 1938 e Cangaceiros –
e esquecimento. Mas o resto do corpo 1953) e obras independentes, como Ri-
se arrepiava, espinhos de mandacaru acho Doce – 1939 e Eurídice – 1947. Tal
penetravam na carne meio comida pela denominação foi posteriormente aban-
doença. donada pelo autor, mas continuou sendo
utilizada pelos críticos.
Baleia encostava a cabecinha fa-
tigada na pedra. A pedra estava fria, Grande parte dos livros apresenta
certamente Sinhá Vitória tinha deixado um caráter memorialista, fazendo refe-
o fogo apagar-se muito cedo. rências à infância e à adolescência.
zer ainda. Ele tinha o Pilar para tomar para ficar ali como uma pobre. Podia ter
conta, ele tinha o seu eleitorado, os seus ido. Ele, Vitorino Carneiro da Cunha, não
adversários. Tudo isto precisava de seus precisava de ninguém para viver.Se lhe
cuidados, da força do seu braço, de seu tomassem a casa onde morava, armaria
tino. Lá se fora o seu compadre José a sua rede por debaixo dum pé de pau.
Amaro, com o negro Passarinho, o cego Não temia a desgraça, não queria a rique-
Torquato. Todos necessitavam de Vitorino za. Lá se foram os três homens que liber-
Carneiro da Cunha. Fora à barra do tribu- tara, a quem dera toda a sua ajuda. O
nal para arrastá-los da cadeia. Que lhe tenente se enfurecera com o seu poder.
importava a violência do tenente Maurí- Nunca pensara que existisse um homem
cio? O que valia era a petição que, com a que fosse capaz de enfrentá-lo como fi-
sua letra, com a sua assinatura, botara zera. A sua letra, o papel que assinara
para a rua três homens inocentes. Ele era com o seu nome, dera com a força do
homem que não se entregava aos gran- miserável no chão. Era Vitorino Carneiro
des. Que lhe importava a riqueza de José
da Cunha. Tudo podia fazer, e nada te-
Paulino? Tinha o seu voto e não dava ao
mia. Um dia tomaria conta do município. E
primo rico, tinha eleitores que não vota-
tudo faria para que aquele calcanhar-de-
vam nas chapas do governo. O governo
judas fosse mais alguma coisa. Então
não podia com a sua determinação. Ele
Vitorino se via no dia de seu triunfo. Ha-
sabia que havia muitos outros tenentes
veria muita festa, haveria tocata de músi-
Maurícios na dependência e às ordens
do governo. Todos seriam capangas, guar- ca, discurso do dr. Samuel, e dança na
da-costas do presidente. Mas Vitorino casa da Câmara. Viriam todos os chalei-
Carneiro da Cunha mandava no que era ras do Pilar falar com ele. Era o chefe, era
seu, na sua vida. As feridas que lhe abri- o mais homem da terra. E não teria as
am no corpo nada queriam dizer. Não ha- besteiras de José Paulino, aquela tole-
via força que pudesse com ele. Os pa- rância para com o sujeitos safados, que
rentes se riam de seus rompantes, de só queriam comer no cocho da munici-
suas fraquezas. Eram todos uns pobres palidade. Com Vitorino Carneiro da Cu-
ignorantes, verdadeiros bichos que não nha não haveria ladrões, fiscais de feira
sabiam onde tinham as ventas. Quando roubando o povo. Tudo andaria na cor-
parava no engenho, quando conversava reta, na decência. Delegado não seria
com um Manuel Gomes do Riachão, via um mole como José Medeiros. Quem se-
que era melhor ser como ele, homem sem ria o seu delegado? Que homem iria en-
um palmo de terra, mas sabendo que era contrar na vila para ser o seu homem de
capaz de viver conforme os seus dese- confiança? O escrivão Serafim era muito
jos. Todos tinham medo do governo, to- mole, o capitão Costa apanhava da mu-
dos iam atrás de José Paulino e de Quinca lher, Salu da venda era capaz de roubar
do Engenho Novo, como se fossem car- a ração dos presos, Chico Frade bebia
neiros de rebanho. Não possuía nada e demais. E ele precisava de um homem
se sentia como se fosse senhor do mun- para delegado.
do. A sua velha Adriana quisera abando- (José Lins do Rego, Fogo Morto, São Paulo: Klick
ná-lo para correr atrás do filho. Desistiu Editora, 1997)
— 273 —
Parecia calma. Desde sábado en- gante num beiral de telhado e enquanto
colhera-se num canto da cozinha. Não o rapaz galgava outros com dificuldade
olhava para ninguém, ninguém olhava tinha tempo de se refazer por um mo-
para ela. Mesmo quando a escolheram, mento. E então parecia tão livre.
