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MARIO HENRIQUE SI-

MONSEN

BRASIL 2001
Digitalização: Argo
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INTRODUÇÃO

O objetivo do presente livro é o de examinar as condições para


que o Brasil escape às previsões do Hudson Institute, as quais nos
vaticinam crescente atraso em relação à renda per capita dos paí-
ses mais prósperos. A conclusão básica da análise é a de que pode-
mos nutrir a esperança de que os fatos desmintam essas projeções.
Mas que isso depende da nossa racionalidade e do nosso esforço, e
não da simples e inerte extrapolação das tendências.
O título do livro deveria ser BRASIL ANO 2000, com base nas
projeções do Capítulo I. Mas como recentemente foi publicado outro
livro com esse título, apelou-se para o devido substituto cine-
matográfico. Parte do material contido no texto já havia sido di-
vulgada em várias publicações como APEC, Indústria e Produtivida-
de, Boletim Cambial etc. Todavia, os dados foram atualizados e vá-
rias partes intermediárias revistas, de modo a dar ao texto certa
continuidade e alguma seqüência lógica.
Enquanto o livro estava sendo escrito, a Fundação Getúlio Var-
gas revia as suas Contas Nacionais. Os resultados dessa revisão
ainda não foram publicados e, por isso, não foram incorporados aos
quadros constantes do presente texto. Ao que parece, a principal
conclusão é a de que o desenvolvimento do setor terciário no decê-
nio de 1950 foi mais brilhante do que se supunha pelo julgamento
das antigas estatísticas. Em essência, isso não altera nenhuma das
principais conclusões do presente texto.
Devo agradecer aos professores Octávio Gouvêa de Bulhões, Au-
gusto Jefferson de Oliveira Lemos e João Paulo dos Reis Velloso
pela paciência com que leram alguns capítulos do texto original,
contribuindo com valiosas críticas e sugestões. Obviamente essa
colaboração não os torna solidários com os erros do livro, que
correm pela exclusiva responsabilidade do autor.

Rio de Janeiro, março de 1969

Mário Henrique Simonsen


ÍNDICE

CAP. I — AS PREVISÕES DO HUDSON INSTITUTE

1.1 A Defasagem Crescente


1.2 O Cenário Quantitativo — O Mundo Dicotômico
1.3 O Cenário Quantitativo — As Projeções por Países
1.4 Variações Brasileiras em torno das Projeções de Kahn e Wiener

CAP. II — A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE DESENVOLVIMENTO: 1920/1967

2.1 O Crescimento do Produto Real


2.2 Composição da Despesa Nacional Bruta
2.3 Industrialização e Estrutura Ocupacional
2.4 O Modelo Brasileiro de Desenvolvimento — Avaliação e Crítica

CAP. III — O PENSAMENTO ESTRUTURALISTA

3.1 A Comunicação Mística


3.2 Problemas de Crescimento no Brasil — A Visão Estruturalista
3.3 O Diagnóstico Estruturalista — Exame Crítico
3.4 A Terapêutica Estruturalista e o Keynesianismo Prematuro
3.5 Uma Variante Estrutralista
3.6 A Mensagem Estruturalista

CAP. IV — A ARITMÉTICA DOS COELHOS

4.1 A Progressão Explosiva


4.2 O Ufanismo Demográfico
4.3 Do Malthusianismo Clássico ao Bom-Senso Aritmético
4.4 Política Populacional e o Fatalismo Demográfico

CAP. V — A TOLERÂNCIA INFLACIONÁRIA

5.1 A Evolução da Taxa Inflacionária no Brasil


5.2 Raízes Sócio-Políticas dos Processos Inflacionários Crônicos
5.3 As Distorções Inflacionárias
5.4 O Inflacionismo e a Estreiteza dos Horizontes de Programação
5.5 Inflação e Desenvolvimento — O Caso Brasileiro

CAP. VI — O GARGALO EXTERNO

6.1 O Desenvolvimento Introvertido


6.2 O Modelo dos Três Limites
6.3 Dívida Externa e Balanço de Pagamentos
6.4 Exportar ou Estagnar

CAP. VII — PLANEJAMENTO, MERCADO, INTERVENÇÃO ESTATAL


7.1 Os Erros do Mercado e os Erros do Planejador
7.2 Planejamento, a Técnica Neutra
7.3 Planejamento e Realismo Orçamentário
7.4 O Crescimento do Setor Público na Economia Brasileira
CAP. VIII — O PROBLEMA EDUCACIONAL

8.1 Educação e Desenvolvimento


8.2 O Esforço Quantitativo
8.3 Deformação Cultural e Estrutura do Ensino
8.4 A Pirâmide do Desperdício
8.5 O Desperdício nas Universidades
8.6 A Mensagem de Esperança

CAP. IX — ANALISE ANTIECONÔMICA

9.1 Racionalidade e Política Econômica


9.2 O Nacionalismo Obscurantista
9.3 O Mito do Subsídio
9.4 A Cibernética de São Tome
9.5 As Fórmulas da Cadeia da Felicidade
9.6 O Antitecnicismo
9.7 O Capitalismo Tomista

CAP. X — O DESAFIO DO DESENVOLVIMENTO

10.1 A Corrida da Renda Per Capita


10.2 A Semelhança dos Modelos
10.3 Cinco Grandes Problemas

APÊNDICES

I — ÍNDICE DO PRODUTO REAL — RESULTADOS E DISTORÇÕES


II — O ÍNDICE DE CONCENTRAÇÃO DE LORENZ
III — MODELOS DO CIRCULO VICIOSO DA POBREZA
IV — EFEITO DO CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO NUMA FUNÇÃO COBB-DOUGLAS
V — INFLAÇÃO E CRESCIMENTOECONÔMICO — VERIFICAÇÃO EMPÍRICA
VI — DIVIDA EXTERNA E BALANÇO DE PAGAMENTOS
VII — DESENVOLVIMENTO E PROGRESSO TECNOLÓGICO
CAPÍTULO I
AS PREVISÕES DO HUDSON INSTITUTE

1.1 — A Defasagem Crescente

Todo brasileiro, ao tomar conhecimento das projeções do Hudson


Institute, contidas no livro "The Year 2000" de Herman Kahn e An-
thony Wiener, sente-se decepcionado com o baixo nível de renda per
capita que nos é previsto para o fim do século. A valerem tais ex-
trapolações, no ano 2000 estaremos com apenas 506 dólares anuais
de renda per capita, enquanto os Estados Unidos terão ultrapassado
a casa dos 10.000 dólares, e o Japão, o Canadá e vários países da
Europa Ocidental a ordem dos 6.000 dólares. Em termos absolutos
teremos conseguido algum progresso: os 506 dólares no fim do sécu-
lo representam 81% a mais do que os 280 dólares per capita estima-
dos para 1965 — o que, em progressão geométrica, equivale a uma
taxa anual de crescimento de 1,7%. Em termos relativos, porém, es-
taremos ainda mais distanciados do que hoje das nações desenvolvi-
das. Hoje a relação entre a nossa renda per capita e a dos Estados
Unidos é da ordem de 1:12,7. Pelas projeções do Hudson Institute,
no ano 2000 ela será de 1:20,1. O Quadro 1 a seguir ilustra esse
problema da crescente defasagem relativa. Até em comparação com o
nosso vizinho, a Argentina, estaremos cada vez mais atrasados.

QUADRO 1

RENDA PER CAPITA DE ALGUNS PAÍSES


EM RELAÇÃO AO BRASIL

Renda per ca- Número de vezes a


PAÍS pita em dóla- renda per capita do
res de 1965 Brasil

1966 2000 1965 2000


Estados Unidos 3.557 10.160 12,70 20,08
Canadá 2.464 7.070 8,80 13,97
França 1.924 6.830 6,87 13,50
Alemanha Ocidental 1.905 7.790 6,80 15,40
Japão 857 8.590 3,06 16,98
U.R.S.S. 1.288 4.650 4,60 9,19
Itália 1.101 4.450 3,93 8,79
Argentina 492 1.300 1,76 2,57
Brasil 280 506 1 1
Fonte: Kahn e Wiener — The Year 2000.

Entre nós, as reações quanto a essas previsões se têm dividido


bastante. Uma corrente pessimista as toma como um vaticínio fatí-
dico de que o Brasil será o eterno país de um futuro cada vez mais
distante. Outra, mais moderada, as encara apenas como uma séria
advertência quanto ao que nos poderá ocorrer se não soubermos
construir um processo sólido de desenvolvimento. Mais numerosos,
talvez, sejam os otimistas, que confiam que mais uma vez fique
provado que a economia é a ciência que justifica no presente por-
que as suas previsões para o futuro fracassaram no passado. Na boa
filosofia do avestruz, vários argumentos são utilizados por essa
corrente: o que nega a validade das comparações internacionais de
renda per capita, o que nega a representatividade da renda per ca-
pita como indicador da importância e do bem-estar de um povo, e o
que nega a viabilidade de qualquer previsão econômica a longo pra-
zo na linha do Hudson Institute. Como esses argumentos desfrutam
de certa popularidade valem alguns comentários.
A principal crítica usualmente oposta às comparações interna-
cionais de renda per capita é a da dificuldade de escolha de uma
taxa adequada de conversão cambial. O método mais simples de con-
versão seria dividir a renda per capita de cada país, na sua moe-
da, pelo preço do dólar no mercado de câmbio. Os resultados, no
entanto, poderiam ser bastante distorcidos, pois a taxa cambial
corrente não necessariamente reflete a paridade dos preços inter-
nos nos diversos países. O fato de existirem países onde a vida se
considera mais cara ou mais barata é a conseqüência óbvia desse
fato. Admitindo que nos Estados Unidos a vida seja mais cara do
que no Brasil esse sistema de conversão subestimaria o nosso pa-
drão de vida, colocando-nos numa escala indevida de subdesenvolvi-
mento.
Acontece que esse não é o critério de que se utilizam os eco-
nomistas nas comparações internacionais de renda per capita. Tais
dados são obtidos pela aplicação de determinados coeficientes de
ponderação aos índices de produção física por habitante, e não pe-
la simples conversão por taxas cambiais. É claro que existem difi-
culdades na escolha de um sistema de pesos adequado para diferen-
tes países, e por isso as estimativas internacionais de renda per
capita não se podem considerar suficientemente precisas. Em todo o
caso o método contorna o problema das divergências entre as taxas
cambiais de mercado e de paridade de poder aquisitivo. Para nos
certificarmos desse fato, lembremos que em 1965 o produto interno
bruto per capita no Brasil era de NCr$ 374,60. Convertido à taxa
cambial média do ano (NCr$ 1,92 por dólar) esse valor corres-
ponderia a 195 dólares per capita. Na realidade Kahn e Wiener par-
tem de 280 dólares — cifra que já leva em conta a correção de pa-
ridade de poder de compra. É possível que, alterando os coeficien-
tes de ponderação internacional a nosso favor, conseguíssemos es-
ticar essa estimativa até 320 dólares. Em todo o caso, o ponto de
partida do Hudson Institute parece situar-se dentro da faixa ad-
missível de ordens de grandeza.
Quanto à representatividade da renda per capita para a avalia-
ção do desempenho de um país, cumpre não incorrer em exageros num
sentido ou noutro. É claro que ela está longe de ser um indicador
inequívoco da hierarquia das nações — se tentássemos comparar os
países apenas por essas tabelas chegaríamos a resultados absurdos,
como o de que o Kuwait é mais importante que os Estados Unidos, ou
o de que a Venezuela é o principal país da América Latina. De fato
uma nação pode ser importante por outros fatores: pela extensão
territorial, pela população, pelas tradições culturais, etc. Tam-
bém é óbvio que a renda per capita é um valor médio, por trás do
qual se pode ocultar uma distribuição injustamente desigual — lem-
brando aquela definição de que estatístico é o sujeito com a cabe-
ça num forno, os pés na geladeira, e que na média se sente muito
bem. Essas ressalvas, todavia, não diminuem a importância econômi-
ca das estimativas de renda per capita. Afinal a fonte de recursos
para o consumo e para a poupança de um país é a sua produção, cujo
valor médio por habitante equivale à renda per capita. Na realida-
de, seria próprio olharmos as estatísticas com um unilateralismo
eliminatório: uma renda per capita alta talvez superestime o de-
senvolvimento de um país, se existirem excessivas desigualdades
distributivas; mas uma renda per capita baixa é sempre um indício
definitivo de subdesenvolvimento. Mais uma vez poderíamos voltar à
filosofia do avestruz e repetir aquela frase com que os ricos ten-
tam consolar os pobres — a de que dinheiro não dá felicidade. O
problema é que a sociedade moderna, cujos desejos aumentam cada
vez mais pelo efeito da propaganda e dos meios de comunicação, não
parece inclinada a esse espírito de renúncia material. Diante da
revolução das aspirações crescentes deve considerar-se alarmante a
hipótese de ficarmos cada vez mais atrasados em relação aos povos
desenvolvidos.
Quanto à viabilidade de projeções econômicas a prazo longo,
como as do Hudson Institute, cumpre mais uma vez evitar os extre-
mismos. É óbvio que os cientistas sociais estão muito longe dos
físicos e dos astrônomos na precisão da sua futurologia, e que a
evolução dos fenômenos econômicos é continuamente perturbada por
fatores imponderáveis. Aliás os autores do livro "The Year 2000"
são bastante cautelosos nesse ponto, apresentando suas estimativas
num capítulo intitulado "Some Surprise Free Economic Projections".
Daí é sensato concluir que qualquer previsão econômica a longo
prazo está sujeita a considerável margem de erro, mas não que os
exercícios desse tipo sejam inúteis. Metodologicamente as proje-
ções do Hudson Institute se resumem em simples manipulações de
progressões geométricas. Essas manipulações, no entanto, são bas-
tante proveitosas pois nos mostram para onde caminhamos se não
conseguirmos inverter determinadas tendências. Apenas para anteci-
par um exemplo, uma das conclusões mais importantes que se podem
extrair da análise é que dificilmente o Brasil recuperará seu a-
traso em relação aos países mais prósperos se a sua taxa de cres-
cimento demográfico não se reduzir substancialmente nos próximos
trinta anos.
Essas observações servem para aliviar a interpretação pessi-
mista, segundo a qual as previsões do Hudson Institute mostram que
fatalmente nos atrasaremos cada vez mais em relação aos países de-
senvolvidos. Na realidade é possível compor diversas variações so-
bre o tema de Kahn e Wiener e chegar a perspectivas mais risonhas
para o nosso fim de século. As cifras apresentadas no "The Year
2000" valem-nos, porém, como advertência, mostrando-nos o que nos
poderá acontecer se continuarmos a encarar certos problemas de de-
senvolvimento com o otimismo do avestruz.

1.2 — O Cenário Quantitativo. O Mundo Dicotômico


A metodologia adotada por Kahn e Wiener nas suas projeções e-
conômicas para o ano 2000 é a mais simples possível: os autores
projetam independentemente o produto nacional bruto (por países e
por continentes) e a população, obtendo por divisão as previsões
de renda per capita. Em pormenores, as etapas de cálculo são as
seguintes: a) compilação das estimativas de população e de renda
per capita em dólares para o ano de 1965; b) cálculo do produto
nacional bruto em dólares, multiplicando-se as estimativas acima;
c) projeção das taxas de crescimento demográfico até o ano 2000;
d) estimativa da população no fim do século com base nessas taxas;
e) projeção da taxa de crescimento do produto real até o ano 2000;
f) projeção do produto nacional bruto no ano 2000 (em dólares de
1965) com base nessa taxa; g) estimativa da renda per capita no
ano 2000 dividindo-se as projeções do produto total pelas da popu-
lação.
Do ponto de vista técnico essa metodologia pode considerar-se
bastante rudimentar, praticamente se resumindo numa série de exer-
cícios sobre progressões geométricas. Os fatores de crescimento
que usualmente integram os modelos econométricos — a taxa de for-
mação de capital, o progresso tecnológico, os limites do comércio
exterior etc. — não são destacados na análise, ficando implicita-
mente englobados nas taxas de crescimento postuladas para o produ-
to real. Kahn e Wiener talvez tenham razão em evitar qualquer me-
todologia mais sofisticada, pela imprevisibilidade dos seus parâ-
metros no prazo de um terço de século. Em todo o caso isso nos o-
briga a admitir em torno das projeções médias do Hudson Institute,
uma considerável margem de dispersão pela acumulação da diferença
de juros compostos.
Também, como reconhecem os autores, a projeção da população e
do produto total como variáveis independentes é uma escapatória
simples para um problema difícil. Teoricamente, desde que a produ-
tividade marginal da mão-de-obra seja positiva, o crescimento da
força de trabalho contribui positivamente para o aumento do produ-
to real. Sabe-se, porém, que uma explosão demográfica pode exercer
certos efeitos que freiam a expansão do produto nacional, como a
absorção de vultosas poupanças em obras de infra-estrutura social,
e a freqüente necessidade de sacrificar o objetivo de crescimento
do produto pelo da expansão do emprego. Diante disso talvez o mais
prudente seja admitir, como os autores do "The Year 2000" que a
relação a longo prazo entre crescimento da população e do produto
real ainda é desconhecida.
As taxas medianas de crescimento do produto real projetadas
para o último terço de século compõem aquilo que Kahn e Wiener de-
nominam "cenário otimista". Com ligeiros corretivos, elas se apro-
ximam bastante das taxas médias de crescimento registradas nos úl-
timos quinze anos — uma espécie de Belle Époque do crescimento e-
conômico mundial — excedendo consideravelmente as tendências das
séries seculares do produto real. Várias razões justificam essa
perspectiva otimista. Primeiro, o próprio "culto do crescimento"
que se espalhou entre as nações nos últimos anos ensinando-as a
formular uma política econômica mais adequada aos objetivos de de-
senvolvimento. Segundo, a improbabilidade de que o crescimento ve-
nha a ser interrompido por depressões profundas (como a do decênio
de 1930) devido ao domínio das técnicas anti-recessivas. Terceiro,
o crescimento exponencial da tecnologia exportável. Quarto, a me-
lhoria nos arranjos institucionais do mundo — uniões aduaneiras,
entidades de assistência técnica etc.
Dentro dessa linha, o primeiro exercício apresentado por Kahn
e Wiener é o das projeções medianas da população, do produto real
e do produto real per capita por continentes. Os dados, resumidos
no Quadro 2, subdividem o mundo em dois grandes grupos — o dos pa-
íses subdesenvolvidos, compreendendo a África, Ásia (exceto Japão)
e América do Sul (inclusive Central) e o das nações desenvolvidas,
contendo o Japão, a América do Norte e a Europa. Os principais re-
sultados dessas projeções são os seguintes:
a) Entre 1965 e o final do século a população do mundo deverá
expandir-se de aproximadamente 3,3 para 6,4 bilhões de habitantes
— o que equivale a uma taxa média anual de 1,86%; a renda per ca-
pita, de cerca de 630 para 1.700 dólares (de poder aquisitivo de
1965).
b) O crescimento do produto real total nos dois mundos se pro-
cessará a taxas muito próximas, em torno de 4,8% ao ano; assim, a
relação entre o produto real total nos dois blocos deverá permane-
cer praticamente inalterada (1:5,8 no ano 2000 contra 1:5,9 em
1965).
c) A população do mundo subdesenvolvido deverá crescer a uma
taxa bem mais rápida (2,15% ao ano) do que a dos países desenvol-
vidos (1,15% ao ano). Como corolário, a percentagem da população
subdesenvolvida no total mundial crescerá de 67,7% ano 1965 para
74,8% no ano 2000.
d) Como conseqüência do hiato demográfico, o atraso relativo
dos países subdesenvolvidos se acentuará daqui até o fim do sécu-
lo; a sua renda média per capita crescerá de 135 para 332 dólares
anuais (2,6% ao ano); a do grupo desenvolvido, no entanto, se ex-
pandirá a taxas sensivelmente superiores — passando de 1.675 para
5.744 dólares per capita (3,6% ao ano). Assim, a distância média
relativa entre os dois grupos se afastará da escala de 1:12,4 para
a de 1:17,3.
É interessante comentar o aspecto mais chocante dessas previ-
sões — o do distanciamento crescente entre a renda per capita dos
mundos subdesenvolvido e desenvolvido. Não se trata propriamente
de uma conclusão, mas de um simples corolário aritmético das duas
principais hipóteses de trabalho de Kahn e Wiener — a de que o
produto real dos dois mundos cresça aproximadamente à mesma taxa,
e a de que a população se expanda bem mais rapidamente nos países
subdesenvolvidos. Contudo essas hipóteses de trabalho (e, natural-
mente, o seu corolário aritmético) parecem plausíveis, a menos que
se invertam certas tendências atuais.
Em matéria de crescimento do produto real, os países subdesen-
volvidos levam algumas vantagens e outras tantas desvantagens em
relação às nações mais avançadas. As vantagens residem na possibi-
lidade de absorver um longo percurso tecnológico já trilhado pelas
nações mais prósperas (os países subdesenvolvidos não esbarram nu-
ma fronteira tecnológica cuja expansão sempre depende de novas in-
venções); na escassez do capital que, em tese, permite extrair dos
investimentos maior produtividade marginal; e na própria consciên-
cia, nacional e internacional, de que é preciso abrandar o hiato
entre as nações mais e menos prósperas. Como contrapeso, no entan-
to, podem citar-se outras tantas desvantagens: a dificuldade natu-
ral de sustentação de uma taxa de poupança semelhante à dos países
desenvolvidos; o agravamento dessa dificuldade pelo impacto dos
meios modernos de comunicação que despertam nos povos subdesenvol-
vidos o desejo de imitar os padrões de consumo das nações mais a-
vançadas (efeito-demonstração); a freqüência dos erros de política
econômica, que parece correlacionar-se fortemente com o inverso da
renda per capita; e a tendência a reproduzir prematuramente certas
conquistas sociais que só se justificam pelo desenvolvimento eco-
nômico (o Brasil, na faixa dos 300 dólares anuais de renda per ca-
pita, se orgulha de possuir a legislação trabalhista mais adianta-
da do mundo). Além disso, cumpre observar que os países desenvol-
vidos têm conseguido desvendar novas fronteiras tecnológicas com
tal velocidade que se fica em dúvida se é realmente vantagem eco-
nômica estar na retaguarda para dispor de um horizonte mais amplo
de percurso. (Lembre-se, nesse particular, o algo superenfático,
mas sugestivo "Desafio Americano" de Jean Jacques Schreiber). É
obviamente impossível dar um balanço quantitativo satisfatório
nessas vantagens e desvantagens. Em todo o caso, o seu simples e-
nunciado confere certos ares de plausibilidade à hipótese de Kahn
e Wiener de que ambos os mundos cresçam à mesma taxa.
Quanto à expansão demográfica, é fora de dúvida de que ela ho-
je se processa a taxas muito mais aceleradas no mundo subdesenvol-
vido de que no desenvolvido. Os progressos da higiene e da medici-
na moderna ensinaram como reduzir drasticamente as taxas de morta-
lidade. Mas só os países de alta renda per capita parecem ter a-
preendido a reduzir concomitantemente as taxas de natalidade. É
possível que o avanço e a simplificação dos anticoncepcionais re-
duzam essa assimetria. Mas, sem essa inversão de tendências, jus-
tificam-se as projeções de Kahn e Wiener.
Com o numerador proporcional e o denominador explosivo, é ób-
vio que a distância relativa entre o mundo desenvolvido e o subde-
senvolvido aumentará cada vez mais. Trata-se, talvez, de uma con-
clusão simples demais para que se possa tomar como previsão abso-
luta. De qualquer forma, o exercício sobre taxas geométricas vale
pelas duas advertências que encerra: a de que os países subdesen-
volvidos precisam esforçar-se heroicamente para aumentar o seu
produto total; e a de que esses mesmos países devem encarar com
mais racionalidade os efeitos negativos de sua explosão demográfi-
ca.
QUADRO 2

PROJEÇÕES DO MUNDO DICOTÔMICO

Produto Nacional Produto per


População
Bruto (bilhões de capita (dóla-
(milhões)
dólares de 1965) res de 1965)
1965 2000 1965 2000 1965 2000

1) Mundo subdesenvolvido

África 310,7 779,0 43,9 216,0 141 277


Ásia (exceto Japão) 1.791,0 3.578,0 203,4 1.081,0 114 302
América do Sul 116,2 420,0 59,4 292,0 357 695

SUBTOTAL 2.267,9 4.777,0 306,7 1.589,0 135 332

2) Mundo desenvolvido

Japão 98,0 123,0 84,0 1056,0 857 8.585


América do Norte 294,2 578,0 774,2 3.620,0 2.631 6.263
Oceania 14,0 25,0 28,0 107,0 2.000 4.280
Europa 674,7 886,0 923,9 4.476,0 1.369 5.052

SUBTOTAL 1.080,9 1.612,0 1.810,1 9.259,0 1.675 5.744

TOTAL MUNDIAL 3.348,8 6.389,0 2.116,8 10.848,0 632 1.698

Fonte: Kahn e Wiener — The Year 2000.

1.3 — O Cenário Quantitativo — As Projeções por Países

A segunda tarefa desenvolvida por Kahn e Wiener nas suas ex-


trapolações econômicas para o ano 2000 é a de projetar a popula-
ção, o produto nacional e, por quociente, a renda per capita de
vinte e nove países — dez nações principais e dezenove outras (en-
tre as quais o Brasil). A metodologia de cálculo é a mesma descri-
ta na seção anterior, mas os autores têm o cuidado de a desenvol-
ver sob várias hipóteses diferentes. Para o crescimento do produto
real de cada país os autores admitem três taxas possíveis: uma al-
ta, uma mediana e uma baixa. Com ligeiros corretivos, a taxa alta
correspondente geralmente à do subperíodo de crescimento mais rá-
pido registrado nos anos mais recentes; a taxa mediana, à tendên-
cia de médio prazo observada desde o término da Segunda Guerra
Mundial; e a taxa baixa ao crescimento secular do produto real, ou
à sua expansão em períodos relativamente desfavoráveis. O cresci-
mento demográfico é projetado em três hipóteses diferentes para as
dez nações principais, e em uma única hipótese para as dezenove
outras. De um modo geral as taxas utilizadas extrapolam as obser-
vações dos últimos censos, supondo-se certo declínio dos índices
de natalidade nos países (como o Brasil) sujeitos a excessiva ex-
plosão demográfica, e certa recuperação noutros (como o Japão) on-
de o crescimento populacional se vem revelando muito lento.
As tabelas seguintes resumem os principais resultados dessas
projeções. Os Quadros 3 e 4 apresentam as estimativas de população
e de produto nacional para os dez países principais, nas três hi-
póteses citadas. O Quadro 5 estabelece, como corolário, as proje-
ções de renda per capita para o ano 2000; para quase todos os paí-
ses a estimativa alta do produto total foi conjugada com a proje-
ção baixa da população, e vice-versa. Apenas para a Índia e para a
China se associaram as estimativas na mesma direção, admitindo-se
implicitamente que um maior esforço de crescimento estivesse asso-
ciado à maior expansão demográfica. Os Quadros 6 e 7 apresentam as
projeções da população e do produto nacional bruto para os dezeno-
ve outros países. Finalmente o Quadro 8 indica as estimativas me-
dianas de renda per capita para esses dezenove países obtidas das
projeções dos dois quadros precedentes.
Fora a observação geral já registrada a propósito do mundo di-
cotomizado — a do crescente distanciamento econômico entre países
subdesenvolvidos e desenvolvidos pelo efeito da explosão demográ-
fica nos primeiros — valem alguns comentários sobre as previsões
para o Brasil. A vigorarem essas projeções, no fim do século esta-
remos muito bem servidos em matéria de população: 212,1 milhões de
habitantes. Em matéria de produto nacional bruto as projeções do
Hudson Institute nos deixam grande margem de indeterminação, entre
65 (baixa), 107 (mediana) e 246 bilhões de dólares (alta) — cifras
que corresponderiam a 306, 506 ou 1.160 dólares de renda per capi-
ta. O que se pode assegurar é que, dentro dessa faixa, a projeção
mediana nos é muito pouco animadora. Se nos considerássemos isola-
dos do mundo, talvez nos pudéssemos satisfazer com a lenta taxa de
crescimento pacientemente composta nas progressões geométricas,
pois os 506 dólares projetados para o ano 2000 excedem em 81% os
280 dólares de 1965. Mas, no confronto com o resto do mundo, a
nossa posição decairia cada vez mais. O Quadro 1 já mostrou o
crescente distanciamento que Kahn e Wiener nos prevêem em relação
a alguns países mais avançados. De fato, em relação à média dos
países desenvolvidos, a nossa renda per capita se afastaria da es-
cala de 1:6,0 para a de 1:11,4. E até no bloco subdesenvolvido
perderíamos a posição de relativa prosperidade, a relação entre a
nossa renda per capita e a dos países menos avançados caindo de
2,1:1 para 1,5:1. Esse seria o resultado de sermos os líderes in-
ternacionais da explosão demográfica, sendo apenas capazes de sus-
tentar uma taxa normal de crescimento da produção física.
QUADRO 3

PROJEÇÕES DA POPULAÇÃO – DEZ PAÍSES PRINCIPAIS

População Taxa de crescimento demográfico(% a.a) População


P A Í S em 1965 em 2000
(milhões)
1965/1975 1975/1985 1985/2000
(milhões)

China 700 1,3 1,0 0,9 992


755 1,8 1,5 1,3 1.271
800 2,3 2,1 1,7 1.600
Índia 487 2,2 1,9 1,5 914
2,4 2,1 1,8 988
2,5 2,5 2,4 1.128
U.R.S.S 231 1,0 1,0 0,9 316
1,3 1,3 1,2 352
1,6 1,6 1,5 402
Estados Unidos 195 1,2 1,2 1,1 290
1,3 1,5 1,5 318
1,7 1,7 1,9 362
Japão 98 0,6 0,6 0,3 116
0,8 0,8 0,4 123
1,1 1,1 0,8 139
Alemanha Ocidental 59 0,2 0,2 0,0 61
0,4 0,4 0,3 67
0,5 0,5 0,5 70
Grã-Bretanha 55 0,1 0,0 0,0 55
0,3 0,2 0,2 60
0,5 0,4 0,5 64
Itália 52 0,3 0,1 0,1 55
0,5 0,3 0,4 60
0,6 0,4 0,6 62
França 49 0,8 0,5 0,4 59
1,0 0,7 0,7 64
1,1 0,8 0,9 68
Canadá 20 1,7 1,6 1,6 34
1,8 1,9 2,0 38
2,2 2,1 2,4 43
Fonte: Kahn e Wiener – The Year 2000

QUADRO 4

PRODUTO NACIONAL BRUTO — DEZ PAÍSES PRINCIPAIS

Produto Nacional Bruto


Taxas de crescimento do
(bilhões de dólares de 1965)
produto real (% ao ano)
2000
1965
Baixa Mediana Alta Baixa Mediana Alta

Estados Unidos 2,0 4,5 5,5 692,3 1.384 3.231 4.510


U.R.S.S........... 2,0 5,0 7,0 297,0 594 1.640 3.170
Alemanha Ocidental 3,0 4,5 5,5 112,4 316 525 732
Grã-Bretanha...... 2,0 4,0 5,0 98,5 197 389 543
França............ 3,0 4,5 5,5 94,1 265 439 613
Japão............. 5,0 7,5 9,0 e 7,5* 84,0 463 1.056 1.393
China............. 3,0 5,0 7,0 74,0** 169 408 961
Itália............ 3,0 4,5 5,5 56,8 160 265 370
Canadá............ 3,0 5,0 6,0 48,3 136 266 371
Índia............. 2,0 5,0 6,0 48,3 97 266 371

* 9,0% até 1985; 7,5% daí por diante.


** Adotaram-se ainda, para 1965, as estimativas de 60,0 e 90,0 bilhões de dólares para
efeitos das projeções baixa e alta, respectivamente.
Fonte:Kahn e Wiener —> The Year 2000.
QUADRO 5

RENDA PER CAPITA – DEZ PAÍSES PRINCIPAIS

Renda per capita em dólares de 1965


PAÍS 2000
1965
Baixa Mediana Alta
Estados Unidos 3.557 4.760 10.160 12.480
Canadá 2.464 4.040 7.070 8.670
França 1.924 4.480 6.830 9.070
Alemanha Ocidental 1.905 5.150 7.790 10.410
Grã-Bretanha 1.804 3.570 6.530 8.440
U.R.S.S 1.288 1.880 4.650 7.890
Itália 1.101 2.940 4.450 5.930
Japão 857 3.990 8.590 10.000
Índia 99 86 270 406
China 75/98/129 106 321 969
Fonte: Kahn e Wiener – The Year 2000

QUADRO 6

POPULAÇÃO — DEZENOVE OUTROS PAÍSES

População Taxas de crescimento (% a.a.)


PAÍS em 1965
1965/1975 1975/1985 1985/2000
(milhões)

Paquistão 115,0 3,2 2,9 2,2 287,7


Indonésia 105,0 2,6 2,4 2,4 239,0
Brasil 82,2 3,1 2,4 2,4 212,1
Nigéria 57,5 3,1 3,2 3,3 176,4
México 42,7 3,4 3,4 3,1 133,2
Polônia 31,5 1,1 1,1 1,0 45,4
Tailândia 30,6 2,9 2,6 2,4 73,5
R.A.U 29,6 3,0 2,9 2,6 78,5
Argentina 22,4 1,4 1,2 1,0 33,4
Romênia 19,0 0,8 0,8 0,8 24,6
África do Sul e S.O. 18,4 2,7 2,8 2,7 47,7
Colômbia 18,1 3,2 3,3 3,2 54,9
Alemanha Oriental 17,0 0,3 0,3 0,2 17,7
Tchecoslováquia 14,2 0,8 0,6 0,5 17,2
Taiwan 12,4 2,3 2,2 1,9 25,2
Austrália 11,4 1,5 1,6 1,5 19,6
Suécia 7,7 0,5 0,4 0,4 8,8
Nova Zelândia 2,6 1,9 2,2 2,0 5,3
Israel 2,6 2,0 1,6 1,3 4,5

Fonte: Kahn e Wiener — The Year 2000.


QUADRO 7

PRODUTO NACIONAL BRUTO — DEZENOVE OUTROS PAÍSES

Produto Nacional Bruto(bilhões de


Taxas de crescimento do
dólares de 1965)
PAÍS produto real(% ao ano)
2000
1965
Baixa Mediana Alta Baixa Mediana Alta

Polônia 3 5 6 30,3 85 167 233


Alemanha Oriental 3 5 6 26,8 75 148 206
Brasil 3 4,5 7 23,0 65 107 246
Austrália 3 4 5 22,9 64 90 126
Tchecoslováquia 3 5 6 22,0 62 121 169
México 3 4,5 6 19,4 55 91 149
Suécia 3 4 5 19,3 54 76 106
Romênia 3 5 6 14,4 40 79 111
Argentina 2 4 5 11,0 22 43 61
Paquistão 2 5 6 10,5 21 57 80
Indonésia 2 3 6 10,4 21 29 80
África do Sul e S.O. 3 4,5 5 9,26 26 43 51
Nova Zelândia 3 3,5 4 5,10 14 17 20
Colômbia 3 4 5 5,0 14 20 28
R. A. U 3 6 7 4,9 14 38 52
Nigéria 3 4,5 5 4,75 13 22 26
Tailândia 3 6 7 3,85 11 30 41
Israel 4 6 7 3,40 13 26 36
Taiwan 4 6 8 2,74 11 21 40

Fonte:Kahn e Wiener — The Year 2000.

QUADRO 8

RENDA PER CAPITA — DEZENOVE OUTROS PAÍSES

Renda per capita


PAÍS
(dólares de 1965)

1965 2000
Suécia 2497 8679
Austrália 2009 4612
Nova Zelândia 1932 3195
Alemanha Oriental 1574 8355
Tchecoslováquia 1554 7046
Israel 1334 5839
Polônia 962 3680
Romênia 757 3224
África do Sul e Sudoeste 503 906
Argentina 492 1300
México 455 680
Brasil 280 506
Colômbia 277 359
Taiwan 221 837
R.A.U 166 480
Tailândia 126 402
Indonésia 99 123
Paquistão 91 200
Nigéria 83 125
Fonte:Kahn e Wiener — The Year 20C0.
1.4 — Variações Brasileiras em torno das Projeções de Kahn e Wiener
Pelo que vimos na secção anterior, as projeções de renda per
capita contidas no livro "The Year 2000" são muito pouco alentado-
ras para o Brasil. A esperança que podemos nutrir é a de que Kahn
e Wiener tenham construído as projeções medianas para o nosso fu-
turo com base em hipóteses excessivamente pessimistas. Os 506 dó-
lares per capita previstos para o ano 2000 resultam da suposição
de que a nossa população cresça de 3,1% ao ano até 1975, de 2,9%
ao ano daí até 1985, e de 2,4% anuais nos últimos quinze anos do
século, e de que o produto real cresça de 4,5% ao ano. As proje-
ções demográficas extrapolam plausivelmente os resultados dos úl-
timos censos, com a hipótese complementar de que o desenvolvimento
contenha levemente as taxas de natalidade. A taxa de crescimento
prevista para o produto real, no entanto, é inferior à média re-
gistrada nos últimos cinqüenta anos e, sobretudo, aos índices al-
cançados no período de após-guerra, como atestam os dados do Qua-
dro 9.

QUADRO 9

TAXAS DE CRESCIMENTO DO PRODUTO REAL BRASILEIRO*

Período (% ao ano)

1920/1967 4,8
1946/1967 5,2
1950/1961 5,9
1950/1967 5,1
1956/1961 7,0
* Taxas médias geométricas interpoladas entre extremos.
Fonte:Fundação Getúlio Vargas.

Dentro da idéia de Kahn e Wiener, segundo a qual o culto do


crescimento tenderá a reproduzir, no último terço do século, os
bons índices de crescimento do período de após-guerra, sentimo-nos
incentivados a desenvolver algumas variações em torno das proje-
ções do Hudson Institute. É verdade que, nos quinze anos que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial, o Brasil dispôs de condições
excepcionais para se desenvolver a taxas aceleradas sem grandes
sacrifícios, como veremos no próximo capítulo. Em todo o caso, po-
demos aceitar, com certo otimismo, que os caminhos menos óbvios
possam ser trilhados com igual sucesso, mediante um pouco mais de
racionalidade e esforço de desenvolvimento. Nesse sentido, o pri-
meiro exercício a que nos podemos dedicar é o de considerar razoá-
veis as projeções demográficas de Kahn e Wiener, mas alterar as
taxas de crescimento do produto real. O Quadro 10 a seguir mostra
os resultados desses cálculos.

QUADRO 10
Projeções para o ano 2000
Taxa de cresci-
Produto total População Renda per
mento do produto
real (% ao ano) (bilhões de dó- (milhões de capita (dólares
lares de 1965) habitantes) de 1965)
4,5 107,4 212,1 506
5,0 126,9 212,1 598
5,5 149,8 212,1 706
6,0 176,8 212,1 834
6,5 208,4 212,1 983
7,0 245,6 212,1 1.158

O segundo exercício que podemos desenvolver é o de construir


novas projeções sob a hipótese de que a taxa de crescimento demo-
gráfico se reduza substancialmente. Admitamos, a título de exemplo
que, pela aplicação dos métodos de controle da natalidade, essa
taxa caia de 3,1% a.a. entre 1965 e 1970, para 2,0% a.a. entre
1970 e 1980, e para 1,0% a.a. nos últimos vinte anos do século.
Com esse declínio se inverteria a tendência explosiva das taxas de
aumento demográfico que se vêm registrando há quase um século, em-
bora ainda assim a nossa população continuasse crescendo mais ra-
pidamente do que a das nações desenvolvidas. Dentro dessa nova hi-
pótese, as projeções para o ano 2000 seriam as constantes do Qua-
dro 11.

QUADRO 11
Projeções para o ano 2000
Taxa de cresci-
Produto total População (mi- Renda per capi-
mento do produto
real (% ao ano) (bilhões de dó- lhões de habi- ta (dólares de
lares de 1965) tantes) 1965)

4,5 107,4 142,4 754


5,0 126,9 142,4 891
5,5 149,8 142,4 1.052
6,0 176,8 142,4 1.242
6,5 208,4 142,4 1.463
7,0 245,6 142,4 1.725

Esses exercícios, embora não passem de simples manipulações de


progressões geométricas, nos levam a algumas conclusões interes-
santes. A primeira é a de que a mecânica dos juros compostos deixa
grande latitude de indeterminação na futurologia econômica — não
se pode ter a pretensão de prever as rendas per capita para o ano
2000 com a mesma precisão e com a mesma tranqüilidade com que os
astrônomos prevêem a ocorrência de eclipses. Os nossos exercícios,
que não chegam a esgotar toda a gama de hipóteses, plausíveis, a-
pontam para o fim do século uma renda per capita brasileira de 506
a 1.725 dólares anuais, o que corresponde a uma indeterminação em
escala superior a um para três.
A segunda conclusão é a de que, pelo menos dentro do atual ho-
rizonte tecnológico, não há milagre econômico que permita que se
recupere em um terço de século, o tempo perdido das gerações pas-
sadas. Ainda que o crescimento brasileiro se processe em condições
extremamente favoráveis, tanto no que tange ao aumento do produto
real quanto no que diz respeito ao controle da explosão demográfi-
ca, dificilmente chegaremos no ano 2000 à atual renda per capita
da Inglaterra, da França ou da Alemanha. Essa observação não nos
deve desanimar quanto aos esforços de crescimento, pois é sempre
preferível o desenvolvimento mediano ao subdesenvolvimento fla-
grante. Mas serve para nos convencer de que desenvolvimento é pro-
cesso de longo prazo, que exige sacrifício e paciência, insuscep-
tível de ser alcançado por súbitos passes de mágica como alguns
desejam.
A terceira conclusão a se extrair é a de que o nosso atraso em
relação aos países desenvolvidos dificilmente se atenuará, a menos
que estes últimos sofram algum processo imprevisto de estagnação,
ou que consigamos conter a nossa explosão demográfica. A previsão
de Kahn e Wiener segundo a qual a relação renda per capita dos Es-
tados Unidos e a do Brasil passará de 12,7 vezes em 1965 para 20,1
vezes no ano 2000, talvez se possa considerar pessimista, por par-
tir da hipótese de que o nosso produto real só crescerá de 4,5% ao
ano no próximo terço de século. Mas, se substituirmos essa taxa
pelos 6% ao ano habituais nos planos do governo, e se conservarmos
as previsões demográficas do Hudson Institute, concluiremos que no
ano 2000 o padrão médio de vida americano ainda será 12,2 vezes
superior ao nosso — o que praticamente corresponde à mesma dis-
tância relativa atual. Em suma, a vantagem que um esforço especi-
almente intenso de desenvolvimento nos possa conferir, dificilmen-
te anulará a resistência passiva da explosão demográfica.
São essas as principais considerações que nos são sugeridas
pelas projeções do livro "The Year 2000", no que diz respeito ao
Brasil. Não as devemos encarar como um vaticínio fatídico do futu-
ro do país, pois, em períodos longos, os fatos freqüentemente de-
safiam a imaginação dos economistas. Mas elas nos valem como ad-
vertência, apontando os fatores sobre os quais devemos agir se não
nos quisermos perpetuar na condição de país do futuro.
Capítulo II
A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE DESENVOLVIMENTO: 1920/1967

2.1 — O Crescimento do Produto Real

Seria ocioso lembrar que o principal obstáculo ao estudo da


experiência brasileira de desenvolvimento reside na insuficiência
de séries estatísticas dignas de confiança. Os historiadores de
nossa economia têm feito o possível para reunir informações quan-
titativas sobre o nosso passado, às vezes até ligando os elementos
com boa dose de imaginação. Em geral, porém, os resultados são pu-
ramente impressionistas. Para citar um exemplo, há fundadas razões
para se suspeitar de que o nosso Império, tão decantado nos livros
para a infância, foi um período de relativa estagnação, talvez pe-
lo domínio da tradição bacharelesca sobre o espírito empresarial.
Contudo, é difícil documentar numericamente essa conjectura. Fe-
lizmente, para os últimos cinqüenta anos, dispomos de um pouco
mais de informações objetivas. Recentemente a Fundação Getúlio
Vargas conseguiu construir uma série de índices do produto real,
remontando a 1920, a qual, por maiores imprecisões que contenha,
melhora a objetividade da análise da experiência brasileira de de-
senvolvimento.
Comecemos pois em 1920. Nesse ano a população brasileira era
pouco superior a 27 milhões de habitantes. Em moeda de poder aqui-
sitivo de 1965, a renda per capita devia ser da ordem dos 100 dó-
lares anuais, talvez com menores desigualdades regionais do que
hoje, mas certamente com acentuadas diferenças pessoais. Cerca de
70% da população ativa vivia na agricultura. A indústria ainda en-
gatinhava, limitando-se à produção de bens de consumo corrente,
principalmente no setor têxtil e no de produtos alimentares. O
consumo de cimento se limitava a 173 mil toneladas anuais, o de
ferro-gusa a 85 mil toneladas, ambos inteiramente supridos por im-
portações. A potência elétrica instalada não ia além de 367 mil
kW. E o país era fortemente dependente do comércio com o exterior,
as exportações representando 17% e as importações 20% do produto
interno bruto.
Entre 1920 e 1967 o produto real cresceu, em média de 4,8% ao
ano, a agricultura se expandindo de 4,1% anuais, a indústria de
6,1%, o comércio de 5,0%, os transportes e comunicações de 7,2% ao
ano. Tendo em vista que em boa parte desse período ainda não se
praticava o culto do desenvolvimento, e que no decênio de 1930 o
mundo esteve mergulhado na Grande Depressão, esse foi um resultado
bastante satisfatório. Em matéria de crescimento da renda real per
capita a taxa foi menos brilhante — 2,3% ao ano, em média — devido
à nossa tradicional explosão demográfica. Contudo, no confronto
com a maioria dos países, essa taxa representou uma média razoável
para os últimos cinqüenta anos. Isso mostra que o nosso atraso em
relação às nações desenvolvidas não se acumulou no presente sécu-
lo, mas foi herança dos séculos anteriores.
Mas passemos à análise por períodos. No decênio de 1920, o
produto real cresceu, em média, de 3,7% ao ano. A agricultura, a
indústria e o comércio se expandiram praticamente à mesma taxa mé-
dia (3,3% e 3,4% ao ano), os maiores índices de crescimento se
tendo registrado nos transportes (8,1% anuais). Embora entre 1920
e 1930 a potência elétrica instalada quase tenha duplicado, e as
primeiras iniciativas tenham surgido na siderurgia e na produção
do cimento, não houve mudança substancial na estrutura econômica
do país. De fato, entre 1923 e 1927 o índice de produção industri-
al praticamente não aumentou (tendo caído nos anos intermediá-
rios), em boa parte devido ao liberalismo da política de importa-
ções. E nos últimos anos do período começou a surgir o problema da
crescente superprodução de café, estimulada pela sustentação de
preços introduzida pelo Governo.
Bem mais satisfatório parece ter sido o desempenho da economia
brasileira no decênio de 1930, particularmente quando se têm em
conta as condições mundiais de crise. O impacto imediato da Grande
Depressão foi a queda substantiva da nossa receita cambial, de
445,9 milhões de dólares em 1929 para 180,6 milhões em 1932. Numa
economia reflexa, liderada pela exportação de produtos primários,
essa poderia ter sido a origem de um severo colapso do produto re-
al, do emprego e do balanço de pagamentos. Contudo, as medidas to-
madas pelo Governo conseguiram neutralizar os efeitos da crise
mundial, abrindo inclusive o caminho para um processo de rápida
recuperação a partir de 1932. No campo do comércio exterior, gra-
ças a uma combinação de controles quantitativos e de desvaloriza-
ções cambiais, as importações foram reduzidas de 416,6 milhões de
dólares em 1929 para 108,1 milhões em 1932. A renda interna dos
exportadores foi bastante protegida pela sustentação governamental
dos preços do café (que, em 1929, era responsável por 71% da re-
ceita cambial) e pela famosa queima dos excedentes — política que
impediu a retração abrupta da demanda global. Assim, entre 1929 e
1931 (o ano mais fundo da crise no Brasil, a julgar pelos índices
da Fundação Getúlio Vargas) a queda do produto real foi de 9,7%,
percentagem relativamente suave no quadro internacional da época;
e, em 1934, todos os principais índices de atividade econômica já
superavam os de 1929. Por outro lado, as dificuldades de suprimen-
to externo, resultantes da queda da capacidade para importar, es-
timularam o desenvolvimento da indústria nacional em ritmo sem
precedentes — numa primeira fase pelo aproveitamento das instala-
ções ociosas existentes, numa segunda etapa pela efetiva ampliação
do parque manufatureiro. Não só se expandiram as indústrias tradi-
cionais (têxtil e produtos alimentares), como ganharam novas di-
mensões certos setores que pouca expressão possuíam no decênio de
1920 — a metalurgia, a fabricação de produtos químicos e a de ci-
mento1. Em conjunto, o Brasil não só parece ter contornado satisfa-
toriamente a Grande Depressão, como nela ter encontrado motivação
para a mudança de sua estrutura econômica no sentido da industria-
lização. Em média, entre 1930 e 1940 o produto real cresceu de
4,6% ao ano, o produto industrial se expandindo de 5,2% anuais,
taxas extremamente favoráveis para um período de recessão mundial.
Um novo impulso de industrialização iria ser provocado pela
Segunda Guerra Mundial. Com a escassez internacional de vários
produtos e com as dificuldades de transporte marítimo, o volume

1
Entre 1930 e 1940 a produção de cimento Portland aumentou de 87 mil para 745 mil toneladas anuais.
físico de importações caiu de 41% entre 1939 e 1942. As exporta-
ções, embora sofrendo alguma redução em quantidade, ganharam em
diversificação e foram beneficiadas pela melhoria das relações de
trocas. Essas condições do comércio com o exterior geraram fortes
tensões inflacionárias internas e forçaram o racionamento de vá-
rios produtos. Em compensação o país pôde acumular um bom volume
de reservas em divisas e a indústria nacional, afastada a concor-
rência externa, expandiu-se em ritmo bastante rápido. Assim, se-
gundo os índices da Fundação Getúlio Vargas, entre 1940 e 1947 o
produto real pôde crescer de 5,1% ao ano, a componente industrial
aumentando, em média, de 6,5% anuais.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, a primeira preocupação do
Governo parece ter sido de desafogar a demanda de importações. Com
a intensidade da procura reprimida, com a alta internacional dos
preços e com o bloqueio de alguns de nossos saldos externos, as
reservas cambiais se esgotaram rapidamente. Em 1248, restabelece-
ram-se os controles quantitativos de importações por intermédio da
CEXIM. Em face da incessante escassez de dólares, firmou-se desde
então a política de incentivo à industrialização, baseada na forte
proteção contra a concorrência externa, primeiro pelo regime das
licenças de importação (que eram negadas para os produtos com si-
milar nacional), depois pelo sistema de taxas múltiplas de câmbio,
e mais tarde pela introdução de pesadas tarifas aduaneiras.
Entre 1947 e 1956, dentro dessa política de desenvolvimento
liderada pela industrialização substitutiva de importações, o pro-
duto real cresceu de 5,6% ao ano em média. A taxa de expansão da
agricultura não foi particularmente brilhante — 3,9% ao ano — mas
a do setor secundário atingiu a média anual de 8,8%. Dessa feita a
industrialização não mais se limitou à ampliação das atividades
tradicionais, mas se aprofundou na produção de matérias-primas e
bens de capital que até então eram exclusivamente supridos por im-
portações.
Entre 1956 e 1961 o Brasil alcançou as taxas de crescimento
mais espetaculares dos últimos cinqüenta anos. O produto real ex-
pandiu-se, em média, de 7% ao ano, a componente agrícola aumen-
tando de 5,8% a. a industrial de 11,1% anuais. A fórmula de desen-
volvimento então adotada foi a de industrialização a qualquer cus-
to, escudada em fortíssima proteção aduaneira e apoiada por gran-
des incentivos cambiais, e a proliferação das grandes obras públi-
cas federais, de acordo com o Programa de Metas do Governo Kubits-
chek. É verdade que esse crescimento eufórico se baseava numa po-
lítica fácil de substituição de importações e numa exploração de
vantagens a curto prazo que iria transferir sérios problemas para
o decênio de 1960. É verdade também que os índices do produto real
amplificam o êxito da política de desenvolvimento no período em
questão pela presença de três distorções estatísticas. Primeiro,
por levarem em conta a superprodução de café, estimulada pelos ex-
cepcionais preços externos alcançados entre 1953 e 1955; dentro
dos "cobwebs" longos das culturas perenes, a partir de 1957 come-
çaram a se acumular os estoques invendáveis da rubiácea, em boa
parte responsáveis pelo crescimento de 5,8% da produção agrícola
(o que, normalmente seria uma taxa quase excepcional, dada a baixa
elasticidade-renda da procura de produtos alimentares). Segundo,
porque os índices de produto real superestimam a melhoria do bem-
estar material quando o desenvolvimento é liderado por uma substi-
tuição de importações fortemente apoiada na proteção aduaneira: as
indústrias novas, exatamente as que mais crescem, entram nos índi-
ces com um peso inflado pela ineficiência de seus custos. Tercei-
ro, porque os índices de produto real também superestimam os re-
sultados do desenvolvimento quando a oferta de determinados bens e
serviços passa a ser racionada; e, entre 1956 e 1961, agravou-se o
racionamento de diversos serviços — habitação, abastecimento de
água, telefones, para citar três exemplos1. Em todo o caso é fora
de dúvida que o período em questão não se destacou apenas pelo ê-
xito estatístico: foi uma fase em que se modificou profundamente a
estrutura econômica do país e em que se implantou uma fórmula de
desenvolvimento, a qual, se não é profícua a longo prazo, pelo me-
nos se deve considerar digna de análise.
Desde 1962 as taxas de crescimento do produto real têm sido
bem menos brilhantes (sobretudo quando expostas à subtração demo-
gráfica), em virtude de uma série de anomalias que levaram alguns
pessimistas a encampar a tese algo estranha da estagnação estrutu-
ral da economia brasileira. Em 1962 e 1963 as taxas de aumento do
produto real se limitaram respectivamente a 5,4% e a 1,6% em parte
pelas distorções herdadas do período anterior, em parte pela agi-
tação política e pela instabilidade institucional promovidas no
Governo João Goulart, em parte pelas condições climáticas adversas
que prejudicaram a produção agrícola. Após a Revolução de 31 de
março de 1964 o Governo procurou implantar uma política que visava
simultaneamente à contenção da taxa inflacionária e à retomada do
desenvolvimento. Como os dois objetivos facilmente entram em con-
flito a curto prazo (embora não num horizonte mais amplo), e como
era indispensável situar o combate à inflação como prioridade cro-
nológica, não é surpreendente que as taxas de aumento do produto
real tenham sido provisoriamente insatisfatórias nos últimos anos:
3,1% em 1964, 3,9% em 1965, 3,4% em 1966 e 4,9% em 1967. Há indí-
cios de que o crescimento em 1968 foi bem mais convincente, mas,
até o momento em que se escrevia este livro, não se dispunha de
suficiente informação estatística a esse respeito.

