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OS MELHORES CONTOS FRANCESES
OS MELHORES CONTOS FRANCESES
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Ebook420 pages9 hours

OS MELHORES CONTOS FRANCESES

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About this ebook

Seja bem-vindo a mais um volume da Coleção Melhores Contos, uma seleção de contos escritos em épocas distintas por autores de diversas nacionalidades e com temáticas das mais variadas, mas que tem em comum uma enorme e talvez a mais importante qualidade literária: a de dar prazer ao leitor. Neste ebook apresentamos os Melhores Contos Franceses, uma seleção de contos memoráveis escritos por grandes contistas franceses antigos e modernos.
LanguagePortuguês
Release dateOct 19, 2020
ISBN9786586079906
OS MELHORES CONTOS FRANCESES

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    OS MELHORES CONTOS FRANCESES - Diversos

    cover.jpg

    Edições LeBooks

    OS MELHORES

    CONTOS FRANCESES

    1a edição

    img1.jpg

    Isbn: 9786586079906

    LeBooks.com.br

    A LeBooks Editora publica obras clássicas que estejam em domínio público. Não obstante, todos os esforços são feitos para creditar devidamente eventuais detentores de direitos morais sobre tais obras.  Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas, bastando que seus titulares entrem em contato conosco.

    Prefácio

    Prezado leitor

    Seja bem-vindo a mais um volume da Coleção Melhores Contos, uma seleção de contos escritos em épocas distintas por autores de diversas nacionalidades e com temáticas das mais variadas, mas que tem em comum uma enorme e talvez a mais importante qualidade literária: a de dar prazer ao leitor.

    Neste ebook apresentamos os Melhores Contos Franceses, uma seleção de contos memoráveis escritos por grandes contistas franceses antigos e modernos.

    Uma excelente leitura

    LeBooks Editora

    Sumário

    OS MELHORES CONTOS FRANCESES

    O CAIXÃO E O ESPECTRO

    Stendhal

    A OBRA-PRIMA IGNORADA

    Honore de Balzac

    MATEUS FALCONE

    Merimée

    UM TIRO

    Alexandre Dumas

    MIMI PINSON

    Alfred Musset

    AVATAR

    Théophile Gautie

    O SEGREDO DA GUILHOTINA

    Villiers de Ulsle Adam

    O ELIXIR DO PADRE GAUCHER

    Alphonse Daude

    NAIS MICOULIN

    Emile Zola

    UM CASO DE CONSCIÊNCIA

    François Coppée

    O PROCURADOR DA JUDEIA

    Anatole France

    O CAMPO DAS OLIVEIRAS

    Guy de Maupassant

    OS ÚLTIMOS PASSOS

    Henri Barbusse

    O HOMEM QUE MATEI

    Claude Farrère

    O MARINHEIRO DE AMSTERDAM

    Apollinaire

    A MÃO DO MAJOR MULLER

    Verlaine

    O NATAL DE RÉCHOUSSAT

    George Duhamel

    O SEGREDO DOS DUPROUX

    Mauriac

    A CASA ASSOMBRADA

    André Maurois

    O ESPELHO

    Sacha Guitry

    O ALFINETE NO CHÃO

    Tristan Bernard

    II Biografias dos autores

    OS MELHORES CONTOS FRANCESES

    O CAIXÃO E O ESPECTRO

    Stendhal

    POR UMA bela manhã do mês de maio de 182", Don Blas Bustos y Mosquera, seguido de doze cavaleiros, entrava na vila de Alcolote, a uma légua de Granada. À sua aproximação, os aldeões reentravam precipitadamente em suas casas e fechavam as portas. As mulheres olhavam com terror, pelas frestas das janelas, esse terrível chefe de polícia de Granada. O céu punira sua crueldade, imprimindo no rosto a maldade de sua alma. Era um homem de seis pés de altura, negro e de uma horrorosa magreza. Embora fosse simples chefe de polícia, todavia o próprio bispo de Granada e o governador tremiam diante dele.