apalpando sua intimidade com indiferen-
Estúpida, tímida e livre. Não vitorio-
ça, não souberam dizer se era gorda ou
sa como seria um galo em fuga. Que é
magra. Nunca se adivinharia nela um an-
que havia nas suas vísceras que fazia
seio.
dela um ser? A galinha é um ser. É ver-
Foi pois uma surpresa quando a vi- dade que não se poderia contar com ela
ram abrir as asas de curto vôo, inchar o para nada. Nem ela própria contava con-
peito e, em dois ou três lances, alcançar sigo, como o galo crê na sua crista. Sua
a murada do terraço. Um instante ainda única vantagem é que havia tantas gali-
vacilou – o tempo da cozinheira dar um nhas que morrendo uma surgiria no mes-
grito – e em breve estava no terraço do mo instante outra tão igual como se fora
vizinho, de onde, em outro vôo desajei- a mesma.
tado, alcançou um telhado. Lá ficou em Afinal, numa das vezes em que
adorno deslocado, hesitando ora num, parou para gozar sua fuga, o rapaz
ora noutro pé. A família foi chamada com alcançou-a. Entre gritos e penas, ela
urgência e consternada viu o almoço foi presa. Em seguida carregada em
junto de uma chaminé. O dono da casa triunfo por uma asa através das telhas
lembrando-se da dupla necessidade de e pousada no chão da cozinha com
fazer esporadicamente algum esporte e certa violência. Ainda tonta, sacudiu-
de almoçar vestiu radiante um calção de se um pouco, em cacarejos roucos e
banho e resolveu seguir o itinerário da indecisos.
galinha: em pulos cautelosos alcançou
o telhado onde esta hesitante e trêmula Foi então que aconteceu. De pura
escolhia com urgência outro rumo. A afobação a galinha pôs um ovo. Sur-
perseguição tornou-se mais intensa. De preendida, exausta. Talvez fosse pre-
telhado a telhado foi percorrido mais de maturo. Mas logo depois, nascida que
um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma fora para a maternidade, parecia uma
luta mais selvagem pela vida a galinha velha mãe habituada. Sentou-se sobre
tinha que decidir por si mesma os cami- o ovo e assim ficou respirando, aboto-
nhos a tomar sem nenhum auxílio de sua ando e desabotoando os olhos. Seu
raça. O rapaz, porém, era um caçador, coração tão pequeno num prato soleava
adormecido. E por mais ínfima que fos- e abaixava as penas enchendo de tepi-
se a presa o grito de conquista havia dez aquilo que nunca passaria de um
soado. ovo. Só a menina estava perto e assis-
tiu a tudo estarrecida. Mal porém con-
Sozinha no mundo, sem pai nem seguiu desvencilhar-se do aconteci-
mãe, ela corria, arfava, muda, concen- mento despregou-se do chão e saiu aos
trada. Às vezes, na fuga, pairava ofe- gritos:
— 283 —
Disse de não, conquanto os costu- podia ser para cada momento. Tivesse
mes. Conservava-se de chapéu. Via- aceitado de entrar e um café, calmava-
se que passara a descansar na sela – me. Assim, porém, banda de fora, sem
decerto relaxava o corpo para dar-se a-graças de hóspede nem surdez de
mais à ingente tarefa de pensar. Per- paredes, tinha para um se inquietar, sem
guntei: respondeu-me que não estava medida e sem certeza.
doente, nem vindo à receita ou consul-
ta. Sua voz se espaçava, querendo-se – “Vosmecê é que não me conhe-
calma; a fala de gente de mais longe, ce. Damázio, dos Siqueiras... Estou vin-
talvez são-franciscano. Sei desse tipo do da Serra...”
de valentão que nada alardeia, sem Sobressalto. Damázio, quem dele
farroma. Mas avessado, estranhão, per- não ouvira? O feroz de estórias de lé-
verso brusco, podendo desfechar com
guas, com dezenas de carregadas mor-
algo, de repente, por um és-não-és. Muito
tes, homem perigosíssimo. Constando
de macio, mentalmente, comecei a me
também, se verdade, que de para uns
organizar. Ele falou:
anos ele se serenara – evitava o de
– “Eu vim preguntar a vosmecê uma evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tré-
opinião sua explicada...” guas de pantera? Ali, antenasal, de mim
Carregara a celha. Causava outra a palmo! Continuava:
inquietude, sua farrusca, a catadura de
– “Saiba vosmecê que, na Serra,
canibal. Desfranziu-se, porém quase
por o ultimamente, se compareceu um
que sorriu. Daí, desceu do cavalo; ma-
moço do Governo, rapaz meio estron-
neiro, imprevisto. Se por se cumprir do
doso... Saiba que estou com ele à reve-
maior valor de melhores modos; por es-
lia... Cá eu não quero questão com o
perteza? Reteve no pulso a ponta do
Governo, não estou em saúde nem ida-
cabresto, o alazão era para paz. O cha-
péu sempre na cabeça. Um alarve. Mais de... O rapaz, muitos acham que ele é
os ínvios olhos. E ele era para muito. de seu tanto esmiolado...”