2.2 — Composição da Despesa Nacional Bruta

As estimativas das Contas Nacionais da Fundação Getúlio Vargas


fornecem, para o período 1947/1966 a decomposição da renda nacio-
nal bruta a preços de mercado por classes de despesas: consumo
pessoal, consumo do governo, formação bruta de capital fixo, vari-
ação de estoques, capacidade de importar menos importações. As es-
timativas em questão são apresentadas em valores nominais, e em
preços constantes de 1953. Como nosso interesse é o de analisar
uma experiência de desenvolvimento, afastando as variações de pre-
ços relativos, concentraremos a maior parte de nosso estudo nas

1
É possível, não obstante, que o crescimento do setor terciário tenha sido subestimado. O Apêndice I explica alguns
pormenores técnicos dessas distorções dos índices do produto real.
séries a preços constantes de 1953. Transformadas em percentagens
do produto nacional bruto, essas estimativas se acham transcritas
no Quadro 13. Antes de tirar qualquer conclusão vale notar que,
como muitas outras estatísticas brasileiras, essas estimativas fo-
ram construídas com base em certas hipóteses algo ousadas, em face
da insuficiência de informações diretas. Assim, a formação bruta
de capital fixo só pôde ser calculada pelos critérios ortodoxos
(compras de novos equipamentos mais valor de novas construções)
para os anos de 1949 e 1958, e ainda aí foi necessário incluir no
valor dos equipamentos uma percentagem mais ou menos arbitrária a
título de margem de comercialização. Para os demais anos, a forma-
ção bruta de capital fixo foi obtida extrapolando ou interpolando
esses dados básicos por um índice que combina o consumo aparente
de matérias-primas e as importações de bens de capital. Assim, a
fidedignidade da série está condicionada à hipótese de que esse
índice realmente reflita com precisão as flutuações nos investi-
mentos fixos. Também, por falta de informações, o consumo pessoal
teve que ser calculado como resíduo, a partir das estimativas do
produto e das demais componentes da despesa. Nessas condições, um
erro na cifra de investimento dá lugar a um erro de sinal contrá-
rio na estimativa do consumo pessoal.

QUADRO 12
TAXAS ANUAIS DE CRESCIMENTO DO
PRODUTO REAL POR SETORES
(% a.a)

SETOR 1920/1930 1930/1940 1940/1947 1947/1956 1956/1961 1961/1967 1947/1967 1920/1967

Agricultura 3,4 4,3 3,9 3,9 5,8 3,7 4,3 4,1


Indústria 3,3 5,2 6,5 8,8 11,1 3,8 7,8 6,1
Comércio 3,4 4,6 4,7 6,4 8,0 4,3 6,2 5,0
Transportes e
Comunicações 8,1 5,1 8,5 7,9 8,8 5,1 7,3 7,2
Governo – - - 2,4 2,4 2,4 2,4 -
Serviços – - - 3,0 3,0 3,0 3,0 -
Aluguéis – - - 3,6 3,6 3,6 3,6 -

PRODUTO REAL 3,7 4,6 5,1 7,0 7,0 3,7 5,4 4,8

Fonte: Dados da Fundação Getúlio Vargas

Feitas essas ressalvas passemos à análise da composição da


despesa.
Em percentagem do produto nacional bruto, o consumo pessoal
caiu da média de 77,4% no quadriênio 1947/1950 para 70,8% no perí-
odo 1951/1964. Pelo menos dois fatores explicam essa queda da pro-
pensão média a consumir: a melhoria da renda per capita (que nor-
malmente libera maior disponibilidade de poupanças) e o aumento
líquido da carga tributária (o qual alargou a cunha entre o produ-
to nacional bruto e a renda disponível do setor privado). Alguns
economistas admitem ainda que a inflação tenha reprimido o consumo
pelo discutido mecanismo da "poupança forçada". Essa, porém, é uma
hipótese sem suficiente apoio empírico, como veremos no Apêndice
V.
QUADRO 13
COMPOSIÇÃO PERCENTUAL DA DESPESA NACIONAL BRUTA
A PREÇOS DE 1953
1947/1966
Formação
Importação
Consumo Consumo do bruta de Variação de Capacidade
ANO de bens e TOTAL
Pessoal* governo capital fi- Estoques p/importar
serviços **
xo

1947 79,4 11,6 12,1 -2,0 6,5 -7,6 100,0


1948 77,1 12,7 11,0 -0,4 6,0 -6,4 100,0
1949 77,3 13,5 11,8 -2,1 6,0 -6,5 100,0
1950 75,6 12,8 12,8 -1,9 8,1 -7,4 100,0
1951 70,2 12,6 16,3 2,8 8,4 -10,3 100,0
1952 70,0 13,0 16,5 3,3 6,3 -9,1 100,0
1953 71,0 15,2 13,1 0,6 7,7 -7,6 100,0
1954 69,8 13,3 14,7 3,1 8,1 -9,0 100,0
1955 73,0 13,5 12,4 1,2 7,9 -8,0 100,0
1956 70,5 14,7 13,2 1,5 8,2 -8,1 100,0
1957 70,9 14,3 13,8 2,1 7,6 -8,7 100,0
1958 73,7 13,7 13,8 -0,2 6,9 -7,9 100,0
1959 72,4 13,8 14,2 0,9 7,2 -8,5 100,0
1960 71,4 15,4 14,5 0,7 6,4 -8,4 100,0
1961 68,8 15,6 14,8 1,2 6,0 -6,4 100,0
1962 69,9 15,8 13,8 1,7 4,6 -5,8 100,0
1963 69,1 16,5 13,8 0,9 5,4 -5,7 100,0
1964 70,0 15,6 11,9 1,9 5,2 -4,6 100,0
1965 77,1 12,9 9,2 .. 5,3 -4,5 100,0
1966 77,2 11,5 11,0 .. 5,3 -5,0 100,0

* Inclui em 1965 e 1966 a variação do estoque


** Inclusive renda líquida remetida para o exterior
Fonte: Fundação Getúlio Vargas

A julgar pelos dados do Quadro 13, a percentagem do consumo


pessoal no produto nacional bruto teria subido para mais de 77% em
1965 e 1966. Pelo menos aí as estatísticas parecem muito duvido-
sas. Primeiro porque nesses dois anos as estimativas do consumo
pessoal agregam as das variações de estoques. Segundo porque, ain-
da que se admita um substancial aumento de estoques em 1965, che-
ga-se a um incremento exagerado para o consumo pessoal nesse ano.
Entre 1964 e 1965 o produto real cresceu de 3,9%. Supondo que, em
1965, o aumento de estoques tenha sido de 2% do produto nacional
bruto e conservando os dados do Quadro 13, conclui-se que, de 1964
para 1965, o consumo pessoal teria aumentado de 11,5% em termos
reais. Essa é uma conclusão muito estranha, pois nesse ano ocorreu
visível recesso no consumo de bens industriais.
Em percentagem do produto nacional bruto o consumo do Governo
cresceu de 11,6% em 1947 até 15,6% em 1963, daí voltando a decli-
nar até 11,5% em 1966. O crescimento até 1963 explica-se pela no-
tória liberalidade do setor público com as suas despesas corren-
tes, nas quais estava embutida uma considerável propensão ao em-
preguismo. Os esforços de contenção dos gastos públicos postos em
prática pelo Governo desde 1964, teriam sido a causa da queda da
participação do consumo público nos últimos anos da série.
A preços constantes de 1953, a taxa de formação bruta de capi-
tal fixo teria oscilado entre os seguintes valores médios:

Período Taxa média de investimentos fixos (%)

1947/1950 11,9
1951/1954 15,2
1955/1963 13,8
1964/1966 10.7
O substancial aumento da taxa média de investimentos fixos de
1947/1950 para 1951/1954 teria sido provocado pelo relaxamento dos
controles de importações (muito apertados pela CEXIM entre 1948 e
1950 e grandemente liberados em 1951 e 1952, quando se temia que a
guerra da Coréia degenerasse num conflito mundial). As menores fa-
cilidades de importação e a alta relativa dos preços dos bens de
capital (que não puderam contar com subsídios cambiais tão genero-
sos) teria sido a causa do declínio da taxa de investimentos fixos
no período 1955/1963. Um declínio ainda mais acentuado iria veri-
ficar-se no triênio 1964/1966, em virtude dos esforços de conten-
ção inflacionária aplicados pelo Governo. É muito possível, toda-
via, que esta última queda tenha sido exagerada pelas imprecisões
das estatísticas — como contrapartida da superestimativa (como re-
síduo) do consumo pessoal em 1965 e 1966.
É interessante salientar que as oscilações da taxa bruta de
investimentos no período em análise não se deveram apenas às flu-
tuações do esforço de poupança, mas muito particularmente às mu-
danças nos preços relativos dos bens de capital. O Quadro 14 des-
taca esses dois efeitos, confrontando a taxa bruta de formação de
capital (investimentos fixos mais variação de estoques) a preços
correntes e a preços de 1953. Como se pode observar, as oscilações
da taxa a preços correntes (a qual se associa ao esforço de pou-
pança) foram relativamente bem menos intensas do que as da taxa a
preços constantes. Os anos de maior taxa real de investimentos fo-
ram aqueles em que as importações de bens de capital eram benefi-
ciadas por subsídios cambiais especialmente intensos. Nos últimos
anos da série os preços relativos dos bens de capital teriam que
subir — em parte porque não seria possível sustentar esses subsí-
dios cambiais sem chegar à virtual insolvência externa, em parte
porque grande parcela dos equipamentos antes importados passou a
ser produzida no país. Essa é uma observação importante para a a-
valiação da política de desenvolvimento do decênio passado e para
o seu confronto com os métodos a serem recomendados daqui para o
futuro.
Quanto aos estoques, o seu nível absoluto caiu entre 1947 e
1950, em parte pela rápida absorção dos novos excedentes de café,
em parte pelos rígidos controles de importações aplicados na épo-
ca. Com a liberação desses controles, os estoques aumentaram subs-
tancialmente em 1951 e 1952. Entre 1953 e 1964 o crescimento anual
dos estoques oscilou em torno da média de 1,3% do produto nacional
bruto, nessa percentagem incluída a acumulação dos excedentes de
café (particularmente entre 1957 e 1961).
Examinemos agora as componentes externas da despesa nacional.
A preços constantes, a capacidade para importar cresceu entre 1947
e 1956 de 6,5% para 8,2% da renda nacional bruta, caindo nos anos
subseqüentes até 5,3% em 1965 e 1966. A expansão na primeira fase
deveu-se à considerável melhoria das relações de troca com o exte-
rior, em boa parte decorrente da alta internacional dos preços de
café. Na segunda fase o movimento das relações de trocas se inver-
teu, mas o país pôde contar com substancial ingresso de recursos
externos, sob a forma de investimentos diretos, financiamentos e,
em certos anos, pelo endividamento internacional desordenado. De
fato, até 1963, o Governo pouco cuidou de incentivar as exporta-
ções. O crescimento econômico só não chegou a ser obstado pelo
gargalo da capacidade para importar devido à melhoria das relações
de troca numa primeira fase, ao ingresso de capitais estrangeiros
numa segunda e, nos últimos anos, aos efeitos da política de subs-
tituição de importações.

QUADRO 14
TAXA BRUTA DE INVESTIMENTOS (%)

Índice dos preços


ANO A preços Correntes A preços de 1953 relativos dos bens
de capital

1947 15,9 10,1 155,4


1948 15,8 10,6 149,1
1949 13,2 9,7 136,1
1950 11,5 10,9 105,5
1951 19,0 19,1 99,5
1952 19,8 19,8 94,9
1953 13,7 13,7 100,0
1954 19,9 17,8 111,8
1955 15,7 13,6 115,4
1956 14,8 14,7 100,7
1957 15,2 15,9 96,6
1958 13,9 13,6 102,2
1959 17,0 15,1 112,6
1960 17,5 15,2 115,1
1961 18,7 16,0 116,9
1962 18,4 15,6 117,9
1963 17,6 14,7 119,7
1964 16,6 13,8 120,3
1965 10,9 9,2 118,5
1966 12,9 11,0 117,3

Fonte: Dados da Fundação Getúlio Vargas

No que diz respeito à relação entre importações e produto na-


cional bruto, a preços de 1953, foi a seguinte a sua evolução:

Período Coeficiente de importações (%)

1947/1950 7,0
1951/1954 9,0
1955/1960 8,3
1961/1963 6,0
1964/1966 4,7

No quadriênio 1947/1950 o coeficiente de importações se mante-


ve reprimido em torno de 7,0%, em virtude dos controles quantita-
tivos postos em prática pela CEXIM. Entre 1951 e 1954, o relaxa-
mento desses controles elevou o coeficiente em questão para a mé-
dia de 9,0%. Nos períodos subseqüentes a relação importa-
ções/produto baixou gradativamente até a média de 4,7% entre 1964
e 1966. Em parte esse era o resultado natural do amadurecimento da
política de substituição de importações (com certa defasagem pois,
numa primeira etapa, para substituir importações é necessário im-
portar equipamentos). Em parte, porém, os baixos coeficientes re-
gistrados a partir de 1962 parecem ter-se associado às taxas insa-
tisfatórias de crescimento do produto real. Há indícios de sensí-
vel aumento dos coeficientes de importação em 1967 e 1968, como
resultado da melhoria do ritmo de expansão da atividade econômica.

2.3 — Industrialização e Estrutura Ocupacional

Um dos problemas que mais vêm preocupando os analistas da eco-


nomia brasileira é o de como absorver os vastos contingentes adi-
cionais de mão-de-obra que anualmente afluem ao mercado de tra-
balho. Duas razões especiais fundamentam essa preocupação: primei-
ro, o crescimento explosivo da população brasileira; segundo, a
baixa taxa de criação de empregos na indústria, precisamente no
seu período áureo de expansão — o decênio de 1950.
Infelizmente são muito poucas as estatísticas sobre a distri-
buição de emprego no Brasil, as mais completas não fornecendo in-
formações posteriores a 1960. A partir dos Censos de 1940, 1950 e
1960 é fácil calcular as suas taxas anuais de crescimento nos
grandes setores da economia. Os resultados a que se chega são os
do Quadro 15 a seguir.

QUADRO 15
POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA TOTAL E SETORIAL
TAXAS GEOMÉTRICAS DE CRESCIMENTO ANUAL (% ao ano)
SETOR 1940/1950 1950/1960 1940/1960

Primário 1,4 1,7 1,5

Secundário 5,2 2,3 3,8

Terciário 2,2 5,2 3,7

TOTAL 2,1 2,8 2,4

É interessante combinar essas taxas com as do crescimento do


produto real por setores estimadas pela Fundação Getúlio Vargas.
Como resultado obtêm-se as taxas de incremento setorial da produ-
tividade apresentadas no Quadro 16.

QUADRO 16
TAXAS MÉDIAS DE CRESCIMENTO GEOMÉTRICO
DO PRODUTO POR PESSOA ATIVA
(% ao ano)
SETOR 1940/1950 1950/1960 1940/1960

Primário 2,5 2,7 2,7

Secundário 2,6 6,6 4,5

Terciário 3,6 — 0,6 1,4

TOTAL 3,4 3,0 3,3


Para o decênio de 1940 os resultados parecem bastante equili-
brados. A população ativa expandiu-se com especial intensidade no
setor secundário, precisamente o que mais rapidamente se desenvol-
veu. A taxa de crescimento da população empregada na agricultura
(1,4% ao ano) ficou razoavelmente abaixo da taxa de aumento do to-
tal da população ativa (2,1% ao ano) dentro do tradicional princí-
pio da transferência de mão-de-obra do setor rural para o urbano
com o aumento da renda per capita. E as taxas de incremento da
produtividade, embora pouco maiores no setor terciário do que nos
dois outros, não chegaram a apresentar divergências exageradas.
Para o decênio de 1950 as conclusões são muito mais surpreen-
dentes. No setor primário, a evolução do emprego e da produtivida-
de parece ter sido perfeitamente normal. Todavia, no setor líder
do desenvolvimento, a indústria, a absorção de mão-de-obra foi de-
cepcionantemente reduzida, limitando-se a 2,3% ao ano, taxa infe-
rior à do crescimento da população ativa. Naturalmente a pro-
dutividade média aumentou consideravelmente nesse setor (6,6% ao
ano). O excedente não absorvido de mão-de-obra foi alojar-se no
setor terciário, onde aumentou substancialmente o volume de empre-
go (5,2% ao ano), mas à custa do declínio da produtividade média.
Para muitos economistas esse é um sintoma de acumulação de desem-
prego estrutural. Discutiremos essa conjectura mais adiante.
A lenta absorção de mão-de-obra pelo setor secundário no decê-
nio de 1950 deveu-se, em primeiro lugar, à estrutura "capital-
intensive" das novas indústrias instaladas no país. Como se veri-
fica no Quadro 18, entre 1949 e 1966 a participação da indústria
na geração do Produto Interno Bruto aumentou de 19,1% para 29,2%.
Contudo, a produção tradicional de bens não duráveis de consumo
praticamente não se alterou em percentagem do Produto Interno Bru-
to. As grandes taxas de crescimento se verificaram nas indústrias
produtoras de bens duráveis de consumo, de bens intermediários e
bens de capital — exatamente as que operam com maior relação capi-
tal/mão-de-obra. Por outro lado, o sistema de preços incentivava o
uso intensivo do capital, pelos subsídios cambiais à importação de
equipamentos e pelas taxas reais de juros negativas criadas pela
inflação, e desestimulava a absorção de mão-de-obra pelo contínuo
aumento das pressões salariais e dos encargos trabalhistas. Não
surpreende assim, que o Brasil tenha chegado à estranha des-
proporção entre a participação da indústria no produto e no empre-
go indicada no Quadro 19. Embora os critérios estatísticos tendam
a superestimar a participação da indústria no produto e a subesti-
mar a sua contribuição para o emprego, a conclusão parece qualita-
tivamente indiscutível.
Para os adeptos da chamada escola estruturalista, essa despro-
porção foi a origem de um aumento da desigualdade de rendas indi-
viduais, responsável por um perfil inadequado da demanda e que a-
cabaria dificultando o crescimento econômico no decênio de 1960.
Como veremos no próximo capítulo, a hipótese em questão, apesar de
muito rica em termos de comunicação mística, parece bastante frá-
gil em matéria de conteúdo empírico e de lógica econômica. Talvez
nos devamos limitar a uma conclusão mais modesta: a de que o hiato
entre as participações da nossa indústria no produto e no emprego
resultou simplesmente de uma política de desenvolvimento inteira-
mente alheia ao princípio das vantagens comparativas.
Também a dramaticidade do desemprego estrutural no setor ter-
ciário parece ser exagerada pelas distorções das estatísticas. A
conjectura em questão fundamenta-se na observação de que a produ-
tividade média do trabalho nesse setor caiu de 0,6% ao ano entre
1950 e 1960. Ocorre que os índices do produto real para o setor
terciário apurados pela Fundação Getúlio Vargas foram construídos
sob hipóteses excessivamente precárias. Para duas componentes im-
portantes desse setor — os Serviços e o Governo — os índices em
questão são meras progressões geométricas que extrapolam o número
de pessoas ocupadas entre 1940 e 1950. Como entre 1950 e 1960 a
população empregada nesses setores cresceu bem mais rapidamente do
que no decênio anterior, a queda de produtividade apontada no Qua-
dro 16 é mais uma tautologia aritmética do que uma evidência eco-
nômica. Outros critérios de apuração do índice do setor terciário,
em grau equivalente de arbitrariedade, poderiam ter levado a con-
clusões inteiramente diversas. De fato, do ponto de vista estatís-
tico, o nosso setor terciário ainda é um grande desconhecido. É
possível que as indústrias "capital-intensive" implantadas no de-
cênio de 1950 tenham gerado um multiplicador de serviços bem supe-
rior ao das indústrias tradicionais. Se tal conjectura for válida,
o problema da absorção da mão-de-obra pelo setor terciário talvez
tenha sido bem menos grave do que se poderia imaginar pela análise
das estatísticas disponíveis sobre crescimento do emprego e da
produtividade média.
Essas observações mostram que a evidência empírica usualmente
apresentada nos relatórios oficiais sobre o problema do emprego no
setor terciário é extremamente frágil. Mas não conduzem à con-
clusão de que o problema se possa considerar irrelevante. Sobretu-
do daqui para o futuro há motivos para nos sentirmos bastante a-
preensivos. Entre 1950 e 1960 a nossa população cresceu explosiva-
mente. E o impacto da explosão demográfica sobre a oferta de mão-
de-obra não se manifesta instantaneamente, mas com cerca de quinze
anos de atraso. E a criação de empregos se torna problemàticamente
lenta quando declinam as taxas de crescimento do produto real, co-
mo ocorreu nos primeiros anos do decênio de 1960.

QUADRO 17
ESTRUTURA DO PRODUTO INDUSTRIAL POR USOS (%)
(em Cr$ de 1955)

Categorias de Indústria 1949 1955 1969 1966

Bens de Consumo 62,8 60,1 63,3 48,2


Duráveis 7,2 9,5 9,4 13,3
Não duráveis 55,6 50,6 43,9 34,9

Bens Intermediários 32,0 34,2 34,7 40,1

Bens de Capital 6,2 6,7 12,0 11,7

TOTAL............ 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte:Censos e Registros Industriais — IBGE.


QUADRO 18
PARTICIPAÇÃO DAS CATEGORIAS DE USO NO PIB (%)
(em Cr$ de 1955)

Categorias de Indústria 1949 1955 1959 1966

Bens de Consumo 12,0 13.8 14,5 14,1


Duráveis 1,4 2,2 2,6 3,9
Não Duráveis 10,6 11,6 11,9 10,2

Bens Intermediários 6,1 7,8 9,4 11,7

Bens de Capital 1,0 1,3 3,3 3,4

TOTAL............. 19,1 22,9 27,2 29,2

Fonte:Censos e Registros Industriais — IBGE.

2.4 — O Modelo Brasileiro de Desenvolvimento — Avaliação e Crítica

Pelo que se viu nas seções precedentes, desde 1930 o Brasil


vem adotando a política de desenvolvimento baseada na industriali-
zação substitutiva de importações. Por muito tempo, essa orienta-
ção não resultou de uma filosofia de crescimento a longo prazo,
mas simplesmente de uma série de reações mais ou menos tópicas di-
ante das dificuldades do balanço de pagamentos. Só após a Segunda
Guerra Mundial é que se firmou a idéia de que a industrialização
deveria constituir o fulcro do desenvolvimento econômico do país.

QUADRO 19
PARTICIPAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DE TRANSFORMAÇÃO
NO EMPREGO E NO PIB

% do emprego
% do produto
industrial
PAÍSES industrial
na população
no PIB
empregada

Brasil (1964) 29,9 8,26 (2)


Argentina(1964) 34,0 25 (2)
México (1964) 25,2 16 (2)
Japão (1960) 30,0 ---
Itália (média 1949/59) 30,5 24,5
Holanda (média 1949/59) 30,3 29,5
Canadá (média 1949/59) 28,2 25,3
Estados Unidos (média 1949/59) 30,3 25,6
Dinamarca (média 1949/59) 27,1 29,6
Noruega (média 1949/59) 28,4 23,4
Grécia (média 1949/59) 17,7 15,9
Espanha (média 1949/59) 23,2 18,2 (2)
Irlanda (média 1949/59) 19,3 15,5
Portugal (média 1949/59) 34,7 (1) 19,7 (2)

Fonte: "Some Factors in Economic Growth in Europe during the 1950' s"
— ONU.
Contas Nacionais do Brasil.
(1) Inclui Construção Civil.
(2) Emprego referido à População Economicamente Ativa.
Qualitativamente não há que discutir a propriedade dessa ori-
entação. A nossa pauta tradicional de exportações era composta de
produtos de demanda internacional pouco elástica. Se o país não
modificasse a sua estrutura econômica no sentido da substituição
de importações, as oportunidades de crescimento sustentáveis pela
poupança interna seriam facilmente estranguladas pelo descompasso
entre as compras ao exterior e a capacidade para importar. Descen-
do aos pormenores, no entanto, várias distorções parecem ter pon-
tilhado o crescimento da economia brasileira, particularmente de-
pois de 1950. Em primeiro lugar a erosão inflacionária, que nos
acabou levando à beira da hiperinflação no Governo Goulart. Em se-
gundo lugar, a sustentação do desenvolvimento não por um alto es-
forço de poupança, mas por uma exploração artificial da relação
capital/produto. Terceiro, o excessivo protecionismo a certos se-
tores industriais. Por último, o negligenciamento às exportações,
que se expandiram a taxas ínfimas na maior parte do período em,
análise.
Como veremos no capítulo V é muito provável que a inflação
pouca relação tenha mantido com a industrialização substitutiva de
importações. A alta geral de preços parece ter resultado simples-
mente das reiteradas tentativas de implantação de uma política de
incompatibilidade distributiva — uma política que se esforçava por
dividir o bolo em fatias de soma superior ao todo. É provável, a-
inda, que à custa do abafamento de certos períodos de euforia
transitória, o Brasil pudesse ter implantado o mesmo processo de
industrialização com muito poucas tensões inflacionárias, se os
Governos tivessem prestado maior atenção às limitações de ordem
financeira. Na realidade a inflação não parece ter-se correla-
cionado positivamente com o desenvolvimento, mas apenas o acompa-
nhado numa espécie de paralelismo espúrio. E é certo que a explo-
são inflacionária entre 1961 e 1964, pelos seus impactos imediatos
e pela posterior necessidade de sua correção, acabou criando sé-
rios prejuízos às taxas de crescimento do produto real no presente
decênio.
A exploração artificial da relação capital/produto talvez te-
nha sido estruturalmente mais importante, pois foi parte essencial
da política de desenvolvimento do decênio de 1950. Pelo que suge-
rem as Contas Nacionais, o Brasil não tem sido um país excepcio-
nalmente esforçado em matéria de taxa de poupança. O desenvolvi-
mento rápido do período 1947/1961 foi em grande parte conseguido
graças a uma relação incremental capital/produto extremamente fa-
vorável, a julgar pelos padrões internacionais: 2,2 em termos bru-
tos anuais, e em moeda de 1953. Esse excelente nível de produtivi-
dade monetária dos investimentos pôde ser sustentado graças a três
fatores: ao estilo extensivo do aumento da produção agrícola, ba-
seado não na melhoria dos rendimentos por hectare, mas na amplia-
ção da área cultivada, o que permitia que se produzisse mais com
muito pouca aplicação de capital; aos subsídios cambiais à impor-
tação de equipamentos, os quais tornavam artificialmente baixos os
seus preços; e ao negligenciamento de vários investimentos soci-
ais, em habitação, abastecimento d'água etc, os quais tradicional-
mente pioram a média da relação capital/produto. É fora de dúvida
que esses artifícios propiciaram um crescimento econômico brilhan-
te no decênio de 1950. Mas nenhum deles se poderia incorporar a
uma política estável de desenvolvimento a longo prazo. O aumento
extensivo da produção agrícola acaba frustrando a relação capi-
tal/produto por exigir vultosos investimentos complementares em
vias e meios de transporte. Os subsídios cambiais, ou são neutra-
lizados por vigorosos racionamentos, ou fatalmente conduzem a dé-
ficits insolúveis no balanço de pagamentos e que acabam impedindo
a continuidade do crescimento. E os investimentos em habitação e
infra-estrutura urbana não podem ser negligenciados a longo prazo,
sob pena de o desenvolvimento ser interrompido pelas tensões so-
ciais (sem contar o fato de que, nessas condições, os índices do
produto real passam a representar um brinquedo aritmético com mui-
to pouca substância econômica).
Toda indústria nascente costuma erguer-se com base em certo
grau de protecionismo, mas, no caso brasileiro, as taxas de defesa
contra a concorrência externa, parecem ter alcançado os níveis
mais heterodoxamente exagerados1. O horror metafísico às chamadas
importações supérfluas foi uma das causas desse rigor aduaneiro. A
idéia de que a tarifa devia ser calculada em função dos custos do
produtor nacional (ao invés da exigência de que esses custos fos-
sem limitados a partir da tarifa), foi outra das causas em ques-
tão. A teoria dos preços exibe à farta as distorções na alocação
dos recursos disponíveis provocados por um protecionismo dessa or-
dem. E, sob o prisma do desenvolvimento, duas conseqüências ainda
mais graves podem ser apontadas. Primeiro, a limitação das oportu-
nidades de diversificação das exportações. Segundo, a piora da re-
lação capital/produto, pois o protecionismo iria estender-se às
indústrias de bens de capital instaladas no país. Há quinze anos
atrás, muitas empresas do setor secundário puderam equipar-se fa-
cilmente com o auxílio dos subsídios cambiais. Hoje, para se ree-
quipar, essas indústrias são forçadas a se dirigir a produtores
nacionais de máquinas, cujos preços excedem consideravelmente os
dos similares estrangeiros, mesmo quando convertidos a taxas de
câmbio inteiramente realistas.
Por último, raros problemas foram tão negligenciados a longo
prazo no Brasil como o das exportações. O argumento qualitativa-
mente válido de que o aumento das exportações de certos produtos
primários era limitado pela baixa elasticidade da demanda interna-
cional, distorceu-se pelo abuso quantitativo. Em parte pela tônica
desenvolvimentista da substituição de importações; em parte pelo
atraso sistemático das taxas de câmbio em relação à inflação; em
parte pela ojeriza apriorística às exportações de produtos primá-
rios, fundada na confusão entre tonelada e valor; em parte pelo
excessivo protecionismo às novas indústrias que se instalavam no
país, as vendas ao exterior quase sempre representaram o setor re-
tardatário da demanda de bens e serviços. Nos quinze anos subse-
qüentes ao término da Segunda Guerra Mundial, o Brasil pôde sobre-
viver à estagnação das exportações, primeiro pela melhoria de re-
lações de trocas até 1954, segundo pelo afluxo maciço de capitais
estrangeiros, até 1961. Contudo, no primeiro trimestre de 1964
1
Certos produtos são protegidos com tarifas de 200%, de acordo com a legislação em vigor. As margens de proteção,
no entanto, ainda se mostrariam consideravelmente mais elevadas se fossem calculadas em relação aos valores adicio-
nados, como recomenda a teoria econômica.
chegamos à beira da insolvência internacional. Desde então o Go-
verno tem procurado estabelecer um sistema cambial que incentive
as exportações, mas os obstáculos herdados do decênio de 1950 ain-
da são ponderáveis. E o problema do incremento das exportações nos
deixa especialmente apreensivos quando nos lembramos de que a
substituição de importações não representa um processo interminá-
vel.
Todas essas observações mostram que o modelo de desenvolvimen-
to adotado pelo Brasil até o início do presente decênio, apesar de
propiciar brilhantes resultados a curto prazo, não oferecia a fór-
mula sólida para um crescimento contínuo a longo prazo. Daqui para
o futuro precisamos trilhar um caminho mais equilibrado de desen-
volvimento, com menor tolerância em relação à taxa inflacionária,
maior esforço de poupança, maior controle dos custos industriais,
e maior atenção às exportações.
Capítulo III
O PENSAMENTO ESTRUTURALISTA

3.1 — A Comunicação Mística

Uma teoria social dificilmente se populariza pela solidez em-


pírica e pela correção lógica. O confronto das hipóteses com a re-
alidade gera as mais ingratas desilusões, e as deduções sofistica-
das só não entediam àqueles que se ajustaram à disciplina do pen-
samento abstrato.
O pragmatismo, em teoria econômica, leva a uma série de con-
clusões bastante desagradáveis, sobretudo para os países subdesen-
volvidos: a de que a economia é a ciência da escassez, a de que o
possível costuma ficar muito aquém do desejável, e a de que o de-
senvolvimento só se alcança por uma longa estrada de sacrifícios.
Não surpreende assim que outras teorias, cientificamente defeituo-
sas mas psicologicamente mais úmidas, encontrem considerável eco
entre os economistas desses países. O segredo dessas teorias resi-
de na substituição da comunicação lógica pela comunicação mística:
a sua lógica é amiúde tortuosa, mas cada teorema vem envolvido num
jargão capaz de despertar ondas de associação de idéias que acabam
moldando a esperança de que os problemas difíceis possam solucio-
nar-se rapidamente por passes de mágica reformistas.
Não há provavelmente obra mais generosa nessa técnica de comu-
nicação mística do que "O Capital" de Karl Marx. Tome-se, por e-
xemplo, a sua teoria do valor trabalho. Dissecada em termos es-
tritamente lógicos trata-se apenas de uma teoria de formação de
preços e que conclui que o preço de uma mercadoria é proporcional
à quantidade de trabalho exigida na sua fabricação. Chega-se a es-
sa conclusão decompondo o preço de um produto qualquer no valor
das matérias-primas, salários e lucros; lembrando que o preço das
matérias-primas também resulta, em última análise, de agregação de
salários e lucros; e supondo (o que é empiricamente inaceitável)
que a relação lucro/salários seja a mesma em todas as etapas de
produção. É óbvio que nesses termos se teria apenas uma teoria in-
sípida de formação de preços, semelhante demais à de Ricardo para
considerar-se original, e defeituosa em excesso para tornar-se a-
ceitável. Substituam-se no entanto as palavras preço, matérias-
primas, salários, lucros, relação lucro/salários por outras infi-
nitamente mais sugestivas como valor, capital constante, capital
variável, mais-valia, taxa de exploração. Tem-se aí a comunicação
mística a qual, paralelamente ao árido teorema sobre preços, su-
gere uma conclusão muito mais contundente: a de que o trabalho é a
única fonte legítima do valor, cujas escalas são distorcidas pela
exploração capitalista.
Sem a grandiosidade do marxismo, o pensamento estruturalista
se baseia na mesma técnica da comunicação mística. O título, ali-
ás, é amplamente sugestivo: estruturalismo lembra a possibilidade
de se revogar a penosa aritmética do desenvolvimento pela reforma
das estruturas. Como é muito mais fácil pregar reformas (sobretudo
quando não se especifica o seu conteúdo) do que aceitar sacrifí-
cios, não surpreende que a corrente tenha encontrado fervorosos
adeptos entre certos economistas jovens. E, por sinal, é conveni-
ente salientar que, tanto na economia como na filosofia, o estru-
turalismo começou como um rótulo, à busca de uma teoria.
Como o título precedeu a formulação, o estruturalismo econômi-
co tornou-se mais um conjunto tópico de idéias do que uma teoria
suficientemente sedimentada e unificada. Uma de suas caracterís-
ticas talvez se possa considerar metodològicamente marxista: a
tentativa de fornecer explicações endógenas para certos fenômenos
que os ortodoxos atribuem a perturbações puramente exógenas. Para
citar um exemplo, os ortodoxos entendem que a inflação em certos
países latino-americanos resulta da simples tentativa de dividir o
bolo em fatias de soma superior ao todo, uma revolta contra a a-
ritmética induzida pelo chamado "efeito-demonstração". Os estrutu-
ralistas, pelo menos há algum tempo atrás (pois essa teoria parece
ter caído da moda) preferiram explicar a inflação como uma decor-
rência das modificações estruturais impostas pelo desenvolvimento
econômico. Um outro exemplo, mais específico para o Brasil, se re-
fere ao declínio da taxa de crescimento do produto real entre 1962
e 1967. Para os ortodoxos esse foi o reflexo dos desequilíbrios
herdados do decênio de 1950, da irracionalidade da política econô-
mica entre agosto de 1961 e março de 1964, e dos posteriores es-
forços de estabilização monetária. Para os estruturalistas, veri-
ficou-se apenas o resultado lógico da interrupção abrupta das o-
portunidades de substituição de importações e do estreitamento re-
lativo dos mercados imposto por esse processo.
É compreensível que, esteticamente, as teorias que procuram
reduzir ao mínimo as hipóteses, e interpretar do ponto de vista
endógeno a maioria dos fenômenos, mereçam a máxima simpatia. His-
toricamente, a mecânica newtoniana talvez tenha representado a
mais notável conquista nessa direção. Mas os esforços de Einstein
para englobar a física num modelo de campo unificado não chegaram
a nenhum resultado convincente. E, se isso ocorre na física, é na-
tural que na economia as tentativas de unificação ainda se revelem
cientificamente muito pobres. O marxismo construiu um grandioso
edifício de explicação endógena dos grandes lances da história e-
conômica — mas que só pode ser aceito quando se sacrificam à esté-
tica as regras elementares de confronto empírico. O estruturalis-
mo, até agora, tem funcionado como uma espécie de marxismo de va-
rejo que talvez irritasse o próprio autor de "O Capital". De fato,
sua tentativa é a de fornecer explicações endógenas não para as
grandes linhas, mas para os pormenores da história econômica. Com-
preende-se, por isso, que haja quem diga que os estruturalistas
nada mais fazem do que construir teorias obscuras para justificar
os desmandos dos Governos de sua simpatia.

3.2 — Problemas de Crescimento no Brasil — A Visão Estruturalista

Como é do conhecimento geral a taxa de crescimento do produto


real brasileiro, nos últimos anos, vem sendo sensivelmente inferi-
or às alcançadas no decênio de 1950. Entre 1956 e 1961 o produto
real havia crescido de 7% ao ano, em média. Em 1962, essa taxa de
crescimento caiu para 5,2%; em 1963 para apenas 1,6%; e nos anos
seguintes (até 1967), não obstante os esforços do Governo, não se
conseguiu ultrapassar a média anual dos 3,8%.
Os estruturalistas dão ao fenômeno uma explicação predominan-
temente endógena, a qual dispensa quaisquer críticas aos Governos
anteriores a 1964. O crescimento brasileiro do decênio de 1950,
segundo eles, devido à sua natureza capital-intensiva, provocou
forte concentração na pirâmide da distribuição de renda. Com isso
o mercado nacional, embora se expandindo em termos absolutos, con-
traiu-se em termos relativos. Até 1961, com o impulso da indus-
trialização, a economia brasileira pôde crescer a taxas bastante
rápidas. Mas a partir de 1962, com o arrefecimento brusco das o-
portunidades de substituição de importações, e com o estreitamento
relativo do mercado interno, a economia brasileira tornou-se inca-
paz de auto-sustentar o seu processo de crescimento.
É interessante desenvolver a tese em pormenores. Uma das me-
lhores exposições é a que se encontra no PROGRAMA ESTRATÉGICO DE
DESENVOLVIMENTO — 1968/1970 (Páginas 111-21 e seguintes). Vale Ci-
tar alguns trechos1.
"A industrialização brasileira, diferentemente dos países hoje
desenvolvidos, não foi o resultado de uma extensa e progressiva
diferenciação da estrutura econômica, com a gradual difusão de ca-
pital e tecnologia por todo o sistema, mas operou-se pela adição
de unidades tecnologicamente modernas às preexistentes, para aten-
der a uma demanda prévia até então suprida mais ou menos regular-
mente por importações. Esse processo de substituição de impor-
tações teve duas conseqüências sobre a estrutura econômica do Pa-
ís: elevou com rapidez a participação do setor secundário no pro-
duto nacional, e criou um acentuado hiato de produtividades seto-
riais, pela concentração de nova tecnologia em uns poucos setores
mais dinâmicos e pela lenta taxa de absorção de mão-de-obra na in-
dústria."
"O processo de industrialização do pós-guerra elevou a parti-
cipação da indústria no PIB, em termos reais, de 19% em 1949 para
29,2% em 1966. Num curto espaço de tempo realizou-se uma das mais
rápidas e drásticas modificações de estrutura econômica já obser-
vadas em países em crescimento. Hoje, a percentagem de 29,2% da
indústria no produto interno equivale à de muitos países desenvol-
vidos, o que sugere que o Brasil já chegou a um grau de industria-
lização razoavelmente elevado, com considerável grau de diversifi-
cação e integração. Essa percentagem, no entanto, é virtualmente a
mesma já registrada em 1961, pois nos últimos cinco anos a indús-
tria deixou de crescer mais do que proporcionalmente ao produto
real."
"Em contraste com o rápido aumento da participação do produto
industrial no PIB, chegando a percentagens típicas de países mais
desenvolvidos, a participação do emprego industrial na população
economicamente ativa manteve-se, no período 1949-1966, inferior a

1
Deve-se notar que o Programa Estratégico pouco tem de estruturalista, salvo essa exposição. O Programa, aliás, atribui
o declínio da taxa de crescimento a partir de 1962 a uma mistura de fatores conjunturais e estruturais.
10%, percentagem reduzida quando comparada com a de países de grau
de industrialização semelhante ao nosso."
"A explicação reside, principalmente, em que o processo de in-
dustrialização da década dos 50 resultou numa acentuada abertura
do leque das produtividades setoriais: o crescimento extremamente
rápido da produtividade média da mão-de-obra na indústria de
transformação e na indústria extrativa mineral não foi acompanhado
pelos outros setores. O Quadro 20 retrata essa situação, permitin-
do ver que os setores que apresentaram maiores acréscimos de pro-
dutividade, liberaram ou não absorveram mão-de-obra em termos re-
lativos, apresentaram taxas de crescimento de produtividade baixas
ou mesmo negativas."
"O exame do quadro anterior mostra que, em 1950, cerca de 33%
da população ativa possuía uma produtividade acima da média da e-
conomia, proporção que em 1960 caiu para 22%, evidenciando uma
forte concentração dos benefícios da tecnificação da economia e um
estreitamento "relativo" do mercado nacional de consumo."
"Essa concentração, juntamente com o aumento absoluto da renda
real (que entre 1950 e 1960 aumentou em 98%), e com o aumento do
número de pessoas ativas que em 1960 produziram mais do que a mé-
dia de 1950 (que foi de 41%), explicam o aumento absoluto do mer-
cado industrial. Entretanto, como no mesmo período a produção in-
dustrial mais do que duplicou, ocorreu um estreitamento "relativo"
do mercado industrial."
"De fato, o ímpeto de crescimento mantido até 1961 só se ex-
plica por se ter tratado de um processo de substituição de impor-
tações, quando as decisões de investir são orientadas pelo tamanho
absoluto dos mercados e não pela sua taxa de crescimento. Nessa
linha, o desenvolvimento industrial operou-se principalmente pelo
aprofundamento do parque manufatureiro: os setores tradicionais
expandiram-se mais ou menos na mesma proporção do PIB, com a elas-
ticidade contida pelo acima descrito "estreitamento relativo", do
mercado; em compensação, novas empresas se instalavam para produ-
zir bens duráveis de consumo, bens intermediários e bens de capi-
tal antes importados. À instalação desses novos setores dinâmicos
é que se deveu o crescimento acelerado do produto industrial, sem-
pre associado ao alongamento vertical do setor secundário. Assim,
as indústrias tradicionais, de bens de consumo não duráveis, que
em 1949 representavam 58,6% do produto industrial, respondiam ape-
nas por 39,4% do total em 1966. Já a participação dos chamados
"setores dinâmicos" produtores de bens duráveis de consumo, de
bens intermediários e de bens de capital, elevou-se nesse período
de 41,4% para 60,6%."
"Esses fatores explicam o crescimento acelerado do produto in-
dustrial até 1961. Ao mesmo tempo, porém, foram eles responsáveis
por distorções estruturais que frearam o crescimento do setor se-
cundário nos anos mais recentes."
"Como já se assinalou anteriormente, desde 1962 o produto in-
dustrial vem crescendo a taxas bastante modestas, sobretudo quando
comparadas às do decênio passado. Por outro lado, esse crescimento
vem sendo marcadamente instável; em intervalos relativamente cur-
tos, de 6 a 8 meses, alternam-se crises e recuperações, com a re-
sultante de um baixo crescimento global. Essa perda de dinamismo
pode atribuir-se a uma combinação de fatores estruturais e insti-
tucionais."
"Do ponto de vista estrutural, por volta de 1982, o parque in-
dustrial já havia chegado a um razoável grau de integração, com
limitadas possibilidades de crescimento adicional pela simples
substituição de importações ou pelo alongamento vertical do pro-
cesso produtivo. Nessas condições, o impulso para a nova fase de
crescimento industrial teria que provir ou da expansão do mercado
interno ou das exportações. Esta última possibilidade parecia re-
mota, não só pelo freqüente apelo ao artificialismo cambial, como
pelo fato de que a indústria brasileira se havia baseado em forte
proteção tarifária. Quanto à expansão da demanda interna, de um
lado era obstada pelo já aludido fenômeno do "estreitamento rela-
tivo dos mercados" resultante do hiato de produtividade associado
à industrialização substitutiva de importações; de outro lado pela
perda do dinamismo dos investimentos, numa primeira fase devido ao
caos político, numa segunda ao programa de estabilização monetária
executado no período 1964/1966. Ao mesmo tempo cessara o efeito da
demanda reprimida, que havia impulsionado certas indústrias na sua
fase de instalação, e que ao mesmo tempo incentivara o superdimen-
sionamento de certas empresas."1

QUADRO 20
PRODUTIVIDADES SETORIAIS RELATIVAS E EMPREGO
(Indústria de Transformação Æ 100)
Produtividade Relativa Taxa de crescimento Participação no Empre-
SETORES (Indústria Æ 100) anual da produtivida- go Total (%)
1950 1960 de 1950/1960 (%) 1950 1960

Agricultura 20,6 13,6 2,49 62,4 55,1


Indústria de Transformação 100,0 100,0 6,83 9,8 9,1
Extrativa Mineral 24,8 33,5 10,05 0,7 0,5
Construção 19,0 13,8 3,48 3,6 3,6
Energia Elétrica 184,1 116,3 2,04 0,2 0,3
Comércio 123,2 75,6 1,74 5,8 6,9
Transportes e Comunicações 96,2 64,7 2,69 4,2 4,9
Serviços 62,2 26,6 -1,59 10,2 12,4
Governo 113,3 24,1 -8,50 3,1 7,2

TOTAL 45,0 31,0 2,92 100,0 100,0

Fonte: Censos Demográficos (1950 e 1960) para dados sobre emprego.


Revista Brasileira de Economia e Censos Industriais do IBGE para dados sobre produto.

Tal é, em essência, a explicação estruturalista para o declí-


nio das taxas de crescimento a partir de 1961. Em face do diagnós-
tico, os partidários do estruturalismo recomendam duas soluções
para os problemas brasileiros de crescimento: a estatizante e a
distributivista. A solução estatizante parte da suposição de que,
cessadas as oportunidades de substituição de importações, perdeu-
se o dinamismo dos investimentos privados. Estes agora, condicio-
nados à expansão do mercado interno e das exportações, serão insu-

1
O final da exposição precedente obviamente associa concepções ortodoxas às estruturalistas. Diga-se de passagem, o
Programa Estratégico procura situar-se numa- "posição de ecletismo teórico, não evidenciada pelas citações acima, as
quais se concentraram nos elementos estruturalistas. Saliente-se também que o Programa Estratégico não encampa ne-
nhuma das soluções estruturalistas para os problemas brasileiros de crescimento, nem a estatizante nem a distributivista.
ficientes para sustentar a economia em pleno emprego. O remédio
será compensar a sua debilidade por um volume considerável de in-
vestimentos públicos, em proporção notadamente superior à re-
gistrada no decênio de 1950.
A terapêutica distributivista procura corrigir o "estreitamen-
to relativo dos mercados" provocado pela industrialização capital-
intensiva por meio de uma série de reformas estruturais. A solução
seria diminuir a atual desigualdade de rendas por uma política
fiscal e agrária capaz de aumentar o mercado efetivo de bens de
consumo. Com isso se impediria a proliferação da capacidade ocio-
sa, restaurando-se o dinamismo do crescimento auto-sustentável.
Como se vê, há certa semelhança entre essas recomendações e
aquelas que gozavam de curso oficial entre 1962 e março de 1964.
As conclusões, no entanto, resultam de um diagnóstico polidamente
elaborado. Vale por isso um exame pormenorizado tanto da evidência
empírica quanto do desenvolvimento lógico do modelo estruturalis-
ta.