    Durante a famosa guerra contra Napoleão, a qual, aos olhos da posteridade, colocará os Espanhóis do século XIX à frente de todos os povos da Europa e dará o segundo lugar depois da França, Don Blas foi um dos mais famosos chefes de guerrilhas. No dia em que sua tropa não matava pelo menos um francês, ele não se deitava: era uma promessa.

    Ao voltar Ferdinando ao trono, foi mandado às galeras de Ceuta, onde passou oito anos na mais terrível miséria. Acusavam no de ter sido capuchinho em sua mocidade, renunciando, porém, à vida religiosa; em seguida reabilitou-se, não se sabe como. Atualmente Don Blas é célebre pelo seu silêncio. Nunca fala. Outrora, os sarcasmos que ele dirigia aos prisioneiros, antes de fazê-los enforcar, havia granjeado uma espécie de reputação de homem de espírito; suas brincadeiras eram repetidas em todo o exército espanhol.

    Don Blas avançava lentamente pela rua de Alcalote, fixando as casas de um e outro lado com olhos perspicazes. Quando passava diante de uma igreja, rezava-se uma missa; Don Blas Stendhal precipitou-se do cavalo e foi ajoelhar-se ao pé do altar. Quatro de seus soldados se puseram de joelhos em volta de sua cadeira; eles o olhavam, e não havia já mais devoção em seus olhos. Seu olhar sinistro se fixara sobre um jovem de porte distintíssimo que orava devotamente, a alguns passos dele. Que! diz Don Blas, um homem que, segundo as aparências, pertence às primeiras classes da sociedade — e não é meu conhecido! Não haver ele aparecido em Granada desde que eu aí estou! ele se oculta.

    Don Blas inclinou-se para um dos seus agentes, e deu ordem para prender o jovem, logo que ele saísse da igreja. As últimas palavras da missa, apressou-se ele mesmo em sair, postando-se no salão do albergue de Alcolote. Em seguida apareceu o jovem admirado.

    — Vosso nome?

    — Don Fernando delia Cueva.

    O capricho sinistro de Don Blas aumentou, pois, vendo de perto Don Fernando, notou que tinha uma bela aparência; era louro, e, não obstante a má situação em que se achava, a expressão dos seus traços conservou-se serena. Don Blas, abstrato, mirava o jovem. Que ocupação tendes nas cortes? disse ele enfim.

    — Eu estava no colégio de Sevilha, em 1825; tinha, então, 15 anos, pois que hoje estou com 19.

    — Como viveis?

    O jovem sentiu-se irritado por esta grosseria; resignou-se e respondeu:

    — Meu pai, brigadeiro dos exércitos de Don Carlos VI (que Deus abençoe a memória deste bom rei) deixou-me uma pequena propriedade ao pé desta aldeia; ela me rende 12.000 reais (três mil francos), cultivo a com as minhas próprias mãos com três empregados.

    — Que certamente vos são muito fiéis. Excelente núcleo de guerrilha — disse Don Blas com um sorriso amargo. — Preso e incomunicável! acrescentou, indo embora e deixando o prisioneiro entregue aos seus homens.

    Alguns momentos depois, Don Blas almoçava. — Seis meses de prisão — pensava ele — me darão cabo daquelas belas cores e daquele ar de frescura e de arrogante contentamento.

    O cavaleiro de sentinela à porta da sala de jantar ergueu vivamente a sua carabina. Apoiava a de través contra o peito de um velho que procurava entrar na sala empós de um ajudante de cozinha que trazia um prato. Don Blas correu à porta; atrás do velho viu uma rapariga que fez esquecer Don Fernando.

    — É horrível: nem me dão tempo de fazer minhas refeições — disse ele ao velho. — Mas entrai, e explicai-vos.