Seria de ver-se: estava em armas – e Com arranco, calou-se. Como ar-
de armas alimpadas. Dava para se sen- rependido de ter começado assim, de
tir o peso da de fogo, no cinturão, que evidente. Contra que aí estava com o
usado baixo, para ela estar-se já ao ní- fígado em más margens; pensava, pen-
vel justo, ademão tanto que ele se per- sava. Cabismeditado. Do que, se resol-
sistia de braço direito pendido, pronto veu. Levantou as feições. Se é que se
meneável. Sendo a sela, de notar-se, riu: aquela crueldade de dentes. Enca-
uma jereba papuda urucuiana, pouco de rar, não me encarava, só se fito à meia
se achar, na região, pelo menos de tão esguelha. Latejava-lhe um orgulho inde-
boa feitura. Tudo de gente brava. Aque-
ciso. Redigiu seu monologar.
le propunha sangue, em suas tenções.
Pequeno, mas duro, grossudo, todo em O que frouxou falava: de outras,
tronco de árvore. Sua máxima violência diversas pessoas e coisas, da Serra,
— 286 —
ver se deu mortos. O senhor tolere, isto executa; razão que o Simpilício se em-
é o sertão. Uns querem que não seja: presa em vias de completar de rico.
que situado sertão é por os campos- Apre, por isso dizem também que a bes-
gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de ta pra ele rupeia, nega de banda, não
rumo, terras altas, demais do Urucuia. deixando, quando ele quer amontar...
Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, Superstição. Jisé Simpilício e Aristides,
então, o aqui não é dito sertão? Ah, que mesmo estão se engordando, de assim
tem maior! Lugar sertão se divulga: é não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor es-
onde os pastos carecem de fechos; onde tude: agora mesmo, nestes dias de épo-
um pode torar dez, quinze léguas, sem ca, tem gente porfalando que o Diabo
topar com casa de morador; e onde cri- próprio parou, de passagem, no Andre-
minoso vive seu cristo-jesus, arredado quicé. Um Moço de fora, teria apareci-
do arrocho de autoridade. O Urucuia vem do, e lá se louvou que, para aqui vir –
dos montões oestes. Mas, hoje, que na normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele
beira dele, tudo dá – fazendões de fa- era capaz que só com uns vinte minutos
zendas, almargem de vargens de bom bastava... porque costeava o Rio do
render, as vazantes; culturas que vão Chico pelas cabeceiras! Ou, também,
de mata em mata, madeiras de grossura, quem sabe – sem ofensas – não terá
até ainda virgens dessas lá há. O gerais sido, por um exemplo, até mesmo o se-
corre em volta. Esses gerais são sem nhor quem se anunciou assim, quando
tamanho. Enfim, cada um o que quer passou por lá, por prazido divertimento
aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é engraçado? Há-de, não me dê crime,
questão de opiniães... O sertão está em sei que não foi. E mal eu não quis. Só
toda a parte. que uma pergunta, em hora, às vezes,
clareia razão de paz. Mas, o senhor
No demo? Não gloso. Senhor per- entenda: o tal moço, se há, quis mangar.
gunte aos moradores. Em falso receio, Pois, hem, que, despontar o Rio pelas
desfalam no nome dele – dizem só: o nascentes, será a mesma coisa que um
Que-Diga. Vote! não... Quem muito se se redobrar nos internos deste nosso
evita, se convive. Sentença num Aristi- Estado nosso, custante viagem de uns
des – o que existe no buritizal primeiro três meses... Então? Que-Diga? Doidei-
desta minha mão direita, chamado a Ve- ra. A fantasiação. E, o respeito de dar a
reda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita – ele assim esses nomes de rebuço, é
todo o mundo crê: ele não pode passar que é mesmo um querer invocar que ele
em três lugares, designados: porque forme forma, com as presenças!
então a gente escuta um chorinho, atrás,
e uma vozinha que avisando: - “Eu já Não seja. Eu pessoalmente, quase
vou! Eu já vou!...” – que é o capiroto, o que já perdi nele a crença, mercês a
que-diga... E um Jisé Simpilício – quem Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puri-
qualquer daqui jura ele tem um capeta dade. Sei que é bem estabelecido, que
em casa, miúdo satanazim, preso obri- grassa nos Santos-Evangelhos. Em oca-
gado a ajudar em toda ganância que sião, conversei com um rapaz semina-
— 290 —
Resumo do Modernismo
Momento sócio-cultural Grande (1933), O Rei da Vela (1937).