3.3 — O Diagnóstico Estruturalista — Exame Crítico1

Para chegarmos a uma avaliação do diagnóstico estruturalista


sobre o declínio das taxas de crescimento econômico a partir de
1962, cumpre examinar quatro pontos: a) até que ponto se pode a-
ceitar a evidência empírica apresentada sobre o aumento do grau de
concentração das rendas entre 1950 e 1960; b) se tal fenômeno efe-
tivamente ocorreu, até que ponto se pode admitir que dele tenha
resultado o estreitamento relativo dos mercados; c) ainda que o
mercado em 1960 fosse relativamente mais estreito do que em 1950,
em que isso inibiria o crescimento do produto real a partir de
1962; d) até que ponto o ímpeto da substituição de importações es-
tava fadado a arrefecer-se bruscamente a partir de 1961.
Não há estatísticas satisfatórias que permitam a comparação
das distribuições individuais de renda em 1950 e 1960. Como subs-
tituto, os estruturalistas usam as cifras de produtividade média.
Isso envolve nada menos do que a hipótese arrojada de que, em cada
um dos nove setores especificados, todos os indivíduos (emprega-
dos, capitalistas etc.) sejam igualmente remunerados pela sua pro-
dutividade média.
Para os empiristas mais sisudos, essa substituição de estatís-
ticas bastaria para que o diagnóstico estruturalista fosse classi-
ficado como mera conjectura. Passemos adiante, todavia, e aceite-
mos o material empírico como válido. Apenas reformulemos o quadro
das produtividades setoriais, unificando a base 100 na produtivi-
dade média da indústria em 1950. Isso em nada afeta a análise da
estrutura distributiva das rendas (ou melhor, das produtividades)
mas tem certos efeitos em termos de comunicação mística.
Chegamos agora ao ponto essencial. Segundo os estruturalistas
o "exame do quadro anterior mostra que, em 1950, cerca de 33% da

1
O autor penitencia-se por não ter apresentado essas críticas numa época em que elas teriam sido mais úteis, antes da
publicação do Programa Estratégico, quando já era conhecido o diagnóstico estruturalista.
população ativa possuía uma produtividade acima da média, propor-
ção que em 1960 caiu para 22%, evidenciando uma forte concentração
dos benefícios da tecnificação da economia e um estreitamento re-
lativo do mercado nacional de consumo". Essa maneira de medir o
grau de desigualdade das rendas (quanto menor a percentagem acima
da média maior o índice de concentração) é má aritmética. A per-
centagem acima da média pode ser reduzida não porque o índice de
concentração seja alto, mas simplesmente por ser pequena a disper-
são das parcelas abaixo da média.
Um exemplo elementar esclarece a questão. Imaginemos que 40%
de uma população se componham de indivíduos com uma renda igual a
20; 40% de indivíduos com renda 50 e 20% de indivíduos com renda
80. A renda média (ponderada) é igual a 44; 60% da população (in-
divíduos do segundo e do terceiro grupos) possuem renda superior à
média.
Suponhamos agora que a renda do primeiro grupo aumente para
50, a dos demais permanecendo inalterada. Temos agora 80% da popu-
lação com uma renda igual a 50 e 20% com renda 80, o que dá uma
média igual a 56. Por qualquer critério aceitável, a nova distri-
buição de renda é menos desigual do que a precedente1. No entanto,
agora só 20% da população possuem renda superior à média.

SITUAÇÃO I SITUAÇÃO II

Percentagem da Renda Percentagem da Renda


população Unitária população Unitária

40 20
40 50 80 50
20 80 20 80
Renda Média: 44 Renda Média: 56

% da população % da população
com renda acima com renda acima
da média: 60 da média: 20

Outros exemplos poderiam mostrar quão impróprio é supor que a


concentração de rendas seja tanto maior quanto menor for a percen-
tagem da população com renda acima da média. (Numa distribuição
inteiramente igualitária ninguém ganharia mais do que a média.) No
caso específico das produtividades setoriais, seria importante sa-
lientar que entre 1950 e 1960 boa parte da população se transferiu
da agricultura para o setor terciário, de maior produtividade mé-
dia. Isso deu origem ao já aludido efeito de diminuição da disper-
são relativa das parcelas abaixo da média.
De fato os estruturalistas andariam melhor se, ao invés de
tentar medir a desigualdade de produtividades pelas percentagens

1
O índice de concentração de Lorenz teria baixado de 27,3% para 8,6%.
acima ou abaixo da média, usassem um índice de concentração con-
vencional, como o de Lorenz1. Os cálculos, no caso, mostrariam que
o índice de Lorenz realmente aumentou de 1950 para 1960. Mas esse
aumento não foi muito expressivo — de 39% para 42%. Isso parece
muito pouco para justificar tão dramática teoria do estreitamento
relativo dos mercados. E é provável que esse aumento do índice de
Lorenz ainda tenha sido exagerado por uma subestimação da produti-
vidade do setor terciário em 1960. Com efeito, as produtividades
médias nos setores "Serviços" e "Governo" foram calculadas a par-
tir dos índices de produto real por setores publicados pela Funda-
ção Getúlio Vargas. Quem examinar esses índices notará que eles
são simples progressões geométricas, com taxas anuais de cresci-
mento de 3,0% para os Serviços e 2,4% para o Governo. Essas taxas
correspondem ao crescimento do emprego nesses setores entre 1940 e
1950 e foram extrapoladas para o resto da série, talvez por falta
de melhores informações. Mas é de se imaginar que elas subestimem
o crescimento do setor terciário no decênio de 1950, o qual se
processou a taxas bem mais rápidas do que no de 1940. Aliás, algu-
mas comparações simples sugerem a efetiva ocorrência dessa subes-
timativa. Pelas progressões geométricas do índice do produto real,
entre 1950 e 1960, a expansão das atividades do Governo foi de
27%, e a dos Serviços de 35%. Já se usássemos a série de rendas
nominais divididas pelo deflator implícito do Produto Interno Bru-
to, essas percentagens de expansão cresceriam para 69% e 59%, res-
pectivamente.
Como se vê, a evidência empírica apresentada pelos estrutura-
listas quanto ao aumento da desigualdade de rendas entre 1950 e
1960 é excessivamente frágil. Mas aceitemos a conjectura. Supondo
que efetivamente a distribuição de renda se tenha concentrado, até
que ponto isso se poderia considerar causa de estreitamento rela-
tivo do mercado nacional de consumo? Uma redistribuição de renda,
antes de alterar o nível total da demanda, modifica a sua com-
posição. Para dar um exemplo, se transferirmos recursos dos que
ganham 20 salários mínimos para os que só recebem um salário míni-
mo, é de se esperar que a demanda de alimentos aumente; mas a de
automóveis deverá decrescer. Para se avaliar o impacto de qualquer
política redistributiva sobre a procura de bens e serviços é pre-
ciso conhecer as elasticidades da demanda dos diferentes produtos
nos diversos níveis de renda. É claro que se, em 1960, a distribu-
ição de renda no Brasil fosse mais igualitária, teríamos uma com-
posição diferente da procura por setores. Mas nada leva a crer que
essa distribuição fosse mais eficiente para o crescimento econô-
mico no decênio de 1960. Sobretudo se lembrarmos que o aparelho
produtivo do país foi montado para a distribuição da renda exis-
tente, e não para qualquer outra desejada pelos estruturalistas.
Poder-se-ia alegar, que do ponto de vista agregativo, as clas-
ses de renda alta possuem menor propensão marginal a consumir do
que as de renda mais baixa. Assim sendo, uma concentração de ren-
das diminuiria, em termos relativos, o mercado nacional de consu-
mo. Vejamos se esse efeito é relevante. Se tal acontecesse, por
volta de 1960, quando a economia obviamente funcionava a plena ca-

1
O Apêndice II explica o sentido desse índice de concentração.
pacidade, deveríamos estar com uma taxa de poupança exagerada. Es-
sa é uma conjectura agressivamente inaceitável.
Mas abandonemos toda a evidência empírica, e admitamos que,
por volta de 1960, o mercado nacional de bens de consumo fosse re-
lativamente muito estreito. Isso teria inibido os investimentos
privados, segundo os estruturalistas, no momento em que se arrefe-
ceu bruscamente o processo de substituição de importações. Essa é
uma estranha teoria do investimento baseada na confusão entre ní-
vel absoluto e taxa de crescimento. Nunca se conseguiu construir
uma teoria inteiramente satisfatória do investimento privado, mas
parece claro que uma das suas motivações reside no aumento da pro-
cura (princípio de aceleração). Não se deve confundir, porém, au-
mento da procura com seu tamanho absoluto. Este poderia ser limi-
tado, em virtude do hipotético estreitamento relativo dos merca-
dos. Mas não necessariamente o seu aumento ano a ano. Naturalmente
é possível constatar que entre 1962 e 1967 a procura interna, em
termos reais, cresceu menos rapidamente do que no final do decênio
de 1950. Mas essa é uma simples verificação a posteriori — a pro-
cura cresceu lentamente porque o país pouco se desenvolveu, o que
nada tem a ver com a suposição de que a procura estivesse estrutu-
ralmente fadada à semi-estagnação a partir de 1962.
Finalmente, por que o arrefecimento brusco das oportunidades
de substituição de importações após 1961? É claro que um processo
intenso de substituição de importações não dura indefinidamente,
mas um amortecimento gradual parece muito mais plausível do que um
esmorecimento abrupto. Por que o ano-limite mágico de 1961? Nessa
altura ainda restavam apreciáveis oportunidades de substituição de
importações (na indústria química, por exemplo).
Mais uma vez, pode-se constatar, pelas estatísticas, que a
substituição de importações se arrefeceu bruscamente em 1962. Essa
é, no entanto, outra simples verificação a posteriori. As oportu-
nidades de substituição ainda existiam, mas não se efetivaram por-
que outros fatores (nada estruturais) inibiram os investidores
privados.
Toda a argumentação acima mostra quão frágil é de se conside-
rar o diagnóstico estruturalista da semi-estagnação brasileira a
partir de 1962. Na realidade qualquer explicação estrutural parece
dispensável quando se recorda a violência das perturbações exóge-
nas que incidiram sobre a economia brasileira. Lembremo-nos das
distorções inflacionárias e cambiais herdadas do fim do decênio de
1950; do caos político e da irracionalidade administrativa entre
1962 e março de 1964; e dos subseqüentes esforços para reduzir a
taxa de inflação de 90% para 25% ao ano. Diante de tudo isso o que
talvez nos surpreenda é que o produto real brasileiro ainda tenha
conseguido expandir-se a taxas próximas de 4% ao ano. E o diagnós-
tico estruturalista talvez nos lembre o que na França se denomina
"chercher midi à quatorze heures".

3.4 — A Terapêutica Estruturalista e o Keynesianismo Prematuro

Por mais agudas que sejam as divergências entre os economis-


tas, num ponto parece existir a concordância quase unânime da
classe: a de que a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda re-
presenta a obra econômica mais importante escrita no presente sé-
culo. Ao que tudo indica, porém, os estruturalistas avançaram de-
mais na admiração keynesiana, tentando transpor o seu modelo para
um caso particular em que ele nada tem de aplicável.
Apesar do título, a teoria de Keynes, como bem acentuou Schum-
peter, está longe de constituir uma Teoria Geral. Trata-se, ao
contrário, de uma análise muito particular das depressões com a-
bundância de liquidez em países desenvolvidos, como a que se veri-
ficou no decênio de 1930. O diagnóstico de Keynes é o de que tais
depressões resultam da insuficiência da procura global de bens e
serviços, devido à escassez de oportunidades para investir em com-
paração com o potencial de poupança. A terapêutica reside no au-
mento de gastos públicos (de consumo ou investimento), ainda que à
custa de deficits orçamentários, a fim de injetar uma componente
autônoma de procura adicional no sistema econômico; e, colateral-
mente, na adoção de medidas que incrementem o consumo pessoal.
Três fatores tornaram excepcionalmente importante a contribui-
ção de Keynes à análise econômica. Primeiro, o alcance prático da
terapêutica anti-recessiva, a qual evitou, desde o término da Se-
gunda Guerra, a ocorrência de qualquer depressão profunda nos paí-
ses desenvolvidos; se a teoria dos ciclos econômicos caiu de moda,
isso se deve em grande parte ao conhecimento generalizado da polí-
tica fiscal keynesiana. Segundo, a originalidade do seu desafio a
certos preceitos tradicionais da economia clássica, como o da in-
tocabilidade do equilíbrio orçamentário. Terceiro, a estrutura de
sua construção lógica, a qual serviu para inspirar todos os mode-
los macroeconômicos posteriormente desenvolvidos. Apesar disso, a
teoria de Keynes parte de hipóteses bastante particulares, que e-
ram extremamente relevantes para os países desenvolvidos no decê-
nio de 1930, mas que em nada parecem ajustar-se aos problemas atu-
ais das nações subdesenvolvidas. Trata-se em primeiro lugar, de
uma teoria de curto prazo, preocupada com o nível do produto e do
aproveitamento dos fatores de produção em determinado instante,
mas descuidada de qualquer problema de crescimento a longo prazo.
Trata-se, em segundo lugar, de uma teoria aplicável a países situ-
ados numa fronteira tecnológica onde volta e meia as oportunidades
para investir se tornam escassas. Por último, a depressão diagnos-
ticada por Keynes coexiste com grande folga de liquidez monetária.
Uma recessão associada a uma crise de crédito deve ser curada por
meios inteiramente diversos.
Os remédios estruturalistas recomendados para o Brasil são de
inspiração nitidamente keynesiana. Mas a transposição é de uma he-
terodoxia que talvez horripilasse o autor da Teoria Geral. Primei-
ro, porque a hipótese de que faltem oportunidades para investir
num país territorialmente extenso, com cerca de 90 milhões de ha-
bitantes e apenas 300 dólares per capita parece resultar de uma
fantástica escassez de imaginação. Em nações desse tipo o comum é
a falta de recursos e não de oportunidades para investir. Segundo,
porque a depressão tradicional se caracteriza por uma queda do ní-
vel absoluto e não da taxa de crescimento do produto real. Tercei-
ro, porque a recessão keynesiana se associa a índices exagerados
de liquidez, e é difícil admitir que, com a inflação, algum brasi-
leiro pense em entesourar.
É provável que a inspiração keynesiana dos estruturalistas te-
nha sido fortemente incentivada pelo alarde com que, nos últimos
anos, se vem apresentando o problema da capacidade ociosa na in-
dústria. A questão é que existem vários tipos de capacidade ociosa
que nada têm a ver com o diagnóstico da Teoria Geral. A esse res-
peito vale um esforço de classificação.
A primeira distinção a estabelecer é entre capacidade ociosa
global e setorial. Vários fatores podem ser responsáveis pela o-
corrência da capacidade ociosa setorial. Primeiro, os erros de di-
mensionamento ou de cronologia dos investimentos. No final do de-
cênio de 1950, várias indústrias produtoras de bens duráveis de
consumo se dimensionaram com base numa demanda reprimida, e que se
acumulara após vários anos de racionamento de importações; era na-
tural que, satisfeita a procura reprimida, essas indústrias tives-
sem que enfrentar certas dificuldades de vendas. Na mesma linha,
quando a USIMINAS e a COSIPA entraram quase que simultaneamente em
funcionamento era esperável o registro de certa capacidade ociosa.
Segundo, um setor pode ficar com capacidade ociosa em virtude de
alterações bruscas na composição de procura. Para citar um exem-
plo, a indústria de material ferroviário andou alguns anos com as
vendas muito fracas porque a Rede Ferroviária Federal não pôde e-
xecutar seus planos de expansão. Terceiro, existe a capacidade o-
ciosa resultante do obsoletismo tecnológico: são instalações anti-
econômicas, que já deveriam ter sido sucateadas, e que só entram
em funcionamento nas ondas de inflação de procura, quando o merca-
do transitoriamente sustenta as empresas menos eficientes. Casos
como esse encontram-se na indústria têxtil. Por último, existem
setores cuja demanda está naturalmente sujeita a flutuações, como
é o caso das indústrias que produzem bens de capital por projetos.
Dimensionando-se para o pico de procura, essas empresas estão ine-
vitavelmente sujeitas a certa margem de capacidade ociosa1.
Nenhum desses fenômenos é curável pela terapêutica keynesiana.
Se injetássemos maior procura global no sistema, nada nos garanti-
ria que ela fosse canalizada para os setores com capacidade ocio-
sa. Talvez o resultado fosse bastante deplorável: a procura adi-
cional, ao invés de se dirigir para os setores desejados, que con-
tinuariam com capacidade ociosa, fluiria para os plenamente ocupa-
dos, gerando novas ondas inflacionárias.
Quanto à capacidade ociosa global, há dois casos a distinguir.
Primeiro, aquela que resulta das crises de crédito ou dos meios de
pagamento. São as recessões que se iniciam por uma escassez de ca-
pital de giro, como a do segundo trimestre de 1965 e a do primeiro
trimestre de 1967. A solução dessas crises está numa expansão mo-
netária conveniente que ratifique, do lado da procura, uma infla-
ção já forçada do lado dos custos. Existe finalmente a capacidade
ociosa resultante da escassez de oportunidades para investir, e
que se reconhece pela sua coexistência com altos índices de liqui-

1
Se desejarmos um exemplo contundente nesse sentido lembremo-nos da indústria de energia elétrica, a qual trabalha
com uma curva de carga fortemente variável segundo as horas do dia. Ninguém pensaria em elevar para 100% o fator
de utilização das usinas elétricas como ingrediente básico de uma política de desenvolvimento.
dez monetária e baixas taxas de juros. Tal é o tipo — o único ali-
ás — curável pela política keynesiana.
Os casos de capacidade ociosa verificados no Brasil nos últi-
mos anos ou se filiaram à classificação setorial, ou ao tipo glo-
bal de crise de crédito — estes em períodos transitórios e que
precederam um declínio substancial da taxa de inflação. Seria na-
tural que os estruturalistas, como aliás quaisquer interessados em
problemas econômicos, se preocupassem com o melhor aproveitamento
dos fatores de produção disponíveis. Os remédios recomendáveis, no
entanto, nada tinham de keynesianos. Os poucos casos de capacidade
ociosa global corrigiram-se em 1965 e 1967 via expansão monetária
(a taxas provavelmente exageradas, numa espécie de política pendu-
lar). E várias medidas de redistribuição financeira (e não direta-
mente de renda) recuperaram determinados setores onde a demanda
parecia cronicamente deficiente. Assim, a indústria de materiais
de construção pôde erguer-se graças ao Plano Nacional de Habita-
ção, lastreado no princípio da correção monetária e nos recursos
do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Do mesmo modo, as indús-
trias automobilística e de eletrodomésticos melhoraram sensivel-
mente as suas vendas depois que se instituiu o sistema de consór-
cios e depois que as Sociedades de Crédito e Financiamento passa-
ram a operar em larga escala no chamado crédito direto ao consumi-
dor.
Que dizer, em suma, da terapêutica estruturalista, quer na sua
componente estatizante, quer na redistributiva? Como medida de
curto prazo ela parece inadequada, por partir de um diagnóstico
impróprio dos casos de capacidade ociosa verificados no Brasil.
Como conselho a longo prazo, entra em conflito com as condições
mais elementares para o aumento da taxa de desenvolvimento: a ele-
vação da taxa de poupança e a melhoria da produtividade dos inves-
timentos. A solução estatizante, a do aumento da participação do
Governo na formação de capital do país, das duas uma: ou desequi-
libraria investimentos públicos e privados, desenvolvendo uma in-
fra-estrutura à custa da atrofia da superestrutura, caso o Governo
não expandisse os seus setores de ação; ou, se o Governo tomasse a
seu cargo novas áreas de inversão, conduziria a uma socialização
dificilmente compatível com a melhoria de produtividade indispen-
sável ao desenvolvimento. A solução distributivista — a de igualar
rendas para aumentar o consumo — seria ainda pior. A curto prazo
implicaria numa redistribuição caótica da procura, cujo resultado
talvez fosse uma mistura de inflação e capacidade ociosa. E a lon-
go prazo mutilaria a taxa de poupança — o principal ingrediente
quantitativo de qualquer esforço de desenvolvimento.
Metodologicamente, os estruturalistas parecem ter cometido
dois deslizes. Primeiro, um sofisma de indução: tomaram um período
em que o setor privado não dispôs de condições para investir, pela
quase hiperinflação, pelas perturbações políticas e pela falta de
recursos, e daí concluíram que existia uma deficiência estrutural
na sua capacidade de inversão. Segundo, confundiram política de
recuperação a curto prazo (voltada predominantemente para a pro-
cura) com política de crescimento a longo prazo (essencialmente
dirigida para a oferta). O resultado teria que ser algo de muito
bizarro, como a idéia de que reduzir a taxa de poupança é boa re-
gra para a aceleração do desenvolvimento.

3.5 — Uma Variante Estruturalista

Até agora examinamos o pensamento estruturalista com base no


diagnóstico da industrialização brasileira incorporado ao Programa
Estratégico do Desenvolvimento. Uma variante tecnicamente menos
sofisticada, mas que também merece comentários é a apresentada por
Celso Furtado, em seu livro "Um projeto para o Brasil".
Segundo Furtado, o principal obstáculo ao desenvolvimento eco-
nômico do Brasil reside na inadequação do perfil da demanda glo-
bal, o qual se caracteriza pelas descontinuidades. Para tanto o
autor supõe que a nossa renda, em torno dos 350 dólares anuais per
capita, se distribua da seguinte maneira:

População Renda per Renda Total


% da
(1.000 capita (1.000.000
população
habitantes) (dólares) dólares)
50 45.000 130 5.850
40 36.000 350 12.600
9 8.100 880 7.128
1 900 6.500 5.850

100 90.000 350 31.428

Diz Furtado que "se observarmos esse perfil de demanda consta-


tamos que ele se caracteriza pelas descontinuidades. O primeiro
grupo tem acesso de forma apenas marginal à economia de mercado. O
segundo grupo está formado pela massa da população que tem acesso
aos produtos não duráveis de consumo mais corrente. O terceiro e
quarto grupos formam um mercado diversificado em que se integram
os bens de consumo duráveis e não duráveis". "O desenvolvimento
econômico, na forma em que ele se realiza nos países industriali-
zados afeta, ainda que de forma irregular, o consumo de todos os
setores da população, apresentando-se a curva da demanda global
como um contínuo. Entre nós, em razão do grande excedente estrutu-
ral de mão-de-obra, o processo de elevação da renda média se apre-
senta de outra forma."
A terapêutica recomendada é um misto da estatizante com a dis-
tributivista. Segundo o autor, "o objetivo a alcançar, no prazo de
3 a 5 anos, poderia ser a redução de uma quarta parte da renda do
grupo de 1% da população, que recebe quase vinte por cento da ren-
da nacional, e a redução de 10 por cento da renda do grupo de 9
por cento da população que recebe algo mais de vinte por cento da
renda nacional. O primeiro grupo teria a sua renda per capita re-
duzida de 6.500 dólares para 4.785 o que ainda representaria cerca
de 14 vezes a média nacional, e o segundo veria a sua renda per
capita baixar de 880 para 792 dólares, ou seja 2,3 vezes a média
nacional. Nem todos esses recursos seriam retirados ao consumo,
recaindo uma parte sobre a poupança. Cabe admitir que o grupo de
altas rendas consome metade de sua renda, destinando outra parte à
poupança (admitamos: 30 por cento) e ao pagamento de impostos (ad-
mitamos: 20 por cento). Vamos supor que a redução de 25 por cento
incida em uma quinta parte sobre a poupança e nas outras quatro
quintas partes sobre o consumo. Quanto ao segundo grupo, admitire-
mos que a redução se limitaria aos gastos de consumo, em razão do
baixo coeficiente de poupança (menos de 10%) e da natureza que es-
ta assume. Sendo assim, os recursos adicionais de poupança monta-
riam a cerca de 1,9 bilhão de dólares, ou seja 6% da renda nacio-
nal. A significação desse dado se evidencia quando se tem em conta
que a poupança líquida nacional, mesmo nas melhores épocas, difi-
cilmente superou 10 por cento da renda nacional líquida. O impacto
de um crescimento substancial dos investimentos no crescimento da
economia depende, evidentemente, dos múltiplos fatores que condi-
cionam a capacidade de transformação do sistema econômico. O ele-
vado grau de diferenciação, já alcançado pelo sistema industrial
brasileiro constitui, a esse respeito, uma vantagem considerável.
A limitação mais significativa viria, certamente, do lado da capa-
cidade para importar, problema ao qual voltaremos mais adiante.
Tidas em conta essas limitações, uma taxa de investimento líquido
entre 14 e 16 por cento deveria assegurar uma taxa de crescimento
do produto bruto de 6 a 8 por cento anual, ou seja de 3 a 5 por
cento per capita. Essa velocidade de crescimento permitiria que o
produto nacional brasileiro dobrasse cada dez anos, o que seria
suficiente para que, em dois decênios, fosse substancialmente su-
perior ao produto atual de qualquer das grandes nações industri-
ais, excetuados os Estados Unidos e a União Soviética. Em três de-
cênios, isto é, ao terminar o século atual, a renda per capita de
nosso país teria superado os mil dólares de poder de compra atual,
o que significa que o subdesenvolvimento se teria incorporado à
nossa história."
Que dizer dessa versão estruturalista? Tecnicamente ela parece
bastante precária. A distribuição de renda que serve de base ao
diagnóstico é uma hipótese aventada pela CEPAL e sem maior fide-
dignidade estatística. Temos assim um exercício de escolástica e
não de teoria econômica. O autor também só considera a distribui-
ção num ponto do tempo, sem examinar a sua evolução e as suas mo-
dificações. Isso torna inviável qualquer estudo de sua adequação
ao desenvolvimento, pois não parece haver qualquer correlação ní-
tida entre grau de desconcentração da renda e taxa de crescimento
econômico. O México, com uma estrutura distributiva extremamente
desigual, tem conseguido sustentar um aumento bastante rápido de
seu produto real. A Grã--Bretanha, com sensíveis tendências igua-
litárias, vive às beiras da estagnação.
Mais grave porém, é a idéia da descontinuidade do perfil da
demanda, a qual parece ter nascido de uma confusão estatística.
Sempre que se divide uma população em um pequeno número de classes
percentuais e se calcula para cada classe a média de um parâmetro
qualquer, os resultados parecem descontínuos. Isso não significa,
todavia, que essa descontinuidade seja inerente ao fenômeno anali-
sado: trata-se simplesmente de um resultado da maneira pela qual
se confeccionam as tabelas estatísticas. A descontinuidade parece-
ria muito mais chocante se tivéssemos oposto à renda média do mi-
lésimo mais rico da população com a média dos 99,9% restantes. Ou
virtualmente desapareceria, se tivéssemos dividido a população em
classes de 1%. Furtado parece não ter lembrado que, por definição,
todo histograma é descontínuo.
Quanto à terapêutica recomendada, é interessante examinar como
o autor chegou ao 1,9 bilhão de dólares de poupança adicional. Os
cálculos foram os seguintes:

1.000 dólares

a) Grupo mais rico: Renda inicial total 5.850,0

Redução da renda (25% da renda inicial) 1.462,5


Redução da poupança privada (20% da redu- 292,5
ção de renda)
Aumento da poupança governamental 1.462,5
Aumento líquido da poupança 1.170,0

b) Segundo grupo: Renda inicial total 7.128,0

Redução da renda (10% da renda inicial) 712,8


Redução da poupança privada -----
Aumento da poupança governamental 712,8
Aumento líquido da poupança 712,8

c) Aumento líquido da poupança total: 1.882,8

Obviamente os dados do exercício são baseados em suposições a


priori e não em evidência empírica. Mas, ainda que se ressalve es-
se deslize, há vários reparos a fazer. Em primeiro lugar Furtado
admite que o Governo poupe toda a arrecadação tributária adicio-
nal, em nada acrescendo seus gastos correntes. Se considerarmos
exógenas todas as decisões do Governo quanto a impostos e despesas
essa é uma hipótese possível; tal conjectura, no entanto, carece
de apoio empírico. Em segundo lugar, não é feita a análise dos
prováveis prejuízos dessa política tributária sobre o incentivo
individual ao trabalho e à inovação. (Se esse problema não exis-
tisse, qualquer país subdesenvolvido disporia de uma fórmula infa-
lível para elevar a níveis excepcionais a sua taxa de poupança: as
rendas individuais seriam niveladas por baixo por um imposto de
renda violentamente progressivo, cuja arrecadação iria fortalecer
a poupança do Governo.) Em terceiro lugar, o autor esquece que uma
redução abrupta na renda dessas classes poderia gerar uma crise
desastrosa nas indústrias de bens duráveis, as quais, segundo o
seu diagnóstico, têm como mercado exclusivo os 10% mais ricos da
população. Nesse particular, o autor parece descambar para uma es-
tranha mistura de concepções ortodoxas e estruturalistas. A tônica
do estudo é a de considerar inadequado o perfil da demanda, insu-
ficientemente dinâmico para permitir o desenvolvimento auto-
sustentado. Essa é uma linha de inspiração keynesiana. Na hora da
terapêutica, porém, não é o consumo das classes menos favorecidas
que se procura aumentar (a não ser na medida do futuro ritmo de
desenvolvimento). A desigualdade de rendas é relativamente atenua-
da não pela melhoria dessas classes, mas pela redução da renda dos
grupos mais favorecidos, em benefício da poupança governamental.
Essa já é uma mistura da ética socialista com o modelo de Harrod-
Domar. A terapêutica recomendada fortalece a demanda de bens de
capital, mas enfraquece a dos bens de consumo.
Fora isso, o exercício de aritmética econômica envolve uma
formidável extravagância teórica, sem a qual seria impossível che-
gar a algo parecido com o 1,9 bilhão de dólares de poupança adi-
cional. Furtado supõe que, da renda retirada da classe mais rica,
apenas 20% se reflitam em queda de poupança, e que 80% sejam ab-
sorvidos pela redução do consumo. E, mais ainda, que a redução da
renda do segundo grupo não lhe afete a poupança, traduzindo-se a-
penas em diminuição do consumo. Em termos técnicos isso equivale a
dizer que a propensão marginal a consumir (0,8 na classe mais rica
e 1,0 na seguinte) seria bem superior à média (0,5 e 0,9, respec-
tivamente) — exatamente ao contrário do que se lê em qualquer tex-
to de economia ou do que se depreende de qualquer pesquisa sobre
orçamentos familiares.1

3.6 — A Mensagem Estruturalista

As observações precedentes talvez enfeixem uma crítica bastan-


te áspera ao pensamento estruturalista. Num ponto, todavia há que
louvar a contribuição dessa corrente heterodoxa: na sua observação
de que, esgotada a fase de substituição de importações, a política
de desenvolvimento se torna menos simples. Isso não nos deve levar
à tortura mental, pois afinal a maioria dos países se desenvolve
por outros caminhos que não o da substituição de importações. Mas
vale como advertência quanto aos rumos que teremos que tomar daqui
por diante, se não nos quisermos submeter à defasagem crescente
que nos vaticina o Hudson Institute2.
A simplicidade do desenvolvimento via substituição de importa-
ções resulta do mecanismo de decisões para investir: o empresário
toma tais decisões com base num mercado já existente (suprido pe-
las importações e muitas vezes reforçado pela repressão da procu-
ra) e não em função de um mercado a se constituir. Nessa etapa, o
crescimento desequilibrado é perfeitamente tolerável (e até natu-
ral). Além disso o investidor, desde que escudado em forte pro-
teção aduaneira, se mostra extremamente resistente à instabilidade
da política econômica, aos saltos re-distributivos e à inflação.
De fato uma empresa não precisa preocupar-se com as dificuldades
de previsão financeira ou de aferição de custos quando dispõe da
virtual garantia de vender toda a sua produção com lucros compen-
sadores.
Esgotada (ou pelo menos percorrida em grande parte) a etapa da
substituição de importações, a economia se torna bem menos resis-
tente à instabilidade política e institucional e aos impulsos do
crescimento desequilibrado. De fato, as decisões para investir a-
gora dependem de dois fatores: de um lado da disponibilidade de
recursos, de outro lado do crescimento (e não mais do tamanho ab-
soluto) do mercado interno e das exportações. Um aumento do grau
de concentração das rendas, nessa etapa, pode tornar-se efetiva-
mente nocivo por inibir a expansão do mercado. Ao mesmo tempo uma

1
Furtado não deixa claras as suas intenções sobre a tributação adicional dos lucros retidos das empresas. Essa tributa-
ção, todavia, precisaria ser substantivamente intensa para que o exercício tivesse alguma validade, e isso tornaria ainda
mais implausível a sua hipótese quanto a propensões marginais a consumir.
2
Ressalte-se, nesse ponto, o conteúdo do Programa Estratégico de Desenvolvimento — 1968/1970. Embora aceitando o
diagnóstico estruturalista, as suas recomendações são bastante semelhantes às resumidas nesta seção.
redistribuição brusca de intuitos igualitários pode mutilar a ca-
pacidade de poupança e frear, por escassez de recursos, a taxa de
desenvolvimento. O problema em nada se assemelha a um círculo vi-
cioso, mas exige uma política atenta de crescimento equilibrado,
que procure obter a expansão dos mercados como resultado do aumen-
to físico da produção. E nessa fase, é essencial que as empresas
se voltem para a redução dos custos e para a melhoria da produti-
vidade, procurando ampliar o seu campo de ação pela baixa dos pre-
ços relativos de seus produtos.
Essas observações, que de alguma forma equivalem a uma inspi-
ração estruturalista, devem servir como advertência para os res-
ponsáveis pela formulação da política econômica no Brasil. Um país
de baixa renda per capita, por definição, não possui brilhante ex-
periência secular em matéria de política de desenvolvimento. No
decênio de 1950 conseguimos resultados plausíveis, mas diante de
um problema fácil, capaz de ser resolvido pela técnica do cresci-
mento desequilibrado. O problema daqui por diante, embora já re-
solvido por muitos países, é de solução menos óbvia do que aquele
de que tratamos no passado recente. Precisamos de suficiente ra-
cionalidade e de serenidade para o enfrentar, aceitando os sacri-
fícios necessários para que fujamos aos vaticínios do Hudson Ins-
titute.
Quanto ao mais, louvem-se as boas intenções humanitárias dos
estruturalistas. É compreensível que a desigualdade de rendas atu-
almente observada no Brasil (embora não suficientemente documenta-
da do ponto de vista estatístico) fira os bons sentimentos dos ci-
entistas sociais. É natural que a atenuação progressiva dessa de-
sigualdade se coloque como objetivo básico da política econômica.
Mais inquietante, porém, do que qualquer desigualdade é a própria
renda média per capita, da ordem dos 300 dólares anuais — cifra
que nos aconselha a criar riqueza e não a distribuir miséria. Os
estruturalistas procuraram construir uma teoria simpática, onde o
distributivismo a curto prazo ajuda a intensificação do ritmo de
desenvolvimento. Mas infelizmente a economia continua sendo, ao
que tudo indica, a penosa ciência do custo alternativo.
CAPÍTULO IV
A ARITMÉTICA DOS COELHOS

4.1 — A Progressão Explosiva

Temos hoje no Brasil nove vezes mais habitantes do que há cem


anos atrás. A se confirmarem as previsões do Hudson Institute,
nossa população no ano 2000 será doze vezes superior à de 1900.
Essas cifras talvez nos encham de orgulho quantitativo, por termos
cumprido à risca o "crescei e multiplicai--vos". Mas talvez assus-
tem àqueles que se lembrarem de que a população é o denominador da
fórmula da renda per capita.
Uma população que decuplica de século em século é fato bastan-
te singular na história da humanidade. Apenas a título de curiosi-
dade, aceitemos a ingênua estimativa do famoso Arcebispo Ussher,
segundo a qual Adão e Eva teriam sido criados no ano 4.004 A.C.
Com a população decuplicando por século, teríamos hoje na terra
nada menos do que 1060 habitantes. Não há quintilhão ou sextilhão
capaz de traduzir esse número fabuloso: 1, seguido de sessenta ze-
ros. Mas para termos uma idéia de sua inviabilidade, basta dizer
que, ainda que se limitasse cada indivíduo ao mísero espaço vital
de um metro cúbico, nem assim seria possível abrigar um trilioné-
simo da população da Terra (com o mar devidamente aterrado, para
desespero dos peixes) em edifícios de altura igual à nossa distân-
cia ao sol.
É verdade que, na história da civilização, os últimos cem anos
registram um crescimento demográfico sem precedentes. Por muitos
séculos a população da Terra andou mais ou menos estacionaria, não
porque fossem baixas as taxas de natalidade, mas porque a pobreza
dos conhecimentos médicos sujeitava o mundo a taxas de mortalidade
extremamente elevadas. A explosão populacional deste século é con-
seqüência natural dos progressos da técnica bioquímica. Mas, nesse
ambiente mundial de progressão geométrica, o Brasil se destaca por
uma explosividade fora do comum. Basta dizer que, entre 1900 e
1960 a população mundial aumentou de 87%; a da América Latina — a
campeã continental da explosão demográfica — de 227%; a do Brasil,
de 285%. Mais sério, ainda, é o fato de que a nossa taxa de cres-
cimento demográfico vem crescendo continuamente, segundo revelam
os Censos: de 2,05% ao ano entre 1920 e 1940 para 2,38% a.a. entre
1940 e 1950, e para 3,00% anuais entre 1950 e 1960.
O Quadro 22 a seguir mostra a composição das taxas de cresci-
mento demográfico no Brasil desde o primeiro Recenseamento, reali-
zado em 1872. As taxas de natalidade sofreram certo declínio, como
era esperável em decorrência da urbanização e da melhoria da renda
per capita, mas em ritmo extremamente lento: de 4,65% ao ano entre
1872 e 1890 para 4,15% anuais entre 1950 e 1960. Já as taxas de
mortalidade caíram fortemente com os progressos da medicina e do
saneamento — de 3,02% entre 1872 e 1890 para 1,15% entre 1950 e
1960. Como resultado, a taxa natural de crescimento da população
quase duplicou no período em questão — de 1,63% ao ano entre 1872
e 1960 para 3,00% ao ano entre 1950 e 1960. Os movimentos de imi-
gração, de certa forma amorteceram esse crescimento relativo: a
taxa de crescimento migratório, do auge de 0,60% ao ano entre 1890
e 1900 declinou continuamente no presente século, virtualmente se
anulando entre 1950 e 1960. Ainda assim, a taxa de crescimento de-
mográfico se acelerou consideravelmente nos últimos anos: do nível
aproximadamente estável, em torno dos 2% ao ano entre 1872 e 1940,
explodiu para 3% ao ano entre 1950 e 1960.

QUADRO 22
EVOLUÇÃO DO CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO BRASILEIRO

TAXAS ANUAIS (%)

PERÍODO Crescimento
Nata- Morta-
lidade lidade
Migra-
Global Natural
tório

1872-1890 2,01 1,63 0,38 4,65 3,02


1890-1900 2,42 1,82 0,60 4,60 2,78
1900-1920 2,12 1,86 0,22 4,50 2,64
1920-1940 2,05 1,87 0,18 4,40 2,53
1940-1950 2,38 2,34 0,04 4,35 2,01
1950-1960 3,00 3,00 0,00 4,15 1,15
Fonte: IBGE "Contribuições para o Estudo da Demografia do Brasil."

Os obstáculos ao desenvolvimento criados por uma explosão de-


mográfica dessa natureza serão examinados mais adiante. Por en-
quanto seria conveniente lembrar que não há exemplo de país que se
tenha conseguido desenvolver solidamente com tal crescimento popu-
lacional. E é possível que, com a difusão dos antibióticos, a am-
pliação das redes de água e esgoto, e a melhoria da assistência
médica e sanitária, o Censo de 1970 nos surpreenda com um cresci-
mento demográfico ainda superior aos 3% anuais. Isso nos traz à
mente a frase de Roberto de Oliveira Campos: "A tecnologia agríco-
la matou o demônio malthusiano na primeira metade do século XX. A
tecnologia bioquímica o ressuscitou nesta segunda metade do sécu-
lo..."

4.2 — O Ufanismo Demográfico

Em matéria de população, a política brasileira sempre foi ex-


pansionista. Em parte pela nossa tradição católica, em parte pela
vastidão de nosso território, o consenso geral sempre foi o de que
o país precisava de mais braços para a exploração de seus recursos
naturais e para a ocupação de seus espaços vazios. Isso levou o
Governo a enquadrar no Código Penal as tentativas de redução da
taxa de natalidade, considerando criminoso o aborto e criando inú-
meros obstáculos à difusão e à venda dos anticoncepcionais1. (Lem-
bre-se que, entre nós, é proibida a propaganda de anticoncepcio-
nais e que a sua venda, por mais espalhada que seja, sempre se ba-
seia num disfarce jurídico). Ao mesmo tempo foram criados incenti-
vos econômicos às famílias numerosas, como o salário-família, o
abono especial do Ministério do Trabalho e da Previdência Social

1
A Câmara de Deputados já instaurou Comissões Parlamentares de Inquérito para investigar as tentativas de controle de
natalidade e de difusão de anticoncepcionais.
mensalmente pago às famílias com mais de seis filhos, e os auxí-
lios-maternidade. E, em quase todos os pronunciamentos oficiais, a
nossa explosão demográfica é situada como fator de orgulho, e não
de preocupação nacional.
Quatro argumentos costumam apoiar esse nosso ufanismo demográ-
fico. O primeiro é o da importância nacional: admite-se que um pa-
ís se torne tão mais importante, no concerto mundial, quanto maior
for a sua população. O segundo é o da segurança nacional: a nação
precisa de um contingente humano suficientemente amplo para defen-
dê-la contra a cobiça e contra a agressão internacional. Terceiro,
o da ocupação territorial: o Brasil possui vastos espaços vazios,
com grande potencial de riquezas naturais, famintos de um cresci-
mento demográfico que assegure o seu povoamento. Quarto, o de que
é preciso aumentar a população para alargar os mercados.
Alguns desses argumentos faziam certo sentido na época em que
não se havia difundido a consciência dos problemas de desenvolvi-
mento. Mas, no momento em que se pensa em taxa de crescimento da
renda per capita, não se pode deixar de associar o ufanismo demo-
gráfico àquela estranha aritmética que procura engordar os quoci-
entes inflando os divisores. Os adeptos da explosão populacional
não se inquietam com essa observação e citam uma das recentes En-
cíclicas: "a solução é aumentar o banquete, e não reduzir o número
de comensais". Em suma, o importante é que o produto real cresça
rapidamente, e não que a taxa de natalidade decline: o Governo que
trate de desenvolver o país, e o crescimento demográfico será fa-
cilmente absorvível pela prosperidade geral. A resposta, como se
vê, é qualitativa e não quantitativa. Os adeptos da explosão popu-
lacional não examinam a viabilidade dessa solução diante de um in-
cremento demográfico de 3% ao ano.
Embora desatualizado, o nosso ufanismo demográfico está longe
de ser original. O tratamento da elevação populacional como um dos
objetivos centrais da humanidade é tão antigo quanto a própria ci-
vilização, e tem sido inspirado nos mais diversos contextos e mo-
tivações. O "crescei e multiplicai-vos" do Gênesis, a repulsa mar-
xista às teorias de Malthus, os dogmas demográficos do partido na-
zista, ou o diagnóstico estagnacionista daqueles, como Alvin Han-
sen, que foram mais keynesianos que o próprio Keynes, chegam a al-
go em comum, embora partam de origens inteiramente distintas. A
coerência de uma teoria social, no entanto, depende do comporta-
mento de certos parâmetros aritméticos, geralmente implícitos na
época de sua formulação. O "crescei e multiplicai-vos" é a regra
básica para a preservação da espécie quando, pela incipiência da
medicina, as taxas de mortalidade quase igualam as de natalidade.
A explosão demográfica pode ser desejada por um Governo cuja prin-
cipal preocupação não seja a de melhorar os padrões de vida do po-
vo, mas a de fortalecer os quadros da sua infantaria. A estagnação
populacional e o conseqüente desestímulo aos investimentos em
construção e inúmeros serviços básicos pode inquietar um país de
alta capacidade produtiva, mas deprimido pela insuficiência de
procura global. Entretanto a aritmética muda, quando nos voltamos
para as nações subdesenvolvidas, essencialmente preocupadas em me-
lhorar sua renda per capita, mas freadas pelo peso da explosão de-
mográfica. O problema populacional não pode ser tratado nos mesmos
moldes numa nação desenvolvida com 1% ao ano de aumento demográfi-
co, e numa outra subdesenvolvida cuja população cresça de 3% anu-
ais. Foi esse esforço de dimensionamento que levou os países comu-
nistas a rever os seus dogmas e a encampar às escancaras o contro-
le de natalidade. Essa mesma preocupação nos deve levar a reconhe-
cer a importância da planificação familiar, aceitando que, numa
época em que a medicina reduziu tão drasticamente as taxas de mor-
talidade, o "crescei e multiplicai-vos" do Gênesis não precisa su-
bordinar-se a progressões geométricas tão explosivas.

4.3 — Do Malthusianismo Clássico ao Bom-Senso Aritmético

Desde o fim do século XVIII vários cientistas sociais se vêm


preocupando com os perigos de uma explosão demográfica a taxas
descontroladas, ora como um fenômeno mundial, ora como problema
adstrito a certos países. Historicamente essa preocupação pode ser
classificada em três níveis. Cumpre distingui-los claramente a fim
de evitar certas confusões amiúde repetidas.
O primeiro nível foi o da teoria malthusiana pura. Em seu fa-
moso ensaio sobre a população, Malthus admitiu que o crescimento
dos povos tendesse a se processar em progressão geométrica, en-
quanto os recursos para a sua alimentação quando muito se expandi-
riam em progressão aritmética. Esse descompasso, naturalmente,
conduziria os países a uma catástrofe econômica. Chegar-se-ia ao
ponto em que, a escassez de alimentos por habitante se encarrega-
ria de equilibrar, a população elevando as taxas de mortalidade,
pelas doenças, pela fome e pela depravação e até o ponto em que
elas se igualassem às de natalidade. Para escapar a esse destino
os povos teriam que se sujeitar a um remédio heróico: o controle
da natalidade pela abstenção sexual, nenhum jovem devendo casar-se
nem antes dos vinte e cinco anos nem antes de ser capaz de susten-
tar seis filhos.
De um modo geral, o pensamento Mathusiano dominou a teoria e-
conômica em todo o primeiro quarto do século XIX. Levando avante
essas idéias, os economistas clássicos ingleses chegaram à sua co-
nhecida futurologia da miséria: um estado estacionário, oprimido
pela lei dos rendimentos decrescentes, com a população contida pe-
la explosão das taxas de mortalidade, com a maior parte da renda
concentrada nas mãos dos proprietários de terras, e com os salá-
rios reduzidos ao mínimo de subsistência. Felizmente, pelo menos
boa parte da humanidade pôde escapar a esses vaticínios: Malthus e
seus contemporâneos implicitamente haviam considerado a terra e a
mão-de-obra como os únicos fatores de produção relevantes, (a ri-
gidez da oferta do primeiro acarretando os rendimentos decrescen-
tes do segundo) esquecendo-se do papel da acumulação do capital e
do progresso tecnológico. Graças a esses fatores esquecidos, a
produção de alimentos pôde escapar à lentidão das progressões a-
ritméticas, e o produto real conseguiu expandir-se a taxas bem
mais explosivas do que a própria população. E com esse desfecho
feliz, pelo menos para grande parte da humanidade, a teoria mal-
thusiana, em sua crueza original, reduziu-se à categoria de curio-
sidade histórica.
O segundo nível de preocupação com a explosão demográfica é o
das teorias modernas do círculo vicioso da pobreza, desenvolvidas
por vários economistas como Gunnar Myrdal, Harvey Liebenstein e
Richard Nelson. Em certos países subdesenvolvidos, a capacidade de
poupança é tão débil que só permite que o produto real cresça à
mesma taxa do aumento demográfico. O país é pobre porque quase não
poupa, e quase não poupa porque é pobre. A dificuldade em romper o
círculo vicioso está no potencial da explosão demográfica, poten-
cial apenas reprimido pelas altas taxas de mortalidade decorrentes
da miséria. A melhoria gradativa da renda per capita se torna vir-
tualmente impossível, pois ela própria geraria o fator de sua dis-
solução: a queda das taxas de mortalidade e o conseqüente aumento
da explosão populacional. Só um esforço crítico de desenvolvimen-
to, com o aumento bruto da taxa de poupança, ou com a contenção
decidida das taxas de natalidade permite que tais países escapem
ao círculo vicioso da pobreza. Sob vários aspectos essa teorias
revivem uma espécie de malthusianismo. Por certo elas só se desti-
nam a uma parcela da humanidade e oferecem uma saída para o pro-
blema por elas descrito. Mas explicam um quadro que, se não é tão
negro quanto o do estado estacionário dos clássicos ingleses, é
certamente o de uma estagnação muito subdesenvolvida1.
As teorias em questão, apesar de excessivamente esquemáticas,
parecem descrever o que se tem passado em certos países da Ásia e
da África. Elas se referem todavia, a um grau de subdesenvolvi-
mento muito mais agudo do que o observado entre nós. Pelo menos no
corrente século, o produto real brasileiro tem crescido a taxas
nitidamente mais altas do que a população, e isso nos exclui do
círculo vicioso da pobreza, pelo menos na sua concepção ortodoxa.
Mas não exclui a preocupação com o aumento desenfreado da popula-
ção, pelo menos no terceiro nível a seguir exposto.
Esse terceiro nível admite que um país se possa desenvolver,
em termos absolutos, não obstante o rápido crescimento populacio-
nal, mas se concentra em duas observações: primeiro, a de que a
explosão demográfica contribui negativamente para o aumento da
renda per capita; segundo, a de que dificilmente os países subde-
senvolvidos recuperarão seu atraso em relação às nações mais avan-
çadas a menos que consigam conter as suas taxas de natalidade.
Quatro razões explicam por que o crescimento demográfico ace-
lerado contribui negativamente pára o aumento da renda per capita:
o efeito aritmético, o efeito-infra-estrutura social, o efeito-
pirâmide etária, e o efeito-emprego. É importante examinar cada um
desses pontos.
O efeito aritmético é o de antagonismo natural entre dividendo
e divisor. Se supusermos (como fazem Herman Kahn e Anthony Weiner
nas suas projeções) que as taxas de crescimento do produto real e
da população se possam tratar como variáveis independentes, é ób-
vio que quanto maior a segunda taxa menor será a do crescimento da
renda per capita. Imaginemos, por exemplo, que o esforço de de-
senvolvimento de um país permita que o seu produto real total
cresça de 6% ao ano. Com 1,5% ao ano de aumento populacional a
renda per capita dobrará em 16 anos. Mas com uma explosão demográ-

1
O Apêndice III expõe em pormenores um desses modelos de círculo vicioso da pobreza.
fica de 3,5% anuais será necessário esperar 29 anos para essa du-
plicação. O Quadro 23 a seguir mostra, para várias taxas de expan-
são demográfica e para um crescimento do produto real de 6% ao a-
no, três indicadores desse efeito aritmético: a taxa de cresci-
mento da renda real per capita, o tempo necessário à duplicação do
produto real por habitante, e o tempo necessário à multiplicação
por doze dessa renda real (tempo que nos levaria a alcançar apro-
ximadamente a atual renda per capita dos Estados Unidos).