    Don Blas não se cansava de olhar para a rapariga; encontrava na fronte e nos olhos essa expressão de inocência e de piedade celeste que brilha nas belas madonas da escola italiana. Don Blas não escutava o velho, nem continuava o seu almoço. Enfim, saiu desse devaneio; o velho repetia pela terceira vez as razões que deviam fazer restituir a liberdade a Don Fernando de lá Cueva, que era desde muito o noivo de sua filha Inês ali presente, e ia desposá-la no domingo seguinte. A esta palavra, os olhos do terrível chefe de polícia brilharam com um fulgor tão singular, que causaram medo a Inês e até a seu pai.

    — Nós vivemos sempre no temor de Deus e somos velhos cristãos — continuou este. — Minha raça é antiga, mas eu sou pobre, e Don Fernando é um bom partido para minha filha. Jamais ocupei nenhum lugar no tempo dos franceses, nem antes, nem depois.

    Don Blas não saía de seu feroz silêncio.

    — Pertenço à mais antiga nobreza do reino de Granada — prosseguiu o velho — e antes da revolução — acrescentou suspirando — teria cortado as orelhas a algum monge insolente que não me respondesse quando eu falava.

    Os olhos do velho encheram-se de lágrimas. A tímida Inês tirou do seio um pequeno rosário que tocara no vestido da madona de Pilar, e suas lindas mãos apertavam a cruz com um movimento convulsivo. Os olhos do terrível Don Blas cravaram-se nestas mãos. Notava ele depois o talhe bem lançado, embora um pouco forte, da jovem Inês. — Seus traços poderiam ser mais regulares — pensou — mas essa graça celeste eu não tenho visto senão nela...

    — E chamai-vos Don Jaime Arreguí? — perguntou ele por fim ao velho.

    — É esse o meu nome — respondeu Don Jaime, assegurando sua posição.

    — Setenta anos de idade?

    — Sessenta e nove apenas.

    — Sois vós mesmo — disse Don Blas, desanuviando visivelmente o rosto. — Há muito que vos procuro. El-Rei nosso Senhor dignou-se conceder-vos uma pensão anual de 4.000 reais (mil francos). Tenho em minha casa de Granada dois anos vencidos desse real benefício, que vos entregarei amanhã ao meio-dia. Farvos ei ver que meu pai era um rico lavrador da Velha Castela, velho cristão como vós, e que eu nunca fui monge. Assim, cai por terra a injúria que me dirigistes.

    O velho gentil-homem não ousou faltar ao encontro. Era viúvo, e só tinha em casa sua filha Inês. Antes de partir para Granada levou a à casa doçura da aldeia, e fez suas disposições como se nunca mais tivesse de revê-la. Encontrou Don Blas Bustos muito adornado; trazia um grande cordão por cima do hábito. Achou Don Jaime o ar polido de um velho soldado que se quer fazer de bom e sorri a todo propósito e fora de propósito.

    Se não faltasse ousadia para tanto, Don Jaime teria recusado os 8.000 reais que Don Blas entregou; não pôde livrar-se de jantar com este. Após a refeição, o terrível chefe de polícia fez ler todos os seus diplomas, sua certidão de batismo, e até um atestado de notoriedade, por meio do qual saíra das galés, e que provava que ele nunca fora monge.

    Don Jaime temia alguma pilhéria de mau gosto.

    — Como vedes, tenho quarenta e cinco anos — disse enfim Don Blas — e um lugar honroso que me rende 50.000 reais. Tenho um crédito de 1.000 onças no banco de Nápoles. Peço-vos em casamento vossa filha Dona Inês Arreguí.

    Don Jaime empalideceu. Houve um instante de silêncio. Don Blas continuou:

    — Não vos ocultarei que Don Fernando de lá Cueva se se acha comprometido em um caso desagradável. O ministro da Polícia anda à procura dele; trata-se do garrote ou no mínimo das galés. Eu estive nelas oito anos, e posso-vos assegurar que é uma torpe residência.

    Dizendo tais palavras, aproximou-se do ouvido do velho:

    — Daqui a quinze dias ou três semanas, receberei provavelmente do ministro ordem para transferir Don Fernando da prisão de Alcolote à de Granada. Essa ordem será executada muito tarde da noite; se Don Fernando se aproveitar da noite para fugir, fecharei os olhos, em consideração à amizade com que me honrais. ele que vá passar um ou dois anos em Maiorca, por exemplo; ninguém pronunciará mais seu nome.