• Manuel Bandeira: deixou obra líri-
• As máquinas e o ritmo acelerado da
ca, precisa e simples, mas muito bem
civilização industrial se incorporavam
construída. Destacam-se Libertina-
à paisagem brasileira.
gem (1930), Estrela da Manhã
• Problemas sociais antigos continuam
(1936), Itinerário de Pasárgada
sem solução, produzindo tensões e
(1954), Estrela da Vida Inteira (1966).
conflitos graves. Os meios intelec-
• Graciliano Ramos: expoente do ro-
tuais sentem que é preciso reformar
mance regional e de análise psicológi-
o Brasil, mergulhado numa contradi-
ca. Principais obras: São Bernardo
ção grave: ao mesmo tempo em que
(1934), Angústia (1936), Vidas Secas
se modernizava, mantinha uma or-
(1938), Memórias do Cárcere (1953).
ganização social arcaica.
• Carlos Drummond de Andrade:
Características literárias considerado o maior poeta da litera-
• A 1ª fase é a de ruptura com o pas- tura brasileira, deixou obra que ex-
sado. Humor, uso do coloquial, pressa a angústia do homem con-
primitivismo, vanguardas, tudo é vá- temporâneo. Destaques: Alguma Po-
lido para criar uma literatura em esia (1930), Sentimento do Mundo
sintonia com os novos tempos. (1940), A Rosa do Povo (1945), Cla-
• na 2ª fase se estabelecem o roman- ro Enigma (1951), Boitempo (1968).
ce regionalista, que retrata uma certa • João Cabral de Melo Neto: um dos
região do país, e a prosa intimista, poetas brasileiros mais importantes,
que estuda o homem urbano. deixou obra sem exageros sentimen-
• a 3 ª fase nega algumas das pro- tais, precisa e seca. Destaques: Pe-
postas da 1ª e retoma o uso cuida- dra do Sono (1942), O Cão sem Plu-
doso e consciente da palavra. O mas (1950), Morte e Vida Severina
número de correntes literárias e au- (1956), Museu de Tudo (1975).
tores cresce, o que torna difícil clas- • Clarice Lispector: autora de obra
sificar essa fase. voltada ao intimismo e ao mergulho
na psique dos personagens. Princi-
Autores e obras pais obras: A Cidade Sitiada (1949),
• Mário de Andrade: deixou uma obra A Paixão segundo G. H. (1964), Água
vasta e muito influente, onde os des- Viva (1973), A Via-Crúcis do Corpo
taques são Paulicéia Desvairada (1974), A Hora da Estrela (1977).
(1922), Macunaíma (1928), Contos • Guimarães Rosa: usando o sertão
Novos (1946), Lira Paulistana (1946). mineiro como cenário, criou obra que
• Oswald de Andrade: incorporou ele- investiga temais universais. Desta-
mentos das vanguardas européias em ques: Sagarana (1946), Corpo de Bai-
seus poemas. Escreveu Memórias le (1956), Grande Sertão: Veredas
Sentimentais de João Miramar (1924), (1956), Tutaméia (Terceiras Estó-
Paul Brasil (1925), Serafim Ponte rias)(1967).
— 292 —
Tendências Contemporâneas
(1960 até a atualidade)
A partir das décadas de 50 e 60, A influência das diversas lingua-
muitos autores falam em Pós-Modernis- gens na poesia está diretamente relaci-
mo ou tendências contemporâneas. Isso onada aos elementos visuais que pas-
porque ainda se fazem presentes mui- sam a compor as grandes cidades e os
tas características modernistas, porém meios de comunicação de massa.
há várias inovações.
O autor faz questão de ressaltar
Segundo Domício Proença Filho, a que “poesia visual” engloba “toda espé-
arte pós-modernista aproxima a arte eru- cie de poesia ou texto que utilize ele-
dita e a arte popular; é marcada pela mentos gráficos para se somar às pala-
intertextualidade (diálogo entre obras); vras, em qualquer época da história e
realiza uma mistura de estilos; demons- em qualquer lugar; já ‘poesia concreta’ é
tra forte preocupação com o momento um estilo de poesia visual que nasce
presente; faz uso da ironia e da metalin- num dado momento histórico, com ca-
guagem. racterísticas bem definidas.”
O movimento concretista tem sua
origem em 1952, na revista “Noigan-
Poesia dres”, mas inicia-se oficialmente em
1956, com a Exposição Nacional de Arte
Concreta, que aconteceu em São Paulo.