QUADRO 23

Taxa de cres- Taxa de cres- Taxa de cres- Número de anos necessário a


cimento do cimento do po- cimento do renda multiplicação da renda per
produto real pulação real per capita capita por
(% a.a.) (% a.a.) (% a.a.)
2 12

6,0 1,0 4,95 14,3 51,4


6,0 1,5 4,43 16,0 57,3
6,0 2,0 3,92 18,0 64,6
6,0 2,5 3,41 20,7 74,1
6,0 3,0 2,91 24,2 86,6
6,0 3,5 2,42 29,0 103,9

Os partidários do ufanismo demográfico talvez observem que os


cálculos acima, supondo constante a taxa de crescimento do produto
real, esquecem que o aumento da população ativa pode contribuir
para o reforço dessa taxa. Com certo esforço algébrico seria pos-
sível recalcular o efeito aritmético tomando por base uma função
de produção, do tipo Cobb-Douglas, por exemplo, que levasse em
conta (agora, provavelmente, por uma superestimativa) o impacto
positivo do crescimento demográfico sobre o aumento do produto re-
al total1. Esse impacto positivo, no entanto, jamais seria o sufi-
ciente para compensar o crescimento do denominador populacional. O
efeito aritmético, embora numericamente menos dramático, continua-
ria sendo observado. E isso sem levar em conta os demais efeitos
que se descrevem a seguir.
O efeito-infra-estrutura social corresponde à piora da relação
produto/capital resultante da absorção de poupanças maciças para
os investimentos em habitação, abastecimento d'água, esgotos, ur-
banização etc. nos países sujeitos à explosão demográfica. Como se
sabe, esses investimentos são exigidos na proporção do aumento po-
pulacional e, uma vez realizados, compõem um estoque de capital
com baixo coeficiente de geração de produto e de empregos. Um cál-
culo elementar ilustra a dimensão do problema. A população brasi-
leira deve ter aumentado de 2,7 milhões de habitantes, em 1968.
Tomando por base a proporção de 5 pessoas por residência, teria
sido necessário construir 540 mil novas moradias simplesmente para
não agravar o déficit habitacional já existente. Imaginemos que se
tivesse abrigado essa população adicional em casas populares, com
um custo médio de construção de 60 salários mínimos (média bem in-
ferior à das casas do Banco Nacional de Habitação). Só esse pro-
1
O Apêndice IV desenvolve um exercício dessa natureza.
grama teria custado 4,2 bilhões de cruzeiros novos — quase 40% da
capacidade de poupança do país. De fato, uma nação sujeita à ex-
plosão demográfica ou aceita o crescente favelamento de sua popu-
lação ou se vê obrigada a desviar grande parte da sua já escassa
capacidade de poupança para setores de baixa relação produto/
/capital.
Por outro lado, um crescimento demográfico muito rápido modi-
fica a composição da população por idades, tornando percentualmen-
te muito elevada a faixa das crianças e jovens aquém da idade de
trabalho. (O Censo de 1960 revelou que 42,7% da população brasi-
leira da época não chegava aos 15 anos.) Esse é o efeito-pirâmide
etária. De um lado ele implica, para cada trabalhador ativo, num
alto coeficiente de dependentes inativos, peso pouco alentador pa-
ra uma economia subdesenvolvida. Por outro lado, cria substantivas
dificuldades tanto em termos de recursos naturais quanto de recur-
sos humanos para a solução do problema educacional. Apenas para
citar um exemplo, o esforço brasileiro para erradicar o analfabe-
tismo tem sido razoavelmente bem sucedido a médio prazo, em termos
percentuais: a proporção de alfabetizados, entre as pessoas com
quinze ou mais anos de idade, aumentou de 35% em 1920, para 44% em
1940, 49% em 1950 e 60% em 1960. Contudo, em virtude do rápido
crescimento populacional, o número total de analfabetos (com 15
anos de idade ou mais) aumentou de 11,4 milhões em 1920, para 13,3
milhões em 1940, 15,3 milhões em 1950 e 15,8 milhões em 1960. De
fato os países subdesenvolvidos sujeitos à explosão demográfica
parecem fadados a desviar, para o setor educacional, uma parcela
significativa do seu potencial de poupanças e, apesar desse esfor-
ço, só conseguir uma meia-solução para o problema.
Finalmente, o efeito-emprego. Numa economia sujeita à explosão
demográfica os objetivos de crescimento do produto real e do em-
prego facilmente entram em conflito. Como é impossível esquecer, a
médio prazo, os problemas de emprego, acabam-se sacrificando, pelo
menos em parte, as possibilidades de expansão do produto real. A
recomendação de novas técnicas, capazes de melhorar em grande es-
cala a produtividade do trabalho, freqüentemente se choca com a
necessidade de criar novas ocupações para os vastos contingentes
de mão-de-obra que anualmente afluem ao mercado de trabalho. (Ho-
je, no Brasil, temos a responsabilidade de criar mais de um milhão
de novos empregos por ano.) Lembre-se, nesse sentido, que o decê-
nio de 1950, se foi bem sucedido em matéria de expansão do produ-
to, não o parece ter sido no tocante à geração de novas ocupações
produtivas. A indústria, que se expandiu na vanguarda tecnológica,
aumentou sua produção de 8,7% ao ano, mas só absorveu mão-de-obra
à taxa de 2,4% anuais, nitidamente inferior à do crescimento da
população ativa. O excesso de oferta foi descarregar-se no setor
terciário, onde o emprego cresceu de 5,0% ao ano, mas talvez à
custa de certa acumulação de desemprego estrutural.
Diante desses quatro efeitos, que dizer do ufanismo demográfi-
co? O argumento da importância nacional peca pela ingenuidade do
índice da mensuração. Um país não se torna importante apenas pelo
seu contingente demográfico — se assim fosse a índia e a China se-
riam bem mais importantes do que os Estados Unidos e a Rússia. A
importância de um país, no conceito mundial, depende, de fato, de
vários parâmetros como a população, o produto nacional, a renda
per capita, as tradições culturais etc. Resta saber, nessa altura,
se preferiríamos levar a vida do dinamarquês médio ou do indiano
médio. O argumento da segurança nacional (o país precisa de braços
para a sua defesa) esquece que a guerra moderna depende muito mais
de capital e tecnologia do que de simples contingente humano. Vide
o exemplo Israel x RAU. O argumento da ocupação territorial deve
ser examinado, de início, por uma definição de objetivos: qual de-
les merece a prioridade, o da melhoria do padrão de vida da popu-
lação ou o da elevação (ou homogeneização regional) dos índices de
densidade demográfica? Seja qual for a opção, há que lembrar que
ocupação não se consegue apenas com mão-de-obra, mas principalmen-
te com investimentos em infra-estrutura e estradas, os quais ab-
sorvem poupanças escassas. É pouco provável que os ufanistas da
explosão demográfica aceitassem ser lançados na selva amazônica
para lá tentar a sua experiência de colonização. Deve-se entender
assim que a ocupação dos nossos espaços vazios depende muito mais
de capital e tecnologia do que de mão-de-obra. Por último, a idéia
de que o aumento populacional é desejável do ponto de vista da
criação dos mercados, confunde número de consumidores com poder
aquisitivo. Se assim fosse, o mercado chinês seria bem mais amplo
do que o norte-americano. Com um pouco de teoria econômica é pos-
sível demonstrar que, dada a taxa de crescimento do produto real,
apenas para os produtos de demanda inelástica em relação à renda,
o crescimento dos mercados é tão mais intenso quanto maior for o
crescimento populacional. Esse é o caso dos alimentos, em relação
aos quais não há queixas de superabundância de oferta. Já para os
produtos industriais, de procura usualmente elástica em relação à
renda, o efeito é exatamente inverso.
Finalmente, que dizer da réplica dos ufanistas da explosão de-
mográfica: "a solução é aumentar o banquete e não reduzir o número
de comensais"? Em primeiro lugar ninguém cogita de reduzir o nú-
mero de comensais, mas apenas de refrear a sua taxa de crescimen-
to. Em segundo lugar, o argumento de que o importante é acelerar a
taxa de crescimento do produto real e não conter o aumento da po-
pulação revela a incapacidade de raciocínio com funções de duas
variáveis. De fato, ambas as preocupações são relevantes, não ha-
vendo razão para que uma exclua a outra. Dentro das boas regras da
aritmética, se for possível aumentar o dividendo e conter o divi-
sor, tanto melhor para o quociente. E, mais importante do que tudo
isso, lembremo-nos de que, se escapamos ao círculo vicioso da po-
breza absoluta, talvez continuemos enredados no da pobreza relati-
va. As variações em torno das previsões do Hudson Institute, ainda
quando envolvidas no máximo de otimismo, nos levam à conclusão de
que dificilmente recuperaremos o nosso atraso em relação às nações
mais prósperas se não conseguirmos deter a nossa explosão popula-
cional. Esses cálculos sugerem que devemos repelir o ufanismo de-
mográfico, a menos que pretendamos encampar a aritmética dos coe-
lhos e projetar, para um futuro não muito remoto, o empate econô-
mico entre o Brasil e a índia.

4.4 — Política Populacional e o Fatalismo Demográfico


Reconhecido o fato de que a explosão demográfica, na escala
brasileira, dificulta o crescimento de nossa renda per capita, e
virtualmente impede a recuperação do nosso atraso em relação às
nações mais prósperas, qual a solução pragmática para o problema?
Obviamente ninguém irá apelar para o infanticídio ou para a este-
rilização em massa das mulheres (como às vezes a planificação fa-
miliar é pintada pelos ufanistas da explosão demográfica), pois há
princípios éticos que se sobrepõem às razões econômicas. Qualquer
política de contenção da taxa de natalidade terá que se basear num
processo de educação coletiva e de difusão dos métodos anti-
concepcionais, mas respeitando a liberdade da opção quantitativa
em cada família. Quais as possibilidades de êxito dessa política?
Um bom grupo de cientistas sociais, embora encarando a explo-
são demográfica como um freio ao desenvolvimento econômico, descrê
dessas possibilidades, encarando a taxa de crescimento popula-
cional como variável endógena, resultante de determinados parâme-
tros econômicos. Essa é a corrente do fatalismo demográfico. Para
eles, a taxa de natalidade acabará declinando com a urbanização e
o aumento da renda real per capita, mas dificilmente se conseguirá
antecipar tal declínio por simples medidas de política demográfi-
ca. É interessante examinar os argumentos dessa corrente.
Diante do fracasso das previsões de Malthus, os economistas se
recusaram por muito tempo a se imiscuir na teoria da população.
Recentemente, no entanto, várias observações foram desenvolvidas
tentando explicar as taxas de natalidade e de crescimento demográ-
fico em função de variáveis econômicas. Trata-se de um interessan-
te conjunto de argumentos, que realmente justifica o fato de as
taxas de natalidade serem bem maiores nas zonas rurais do que nas
urbanas, e bem maiores nas regiões subdesenvolvidas do que nas
mais avançadas. Basicamente, a taxa de natalidade deve ser tanto
maior quanto menor o custo e maior a receita correspondente a cada
filho. O problema do espaço, muito menos limitativo nas zonas ru-
rais do que nas urbanas, é uma primeira razão para o diferente
comportamento das taxas de natalidade. Uma segunda razão se encon-
tra nos custos de educação, obviamente crescentes com a escolari-
dade que se dá à criança, escolaridade essa usualmente tão mais
longa quanto maior o grau de urbanização e desenvolvimento. Uma
terceira razão reside na idade de ativação da população: na agri-
cultura, sobretudo na pouco desenvolvida, a criança começa a tra-
balhar bastante cedo. Por último, nas zonas muito pobres o filho
pode ser desejado como uma espécie de bem de capital: primeiro,
pela falta de outras formas alternativas de riqueza; segundo, como
um seguro para o sustento na velhice, diante da inacessibilidade
dos benefícios da Previdência Social.
Todos esses argumentos são de excelente quilate teórico, e é
de se reconhecer que eles enfeixam uma série de fatores que afetam
as taxas de natalidade. Mas daí a considerá-los como os únicos de-
terminantes da taxa de natalidade vai uma grande distância. Uma
teoria demográfica puramente fundada em argumentos econômicos como
esses daria a impressão de que a decisão de fazer um filho é in-
teiramente semelhante à de fabricar um lingote de aço. Isso talvez
fosse verdade se não existissem fatores sentimentais e se todos
tivessem acesso ao anticoncepcional perfeito. Ocorre que no mundo
de hoje, sobretudo no mundo subdesenvolvido, um bom número de cri-
anças nasce não pelo cálculo deliberado, mas pela imprevidência
dos pais. É exatamente esse o caso que pode ser manipulado pela
política populacional.
É óbvio que essa política está longe de ser facilmente implan-
tável. Em primeiro lugar há os obstáculos religiosos. O Vaticano
recentemente lançou no "Index" o mais sofisticado e o mais promis-
sor dos anticoncepcionais, a pílula, aceitando apenas a planifica-
ção familiar pelo método Ogino-Knaus (abstenção sexual nos dias de
fertilidade da mulher). Para alguns, a Igreja Católica quis, com
isso, repelir as tentativas de modificar as leis naturais da nata-
lidade pela técnica bioquímica (argumento não muito convincente,
pois os antibióticos trabalham no mesmo sentido em relação à taxa
de mortalidade). Para outros, a pílula foi repelida pelos seus
prováveis impactos sobre a moral tradicional. Outros ainda, enten-
dem que estamos diante da repetição do "caso Gameu". Seja qual for
a nossa posição, é óbvio que esses obstáculos religiosos dificul-
tam a aplicação de uma política de controle de natalidade.
Em segundo lugar há obstáculos educacionais. A aceitação dos
métodos anticoncepcionais modernos depende de um grau de previdên-
cia e disciplina dificilmente alcançável sem certo esforço de edu-
cação. (A pílula, por exemplo, se não for consumida com a necessá-
ria regularidade diária, pode transformar-se em poderoso fertili-
zante.) É obviamente muito mais fácil conseguir o controle da na-
talidade nas zonas urbanas desenvolvidas do que nas zonas rurais
subdesenvolvidas. (Por essa razão, alguns adeptos do fatalismo de-
mográfico temem que a política de contenção populacional, ao invés
de conseguir resultados estatísticos expressivos, simplesmente a-
grave a concentração de rendas, por reduzir o tamanho das famílias
ricas sem fazer o mesmo para os pobres.) E entre esses obstáculos
educacionais, não é de se desprezar a posição dos partidários do
ufanismo demográfico, que continuam insistindo naquela esdrúxula
aritmética que infla os denominadores para aumentar os quocientes.
Como consolo, restam três observações: a primeira é a de que,
não obstante esses obstáculos, o custo da implantação do controle
de natalidade se tem revelado muito inferior ao da explosão demo-
gráfica; a segunda é a de que, provavelmente, em pouco tempo a
tecnologia se encarregará de tornar bem mais simples e cômoda a
aplicação dos anticoncepcionais; a terceira é a de que o Programa
Estratégico de Desenvolvimento 1968-1970, elaborado pelo Ministé-
rio do Planejamento e da Coordenação Geral, representa um grande
passo para definir a política demográfica brasileira, levando em
consideração a situação atualmente existente e as perspectivas do
crescimento populacional. Como assinala Rubens Vaz da Costa, "em-
bora as proposições ainda sejam bastante cautelosas, face aos gra-
ves problemas de crescimento da população, essa iniciativa do Go-
verno Federal — que pela primeira vez traça uma política demográ-
fica restritiva — é bem vinda, e de há muito já deveria ter sido
tomada"1.

1
Crescimento Demográfico e Desenvolvimento Econômico — O Caso Brasileiro — Fortaleza, dezembro de 1968.
De fato, qualquer política de controle populacional tem que
partir do postulado básico do respeito às liberdades individuais;
cada família deve ter o direito de escolher livremente a dimensão
que desejar. Esse direito, todavia, só se poderá exercer na sua
plenitude quando a população tiver acesso a todas opções, uma das
quais é a do uso dos anticoncepcionais modernos.
Capítulo v
A TOLERÂNCIA INFLACIONARIA

5.1 — A Evolução da Taxa Inflacionária no Brasil

Um dos aspectos curiosos da História Econômica do Brasil resi-


de na tendência secular à alta de preços, registrada desde os pri-
meiros anos do Império. Provavelmente pela tendência crônica ao
déficit orçamentário, o Brasil não conheceu ciclos de preços seme-
lhantes aos dos Estados Unidos onde as ondas largas de inflação se
intercalaram com períodos prolongados de baixa de preços. A Histó-
ria Brasileira limita-se a apontar alguns anos de deflação, mas
nunca uma onda longa de preços descendentes.
Pouco se conhece, quantitativamente, a respeito da inflação
brasileira antes da Primeira Guerra Mundial. Sabe-se que, ao longo
do século passado, o Governo se manteve sempre propenso ao déficit
orçamentário que, em vários anos, chegou a ultrapassar vinte por
cento das despesas. Sabe-se também que o papel-moeda em circulação
se expandiu continuamente — de 9.171 contos de réis em 1822, para
670.000 contos em 1900. Dificilmente, porém, se podem aproveitar
esses dados para qualquer avaliação quantitativa da inflação no
século passado, pois nem se sabe qual a percentagem dos déficits
públicos no produto nacional, nem o comportamento secular da velo-
cidade-renda da moeda (esta última, provavelmente, teria baixado
ao longo do século, à semelhança do que ocorreu em outros países).
Uma tentativa de quantificação da inflação brasileira, antes
da Primeira Guerra Mundial foi elaborada por Oliver Ónody, em seu
livro "A Inflação Brasileira, 1820-1958" — pela construção de um
índice do custo de vida, de 1829 a 1912. Esse índice alcança ape-
nas alguns anos esparsos, e foi calculado por média simples, a
partir de dados das tarifas de alfândegas, relativos a dezoito
produtos. Por maiores que sejam as reservas com que tal índice te-
nha que ser encarado, ele fornece uma certa idéia do que foi a in-
flação brasileira no século passado.
A julgar por esses dados, num período de 58 anos, de 1829 a
1887, os preços teriam apenas sido multiplicados por 2,31 o que
corresponde a uma taxa média de inflação de apenas 1,5% ao ano.
Tudo indica, assim, que a taxa inflacionária durante o Império te-
nha sido extremamente branda. Entre 1887 a 1896 os preços teriam
mais do que duplicado — por força das pesadas emissões nos primei-
ros anos da República (o papel-moeda em circulação aumentou de
51,6% em 1890, e de mais 71,8%, em 1891). Entre 1896 e 1900, o
custo de vida teria baixado de 7,5% o que condiz com a política
deflacionária do Governo de Campos Sales (o papel-moeda em circu-
lação diminuiu de 5,7% em 1899, e de 8,6% em 1900). Finalmente,
entre 1900 e 1912, os preços se teriam mantido virtualmente inal-
terados, baixando apenas de 1% nesse período de doze anos.
Para o período compreendido entre 1912 e 1939 dispõe-se de um
índice regular sobre o custo de vida na cidade do Rio de Janeiro.
Entre 1912 e 1914 os preços cresceram apenas de 2% — prolongando a
tendência à estabilidade que vinha sendo registrada desde 1900.
Entre 1914 e 1927, os preços subiram, em média, de 8% ao ano, as
taxas do período de guerra tendo-se mantido nos anos subseqüentes.
Entre 1927 e 1933, o custo de vida caiu de quase 15% — a maior
queda anual tendo ocorrido entre 1929 e 1930, em consonância com o
início da Grande Depressão. Daí por diante, até o início da Segun-
da Guerra Mundial, os preços voltaram a subir a uma taxa média a-
nual de 7% ao ano — com uma certa tendência ao amortecimento nos
últimos anos da série.
Para o período que se estende desde 1939, dispõe-se de infor-
mações estatísticas bem mais satisfatórias a respeito da inflação
brasileira — pois os índices preparados pela Fundação Getúlio Var-
gas, SEPT, Prefeitura de São Paulo etc. remontam a esse ano. De
acordo com esses índices, entre 1939 e 1946 os preços teriam subi-
do, em média, de 15% ao ano — em grande parte pelas dificuldades
de suprimento no período de guerra e pelo efeito inflacionário dos
superavits no balanço de pagamentos. Entre 1947 e 1949 freiou-se
sensivelmente a alta de preços, tendo-se quase chegado à estabili-
dade monetária de acordo com alguns índices. A partir de 1950, to-
davia, os preços voltariam a subir rapidamente. Entre esse ano e
1958, a taxa de inflação oscilou mais ou menos irregularmente, em
torno da média anual de 17%, sem qualquer tendência nitidamente
explosiva.
O galope inflacionário dos últimos anos parece ter-se iniciado
em 1959 — ano em que o Governo resolveu abandonar um interessante
Programa de Estabilização Monetária preparado em fins de 1958. En-
tre janeiro e dezembro, o índice geral de preços por atacado subiu
de 36,1%; o do custo de vida em São Paulo, de 42,7%; e o do custo
de vida na Guanabara, de 52,0%. Em 1960, a inflação abrandou-se um
pouco, os preços tendo subido, em média, de 25 a 30%. Todavia, em
1961 e 1962 voltaria a recrudescer a ascensão dos preços, chegando
a taxas de 40 a 50% em 1961, e de 50 a 60% em 1962.
No ano de 1963 o processo agravou-se ainda mais. Um programa
de estabilização, corretamente preocupado com a contenção da de-
manda, mas estranhamente relaxado no controle dos custos, foi ex-
perimentado e logo a seguir abandonado. O déficit de caixa do Go-
verno chegou a níveis sem precedentes, a desordem salarial implan-
tou-se sob o patrocínio do Poder Executivo e, como resultado, en-
tre o início e o fim do ano, os preços subiram de 80%.
Nos três primeiros meses de 1964 — o período final do Governo
Goulart — os preços subiram de nada menos que 25%. Essa taxa, ex-
trapolada geometricamente, equivaleria a 144% ao ano, cálculo fre-
qüentemente relembrado pelos dirigentes do Governo Castello Bran-
co. Após a Revolução de 31 de março, o Governo empenhou-se num
programa gradual de estabilização monetária, cujas diretrizes fo-
ram apresentadas no PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo).
Em 1964, conseguiu-se apenas evitar a explosão hiperinflacionária,
contendo-se a alta do custo de vida na Guanabara em 86,6% e a dos
preços por atacado em 93,3%. Em 1965, os resultados foram mais vi-
síveis; o aumento do custo de vida na Guanabara se limitou a 45% e
o dos preços por atacado a 28%. Essa queda substancial da taxa de
inflação foi conseguida pela aplicação dos remédios clássicos fis-
cais e salariais, mas não contou com a devida contrapartida de
austeridade monetária (em 1965 a expansão dos meios de pagamentos
subiu a 75%). Essa foi uma das razões pelas quais 1966 foi um ano
de combate acirrado as causas da inflação, mas de efeitos pouco
brilhantes — os índices de preços subiram de cerca de 40% (outra
razão foram as más safras agrícolas). Em 1967 e 1968, não obstante
certo relaxamento da política monetária e dos deficits orçamentá-
rios, os resultados foram bem mais favoráveis — os principais ín-
dices de preços subiram de 25% ao ano, aproximadamente.
Os resultados conseguidos desde 1964 certamente abrem uma
perspectiva otimista: estamos no ramo descendente da curva infla-
cionária (esperemos que não haja nenhuma montanha à frente). Em
todo o caso, pelos padrões internacionais somos incrivelmente to-
lerantes com a inflação. Um dos melhores indícios, nesse sentido,
é a atual aceitação de um gradualismo a passo de cagado e a repul-
sa a qualquer tratamento de choque. Em parte essa tolerância se
deve ao fato de que a grande maioria do povo brasileiro jamais co-
nheceu a estabilidade monetária; em parte ao fato de que a econo-
mia brasileira encontrou mecanismos de convivência com a inflação
(como a correção monetária), os quais, sob muitos aspectos, ameni-
zam as distorções causadas pela alta violenta de preços; em parte
ao fato de que nunca descambamos para a hiperinflanção (certos po-
vos, como o alemão, parecem recordar-se o suficiente da hiperin-
flação para mostrar incrível ojeriza a qualquer sopro inflacioná-
rio); em parte, finalmente, porque paira muita confusão entre ní-
vel de atividade a curto prazo e crescimento econômico a longo
prazo. Esta última confusão tem levado várias pessoas a acreditar
que a inflação é ingrediente necessário, ou pelo menos favorável a
uma política de desenvolvimento. Seria conveniente voltar os olhos
para o mundo e observar que a experiência brasileira do período de
pós-guerra (até 1961) — a de coexistência entre inflação e desen-
volvimento — não representa a regra, mas a exceção. E que, afinal
de contas, coexistência está longe de significar correlação posi-
tiva.

5.2 — Raízes Sócio-Políticas dos Processos Inflacionários Crônicos

Em termos gerais, a raiz sócio-política das inflações crônicas


nos países subdesenvolvidos se pode encontrar na incompatibilidade
da política distributiva do Governo. Os diferentes grupos sociais
mostram-se insatisfeitos com a sua participação no produto nacio-
nal, e o Governo, para aplacá-los, tenta dividir o produto em par-
tes de soma superior ao todo.
Essa atitude psicológica, por mais primitiva que pareça, tem
contaminado grande parte dos governos dos países subdesenvolvidos,
e propende a contaminar febrilmente os governos das nações subde-
senvolvidas tocadas pela revolução das aspirações crescentes. A
razão é bastante simples. Uma população de baixo nível de renda
per capita, que alargue subitamente os seus horizontes de consumo
pela incidência do efeito-demonstração, tende a reivindicar melho-
rias de padrão de vida muito mais rápidas do que as que seriam
permitidas pelo aumento de produtividade. Todo o mundo se convence
honestamente de que seu salário é injusto e não dá para viver. Es-
sa convicção acaba-se transmitindo à órbita política e o Governo
resolve aumentar a participação de uns tantos no produto nacional,
sem reduzir a de outros tantos. Como as fatias prometidas a cada
grupo social são expressas em termos nominais, a inflação recompõe
a consistência lógica do sistema: a alta de preços trata de enco-
lher a fatia real de cada grupo, de modo que a soma das partes se
ajuste às dimensões do todo. Na medida em que o ciclo se repete, a
inflação vai-se tornando crônica. E, na medida em que o sistema
apressa seu período de reação contra a compressão das fatias dis-
tributivas via alta de preços, a inflação se acelera.
Não é, todavia, apenas o desejo do aumento de consumo que ex-
plica o desenvolvimento da política de incompatibilidade distribu-
tiva. Os governos dos países subdesenvolvidos tocados pela revolu-
ção das aspirações crescentes não tardam a reconhecer — um passo,
aliás, na direção certa — que a aceleração do processo de desen-
volvimento exige o aumento da fração do produto nacional destinado
à formação do capital. Nesse momento surge um novo conflito dis-
tributivo: o Governo procura aumentar a fatia poupada do produto
nacional, mas não se decide explicitamente a comprimir a fatia
consumida. O resultado, naturalmente, é o engrossamento nominal do
bolo e a compatibilização distributiva via alta de preços.
Existem, obviamente, certas condições político-culturais para
que esse mecanismo se possa desenvolver. Em primeiro lugar, é pre-
ciso uma certa insensibilidade popular às causas da inflação. Em-
bora nenhum povo se componha exclusivamente de peritos em teoria
de inflação, é provável que os graus de sensibilidade para a per-
cepção do problema variem consideravelmente, e que sejam natural-
mente menores nos países subdesenvolvidos. No Brasil, conquanto a
massa abomine a alta contínua de preços, não há notícia de qual-
quer manifestação de protesto popular contra os déficits orçamen-
tários.
Em segundo lugar, é preciso que os políticos, por ignorância
ou por estratégia, se deixem envolver pela filosofia da incompati-
bilidade distributiva. A primeira hipótese não fica fora de cogi-
tações: não são poucos os membros das classes dirigentes dos paí-
ses subdesenvolvidos que, quando resolvem aumentar a fatia de um
determinado grupo no Produto Nacional, se esquecem de indagar que
outras fatias terão que ser comprimidas.
A segunda hipótese é a da estratégia demagógica. Embora a in-
flação desprestigie os governos, os seus focos causais costumam
ser também focos de popularidade (é obviamente agradável decretar
aumentos de salários ou de despesas públicas). Posta a ética de
lado, o político poderá balancear as vantagens e as desvantagens
das decisões distributivamente incompatíveis; e muitas vezes optar
pelas vantagens, principalmente diante de uma população que, em
matéria de inflação, não se mostra muito sensível às relações de
causa e efeito1.
Uma vez desencadeado o processo inflacionário sob as motiva-
ções acima expostas, é difícil contê-lo e, ainda mais, o deter. As
partes lesadas no ajuste distributivo via alta de preços costumam
reivindicar o retorno à sua posição primitiva, e o Governo — que
de fato não costuma ter em vista nenhuma intenção redistributiva,
1
Um outro caso estratégico seria o de uma alta de preços propositalmente destinada a provocar uma redistribuição de
renda — com a alta da participação de uns grupos e a redução de outros. Essa seria a política de redestribuição natural
em face de uma irredutibilidade institucional dos rendimentos nominais. Todavia, tratar-se-ia de uma alta de preços de
uma vez por todas, e não de uma inflação crônica.
mas o simples e inconsistente desejo de aumentar a fatia de todos
no bolo — põe em marcha uma nova onda inflacionária. E assim a in-
flação se torna crônica. Ao cabo de um certo tempo, como todos se
apercebem do fenômeno, as reivindicações classistas passam a repe-
tir-se em intervalos cada vez mais curtos — e a inflação se acele-
ra.
À margem da alta crônica dos preços um fenômeno importante
tende a desenvolver-se: o da oscilação das rendas reais dos dife-
rentes indivíduos. Dificilmente se encontra um indivíduo ou um
grupo social que consiga atravessar uma inflação prolongada man-
tendo estável ou continuamente ascendente o seu poder aquisitivo.
O normal é um movimento oscilante da renda real de cada um (possi-
velmente com uma tendência ascendente, quando há desenvolvimento),
com altos e baixos, correspondendo aos períodos de ganhos ou de
perdas no processo inflacionário. O caso dos assalariados (global-
mente o mais importante) é típico: como os salários nominais se
reajustam descontinuamente e os preços sobem continuamente, os ní-
veis de poder aquisitivo entram no movimento oscilatório: logo a-
pós um reajustamento os salários reais atingem o seu pico; daí por
diante, enquanto a remuneração nominal permanece fixa, o seu poder
aquisitivo vai declinando progressivamente; quando há um novo rea-
justamento, volta-se ao pico, e assim por diante.
Do ponto de vista agregativo, as oscilações da renda real dos
diferentes grupos de indivíduos virtualmente se compensam; quando
estão em seus picos de renda real, outros se encontram nos vales,
outros a meio caminho, pois as datas de reajuste são diferentes
para cada um deles. A superposição desses ciclos defasados produz
um movimento livre de oscilações, pelo mesmo princípio de trans-
formação de corrente alternada em corrente contínua. Agregativa-
mente tudo se passa como se ao invés de viverem em ciclos de poder
aquisitivo, os indivíduos permanecessem na confortável estabilida-
de dos níveis médios.
As oscilações das rendas reais dos indivíduos, no entanto,
deixam um importante subproduto psicológico1. Os picos prévios de
poder aquisitivo, ainda que fugazes, passam a representar um pa-
drão de referência reivindicatória do qual poucos indivíduos se
mostram dispostos a abrir mão; gera-se uma espécie de mística em
torno desses picos prévios, e a convicção de que eles representam
o mínimo de justiça distributiva que a cada um é lícito aspirar.
O problema dessa atitude psicológica está na incompatibilidade
da ocorrência simultânea desse conjunto de picos prévios. Durante
a conjuntura inflacionária, enquanto alguns indivíduos, se encon-
tram no auge da renda real, outros se encontram nos pontos mais
baixos, e os ciclos se compensam pelas médias. Estabilizar todos
os indivíduos pelos picos só seria possível se o produto real da
economia se elevasse consideravelmente, e esse aumento necessário
seria provavelmente muito superior às possibilidades de crescimen-
to a curto prazo.
Esse efeito dos picos prévios sobre as aspirações e expectati-
vas explica as usuais dificuldades políticas da estabilização mo-

1
A idéia da influência dos picos prévios, ainda que num estilo algo diferente, foi amplamente analisada por Duesenber-
ry — Income Saving and a Theory of Consumer Behaviour (Harvard University Press, 1949).
netária. Em particular, interpreta a alusão tão costumeira aos
"sacrifícios da estabilização". Torna-se necessário implantar uma
política de "prometer menos para que a inflação não dissolva aqui-
lo que foi prometido", e essa política dificilmente causa o agrado
popular. Em primeiro lugar, porque muitos esperam da estabilização
o milagre de tornar duradouros os auges fugazes do poder aquisiti-
vo passado. Em segundo lugar, porque outros, pouco confiantes na
estabilização dos preços, temem que de promessas mais magras adve-
nham resultados também mais minguados.
Tal é, em linhas gerais, o contexto sócio-político dentro do
qual se desenvolveu a inflação brasileira do pós-guerra. Não sur-
preende que, dentro desse contexto, proliferassem os mais variados
focos objetivos do processo inflacionário — tais como os déficits
públicos descontrolados, a expansão monetária acelerada e os rea-
justes salariais desordenados. Não surpreende também que várias
tentativas de estabilização tenham fracassado, pela sua incapa-
cidade de enfrentar o problema político de recompatibilização dis-
tributiva.

5.3 — As Distorções Inflacionárias

Um processo inflacionário violento é sempre a origem das mais


variadas distorções econômicas. O Brasil não fugiu à regra. Talvez
a experiência brasileira não tenha sido tão infeliz quanto a de
outros povos, já que tais distorções, pelo menos até 1961, não
chegaram ao ponto de impedir o crescimento do país. Ainda assim,
elas marcaram a fundo o processo econômico brasileiro, causando o
desperdício de fatores e o sacrifício da população.
A literatura econômica recente tem descrito fartamente a natu-
reza das principais distorções causadas pela inflação. Como somos
um povo excessivamente tolerante com alta crônica de preços, é de
bom alvitre apontar, mais uma vez, as mais flagrantes dessas dis-
torções.

A) — A Instabilidade e a Desordem Salarial

Não há evidência empírica de que, a médio e a longo prazo, a


inflação brasileira tenha deprimido a média dos ganhos reais das
classes assalariadas. Na realidade, os salários reais têm revelado
uma tendência ascendente desde o término da Segunda Guerra Mundial
e não há razão para supor que à inflação se tenha associado qual-
quer mecanismo de atraso sistemático dos reajustamentos. É inegá-
vel, todavia, que a inflação tem provocado a instabilidade dos sa-
lários reais, tornando-os oscilantes pela conjugação de altas de
preços contínuas com revisões intermitentes das remunerações nomi-
nais. Essas oscilações impõem pesados sacrifícios aos que vivem de
salários, sobretudo nos níveis de renda mais reduzidos.
Ao lado da instabilidade geral, as hierarquias de remuneração
foram consideravelmente distorcidas pelo processo inflacionário. A
alta crônica dos preços serviu de pretexto a reajustamentos sala-
riais desordenados, desvinculados de qualquer conceito de produti-
vidade ou de hierarquia. Certas classes, politicamente bem escuda-
das, conseguiram chegar a níveis de salários desproporcionalmente
elevados em relação às demais, como foi o caso dos marítimos, por-
tuários e alguns ferroviários. Em contraposição, a classe média,
menos unida e de menor poder reivindicatório, passou por vários
períodos de compressão da renda real. No caso de funcionalismo pú-
blico, por exemplo, era hábito sujeitar os reajustes salariais a
um teto aritmético, ou a conceder menores percentagens de aumentos
para as classes de remuneração mais elevada. A repetição desse
procedimento provocou sério achatamento da pirâmide salarial (in-
clusive no caso dos militares), tornando o serviço público muito
pouco atrativo para os técnicos mais qualificados.

B) — O Controle das Tarifas dos Serviços de Utilidade Pública

À semelhança do que ocorreu em outros países, o Governo brasi-


leiro não resistiu à tentação de procurar combater a inflação pe-
los seus sintomas. Tal política — em grande parte apoiada na in-
compreensão popular quanto às verdadeiras causas da inflação — ba-
seou-se naturalmente nos controles de preços.
As vítimas mais tradicionais do sistema foram, como de hábito,
os serviços de utilidade pública — os quais, por sua condição de
monopólios naturais, têm suas tarifas reguladas pelo Governo. A
regra geral, durante muito tempo, foi a dos reajustamentos atrasa-
dos e menos do que proporcionais à alta de preços. O caso mais tí-
pico foi o do controle das tarifas de energia elétrica, as quais
são fixadas de modo a cobrir os custos de produção e proporcionar
à concessionária 10% de remuneração sobre o valor histórico do seu
investimento. Até 1964 o valor histórico era interpretado em seu
sentido puramente nominal (sem qualquer correção monetária) e,
nessas condições, a remuneração real dos capitais investidos em
energia elétrica se tornava absurdamente pequena1. Além disso, as
depreciações eram computadas apenas a partir dos valores históri-
cos dos equipamentos e instalações, o que ainda mais reduzia a
rentabilidade das concessionárias.
É curioso perguntar por que esse critério flagrantemente in-
justo de tarifação persistiu por tanto tempo (de 1934 a 1964). Num
debate franco, o Governo sempre concordava quanto à irracionalida-
de do critério do custo histórico nominal numa conjuntura infla-
cionária. Todavia o desejo de reprimir os preços quase sempre pre-
valecia. Além disso, a influência dos capitais estrangeiros nas
concessionárias parecia constituir uma das razões da resistência
ao realismo tarifário.
O resultado de tudo isso foi o desinteresse do capital privado
pelos serviços de utilidade pública. Desenvolvia-se nesse ponto um
sério foco de incompatibilidade entre o Governo e o setor privado.
O primeiro era obrigado a entrar no suprimento desses serviços na
qualidade de investidor supletivo, a fim de evitar o aparecimento
de graves pontos de estrangulamento. Com isso, alguns setores bá-
sicos eram abandonados pela iniciativa privada, passando às mãos
do Governo. Além disso, o Governo só entrava como investidor su-
pletivo após transcorrido certo tempo de racionamento e deficiên-
cia qualitativa dos serviços — e nesse meio tempo a iniciativa

1
Um decreto de 1964 autorizou a revisão do conceito de custo histórico, com a inclusão das correções monetárias cabíveis.
privada era apontada à opinião pública como incapaz de atender à
sua crescente demanda no processo de desenvolvimento econômico.

C) — O Controle Cambial

A tentativa de reprimir os sintomas da inflação se estendeu


com bastante freqüência ao mercado cambial. Como parte da política
de controle de preços, mantinham-se taxas cambiais supervaloriza-
das, e que eram sustentadas à custa de certo controle quantitativo
das importações. Obviamente uma taxa de câmbio fixa não pode ser
sustentada indefinidamente ao longo de uma inflação crônica. Mas é
sempre possível reajustá-la com atraso em relação à alta dos pre-
ços, se se reprimem as despesas em moeda estrangeira.
De todas as etapas do controle cambial no Brasil, a que prova-
velmente provocou maiores distorções no sistema de preços, na ori-
entação das atividades econômicas e na estrutura do nosso balanço
de pagamentos, foi a que se iniciou em junho de 1947, estendendo-
se até janeiro de 1953. Sua característica básica foi a imobiliza-
ção da taxa de câmbio em torno da paridade de Cr$ 18,50 por dólar
declarada ao Fundo Monetário Internacional, ao mesmo tempo em que
o nível interno de preços era continuamente impelido pela inflação
(entre junho de 1947 e janeiro de 1953 o custo de vida no atual
Estado da Guanabara subiu de 67%).
Os resultados dessa política de imobilização da taxa cambial
durante a inflação não causam surpresa: desestimularam-se as ex-
portações e as entradas de capitais; estimulou-se a remessa de lu-
cros a um ponto tal que se tornou necessário as conter por restri-
ções quantitativas; excitou-se, finalmente, um mercado negro onde
as moedas estrangeiras eram cotadas muito acima do seu valor le-
gal. Na realidade o congelamento da taxa de câmbio só se pôde sus-
tentar pela extraordinária alta das cotações de café — alta que,
na época, trouxe muitos dólares para o Brasil, mas que foi a
responsável pela posterior superprodução mundial.
A partir de 1953 o sistema cambial enveredou por uma trilha de
menor irrealismo — ainda que freqüentemente repleta de distorções.
Em janeiro desse ano instituía-se o mercado livre de câmbio paia
as transferências financeiras. Em outubro, introduzia-se o sistema
de taxas múltiplas de câmbio para importações e exportações. O
sistema cambial, daí até 1957, foi progredindo no sentido da com-
plicação. Houve época em que se contavam no Brasil algumas dezenas
de taxas de câmbio: taxa oficial, acrescida das sobretaxas míni-
mas; as taxas das cinco categorias de importações, as quais varia-
vam conforme a área de conversibilidade da moeda estrangeira; as
taxas das quatro categorias de exportações para países de moeda
conversível; as taxas dos leilões específicos; a taxa do mercado
livre etc. Em agosto de 1957, com a promulgação da Lei nº 3244
(lei das tarifas aduaneiras) o sistema cambial foi algo simplifi-
cado, pela redução das categorias de importação de cinco para duas
(persistiam, todavia, as importações favorecidas ao chamado câmbio
de custo). Um apreciável grau de complicação, todavia, persistiu
até março de 1961.
Não cabe no presente texto uma análise extensiva dos efeitos
da política cambial no período 1953/1961. A política conteve mui-
tas motivações além do controle de preços, tais como o protecio-
nismo à indústria nacional, a defesa dos preços externos do café
etc. O espírito do controle de preços, todavia, se manteve aceso
pelo menos em dois pontos:
a) — na manutenção de taxas cambiais especialmente favorecidas
para certas importações (trigo, petróleo e derivados, papel de im-
prensa etc.) à custa de pesados subsídios;
b) — no atraso sistemático das taxas pagas as exportações em
relação à alta interna dos preços.
Em março de 1961, com a promulgação da Instrução nº 204, da
SUMOC, posteriormente reforçada pela Instrução nº 208, restaurou-
se no país a política de realismo cambial. As taxas foram unifica-
das, com tratamento diferencial apenas para o café e para as im-
portações consideradas supérfluas (categoria especial), e tornadas
perfeitamente flexíveis. Com a ascensão do Governo Goulart, no en-
tanto, restabeleceu-se a prática de atrasar a taxa de câmbio em
relação à inflação, prática que deu logo origem a um mercado para-
lelo para operações financeiras e, ao cabo de algum tempo, a um
retorno parcial ao sistema de taxas múltiplas. Uma nova política
de unificação e liberdade cambial foi implantada pelo Governo Cas-
tello Branco em maio de 1964. Desde então a taxa de câmbio se tem
mantido praticamente unificada, com revisões realistas em função
do ritmo inflacionário.

D) - As Distorções no Mercado de Crédito

Um processo inflacionário crônico obviamente provoca inúmeras


distorções no mercado de crédito de qualquer país. Mesmo quando a
alta de preços se torna esperada, e os credores passam a prever o
seu reembolso em moeda desvalorizada, várias dificuldades podem
persistir. No caso do Brasil, um dos fatores de perturbação do
mercado de crédito foi a tradicional lei da usura, promulgada em
1933, e que proibia juros nominais superiores a 12% ao ano.
De um modo geral, a inflação gera dois tipos de distorções no
mercado de crédito. O primeiro tipo ocorre quando a inflação se
inicia e consiste nos conhecidos "ganhos dos devedores em detri-
mento dos credores", já que estes são reembolsados em moeda desva-
lorizada. Com o correr do tempo, porém, as distorções vão-se apro-
fundando, pois a alta geral dos preços já não mais surpreende nin-
guém. Os ganhos dos devedores à custa dos credores, embora eventu-
almente possam subsistir, passam a ser obstados pela resistência
dos mutuários, que já não deixam de incluir a inflação nas suas
previsões. A taxa de juros nominal dissocia-se da taxa real, entre
elas se interpondo o ritmo da inflação. Um aumento substancial das
taxas de juros se impõe como forma natural de adaptação do mercado
de crédito à conjuntura inflacionária.
Nessa segunda fase surgem as distorções causadas pelos óbices
institucionais. A taxa nominal de juros freqüentemente é limitada
legalmente (12% ao ano, no Brasil, no caso da lei da usura). Sur-
gem então os mais variados artifícios para contornar essa limita-
ção, como entre nós foram os juros cobrados por fora, as sobrecar-
gas em comissões bancárias, os deságios em letras de câmbio, as
contas de participação etc.
Por outro lado, independentemente das limitações legais da ta-
xa de juros, a inflação acarreta um outro problema, talvez de so-
lução mais difícil. Quando um país enfrenta uma inflação como a
que atualmente ocorre no Brasil, o principal determinante das ta-
xas nominais de juros passa a ser o ritmo esperado da alta geral
de preços. As previsões quanto às taxas de inflação, todavia, são
inevitavelmente precárias e arriscadas, sobretudo quando se esten-
dem a prazos não muito curtos. Esse problema fatalmente conduz à
redução dos prazos de operação do mercado de crédito, criando im-
passe de difícil solução para as operações a longo prazo.

E) — A Imprevisibilidade Financeira

Um dos efeitos tradicionais da inflação consiste em destruir


as possibilidades de previsão financeira. Os orçamentos de qual-
quer projeto estouram repetidamente pela alta dos custos. Ainda
que os cálculos financeiros incluam uma provisão para a cobertura
do efeito inflacionário, a taxa de inflação amiúde ultrapassa as
expectativas. Os custos de qualquer empreendimento que requeira
três ou quatro anos de execução se tornam imprevisíveis, diante da
incerteza quanto ao futuro ritmo da alta de preços.
Sem dúvida, essa imprevisibilidade dos custos representa um
dos maiores fatores de perturbação dos empresários brasileiros. Os
planos de financiamento se tornam rapidamente obsoletos e não são
poucas as obras que, volta e meia, são interrompidas até que se
consigam novos recursos. Em suma, a inflação acaba por alongar
dramaticamente os cronogramas de investimentos. Por prudência, os
capitais privados se afastam dos setores de base, onde as in-
versões exigem longo prazo de maturação, temendo não poder con-
cluí-las. E as próprias obras governamentais se atrasam pelo repe-
tido estouro das provisões e pela necessidade de complementação
dos fundos.

F) — As Ilusões de Rentabilidade

A inflação é fonte perene de ilusões de rentabilidade. O lucro


real auferido pelas empresas quase sempre fica muito aquém daquilo
que se lê nos balanços publicados. Com efeito, parte dos lucros
nominais contabilizados não passa de provisões complementares para
depreciação, visto que as provisões explícitas freqüentemente se
calculam com base nos custos históricos dos equipamentos e ins-
talações, tornando-se assim absolutamente incapazes de atender às
necessidades de reposição do ativo fixo (até 1964, a lei do Impos-
to de Renda só permitia a dedução de depreciações calculadas com
base no custo histórico; só a partir de 1965, de acordo com a Lei
n9 4357, de 17 de julho de 1964, foi aceito o cálculo com base nos
ativos reavaliados). Por outro lado, também parte dos lucros reti-
dos nada mais representa do que uma provisão para a reposição do
capital de giro (reposição dos estoques que, com a inflação, pas-
saram a custar mais caro, manutenção do valor real das disponibi-
lidades da empresa etc). Trata-se de ganhos ilusórios, já que sua
reinversão nada acresce ao patrimônio real das empresas.
Não se sabe ao certo, a quanto montaram esses ganhos ilusó-
rios, mas há indícios de que eles absorveram parte substancial dos
lucros de balanço na época do auge inflacionário. Só uma de suas
componentes, que posteriormente viria a denominar-se "manutenção
do capital de giro", devorou, entre 1958 e 1964, de 52,1% a 74%
dos lucros das Sociedades Anônimas, de acordo com as consolidações
de balanços publicadas pela revista Conjuntura Econômica.
As ilusões de rentabilidade parecem ter sido a origem de inú-
meras distorções atingindo os empresários, o Governo e a opinião
pública. Os empresários deixaram de ter na contabilidade um regis-
tro real de seus ganhos, o que freqüentemente os levou à tomada de
decisões inadequadas: não foram poucas as empresas que se descapi-
talizaram imaginando distribuir dividendos. O Governo, por muito
tempo tributou os ganhos ilusórios como se fossem reais, enqua-
drando-os freqüentemente no esdrúxulo imposto sobre lucros extra-
ordinários que vigorou até 19651. O resultado era uma tributação
injusta e um forte estímulo à sonegação. A opinião pública, sem
suficiente compreensão do problema, freqüentemente encarava as al-
tas rentabilidades de balanço como sintoma de abuso do poder eco-
nômico, firmando-se na superstição de que a alta do custo de vida
era provocada pela especulação e pela ganância das classes produ-
toras.

G) — O Desestímulo aos Investimentos Sociais

Contrariamente ao que ocorreu em outros países, a inflação


brasileira atrofiou, ao invés de estimular os investimentos habi-
tacionais (salvo num breve período de especulação imobiliária logo
após a guerra). Isso se deveu basicamente a dois fatores: à perma-
nência, até 1964, de uma lei do inquilinato que congelava ou semi-
congelava os aluguéis nominais, tornando mau negócio a compra de
imóveis para locação; e à escassez da oferta de crédito hipotecá-
rio (em virtude da inflação), o que restringia consideravelmente o
acesso à compra de imóveis. Por esses mecanismos a inflação acabou
dando origem a um tremendo déficit residencial, publicamente ex-
posto na proliferação de favelas e habitações anti-higiênicas. Só
nos últimos anos é que se conseguiu inverter essa tendência, com a
extensão do princípio da correção monetária aos aluguéis e aos fi-
nanciamentos imobiliários, e com o reforço do Banco Nacional de
Habitação pelo Fundo de Garantia de Tempo de Serviço.

H) — A Falência do Papel Orientador do Sistema de Preços

Em resumo, grande parte dos méritos do sistema de preços como


orientador da produção e dos investimentos tem sido posta por ter-
ra pela inflação brasileira. Os controles de preços, a intervenção
dos riscos inflacionários, os desequilíbrios da incidência tribu-
tária e as dificuldades de uma política racional de decisões em-
presariais divorciam as escalas de rentabilidade das de produtivi-

1
A tributação dos lucros ilusórios vem sendo suprimida gradualmente desde a promulgação da Lei nº 4357, de julho de
1964. Essa lei permitiu que as depreciações fossem calculadas a partir dos ativos corrigidos e que a manutenção do ca-
pital de giro fosse abatida no cálculo dos lucros extraordinários. O Decreto-Lei nº 401 de dezembro de 1968 veio permi-
tir que a manutenção do capital de giro fosse parcialmente deduzida do lucro tributável.
dade social. Desestimulam-se os investimentos de base e incentiva-
se a especulação. Afrouxa-se a correlação entre enriquecimento e
esforço produtivo e desenvolve-se em grande parte do povo a con-
vicção de que é preferível ser esperto a trabalhar.
Nenhuma dessas distorções provocadas pela inflação brasileira
se pode considerar surpreendente. Todas elas simplesmente trans-
crevem a experiência de tantos outros países que se submeteram ao
processo inflacionário. É certo que no Brasil essas distorções não
chegaram a impedir que o produto real crescesse aceleradamente até
1961. Essa coexistência, aparentemente pacífica, em parte se ex-
plica porque se tratava de uma fase de desenvolvimento fácil, ba-
seada na substituição de importações; em parte porque o Governo
conseguiu melhorar artificialmente a relação capital/produto pelo
descaso aos investimentos sociais e pelo subsídio cambial às im-
portações de equipamentos; em parte, ainda, porque o Governo am-
pliou consideravelmente a sua ação como investidor supletivo, di-
ante dos desestímulos com que a inflação afastava as poupanças
privadas dos setores de infra-estrutura. Resta indagar se essa não
era uma fórmula artificial de crescimento, explorada até seu limi-
te de elasticidade, e sem condições de persistência a longo prazo.
Desde 1964 o Governo vem procurando não apenas conter a taxa
inflacionária, mas também neutralizar as distorções por ela causa-
das. Esse último aspecto tem sido conseguido pela introdução da
correção monetária nos títulos da dívida pública, nos débitos fis-
cais, nos financiamentos imobiliários, nos balanços de empresas,
nas tarifas de serviços de utilidade pública, nos aluguéis e nos
títulos de crédito a médio e longo prazo. Embora a correção de al-
guma forma realimente a taxa inflacionária, esse foi um passo im-
portantíssimo em prol da racionalidade econômica, sobretudo diante
do fato de que é impossível afastar das expectativas a contingên-
cia das futuras altas de preços. Isso talvez nos autorize a afir-
mar que hoje somos muito mais resistentes à inflação do que a mai-
oria dos países — uma alta de preços de 20% ao ano certamente se-
ria muito mais nociva aos Estados Unidos ou à Alemanha do que ao
Brasil. Mas daí à tolerância com a inflação crônica vai uma grande
distância. Há problemas sérios, como o da imprevisibilidade finan-
ceira, que não se conseguem resolver pela correção monetária.
(Também o impasse no mercado de crédito a longo prazo ainda não
foi satisfatoriamente solucionado.) Por último vale lembrar que a
correção monetária fatalmente se limita a uma componente relativa-
mente pequena do sistema de preços. A correção monetária geral,
aplicável a todos os preços de produtos e fatores de produção se-
ria uma instabilidade algébrica: ou se tornaria inócua, pela per-
feita estabilidade dos preços, ou provocaria de imediato uma hipe-
rinflação.