    0 velho gentil-homem nada respondeu; estava aterrado, só a muito custo conseguiu voltar à sua aldeia. O dinheiro que recebera causava horror. — Então é este — dizia consigo mesmo — o preço do sangue de meu amigo Don Fernando, do noivo de minha Inês? Chegando ao presbitério, atirou-se aos braços de Inês.

    — Minha filha — exclamou — o monge quer desposar-te.

    Imediatamente Inês enxugou suas lágrimas e pediu licença para ir consultar o cura, que estava na igreja em seu confessionário. Apesar da insensibilidade dos seus anos e da sua condição, o cura chorou. A resultado da consulta foi que era necessário resolver-se a desposar Don Blas, ou fugir durante a noite. Dona Inês e seu pai deviam tentar atingir Gibraltar, embarcando em seguida para a Inglaterra.

    — E de que viveremos lá? — perguntou Inês.

    — Poderás vender tua casa e o jardim.

    — Quem os comprará? — perguntou a moça, desfazendo-se em lágrimas.

    — Eu tenho economias — respondeu o cura — que devem montar a 5.000 reais; dou as a ti, minha filha, e de todo o coração, se julgas não poder alcançar a salvação desposando Don Blas Bustos.

    Quinze dias depois, todos os esbirros de Granada, em grande uniforme, cercavam a igreja tão sombria de São Domingos. Em pleno meio-dia mal a gente consegue movimentar-se dentro dela. Nesse dia, porém, ninguém a não ser os convidados ousava lá entrar.

    Em uma capela lateral, iluminada por centenas de círios, e cuja luz atravessava as sombras da igreja como uma estrada de fogo, via-se de longe um homem, muito alto, de joelhos sobre os degraus do altar; os que o cercavam davam apenas pelo ombro. Tinha a cabeça curvada com um ar piedoso e os braços magros cruzados sobre o peito. Logo tornou a levantar-se, e mostrou um hábito carregado de condecorações. Dava a mão a uma rapariga cujos modos ligeiros e juvenis faziam estranho contraste com a sua gravidade. Brilhavam lágrimas nos olhos da jovem esposa; a expressão de seus traços e a angélica doçura que eles conservavam apesar do seu tormento impressionaram a multidão quando ela subiu na carruagem à porta da igreja.

    É preciso confessar que depois do casamento Don Blas tornou-se menos feroz; as execuções tornaram-se mais raras. Em vez de mandar fuzilar os condenados pelas costas, eles eram simplesmente enforcados. Permitiu muitas vezes aos condenados beijarem os seus antes de irem para a morte. Um dia disse à mulher, a quem amava com furor:

    — Tenho ciúmes de Sancha.

    Esta Sancha era irmã de -leite e amiga de Inês. Vivera em casa de Don Jaime a título de criada de quarto de sua filha, e foi nessa qualidade que ela a acompanhara ao palácio que Inês tinha vindo habitar em Granada.

    — Quando eu me afasto de ti, Inês — prosseguiu Don Blas — tu ficas a falar a sós com Sancha. Ela é gentil, te faz rir; eu não passo de um velho soldado sobrecarregado de funções severas; faço justiça a mim mesmo, sou pouco amável. Esta Sancha, com a sua fisionomia risonha, deve-me fazer parecer aos teus olhos metade mais velho do que sou. Toma, aí está a chave do meu cofre, dê todo o dinheiro que entenderes, tudo o que está no meu cobre, se te aprouver, mas que ela parta, que vá embora, que eu não mais a veja.

    À tarde, voltando para casa, a primeira pessoa que Don Blas viu foi Sancha, ocupada em seus afazeres como de costume. Seu primeiro impulso foi de furor; aproximou-se rapidamente de Sancha, que ergueu os olhos e o encarou firme, com esse olhar espanhol, mistura tão singular de temor, de coragem e de ódio. Ao cabo de um momento Don Blas sorriu.