Foi o primeiro movimento literário no Brasil
Concretismo e outros a utilizar recursos visuais, inovando a
idéia de poesia.
movimentos
O Concretismo prioriza os recur-
Segundo Philadelpho Menezes, no sos gráficos das palavras, enfatizando
século XX várias linguagens passam a a comunicação visual entre o texto e o
influenciar a poesia: a tipografia, o de- leitor. Há um abandono dos versos e do
senho, as artes gráficas, a fotografia, o lirismo e o espaço do papel é aproveita-
cinema, a publicidade. Esta passa a uti- do, assim como o conteúdo sonoro e
lizar elementos visuais, criando a cha- visual das palavras. O significado cede
mada “poesia visual” e a valorizar mais sua importância ao valor concreto do
a oralidade da palavra falada, originan- poema. Este, por sua vez, permite mui-
do a “poesia sonora”. tas possibilidades de leitura.
— 293 —
Realismo Urbano
Romance Psicológico
Os romances de ambientação ur-
bana tematizam a violência e a margina- O romance psicológico possui um
lidade nas grandes cidades. tom intimista e centra-se nas inquieta-
Podemos citar como principais au- ções interiores dos personagens, tra-
tores Rubem Fonseca, com seus con- balhando temas do cotidiano, relaciona-
tos; Dalton Trevisan, com parte de sua dos à família e à afetividade.
obra e João Antônio, com seus contos.
A literatura intimista aproxima-se do
Dentro do realismo urbano há o ro- diário ou das memórias, trabalhando os
mance-reportagem, que parte de episó- grandes conflitos existenciais, muitas
dios verídicos e utiliza recursos como a vezes beirando o pessimismo.
ironia e a paródia. Destacam-se José
Louzeiro e Ignácio de Loyola Brandão. Uma autora que merece destaque
é Lygia Fagundes Telles.
Prosa Regionalista
Crônica
A prosa regionalista retrata as re-
giões brasileiras e suas particularida- Pequenas histórias, baseadas em
des humanas e sociais. A região Cen- fatos do cotidiano, são exploradas por
tral é explorada por Bernardo Ellis e José autores como Stanislaw Ponte Preta,
J. Veiga; a região Sul por Moacyr Scliar Rubem Braga, Otto Lara Resende, Fer-
e a região Norte por Márcio de Souza. A nando Sabino e Luís Fernando Verís-
Bahia, particularmente, tem um escritor simo.
— 295 —
Um turbilhão de setas crivou o longo Então o herói soltou seu grito de triun-
escudo do herói, que ficou semelhante fo, que era como o rugido do vento no
ao grosso tronco de juçara, eriçado de deserto:
espinhos.
— Eu sou Ubirajara, o senhor da lan-
Ubirajara embraçou o escudo na al- ça, o guerreiro invencível que tem por arma
tura do ombro, e com o pé brandiu sete uma serpente.
vezes a corda do grande arco gêmeo.
“Eu sou Ubirajara, senhor das na-
As setas vermelhas e amarelas su- ções, o chefe dos chefes, que varre a
biram direitas ao céu e perderam-se nas terra, como o vento no deserto.”
nuvens.
O herói estendeu a vista pela campi-
Quando voltaram, Agniná e os che- na, e não descobriu mais o inimigo, que
fes que obedeciam a seu arco, tinham sumia-se na poeira.
cada um fincado na cabeça o desafio do
Ubirajara lançou-lhe seus guerrei-
formidável guerreiro.
ros, que tinham fome de vingança; po-
Enfurecidos mais pelo insulto do que rém o terror de sua lança dava asas aos
pela dor, arremessaram-se contra o inimi- fugitivos.
go que os esperava coberto com seu vas-
Desde esse dia nunca mais um tapuia
to escudo.
pisou as margens do grande rio.
Agniná era o primeiro na corrida e o
Ubirajara voltou à cabana, onde o
primeiro na sanha. Após ele vinham os
esperava Araci.
outros a dois e dois, lutando na rapidez.
A esposa despiu as armas de seu
Quando o esposo de Araci viu que guerreiro, enxugou-lhe o corpo com o ma-
eles se estendiam pela campina, como dois cio cotão da monguba, e cobriu-o do bál-
ribeiros que se aproximam para confundir samo fragrante da embaíba.
suas águas; o herói empunhou a lança de
duas pontas e soltou seu grito de guerra, Encheu depois de generoso cauim a
que era como o bramir do jaguar, senhor taça vermelha feita do coco da sapucaia;
da floresta. e aplacou a sede do combate.