5.4 — O Inflacionismo e a Estreiteza dos Horizontes de Programação

Um dos vícios de pensamento econômico mais espalhados entre


nós, e que conduz a uma desmedida tolerância com a inflação, con-
siste em aferir os méritos de uma política de desenvolvimento pela
expansão a prazo curto do índice do produto real. Classificam-se
como desenvolvimentistas os governos que conseguem esse êxito ins-
tantâneo, e como estagnacionistas os que se orientam por qualquer
outra meta básica, ainda que esta seja a da maximização da taxa de
crescimento a longo prazo. Esse tipo de apreciação leva a uma e-
xaltação imerecida do comportamento brasileiro no período
1957/1961, quando o produto real cresceu, em média, de 7% ao ano
(incluída, nas estatísticas, a superprodução de café), e a uma
subestimativa dos esforços realizados a partir de 1964. O defeito
óbvio dessa formulação é o de esquecer as conexões intertemporais
da taxa de crescimento: o que o produto real cresce num ano depen-
de não apenas da política específica desse ano, mas muito particu-
larmente da herança recebida dos anos anteriores. Por essa razão,
a maximização da taxa de crescimento a curto prazo costuma entrar
em conflito com a maximização num prazo mais longo. E, como desen-
volvimento é processo aritmèticamente lento, sensível apenas pela
sua continuidade a prazo longo, não há sentido em nos concentrar-
mos no objetivo de horizonte curto.
Essas considerações são praticamente importantes, porquanto
conduzem a uma mudança de apreciação nos critérios do desenvolvi-
mentismo. Se nosso horizonte se limita a um ano, não há melhor po-
lítica que deflagrar uma inflação de procura e caminhar para o en-
dividamento externo desordenado; e, se possível, temperar os focos
inflacionários com algum sistema de controle de preços. De fato, a
fermentação da procura, sobretudo quando acompanhada pela conten-
ção policial dos custos, assegura a absorção de toda a capacidade
existente, ainda que ela contenha erros de dimensionamento e nú-
cleos de ineficiência. E os resultados se mostram ainda mais agra-
dáveis quando os eventuais estrangulamentos da oferta são dissol-
vidos pelo déficit do balanço de pagamentos ou pela liquidação das
reservas cambiais. Infelizmente o sistema econômico tem memória
menos curta do que certos comentaristas políticos. Assim, a eufo-
ria instantânea da inflação de procura ou do endividamento externo
desordenado tem que ser resgatada, mais cedo, mais tarde. E os fa-
tores de aceleração da taxa de crescimento a curto prazo podem
transformar-se em elementos de inibição do progresso em prazo mais
longo. O raciocínio, naturalmente, é reversível. A melhor política
dentro de um horizonte amplo, pode ser bastante ingrata em termos
de prazo curto.
É essa estreiteza de horizontes a causa provável da repulsa
brasileira a um tratamento de choque da inflação. A experiência
internacional mostra que é muito difícil conseguir uma redução
brusca da taxa inflacionária sem uma crise transitória de adapta-
ção. (Nos quatro últimos anos tivemos duas crises — uma no segundo
trimestre de 1965, outra no primeiro trimestre de 1967 — precisa-
mente os períodos que antecederam dois degraus descendentes do
ritmo da inflação). Várias razões tornam esse fenômeno da crise de
estabilização dificilmente evitável. Primeiro, o fato de que mui-
tos empresários, com a persistência da inflação, se habituam a em-
purrar permanentemente os preços para a frente, confiando na gene-
rosa absorção dos produtos pelo mercado; para demovê-los dessa
prática é necessária uma fase de repulsa do mercado à tendência
altista, o que provoca o encalhe de estoques e as dificuldades de
liquidez. Segundo, o fato de que, com o declínio brusco da infla-
ção, as taxas reais de juros costumam subir, pelo menos transito-
riamente (as taxas nominais caem, mas em proporção inferior à da
queda do ritmo inflacionário), o que dificulta consideravelmente a
vida das empresas marginais. Terceiro, o desaparecimento da deman-
da especulativa de bens de capital e de consumo durável, fortemen-
te antecipada quando se esperam, para o futuro, violentas altas de
preços. Por último, é difícil reduzir drasticamente a inflação sem
provocar, pelo menos transitoriamente, certas redistribuições da
procura (que posteriormente podem ser facilmente amenizadas), as
quais prejudicam as vendas de certos setores.
Os comentaristas de horizonte míope, não compreendendo a tran-
sitoriedade do fenômeno, vivem a queixar-se dos baixos índices de
crescimento do produto real no momento em que o Governo tenta li-
vrar-se de uma inflação violenta. Mas, para quem pensa em desen-
volvimento econômico em termos de longo prazo, nada há de aterra-
dor nas crises de estabilização. Trata-se apenas de uma ordenação
cronológica de prioridades, dentro da filosofia de "recuar para
saltar melhor". Essa ordenação, aliás, nada tem de original. A A-
lemanha e o Japão, por volta de 1950 souberam submeter-se a uma
rigorosa disciplina de estabilização, enfrentando crises de negó-
cios muito mais violentas do que as nossas amostras de 1965 e
1967, para depois partir para o crescimento acelerado. E, afinal
de contas, o Brasil não parece em condições de desprezar as expe-
riências de desenvolvimento da Alemanha e do Japão.

5.5 — Inflação e Desenvolvimento — O Caso Brasileiro

A experiência brasileira de coexistência entre uma inflação


crônica e uma taxa satisfatória de crescimento do produto real até
1961 levou vários economistas e interessados a admitir que a alta
geral de preços é ingrediente desejável, ou mesmo necessário, para
uma política de desenvolvimento. É provável que esse entusiasmo se
tenha arrefecido nos últimos anos pois, entre 1962 e 1964, o re-
crudescimento inflacionário coincidiu com o declínio das taxas de
crescimento do produto real. Ainda assim, essas teses desfrutam de
certa popularidade entre alguns estudantes de economia, valendo a
pena comentá-las.
De um modo geral, os inflacionistas são muito pouco científi-
cos nas suas exposições. De um lado, porque não especificam a taxa
de inflação que, no seu entender, é desejável. É claro que nenhum
deles prega a hiperinflação como método desenvolvimentista, mas
não se sabe se, para eles, o ritmo ideal de aumento de preços é de
10%, 20% ou 30% ao ano. De outro lado porque os seus argumentos se
baseiam em hipóteses "a priori" sem qualquer prova empírica. Como
se mostra no Apêndice V ao presente volume, não há evidência esta-
tística que demonstre que a inflação foi sequer benéfica aos índi-
ces de crescimento a curto prazo. Se ampliarmos os horizontes en-
carando o desenvolvimento como um problema de longo prazo, sentir-
nos-emos ainda menos convencidos a respeito da inflação desenvol-
vimentista. Contudo, esse esforço de verificação factual não pare-
ce ter impressionado os adeptos da ilusão criativa, da poupança
forçada, e do estruturalismo — as três teses inflacionistas que
examinaremos a seguir.
A ilusão criativa — provavelmente a mais popular das teses in-
flacionistas — consiste em visualizar aquilo que se faz à custa da
inflação sem observar aquilo que se deixa de fazer em virtude da
alta violenta de preços. Aponta-se freqüentemente esta ou aquela
obra pública como financiada pelo déficit orçamentário, e daí se
assume uma atitude simpática em relação ao processo inflacionário.
Esse tipo de raciocínio envolve pelo menos duas séries de erros. A
primeira consiste em vincular o déficit orçamentário a um determi-
nado conjunto de obras públicas. Trata-se, no mínimo, de uma falha
de entendimento contábil, pois o déficit é o excesso de um total
de despesas sobre um total de receitas, cuja responsabilidade não
pode ser atribuída a qualquer item isoladamente. De fato, quando
se diz que o déficit foi causado por um certo conjunto de obras
públicas, julga-se implicitamente que qualquer saneamento orçamen-
tário tivesse que ser feito pela pior das escalas de prioridade:
não se aumentaria a receita nem se cortariam despesas supérfluas,
mas apenas se cancelariam os investimentos mais produtivos. Se ti-
vermos em conta que uma política orçamentária pode ser desenvolvi-
da com um pouco mais de bom-senso, tornar-nos-emos bem menos tole-
rantes com a inflação. É o que sucederá, por exemplo, se imaginar-
mos o déficit como causado pelo desequilíbrio financeiro de certas
autarquias e da Rede Ferroviária Federal, ao invés de o vincular-
mos aos investimentos públicos de maior produtividade.
Mas, ainda que se pudesse vincular o déficit aos melhores in-
vestimentos públicos, o argumento da inflação criativa encerraria
outro grave erro: o de esquecer aquilo que se deixa de realizar
por causa da alta geral de preços. Um dos efeitos mais notórios da
inflação é o considerável alongamento dos prazos de maturação dos
investimentos. De fato, a alta de custos provoca os sucessivos es-
touros de orçamentos, obrigando cada vez a uma parada para a ob-
tenção de novos recursos, e assim, as obras que poderiam ser con-
cluídas em dois ou três anos demoram o dobro do tempo. A quantida-
de de obras interrompidas espalhadas por todo o Brasil parece as-
sumir dimensões assustadoras. Esse é o contrapeso à ilusão criati-
va. De fato, a inflação parece constituir um excelente instrumento
para que se iniciem vários investimentos ao mesmo tempo. Mas exer-
ce efeito desastroso sobre a conclusão das obras. E, afinal, o que
interessa à capacidade produtiva de um país são os investimentos
concluídos e não as obras em andamento.
Duas outras teses a favor da inflação como ingrediente auxili-
ar do desenvolvimento econômico em países como o Brasil ganharam
certa popularidade nos últimos dez anos: a da poupança forçada e a
da inflação estrutural. Teoricamente elas são bem mais refinadas
do que a da "ilusão creativa", merecendo certos comentários.
O argumento da poupança forçada resume-se na hipótese de que,
durante a inflação, os reajustamentos salariais se atrasem em re-
lação à alta geral de preços. Resulta daí uma transferência de
renda real dos assalariados para os empresários e para o Governo.
Como estes últimos grupos possuem maior propensão marginal a pou-
par, a inflação seria capaz de reforçar a taxa de poupança e, con-
seqüentemente, de acelerar o desenvolvimento de uma nação de baixa
renda per capita.
A tese estruturalista evoluiu por vários artigos mais ou menos
esparsos de economistas da CEPAL, e seus limites não são exatamen-
te claros. Alguns estruturalistas, por exemplo, dão especial ênfa-
se aos déficits orçamentários como causa estrutural da inflação.
Excetuando a palavra "estrutural" nenhum economista ortodoxo dis-
cordaria desse ponto de vista, o que transfere o debate para o
campo do jogo de palavras. Da mesma forma os estruturalistas fre-
qüentemente divergem quanto à tese da poupança forçada: alguns a
aceitam, outros não (ou pelo menos, não dão maior ênfase ao pro-
blema). Também muitos estruturalistas insistem no papel dos rea-
justes salariais sobre as altas de preços, o que nada mais repre-
senta do que a reprodução da teoria ortodoxa da inflação de cus-
tos. Parece, no entanto, existir um ponto central no pensamento
estruturalista: o de que o crescimento econômico provoca altera-
ções no sistema de preços relativos, em virtude das transformações
estruturais impostas ao sistema econômico. Como, em cada setor, os
preços são dificilmente compressíveis, as alterações dos preços
relativos só podem surgir se se permitir que o nível gerai de pre-
ços se eleve. Uma política monetária cega, que esqueça essas pecu-
liaridades, só conseguiria evitar os aumentos de preços impedindo
o processo de alteração estrutural associado ao desenvolvimento
econômico do país. As modificações de preços relativos, no caso,
poderiam ser impostas por várias razões: pela rigidez da produção
agrícola, pelo estrangulamento do balanço de pagamentos, ou pelos
custos internos de produção comparativamente desvantajosos na
substituição de importações.
Vale comentar essas duas teses. A tese de que a inflação é ca-
paz de gerar poupanças forçadas é bastante antiga, tendo sido ad-
miravelmente analisada por Wicksell, no fim do século passado. A
idéia, no entanto, se refere ao início de um processo inflacioná-
rio, quando os aumentos de preços ainda se podem considerar ines-
perados. Com a continuidade da inflação, os aumentos de preços a-
cabam entrando nas expectativas de quase todos os agentes econômi-
cos, e a poupança forçada pode deixar de atuar. Especificamente,
no caso brasileiro, não parece razoável que o Governo, que procura
elevar a poupança pelo mecanismo inflacionário, vá mais adiante
forçar um reajuste de salários nominais que representa a anulação
dessa poupança forçada. Na realidade o que parece haver não é uma
política deliberada de fortalecimento da poupança, que talvez jus-
tificasse uma alta única de preços mas não uma inflação crônica.
Parece verificar-se apenas uma tentativa de implantação daquela
incompatibilidade distributiva que procura dividir o bolo em par-
tes de soma superior ao todo — aquela política que deseja elevar a
propensão a poupar sem reduzir a propensão a consumir.
Quanto à tese estruturalista, o seu principal defeito reside
na falta de quantificação. O raciocínio qualitativo pode ser inte-
ressante, e até de bom calibre teórico, mas não responde à questão
de qual a taxa de inflação que se pode considerar imposta pelas
modificações estruturais da economia. Os estruturalistas parecem
esquecer que a palavra inflação é bastante vaga quando dissociada
da quantificação de sua taxa, e que há muito maior distância entre
5 e 50% ao ano de inflação, do que entre 5% ao ano de aumento e
estabilidade total de preços. Isso torna sua tese duplamente vul-
nerável. Em primeiro lugar, do ponto de vista teórico, porque a
incompressibilidade setorial dos preços não é absoluta (mesmo com
salários nominais rígidos pode haver queda de preços por aumento
de produtividade). Se as mudanças necessárias de preços relativos
são lentas, e se há aumento de produtividade, é possível que as
transformações estruturais se possam alcançar sem aumento do nível
geral de preços. Essa, todavia, não é a principal objeção à tese
estruturalista. O ponto central é que as mudanças necessárias de
preços relativos dificilmente poderiam justificar processos infla-
cionários violentos como os verificados no Brasil, na Argentina, e
em outros países da América Latina. Os efeitos do comércio exteri-
or, da agricultura ou da substituição de importações poderiam
quando muito gerar um leve sopro inflacionário. Já houve por isso
quem dissesse da tese estruturalista que nunca tanta teoria justi-
ficou tão pouca inflação.
Essas considerações mostram quão frágeis são os argumentos que
procuram situar o caos monetário como o caldo de cultura favorável
à aceleração do desenvolvimento. Por certo a estabilidade de pre-
ços não é condição suficiente para que um país cresça. Mas a teo-
ria e o bom senso também deixam claro que a inflação dificilmente
será ingrediente de uma trajetória ótima de desenvolvimento. O
processo inflacionário, afinal, resulta apenas da tentativa de se
implantar um conjunto de aspirações incompatíveis da sociedade, do
desejo de dividir o bolo em fatias de soma superior ao todo. E a
revolta contra a aritmética jamais constituiu arma eficiente para
a construção do progresso de qualquer país.
CAPÍTULO VI
O GARGALO EXTERNO

6.1 — O Desenvolvimento Introvertido

Uma das características mais salientes da evolução econômica


brasileira nos últimos cinqüenta anos foi o seu acentuado sentido
de introversão. De uma economia reflexa, fortemente apoiada na ex-
portação de produtos primários, transformamo-nos num país com alto
índice de integração industrial e baixo coeficiente de dependência
em relação aos suprimentos externos. Qualitativamente essa intro-
versão foi em boa parte o resultado do próprio processo de desen-
volvimento. Contudo, as suas dimensões numéricas só se explicam
pelo descaso quase sistemático com que foi tratado o problema das
exportações.
Vários indicadores estatísticos documentam essa queda progres-
siva da participação do comércio exterior em nosso produto interno
bruto (Quadro 24). Usando cruzeiros de 1939, a fim de filtrar a
influência das mudanças de preços relativos, o coeficiente de im-
portação1 caiu da média de 22%, entre 1920 e 1929, para 6,1% entre
1961 e 1967. Em termos físicos, o aumento das importações (medidas
não em toneladas, pois não há sentido em somar quantidades hetero-
gêneas, mas por meio de um índice apropriado, que inclui as diver-
sas mercadorias proporcionalmente aos seus preços relativos) foi
extremamente lento: 2,4% ao ano entre 1920 e 1967 e apenas 0,3% ao
ano entre 1947 e 1967 (taxas de crescimento da tendência exponen-
cial). Mais lenta ainda foi a expansão física das exportações:
1,0% ao ano entre 1920 e 1967 e — 0,3% ao ano (declínio absoluto,
portanto), entre 1947 e 1967. De fato, o descompasso entre o cres-
cimento das importações e o das exportações só pôde ser sustentado
por dois motivos: primeiro pelo aumento substantivo da dívida ex-
terna; segundo porque, contrariamente ao que alegam os estrutura-
listas e nacionalistas entre aspas, as relações de troca, embora
flutuando freqüentemente, tenderam a evoluir em nosso favor. Ainda
assim, nos primeiros anos do corrente decênio, andamos à beira da
insolvência internacional.
Como foi dito acima, a queda da participação do comércio exte-
rior no produto interno bruto em parte se pode atribuir ao próprio
desenvolvimento econômico. Primeiro, porque o aumento da renda per
capita acarreta o crescimento mais que proporcional do consumo de
serviços, os quais dificilmente podem ser objeto de importação.
Segundo, porque a nossa pauta tradicional de exportações se com-
punha de produtos de procura internacional acentuadamente inelás-
tica, a qual não teria como se expandir às taxas alcançadas pelo
nosso produto real. Contudo, este último efeito poderia ter sido
bastante amenizado por um amplo esforço de diversificação das ex-
portações. Esse esforço não parece ter sido empreendido em escala
apreciável. Fora o substancial aumento das nossas exportações de
minério de ferro (ainda que muito retardado por certos preconcei-
tos ditos nacionalistas), fora a significativa expansão das expor-

1
Relação percentual entre importações e produto interno bruto.
tações de açúcar (favorecidas pela incorporação de Cuba ao bloco
comunista), e fora as incursões ainda modestas no campo das expor-
tações de manufaturas (especialmente propiciadas pela criação da
ALALC), poucas alterações de monta se registraram na composição de
nossas vendas ao exterior. Como se verifica no Quadro 25, ainda em
1967, os gêneros alimentícios eram responsáveis por 62,4% da nossa
receita de exportações.
De fato, a introversão econômica do Brasil parece ter sido co-
adjuvada por uma série de fatores que inibiram a expansão das ex-
portações. Sobre eles valem alguns comentários.
Em primeiro lugar, os últimos cinqüenta anos abrangeram alguns
períodos em que a conjuntura mundial se mostrou bastante desfavo-
rável à expansão do comércio. A Grande Depressão do decênio de
1930 nos custou considerável declínio na receita cambial, e gerou
o mais severo desestímulo às exportações. A Segunda Guerra Mundi-
al, se nos favoreceu pela melhoria das relações de troca, preju-
dicou o volume de nossos embarques para o exterior e, mais ainda,
nos compeliu ao drástico racionamento das importações. Esses perí-
odos nos levaram à convicção de que é preferível pagar um certo
preço pela relativa auto-suficiência econômica, em termos de des-
vios ao clássico princípio das vantagens com parativas, do que fi-
car sujeito aos azares da conjuntura mundial. Em suma, num mundo
dominado pela vocação nacionalista, não seria lucrativo aderir à
filosofia internacionalista.
Em segundo lugar, desde o término da Segunda Guerra Mundial
até 1964, a taxa de câmbio foi sistematicamente fixada em níveis
fortemente desestimulantes para as exportações. Entre 1948 e 1953
a taxa de Cr$ 18,50 por dólar foi artificialmente sustentada, não
obstante a ponderável inflação interna, pelos controles da CEXIM.
De 1953 a 1957, entre as taxas pagas aos exportadores e as cobra-
das aos importadores, interpunha-se um considerável saldo dos á-
gios sobre bonificações. E, a partir de 1957, esses saldos foram
substituídos pelas mais ousadas alíquotas da lei das tarifas adua-
neiras e ainda pela manutenção do regime das taxas múltiplas de
câmbio. A tendência a reprimir a inflação pelos sintomas, já des-
crita no capítulo anterior; o temor de que uma desvalorização mais
realista se tornasse a causa da alta interna dos preços dos pro-
dutos de exportação; o desejo de subsidiar as importações de maté-
rias-primas e bens de capital; e a negligência com o endividamento
externo desordenado, parecem ter sido as principais motivações
dessa política cambial. Desde 1964 o Brasil vem procurando adotar
um regime cambial bem mais realista e que culminou, em 1968, com a
instituição do sistema de taxas flexíveis (ou reajustáveis em pe-
quenos degraus). É de se confiar que essa política, se sustentada
a longo prazo, produza bons resultados.
QUADRO 24
INDICADORES DO COMÉRCIO DO BRASIL COM O EXTERIOR
1920-1967
(Base dos índices:1939 = 100)

Índices de quanti- Valores em bilhões de Coeficien-


Índice da
dades Índice de NCr$ de 1939 te de
capacidade
ANO relação de Produto Importa-
Importa- Exporta- de impor-
trocas Importação Interno ções
ção ção tar
Bruto (%)
118,8
1920 90,0 55,2 65,7 4,1 21,3 20,7
97,7
1921 61,5 54,8 53,5 3,0 21,9 13,7
161,3
1922 77,0 58,3 93,8 3,8 22,8 16,7
182,2
1923 91,5 63,3 115,3 4,5 24,4 18,4
251,3
1924 120,6 57,8 145,0 5,9 24,0 24,6
251,0
1925 138,4 56,4 141,7 6,8 23,7 28,7
217,5
1926 135,5 55,7 137,8 6,6 24,2 27,3
203,9
1927 133,9 61,8 129,2 6,6 26,2 25,2
241,0
1928 155,7 60,0 144,7 7,6 30,8 24,7
220,6
1929 154,9 63,2 139,4 7,6 31,7 23,8
146,5
1930 98,5 66,4 97,2 4,8 30,6 15,7
142,7
1931 73,2 74,0 105,5 3,6 28,6 12,6
187,3
1932 66,0 51,4 96,2 3,2 30,4 10,5
160,1
1933 91,2 64,1 102,6 4,5 33,2 13,0
164,7
1934 95,8 69,7 114,9 4.7 35,2 13,3
115,4
1035 92,5 74,1 85,5 4,5 34,7 13,0
119,9
1936 95,8 80,1 90,0 4,7 39,4 11,9
124,7
1937 114,8 77,2 96,2 5,6 40,7 13,8
94,7
1938 103,8 93,5 88,5 5,1 41,7 12,2
100,0
1939 100,0 100,0 100,0 4,9 41,7 11,8
93,5
1940 86,2 81,1 75,8 4,2 48,1 8,7
105,1
1941 88,1 89,5 94,1 4,3 57,8 7,4
109,4
1942 59,9 78,3 85,7 2,9 57,7 5,0
109,0
1943 71,4 84,0 91,6 3,5 61,4 5,7
126,0
1944 86,0 83,9 105,8 4,2 60,0 7,0
143,6
1945 91,8 82,1 117,9 4,5 61,7 7,3
142,7
1946 122,5 106,5 151,9 6,0 66,7 9,0
153,9
1947 197,9 101,7 156,5 9,7 68,1 14,2
144,6
1948 170,8 106,4 153,8 8,4 74,5 11,3
152,5
1919 175,4 98,4 150,0 8,6 78,7 10,9
253,4
1950 196,8 83,3 211,2 9,6 82,6 11,6
218,7
1951 289,0 88,8 220,8 14,2 86,9 16,3
220,7
1952 262,3 72,6 160,2 12,9 91,7 14,1
226,4
1953 181,3 80,3 181,6 8,9 94,7 9,4
292,4
1954 243,7 68,4 200,0 1,9 102,0 11,7
230,4
1955 193,4 78,5 180,8 9,5 108,9 8,7
233,4
1956 190,3 84,1 196,2 9,3 110,9 8,4
233,6
1957 231,9 79,6 186,0 11,4 118,6 9,6
227,5
1958 217,9 75,5 171,8 10,7 126,4 8,5
222,0
1959 245,2 88,4 196,2 12,0 135,7 8,8
209,3
1960 243,2 86,2 180,4 11,9 144,8 8,2
208,7
1961 231,0 91,3 190,5 11,3 155,3 7,3
195,0
1962 233,5 81,6 164,9 11,4 163,6 7,0
190,3
1963 226,6 96,7 184,0 11,1 166,3 6,7
230,1
1964 196,4 82,9 190,8 9,6 171,4 5,6
243,6
1965 162,6 82,9 201,9 8,0 178,1 4,5
223,3
1966 210,9 94,3 210,6 10,3 184,1 5,6
239,1
1967 233,4 82,9 198,2 11,4 193,2 5,9

Fonte: Fundação Getúlio Vargas.


QUADRO 25

VALOR DAS EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS POR GRANDES CLASSES


DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL: 1955/1967
Matérias – Gêneros Ali- Produtos Máquinas e Outros Pro-
ANO TOTAL
Primas mentícios Químicos Veículos dutos

1955 24,2 74,2 0,8 0,2 0,6 100,0


1956 19,3 79,3 0,5 0,1 0,8 100,0
1957 23,3 75,0 0,5 0,1 1,1 100,0
1958 22,1 76,0 0,6 0,1 1,2 100,0
1959 22,6 75,4 0,6 0,2 1,2 100,0
1960 23,4 73,7 1,0 0,2 1,7 100,0
1961 29,8 66,5 1,4 0,8 1,5 100,0
1962 31,8 65,2 1,2 1,0 0,8 100,0
1963 28,2 68,8 1,2 0,8 1,0 100,0
1964 30,3 64,4 1,2 1,3 2,8 100,0
1965 30,5 61,8 0,9 1,8 5,0 100,0
1966 29,7 64,5 1,4 1,9 2,5 100,0
1967 28,3 62,4 1,7 2,6 5,0 100,0

Fonte:APEC.

Em terceiro lugar, o Brasil sempre tendeu a explorar ao máximo


as vantagens monopolistas de curto prazo no comércio internacio-
nal, sem maiores atenções quanto aos efeitos a longo prazo desse
tipo de política. Os famosos ciclos de exportação de nossa Histó-
ria Econômica (lembremo-nos, por exemplo, da era da borracha) são
a melhor testemunha dessa nossa propensão. Como assinala o profes-
sor Octávio Gouveia de Bulhões, parecemos contaminados por aquela
mentalidade mercantilista que procura maximizar os lucros pela
criação da escassez artificial do produto, e não pelo aproveita-
mento das vantagens de produção em larga escala. (O Dicionário
Webster's define "valorization" como palavra de origem brasileira,
destinada a descrever a alta artificial de preços do café.) A cur-
to prazo, o efeito dessa política costumava ser a melhoria da re-
ceita cambial. A longo prazo, a contínua cessão da nossa faixa de
mercado para os concorrentes externos. Assim, a nossa participação
nas exportações mundiais de café, de 63% entre 1919 e 1922 caiu
para 32% entre 1964 e 1966.
Em quarto lugar, durante muito tempo fomos dominados por uma
ojeriza sistemática à exportação de recursos do subsolo. A idéia
de que essas exportações deixavam buracos na terra; o temor de que
esses recursos algum dia nos viessem a fazer falta; a incom-
preensão do fato elementar de que um produto primário necessaria-
mente possui menor valor por tonelada do que um produto manufatu-
rado, mas que isso nada tem a ver com os lucros da exportação, fo-
ram algumas das razões que retardaram consideravelmente a nossa
participação no mercado mundial de minério de ferro — ao ponto em
que o desenvolvimento da sinterização e da peletização reduziram
os tão decantados méritos da nossa hematita compacta. Isso em fla-
grante assimetria com a nossa posição de importadores de petróleo,
carvão, enxofre e outros recursos do subsolo.
Em quinto lugar, muitas oportunidades de exportação foram per-
didas pelo temor de que o seu aproveitamento levasse a uma escas-
sez interna do produto e ao conseqüente racionamento ou alta de
preços. Num período em que o Governo se esforçava por conter os
sintomas da inflação, esse sempre parecia constituir um argumento
ponderável, e que se transformou no obstáculo mais sério à expan-
são das nossas exportações de carne e outros gêneros alimentícios.
Em sexto lugar, freqüentemente nos mostramos propensos a re-
solver os problemas de comércio internacional por decisões unila-
terais, esquecendo que esse comércio é uma avenida de mão dupla.
Para citar um exemplo, somos intransigentemente avessos às chama-
das importações supérfluas, mas não nos lembramos de que o café e
o cacau, tão relevantes na nossa pauta de exportações, não são as-
sim tão essenciais. Durante muito tempo discutimos se, ao invés da
hematita, não seria preferível exportar o gusa, como se essa deci-
são pudesse ser por nós imposta às siderúrgicas externas, num mun-
do de intensa concorrência na oferta de minérios. É claro que esse
tipo de atitude dificulta a obtenção de concessões tarifárias da
parte de outros países.
Em sétimo lugar, o nosso estilo autárquico de desenvolvimento
foi muito pouco favorável à expansão das exportações. Dentro das
metas de auto-suficiência, as novas indústrias se desenvolveram no
decênio de 1950 obcecadas pelos índices de nacionalização, e pouco
preocupadas com o desempenho dos custos. Isso, naturalmente, não
era o método de construir uma indústria preparada para enfrentar o
mercado externo.
Por último, os entraves burocráticos e portuários. Por muito
tempo as nossas exportações foram obstadas pela verdadeira via
crucis burocrática imposta a quem quisesse vender qualquer coisa
ao exterior. Nos últimos anos a CACEX se vem esforçando por sim-
plificar esses processos, mas ainda há o que melhorar nesse senti-
do. Além disso os nossos transportes, em geral, e os portos em
particular nem primam pela eficiência nem pelos baixos custos. Es-
ses, obviamente, são sérios obstáculos adicionais à expansão e à
diversificação das nossas exportações.
Qual o problema daqui para o futuro? Paradoxalmente em certo
sentido somos hoje muito mais dependentes do comércio com o exte-
rior do que há cinqüenta anos atrás, não obstante o considerável
declínio do coeficiente de importações. Isso porque a nossa pauta
de compras ao exterior já não contém os mesmos itens compressíveis
e rapidamente substituíveis do passado. Um país importador de bens
supérfluos pode adaptar-se facilmente a uma queda brusca da sua
receita cambial, sem maiores problemas econômicos internos. De
certa forma isso foi o que nos ocorreu na Grande Depressão do de-
cênio de 1930. Hoje, porém, seríamos muito mais vulneráveis a uma
queda dessa ordem na capacidade para importar.
É impossível prever com segurança a evolução do nosso coefici-
ente de importações para os próximos trinta anos. Isso obviamente
dependerá de como se desenvolvam a tecnologia e os mercados, e do
que venhamos a descobrir em matéria de recursos naturais. Tudo in-
dica, porém, que as dificuldades de redução do coeficiente de im-
portações se tornarão cada vez mais acentuadas. Primeiro, porque o
caminho da substituição das compras no exterior já foi em grande
parte percorrido. Segundo, porque dificilmente um país se aproxima
da auto-suficiência em matéria de recursos naturais. Terceiro,
porque boa parte das nossas importações são representadas por bens
de capital que só podem ser fabricados economicamente numa escala
de mercado mundial. Quarto, porque a média dos atuais produtos de
importação parece possuir demanda elástica em relação à renda; se
isso for verdade, será necessário certo esforço de substituição
simplesmente para evitar que o coeficiente de importações aumente.
Essas considerações levam à convicção de que o modelo de de-
senvolvimento adotado pelo Brasil no após-guerra, o da introversão
econômica com exportações estagnadas, dificilmente se poderá re-
produzir nos próximos trinta anos. Como sugerem os exercícios ana-
líticos das duas próximas seções, ou expandimos com apreciável im-
pulso as nossas vendas ao exterior, ou sofreremos o bloqueio das
nossas possibilidades de crescimento pelo gargalo da capacidade
para importar.

6.2 — O Modelo dos Três Limites

Um tipo de exercício muito popularizado nos estudos recentes


sobre desenvolvimento econômico corresponde àquilo que se poderia
intitular "o modelo dos três limites". O exercício consiste em
calcular as possíveis taxas de crescimento do produto real segundo
três critérios: pela projeção do aumento da população ativa e da
sua produtividade média;, pela projeção da taxa de investimentos e
da relação capital/produto; e pela projeção das exportações e do
coeficiente de importações. O limite mais apertado indicará o obs-
táculo critico ao desenvolvimento do país.
Do ponto de vis+a metodológico, esses modelos têm o defeito de ig-
norar os fenômenos de equalização que necessariamente se processam
através do sistema de preços. A posteriori, o crescimento do pro-
duto real é o mesmo, por qualquer dos três critérios de medição.
Os hiatos se absorvem pelas alterações dos parâmetros projetados
como decorrência das mudanças de preços relativos. Para citar um
exemplo (usando apenas dois dos três limites), suponhamos que as
projeções para um país indicassem um limite de crescimento do pro-
duto real de 6% ao ano pelo critério poupança — relação capi-
tal/produto; e um limite de apenas 3% ao ano, pelo critério expor-
tações — coeficiente de importações: Com o sistema de preços fun-
cionando livremente, é provável que a taxa de câmbio se desvalori-
zasse em relação aos preços internos, piorando a taxa de investi-
mentos e a relação capital/produto, melhorando as exportações e
baixando o coeficiente de importações. No fim o produto real aca-
baria crescendo a uma taxa intermediária aos dois limites cal-
culados. Qual essa taxa intermediária, e como funcionam quantita-
tivamente esses mecanismos de equalização, eis uma pergunta para a
qual ainda não se conhece a resposta. Por isso, os economistas
costumam ficar no cálculo dos três limites. De qualquer forma, o
exercício tem a vantagem de destacar os obstáculos mais sérios ao
desenvolvimento, e que devem merecer atenção prioritária da polí-
tica econômica.
Um modelo desse estilo foi construído para o Brasil pelo pro-
fessor Isaac Kerstenetzky e publicado em "A Economia Brasileira e
suas Perspectivas (APECAO) — julho de 1968". O modelo procura pro-
jetar para 1975 a renda nacional bruta, medida a preços constantes
de mercado de 1953, partindo dos valores médios observados no qua-
driênio 1961/ /1964 e de certas hipóteses quanto aos parâmetros
que determinam os três limites. Obtidas as projeções para 1975, o
autor calcula, por interpolação geométrica, as taxas médias de
crescimento do produto real no período.
Para calcular o limite do produto pela restrição do capital,
Kerstenetzky admite que a taxa de investimentos, a preços de 1953
se situe entre 13,7% e 19,4% da renda nacional bruta a preços de
mercado; o limite inferior corresponde ao comportamento histórico
do parâmetro em questão; o limite superior parte da possibilidade
de se elevar consideravelmente a poupança gerada pelo setor públi-
co, por meio da compressão das suas despesas correntes. Quanto à
relação incremental capital/produto, admite-se que ela oscile en-
tre 3:1 e 4:1. O limite inferior já excede sensivelmente o compor-
tamento passado, levando em conta o provável aumento dos investi-
mentos em infra-estrutura, os quais elevam a média da relação em
causa. O limite superior corresponderia ao funcionamento da econo-
mia a baixos níveis de crescimento, com capacidade ociosa em mui-
tos setores. Dentro desses limites, a renda real poderia crescer a
taxas compreendidas entre 3,4% e 6,4% ao ano, como se destaca no
Quadro 26.
Para calcular o limite do crescimento pelo critério da mão-de-
obra, Kerstenetzky supõe que a população economicamente ativa
cresça de 2,5% ao ano; essa taxa, confrontada com a do crescimento
das faixas demográficas potencialmente ativas, subentende certa
dificuldade de criação de empregos ao longo do período (segundo a
autor existem fortes indícios de um desemprego potencial que pode-
rá atingir, em 1975, a 6% da oferta de mão-de-obra). Quanto ao in-
cremento da produtividade, supõe-se que oscile entre 2,5% e 3,01%
ao ano, o limite superior correspondendo ao ritmo de acréscimo ob-
servado no decênio de 1950. Por esses parâmetros, a renda real po-
deria expandir-se a taxas médias anuais entre 5,13% e 5,68% ao a-
no.
Finalmente, para calcular o limite do balanço de pagamentos,
Kerstenetzky supõe: a) que a capacidade para importar cresça entre
3,5% e 5,0% ao ano (o limite superior contendo boa dose de otimis-
mo em relação à experiência passada); b) que o ingresso líquido de
capitais estrangeiros varie entre 0 e 300 milhões de dólares anu-
ais; c) que o coeficiente de importações de bens e serviços (in-
clusive remessas de juros e lucros) seja de 6% da oferta global
(produto mais importações), ou seja, 6,38% da renda bruta a preços
de mercado. Dentro dessas hipóteses, as taxas de crescimento da
economia se situarão entre 1,91% e 4,49% ao ano.
QUADRO 26
TAXAS LIMITES DE CRESCIMENTO DA RENDA REAL
(% ao ano)

A)Limite do capital
Taxa de
Investimento
13,7 19,4
Relação
Capital/produto

4 : 1 3,4 4,9
3 : 1 4,5 6,4

B)Limite de mão-de-obra
Taxa de aumento
da produtividade
2,5% a.a 3,01% a.a
Taxa de
crescimento
da população ativa

2,5% a.a 5,13 5,68

C)Limite do Balanço de pagamentos


Taxa de crescimento
das exportações
3,5% a.a 5,0% a.a
Ajuda Externa

0 1,91 3,37
US$ 300 milhões 3,21 4,49

A análise acima mostra que o balanço de pagamentos constitui a


mais séria restrição ao crescimento futuro da economia brasileira.
Mesmo nas hipóteses mais otimistas, essa restrição parece impedir
(até 1975) a expansão da renda real a taxas superiores a 4,5% ao
ano. Segundo Kerstenetzky, para que se possa conseguir ritmo mais
acelerado de crescimento será necessária a concepção de uma estra-
tégia de desenvolvimento que atente para os seguintes problemas:
I) compatibilização da meta da taxa de crescimento com o obje-
tivo da criação de novos empregos absorvedores da oferta crescente
de mão-de-obra. Será de grande importância, nesse contexto, proje-
tar uma política para o setor agrícola que crie condições de ex-
pansão da produção sem liberação substancial de mão-de-obra, e com
ampliação do mercado interno e de produtos industriais;
II) planejamento de investimento em recursos humanos, visando
à diminuição do atraso tecnológico em relação aos países mais de-
senvolvidos e à adaptação do sistema educacional à necessidade de
modernização do pais;
III) política de expansão das exportações;
IV) planejamento dos gastos públicos com maior racionalidade e
melhoria da eficiência da burocracia governamental.
Desenvolveremos na próxima seção um modelo baseado em hipóte-
ses algo diferentes, a respeito do limite do balanço de pagamen-
tos. A conclusão qualitativa no entanto, é a mesma: sem um esforço
substancial de aumento das exportações, será virtualmente impossí-
vel sustentar uma taxa satisfatória de crescimento para o produto
real brasileiro.

6.3 — Dívida Externa e Balanço de Pagamentos

Como foi assinalado anteriormente, o crescimento da economia


brasileira nos últimos vinte anos só se tornou compatível com a
estagnação das exportações devido à conjugação de três fatores: a)
o declínio do coeficiente de importações, resultante da industria-
lização; b) a melhoria das relações de trocas até 1954, em função
da alta internacional das cotações do café; c) o ingresso maciço,
no período subseqüente, de capitais estrangeiros, de risco e de
empréstimo, em certas épocas sob a forma do endividamento externo
desordenado. Nenhum desses três fatores poderá servir de base para
o formulação de uma política de desenvolvimento para os próximos
trinta anos. Os obstáculos ao declínio substancial do coeficiente
de importações já foram apontados na seção 6.1. As relações de
trocas oscilam por acidente de comércio, e seria incrível impru-
dência projetar a sua contínua melhoria daqui até o fim do século.
Quanto à ajuda externa, ela deve ser encarada como um excelente
complemento, mas nunca como um substituto de expansão das exporta-
ções.
Sob esse último aspecto valem alguns comentários. Desde meados
do decênio de 1950 até 1963 o Brasil utilizou-se à farta do endi-
vidamento externo como substituto do incremento de exportações. Em
princípio é natural que uma nação subdesenvolvida em crescimento,
como é o caso do Brasil seja receptora de ajuda externa1. Todavia,
a longo prazo não se pode esquecer que quanto maior a dívida maior
o encargo dos juros (podemos supor que as amortizações sejam com-
pensadas por novos ingressos, já que estamos supondo a existência
de um saldo líquido positivo de ajuda externa). Esse aumento do
pagamento de juros pode tornar-se perfeitamente suportável se as
exportações estiverem crescendo a uma taxa plausível. Mas, com ex-
portações estagnadas, pode levar a um sério bloqueio das possibi-
lidades de crescimento, pelo estrangulamento da capacidade para
importar. De fato, o nosso período de endividamento externo desor-
denado, nos governos Kubitschek e Goulart, foi muito curto para
que esse efeito do peso dos juros se tornasse significativo. A
quase insolvência internacional em que nos encontrávamos no início
de 1964 (em boa parte representada por "swaps" e atrasados comer-
ciais), era devida à concentração dos vencimentos da dívida a pra-
zo curto, e pôde ser facilmente contornada pelo re-escalonamento
das amortizações conseguido no Governo Castello Branco. A longo
prazo, porém, por melhor que seja o escalonamento, não há como
compatibilizar a continuidade da ajuda externa com o imobilismo
das exportações.
Uma série de exemplos esclarece a questão. Em números redon-
dos, podemos supor que em 1969 o nosso produto interno bruto atin-

1
O ingresso líquido de capitais estrangeiros corresponde às entradas de investimentos diretos, aos reinvestimentos,
mais financiamentos autônomos e compensatórios, menos as amortizações de empréstimos e repatriamento de capitais.
Dentro do princípio contábil das partidas dobradas, o ingresso líquido de capitais estrangeiros é igual ao déficit do ba-
lanço de pagamentos em conta-corrente.
ja o equivalente a 28 bilhões de dólares, e que os principais pa-
râmetros do balanço de pagamentos venham a ser os seguintes:

ITEM US$ milhões

Exportação de bens e serviços + 2000


Importação de bens e serviços (exceto ren-
– 2000
da líquida enviada para o exterior)
Renda líquida enviada para o exterior
– 300
(remessa de lucros e juros)
Saldo do balanço de pagamentos em conta-
– 300
corrente
Ingresso líquido de capitais estrangeiros +300

Admitamos que daqui até o fim do século as nossas exportações


continuem estagnadas, e que os capitais estrangeiros continuem a-
fluindo ao saldo líquido de 300 milhões de dólares por ano, remu-
nerados em média à taxa de 6% ao ano. É fácil calcular o que será
o nosso balanço de pagamentos no ano 2000. Em matéria de receita
cambial, contaremos com 2,3 bilhões de dólares, os 2 bilhões de
exportações de bens e serviços, mais os religiosos 300 milhões de
ajuda externa. Contudo, em 31 anos de déficit em conta-corrente,
teremos acumulado uma dívida adicional de 9,3 bilhões de dólares,
os quais à taxa de 6% ao ano significam um encargo a mais de 558
milhões de dólares em matéria de juros e remessa de lucros. Soman-
do com os 300 milhões já existentes em 1969, teríamos nada menos
que 858 milhões de dólares de renda líquida enviada para o exteri-
or. Dada a receita cambial de 2,3 bilhões, restariam apenas 1.442
milhões de dólares para atender às importações de bens e serviços.
Supondo que, no ano 2000, o coeficiente de importações tivesse si-
do reduzido para 5%1, o nosso produto interno bruto ficaria limita-
do em 28,84 bilhões de dólares. Por aí, do momento atual até o fim
do século o nosso produto real nem chegaria a crescer de 0,1% ao
ano.
Teoricamente o problema do encargo crescente dos juros poderia
ser neutralizado se o ingresso líquido de capitais estrangeiros
crescesse exponencialmente, a taxas não inferiores à dos juros. Se
a ajuda externa líquida fosse de 300 milhões de dólares em 1969,
318 milhões em 1970, 337,08 em 1971, e assim por diante, a renda
líquida enviada para o exterior ficaria permanentemente empatada
com a entrada líquida de capitais estrangeiros. Essa seria a fór-
mula do endividamento em bola de neve, análoga à do indivíduo que
periodicamente volta ao banco para pagar com nova promissória o
principal e os juros do empréstimo anterior. A menos que as expor-
tações crescessem à mesma taxa, a fórmula seria inviável, pois os
investidores externos compreenderiam rapidamente que o país esta-
ria caminhando para um nível absurdo na relação dívida/exportação.
Mas, ainda que a mágica fosse exeqüível, o problema do gargalo da
capacidade para importar continuaria bastante grave. Com as expor-
tações estagnadas, no ano 2000 poderíamos importar 2 bilhões de
dólares de bens e serviços. Com um coeficiente de importações li-
mitado a 5%, isso nos permitiria chegar a 40 bilhões de dólares de
produto interno bruto. Em termos de taxa de crescimento os resul-

1
Em toda a presente seção excluímos a renda líquida enviada para o exterior do cálculo do coeficiente de importações.
tados continuariam péssimos: não teríamos ultrapassado a média a-
nual de 1,6%.
De fato, não é plausível esperar que o ingresso líquido de ca-
pitais estrangeiros possa crescer, a longo prazo, a taxa superior
à da expansão das exportações. As agências e investidores externos
nunca se esquecem de calcular um parâmetro muito simples, a rela-
ção dívida/exportações. Quando essa relação se torna exageradamen-
te alta é sinal de que o país caminha para a insolvência interna-
cional — e os investidores estrangeiros tratam de cortar a sua a-
juda. Atualmente a relação dívida externa/exportações para o Bra-
sil é da ordem de 2:1, nível perfeitamente razoável pelos padrões
internacionais. Contudo os índices de endividamento subiriam des-
controladamente caso as exportações se expandissem mais lentamente
que o ingresso líquido de capitais estrangeiros.
Mais ainda, a possibilidade de as exportações e a ajuda exter-
na crescerem à mesma taxa depende de essa taxa não ser pequena.
Pode-se demonstrar que, nesse caso, a relação dívida/exportações
tende, a longo prazo, para um limite igual a m/i, designando m a
relação entre o ingresso líquido de capitais estrangeiros e o va-
lor das exportações, i a taxa comum de crescimento geométrico1. Co-
mo se vê, a relação dívida/exportações acaba se tornando inver-
samente proporcionai à taxa de aumento das exportações. Se esta
taxa for pequena, os índices de endividamento se tornarão insus-
tentáveis. Em particular, com as exportações estagnadas, os capi-
tais estrangeiros acabariam cessando de afluir pelo conges-
tionamento da dívida.
É interessante ilustrar a questão com um exemplo numérico. Su-
ponhamos que m seja igual a 15%, como em nossa projeção aproximada
do balanço de pagamentos para 1969. Se as exportações crescerem de
6% ao ano, caminharemos para uma relação de endividamento igual a
2,5. Esse índice pode considerar-se perfeitamente razoável. A ren-
da líquida enviada para o exterior, calculada à taxa de juros de
6% ao ano, absorveria apenas 15% da receita de exportações. Admi-
tamos porém que as exportações só crescessem de 1% ao ano. A rela-
ção dívida/exportações tenderia agora para um limite igual a 15
vezes. Nas mesmas hipóteses de cálculo, a renda líquida enviada
para o exterior passaria a absorver 90% da receita de exportações
(ou 78,3% da receita cambial total). Obviamente tal seria um nível
insustentável de endividamento. Em princípio, o país poderia con-
tinuar recebendo ajuda externa, mas o coeficiente m teria que bai-
xar substancialmente.
Feitas essas observações é interessante verificar quais as ta-
xas possíveis de crescimento do produto real até o fim do século
em face do limite do balanço de pagamentos. O Quadro 27 apresenta
o resultado dos cálculos em várias hipóteses quanto ao coeficiente
de importações e quanto às taxas de crescimento das exportações e
do ingresso líquido de capitais estrangeiros2. A metodologia adota-
da consistiu no seguinte: a) tomaram-se por base as estimativas
acima indicadas para o produto interno bruto (28 bilhões de dóla-
res) e para os principais itens do balanço de pagamentos em 1969;
1
O leitor interessado na dedução dessa fórmula pode consultar o Apêndice VI.
2
A taxa de -100% ao ano para o ingresso líquido de capitais estrangeiros corresponde à hipótese de que esse ingresso
seja igual a 300 milhões de dólares em 1969 e 0 nos trinta e um anos subseqüentes.
b) com base nesses valores e nas taxas de crescimento das exporta-
ções e do ingresso líquido de capitais estrangeiros, projetou-se o
total da receita cambial para o ano 2000; c) a renda líquida envi-
ada para o exterior no ano 2000 foi calculada somando-se, aos 300
milhões de dólares já existentes em 1969, 6% (taxa de juros média)
sobre a dívida adicional acumulada durante 31 anos; d) por dife-
rença, obteve-sé o valor das importações de bens e serviços no ano
2000; e) dividindo-se esse valor pelo coeficiente de importações,
estimou-se o produto interno bruto para o ano 2000; f) por inter-
polação geométrica calculou-se a taxa de crescimento do produto
real. O Quadro 27 contém algumas combinações entre as taxas de
crescimento, das exportações e do ingresso líquido de capitais es-
trangeiros que se podem classificar como praticamente inviáveis
por conduzirem a índices exagerados de endividamento. Tais combi-
nações foram conservadas apenas para efeitos de comparação dos re-
sultados numéricos.
Um exame sucinto do quadro nos leva a duas conclusões princi-
pais. Em primeiro lugar, a de que do ponto de vista das possibili-
dades de crescimento a longo prazo, a taxa de expansão das ex-
portações ou a redução do coeficiente de importações desempenham
papel muito mais importante do que a taxa de aumento da ajuda ex-
terna. Pode-se até afirmar que, mantidos a taxa de aumento das ex-
portações e o coeficiente de importações, é preferível não contar
com a ajuda externa do que dela dispor a uma taxa lentamente cres-
cente. Isso porque, quanto maior o ingresso líquido de capitais
estrangeiros maior o encargo, a longo prazo dos juros e remessas
de lucros. Do ponto de vista econômico, esse algebrismo encerra o
óbvio defeito de subestimar os méritos da ajuda externa, por con-
siderar in dependentes a sua taxa de crescimento, a das expor-
tações e o coeficiente de importações. Na realidade seria mais
plausível supor que o maior ingresso líquido de capitais estran-
geiros favorecesse a expansão das exportações ou a substituição de
importações (ou diretamente, ou indiretamente, por reforçar a ca-
pacidade de investimentos, colocando em ação os mecanismos de e-
qualização dos três limites mencionados na seção 6.2). Em todo o
caso o algebrismo serve de alerta contra aquela política de hori-
zonte curto que apela para a ajuda externa e se esquece do estímu-
lo às exportações — política, aliás, insustentável a longo prazo
pela explosão dos índices de endividamento.
Em segundo lugar os números mostram que só um esforço substan-
tivo de expansão das exportações permitirá que o nosso produto re-
al cresça nos próximos trinta anos a taxas anuais da ordem de 6%.
Se até o fim do século o nosso coeficiente de importações se man-
tiver em torno de 6% de produto interno bruto, essa taxa necessá-
ria de crescimento das exportações será de cerca de 6% aò ano. E
ainda que, nos próximos trinta anos, o coeficiente de importações
caia para 4%, será necessário melhorar consideravelmente o desem-
penho das nossas vendas ao exterior em relação à tendência passa-
da, aumentando-as de pelo menos 4% ao ano.
QUADRO 27
TAXAS LIMITES DE CRESCIMENTO DO PRODUTO REAL
EM FUNÇÃO DO COMÉRCIO EXTERIOR (% ao ano)