    — Minha cara Sancha — perguntou — Dona Inês te disse que eu te dou 10.000 reais?

    — Eu não aceito presentes a não ser de minha ama — respondeu ela, com os olhos sempre cravados nele.

    Don Bustos entrou nos aposentos da esposa.

    — A prisão de Torre Vieja — disse ela — quantos prisioneiros tem neste momento?

    — Trinta e dois nos calabouços e duzentos e sessenta, penso eu, nos andares superiores.

    — Liberta os — disse Inês — e eu me separo da única amiga que tenho no mundo.

    — O que me pedis está acima do meu poder — respondeu Don Blas.

    E durante toda a noite não pronunciou mais uma palavra. Trabalhando ao pé de sua lâmpada, Inês via o, alternativamente, corar e empalidecer; abandonou o trabalho e pôs-se a rezar o seu rosário. No dia seguinte, o mesmo silêncio. Nessa noite irrompeu um incêndio na prisão de Torre-Vieja. Dois prisioneiros pereceram. Mas, a despeito de toda a vigilância do chefe de polícia e de seus agentes, todos os demais conseguiram evadir-se.

    Inês não disse uma palavra a Don Blas, nem ele a ela. No outro dia, tornando a casa, Don Blas já não viu Sancha, e atirou-se aos braços de Inês.

    Tinham-se passado dezoito meses sobre o incêndio de Torre Vieja, quando um viajante coberto de pó desceu do cavalo em frente à pior estalagem do burgo de Zuia, situado nas montanhas, a uma légua ao sul de Granada, enquanto Alcolote fica ao norte.

    Este distrito de Granada é como um oásis encantado no meio das abrasadas planícies da Andaluzia. É a mais bela região da Espanha. Mas viria o viajante guiado pela simples curiosidade? Pelo seu traje tê-lo-iam julgado um catalão. Com efeito, seu passaporte, entregue em Maiorca, estava visado em Barcelona, onde ele desembarcara. O dono dessa má estalagem era muito pobre. Passando às mãos o passaporte, que trazia o nome de Don Pablo Rodil, o viajante catalão o fitou.

    — Sim, senhor viajante — disse o hospedeiro — eu advertirei V. S., caso a polícia de Granada mande procurá-lo.

    O viajante disse que desejava ver aquela região tão bela; saía uma hora antes do nascer do sol e só voltava ao meio-dia, quando o calor é mais forte e todo o mundo está jantando ou fazendo a sesta.

    Don Fernando ia passar horas inteiras em uma colina coberta de tenros sobreiros. Dali avistava o antigo palácio da Inquisição de Granada, habitado agora por Don Blas e por Inês. Seus olhos não podiam afastar-se dos muros enegrecidos desse palácio, que se elevava como um gigante em meio às casas da cidade. Deixando Maiorca, Don Fernando prometera a si mesmo não entrar em Granada. Certo dia, tomado de um arrebatamento a que não pôde resistir, foi até à rua estreita onde se erguia a alta fachada do palácio da Inquisição. Entrou na loja de um artífice, e achou pretexto para lá se deter, e falar. O artífice mostrou as janelas dos aposentos de Dona Inês. Essas janelas ficavam em um segundo andar muito elevado.

    No momento da sesta, Don Fernando retomou o caminho de Zuia, com o coração devorado por todos os furores do ciúme. Quisera apunhalar Inês e matar-se em seguida. — Caráter fraco e frouxo — repetia de si para si com raiva — ela é capaz de amá-lo, se entender que este é o seu dever! Ao dobrar uma rua encontrou-se com Sancha.

    — Ah! minha amiga! — exclamou, sem dar mostras de falar. — Eu me chamo Don Pablo Rodil, estou hospedado na estalagem do Anjo, na Zuia. Amanhã à hora do ângelus, podes estar ao pé da grande igreja?

    — Lá estarei — respondeu Sancha, sem o fitar.