*** (fragmentos)
Com efeito, Bom-Crioulo não era
As duas nações, dos araguaias e
somente um homem robusto, uma des-
dos tocantins, formaram a grande na-
sas organizações privilegiadas que tra-
ção dos Ubirajaras, que tomou o nome
zem no corpo a sobranceira resistência
do herói.
do bronze e que esmagam com o peso
Foi esta poderosa nação que domi- dos músculos.
nou o deserto. A força nervosa era nele uma qua-
Mais tarde, quando vieram os cara- lidade intrínseca sobrepujando todas as
murus, guerreiros do mar, ela campeava outras qualidades fisiológicas, empres-
ainda nas margens do grande rio. (pp. tando-lhe movimentos extraordinários,
92-94) invencíveis mesmo, de um acrobatismo
imprevisto e raro.
posição, rosto a rosto, juntinhos, agarra- numa ânsia de novidade. Latiam cães.
dos misteriosamente. Porque Bom-Criou- Um movimento cheio de rumores, uma
lo não falava alto, que todos ouvissem, balbúrdia! Circulavam boatos aterrado-
não dava escândalo, não fazia alarme: res, notícias vagas, incompletas. Inven-
sua voz era um rugio cavernoso e histé- taram-se histórias de assassinato, de
rico, um regougo abafado, longínquo e cabeça quebrada, de sangue. Cada
profundo. olhar, cada fisionomia era uma interro-
gação. Chegavam soldados, marinhei-
— Grita, anda, grita pela vaca da ros, policiais. Fechavam-se portas com
Carolina! estrondo.
— Me solte — continuou o efebo Alguma cousa extraordinária tinha
trêmulo, acovardado. Me largue! havido porque, de repente, o povo re-
cuou, abrindo passagem, num atropelo.
— Não te largo, não, cousinha ruim,
não te largo, não! Bom-Crioulo, este que — Abre! abre! diziam soldados er-
aqui está, não é o que tu pensas... guendo o refle.
— Mas eu não fiz nada! Me solte, De cima, das casas, mãos aponta-
que é tarde! vam para baixo.
Corinthians (2) vs. Palestra (1) de apenas nove anos. O menino encan-
ta a todos e tem seu nome mudado para
Grande parte do conto centra-se Januário. Passa então a estudar no Gi-
num jogo de futebol entre Corinthians e násio de São Bento. O Coronel, muito
Palestra no Parque Antártica, onde es- contente, pensa em deixar sua herança
tão Miquelina e Iolanda. para o italianinho.
Rocco é grande jogador do Pales-
tra e namorado de Miquelina, enquanto O monstro de rodas
Biagio joga no time oposto e também já
havia namorado a moça. Esta, depois O “monstro de rodas” a que o con-
que acabou o namoro com ele, nunca to faz referência é o carro responsável
mais dirigiu-se à Sociedade Beneficen- pelo atropelamento de uma menina mo-
te e Recreativa do Bexiga e deixou de ir radora da Barra Funda. Dona Nunzia, a
às reuniões dominicais, passando a tor- mãe, não se conforma, enquanto uma
moça negra reza o terço.
cer pelo Palestra.
A moça pede a Rocco que marque O autor faz questão de ressaltar
Biagio. Assim ele procedeu e no segun- alguns episódios comuns em enterros:
do tempo fez um pênalti, que possibilitou por um lado, o respeito de homens den-
a Biagio marcar o segundo gol do Corin- tro do bonde tirando o chapéu e, por
thians e garantir a vitória. Miquelina não outro, a indiferença de Nino, preocupa-
se conforma, assim como a torcida do do em contar o número de “trouxas” que
tirariam o chapéu até que o enterro che-
Palestra, que responsabiliza Rocco. Ela
gasse ao cemitério.
decide então retornar às reuniões da
Sociedade no Bexiga.
Vale ressaltar que o conto utiliza
Armazém Progresso de São
Paulo
uma linguagem coloquial, típica dos cam-
pos de futebol: O “Armazém Progresso de São Pau-
“Alegoá-goá-goá! Alegoá-goá-goá! lo” pertence a Natale, comerciante italia-
Urrá-urrá! Corinthians!” no muito esforçado e trabalhador. Ao
lado de sua mulher, Dona Bianca, traba-
“O’... lh’agasosa!”
lhava com esmero e prosperava.
“Go-o-o-o-ol! Corinthians!”
Na confeitaria da frente, o portu-
guês vendia cebolas a preço baixíssimo
Notas biográficas do novo e tinha grande estoque das mesmas.
deputado
Natale fica sabendo através da mu-
O Coronel Juca Peixoto de Faria é lher que as cebolas subiriam de preço e
um rico fazendeiro casado com Dona pede ao fiscal que lhe confirmara a notí-
Nequinha. Os dois, entretanto, não têm cia que se mantenha calado, se quiser
filhos. Ao saberem do falecimento do ser recompensado. Dona Bianca sonha
compadre João Intaliano, resolvem aco- com a ascensão econômica, representa-
lher o filho deste, o órfão Gennarinho, da por um palacete na Avenida Paulista.