I)Coeficiente de importação: m=0,06 no ano 2000


Taxa de cresci- Taxa de crescimento anual do ingresso externo (%)
mento anual das
exportações (%)
–100 0 2 4 6

0 0 –0,5 –0,4 0,1 0,6


2 2,3 2,0 2,1 2,2 2,6
4 4,4 4,3 4,3 4,4 4,6
6 6,5 6,4 6,4 6,5 6,6

II)Coeficiente de importação: m=0,06 no ano 2000


Taxa de cresci- Taxa de crescimento anual do ingresso externo (%)
mento anual das
exportações (%)
-100 0 2 4 6

0 0,6 0,1 0,2 0,5 1,2


2 2,9 2,6 2,7 2,8 3,2
4 5,0 4,9 4,9 5,0 5,2
6 7,1 7,1 7,1 7,1 7,2

III)Coeficiente de importação: m=0,04 no ano 2000


Taxa de cresci- Taxa de crescimento anual do ingresso externo (%)
mento anual das
exportações (%)
-100 0 2 4 6

0 1,8 0,8 0,9 1,2 1,9


2 3,6 3,4 3,4 3,6 3,9
4 5,8 5,7 5,7 5,8 6,0
6 7,9 7,8 7,9 7,9 8,0

6.4 — Exportar ou Estagnar

Por mais conjecturais que sejam as projeções da seção anteri-


or, como fatalmente ocorre com todo exercício de futurologia eco-
nômica, elas parecem levar à conclusão inequívoca de que ou o Bra-
sil consegue expandir substancialmente as suas exportações, ou a
sua renda per capita se atrasará cada vez mais em relação à dos
países desenvolvidos. A se extrapolarem as tendências do passado,
tal conclusão nos levaria a considerável pessimismo quanto às nos-
sas possibilidades de desenvolvimento. Felizmente podemos nutrir
esperanças bem melhores quanto ao futuro, pois a estagnação das
nossas exportações não foi conseqüência dos azares da conjuntura
mundial, mas muito particularmente do nosso descaso em relação ao
problema. Na seção 6.1 alinhamos uma série de óbices e preconcei-
tos de nossa política interna e que impediram o progresso de nos-
sas vendas ao exterior. Tomando os devidos antônimos é fácil assi-
nalar as principais providências necessárias para que o nosso
crescimento não venha a ser bloqueado pelo gargalo externo.
A primeira providência é a manutenção de uma política de rea-
lismo cambial. Enquanto não nos livrarmos da inflação, será indis-
pensável reajustar periodicamente o preço da moeda estrangeira,
evitando o seu atraso em relação aos preços internos. Nesse senti-
do, a melhor política parece ser a da taxa reajustável em pequenos
degraus, iniciada em agosto de 1968. Não obstante certos inconve-
nientes psicológicos, essa política é a única capaz de assegurar a
estabilidade da renda real dos exportadores e de evitar os movi-
mentos especulativos dos capitais a curto prazo.
Em segundo lugar precisamos perder qualquer complexo quanto à
exportação de produtos primários — se os outros países pensassem
assim que seria do nosso consumo de carvão, petróleo etc? Na rea-
lidade, diante da intensa concorrência mundial, não nos cabe per-
guntar se é melhor exportar matérias-primas ou manufaturas. A res-
posta é "ambos", pois não estamos diante de uma alternativa.
Em terceiro lugar, é necessário que a política de comércio ex-
terior se volte para os horizontes de longo prazo, sempre tendo em
mente que o nosso crescimento, nos próximos trinta anos, corre o
risco de ser bloqueado pelo gargalo externo. Nesse sentido cumpre
entender que é virtualmente impossível sustentar um monopólio in-
ternacional por muito tempo, e que as manobras de valorização, ca-
pazes de maximizar a receita cambial a curto prazo, podem nos le-
var, a longo prazo, a uma perda desastrosa de participação no co-
mércio mundial. Lembremo-nos também de que uma escassez transitó-
ria no mercado interno é acidente muito menos grave do que o des-
perdício permanente de uma nova linha de vendas ao exterior.
Em quarto lugar, parece indispensável reformular a nossa polí-
tica industrial de modo a tornar o nosso setor manufatureiro capaz
de enfrentar e de participar da concorrência internacional. Como
foi assinalado anteriormente, no decênio de 1950, dentro da filo-
sofia do desenvolvimento introvertido, obcecamo-nos pelos índices
de nacionalização sem medir custos. O resultado não foi uma indús-
tria de baixa produtividade genérica, mas uma indústria com graves
focos setoriais de ineficiência. Hoje o nosso setor manufatureiro
é obrigado a comprar no país certas máquinas, e certas peças e a-
cessórios a preços tais que destroem a competitividade dos pro-
dutos finais. Assim, o excesso de protecionismo, que numa primeira
fase castigava os consumidores em benefício dos industriais, já
chegou ao ponto de punir certas indústrias em favor de outras.
(Assiste-se hoje a intensa oposição entre os fabricantes de teci-
dos e os de certas máquinas têxteis.) Esses focos de ineficiência
resultam de termos insistido em implantar determinadas indústrias
que só poderiam funcionar economicamente com uma escala de pro-
dução e com uma capacidade de renovação tecnológica muito superior
às possibilidades do mercado interno. Sem propugnar um retorno
completo ao princípio das vantagens comparativas, pelo menos um
tipo de cálculo deveria ser feito em cada caso: verificar se a e-
conomia de divisas resultante do aumento dos índices de nacionali-
zação não é inferior ao que se deixa de exportar pela perda da
competitividade dos produtos finais. Esse cálculo provavelmente
nos levaria a desistir da sustentação de certos setores industri-
ais, em benefício do próprio balanço de pagamentos.
Em quinto lugar cumpre ter sempre em mente que o comércio in-
ternacional é avenida de mão dupla. Se insistirmos em tomar unila-
teralmente as decisões quanto às alíquotas de proteção, não nos
poderemos surpreender se o mesmo fizerem os demais países em rela-
ção aos nossos produtos.
Há quem deposite grandes esperanças na ampliação de nossas ex-
portações via diversificação dos mercados. Os grandes filões a ex-
plorar seriam a ALALC e os países do bloco comunista. A conquista
desses mercados merece o máximo incentivo, inclusive porque o co-
mércio não deve ser obstado por barreiras ideológicas, mas é pre-
ciso não a tomar como panacéia. A expansão das trocas com os paí-
ses socialistas é dificultada pela relativa introversão de suas
economias, pela deficiente competitividade de muitos de seus pro-
dutos, pela descontinuidade das suas correntes de comércio e pela
sua resistência ao aumento de consumo de certos produtos (como o
café) que integram a nossa pauta tradicional de exportações. Quan-
to aos países da ALALC, há que notar a insuficiente complementari-
edade de suas economias, as dificuldades de entrosamento das polí-
ticas monetária, cambial e fiscal, e as resistências mútuas ao a-
bandono da produção local comparativamente ineficiente. Essas di-
ficuldades não nos devem desanimar quanto aos esforços de conquis-
ta de novos mercados, desde que tais esforços se encarem como um
complemento e não como um substituto à ampliação do comércio com
as áreas tradicionais. De fato, como se depreende do Quadro 28, em
1967 ainda 71,1% das nossas exportações se destinavam aos mercados
tradicionais — Estados Unidos, Mercado Comum Europeu e Associação
Européia de Livre Comércio.
Enfim, cabe assinalar que desde 1965, com a implantação de uma
política de realismo cambial e de incentivo às vendas do exterior,
o panorama de nosso comércio melhorou consideravelmente. Deixamos
de ser sistematicamente deficitários no balanço de pagamentos, e
conseguimos resultados promissores em matéria de diversificação
das exportações. Isso fundamenta a esperança de que, com uma polí-
tica adequada de comércio exterior, diferente daquela que se esta-
beleceu entre 1947 e 1963, possamos escapar à interrupção do nosso
crescimento pelo gargalo da capacidade para importar.

QUADRO 28
EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS POR ÁREAS – 1955/1967
DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL
Mercado
Estados Demais
Ano Comum AELC ALALC COMECON TOTAL
Unidos Países
Europeu

1955 42,3 18,5 12,7 10,2 4,2 12,1 100,0


1956 49,5 17,4 12,1 6,7 3,7 10,6 100,0
1957 47,4 15,4 12,4 10,0 3,2 11,6 100,0
1958 43,1 17,5 12,2 11,5 3,3 12,4 100,0
1959 46,3 19,7 12,4 5,9 4,5 11,2 100,0
1960 44,5 19,7 12,8 6,8 6,2 10,0 100,0
1961 40,2 22,4 11,6 6,8 5,6 13,4 100,0
1962 40,1 23,9 12,6 6,2 6,2 11,0 100,0
1963 37,8 28,1 11,4 5,4 7,2 10,1 100,0
1964 33,2 26,1 12,9 9,3 7,1 11,4 100,0
1965 32,6 25,9 12,1 12,4 6,4 11,6 100,0
1966 33,4 24,7 13,1 10,4 7,1 11,3 100,0
1967 31,9 27,4 11,8 9,3 6,8 12,8 100,0

Fonte: Apec
Capítulo VII

PLANEJAMENTO, MERCADO, INTERVENÇÃO ESTATAL

7.1 — Os Erros do Mercado e os Erros do Planejador

Qual a dose ideal de interferência do Estado numa economia in-


teressada em extrair o máximo rendimento de seu esforço para se
desenvolver? Essa é uma pergunta que naturalmente inquieta qual-
quer espírito voltado para os problemas econômicos, mas que, infe-
lizmente, ainda está longe de comportar uma resposta científica.
Dentro de boa faixa, a opção atualmente se baseia em critérios i-
deológicos. E quando as pessoas pragmáticas e bem formadas se vêem
obrigadas a apelar para a ideologia é sinal de que paira vasta ig-
norância científica sobre o assunto. Em todo caso, os últimos cin-
qüenta anos de confronto entre capitalismo, comunismo e regimes-
híbridos, nos trouxeram alguma experiência capaz de afastar os ex-
tremismos ideológicos. Se ainda não sabemos exatamente o que fa-
zer, possuímos, pelo menos, boas informações sobre o que não se
deve fazer.
Para os espíritos pouco sofisticados, o maior atrativo do re-
gime econômico socialista talvez resida na simplicidade do seu es-
quema teórico de funcionamento. Com as decisões centralizadas nas
mãos do Estado, a noção de ordem é um postulado. Já na descentra-
lização capitalista, essa noção se transforma num teorema mais ou
menos complicado. Isso em parte explica aquele socialismo juvenil
pelo qual quase todos nós passamos em determinada época da vida.
Explica também por que muitas pessoas, embora veementemente anti-
comunistas por motivos éticos ou políticos, se revelam nitidamente
estatizantes em matéria de economia.
Nessa linha, um dos vícios mais freqüentemente repetidos é o
de alinhar os defeitos do livre jogo das forças de mercado, em
termos de distribuição de renda e de alocação de investimentos, e
de opor como alternativa uma intervenção estatal orientada por um
planejamento perfeito. Esse procedimento é tão inadequado quanto a
sua recíproca — considerar os defeitos da intervenção estatal e
imaginar como alternativa um mercado perfeito — raciocínio que nos
levaria à defesa intransigente do "laissez-faire". Na realidade,
no nível abstrato da perfeição seria inútil comparar os diferentes
regimes: eles se tornariam indiferentes. O confronto interessa não
nessa escala de abstração, mas exatamente no balanço dos defeitos:
só se pode chegar a conclusões úteis partindo da análise dos erros
do mercado e dos erros do planejador.
Comecemos pela enumeração dos erros do mercado. Os méritos do
livre jogo de preços, como orientador da produção e dos investi-
mentos, são descritos por uma série de teoremas que caracterizam
aquilo que os economistas intitulam "eficiência de Pareto". De-
monstra-se que, dada certa quantidade de fatores de produção, o
livre jogo das forças de mercado se encarrega de distribuí-la da
melhor forma possível, desde que haja concorrência e mercados per-
feitos e desde que se abstraia o problema das economias e efeitos
externos. Trata-se de um teorema bastante importante, mas cujas
limitações práticas não podem ser esquecidas. Prova-se, em primei-
ro lugar, que, dada certa quantidade de fatores de produção, o
sistema de mercado a distribui eficientemente, o que constitui uma
afirmação de eficiência estática; mas nada se assegura quanto às
vantagens dinâmicas do sistema no que tange à criação de novos fa-
tores, principalmente quanto à formação de capital; na realidade,
o livre jogo das forças de mercado nem sempre conduz à acumulação
de um volume desejável de poupanças, e esse pode ser um primeiro
argumento em defesa da interferência governamental no sistema. Em
segundo lugar, nem todos os requisitos para o funcionamento ideal
das forças de mercado costumam estar presentes nas economias re-
ais: a tecnologia industrial moderna cada vez mais impõe a aceita-
ção dos oligopólios como alternativa à pulverização da concorrên-
cia perfeita; em vários mercados (como no da mão-de-obra desquali-
ficada em países subdesenvolvidos) os preços são afetados por in-
terferências institucionais (como a fixação de um salário mínimo);
vários investimentos e dispêndios de alta produtividade social (em
educação, em construção de estradas, por exemplo) não podem ser
convenientemente remunerados pelo sistema de preços; esses efeitos
externos, aliás, não se restringem à produção, estendendo-se ao
consumo: a satisfação de um indivíduo não depende apenas dos bens
colocados à sua disposição, mas também se associa à comparação do
seu nível de vida com o dos cidadãos do seu entorno social (efei-
to-demonstração); cabe também observar que, diante dos vultosos
investimentos mínimos exigidos em certas indústrias, o mercado de
capitais está longe de se poder considerar perfeito: não se levan-
ta dinheiro com aquela simplicidade com que se vai a um mercado
comprar batatas. Por último, quando se afirma, no sentido estáti-
co, que o sistema de mercado distribui da melhor forma possível os
fatores de produção, diz-se apenas que, estabelecido o equilíbrio
do sistema, é impossível melhorar a situação de um indivíduo sem
piorar a de algum outro. Essa é a definição de eficiência, no sen-
tido de Pareto, mas não um critério eticamente aceitável de efici-
ência social.
A conclusão lógica a extrair dessas observações é que é dese-
jável certo grau de interferência do Governo no sistema econômico,
e que o "laissez-faire" absoluto deve ser rejeitado. Essa interfe-
rência se justifica em três níveis: no da redistribuição de renda,
por um jogo adequado de impostos, subsídios e transferências, a
fim de estimular a poupança e atenuar as desigualdades econômicas
individuais; no da criação de dispêndios correntes, para prover os
serviços de interesse coletivo (defesa nacional, policiamento, e-
ducação etc.) que não podem ser adequadamente remunerados pelo
sistema de preços; e no da formação de capital, para compensar os
efeitos das economias externas (estradas, por exemplo) ou para en-
frentar as imperfeições do mercado de capitais (energia elétrica,
siderurgia etc). Contudo, até que ponto prolongar essa interferên-
cia, é questão que só se pode responder após o confronto dos erros
do mercado com os erros do planejador.
Passemos pois à enumeração das falhas do Governo como agente
econômico. Em princípio, a centralização das decisões econômicas
nas mãos do Estado possui aquela atratividade estética de todas as
grandes construções unitárias. Num modelo agradavelmente abstrato
tudo aquilo que um regime descentralizado possa produzir, através
de uma complicada conjugação das decisões individuais, será facil-
mente alcançável por um sistema centralizado, desde que a sua di-
reção seja confiada ao planejador infalível. Infelizmente essa fi-
gura ainda não foi descoberta e, no mundo real, não podemos esque-
cer os problemas de estímulo, informação, comunicação e realimen-
tação, exatamente aqueles que costumam atrofiar a eficiência do
Governo como empresário.
Por mais otimistas que sejamos em relação ao progresso das ci-
vilizações modernas, havemos de concordar que estamos bastante
distantes daquele mundo paradisíaco em que o trabalho se confunde
com o "hobby". Temos assim que concordar que a eficiência do tra-
balho individual está fortemente correlacionada com o incentivo
pecuniário, bem mais atrativo na iniciativa privada do que no âm-
bito da empresa estatal. É possível que, nesse particular, o capi-
talismo e socialismo se venham aproximando. De um lado porque os
países comunistas, abandonando os dogmas e aderindo ao pragmatis-
mo, aprenderam a remunerar certos gerentes e funcionários de acor-
do com a produtividade e com os lucros. De outro lado porque a
grande sociedade anônima dos países mais desenvolvidos, confia sua
direção a administradores profissionais, e não aos proprietários
do capital. Ainda assim, a diferença de incentivos parece bastante
expressiva a favor da livre empresa.
O segundo problema é o da rapidez das informações e comunica-
ções. Não se trata de uma questão de ideologia (pois os vícios do
socialismo amiúde se repetem em grandes empresas privadas multina-
cionais), mas de eficiência comparativa dos sistemas de decisão.
Todo regime centralizado exige o desenvolvimento de uma formidável
burocracia para a transmissão das informações e comunicações. As
cúpulas de decisão ficam facilmente congestionadas pelo excesso de
trabalho, em geral incidindo em dois tipos de erros: aqueles ad-
vindos da imperfeição das informações e da falta de conhecimento
de pormenores específicos, e aqueles provenientes da lentidão das
comunicações e resoluções.
O terceiro problema, ainda de natureza administrativa e não
ideológica, é o da compensação de erros. Num regime descentraliza-
do, os erros de decisão de alguma forma tendem a compensar-se, co-
mo uma espécie de soma de vetores aleatórios. A alternativa da
centralização talvez sirva para apagar os pequenos enganos. Mas
amplia os grandes erros, agora unificados numa mesma direção.
O quarto problema é o da realimentação. Dentro dos mais ele-
mentares princípios da cibernética, nenhum sistema deve ser monta-
do sob a hipótese de que suas componentes não cometam erros. Já
assinalamos que, nesse nível de abstração, todos os sistemas seri-
am equivalentes. O importante é aceitar a existência de erros, e
simplesmente dispor de mecanismos de realimentação ("feed-back")
que os corrijam tão rapidamente quanto possível. No sistema de
mercado esse "feed-back" é provido pelo dualismo "lucro-falência".
O empresário eficiente é premiado pelo enriquecimento, o incapaz é
punido pela bancarrota. A empresa estatal, ainda que se tente a-
moldar aos melhores princípios de eficiência administrativa, está
longe de ter encontrado, na alternativa promoção-demissão, um
substituto à altura do mecanismo de "feed-back" da iniciativa pri-
vada.
Um quinto problema, característico de países como o Brasil, é
o da descontinuidade administrativa. Salvo poucas exceções, a di-
reção das empresas estatais, entre nós, se modifica cada vez que
muda o Presidente da República. Esse reformismo pessoal, diga-se
de passagem, não se limita aos cargos de direção superior, mas se
estende amiúde às chefias de departamento, e às vezes até a esca-
lões menos graduados da administração. Esse é um quadro visi-
velmente contrastante com o das empresas privadas, onde as equipes
dirigentes costumam estabilizar-se por períodos bastante longos.
Não há modelo abstrato que descreva os prejuízos causados por essa
descontinuidade administrativa. Qualquer diretor de empresa, para
chegar a seu máximo de eficiência, precisa atravessar certo perío-
do de aprendizagem no cargo. É lamentável que, quando esse período
está por se concluir, as chamadas razões políticas imponham a mu-
dança dos quadros dirigentes das empresas públicas.
Essas observações deixam claro que os percalços do Estado, co-
mo agente econômico, estão longe de ser desprezíveis, e que a fic-
ção do planejador perfeito é pelo menos tão distanciada da reali-
dade quanto a do mercado perfeito. E, se o balanço dos defeitos
não chega a estabelecer quantitativamente o grau ideal de interfe-
rência do Governo na economia, pelo menos duas lições podem ser
extraídas, uma da experiência internacional, outra da brasileira.
Da experiência internacional se pode inferir que a eficiência
do Estado como agente econômico varia setorialmente na razão dire-
ta da densidade do uso de capital. Em setores de alta relação ca-
pital/mão-de-obra (numa usina hidrelétrica, por exemplo) a parti-
cipação empresarial do Governo pode ser amplamente recomendável
diante das imperfeições do mercado de capitais; e os vícios habi-
tuais da burocratização e do empreguismo se tornam pouco relevan-
tes nessas indústrias de baixo coeficiente de utilização do traba-
lho humano. Já nos setores "labor-intensive", onde a produção de-
pende de uma multiplicidade de decisões e comunicações indivi-
duais, os defeitos da intervenção estatal parecem ampliar-se numa
escala intolerável. Tome-se o exemplo da União Soviética. É fora
de dúvida que o comunismo lá conseguiu notáveis realizações no
campo da tecnologia e da indústria pesada. Contudo, nos setores de
alta densidade de mão-de-obra, o socialismo ainda não conseguiu
descobrir a fórmula da eficiência. A indústria de bens de consumo
é ultra-modesta na qualidade dos seus produtos e pouco moderada
nos custos. A agricultura continua repleta de problemas insolúveis
diante da eterna briga dos rendimentos por hectare com a coletivi-
zação das fazendas. E, em matéria de qualidade dos serviços, a
Rússia vive nos mais perfeitos padrões de subdesenvolvimento.
Da experiência brasileira vale concluir que as nossas tradi-
ções de paternalismo, e descontinuidade administrativa recomendam
que se limite o quanto possível o campo de interferência do Estado
como empresário. É certo que, ainda assim, caberá às empresas go-
vernamentais boa parte dos investimentos do país. Diante da imper-
feição do mercado de capitais, da pulverização das poupanças pri-
vadas e das limitações do espírito de associatividade empresarial,
é virtualmente impossível reunir os recursos necessários à priva-
tização dos novos investimento na siderurgia ou na eletrificação.
Contudo, não parece desejável que o Estado tome a seu cargo os se-
tores que podem ser adequadamente supridos pela iniciativa priva-
da, desde que lhe sejam garantidos os necessários estímulos pelo
sistema de preços. E, por último, vale refletir sobre uma frase de
Roberto Campos a propósito dos monopólios estatais: quando efici-
entes, eles se tornam desnecessários; quando ineficientes, imere-
cidos.

7.2 — Planejamento, a Técnica Neutra

A preocupação em melhorar os critérios de formulação de polí-


tica econômica com vistas a um desenvolvimento mais rápido, tem
levado os países subdesenvolvidos a encampar com entusiasmo as
técnicas de planejamento. Nesse particular, o Brasil não tem fugi-
do à regra. Nos dez últimos anos tivemos o Programa de Metas do
Governo Kubitschek, o Plano Trienal do Governo Goulart, o Programa
de Ação Econômica e o Plano Decenal do Governo Castello Branco, e
agora o Programa Estratégico do Governo Costa e Silva — isso sem
contar outras tentativas de menor alcance, e os inúmeros planos
regionais e setoriais. Essa crescente preocupação em planejar
constitui inegavelmente um passo positivo, em relação aos antigos
métodos de formulação de política econômica. Todavia, como ainda
pairam algumas dúvidas quanto ao exato sentido do planejamento, e
como ainda nos achamos dominados mais pela concepção editorial do
que pela operacional, valem alguns comentários sobre o assunto.
Embora as primeiras experiências de planejamento global se te-
nham iniciado na União Soviética, nada há de intrinsecamente soci-
alizante na idéia. O planejamento global é apenas uma nova maneira
de conceber os métodos de decisão governamental, subordinando os
instrumentos de ação a certos objetivos econômicos mais amplos.
Instrumentos diretos de ação sob o controle do Governo são os seus
orçamentos e a legislação econômica geral. Esses instrumentos, no
entanto, não lidam com objetivos naturais — seria esquisito consi-
derar como tal o volume de investimentos públicos em rodovias, ou
a taxa de recolhimentos compulsórios exigida dos bancos comerci-
ais. Objetivos econômicos naturais podem ser a taxa de crescimento
do produto real e do emprego, a atenuação de desigualdades regio-
nais, o controle da inflação etc, elementos que não se encontram
sob o controle direto do Governo. A filosofia do planejamento é
justamente a de dimensionar os instrumentos de ação de acordo com
os objetivos traçados. Ao invés de se fixarem arbitrariamente os
orçamentos públicos e os parâmetros quantitativos da legislação
econômica, tomam-se esses instrumentos como variáveis dependentes,
a serem determinadas em função dos objetivos globais previamente
estabelecidos.
Um pouco de reflexão sobre esse conceito provavelmente destru-
irá qualquer ojeriza apriorística à idéia de planejamento central.
Com efeito, a ausência total do planejamento só se explica ou num
regime de "laissez-faire" integral, ou num país onde o Governo a-
tue tópica e aleatoriamente, sem qualquer sentido de coordenação
em sua política econômica. Como essas condições nem são desejáveis
nem habituais, conclui-se que, pelo menos numa forma embrionária,
o planejamento começou a ser praticado há já muito tempo, muito
antes que os economistas sonhassem em tecer considerações sobre a
matéria.
É que, no mundo de hoje, entre os mais ferrenhos defensores da
livre empresa não faltam os Messieurs Jourdain do planejamento
central.
Nessa altura, alguns pontos de controvérsia devem ser aborda-
dos. Em primeiro lugar não falta quem pergunte: como o Governo po-
derá fixar uma taxa de crescimento de 6% ou 7% para o produto real
de uma economia onde a maior parte desse crescimento terá que ser
promovida pelo setor privado? A resposta está em que, numa econo-
mia de livre empresa, embora as decisões econômicas sejam tomadas
descentralizadamente, a sua média é razoavelmente previsível — pa-
ra isso existe a teoria econômica. Obviamente a precisão das pre-
visões não se compara à conseguida pelos astrônomos ou pelos físi-
cos, mas isso não significa que elas devam ser abandonadas. Sim-
plesmente as previsões numéricas de um Plano devem ser interpreta-
das com flexibilidade, o mesmo ocorrendo com seus objetivos. Tra-
ta-se apenas de elementos de cálculo para o dimensionamento dos
instrumentos de ação a serem utilizados pelo Governo.
Na mesma linha há quem sugira que o Governo programe apenas as
suas inversões e as suas providências legislativas, não tentando
fazer previsões sobre matérias fora de seu controle direto. O in-
conveniente dessa atitude está em que investimentos públicos e
privados não são compartimentos estanques — o Governo quando in-
veste deve ter em mira as necessidades da economia como um todo;
além disso a legislação econômica destina-se basicamente a provo-
car determinadas reações do setor privado, e a sua feitura não po-
de dissociar-se de algum esforço de previsão. Na realidade, quando
se criticam a priori as previsões de um plano referentes ao com-
portamento do setor privado (não porque as previsões sejam mal
feitas, mas apenas porque tratam de matéria estranha ao controle
governamental), está-se apenas repetindo a afirmação muito banal
de que a análise econômica é uma ciência atrasada. Todavia, quando
se recomenda que, por isso, o Governo desista de basear suas deci-
sões nessas previsões, está-se admitindo que a ciência econômica
além de atrasada é nociva — sem dúvida uma suposição algo esdrúxu-
la.
A aceitação da filosofia do planejamento pode trazer três con-
seqüências benéficas para o desenvolvimento econômico de um país.
A primeira é a melhoria da composição dos orçamentos públicos, que
presumivelmente serão mais bem feitos quando subordinados a um
critério científico do que quando resultantes da simples superpo-
sição de decisões mais ou menos arbitrárias. A segunda reside na
maior continuidade da política econômica, que passará a orientar-
se por um horizonte razoavelmente amplo, desde que o Governo leve
a sério os seus planos. A terceira é a definição clara do papel do
setor público e do setor privado no processo de desenvolvimento,
com a melhor explicitação das regras do jogo, e a conseqüente di-
minuição dos riscos para os empresários. Contudo, para que esses
aspectos benéficos se institucionalizem, não basta ao Governo pu-
blicar planos: é preciso, sobretudo, que eles sejam exeqüíveis e
executados. Esse é o problema que discutiremos a seguir.
7.3 — Planejamento e Realismo Orçamentário

Uma das características mais freqüentemente observadas nas so-


ciedades subdesenvolvidas consiste na sua tendência a desejar ob-
jetivos incompatíveis.
Sobretudo nos países intensamente sujeitos ao efeito-
demonstração, nada parece mais irritante do que a exigência de que
a soma das partes não ultrapasse o todo. Daí o desejo de aumentar
despesas públicas, baixar impostos, expandir o crédito às empresas
e, simultaneamente, evitar a inflação. Ou a aspiração de, simulta-
neamente e a curto prazo, aumentar os salários reais dos trabalha-
dores e a poupança nacional. A inflação crônica, tão espalhada por
esses países, é o subproduto natural desse quadro psicológico. A
sociedade tenta implantar uma política de incompatibilidade dis-
tributiva, dividindo o bolo em fatias cuja soma é muito superior
ao total disponível. O bolo efetivamente incha em unidades monetá-
rias correntes, pois não há limite à taxa de crescimento do produ-
to nominal quando se apela para a inflação. Mas em termos reais a
inflação restaura a compatibilidade do sistema, encolhendo as fa-
tias pretendidas até que se ajustem ao total possível.
Por mais romântica que pareça, a revolta contra a aritmética
não pode dar bons resultados. Assim, uma sociedade subdesenvolvida
que aspire à construção de um futuro mais sorridente, deve antes
de tudo saber fixar objetivos compatíveis. O planejamento econômi-
co, como filosofia de Governo, pode fornecer importante ajuda nes-
sa direção: as medidas tópicas, isoladamente muito saudáveis, fa-
cilmente incidem no problema da incompatibilidade de conjunto. E
isso só se consegue verificar nas devidas dimensões, quando essas
medidas são reunidas a priori na tentativa de elaboração de um
plano.
Que dizer sobre a experiência brasileira de planejamento? É
fora de dúvida que, em matéria de composição intelectual dos pla-
nos já conseguimos progredir consideravelmente. Há dez anos atrás
o Programa de Metas constituía um bom feixe de planos setoriais,
mas sem suficiente coordenação global. Mais adiante, o Plano Trie-
nal surgiu como interessante exercício de macroeconomia, mas des-
tituído de instrumentos operacionais. Hoje, o Programa Estratégico
do atual Governo pode considerar-se um documento bem mais sofisti-
cado. Em primeiro lugar por ter sido precedido por uma série cui-
dadosa de diagnósticos e planos setoriais elaborados pelo Institu-
to de Pesquisas Econômicas Aplicadas do Ministério do Planejamen-
to. Em segundo lugar, por ser o resultado de uma coordenação des-
ses planos setoriais, devidamente compatibilizados, e não apenas
superpostos. Em terceiro lugar, por indicar o elemento operacional
para sua implantação, o orçamento plurianual de investimentos.
Escrever planos, todavia, não é o bastante. O Brasil possui
vários deles encostados nos arquivos e estantes e que jamais foram
postos em prática. O Plano Trienal do Governo Goulart, por exem-
plo, foi abandonado logo após a sua publicação. E até o atual Go-
verno cuidou de arquivar sob uma capa de silêncio o Plano Decenal
(que de fato era mais qüinqüenal do que decenal) que lhe fora le-
gado pelo seu antecessor. O planejamento só se torna efetivamente
útil quando se substitui a concepção editorial pela operacional. E
para chegar a esta última etapa, dois requisitos se fazem indis-
pensáveis. De um lado um espírito de continuidade administrativa
que conduza o Governo a tomar a sério os seus planos, encarando-os
como um compromisso impessoal de execução, e não apenas como li-
vros para publicação. De outro lado, que os planejadores se subme-
tam a objetivos compatíveis, por mais ásperos que estes pareçam, e
não tentem esconder a sua inconsistência por meros artifícios a-
ritméticos de apresentação.
Entre nós, apesar do muito que se progrediu em matéria de téc-
nica de planejamento, ainda se comete fartamente esse último tipo
de erro. Uma das maiores dificuldades à implantação efetiva da fi-
losofia do planejamento reside no irrealismo das propostas orça-
mentárias (particularmente no âmbito do Governo Federal), as quais
vêm capeadas por uma falsa compatibilização, obtida pela superes-
timativa da inflação no cálculo da receita e por uma subestimativa
na especificação da despesa. Como os orçamentos governamentais
constituem o principal veículo para a execução de um plano é fácil
compreender o quanto essa metodologia traz de perturbações ao sis-
tema.
A questão merece ser analisada em pormenores. Quando o Minis-
tério do Planejamento prepara a proposta orçamentária da União,
surge a necessidade de conciliar três objetivos. O primeiro é o de
conter o déficit dentro de limites toleráveis, a fim de impedir o
excesso de pressões inflacionárias de origem governamental. O se-
gundo é o de evitar o aumento da carga tributária, já considerada
excessiva em nossa economia. O terceiro é o de atender aos pedidos
de verbas dos diversos Ministérios e órgãos da administração fede-
ral. Como, por definição, despesa menos receita é igual a déficit,
é impossível fixar as três variáveis arbitrariamente. Assim, é ób-
vio que os três objetivos precisam ser compatibilizados.
A solução natural para o problema seria a compatibilização a
priori — o que exigiria que os Ministérios se contentassem com um
orçamento menos ambicioso, a fim de que pudesse ser posteriormente
executado. Mas a praxe que efetivamente se instalou entre nós é a
da pseudocompatibilização por artifícios aritméticos. Para que o
déficit não pareça exceder os limites toleráveis, infla-se a esti-
mativa da receita, admitindo que uma ampla alta de preços dê ori-
gem a uma substancial elevação da arrecadação tributária. E, ao
mesmo tempo, deixa-se de prever o aumento de funcionários pú-
blicos, e uma série de despesas extraordinárias que fatalmente te-
rão que ocorrer como resultado da inflação. Note-se que essa pseu-
docompatibilização aritmética vem ocorrendo sistematicamente nos
últimos anos, não obstante as disposições do Ato Institucional n.°
1, incorporadas à atual Constituição, as quais proíbem que o Con-
gresso eleve o total da despesa orçamentária.
Como é óbvio, a hora da verdade acaba chegando. O Ministro da
Fazenda então verifica que a receita foi superestimada, que os
vencimentos dos funcionários públicos foram aumentados, e que o
déficit potencial implícito no orçamento é absurdamente inflacio-
nário. A solução então consiste em substituir o orçamento por uma
programação financeira feita às pressas, baseada no aumento de al-
guns impostos, no corte de vários investimentos, e na aceitação de
um déficit freqüentemente superior ao considerado tolerável.
Três, pelo menos, são as conseqüências dessa tradicional fal-
sificação orçamentária. Em primeiro lugar, a eternização do défi-
cit público como foco de inflação. Em segundo lugar, o contínuo
aumento da carga tributária. Não há desculpa mais inconvincente do
que aquela que se repete quase todo o ano, a de que o Governo pre-
cisa elevar impostos para financiar o aumento dos funcionários pú-
blicos — pois afinal esses aumentos tem sido menos do que propor-
cionais à alta geral de preços, e a arrecadação tributária, toda
baseada em incidências proporcionais ou progressivas, acompanha
automaticamente a inflação. Em terceiro lugar, a mutilação dos
planos, e a caotização da administração pública, com a guerra ine-
vitável entre o Ministro da Fazenda, que quer prender as verbas
para conter o déficit, e os Ministros das pastas de execução, que
desejam gastar o que o orçamento lhes autorizou.
É fora de dúvida que os métodos de elaboração da proposta or-
çamentária vêm melhorando nos últimos anos, mas ainda aí há muito
o que progredir. Em 1967, com a entrada em vigor da Reforma Tri-
butária a qual eliminou o Imposto de Selo e transferiu boa parte
dos recursos da União para os Estados e Municípios através do Fun-
do de Participação, o orçamento se tornou inteiramente irrealista.
A par do aumento substancial do déficit público, foi necessário
substituir a lei de meios por nada menos do que uma sucessão de
três programações financeiras. Para 1968, a proposta orçamentária
inflou desmedidamente a estimativa da Receita, não cuidando de
consignar qualquer estimativa para o aumento de funcionários pú-
blicos. Para 1969, a proposta foi cercada de maiores cuidados.
Previu-se, pelo menos, uma verba de 15% para o aumento de funcio-
nários públicos, à conta do Fundo de Reserva (a qual foi parcial-
mente mutilada pelo Congresso, que a substituiu por outras despe-
sas, sem minorar o reajuste do funcionalismo), e a estimativa da
Receita foi construída em bases bastante realistas. Contudo, os
resultados ainda foram inflados, em parte pela excessiva ambição
do primeiro orçamento plurianual de investimentos, em parte pela
prática de não reduzir as verbas de investimento aquém da proposta
anterior (ao invés de se fazer a sua comparação com a programação
financeira), em parte pela não consignação de uma série de despe-
sas extraordinárias às quais costuma ficar exposto o Ministério da
Fazenda (como os reajustamentos cambiais da dívida externa do Go-
verno). Assim, em 1969, não nos livramos dos cortes e da programa-
ção financeira.
Podemos nutrir a esperança de que daqui para o futuro as pro-
postas orçamentárias se tornem mais realistas. O Ministério do
Planejamento tem reiterado explicitamente essa sua intenção, e a
tarefa parece ter sido bastante facilitada pela redução do Fundo
de Participação dos Estados e Municípios após o Ato Institucional
nº 5. Para que isso aconteça há uma condicionante psicológica: é
preciso que os planejadores imponham e os executores aceitem a mo-
déstia inerente aos objetivos compatíveis, a fim de que não se e-
laborem orçamentos de investimentos que fatalmente terão que ser
cortados na hora de execução. Resta o consolo de que o reco-
nhecimento dessas limitações, por mais áspero que pareça, melhora-
rá consideravelmente a eficiência da administração pública. E apa-
ziguará as dúvidas daqueles que desconfiam dos planos a longo pra-
zo de quem não consegue sequer orçar as suas finanças para o ano
seguinte.

7.4— O Crescimento do Setor Público na Economia Brasileira

Desde o término da Segunda Guerra Mundial até a presente data,


o setor público brasileiro cresceu a taxas verdadeiramente espan-
tosas. Entre 1947 e 1985, em percentagem do Produto Interno Bruto,
como investidor supletivo, em certos setores para os quais a tec-
nologia moderna exige a mobilização de grandes capitais. Contudo,
a dimensão dessa tarefa supletiva parece ter sido violentamente
exacerbada. Teoricamente caberia ao setor público investir naque-
les setores onde houvesse desinteresse do setor privado ou onde a
concentração da produção em empresas públicas fosse imposição da
segurança nacional. Na prática, ao conceito de segurança nacional
mesclou-se a emoção nacionalista, a qual esquecia que uma empresa
privada bem administrada pode ser mais segura para o país do que
uma unidade estatal pouco eficiente. E o desinteresse do setor
privado por inúmeros setores foi artificialmente criado pelo pró-
prio Governo, com a mistura de inflação e controles de preços. To-
me-se, por exemplo, o caso dos serviços de utilidade pública. É
possível que o setor privado, mesmo dispondo de condições favorá-
veis, não tivesse fôlego para os ampliar com a velocidade exigida
pelo mercado. Em todo o caso esse teste não foi realizado. De um
lado a inflação impossibilitava qualquer previsão orçamentária,
tornando financeiramente perigosos os investimentos de longo prazo
de maturação. De outro lado os controles de preços, como a remune-
ração das concessionárias pelo custo histórico sem correção mone-
tária, tornavam a rentabilidade desses empreendimentos irrisória
ou até negativa. Não surpreende que nesses casos o setor privado
se mostrasse desinteressado, e que o Governo acabasse tendo que
intervir no circuito como investidor supletivo.
Igualmente intenso foi o crescimento das transferências e sub-
sídios, que passaram de 4,1% do Produto Interno Bruto em 1947 para
8,8% em 1965. No caso das transferências (aposentadorias, pensões
etc.) a expansão se explica pela entrada em regime permanente dos
benefícios pagos pela Previdência Social. Quanto aos subsídios,
seu crescimento se deveu à mistura do aumento quantitativo com a
deterioração qualitativa da atividade empresarial do setor públi-
co: os absorventes deficits de certas autarquias e sociedades de
economia mista. Conquanto tecnicamente esses gastos constituam me-
ra redistribuição de renda, e não dispêndio efetivo do Governo,
eles correspondem a mais um tipo de interferência do setor público
no sistema econômico.
Nesse quadro de aumento galopante das despesas governamentais
era inevitável que a carga tributária crescesse consideravelmente
— de 14,7% para 25,1% do Produto Interno Bruto entre 1947 e 1965.
Como o sistema tributário se mostrava pouco elástico em relação à
renda, a solução encontrada foram as sucessivas revisões legisla-
tivas, sistematicamente dirigidas no sentido do aumento das alí-
quotas dos impostos. E note-se que os dados acima só vão até 1965.
Atualmente, se levarmos em conta a reforma constitucional, o Fundo
de Garantia de Tempo de Serviço e outros encargos criados nos úl-
timos anos, a carga tributária bruta deve estar bem mais alta.
Quais as conseqüências desse crescimento acelerado do setor
público brasileiro? A mais imediata, pelo menos até 1964, foi a
exacerbação das pressões inflacionárias. Como era muito popular
aumentar despesas e muito desagradável elevar impostos, gerou-se
um déficit desmedido nos orçamentos públicos e que não tardou em
se transformar na mola mestra da inflação. Em 1965 e 1966 o Gover-
no conseguiu imprimir razoável austeridade à sua política finan-
ceira, menos pelo corte de despesas do que pelo aumento de impos-
tos. Contudo o problema do déficit alarmante ressurgiu em 1967 e
1968, em boa parte por causa do Fundo de Participação dos Estados
e Municípios criado pela nova constituição, e das despesas de pes-
soal crescidas à sombra das leis de reforma administrativa.
O segundo corolário natural foi a debilitação do setor priva-
do, que passou a receber uma fatia cada vez menor do bolo. Fre-
qüentemente as autoridades tentam adocicar os aumentos de impostos
alegando que o que se está retirando do setor privado logo lhe se-
rá devolvido com o aumento das compras do Governo. Essa é uma con-
fusão de contabilidade que cumpre evitar, entre o volume de renda
e da despesa global e os titulares dessa renda e despesa. A valer
esse argumento, a legislação penal deveria perdoar todo ladrão que
se comprometesse a aplicar a quantia roubada comprando no estabe-
lecimento comercial da vítima. É do consenso geral que, entre 1963
e 1966, tanto os assalariados quanto boa parte das empresas ema-
greceram sensivelmente em matéria de renda real. Essa era a con-
trapartida da engorda do setor público.
Não é fácil reduzir subitamente a pressão do setor público so-
bre a economia brasileira. Contudo, pelo menos quatro princípios
deveriam orientar o controle das despesas governamentais daqui pa-
ra o futuro.
O primeiro é o de que o empreguismo, por mais humano que seja
a curto prazo, é dramaticamente cruel a longo prazo. Todo emprego
inútil sustentado pelo setor público representa um desfalque per-
manente na capacidade de poupança do país — poupança que poderia
gerar continuamente novos empregos e novos acréscimos no produto
nacional. Um funcionário ocioso que receba o equivalente a 2.500
dólares anuais impede que a economia poupe o necessário à criação
de um emprego por ano. Dez anos de ociosidade são dez empregos que
deixaram de ser gerados. Esse cálculo deveria sensibilizar aqueles
que toleram o empreguismo no setor público como uma fórmula de a-
paziguamento da oferta de mão-de-obra num país sujeito à explosão
demográfica.
O segundo princípio é o de que os deficits de empresas públi-
cas e autarquias, causados pelo empreguismo, pela inadequação tec-
nológica (vide ramais deficitários) ou pelo irrealismo tarifário,
traduzem um pieguismo imediatista igualmente desumano a longo pra-
zo. A coletividade não escapa ao pagamento desses deficits, via
impostos ou via inflação, e geralmente perde em perspectivas de
crescimento, pela mutilação da capacidade de poupança.
QUADRO 29
INDICADORES DO COMPORTAMENTO DO SETOR PÚBLICO
(Percentagens)

ANO T/Y T*/Y CG/Y IG/Y DGY D*G/Y SG/Y IG/I


1947 14,7 14,8 10,7 3,2 14,0 18,0 4,1 19
1948 15,2 15,7 11,7 4,2 15,8 19,7 4,0 26
1949 15,8 15,7 12,6 4,8 17,4 21,5 3,1 32
1950 15,8 15,5 12,6 4,8 17,5 21,7 2,9 36
1951 17,7 17,3 12,4 4,2 16,6 21,2 4,9 26
1952 17,6 16,5 12,8 4,2 17,1 23,7 3,7 28
1953 17,0 16,1 15,1 3,9 19,0 23,5 1,0 30
1954 18,8 17,1 13,5 4,7 18,2 22,9 3,6 29
1955 17,4 15,5 13,5 3,8 17,3 22,3 2,0 27
1956 18,7 15,5 14,7 3,5 18,2 24,2 0,8 27
1957 19,4 15,9 14,4 5,4 19,8 27,2 1,5 41
1958 21,8 8,2 13,7 6,7 20,4 27,3 4,5 48
1959 22,6 18,3 13,8 6,6 20,4 27,3 4,5 42
1960 22,5 20,5 15,3 7,4 22,8 29,4 5,2 45
1961 21,6 17,3 15,5 7,6 23,1 31,7 1,8 44
1962 21,2 15,7 15,5 8,5 24,0 33,1 0,2 52
1963 22,0 17,0 16,3 7,0 23,3 32,7 0,7 43
1964 23,3 15,9 15,5 6,7 22,1 31,4 0,4 47
1965 25,1 19,3 14,2 8,0 22,0 31,0 5,1 68
T – impostos diretos e indiretos (inclusive contribuições para a Previdência Social
T* - impostos diretos e indiretos, mais outras receitas correntes do Governo, menos subsídios e
transferências
CG – consumo do Governo
IG – investimento fixo do Governo, inclusive Sociedades de Economia Mista.
DG – dispêndio do Governo (consumo mais investimento)
D*G – despesa corrente do Governo (inclusive subsídios e investimento), mas investimento
SG em T* - C = poupança do Governo em conta corrente
Y – Produto Interno Bruto
I – Formação bruta de capital fixo

Fonte: Fundação Getúlio Vargas e estimativas do IPEA para 1965


O terceiro princípio é o de que o Governo brasileiro que não é
tradicionalmente o melhor dos empresários, já tem bastante em que
interferir daqui para o futuro, não precisando cogitar da amplia-
ção da sua área de ação. Já assinalamos que, diante das imperfei-
ções do mercado de capitais, os investimentos de infra-estrutura
terão que ser confiados em grande parte às empresas públicas. É
possível que, no total, venha a caber às entidades governamentais
cerca de 50% da formação de capital do país, mas é importante não
inflar essa cifra1.
O quarto princípio é o de que a expansão do setor público não
deve ser financiada pela atrofia do setor privado. Nesse sentido
seria importante pesquisar a hipótese (sobre a qual é difícil um
julgamento a priori) de que, nos últimos anos o Brasil tenha pas-
sado a incidir num erro comum de planejamento parcial que conduz à
hipertrofia de alguns setores e à atrofia de outros. Tem-se procu-
rado assegurar às entidades sob controle do Estado um volume de
recursos que lhes permita investir de acordo com um programa de
crescimento acelerado. Para isso retiram-se fundos do setor priva-
do, ora através de tributos, ora por intermédio do sistema de pre-
ços, de modo a garantir o financiamento desses projetos. Resta sa-
ber se o setor privado, desfalcado desses recursos terá ânimo e
condições para crescer tão depressa quanto o setor público. Corre-
se o risco de que, ao cabo de alguns anos, se assista a outro sur-
to de capacidade ociosa setorial, o de uma infra-estrutura que
cresceu às expensas da atrofia da super-estrutura.