    No dia seguinte, à noite, Don Fernando avistou-se com Sancha e sem dizer nada caminhou para a sua estalagem; ela entrou sem ser vista. Fernando fechou a porta.

    — Bem! — disse ele com lágrimas nos olhos.

    — Eu não estou mais a seu serviço — respondeu Sancha.

    — Há dezoito meses que ela me despediu sem motivo, sem explicação. Por minha fé, creio que ela ama Don Blas.

    — Ela ama Don Blas! — exclamou Don Fernando enxugando as lágrimas. — Era só o que faltava.

    — Quando ela me despediu — continuou Sancha — atirei-me a seus pés, suplicando que me dissesse a causa do meu desfavor. Ela me respondeu friamente. — Meu marido o quer. Nem uma palavra mais. V. S. a conheceu muito piedosa; pois agora sua vida é uma prece contínua.

    Para fazer a corte ao partido reinante, Don Blas obtivera que uma parte do palácio da Inquisição, onde ele habitava, fosse doado a religiosas claristas. Essas damas tinham-se estabelecido ali, e acabavam de fazer sua igreja. Dona Inês lá passava a vida. Logo que Don Blas saía de casa, pode-se estar certo de vê-la de joelhos ante o altar em adoração perpétua.

    — Ela ama Don Blas! — repetiu Don Fernando.

    — Na véspera da minha desgraça — continuou Sancha

    — Dona Inês me falava...

    — Ela mostra-se alegre? — interrompeu Don Fernando.

    — Alegre, não, mas de um humor igual e suave, hem diferente do que V. S. conheceu; não tem mais aqueles momentos de vivacidade e doidice, como dizia o cura.

    — A infame! — exclamou Don Fernando, andando a largos passos pelo quarto. — Está aí como ela é fiel às suas juras; está aí como ela me amava! Nem tristeza sequer! E eu....

    — Como eu ia dizendo a V. S. — continuou Sancha — na véspera da minha desgraça, Dona Inês me falou com amizade, com bondade, como outrora em Alcolote. No dia seguinte, um meu marido o quer foi tudo o que achou para me dizer, entregando-me um papel assinado por ela, que me assegura uma boa pensão de 800 reais.

    — Ah! dá-me esse papel — disse Don Fernando.

    E cobriu de beijos a assinatura de Inês.

    — E ela falava de mim?

    — Nunca — respondeu Sancha — e de tal maneira, que diante de mim o velho Don Jaime uma vez a censurou por ter esquecido um vizinho tão amável. Ela empalideceu e não respondeu. E logo depois de levar o pai até à porta, correu a encerrar-se na sua capela.

    — Sou um tolo, e nada mais —exclamou Don Fernando. — Como vou odiá-la! Não falemos mais nisso... É para mim uma felicidade ter entrado em Granada, felicidade mil vezes maior ter-te encontrado... E tu, que fazes?

    — Estou estabelecida com um negócio na pequena vila de Albaracen, a cerca de meia légua de Granada. Tenho — acrescentou baixando a voz — belas mercadorias inglesas, que me trazem os contrabandistas das Alpujarres. Tenho em minhas malas mais de 2.000 reais de mercadorias de valor. Sou feliz.

    — Compreendo — disse Don Fernando — tens um amante entre os bravos dos montes Alpujarres. Nunca mais tornarei a ver-te. Olha, leva este relógio como lembrança minha.

    Sancha ia-se embora; ele a reteve:

    — E se eu me apresentasse a ela?

    — Ela fugiria, ainda que tivesse de se atirar pela janela. Cuidado — disse Sancha, aproximando-se de Don Fernando. — Seja qual for o disfarce que V. S. possa usar, oito ou dez espiões que rondam incessantemente em torno da casa o deteriam.

    Envergonhado de sua fraqueza, Fernando não disse mais uma palavra. Acabava de tomar a resolução de voltar no dia seguinte para Maiorca.