— 307 —
Nacionalidade Angústia
Este conto também tematiza a ques- Graciliano Ramos
tão do nacionalismo exagerado, agora
de um italiano: o barbeiro Tranquillo Zam- Angústia foi publicada em 1936,
pinetti, da Rua do Gasômetro. após a publicação de São Bernardo, em
1934, ano em que começou a escrever
Contudo, sua maior tristeza eram
a obra quando diretor da Instrução Pú-
seus filhos Lorenzo e Bruno, que não
blica de Alagoas. Contudo, a prisão de
conservavam o mesmo fervor em rela-
ção à pátria do pai, nem mesmo queriam Graciliano Ramos durante o regime do
falar o italiano. Estado Novo leva-o à interrupção do li-
vro, vindo a publicá-lo contra seu dese-
A guerra européia encontrou Tran- jo, já que não o tinha revisado como gos-
quillo Zampinetti proprietário de quatro taria.
prédios na Rua do Gasômetro, dois na
Rua Piratininga, cabo influente do Parti- A obra tem a marca do estilo de
do Republicano Paulista e dileto compa- Graciliano: extrema concisão e busca
dre do primeiro subdelegado do Brás; o do essencial, eliminando tudo que não
Lorenzo interessado na firma Vanzinello se mostra necessário.
& Cia. e noivo da filha mais velha do
major Antônio Del Piccolo, membro do O autor realiza análise psicológica
diretório governista do Bom Retiro; o dos personagens, mostrando suas an-
Bruno vice-presidente da Associação gústias, aflições, temores íntimos. Para-
Atlética Ping-Pong e primeiro anista do lelamente, observa a situação social dos
Ginásio do Estado. (p.71) mesmos, a influência do ambiente sobre
suas vidas, a exploração dos mais for-
Tranquilo inscreveu-se para um em-
tes sobre os mais fracos.
préstimo de guerra, sendo contestado
por Dona Emília. A rudeza e hostilidade do cenário
O barbeiro conseguiu mais dois pré- nordestino refletem-se na expressão
dios na Rua Santa Cruz da Figueira, fe- dura, incisiva, sem lirismos ou derrama-
chou o salão e passou a sócio coman- mentos sentimentais.
ditário da Perfumaria Santos Dumont.
Luís da Silva é o narrador-perso-
Bruno forma-se em Direito, dando nagem, atormentado pela situação de
grande satisfação ao pai, e ao irmão miséria em que vive. Escreve seu diário
Lorenzo, já casado e com um filho. íntimo a partir de sua memória, que or-
O primeiro serviço profissional do ganiza racionalmente os fatos, e por
Bruno foi requerer ao exmo. sr. dr. Mi- outro lado, partindo das alucinações que
nistro da Justiça e Negócios Interiores o afligem. Dessa forma, o tempo da nar-
do Brasil a naturalização de Tranquillo rativa não é linear, mas caminha de acor-
Zampinetti, cidadão italiano residente em do com as lembranças e devaneios do
São Paulo. (p. 73) narrador.
— 308 —
cheiro esquisito. O engraxate escutava dos pés mortos que não tocavam o chão,
histórias de capoeiras. O homem acabo- vinha deitar-se na minha cama. Fernando
clado cruzava os braços, mostrando Inguitai, com o braço carregado de vol-
bíceps enormes. O mendigo estirava a tas de contas, vinha deitar-se na minha
perna entrapada e ensangüentada. As cama. As riscas de piche cruzavam-se,
moscas dormiam, e o mendigo, com a formavam grades. — “José Baía, meu
muleta esquecida, bebia cachaça e ria. irmão, há tempo!” As crianças corriam
Passos na calçada. Quem ia entrar? em torno da barca. — “José Baía, meu
Quem tinha negócio comigo àquela hora? irmão, estamos tão velhos!” Acomoda-
Necessário Vitória fechar as portas e vam-se todos. 16.384. Um colchão de
despedir o hóspede incômodo que não paina. Milhares de figurinhas insignifi-
se arredava da sala. Mas Vitória conta- cantes. Eu era uma figurinha insignifi-
va moedas, na parede, resmungava a cante e mexia-me com cuidado para não
entrada e a saída dos navios. A placa molestar as outras. 16.384. Íamos des-
azul de D. Albertina escondia-se a um cansar. Um colchão de paina.
canto, suja de piche. Todo aquele pes-
(...)
soal entendia-se perfeitamente. O ho-
mem cabeludo que só cuidava da sua
vida, a mulher que trazia uma garrafa Manuelzão e Miguilim
pendurada ao dedo por um cordão, Guimarães Rosa
Rosenda, cabo José da Luz, Amaro va-
Manuelzão e Miguilim, assim como
queiro, as figuras do reisado, um vaga-
as obras No Urubuquaquá, no Pinhém
bundo que dormia nos bancos dos jar-
e Noites do Sertão, inicialmente era par-
dins, outro vagabundo que dormia de-
te integrante do livro Corpo de Baile,
baixo das árvores, tudo estava na pa-
publicado em 1956.
rede, fazendo um zumbido de carapa-
nãs, um burburinho que ia crescendo e Compõem a obra duas novelas:
se transformava em grande clamor. José “Campo Geral” e “Uma Estória de Amor”.