1
O Plano Decenal, por exemplo, previa a concentração de cerca de dois terços da formação de capital do país nas mãos
de entidades públicas.
CAPÍTULO VIII
O PROBLEMA EDUCACIONAL

8.1 — Educação e Desenvolvimento

Um dos contrastes mais flagrantes no panorama econômico mundi-


al dos últimos vinte anos foi o da rapidez da reconstrução das na-
ções devastadas pela Segunda Guerra, com a lentidão com que con-
tinuaram a crescer os países subdesenvolvidos. Em 1945 e 1946 a
Alemanha ou o Japão enquadravam-se entre os países subdesenvolvi-
dos em matéria de renda per capita. Hoje ambos se incluem na me-
lhor faixa do bloco avançado, a Alemanha desfrutando de invejável
produto real por habitante, e o Japão alcançando as maiores taxas
já registradas de crescimento econômico.
É verdade que reconstrução é processo bem mais favorável do
que desenvolvimento, em matéria de relação capital/produção. Uma
devastação de guerra multiplica os pontos de estrangulamento, bai-
xando o produto per capita pela ruptura das proporcionalidades nas
várias etapas da produção. Há, porém, as instalações que sobrevi-
veram, e que poderão ser reativadas tão logo se reconstruam os se-
tores a elas complementares. De qualquer forma esse efeito "capa-
cidade-ociosa" não parece ter sido o suficiente para explicar a
diferença de velocidades entre os processos de reconstrução e de-
senvolvimento. A rapidez da reconstrução parece ter sido devida em
grande parte ao fato de que a Alemanha ou o Japão, embora devasta-
dos materialmente, dispunham dos melhores quadros humanos para a
sua recuperação econômica.
Observações dessa natureza levaram os economistas a pesquisar
com grande interesse o impacto da educação e da formação de recur-
sos humanos sobre o desenvolvimento. Essas pesquisas conduziram
quase que sistematicamente à conclusão de que a contribuição da
educação para a melhoria da renda per capita chega a ser mais im-
portante do que a acumulação do capital físico. Talvez, como dizem
os céticos, os economistas tenham descoberto o óbvio com quase
dois séculos de atraso, pois Adam Smith já lembrava que os gastos
em educação representam investimento altamente reprodutivo em ca-
pital humano. Talvez também se possam colocar em dúvida os métodos
de medição utilizados nessas pesquisas recentes, muitas vezes con-
flitantes em suas conclusões quantitativas, e geralmente baseados
em hipóteses excessivamente simplificadas sobre a estrutura do de-
senvolvimento. De qualquer forma os resultados representam um in-
teressante esforço de análise, e que em nada contradiz o bom sen-
so.
De um modo geral os economistas concordam em que o crescimento
do produto real da maioria dos países não se pode explicar apenas
pelo aumento do estoque de capital e da força de trabalho. Por si
só, o aumento da relação capital/mão-de-obra permitiria que a ren-
da per capita subisse. Mas não se trataria de um crescimento auto-
sustentável, devido ao problema dos rendimentos decrescentes1. Um
progresso secular, como o que se tem verificado em tantos países,

1
O leitor interessado nos pormenores matemáticos do problema poderá consultar o Apêndice VII.
só se pode explicar se admitirmos que, além do aumento de recursos
materiais, exista um fator residual de desenvolvimento — a educa-
ção e o progresso tecnológico.
Com certa imaginação quanto às funções de produção e com a me-
todologia dos mínimos quadrados, não foi difícil aos economistas
aferir a importância desse resíduo. Aukrust, em um estudo que a-
brangia o período 1900-1955 para a Noruega, concluiu que a taxa de
crescimento média de 3,46% ao ano resultara dos seguintes fatores:

contribuição do aumento da força de


trabalho = 0,46% ao ano

contribuição do aumento do estoque de capital = 1,12% ao ano

resíduo: contribuição da educação


e do progresso técnico = 1,88% ao ano
TOTAL = 3,46% ao ano

Solow, estudando o crescimento do produto real dos Estados U-


nidos entre 1900 e 1949 concluiu que a educação e o progresso téc-
nico eram responsáveis por uma taxa de crescimento adicional de
1,5% ao ano. Na mesma linha, um grupo de economistas ingleses, es-
tudando o período 1948/1954 na Inglaterra, concluiu que o incre-
mento do produto real era imputável aos seguintes fatores:

ao trabalho 314,8 milhões de libras


ao capital 311,9 milhões de libras
à técnica e à organização 553,6 milhões de libras
TOTAL 1.180,3 milhões de libras

Mais pormenorizados ainda foram os resultados obtidos por De-


nison a respeito do crescimento do produto real norte-americano
entre 1929 e 1957, segundo os quais a taxa média de crescimento de
2,93% no ano era atribuível aos seguintes elementos:

à acumulação física de capital 0,53%" a.a.


ao aumento do estoque de mão-de-obra 0,80% a.a.
à educação 0,67% a.a.
à melhoria da produtividade dos fatores 0,93% a.a.
TOTAL 2,93% a.a.

Por esses últimos resultados, o aumento físico da quantidade de


fatores teria sido a causa de apenas 45% do crescimento verificado.
O resíduo era responsável por 55% do progresso, cabendo 23% à edu-
cação e 32% à melhoria de produtividade dos fatores.
Uma outra linha de estudos tem sido a de medir os rendimentos
da educação como investimento — calculando-se os gastos correspon-
dentes e os aumentos da renda pessoal pelos diferentes níveis de
escolarização. Salvo raras exceções, esses estudos têm apontado
altíssimo coeficiente de rentabilidade (embora a longo prazo) para
os investimentos em educação.
É possível que, metodologicamente, esses estudos mereçam al-
guns reparos. As medições dos rendimentos da educação podem ser
distorcidas pelas imperfeições do mercado de trabalho (salários
sustentados institucionalmente, e não livremente determinados pela
oferta e pela procura) e pela falta de mobilidade social (há pes-
soas que ganham mais porque herdaram mais, e que conseguiram me-
lhores níveis de escolarização pelo mesmo motivo). Quanto aos es-
tudos sobre a contribuição da educação para o aumento do produto
real, eles têm o defeito de tratar a acumulação de capital e o
progresso tecnológico como variáveis independentes, como bem acen-
tua o professor Eugênio Gudin em excelente artigo sobre Educação e
Desenvolvimento1. Em todo o caso, ainda que se dê um bom desconto
aos resultados numéricos, resta considerável evidência de que o
investimento em recursos humanos é dos mais altamente reprodutivos
para os países que se querem desenvolver. E, com a aritmética e o
bom senso de braços dados, parece indiscutível que o nosso pro-
gresso nos próximos trinta anos dependerá, em grande parte, dos
recursos que forem destinados ao sistema educacional, e da produ-
tividade que se conseguir extrair de tais recursos.

8.2 — O Esforço Quantitativo

Um diagnóstico sumário do problema educacional brasileiro che-


ga, de imediato, a três conclusões: a) como país subdesenvolvido, o
Brasil ainda apresenta índices alarmantes de analfabetismo e de de-
ficiência de escolarização; b) não obstante, a situação é hoje bem
menos dramática do que há alguns decênios atrás; tem havido consi-
derável esforço quantitativo na ampliação do nosso sistema educa-
cional; c) a produtividade do sistema, entre nós, é lamentavelmente
baixa; como diz Roberto Campos, o Brasil não gasta absurdamente
pouco em educação; gasta absurdamente mal. Cuidaremos a seguir dos
dois primeiros pontos acima mencionados; o terceiro merece análise
mais pormenorizada e será examinado nas seções seguintes.
Pelos dados do Censo de 1960, 39% da nossa população na faixa
etária a partir de 15 anos era composta de analfabetos. Esse é um
índice bastante dramático se nos quisermos comparar com países de-
senvolvidos como o Japão, os Estados Unidos, a Rússia ou a França,
onde as percentagens de analfabetismo ficam na escala de 1,5% a 3,5%
mas bem menos alarmante do que o dos países africanos e asiáticos,
onde tais percentagens às vezes chegam à casa dos 80% (Quadro 30).
Em matéria de índices de escolarização, a nossa situação no
quadro internacional é ainda mais desfavorável. Em 1960 o total de
nossas matrículas escolares correspondia a apenas 35,3% da popula-
ção na faixa de 5 a 19 anos. Essa percentagem não só ficava muito
abaixo da correspondente aos países, desenvolvidos (60% a 80%),
como não atingia sequer o nível de muitas nações pobres da África
e da Ásia (Quadro 31). Por graus de ensino, a matrícula total no
primário correspondia a 79,2% da população de 7 a 11 anos; a ma-
trícula no ensino médio, a apenas 11,2% da população entre 12 e 18
anos; e a matrícula no ensino superior, a 1,11% da população entre
19 e 25 anos.

1
No Apêndice IV vimos algumas das restrições que se podem fazer ao emprego das funções de tipo Cobb-Douglas.
QUADRO 30
ANALFABETISMO EM ALGUNS PAÍSES
PERCENTAGENS DE ANALFABETOS NA POPULAÇÃO A PARTIR DE 15 ANOS

Ano de % de
P A Í S E S
referência analfabetos

ÁFRICA
Egito 1900 80.5
Marrocos 1962 86,2
Argélia 1959 92.3
Madagascar 1953 66,5
Uganda 1959 74.9
Sudão 1956 88,0
Moçambique 1950 98,5

ÁSIA
Japão 1960 2,2
Israel )Judeus........ 1901 12,8
Israel )não judeus... 1901 52,4
Filipinas 1960 28,1
Hong-Kong 196l 28,6
Ceilão 1953 37,3
Tailândia 1960 32.3
Birmânia 1954 42.3
China Nacionalista 1956 45,9
Singapura 1957 50,2
Malásia 1957 53,0
Cambodja 1958 69,2
Índia 1961 62,2
Paquistão 1961 81,2
Irã 1956 87,2
Nepal 1952/1954 94,1

EUROPA
Bélgica 1947 3,3
França 1946 3,6
Espanha 1960 13,3
Itália 1951 14,1
Grécia 1961 19,6
Chipre 1960 24,1
Portugal 1960 38,1

AMÉRICA
Estados Unidos 1959 2,2
Argentina 1947 13,6
Chile 1960 16,2
Jamaica 1960 18,1
Porto Rico 1960 19,4
Costa Rica 1950 20,6
Cuba 1953 22,1
Martinica 1954 26,1
Paraguai 1950 34,2
Venezuela 1961 34,2
México 1960 34,6
Guadalupe 1954 34,8
Colômbia 1951 37,7
São Domingos 1956 40,1
Equador 1950 44,3
BRASIL 1960 39,0
Honduras 1961 55,4
Nicarágua 1950 62,6
Bolívia 1950 67,9
Guatemala 1950 70,6
Haiti 1950 89,5

PAÍSES SOCIALISTAS
U.R.S.S 1959 1,5
Hungria 14960 3,2
Polônia 1960 4,7
Romênia 1956 11,4
Bulgária 1956 14,7
Iugoslávia 1961 23,5
Albânia 1965 28,3

Fonte: Angus Maddison — "Foreign Skills and Technical Assistance in Economic Development" —
Paris, 1965.
Todos esses índices, embora pouco brilhantes, são menos ruins
do que os correspondentes a um passado não muito remoto. As per-
centagens de analfabetismo na faixa etária a partir de 15 anos ca-
íram de 56% em 1940 para 51% em 1950 e 39% em 1960. A relação en-
tre matrículas no ensino primário e a população de 7 a 11 anos de
idade aumentou de 64,8% em 1950 para 79,2% em 1960. O índice de
escolarização no ensino médio, de 6,6% em 1950 para 11,2% em 1960;
e o correspondente ao ensino superior, de 0,52% em 1950 para 1,11%
em 1960.
As estatísticas mais recentes mostram que, em termos quantita-
tivos, o nosso sistema educacional continua expandindo-se com bas-
tante rapidez. Num período de 6 anos, de 1960 a 1966, o total de
matrículas aumentou de 43% no ensino primário, de 100% no secundá-
rio e de 93% no superior. Como, no período, o crescimento demográ-
fico foi da ordem de 20%, registrou-se apreciável melhoria nos ín-
dices de escolarização, principalmente nos níveis mais deficitá-
rios, o médio e o superior.
Também os gastos em educação vêm aumentando consideravelmente
nos últimos anos. Entre 1960 e 1967 os dispêndios públicos no se-
tor cresceram de 85% em termos reais, conforme se demonstra no
Quadro 36 (o grosso do aumento se verificou após a Revolução de
1964). Em percentagens do Produto Interno Bruto, os gastos passa-
ram de 2,2% em 1960 para 3,5% em 1967. Tal nível de 3,5%, embora
certamente inferior ao de países como a União Soviética (7,1%), os
Estados Unidos (4,6%) e o Japão (5,3%), é comparável ao de várias
nações européias (França, Alemanha e Suécia) e superior ao da mai-
oria dos países subdesenvolvidos.
Essas cifras mostram quão pouco fundamentada é a opinião popu-
lar de que pouco se tem feito no Brasil, em matéria de educação, e
que o problema essencial é o da carência de recursos e de vagas.
Na realidade o país tem desenvolvido consideráveis esforços no que
tange à ampliação quantitativa do seu sistema de ensino. É desejá-
vel que esses esforços prossigam, e que se eleve a participação
dos dispêndios em educação no Produto Interno Bruto por quatro ra-
zões: a) porque os gastos em ensino representam uma das formas de
investimento mais produtivas para a aceleração do desenvolvimento;
b) porque os 3,5% ao ano sobre o Produto Interno Bruto ainda cons-
tituem uma soma relativamente pequena em valor absoluto, dada a
nossa baixa renda per capita; c) porque os nossos índices de anal-
fabetismo e de deficiência de escolarização ainda assumem propor-
ções alarmantes; d) porque a nossa pirâmide etária, deformada pela
explosão demográfica, situa enorme percentagem da população na i-
dade de ir à escola. Mais importante, porém, do que o esforço
quantitativo, que sempre esbarrará nos freios da escassez e do
custo alternativo, é a eliminação dos incríveis focos de improdu-
tividade do sistema. Pois infelizmente o ensino, no Brasil, cons-
titui o mais vivo exemplo de como é possível arrasar, pela estupi-
dez, a relação capital/produto de um setor.
QUADRO 31
MATRÍCULA ESCOLAR COMO PERCENTAGEM DA POPULAÇÃO 5 — 9 ANOS

PAÍSES Ano de referência Percentagem de Matrículas

ÁFRICA
Egito 1961 37,6
Marrocos 1960 27,0
Argélia 1960 25,9
Congo 1961 40,0
Madagáscar 1960 31,4
Nigéria 1961 24,6
Sudão 1961 8,5

ÁSIA
Singapura 1961 75,5
Israel 1961 71,6
Ceilão 1961 67,1
Hong Kong 1961 65,3
Coréia (sul) 1961 52,9
Filipinas 1960 45,7
Tailândia 1961 45,6
Iraque 1961 42,3
Cambodja 1961 36,4
Indonésia 1961 33,9
Irã 1961 28,2
Índia 1959 26,9
Paquistão 1960 20,6

PAÍSES EUROPEUS EM DESENVOLVIMENTO


Iugoslávia 1961 63,8
Grécia 1960 60,3
Espanha 1960 57,8
Turquia 1961 46,0
Portugal 1960/61 44,9

OCEÂNIA
Nova Zelândia 1961 97,0
Austrália 1961 82,6

AMÉRICA LATINA
Cuba 1961 81,9
Porto Rico 1959 70,1
Costa Rica 1962 60,1
Equador 1962 60,0
Argentina 1961 58,7
Chile 1961 58,0
Paraguai 1961 56,8
Jamaica 1961 50,5
Venezuela 1961 54,1
México 1960/61 45,3
Colômbia 1962 37,7
BRASIL 1960 35,3
Honduras 1962 35,9
Nicarágua 1959 30,9

PAÍSES DESENVOLVIDOS
E. U. A 1961 82,1
Canadá 1961 81,2
Bélgica 1960 80,5
França 1961 75,4
Alemanha Ocidental 1961 74,8
Japão 1961 74,3
Noruega 1961/62 73,8
Inglaterra 1962 72,4
Suécia 1961 71,2
Itália 1960/61 58,1

PAÍSES SOCIALISTAS
Alemanha Oriental 1961 68,7
Polônia 1960 73,1
Hungria 1962 72,5
Romênia 1961/62 72,2
U. R. S. S. 1961 69,9
China Continental 1958/62 44,1

Fonte:Angus Maddison — Dep. cit.


QUADRO 32
ANALFABETISMO NO BRASIL NOS ANOS DE RECENSEAMENTO
Item 1940 1950 1960

População Total Recenseada 41,263,315 51.944.397 70.119.071


População de mais de 15 anos
sabendo ler e escrever 10.379.990 14.916.779 24.321.798
População de mais de 15 anos
não sabendo ler e escrever 13.269.381 19.272.632 15.865.792
Alfabetizados (+ de 15 anos) 44% 49% 61%
Analfabetos (+ de 15 anos) 56% 51% 39%

Fonte: IBGE

QUADRO 33
ÍNDICES DE ESCOLARIZAÇÃO PRIMÁRIA

ITEM 1950 1960

População escolarizável (7-11


anos) 6.720.219 9.441.437
População escolarizada (primá-
rio) 4.352.043 7.476.096
Índice de escolarização 64,8% 79,2%

Fonte:IPEA — Ministério do Planejamento.

QUADRO 34
ÍNDICES DE ESCOLARIZAÇÃO NO ENSINO MÉDIO

Item 1950 1960

População escolarizável (12-18


anos) 8.165.155 10.959.667
População escolarizada (ensino
médio) 538.346 1.224.485
Índice de escolarização 6,6% 11,2%

Fonte:IPEA — Ministério do Planejamento.

QUADRO 35
ÍNDICES DE ESCOLARIZAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR

Item 1950 1960

População escolarizável (19-25


anos) 7.069.782 8.667.792
População escolarizada 44.097 96.732
Índice de escolarização 0,52% 1,11%

Fonte: IPEA — Ministério do Planejamento. 220


QUADRO 36
DISPÊNDIOS PÚBLICOS EM EDUCAÇÃO — 1960/1907
Em NCr$ milhões de 1968
ÍNDICE
ANO VALOR
(1960 = 100)

1960 1.229,7 100,0


1961 1.370,6 115,5
1962 1.574,7 128,1
1963 1.255,1 102,7
1964 1.323,2 107,6
1965 2.109,1 171,5
1966 2.193,7 178,4
1967 2.275,0 185,0

Fonte:IPEA — Ministério do Planejamento.

QUADRO 37

DESPESA PÚBLICA EM EDUCAÇÃO COMO


PERCENTAGEM DO PRODUTO INTERNO BRUTO
(NCr$ milhões a preços correntes)
Dispêndio público em Educação
Ano Produto Interno Bruto
educação Percentual

1960 55,4 2.418,8 2,2


1961 84,9 3.498,6 2,4
1962 148,0 5.498,0 2,7
1963 205,0 9.591,2 2,1
1964 412,4 18.867,3 2,2
1965 1.032,5 30.796,5 3,3
1966 1.487,3 44.369,1 3,3
1967 1.978,3 56.860,0 3,5

Fonte:IPEA — Ministério do Planejamento.

8.3 — Deformação Cultural e Estrutura do Ensino

Um dos maiores defeitos da chamada tradição cultural brasilei-


ra é a de quase sempre ter encarado a educação como um bem de con-
sumo, muitas vezes até supérfluo, e não como matéria-prima básica
de produção. A cultura, nesse sentido tradicional, constituía um
complemento refinado ao lazer, e não um instrumento de trabalho.
Remontando aos nossos antecedentes históricos é fácil compreender
por que isso acontecia. Éramos uma sociedade estanque, com boa
mentalidade de colônia, e onde as condições de trabalho costumavam
ser determinadas a priori pelo "status" social, e não pela compe-
tição no mercado. O trabalho das elites geralmente se resumia numa
rotina administrativa ou burocrática, nem muito absorvente nem
muito interessante, conduzida por meia dúzia de regras empíricas
que a ninguém interessava melhorar. Mas sobrava bom tempo para o
lazer, e aí a erudição entrava como "hobby", para exibir-se nos
salões e reuniões sociais.
Em pelo menos três pontos essa tradição da "cultura para os
salões" parece ter deformado a estrutura do ensino no Brasil. Pri-
meiro, pela ênfase desproporcionada nas chamadas "humanidades" e
pelo descaso à formação técnica e científica. Segundo, pela super-
ficialidade verbalista do conhecimento transmitido. Terceiro, pela
dissociação entre a educação oferecida e as necessidades do merca-
do de trabalho. É interessante analisar cada um desses pontos.
Na linha da cultura para o lazer, era natural que a literatu-
ra, as artes, as línguas (sobretudo o francês, e o latim, na épo-
ca), e os rudimentos de direito e filosofia fossem os campos prio-
ritários de ensino, em detrimento da matemática, da física, da
química e da biologia. Dada a motivação, era natural a deformação:
salvo honrosas exceções, os físicos costumam ser bem menos diver-
tidos nas reuniões sociais do que os literatos. O ápice da forma-
ção intelectual se conseguia com o Bacharelado em Direito; e, há
menos de um século atrás, muito boas famílias estremeciam quando
seus filhos resolviam estudar medicina ou engenharia. Lembre-se,
nesse sentido, que muitos dos chamados "homens cultos" no Brasil,
são incapazes de somar frações ordinárias com denominadores dife-
rentes.
Na mesma linha, o ensino adquiriu grande amplitude horizontal
e pouca profundidade vertical. A lógica seria a mesma: para bri-
lhar numa reunião social é importante ter uma tintura sobre muitos
assuntos, mas é dispensável conhecer qualquer deles a fundo; mais
até, o especialista traz o tédio aos salões, por enveredar por a-
queles tecnicismos que ninguém entende. Com essa filosofia, desen-
volvemos a cultura da "decoreba". Os estudantes do primário e do
ginásio, e às vezes até das universidades, são obrigados a memori-
zar incrível massa de informações, nomes e datas; e recebem muito
pouco em matéria de treinamento do raciocínio e de digestão de
conceitos. Mais ainda, adquirimos incrível afinidade com aquela
concepção verborrágica do talento, segundo a qual pensar bem é me-
nos importante do que falar com fluência.
Por último, nessa acepção de cultura, era natural que a educa-
ção fosse moldada numa estrutura a priori de currículos, e não na
avaliação objetiva dos requisitos do mercado de trabalho. Não es-
panta, por isso, que tenhamos construído um ensino primário e mé-
dio que salvo nuns poucos cursos técnicos (e amiúde desprestigia-
dos socialmente), em nada prepara o aluno para a vida profissio-
nal. A especialização, quando muito se adquire nas universidades.
Mas ainda aí, mais importante do que a aquisição do conhecimento
prático, parece ser a obtenção do diploma, do título de doutor pa-
ra uso social.
Toda essa tradição, por mais agradável que nos possa parecer,
frustra profundamente os objetivos de qualquer sistema educacio-
nal. Primeiro, por se associar a um mecanismo absolutamente aris-
tocrático, capaz de proporcionar grande enlevo a certa classe mi-
noritária, mas incapaz de beneficiar as massas. Segundo, porque
ela serve para ocupar um lazer que o desenvolvimento pode ampliar,
mas pouco ajuda a gerar esse desenvolvimento. Seria caricato pin-
tar o atual quadro do ensino brasileiro como inteiramente dominado
por essa tradição — não se podem esquecer os importantes progres-
sos alcançados na educação científica. Mas muitos resquícios ainda
persistem. O primário insensível aos índices alarmantes de repe-
tência e evasão; o secundário rígido e vinculado ao academicismo;
e a universidade dispendiosa, mais preocupada em oferecer diplomas
do que qualificações profissionais, são focos de desperdício ori-
undos do esquecimento de que a educação tem que ser estruturada de
acordo com as exigências do desenvolvimento econômico.

8.4 — A Pirâmide do Desperdício

Para quem examina as estatísticas sobre educação no Brasil, o


aspecto mais dramático reside nos índices de evasão escolar. De
cada 1000 alunos matriculados no primeiro ano primário, apenas 181
chegam à quarta série do curso; somente 53 completam o ginasial; e
apenas 35 chegam ao fim do curso colegial. Esses dados foram le-
vantados pelo IPEA acompanhando a evolução das matrículas nas di-
versas séries consecutivas para o período 1954/1964 (1ª série pri-
mária em 1954, 2ª série primária em 1955 etc.). Em números-
índices, os resultados se acham transcritos no quadro seguinte:

QUADRO 38
PIRÂMIDE EDUCACIONAL BRASILEIRA: 1954/1964

ÍNDICES DE
NÍVEL SÉRIE
MATRÍCULA
PRIMÁRIO 1.ª 1.000
2.ª 395
3.ª 282
4.ª 181
GINASIAL 1.ª 101
2.ª 80
3.ª 65
4.ª 53
COLEGIAL 1.ª 51
2.ª 41
3.ª 35
Fonte:IPEA — Ministério do Planejamento.

Em termos relativos, os índices mais alarmantes de evasão se


localizam no curso primário, principalmente entre a primeira série
e a segunda, onde cerca de 60% dos alunos são eliminados, de acor-
do com a tabela acima. A principal causa dessa evasão reside nas
tremendas percentagens de reprovação, que no primeiro ano atingem
cerca de 50% dos alunos.
O binômio repetência-evasão tem sido diagnosticado como o mais
grave dos problemas de nosso ensino primário. De um lado ele tra-
duz a falência da continuidade do processo de escolarização. (O
fato de nossa posição internacional ser relativamente mais dramá-
tica quanto aos índices de escolarização do que quanto aos de al-
fabetização é o resultado do estreitamento anormal de nossa pirâ-
mide de matrículas.) De outro lado ele é responsável pelo conges-
tionamento das matrículas na primeira série, gerando uma escassez
de vagas dificilmente solucionável. Para se ter uma idéia deste
último problema, basta dizer que seria possível atender a toda a
população em idade escolar para o primário, de 7 a 11 anos, sem
aumento de número de vagas, se não mais houvesse repetências.
Em parte o binômio repetência-evasão resulta de condições só-
cio-econômicas desfavoráveis: a falta de compreensão dos pais
quanto à importância do ensino, e os elevados índices de absente-
ísmo do corpo discente pela falta de saúde, pela má alimentação, e
pela distância à escola (nas zonas rurais). Esse tipo de dificul-
dade pode ser parcialmente contornado pela responsabilização dos
pais que não enviam seus filhos ao colégio, e por programas seme-
lhantes ao da merenda escolar. Em grande parte, porém, a perda dos
efetivos discentes resulta dos defeitos estruturais do ensino. Um
curso primário que reprova metade dos seus alunos na primeira sé-
rie obviamente parte de um currículo irrealista1. O mínimo que se
deveria encontrar era uma distinção entre os programas do curso no
meio urbano e no rural, e, se possível até, um certo grau de regi-
onalização. Irrealista também é um currículo que obriga o aluno,
que na maior parte dos casos não irá cursar o secundário, a deco-
rar milhares de nomes, datas e acidentes geográficos, ao invés de
lhe fornecer algumas noções úteis para a vida doméstica e para o
trabalho futuro. A falta de interesse dos pais em enviar os filhos
à escola é, em parte, fruto da ignorância, mas em parte representa
uma crítica tácita aos absurdos do sistema. Diga-se de passagem, a
má qualidade dos corpos docentes muito tem a ver com esse desin-
teresse: em 1964, cerca de 10% das nossas professoras não possuíam
sequer o curso primário completo.
No ensino médio os índices de evasão são bem menos dramáticos.
Em compensação sobram três problemas extremamente graves: o da a-
cessibilidade financeira, o do academicismo do secundário con-
vencional, e da estanqueidade dos diferentes tipos de curso. É im-
portante examinar esses três pontos.
O ensino médio ainda está, em sua maioria, a cargo da inicia-
tiva privada, embora o sistema público se tenha expandido acelera-
damente nos últimos anos. Em 1965, as escolas privadas absorviam
52% do total das matrículas no secundário (a percentagem em 1956
era de 69%). Como afirma o Diagnóstico Educacional do IPEA "o tipo
de financiamento a que está submetido o ensino médio brasileiro
constitui-se em barreira ao processo de democratização de oportu-
nidades no país: o ensino privado com fins lucrativos ainda é uma
realidade incontestável, inacessível à população mais pobre. Além
disso, no ensino médio, certamente mais importante que o custo da
anuidade escolar é o custo de substituição, isto é, a renda que o
jovem deixa de auferir, renunciando ao trabalho em favor do es-
tudo. Mesmo sendo o salário adicional potencial capaz de compensar
as despesas decorrentes, a pobreza impede o prosseguimento do cur-
so. Em face das condições médias da população brasileira, o número
de jovens que ingressa na força de trabalho logo após completar 14
anos — idade mínima legal para o trabalho regular — é imenso, dis-
to derivando uma intensa seletividade escolar com base no "status"
sócio-econômico."
O segundo problema está no academicismo do secundário conven-
cional — que absorve cerca de 75% dos estudantes do ensino médio
(os outros 25% se destinando ao ensino técnico). Temos aí os pro-
gramas ambiciosos, insistentes na amplitude horizontal do conheci-
mento, oferecendo muita informação inútil e pouca formação útil, e
1
Uma sugestão interessante para atenuar o problema é a de aprovar automaticamente todos os alunos do primeiro ano
primário, acumulando os exames no fim da segunda série. Isso, pelo menos, permitiria que boa parte da população
completasse dois anos de escola.
quase não fornecendo instrumentos para a vida profissional. O nos-
so secundário convencional, composto do ginasial e do científico
ou clássico, é uma espécie de preparação polivalente para as esco-
las superiores esquecido de que, para a maioria dos seus alunos
ele constitui, realmente, o final dos estudos.
Por último, a estanqueidade dos cursos. A divisão do ensino
médio entre o secundário convencional e o técnico, desde a primei-
ra série ginasial, provavelmente constitui uma especialização pre-
matura. Do ponto de vista social ela é perniciosa por limitar o
ensino técnico aos jovens de "status" econômico mais baixo. E, do
ponto de vista funcional, desloca um considerável contingente -
estudantil, que não irá cursar as universidades, para um secundá-
rio acadêmico que jamais deveria ser encarado como linha terminal
de ensino. Mais adequada seria a multiplicação do secundário poli-
valente, com maior flexibilidade e interpenetração curricular, pe-
lo qual os alunos fossem optando aos poucos entre o caminho da u-
niversidade e o do mercado de trabalho.
As observações acima dão uma idéia dos desperdícios no ensino
primário e médio no Brasil. As falhas do sistema residem nos índi-
ces de evasão, na seletividade artificial, e na sua inadequação
quantitativa e qualitativa às necessidades do mercado de trabalho.
Em todo o caso, os custos unitários anuais por aluno são baixos,
inferiores até aos padrões estabelecidos nas Conferências Regio-
nais da UNESCO. Segundo as estimativas de Arlindo Lopes Corrêa,
esses custos se limitam a 70 dólares no ensino primário (estimati-
va limitada ao Estado da Guanabara, incluindo a merenda escolar; o
cálculo da UNESCO para todo o Brasil não vai além da média de 16
dólares); a 90 dólares no ensino ginasial; e 110 dólares no cole-
gial. Mais grave parece ser o desperdício nas universidades, onde
o custo por aluno atinge a casa dos 1.000 dólares anuais.

8.5 — O Desperdício nas Universidades

Provavelmente o mais popular dos nossos problemas de ensino é


o dos excedentes do exame vestibular. Temos, anualmente, cerca de
160 mil estudantes afluindo aos concursos de habilitação para ape-
nas 80 mil vagas nas faculdades. A imprensa noticia o fato com es-
tardalhaço, e a opinião pública reclama, em nome da democratização
das oportunidades, a ampliação das vagas para que todos tenham a-
cesso às universidades.
Essa angulação do problema é inteiramente emocional, e só se
explica pelo poder vocal dos estudantes de nível superior. Primei-
ro, porque ela envolve dupla contagem. O número de alunos que anu-
almente afluem aos vestibulares excede em cerca de 30% o número de
conclusões de curso ao terceiro ano colegial. Esse paradoxo esta-
tístico se explica porque muitos candidatos repetem o vestibular
por dois ou três anos consecutivos, e porque alguns entram, si-
multaneamente, em mais de um concurso1. Assim, se o Governo criasse
as vagas necessárias para abrigar todos os candidatos ao vestibu-
lar, no ano seguinte teríamos formidável capacidade ociosa na pri-
meira série.

1
O vestibular único reduziu consideravelmente este segundo efeito.
Em segundo lugar, não se pode esquecer que o ingresso nas uni-
versidades deve ser um processo seletivo. Mesmo na União Soviéti-
ca, que tanto se gaba da democratização das oportunidades, a rela-
ção entre candidatos e vagas no ensino superior é da ordem de 3:1.
De fato, boa parte dos nossos excedentes só aflui ao exame vesti-
bular pelo prestígio do diploma superior, e porque o secundário
não lhes proporcionou conhecimentos úteis ao exercício de uma pro-
fissão. Uma reestruturação realista dos currículos do curso médio
poderia atenuar sensivelmente a questão dos excedentes.
Em terceiro lugar, a pura e simples criação de vagas talvez
não tivesse outro efeito senão substituir o problema dos exceden-
tes de vestibulares pelo de excedentes de profissionais, como a-
centua João Paulo Velloso. De fato o conceito de excedente deveria
ser fixado não pela comparação entre o número de candidatos e va-
gas (que inclusive leva ao já mencionado erro de dupla contagem),
mas pelo confronto entre o número de vagas e as necessidades do
mercado. Por aí chegaríamos à conclusão de que o problema dos ex-
cedentes realmente existe na Medicina, na Química e em alguns ra-
mos da Engenharia. Mas que nas escolas de Direito, Economia, Jor-
nalismo, Filosofia etc, o problema é justamente o inverso: o do
excesso de vagas.
Chegamos assim ao primeiro grande desperdício das nossas uni-
versidades: o do completo desajuste entre a oferta de vagas e as
necessidades do mercado de trabalho. O curioso é que, nesse parti-
cular, os nossos estudantes parecem ter maior noção do mercado do
que os responsáveis pela orientação do sistema educacional. De fa-
to, onde o mercado de trabalho oferece maiores oportunidades de
emprego é exatamente onde se registra o maior congestionamento de
candidatos por vaga nos vestibulares. Assim, segundo dados do IPEA
relativos a 1964, para cada vaga haveria 7,6 candidatos em Medici-
na, 3,6 em Engenharia, e 2,4 na Química Industrial. Em com-
pensação, as faculdades de Filosofia, Economia, Jornalismo, Belas-
Artes e Biblioteconomia ofereciam mais de uma vaga por aluno; e as
de Enfermagem, Educação Física, Música e Canto, mais de duas vagas
por aluno.
Como explicar esse desajuste setorial entre a oferta e a pro-
cura? Em primeiro lugar pela proliferação das Universidades-
prestígio. Em várias regiões montar faculdades e, se possível,
congregar cinco delas numa universidade é um instrumento de poder
para os políticos locais. Dada a escassez de recursos materiais e
humanos, e a motivação central de distribuir diplomas, a seleção
das faculdades não se faz pela avaliação das necessidades do mer-
cado, mas pela lei do menor esforço: criam-se as faculdades que
podem ser instaladas com meia dúzia de salas de aula, giz e qua-
dro-negro, e um corpo improvisado de professores, como as de Eco-
nomia, Filosofia, Direito etc. O resultado é que além da péssima
qualidade do ensino, o Brasil vai formando economistas onde há ne-
cessidade de médicos, literatos onde se precisa de administradores
de empresas etc. (Nessa altura, é que nos devemos alarmar com o
custo unitário da ordem de mil dólares anuais, por aluno). Que e-
xistam pressões políticas para a criação das Universidades-
prestígio, é fenômeno compreensível. O lamentável é que o Ministé-
rio da Educação tenha cedido tantas vezes a essas pressões, auto-
rizando essas faculdades a funcionar, e concedendo-lhes polpudas
subvenções. Isso aliás, fundamenta a opinião de que a questão dos
excedentes na sua conceituação correta, é menos um problema de
disponibilidade global de verbas do que de redistribuição dessas
verbas das faculdades desnecessárias para as necessárias.
Por outro lado, a multiplicação artificial das regulamentações
de profissões, numa mentalidade de retorno às corporações de ofí-
cio, favorece a proliferação das faculdades que distribuem diplo-
mas sem dar qualificação profissional. Diga-se de passagem, essas
regulamentações criam enormes entraves aos trabalhos interdisci-
plinares e à flexibilidade profissional. Para dar um exemplo, um
engenheiro que resolva dedicar-se à economia, é obrigado a es-
tender para nove anos o ciclo de sua formação universitária (como
aconteceu com o autor deste livro).
Também a nossa tradicional rigidez curricular, propensa ao a-
cademicismo, é responsável pelo desajuste entre a oferta de pro-
fissionais e as necessidades do mercado. Até muito recentemente o
nosso sistema de ensino se assemelhava a uma espécie de exército
que só formasse generais e sargentos. Só nos últimos tempos é que
se começaram a planejar as chamadas "carreiras curtas", a do enge-
nheiro de operações e a do médico de 3 anos, e ainda há o problema
de tornar essas carreiras facilmente comunicáveis com as tradicio-
nais, mediante estudos complementares, a fim de que o engenheiro
de operações não venha a ser classificado como engenheiro de se-
gunda classe. A ausência dessas carreiras curtas, além de onerar
desnecessariamente o ensino superior, é responsável por uma série
de desajustes regionais entre a oferta e a procura de profissio-
nais liberais, como o excesso de médicos em algumas cidades e a
enorme carência no interior etc.
Os comentários acima exibem a primeira grande falha das nossas
universidades, a do desajuste às exigências do mercado. O segundo
grande problema é o dos altos custos unitários, estimados em média
em 1.000 dólares anuais por aluno. Para explicá-los temos vários
fatores a considerar: a baixa relação aluno/professor, o desperdí-
cio de espaço e de tempo e a duplicação de instalações e cadeiras.
Segundo as estimativas do IPEA, em 1964 tínhamos em média ape-
nas 4,7 alunos para cada professor (internacionalmente, a relação
normal se situa entre 12:1 e 15:1). Esse péssimo índice de pro-
dutividade em parte resulta do critério de remuneração do magisté-
rio superior. O nosso professor universitário é mal pago e, em
compensação trabalha pouco. Á relação entre pagamento e trabalho
varia consideravelmente de caso para caso, naquela filosofia da
divisão de zero por zero. Como disse certo matemático, o professor
universitário ganha um infinitésimo de segunda ordem; se o seu
trabalho for um infinitésimo de primeira ordem, a remuneração por
hora se torna nula; se for um infinitésimo de terceira ordem, a
remuneração por hora se torna infinita. A julgar pelos custos mé-
dios estamos mais próximos desta última hipótese do que da primei-
ra, embora exista considerável massa de professores dedicados e
que se sacrificam pelo cargo. Também, como assinala Roberto Cam-
pos, "a improdutividade da relação aluno/professor deriva em parte
do instituto cartorial da vitaliciedade da cátedra. Proprietário
de cargo, o catedrático absorve a honraria dispensando-se do es-
forço, o que leva ao recrutamento abusivo de assistentes e instru-
tores." Diga-se de passagem, o nosso sistema universitário se tem
mostrado extremamente tolerante com o absenteísmo dos professores,
particularmente dos catedráticos. Por último, a baixa relação alu-
no/professor resulta em boa parte da proliferação das faculdades
sem mercado. Em 1966 tínhamos alguns exemplos escandalosos, para
os quais chamou a atenção o professor Leônidas Porto: seis profes-
sores para dez alunos na Escola de Odontologia do Amazonas: 130
professores para 132 alunos na Escola de Enfermagem de Minas Ge-
rais; um professor por aluno no ensino superior de Arte em Brasí-
lia; e 1,54 de relação professor/aluno na Escola de Educação Físi-
ca do Rio Grande do Sul.
Além da baixa da produtividade, as nossas universidades pecam
pela concepção imobiliária do ensino. A ambição do reitor mediano
(há honrosas exceções) é a de construir um grande prédio, com ins-
talações tão luxuosas quanto possível, ficando em segundo plano os
laboratórios e bibliotecas, e relegado ao completo descaso a for-
mação de professores. Daí resultam alguns absurdos, como o da Uni-
versidade do Paraná que oferece uma área disponível de 49m2 por a-
luno. Além do desperdício do espaço, agravado pela pouca utiliza-
ção do regime de turnos, há o desperdício de tempo. Grande parte
do ano letivo das faculdades tem sido absorvida pelas férias e pe-
las greves. A Lei de Diretrizes e Bases exige um mínimo de 180 di-
as de período escolar mas, na prática, esse período freqüentemente
se tem reduzido a 120 dias úteis. O desperdício de espaço e de
tempo não só onera consideravelmente os custos unitários do ensi-
no, como gera uma capacidade ociosa que poderia dar fácil vazão ao
problema dos excedentes (no estilo da solução Flexa Ribeiro para
as escolas primárias da Guanabara).
Por último, a duplicação das instalações e cadeiras. Em muitas
universidades proliferam os cursos paralelos de Matemática para
engenheiros, para químicos, para economistas, e duplicações congê-
neres. Isso leva à contratação de professores precariamente quali-
ficados e à dispersão e multiplicação de laboratórios e instala-
ções. A solução racional, a dos institutos que centralizam o ensi-
no em cada especialidade comum a várias faculdades, só recente-
mente começou a ser implantada em determinadas Universidades.
A par dos altos custos unitários há o problema da má qualidade
do ensino. Boa parte de nossas escolas superiores é capaz de for-
necer diplomas, mas não de oferecer qualificação profissional a
seus alunos. Em certas faculdades "fáceis" e de capacidade ociosa
em relação às necessidades do mercado, o problema chega a assumir
proporções escandalosas. É o caso, por exemplo, das faculdades de
Economia, que hoje diplomam mais de 2 mil profissionais por ano. O
mercado de economistas é, atualmente, um verdadeiro mercado dual:
há superabundância de profissionais despreparados e, ao mesmo tem-
po, uma intensa procura de economistas de bom nível. Os baixos pa-
drões qualitativos de boa parte de nosso ensino superior resultam
de uma série de fatores, quais sejam: a) a escassez de professores
suficientemente qualificados, como conseqüência do nosso baixo
grau de desenvolvimento, e da insuficiente remuneração do magisté-
rio superior; b) a proliferação da Universidade-prestígio, forte-
mente amparada pelos artificialismo das regulamentações profissio-
nais; c) a vitaliciedade da cátedra, que leva muitos professores a
abandonar os estudos após a sua consagração no concurso, e a sele-
cionar assistentes por critérios de amizade pessoal dissociados da
avaliação dos méritos técnicos. A recente reforma universitária
procurou, melhorar este último aspecto, estabelecendo que os as-
sistentes deveriam possuir cursos de pós-graduação. Mas a solução
não parece ter sido suficientemente bem orientada. Pois, ao invés
de se determinar que os assistentes fossem recrutados entre os
portadores de diplomas de pós-graduação, fixou-se o princípio de
que seriam criados centros de pós-graduação destinados a dar cur-
sos aos assistentes.
Por último, o tabu da gratuidade do ensino superior, em visí-
vel contraste com o secundário pago na maior parte dos casos. Como
assinala Roberto Campos, "aparentemente atraente como instrumento
de democratização do ensino, a gratuidade é, na realidade, profun-
damente antidemocrática, porque diminui os recursos disponíveis
para a solução do nosso mais grave gargalo educacional — a educa-
ção secundária e técnica — e porque constitui subvenção desneces-
sária aos filhos das classes abastadas. Todas as pesquisas até a-
gora efetuadas indicam que a vasta maioria dos universitários pro-
vém de famílias da classe média ou superior, que poderiam financi-
ar senão o custo total, pelo menos substancial fração do custo por
aluno. Amostragem feita, em 1965, abrangendo 268 faculdades e
26.000 alunos, revelou que apenas 8,5% destes provinham de classes
trabalhadoras, sem habilitação profissional ou com apenas habili-
tação manual, casos que poderiam ser tratados mediante um sistema
adequado de bolsas de estudo para cobrir não apenas o ensino, mas
também a manutenção. A gratuidade provoca distorções, incentivando
a proliferação de faculdades como instrumento de prestígio políti-
co, sem corresponder a exigências efetivas do mercado de trabalho,
e facilitando a permanência nas escolas dos repetentes profissio-
nais".
Aí está o quadro dos desperdícios em nosso ensino superior.
Não é à toa que se diz que o problema de nossas universidades não
é o da insuficiência, mas o da má aplicação das verbas.

8.6 — A Mensagem de Esperança

Como consolo, resta o observação de que nem tudo está perdido


no sistema educacional brasileiro. Se o Ministério da Educação an-
dou emperrado pela arterioesclerose, pelo menos o Ministério do
Planejamento, através do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplica-
das (IPEA), conseguiu equacionar o problema nos devidos termos,
graças aos esforços de um grupo de engenheiros e economistas, como
Arlindo Lopes Corrêa, João Paulo dos Reis Velloso e David Carnei-
ro. Diga-se de passagem, a crise estudantil de meados de 1968, por
mais desordeira e marcusiana que fosse nas suas motivações, gerou
um subproduto benéfico: o de despertar a atenção do governo para a
prioridade do problema educacional, convencendo-o de que o Minis-
tério da Educação não deveria ser tratado como repartição de se-
gunda classe.
Os trabalhos do IPEA, inicialmente preparados para o Plano De-
cenal do Governo Castello Branco, foram incorporados ao Programa
Estratégico do Governo Costa e Silva. Tais estudos contêm um diag-
nóstico da atual situação, uma série de recomendações qualitati-
vas, e um programa quantitativo para a expansão do sistema educa-
cional brasileiro.
O diagnóstico aponta, com grande riqueza de pormenores esta-
tísticos, os problemas já mencionados nas seções precedentes: o
binômio repetência-evasão e a inadequação dos currículos no curso
primário; a escassez de vagas na rede de ensino público; a falta
de professores com formação conveniente, a rigidez e a estanquei-
dade dos cursos, no ensino médio; o desajustamento às necessidades
do mercado, a deficiente qualidade do ensino e dos currículos, e a
ausência de planejamento no ensino superior.
O Programa, na sua parte qualitativa, fixa os seguintes pontos
principais.

A) Na Educação Primária:

a) cumprimento da obrigatoriedade escolar na faixa etária de


7 a 14 anos, nas Capitais e nos grandes centros urbanos ("Opera-
ção-Escola");
b) reformulação do ensino primário, visando a sua qualidade,
estrutura comunitária e integração, em continuidade, com o ensino
médio;
c) assistência ao educando (alimentação, serviços de saúde,
material escolar etc.);
d) aperfeiçoamento do magistério;
e) criação de melhores condições para o trabalho do profes-
sor;
f) mudança do sistema de promoção;
g) utilização de recursos audiovisuais no ensino;
h) expansão criteriosa da rede de escolas públicas;
i) erradicação do analfabetismo nas Capitais, na faixa etária
de 15 a 30 anos.

B) Na Educação Média:

a) a reformulação do ensino ginasial, de modo que ele venha a


constituir, com o nível primário, um sistema fundamental contínuo,
capaz de atender à elevação dos padrões qualitativos, assegurando
a formação básica do educando para atuar nas atividades da indús-
tria, agricultura e serviços, após treinamento intensivo e rápido
para o trabalho;
b) expansão da rede de ensino;
c) ampliação e melhoria do sistema de bolsas de estudos;
d) melhores condições para o trabalho docente, inclusive as-
segurando melhor e mais adequado sistema de remuneração;
e) elevação do nível do pessoal docente, técnico e adminis-
trativo, notadamente nas áreas do ensino mais relacionados com o
desenvolvimento;
f) formação e treinamento de professores de ciências, disci-
plinas específicas de ensino técnico e práticas educativas;
g) expansão dos programas de equipamento escolar, especial-
mente de salas-ambiente, oficinas para os ginásios orientados para
o trabalho e para os colégios industriais;
h) aperfeiçoamento profissional do pessoal técnico de nível
médio colegial.

C) Na Educação Superior:

a) concretização da Reforma Universitária, acompanhada de re-


visão curricular, flexibilidade administrativa e convivência uni-
versitária, mediante:
— associação progressiva das instituições isoladas de ensino
superior às Universidades da região em que se situam;
— implantação de institutos de formação básica universitária;
— remuneração condigna do pessoal docente e técnico dedicado
ao ensino e à pesquisa, a fim de atender à relevância da função, à
seleção de valores e ao aproveitamento integral nas respectivas
atividades (conforme esquema a ser apresentado);
— estruturação, já assegurada, da carreira do magistério, de
forma a que o acesso do docente dependa, essencialmente, de condi-
ções de estágio e de capacidade profissional;
— ampliação e diversificação da formação superior, inclusive
de profissionais de nível intermediário, em cursos de menor dura-
ção, para atender às demandas do mercado de trabalho;
— maior captação de recursos diretos da comunidade, para cus-
teio e financiamento do sistema;
b) ampliação das matrículas, especialmente nas modalidades
profissionais consideradas prioritárias pelo seu caráter social e
interesse no processo de desenvolvimento econômico nacional ("Ope-
ração-Produtividade");
c) intensificação da pós-graduação, em nível de mestrado e
doutorado, a fim de formar pessoal docente qualificado e propor-
cionar recursos humanos de alto nível para o desenvolvimento;
d) implantação ou desenvolvimento das atividades de pesquisa,
bem como intetegração da Universidade ao meio, inclusive com adap-
tação dos currículos às características regionais; ênfase no to-
cante aos projetos prioritários do "Plano Básico de Desenvolvimen-
to Científico e Tecnológico";
e) assistência ao estudante, de forma coordenada e em função
de sua situação econômica e aproveitamento escolar;
f) aproveitamento integral da capacidade física das institui-
ções de ensino, com a utilização de todos os horários válidos ("O-
peração-Produtividade");
g) programa de obras e equipamentos dos institutos universi-
tários, orientado no sentido de evitar desperdício de recursos e
de assegurar a eficiência sem aparato (programa conjugado à "Ope-
ração-Produtividade");
h) modificação do sistema de financiamento, com gradual eli-
minação da gratuidade generalizada e modificação do regime de sub-
venções às unidades de ensino privado.

Quantitativamente, o Programa Estratégico usa a metodologia


adequada para a fixação das metas educacionais: a partir das taxas
previstas para o crescimento do produto real, estimam-se as neces-
sidades de mão-de-obra nos vários graus de formação e especializa-
ção. Daí se obtêm os investimentos e a ampliação necessária da re-
de escolar nos diversos níveis. Para o curso primário, o Programa
prevê uma expansão de matrículas de 0,6% ao ano no triênio
1968/1970; essa cifra só é pequena aparentemente, pois, com o des-
congestionamento das repetências, será possível atender a um con-
tingente consideravelmente maior de alunos. No ensino médio as ma-
trículas deverão ampliar-se de mais de 10% ao ano e, no superior,
de 9% anuais. Em números absolutos essas metas são as transcritas
no quadro a seguir.

QUADRO 39
METAS INTERMEDIÁRIAS PARA O TRIÊNIO 1968, 1970

TOTAL

ENSINO PRIMÁRIO (*)


Matrículas adicionais 220,000
Salas de aula adicionais 5.318
Professores leigos treinados 96.000
Normalistas adicionais 56.776

ENSINO MÉDIO
Ginasial (**)
Matrículas adicionais 727.000
Salas de aula adicionais 9.800
Novos professores necessários 53.740

Colegial

Matrículas adicionais 168.000


Salas de aula adicionais 1.660
Novos professores necessários 10.500

ENSINO SUPERIOR (***)


Matrículas adicionais 49.000
Novos professores necessários 6.390

(*) Somente as cinco primeiras séries.


(**) Inclui as 5ª e 6ª séries primárias
(***) Somente as cinco primeiras séries.
Fonte: Programa Estratégico.