    Oito dias depois, passou casualmente na aldeia de Albaracen. Os salteadores acabavam de prender o capitão-general O’Donnel, e o tinham deixado durante uma hora deitado de bruços na lama. Don Fernando viu Sancha, que correu com um ar assustado.

    Não tenho tempo de falar — disse ela. — Venha a minha casa.

    A loja de Sancha estava fechada, ela esforçava-se em meter seus estofos ingleses em um grande cofre de carvalho preto.

    -Seremos talvez atacados aqui esta noite — disse a Don Fernando. — O chefe dos salteadores é inimigo pessoal de um contrabandista que é meu amigo. Esta loja seria a primeira pilhada. Estou chegando de Granada; acabo de conseguir de Dona Inês, que, afinal de contas, é uma criatura muito boa, a permissão para depositar as mais preciosas mercadorias no seu quarto. Don Blas não verá este caixão, que está cheio de contrabando; se por infelicidade o vir, Dona Inês encontrará uma desculpa.

    Apressava-se em arrumar seus filós e seus xales. Don Fernando a olhava; de repente, precipita-se sobre o caixão, deita fora os filós e os xales, e põe-se no lugar deles.

    — Está louco? — perguntou Sancha aterrorizada.

    Olha, aqui estão 50 onças; mas os Céus me aniquilem se eu sair deste caixão antes de me achar no palácio da Inquisição em Granada! Quero vê-la.

    fosse o que fosse que Sancha pudesse dizer no seu espanto, Don Fernando não a escutou.

    Estava ela ainda a falar, quando entrou Zanga, um carregador, primo de Sancha, que devia levar o caixão a Granada, em seu burro. Ao ruído que ele fizera ao entrar, Don Fernando apressou-se em puxar sobre si a tampa do caixão. A todo o transe, Sancha o fechou a chave: era imprudente deixá-lo aberto.

    Pelas onze horas da manhã, em um dia do mês de junho, Don Fernando entrava em Granada conduzido em um caixão; estava a ponto de sufocar. Chegaram ao palácio da Inquisição. O tempo que Zanga levou em subir a escada, Don Fernando esperou que se colocasse o caixão no segundo andar, e talvez mesmo no quarto de Inês.

    Quando as portas foram de novo fechadas, e ele não ouviu mais nenhum rumor, tentou, com o auxílio do punhal, fazer ceder a lingueta da fechadura do caixão, no que foi bem sucedido. Para sua inexprimível alegria, ele estava, com efeito, no quarto de Inês. Distinguiu vestes femininas; reconheceu ao pé do leito um crucifixo que outrora se via no quartinho dela em Alcolote. Certa vez, depois de uma discussão violenta, ela o conduzira a seu quarto, e sobre aquele crucifixo jurara amor eterno.

    O calor era extremo, e o quarto escuro. As persianas estavam fechadas, bem como grandes cortinas da mais leve musselina das índias, e os espessos veludos. O profundo silêncio era apenas quebrado pelo ruído de um pequeno jato de água que, elevando-se a alguns pés, a um canto do aposento, tornava a cair em sua concha de mármore negro.

    Ao ruído tão franco desse pequeno repuxo Don Fernando estremecia, ele que em sua vida dera vinte provas da mais audaciosa bravura. Estava longe de encontrar no quarto ^ de Inês essa felicidade perfeita que sonhara tantas vezes em Maiorca, ao pensar nos meios de ali se introduzir. Exilado, desgraçado, separado dos seus, um amor exaltado, e que se tornara quase louco pela duração e a uniformidade da desgraça, formava todo o caráter de Don Fernando.

    Nesse momento, o receio de desagradar àquela Inês, que ele sabia tão casta e tão tímida, era o único sentimento de Don Fernando. Eu teria vergonha de confessá-lo se não contasse que o leitor possua algum conhecimento do caráter singular e apaixonado das gentes do Sul. Don Fernando esteve para desmaiar quando, pouco depois de baterem duas horas no relógio do convento, ouviu, em meio do silêncio profundo, passos apressados subindo a escada de mármore. Não tardou que se aproximassem da porta. Reconheceu o andar de Inês; e, não ousando afrontar o primeiro momento de indignação de uma pessoa tão presa aos seus deveres, escondeu-se no caixão.