Baía acenava-me de longe, sorrindo,
mostrando as gengivas banguelas e Campo Geral
agitando os cabelos brancos. —“José
Baía, meu irmão, estás também aí?” José Esta novela tem como personagem
Baía, trôpego, rompia a marcha. Um, principal Miguilim, um garoto de oito anos
dois, um, dois... A multidão que fervilha- que morava na mata do Mutum com a
va na parede acompanhava José Baía e família.
vinha deitar-se na minha cama. Quitéria, Dos irmãos, Miguilim era o mais ve-
Sinha Terta, o cego dos bilhetes, o con- lho. Depois vinha Dito, irmão que tinha a
tínuo da repartição, os cangaceiros e maturidade de um adulto e fazia refle-
os vagabundos, vinham deitar-se na xões sobre as coisas da vida. Para tris-
minha cama. Cirilo de Engrácia, estica- teza de todos, acabou morrendo de té-
do, amarrado, marchando nas pontas tano.
— 310 —
Tomé era o irmão caçula. Havia ain- do Grivo. — “Dá lembrança a seo Aris-
da as irmãs Drelina e Chica e Liovaldo, o teu... Dá lembrança a seo Deográcias...”
mais velho, que morava com o tio Os- Estava abraçado com Mãe. Podiam sair.
mundo.
Mas, então, de repente, Miguilim
O pai de Miguilim era Nhô Bernardo parou em frente do doutor. Todo tremia,
Caz, que nutria grande ciúme pela es- quase sem coragem de dizer o que ti-
posa, devido à traição com o tio Terêz, nha vontade. Por fim, disse. Pediu. O
que é expulso de casa. doutor entendeu e achou graça. Tirou
Além de Tio Terêz, a mãe tem um os óculos, pôs na cara de Miguilim.
caso com Luisaltino, trabalhador da la- E Miguilim olhou para todos, com
voura, assim como o pai. Este, louco de tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos
ciúme, mata Luisaltino e enforca-se. escuros de cima do morro, aqui a casa,
Posteriormente Tio Terêz casa-se com a cerca de feijão-bravo e são-caetano;
a mãe e volta a morar com a família. o céu, o curral, o quintal; os olhos re-
Outra personagem que se destaca dondos e os vidros altos da manhã.
é a vovó Izidra, magra e que se irritava Olhou, mais longe, o gado pastando perto
com tudo. do brejo, florido de são-josés, como um
algodão. O verde dos buritis, na primei-
Miguilim preocupava-se com seu ra vereda. O Mutum era bonito! Agora
estado de saúde. Achava que ia morrer, ele sabia. Olhou Mãitina, que gostava de
pois estava muito magro. o ver de óculos, batia palmas-de-mão e
No entanto, ele não morre, mas tem gritava: — “Cena, Corinta!...” Olhou o re-
uma revelação que transforma sua vida. dondo de pedrinhas, debaixo do jeni-
Um dia o doutor José Lourenço vem ca- papeiro.
çar na Vereda do Tipã e põe óculos no Olhava mais era para Mãe. Drelina
menino, percebendo sua dificuldade
era bonita, a Chica, Tomezinho. Sorriu
para enxergar. Ele, então, passa a ver
para o Tio Terêz: — “Tio Terêz, o senhor
todas as coisas com mais nitidez e en-
parece com Pai...” Todos choravam. O
contrar beleza no Mutum, em cada ele-
doutor limpou a goela, disse: — “Não sei,
mento da natureza, em cada pessoa.
quando eu tiro esses óculos, tão fortes,
Descoberta sua miopia, Miguilim desco-
bre-se a si mesmo e admira a grandeza até meus olhos se enchem d’água...”
do mundo e sua própria existência. Miguilim entregou a ele os óculos outra
vez. Um soluçozinho veio. Dito e a Cuca
(fragmento) Pingo-de-Ouro. E o Pai. Sempre alegre,
Miguilim... Sempre alegre, Miguilim... Nem
O doutor chegou. — “Miguilim, você
sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o
está aprontado? Está animoso?” Miguilim
beijava. A Rosa punha-lhe doces-de-lei-
abraçava todos, um por um, dizia adeus
te nas algibeiras, para a viagem. Papaco-
até aos cachorros, ao Papaco-o-Paco,
o-Paco falava, alto, falava.
ao gato Sossõe que lambia as mãozi-
nhas se asseando. Beijou a mão da mãe (...)
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