    O calor era opressivo, a escuridão profunda. Inês acomodou-se em seu leito; e pouco depois, pela tranquilidade da sua respiração, Don Fernando compreendeu que ela dormia. Só então ousou aproximar-se do leito; viu aquela Inês, que desde tantos anos constituía o seu único pensamento. Sozinha, abandonada a ele na inocência do sono, ela fez medo. este singular sentimento cresceu quando ele advertiu que, no decurso dos dois anos que passaram sem a ver, seus traços haviam adquirido um tom de fria dignidade que ele não conhecia.

    No entanto, a felicidade de revê-la pouco a pouco penetrou na alma; a meia desordem de suas vestes de verão fazia um contraste tão encantador com aquele ar de dignidade quase severa!

    Compreendeu que a primeira ideia de Inês, ao vê-lo, seria fugir. Fechou, por isso, a porta, guardando a chave.

    Finalmente chegou o instante que ia decidir de todo o seu futuro. Inês fez alguns movimentos, estava prestes a despertar; ele teve a inspiração de se pôr de joelhos diante do crucifixo em que em Alcolote permanecia no quarto de Inês. Abrindo os olhos ainda pesados de sono, Inês teve a ideia de que Fernando acabava de morrer ao longe, e que sua imagem, que ela via ante o crucifixo, era uma visão.

    Ficou imóvel, ereta, diante da cama, e de mãos juntas.

    — Pobre coitado! — disse com voz trêmula e quase sufocada.

    Don Fernando, sempre de joelhos e meio voltado para observá-la, mostrava o crucifixo; mas, em sua perturbação, fez um movimento. Inês, inteiramente desperta, compreendeu a verdade, e correu em direção à porta, que encontrou fechada.

    — Que audácia! — exclamou. — Saí, Don Fernando!

    Refugiou-se no ângulo mais distante do quarto, junto do repuxo.

    — Não vos aproximeis, não vos aproximeis — repetia em uma voz convulsa. — Saí!

    Todo o brilho da mais pura virtude brilhava em seus olhos.

    Não, não sairei antes que tu me ouças. Durante dois anos não pude esquecer-te; noite e dia trago tua imagem diante dos olhos. Não juraste perante esta cruz que serias minha para sempre?

    — Saí — repetiu-Inês com furor — ou chamarei os guardas, e ambos seremos degolados.

    Correu a uma campainha, mas Don Fernando tomou a frente e apertou a nos braços. Don Fernando tremia; Inês notou o perfeitamente, e perdeu toda a força que a cólera dava.

    Don Fernando não se deixou mais dominar pelos pensamentos de amor e de volúpia, e voltou-se todo para o seu dever.

    Estava mais trêmulo que Inês, pois sentia que acabava de proceder com ela como um inimigo; mas não encontrou nem cólera nem arrebatamento.

    — Queres então a morte de minha alma imortal? — perguntou Inês. — Mas ao menos acredita uma coisa, é que eu te adoro, e nunca amei a outro senão a ti. Não se escoou um minuto da abominável vida que levo desde o meu casamento, durante o qual eu não tenha pensado em ti. Era um pecado execrável: tudo fiz para esquecer-te, mas em vão. Não te horrorizes da minha impiedade, meu Fernando: acreditá-lo-ás? aquele santo crucificado que ali vês, ao pé do meu leito, muitas e muitas vezes não me apresenta mais a imagem do Salvador que nos deve julgar; ele só me recorda os juramentos que eu te fiz estendendo a mão para ele em meu quartinho de Alcolote. Ah! nós estamos amaldiçoados, Fernando! — exclamou com transporte. — Sejamos felizes pelo menos durante os poucos dias de vida que nos restam.

    Essa linguagem tirou todo o receio de Don Fernando: a felicidade começou para ele.

    — Quê! tu me perdoas, tu ainda me amas?

    As horas

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