Em termos financeiros, essas metas exigirão que no triênio


1968/1970, o Governo Federal expanda de 50%, em termos reais, as
suas verbas para o setor educacional. Em percentagens do Produto
Interno Bruto, os dispêndios em educação deverão ter atingido a
ordem dos 4.8% por volta de 1970.
Talvez o Programa pudesse ter dado um pouco mais de ênfase aos
métodos modernos e especiais de ensino, como a Instrução Programa-
da (com o auxílio dos recursos audiovisuais e até, numa fase mais
avançada, dos computadores eletrônicos) e a Televisão Educativa
(num país com as dimensões do Brasil o "video-tape" parece o único
instrumento capaz de levar o bom professor a todas as regiões).
Poder-se-ia também afirmar que o prazo de três anos, coberto pelo
Programa Estratégico, é um pouco curto demais para um plano de e-
ducação. Esses, todavia, são reparos de menor importância. Em ma-
téria de planejamento educacional estamos bastante bem servidos.
Resta um problema. O plano educacional incorporado ao Programa
Estratégico foi preparado sob a liderança dos engenheiros e econo-
mistas do IPEA e não dos técnicos e executivos do Ministério da
Educação. Isso leva a prever consideráveis resistências a sua im-
plantação pois, como diria a esquerda festiva, o plano fere inte-
resses constituídos e abala estruturas. Os planejadores trabalha-
ram bem. Vejamos como se comportarão os executores.
CAPÍTULO IX
ANALISE ANTIECONÔMICA

9.1 — Racionalidade e Política Econômica

Um dos maiores obstáculos ao crescimento das nações subdesen-


volvidas reside na sua extraordinária capacidade de cometer erros
de política econômica. Não os erros a que todo o mundo está sujei-
to, resultantes da imperfeição do conhecimento científico, ou da
interposição de ocorrências fortuitas. Mas erros provocados pela
ignorância dos princípios elementares de economia e pelo desconhe-
cimento dos êxitos e fracassos das experiências de desenvolvimento
aplicadas em outros países. É o subdesenvolvimento das elites,
mais dramático do que o próprio subdesenvolvimento material.
O Brasil não tem fugido à regra. Conquanto os métodos de for-
mulação de política econômica tenham melhorado consideravelmente
desde 1964, ainda proliferam, entre nossas elites, certas idéias
econômicas que não são de melhor quilate do que a rebelião contra
a tabuada. E, num passado não muito distante, fomos dominados pela
mais caótica irracionalidade em matéria de política de desenvolvi-
mento. Circula, entre nós, um conjunto de teorias que, devidamente
reunidas, formariam um excelente tratado de análise antieconômica.
Alguns traços de nossa formação cultural explicam o nosso es-
pecial apego a essa nova ciência. Em primeiro lugar, fomos histo-
ricamente um país dirigido por elites burocráticas, que associavam
a figura do empresário à do mascate. Isso nos levou à in-
compreensão do lucro e do risco, ao excessivo apego aos controles
diretos e à descrença nos mecanismos automáticos de funcionamento,
e à idéia de que o Estado pode criar recursos reais com simples
medidas redistributivas. Em segundo lugar, nossa cultura sempre
foi mais propensa à atitude romântica do que à científica (em per-
feita consonância com a cultura para o lazer descrita no capítulo
anterior). Isso nos conduziu ao nacionalismo obscurantista, ao an-
ti-tecnicismo, à crença nos milagres em economia e às mais varia-
das manifestações de revolta contra a aritmética. A isso se sobre-
põe o fato de que os princípios elementares de economia não se in-
corporam às exigências da nossa cultura secundária (como assinala
o professor Octávio Gouveia de Bulhões, seria bem mais útil ensi-
nar esses princípios aos estudantes do curso colegial do que os
obrigar a decorar tantos nomes, datas e informações desconexas).
Não espanta, assim, que a análise antieconômica transite tão li-
vremente entre nós.
Alguns capítulos dessa divertida ciência já foram examinados
anteriormente: a tolerância inflacionária, o ufanismo demográfico,
o estruturalismo distributivista. Sem chegar a um tratado exausti-
vo sobre a matéria, dedicar-nos-emos nas próximas seções à descri-
ção de alguns outros tópicos fundamentais da análise antieconômi-
ca: o nacionalismo obscurantista, o mito do subsídio, a cibernéti-
ca de São Tomé. a cadeia da felicidade, o antitecnicismo e o capi-
talismo tomista.

9.2 — O Nacionalismo Obscurantista


Em tese, todo nacionalismo equivale a uma descontinuidade afe-
tiva localizada nas fronteiras de um país. Ao sentimento geral de
solidariedade humana sobrepõe-se a noção específica de solidarie-
dade nacional. Levado ao extremo, mas sem perder a consistência
lógica, o nacionalista puro aceitará qualquer medida que beneficie
seus compatriotas, por maiores que sejam os prejuízos causados ao
resto da humanidade.
Como movimento psicológico, o nacionalismo apresenta algumas
vantagens e outras tantas desvantagens. O ideal para cada país se-
ria encampar uma política nacionalista, o resto do mundo aderindo
à filosofia internacionalista, mas essa não é uma composição arit-
meticamente viável. Assim, a difusão do nacionalismo leva à reta-
liação política e comercial entre os povos — uma retaliação em que
todos perdem, e que seria evitável por certa submissão a uma dis-
ciplina internacional. E, num grau mais exacerbado, torna-se a o-
rigem das guerras. (Não nos esqueçamos de que a mais completa ins-
tituição nacionalista do presente século foi o 3º Reich.) Contudo,
há o lado positivo que não podo ser omitido. Num país dividido pe-
las divergências internas, o nacionalismo pode apresentar-se como
a fórmula ideal de conduzir à unificação da nação. Do mesmo modo,
o nacionalismo pode ser a única força capaz de motivar um país de
baixa renda per capita a aceitar os sacrifícios necessários à
construção de um processo duradouro de desenvolvimento. Por último
um argumento pragmático e extremamente valioso: num mundo de na-
cionalistas seria tolice sermos os únicos a aderir à filosofia in-
ternacionalista.
Infelizmente, pelas suas características de movimento emocio-
nal, o nacionalismo é facilmente deformável. Há países, como o Ja-
pão e o México, que têm conseguido manter acesa a chama naciona-
lista sem resvalar para a falta do pragmatismo. Trata-se de um na-
cionalismo de grande poder de coesão interna, mas que aproveita ao
máximo a contribuição da técnica e dos capitais estrangeiros. Já a
atitude de De Gaulle, embora muito bem sucedida eleitoralmente,
parece ter sido economicamente bem menos convincente. A política
tão alardeada de restrição ao ingresso de empresas estrangeiras,
justificada pelo temor da desnacionalização, acabou tendo que ser
revista quando essas empresas começaram a localizar-se nos países
concorrentes do Mercado Comum Europeu. E a guerra ao dólar como
moeda de reserva, parece ter voltado o feitiço contra o feiticei-
ro, com a crise do franco em novembro de 1968.
Entre nós o nacionalismo, nas suas formas mais populares, tem
primado pelas deformações obscurantistas. Genericamente, tais de-
formações partem da idéia de que ferir os interesses estrangeiros
é a melhor maneira de defender os nacionais. Psicologicamente é
fácil compreendê-las. No curso primário nos ensinam que o Brasil
possui um dos maiores territórios do mundo e que o rio Amazonas,
embora ultrapassado em extensão, é o maior do globo em volume d'á-
gua. Não nos é dito, todavia, que temos apenas 300 dólares per ca-
pita, que quilômetro quadrado não é medida de bem-estar social, e
que temos que empreender enormes esforços para chegar ao posto de
nação desenvolvida. É natural, por isso, que no momento em que a
observação se choca com a informação, procuremos um bode expiató-
rio. E, nesse sentido, nada melhor do que culpar os capitais es-
trangeiros. Se as estatísticas não confirmarem as hipóteses afir-
memos, nos melhores moldes escolásticos, que elas foram fraudadas.
Da mesma forma pela qual Galileu deve ter fraudado suas experiên-
cias que mostravam que todos os corpos caem com igual aceleração
no vácuo, em flagrante desrespeito à física de Aristóteles.
Não cabe aqui uma análise extensiva das chamadas teses nacio-
nalistas, ora encampadas pela extrema esquerda, ora pela extrema
direita. Quatro pontos, todavia, merecem referência: a idéia de
que a cobiça internacional se concentra no Brasil, a noção de que
o país é espoliado pelas remessas de lucros, o mito cepalino do
declínio das relações de trocas, e a aversão ao ingresso de capi-
tais como foco de desnacionalização. Vale comentar brevemente cada
um desses pontos.
A idéia de que o Brasil é o foco da cobiça internacional tal-
vez nos encha de orgulho patriótico, mas constitui uma valorização
psicológica sem apoio estatístico. Pois afinal, não obstante a e-
norme extensão territorial, o Brasil não chega a absorver 1% dos
investimentos externos dos países mais desenvolvidos. (Seria inte-
ressante lembrar que o grosso dos capitais exportados pelos Esta-
dos Unidos se destina à Europa, só uma pequena parcela se dirigin-
do à América Latina.) Essa manifestação nacionalista tem sido res-
ponsável por boa dose de ociosidade de nossos recursos naturais.
Enquanto decantávamos os méritos da nossa hematita compacta, recu-
sando-a à exploração estrangeira, a Austrália e vários países a-
fricanos, assumiram a liderança das exportações de minério. Isso
sem falar na nossa firme disposição de continuar importando petró-
leo.
A tese de que o Brasil é espoliado pelas remessas de lucros,
oficialmente encampada no governo Goulart (durante o qual foi pro-
mulgado o mais xenófobo dos estatutos do capital estrangeiro) é
uma desculpa psicologicamente hábil para o nosso subdesenvolvimen-
to. Não importa que, segundo indicam as estimativas do balanço de
pagamentos nos últimos vinte anos, a média anual da remessa de lu-
cros não tenha ultrapassado a casa dos 32 milhões de dólares. Não
importa também que, segundo as contas nacionais, a renda líquida
enviada para o exterior (inclusive juros, royalties etc.) não che-
gue a 1% do Produto Interno Bruto. Os nacionalistas entre aspas
preferem ficar na sua indignação contra a matemática financeira,
lembrando que as empresas estrangeiras, ao cabo de certo tempo a-
cabam remetendo mais do que o principal (o que também ocorre com
qualquer depositante bancário que receba juros) e que essas mesmas
empresas confundem com o capital original o reinvestimento dos lu-
cros auferidos no país (como se esses lucros não pudessem ter sido
remetidos para o exterior e de lá trazidos de volta).
O mito do declínio das relações de trocas é freqüentemente a-
poiado numa "demonstração" estatística. Em 1950 exportamos 5,85
milhões de toneladas, recebendo 1.359 milhões de dólares, ou seja,
ganhamos 280 dólares por tonelada. Em 1967, vendemos 21,1 milhões
de toneladas ao exterior por 1.654 milhões de dólares, o que mos-
tra que o nosso ganho nas exportações caiu para apenas 78 dólares
por tonelada, em visível manifestação da espoliação estrangeira.
Quem faz esse raciocínio deveria estar disposto a ceder uma tone-
lada de ouro em troca de uma tonelada de adubo orgânico. Pois já
no curso primário se ensina que não é lícito somar quantidades he-
terogêneas. As exportações brasileiras realmente cresceram muito
em toneladas, nos últimos anos, devido à expansão das vendas ao
exterior de um produto de baixo valor em relação ao peso, o miné-
rio de ferro. Isso, todavia, nada tem a ver com relações de tro-
cas. Estas só podem ser aferidas dividindo-se um índice ponderado
de preços de exportações por um outro representativo dos preços de
importação. O Quadro 24 do Capítulo VI apresentou a evolução desse
índice de relações de trocas no período 1920/ /1967. O que se ob-
serva é que o índice flutuou intensamente durante o período anali-
sado, uma contingência desagradável a que parecem sujeitos os paí-
ses exportadores de produtos primários (e que parece minorável pe-
los acordos de estabilização dos preços). Não se nota, todavia,
qualquer tendência sistemática ao declínio das relações de trocas.
Ao contrário, um exercício de mínimos quadrados revelaria uma ten-
dência levemente ascendente na série. Naturalmente poderíamos de-
sejar que as nossas relações de trocas tivessem permanecido ao ní-
vel de 1954, e calcular a receita cambial que estaríamos auferindo
com o mesmo volume físico de exportações. Contudo os estrangeiros
poderiam, com o mesmo direito de usar origens arbitrárias, calcu-
lar o que teria sido a nossa receita cambial aos preços de 1940, e
daí se queixar contra os excessivos lucros de nossas exportações.
Finalmente a componente monopolista do nacionalismo. Existe um
grupo de empresários avesso aos capitais estrangeiros, não pelo
impacto da sua repatriação ou da saída de seus rendimentos, mas
pelo que o seu ingresso pode representar em termos de concorrência
às empresas já existentes. Esse nacionalismo da extrema direita
apregoa a criação de um Conselho de Investimentos que se encarre-
garia de controlar a entrada de capitais estrangeiros — o que, na
prática, significaria a proteção aos monopólios estabelecidos, com
o prêmio à ineficiência e o desestímulo à produtividade e à reno-
vação tecnológica, em detrimento do consumidor. Essa corrente tem
como principal evidência empírica o suposto processo de desnacio-
nalização das empresas ocorrido no Governo Castello Branco. Na re-
alidade as estatísticas mostram que no triênio 1964/1966 o ingres-
so total de capitais estrangeiros sob a forma de investimentos di-
retos limitou-se a 172 milhões de dólares, valor inferior ao da
compra pelo governo de duas grandes empresas estrangeiras, a AM-
FORP e a Companhia Telefônica Brasileira (231 milhões de dólares).
Isso sugere que globalmente não houve nenhum processo de desnacio-
nalização. Talvez se possa afirmar que os exemplos de nacionaliza-
ção se referem à compra de empresas estrangeiras pelo governo, e
que os de desnacionalização dizem respeito à compra de empresas
privadas por estrangeiros. Nesse caso, porém, o problema não seria
o da desnacionalização, mas o de estatização. Também se pode dizer
que, em certas épocas, a política monetária favoreceu discrimina-
toriamente as empresas estrangeiras (como na época dos "swaps" tão
utilizados pelos governos nacionalistas, e de certa forma, no caso
dos recursos da Instrução 289 nos períodos de amplo superávit do
balanço de pagamentos), e que seria importante estabelecer uma po-
lítica monetária e fiscal que favorecesse o fortalecimento da em-
presa privada nacional (o que basicamente, tem sido feito nos úl-
timos tempos). Mas daí ao nacionalismo monopolista vai grande dis-
tância. Afinal nada há de mais reacionário do que proteger o mono-
pólio ineficiente em detrimento do consumidor.
Um país nas condições do Brasil precisa do concurso de capi-
tais estrangeiros por três razões: para reforçar a sua capacidade
de poupança, para aumentar a sua capacidade para importar e, prin-
cipalmente, para fortalecer o seu progresso tecnológico. O na-
cionalismo obscurantista, inspirado na xenofobia apriorística e
nas suposições fantasmagóricas é o melhor meio de afastar essa
contribuição.

9.3 — O Mito do Subsídio

Outro vício de pensamento econômico bastante espalhado entre


nós é a idéia de que o governo pode baixar o custo real de um bem
ou serviço, subsidiando-o, ou fixando arbitrariamente o seu preço.
Em parte isso se deve à nossa tradição de elites burocráticas: o
funcionário público talvez tenha a impressão de que o governo cria
recursos reais ao receber os seus vencimentos no fim do mês. Em
parte, ao nosso hábito de esquecer que as despesas públicas têm
que ser pagas por alguém, ou via impostos, ou via inflação; con-
trariamente a certos países onde a opinião pública exerce severo
controle sobre os gastos governamentais, costumamos reagir contra
os aumentos de impostos, mas nunca contra os aumentos de despesas.
Entre nós o mito do subsídio tem evoluído por ondas setoriais.
Até 1964 ele se concentrou predominantemente na taxa cambial e nos
serviços de utilidade pública. Era o uso do câmbio favorecido para
as chamadas importações essenciais, como petróleo e trigo, ou a
remuneração das empresas de utilidade pública com base no valor
histórico dos seus investimentos. As conseqüências dessa fixação
artificial de preços são bem conhecidas. No caso da taxa de câm-
bio, ela nos levou à distorção dos preços internos e à engorda dos
deficits no balanço de pagamentos. No caso da energia elétrica, à
crescente estatização dos investimentos, diante do desinteresse do
setor privado em ser remunerado pelo custo histórico numa época de
inflação violenta — e aí se completou o ciclo, o que o povo deixou
de pagar via tarifas, passou a fazê-lo via impostos ou inflação.
No caso dos telefones, à mais humilhante escassez de oferta e à
mais deteriorada qualidade dos serviços. No caso do transporte
ferroviário, à inflação dos deficits públicos, e assim por diante.
A mais recente onda do mito do subsídio é a insurreição contra
a correção monetária no Plano Nacional de Habitação. Embora vee-
mentemente repelido pelo Governo, esse protesto tem conseguido
certa repercussão na imprensa e na opinião pública. Talvez seja
triste para um país ser forçado a reconhecer oficialmente a infla-
ção, institucionalizando a correção monetária. Pior do que esse
reconhecimento, todavia, é submeter-se às profundas distorções
provocadas pela alta crônica de preços. Até 1964, com a inflação
violenta, com a proibição da correção monetária, e com a limitação
legal dos juros nominais em 12 % ao ano, os financiamentos hipote-
cários se transformaram em verdadeiras dádivas para os mutuários.
Mas, como não há loteria que premie todos os compradores de bilhe-
tes, esses financiamentos se tornaram extremamente escassos. Não
surpreende que, diante disso, se acumulasse enorme déficit ha-
bitacional, publicamente exposto na proliferação das favelas e ha-
bitações anti-higiênicas. A correção monetária era a única solução
para o problema e, graças à sua instituição, a indústria de cons-
trução civil pôde recuperar-se desde 1967, mobilizando enorme gama
de fornecedores de bens e serviços, criando um bom volume de novos
empregos, e abrindo melhores perspectivas para a solução do pro-
blema da casa própria. Nesta altura dos acontecimentos, suprimir a
correção monetária em nome de uma dúzia de hipóteses fantasmagóri-
cas (a principal das quais é a de que os salários se reajustem a
taxas sistematicamente inferiores à da inflação, o que a médio e
longo prazo é inteiramente implausível) seria o mais estúpido dos
retrocessos. Debilitar-se-ia a atividade econômica com uma crise
de construção, agravar-se-ia o déficit habitacional e ainda se es-
poliaria o patrimônio dos trabalhadores representado pelo Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço.

9.4 — A Cibernética de São Tome

Outro vício herdado da nossa tradição burocrática é aquilo que


se poderia intitular a cibernética de São Tome: o extremo apego
aos controles diretos e a descrença nos mecanismos indiretos de
funcionamento. Em tese, a idéia de "ver para crer" talvez, corres-
ponda a uma boa máxima de empirismo. Apenas a sua generalização
pode ser muito custosa. Afinal, os modelos científicos existem
precisamente porque é mais econômico relacionar fatos do que ten-
tar catalogar todas as ocorrências possíveis.
Vários exemplos ilustram essa tendência: a excessiva centrali-
zação de nossa administração pública, que até pouco tempo atrás
forçava o Presidente da República e os Ministros de Estado a per-
der incrível número de horas assinando papéis de importância se-
cundária; a praxe da firma reconhecida; o complicado sistema de
transmissão e registro da propriedade imobiliária.
Outros casos são ainda mais sugestivos. Até poucos anos atrás
os nossos órgãos responsáveis pela coleta de estatísticas quase
não se utilizavam dos métodos de amostragem, limitando-se ao pro-
cesso da contagem exaustiva. O resultado era publicação das esta-
tísticas com enorme atraso, numa época em que elas só se tornavam
úteis para escrever história e não para formular política econômi-
ca.
Os nossos aeroportos internacionais, particularmente o do Ga-
leão, oferecem outro exemplo vivo de cibernética de São Tomé. Os
turistas, após exaustiva viagem aérea são obrigados a uma longa
espera até que se preencham as formalidades do Serviço de Imigra-
ção e até que os fiscais da Alfândega acabem de lhes vasculhar as
bagagens. Não ocorre aos responsáveis pelo nosso sistema o princí-
pio que orienta a maior parte das alfândegas dos países da Europa
Ocidental (que só esporadicamente abrem as malas dos viajantes):
que seria muito pouco racional pagar 700 ou 800 dólares por uma
passagem aérea para contrabandear 200 ou 300 dólares de mercado-
rias. É provável que a rigidez da nossa fiscalização consiga anga-
riar mais alguns cruzeiros de receita aduaneira, pelas infrações
ao regulamento de bagagens. Em todo o caso isso deve ser muito
pouco, em comparação com o que se perde de receita cambial pelo
afastamento dos turistas.
Por último, a obsessão pelos controles de preços. Cada vez que
um produto se torna escasso no mercado, logo surge quem recomende
o seu tabelamento, a fim de impedir a subida dos preços. Esquece-
se que essa alta de preços seria exatamente o estímulo ao aumento
de produção e, conseqüentemente, o corretivo da escassez.

9.5 — As Fórmulas da Cadeia da Felicidade

Uma idéia bastante divulgada por certos círculos vocalmente


influentes é de que o Governo pode, com certas medidas administra-
tivas, criar uma espécie de loteria onde todos ganham mais que o
preço do bilhete. São as fórmulas da cadeia da felicidade adapta-
das à macroeconomia. O distributivismo estruturalista, já comenta-
do no Capítulo III, é uma dessas teses. Cuidaremos agora de duas
outras: a de que é conveniente expandir ilimitadamente o crédito à
produção, e a de que é desejável aumentar os salários nominais pa-
ra elevar a procura.
A idéia de que o crédito à produção pode ser expandido ilimi-
tadamente sem reflexos inflacionários (o direito divino da dupli-
cata, como diz Roberto Campos) é ardorosamente defendida por cer-
tos empresários que não gostam de manter capital de giro próprio e
que recorrem com grande entusiasmo aos empréstimos dos bancos ofi-
ciais — sempre reclamando o crédito abundante e barato (ah! a cur-
va da oferta!). A sua justificação é aparentemente razoável: ex-
pandir crédito, obviamente acarreta o aumento de meios de pagamen-
to. Mas se o crédito se destina à produção, esta se eleva na mesma
proporção, e nada de inflacionário ocorre com os preços.
Há apenas um lapso em todo esse raciocínio. Expandir o crédito
não significa dar às empresas a possibilidade de produzir mais.
Representa simplesmente lhes dar o direito de aumentar as suas
compras, em termos nominais. E quando todos dispõem de mais cru-
zeiros para adquirir o mesmo volume físico de mercadorias, os pre-
ços costumam subir. É a famosa inflação de procura, inacessível
aos adeptos da cibernética de São Tomé, mas facilmente descrita em
qualquer texto elementar de economia. Isso não significa que a ex-
pansão de crédito não seja desejável em épocas de crise de liqui-
dez, ou como compensação a um processo inflacionário de custos.
Mas daí ao direito divino da duplicata vai muita distância.
A idéia de que é desejável aumentar salários nominais para
fortalecer a procura de bens e serviços é às vezes desenvolvida
com requintes de esquizofrenia. O Governo aumentando os salários
nominais elevaria a procura de bens de consumo; com isso, as em-
presas venderiam mais; com o aumento das escalas de produção, as
empresas poderiam absorver os incrementos salariais pela dissolu-
ção dos custos fixos, e manter os mesmos preços anteriores. Assim,
o aumento de salários nominais seria a origem de uma expansão do
produto real sem qualquer impacto inflacionário.
Por mais imaginativos que sejamos em combinar a escolástica
com a matemática (com o mais absoluto desprezo pela evidência em-
pírica) é difícil construir um modelo que conduza a essa conclu-
são. Pois os aumentos de salários nominais provocam um incremento
de custos pelo menos tão grande quanto a expansão da procura. E,
como o que interessa é a procura em termos reais, e não em valores
nominais, os efeitos se cancelam, pelo menos agregativamente. Isso
sem contar com o fato de que um aumento salarial força um incre-
mento na procura da moeda, ao qual dificilmente se poderá respon-
der sem impactos inflacionários.
Por certo seria lícito dizer que um aumento dos salários dos
funcionários públicos sem reajuste dos impostos expandiria a pro-
cura global de bens e serviços. Mas é difícil crer que o aumento
do déficit público não exercesse qualquer impacto inflacionário.
Do mesmo modo, parece razoável afirmar que os aumentos gerais de
salários redistribuem a demanda, reforçando-a em alguns setores, e
enfraquecendo-a em outros. (Nada indica que essa redistribuição se
dirija para os setores com capacidade ociosa, aliviando os pres-
sionados pela inflação de procura.) Mas a idéia de que é possível
elevar salários nominais eliminando os reflexos inflacionários pe-
lo aumento da produção resultante da expansão da demanda, não pas-
sa de um keynesianismo de botequim. Pois Keynes jamais afirmou que
esse aumento seria a fórmula capaz de livrar um país de uma de-
pressão. Cuidando apenas de um contexto muito particular (no qual
algumas providências governamentais, como o aumento de despesas e
redução de impostos podem efetivamente melhorar a todos sem piorar
ninguém), o autor da Teoria Geral (que de geral só tem o nome) li-
mitou-se a uma conclusão muito mais modesta: a de que a redução de
salários nominais, em certos casos, não ajudará uma nação em crise
a elevar o seu produto real. A recíproca, todavia, nunca foi aven-
tada. Pois Keynes era bom economista demais para considerar um fo-
co de aumento de custos como capaz de incrementar a demanda real
de bens e serviços.

9.6 — O Antitecnicismo

Outro respeitável capítulo da análise antieconômica consiste


no antitecnicismo. É a tese daqueles que rejeitam a teoria econô-
mica tradicional, considerando-a válida para os países desenvolvi-
dos, mas inaplicável no Brasil. "Somos um país diferente. E, nossa
infelicidade está em seguir os tecnocratas, que nos impõem os mo-
delos monetaristas importados de outros países. Precisamos de so-
luções brasileiras para os problemas brasileiros."
Essa idéia da originalidade brasileira é em parte um truísmo,
em parte uma sandice. Truísmo porque entre dois países quaisquer
sempre há certas diferenças. Sandice porque existem leis gerais de
comportamento que não parecem variar com a latitude ou com a lon-
gitude. Uma analogia esclarece a questão. O Brasil distingue-se de
qualquer outro país pelos seus acidentes geográficos. Mas nem por
isso a lei da gravidade aqui funciona ao contrário, impelindo os
corpos para cima; nem o princípio de Arquimedes traga os navios
para o fundo do mar em nossas águas territoriais.
De fato, qualquer teste estatístico elementar mostra que as
leis econômicas se ajustam com extrema propriedade ao Brasil. A
agricultura, a indústria e o comércio respondem com acentuada sen-
sibilidade aos estímulos ou desincentivos do sistema de preços e
da política de crédito. O consumo e a renda se correlacionam es-
treitamente. A taxa de inflação está perfeitamente vinculada aos
deficits públicos, à expansão monetária e aos aumentos salariais,
e assim por diante. Basta lembrar alguns exemplos, como a boa rea-
ção da agricultura ao crédito rural e aos preços mínimos; a crise
habitacional associada à lei do inquilinato e ao mito do subsídio
nos financiamentos imobiliários, e a posterior recuperação da
construção civil com a generalização do princípio da correção mo-
netária; a superprodução do café resultante da alta internacional
dos preços entre 1952 e 1954; as taxas de inflação associadas à
política do Governo Goulart etc.
Os adeptos do antitecnicismo confundem a estrutura geral com
os pormenores setoriais da política de desenvolvimento. É claro
que os projetos específicos, as minúcias institucionais, e mesmo
as motivações psicológicas apresentam certas diferenças de país
para país. Mas as regras básicas do desenvolvimento fundadas na
poupança, na racionalidade dos investimentos, e no treinamento de
recursos humanos são as mesmas em qualquer parte do mundo. Da mes-
ma forma pela qual os países só se livram de uma inflação violenta
pela contenção dos deficits públicos, da expansão de crédito e dos
reajustes salariais, e nunca pelo aumento da produção. É certo que
às vezes os técnicos cometem erros. Por piores que sejam, todavia,
eles nunca são tão graves quanto os de uma política econômica ale-
atória. E não se confundam os erros dos técnicos com erros da téc-
nica.
No fundo, os adeptos do antitecnicismo ou não conhecem o Bra-
sil ou ignoram os princípios elementares da economia, ou ambas as
coisas. Cientificamente, o antitecnicismo representa o retorno à
idade da pedra. Do ponto de vista psicológico, essa talvez seja
uma boa desculpa para os que têm preguiça de estudar teoria econô-
mica, e que aspirariam ao nivelamento geral pela ignorância. Como
receita para o desenvolvimento, todavia, essa atitude não pode ser
levada a sério. Os adeptos do antitecnicismo, na sua retórica con-
fusa, não têm o que dizer nem sabem como dizer, como afirmou re-
centemente Antônio Delfim Netto.

9.7 — O Capitalismo Tomista

Uma das contradições ideológicas mais espalhadas em nosso meio


é a daqueles que são a favor do capitalismo mas contra o lucro. É
o que se poderia apelidar de confusão de Santo Tomaz de Aquino com
Gibi. Trata-se de importante capítulo de análise antieconômica,
sobre o qual valem alguns comentários.
A ojeriza ao lucro é, em parte, subproduto da tradição cultu-
ral da península ibérica. Contrariamente aos países saxônicos, que
sempre associaram o lucro à inovação e à poupança, temos o hábito
de o correlacionar com a especulação e o consumo supérfluo. Basta
dizer que em nossa língua, lucro e logro parecem ter a mesma raiz
etimológica. É possível que isso resulte do fato de que, histori-
camente, não fomos um país empresarial. Mostrávamo-nos mais pro-
pensos ao mercantilismo, e à valorização dos produtos pela geração
artificial da escassez, do que ao verdadeiro capitalismo, baseado
na inovação e na concorrência.
De outra parte, há boa dose de conflito entre a atitude mental
do burocrata padrão e a presença do lucro. O funcionário público,
em boa parte das vezes, não escolhe a sua carreira pela vocação
apostolar ao serviço governamental. Escolhe-a pela estabilidade,
pela ausência de riscos, e pela tranqüilidade do trabalho rotinei-
ro. E, num mundo de rotinas, sem inovações nem incertezas, não ha-
veria realmente lugar para o lucro. A essa incompreensão do modelo
soma-se a irritação do contraste, pois o padrão de vida do capita-
lista bem sucedido não costuma ser acessível ao burocrata.
Nessa linha do capitalismo tomista, uma das idéias mais espa-
lhadas entre nós é a do "lucro justo". Considera-se que a empresa
deve ganhar exatamente 10% ao ano (provavelmente porque temos dez
dedos nas mãos), não importando qual seja a sua produtividade ou a
sua capacidade de inovação. De preferência o Governo deve tratar
de tabelar os preços dos produtos, examinando o custo das empre-
sas, e garantindo-lhes a justa margem de remuneração (a famosa
forma C. L. D.).
O problema do lucro justo é que se trata de um desastre con-
ceitual. É possível que exista o lucro injusto, o do monopólio, o
qual pode ser combatido pela legislação "anti-trust" (que, entre
nós, poderia funcionar em boa parte pela baixa das tarifas adua-
neiras), e pela regulamentação das tarifas dos monopólios natu-
rais. Mas, uma vez garantidas certas condições de razoável concor-
rência, é absurdo querer tabelar uma remuneração que premia o ris-
co e a capacidade inovadora. O lucro é um resíduo do valor do pro-
duto, após o pagamento do preço dos fatores de produção. Esse re-
síduo deve reger-se pelas leis de seleção natural, e não por qual-
quer idéia apriorística de justiça.
Um sintoma inequívoco desse nosso apego à noção de lucro justo
está na apreciação corrente do enriquecimento dos empresários. Nos
Estados Unidos, o empresário que se expande rapidamente, pela sua
capacidade de inovação e organização, é objeto da admiração públi-
ca, e do prestígio social. Entre nós, a sua imagem se deforma na
do especulador, por cuja honestidade ninguém poria a mão no fogo.
Em compensação exibimos incrível ternura para com os concordatá-
rios (inclusive para com aqueles que enriquecem pessoalmente en-
quanto empobrecem as suas empresas), achando perfeitamente justo
que o Banco do Brasil lhes sustente a caixa — no famoso processo
da socialização dos prejuízos.
O capitalismo tomista, em geral, e o mito do lucro justo, em
particular, contradizem qualquer filosofia viável de desenvolvi-
mento econômico. Em primeiro lugar, conspiram contra a poupança. É
importante lembrar que as sociedades anônimas reinvestem, em mé-
dia, cerca de 75% dos seus ganhos. O distributivismo prematuro,
preocupado em repartir o lucro entre os menos bem aquinhoados, ao
invés de fortalecer a sua reinversão, é uma excelente fórmula para
a conquista da estagnação. (Seria prudente lembrar que o lucro
também existe nos países comunistas, como fonte primordial de pou-
pança, embora lá pertença ao Estado.)
Em segundo lugar, a incompreensão do lucro é o melhor meio de
perpetuar a rotina e o obsoletismo, desestimulando a eficiência e
a capacidade de renovação. Na era da tecnologia, em que as inova-
ções se sucedem com incrível rapidez, e em que temos enorme hiato
de conhecimentos a absorver, nada mais insensato do que buscar o
nivelamento pela mediocridade. Um país com as dimensões con-
tinentais do Brasil, e com a sua multiplicidade de problemas, di-
ficilmente chegará ao posto de nação desenvolvida sem o intenso
apelo ao esforço e à imaginação individuais. Para tanto, é indis-
pensável compreender o lucro como o parâmetro da seleção natural
da eficiência, ao invés de deformar a sua imagem pela da especula-
ção improdutiva.
Capítulo X
O DESAFIO DO DESENVOLVIMENTO

10.1 — A Corrida da Renda Per Capita

Em síntese, o grande problema que nos deve preocupar coloca-se


nos seguintes termos: é muito possível que, com um esforço normal
de desenvolvimento, cheguemos ao ano 2.000 com 800 dólares per ca-
pita, ou seja, 2,5 vezes o nível atual. Mas é igualmente possível
que, no fim do século, 800 dólares per capita sejam um índice de
flagrante subdesenvolvimento.
Em termos absolutos, a questão do crescimento de nossa renda
per capita está longe de ser angustiante. A experiência dos últi-
mos cinqüenta anos mostra que tivemos suficiente capacidade de
poupança para escapar ao círculo vicioso da pobreza no sentido
convencional. E não parece excesso de otimismo supor que, nos pró-
ximos trinta anos, consigamos elevar nossa renda per capita a ta-
xas superiores à da tendência histórica, desde que se conserve ra-
zoável nível de racionalidade econômica.
Ocorre que desenvolvimento é conceito eminentemente relativo.
O padrão de vida de qualquer nação avançada, há dois séculos a-
trás, era bem inferior aos nossos atuais 300 dólares per capita,
mas tal comparação constitui um anacronismo sem nenhum interesse
prático. No sentido relativo nada garante que estejamos livres do
círculo vicioso da pobreza. Ao contrário, as previsões do Hudson
Institute, embora fundamentadas em hipóteses pessimistas para o
nosso lado, nos vaticinam um crescente atraso em relação ao padrão
de vida das nações mais prósperas. Nos últimos dez anos, pre-
cisamente quando caímos naquilo que os estruturalistas denominam a
crise do modelo de substituição de importações, inúmeros países,
tanto do bloco ocidental quanto do socialista, com o culto do de-
senvolvimento, com a melhoria dos métodos de formulação da políti-
ca econômica e com o progresso dos arranjos institucionais, conse-
guiram expandir seu produto real a taxas da ordem de 5% ou 6% ao
ano. Livres de uma explosão demográfica comparável à nossa, esses
países vêm expandindo sua renda per capita com admirável rapidez.
Se deixarmos que essas tendências se extrapolem chegaremos a um
quadro talvez quantitativamente menos dramático, mas qualitativa-
mente equivalente ao que nos é pintado por Herman Kahn e Anthony
Wiener.
O Quadro 40 destaca este último problema. Numa lista de 22 pa-
íses éramos o nono colocado em crescimento do produto real total
no período 1950/1960. No período 1960/1965, caímos para o décimo-
sexto lugar. Em matéria de renda per capita, no entanto, a nossa
posição é bem pior, devido ao intenso crescimento populacional. No
decênio de 1950 figurávamos num modesto décimo-terceiro lugar. E
no qüinqüênio seguinte, caímos para o último lugar da lista. Mesmo
um país como a Grã-Bretanha, que pouco tem conseguido em matéria
de crescimento do produto, nos tem superado em expansão da renda
per capita, devido à sua quase estabilidade de população.
QUADRO 40
TAXAS MÉDIAS DE CRESCIMENTO DO PRODUTO
REAL, TOTAL E PER CAPITA (% ao ano)
PRODUTO REAL TOTAL PRODUTO REAL PER CAPITA
PAÍSES
1950/1960 1960/1965 1950/1960 1960/1965
México 6,1 6,0 2,8 2,5
Canadá 3,9 5,5 1,2 3,6
Estados Unidos 3,3 4,7 1,5 3,1
Argentina 3,1 3,3 1,1 1,7
Brasil 5,8 4,3 2,7 1,1
Chile 3,6 4,3 1,2 2,0
Colômbia 4,6 4,5 1,4 1,2
Japão 9,0 9,6 6,4 8,5
Israel 11,1 10,0 5,4 5,7
França 4,5 5,1 3,6 3,7
Alemanha Ocidental 7,9 4,9 6,7 3,6
Itália 5,5 5,1 4,8 4,4
Áustria 5,7 4,2 5,5 3,6
Portugal 4,4 6,3 3,9 5,4
Suécia 3,3 5,0 2,6 4,3
Suíça 4,4 5,1 3,0 3,0
Grã-Bretanha 2,8 3,3 2,4 2,5
Austrália 3,8 4,2 0,6 2,2
Tchecoslováquia 7,5 2,0 6,6 1,3
Hungria 6,5 4,5 5,7 4,1
Polônia 7,6 6,4 5,6 5,2
URSS 10,2 6,4 8,3 4,8

Fonte:Yearbook of National Accounts Statistics (United Nations).

É fácil compreender a gravidade da questão. A humanidade já


está longe daquela fase em que cada país podia cuidar introverti-
damente de seus próprios problemas sem prestar atenção ao resto do
mundo. Se as nossas ambições materiais daqui até o fim do século
fossem apenas as de assegurar a toda a população condições razoá-
veis de moradia e um bom padrão calórico e proteínico de alimenta-
ção, poderíamos ficar relativamente tranqüilos quanto ao nosso fu-
turo. Sucede que a noção de nível digno de vida evolui ao longo do
tempo em função de dois fatores: da expansão dos padrões de consu-
mo das nações líderes, e da rapidez e da eficiência dos meios de
comunicação. Ambas essas variáveis deverão, daqui para o futuro,
acelerar a revolução das aspirações crescentes. Os países desen-
volvidos têm conseguido aumentar a sua renda per capita a taxas
extremamente velozes, desafiando a fronteira tecnológica e desmen-
tindo qualquer das teorias de saturação do crescimento. Por outro
lado, na era dos computadores e dos satélites, poucos ramos do co-
nhecimento humano se têm alargado tão rapidamente quanto a infor-
mação e as comunicações. Os países comunistas conseguiram, por
longo tempo, conter as aspirações de consumo de suas massas pela
técnica da Cortina de Ferro, mas é de se pôr em dúvida o êxito do
sistema diante das tendências do progresso nas comunicações. Não
será surpreendente, assim, que, no ano 2000, a noção de mínimo
digno de subsistência incorpore o intenso uso de eletrodomésticos,
o acesso aos novos recursos da medicina, a minimização das horas
de trabalho por semana, o acesso a extensos programas educacionais
etc.
Se nos atrasarmos na corrida da renda per capita, arriscar-
nos-emos a virar um barril de pólvora. Uma nação pode viver na
tranqüila mediocridade do subdesenvolvimento, desde que isolada do
resto do mundo pela ruptura das comunicações.
Essa, todavia, não parece uma hipótese viável. O simples aper-
feiçoamento das comunicações, sem alterações nos padrões de vida,
já é um fator de explosão social dos países economicamente atrasa-
dos. Se a isso se acumula o crescente hiato relativo das rendas
per capita, as frustrações adquirem dimensão alarmante. Esse é o
perigo que o Brasil corre. Se, com o nosso ônus demográfico, fi-
carmos limitados a taxas modestas de desenvolvimento, atrasando-
nos cada vez mais em comparação com os países de altos padrões de
vida, como prevê o Hudson Institute, poderemos transformar-nos em
palco das mais dramáticas eclosões sociais, talvez no decênio de
1980. Corremos o risco de nos associar àquele grupo de países que
no desespero descamba para a irracionalidade, pulando de crise em
crise, até encontrar seus próprios caminhos. Mas caminhos que só
são divisados após muito sacrifício inútil e muito tempo perdido.

10.2 — A Semelhança dos Modelos

Desde o início do século vários países vêm impressionando os


cientistas sociais pelo seu excepcional desempenho em matéria de
desenvolvimento econômico. Primeiro foram os Estados Unidos que,
após a Primeira Guerra Mundial, conseguiram ascender à posição de
primeira potência do globo. Em seguida a Alemanha, a qual apesar
de derrotada nas duas guerras, conseguiu soerguer-se com incrível
rapidez, alcançando taxas espantosas de crescimento no decênio de
1950. Depois a União Soviética, cujos sacrifícios de desenvolvi-
mento a transformaram na única nação capaz de competir com os Es-
tados Unidos em matéria de vanguarda tecnológica. E por último o
Japão e o Estado de Israel, países precariamente dotados de recur-
sos naturais, mas que, apesar disso vêm sustentando há mais de
quinze anos um crescimento do produto real excepcionalmente eleva-
do.
Por mais volúvel que seja o entusiasmo dos economistas, há uma
série de traços comuns em todas essas experiências de desenvolvi-
mento. Os contextos jurídicos e políticos foram bastante dife-
rentes mas a técnica, em seus aspectos fundamentais, se mostrou a
mesma. Não falta assim quem diga que, do ponto de vista econômico,
a arte de crescimento não passa de um segredo de polichinelo.
Tomemos o exemplo dos Estados Unidos. A sua ascensão à catego-
ria de primeira potência mundial deveu-se à conjugação de uma sé-
rie de fatores que moldaram o seu crescimento no século passado e
nos primeiros anos deste século. É claro que a vastidão territori-
al e a multiplicidade de recursos naturais ajudaram consideravel-
mente tal processo de desenvolvimento, mas essa foi apenas uma das
variáveis do problema. Os Estados Unidos puderam contar com uma
série de outras condições sem as quais de pouco teriam valido os
seus amplos recursos naturais. Primeiro, a intensa mobilidade so-
cial baseada no sucesso econômico. Contrariamente a outros países
onde a tradição e a nobreza constituíam os principais elementos de
definição do status social, os Estados Unidos partiram para uma
civilização amplamente aberta à imigração, e onde o prestígio e o
poder eram baseados na riqueza e no lucro. Isso deu origem a uma
sociedade talvez pouco requintada, mas extremamente propensa à
poupança, à concorrência e ao espírito empresarial. O grande im-
pulso para o desenvolvimento do país no século passado obviamente
proveio da reinversão dos lucros gerados pela concorrência capita-
lista. E a vantagem conseguida na corrida da renda per capita foi
o resultado de serem os Estados Unidos o primeiro país a obter em
larga escala a difusão do espírito empresarial e a aplicação do
trinômio lucro-poupança-reinvestimento.
Em segundo lugar os Estados Unidos, com sua mobilidade social
e a sua absorção de imigrantes, foram o primeiro país a montar uma
estrutura cultural pouco humanística e muito técnica, extraordina-
riamente capaz de transformar as descobertas científicas em apli-
cações práticas. Até o decênio de 1930, a contribuição norte-
americana no campo da ciência pura não foi particularmente bri-
lhante, comparada com a de certos países europeus como a Alemanha,
a França e a Inglaterra. Em compensação os americanos tiveram como
ninguém a habilidade da inovação, isto é, a de aproveitar as con-
quistas da ciência pura no lançamento de novos produtos e na im-
plantação de novos métodos de produção.
Em terceiro lugar os Estados Unidos conseguiram notável pio-
neirismo nas técnicas de organização e administração. No fim do
século passado, a engenharia começou cada vez mais a impor as eco-
nomias de escala nos métodos de produção, exigindo a substituição
das pequenas e médias empresas pelos gigantescos complexos indus-
triais. Para que essa transformação fosse conseguida, três condi-
ções se mostravam indispensáveis. Primeiro, uma formidável imagi-
nação financeira capaz de criar os mecanismos necessários à aglo-
meração das empresas. Segundo, um extraordinário desenvolvimento
do mercado de capitais, a fim de que as poupanças pulverizadas de
milhares de capitalistas pudessem congregar-se para o financiamen-
to das grandes unidades. Terceiro, a mudança das estruturas de or-
ganização e administração, tornando-as menos hereditárias e perso-
nalistas, e mais voltadas para a técnica e para a produção em
grande escala. Aos três desafios, os norte-americanos souberam dar
as mais brilhantes respostas. Os famosos "trusts", "mergers" e,
mais tarde, o encadeamento de "holdings" foram manobras extraordi-
nariamente imaginativas que, se geraram muito abuso do poder eco-
nômico e muita fragilidade financeira (várias pirâmides de hol-
dings desabaram como castelos de cartas durante a Grande Depres-
são), serviram como o veículo indispensável à constituição dos
grandes complexos industriais. No mercado de capitais, os Estados
Unidos conseguiram como ninguém a popularização dos seguros, dos
fundos de investimento, das ações e debêntures das sociedades anô-
nimas, às vezes numa febre especulativa absurda, como a que ante-
cedeu a crise da Bolsa em 1929, mas sempre com extraordinária ca-
pacidade de transferir os recursos dos que tinham potencial de
poupança para aqueles que possuíam habilidade para investir. E, em
matéria de administração científica, nenhum país até hoje conse-
guiu igualar-se aos Estados Unidos, que foram os pioneiros de or-
ganização, da produção em massa, da pesquisa operacional, do méto-
do P.E.R.T., da aplicação dos computadores, da automação etc. Lem-
bre-se mais uma vez a esse propósito o "Desafio Americano" de Je-
an-Jacques Schreiber.
Vejamos agora o exemplo da Alemanha. Pelas suas tradições his-
tóricas e culturais não é surpreendente que se trate de um país
altamente desenvolvido, nem que os seus maiores passos no campo
econômico tenham sido alcançados depois que Bismarck conseguiu a
sua unificação. O que causou pasmo aos economistas foi a rapidez
com que a Alemanha Ocidental se reconstruiu após a devastação da
Segunda Guerra, sustentando ao longo do decênio de 1950 uma taxa
média de crescimento do produto real de cerca de 8% ao ano. Talvez
se possa lembrar que, materialmente, a reconstrução é um processo
bem mais fácil do que o desenvolvimento "ex-nihil", pois nem todas
as instalações foram destruídas; há apenas uma multiplicação de
pontos de estrangulamento, a qual pode ser corrigida com uma rela-
ção capital/produto bastante favorável. Também se poderia dizer
que a Alemanha contou com substancial ajuda externa por intermédio
do Plano Marshall. Ainda assim, a reconstrução alemã após a Segun-
da Guerra Mundial baseou-se sobretudo na auto-ajuda, num exemplo
que deve inspirar os países subdesenvolvidos.
O esforço de reconstrução da Alemanha teve como principal a-
poio a poupança e o trabalho inteligente e árduo. Em todo o perío-
do do após-guerra o país sustentou uma taxa de investimentos da
ordem de 25% do produto interno bruto, pelo estímulo à poupança
individual, à reinversão dos lucros das empresas, ao ingresso dos
capitais estrangeiros, e pela minimização dos gastos correntes do
Governo (que, em particular, não mais teve que arcar com despesas
militares). A inflação foi vigorosamente debelada pela política de
Erhard, em 1948 e 1949, dentro da orientação de que era preferível
suportar uma crise de estabilização a curto prazo e conseguir uma
moeda estável, a enveredar pelo perigoso caminho do desenvolvimen-
to inflacionista. Em matéria de quadros técnicos, de mão-de-obra
qualificada e de espírito empresarial, o país era admiravelmente
bem dotado. E, por último, os trabalhadores compreenderam que an-
tes de repartir o bolo era preciso que ele crescesse. Nos pri-
meiros anos seguintes ao fim da guerra, muitos alemães trabalhavam
14 horas por dia, 10 nas fábricas e 4 nas atividades de construção
civil, a níveis salariais bastante modestos e sem desfrutar de
quaisquer benefícios da previdência social. As conquistas traba-
lhistas, hoje bastante avançadas nas técnicas de co-gestão e de
participação nos lucros, só foram impostas quando o país já havia
alcançado notáveis índices de progresso, e quando já se havia cri-
ado bastante riqueza, e não apenas miséria, para ser distribuída.
Até o término da Segunda Guerra Mundial, muitos cientistas so-
ciais do Ocidente punham em dúvida o êxito da experiência de de-
senvolvimento da União Soviética, em parte por preconceitos ideo-
lógicos, em parte pela falta de informações estatísticas fidedig-
nas. A maior parte dessas dúvidas se dissipou depois que a Rússia
passou a competir com os Estados Unidos na corrida atômica e, so-
bretudo, após o lançamento do primeiro Sputnik, em 1957. Trata--
se, obviamente, de uma experiência "sui generis" de desenvolvimen-
to. Pelos padrões ocidentais, a União Soviética é superdesenvolvi-
da em alguns setores, como na indústria pesada e na tecnologia es-
pacial, e subdesenvolvida em outros, como na produção de bens de
consumo leve e no suprimento de serviços. Também a análise super-
ficial dos índices do produto real parece exaltar indevidamente os
méritos do regime comunista nas suas taxas de crescimento. Pelas
estatísticas oficiais, reproduzidas no Quadro 40 a Rússia teria
conseguido expandir seu produto real entre 1950 e 1960 a uma taxa
média de nada menos que 10,2% ao ano, taxa que nenhum outro país
conseguiu alcançar, salvo o Estado de Israel. Ocorre que os siste-
mas de ponderação utilizados superestimam (propositalmente ou não)
esse crescimento, atribuindo pesos anormalmente elevados às indús-
trias que mais rapidamente se expandem, e atrofiando os correspon-
dentes aos setores relativamente inertes. Vários economistas do
Ocidente, recalculando o crescimento do produto real soviético no
período em questão com um sistema mais ortodoxo de pesos, concluí-
ram que ele não teria sido superior a 6 ou 7% ao ano1. Com todas
essas ressalvas é fora de dúvida que a Rússia conseguiu realizar
um extraordinário esforço de desenvolvimento que nenhum cientista
social pode ignorar, por mais ferrenho anticomunista que seja.
Seria injusto associar biunivocamente o desenvolvimento da U-
nião Soviética ao regime comunista. Primeiro porque o impulso do
crescimento da Rússia começou por volta de 1880, muito antes por-
tanto da revolução comunista. Já não faltava nessa época quem va-
ticinasse que, pela sua extensão territorial, pela sua tradição
cultural, e pela multiplicidade de seus recursos naturais, a Rús-
sia seria o único país capaz de se transformar, na segunda metade
do século XX, no rival econômico dos Estados Unidos. Também em
1917 a Rússia já era um país razoavelmente desenvolvido, com exce-
lente produção agrícola que deixava boa quantidade de excedentes
exportáveis, e com uma produção de aço superior a 4 milhões de to-
neladas anuais (mais do que hoje produzimos no Brasil). O comunis-
mo triunfou muito menos pelas tensões econômicas (a Rússia, aliás,
nunca havia entrado nas cogitações de Karl Marx como o campo expe-
rimental para as suas idéias) do que pela desmoralização dos exér-
citos russos na Primeira Guerra Mundial e pela tibieza do Czar Ni-
colau II.
Em segundo lugar, a revolução comunista, como todos os movi-
mentos de violência emocional, começou com muito sangue e muita
falta de racionalidade. Durante um decênio os comunistas nada con-
seguiram fazer em matéria de desenvolvimento senão rever seus dog-
mas diante do seu fracasso no confronto com a prática. Primeiro,
Lenin teve que aceitar imensas transigências com a ortodoxia capi-
talista, com a sua Nova Política Econômica em 1921. Nessa nova or-
dem, a Rússia teve que esperar alguns anos até recuperar os níveis
de produção de 1917. Só mais tarde, na época de Stalin, e com a
implantação do primeiro Plano Qüinqüenal, é que a União Soviética
conseguiu voltar-se para a retomada de desenvolvimento.
É provável que, em economia, a Rússia ainda viva a busca de
muitos caminhos. O juro foi ideologicamente banido, mas continua
presente em todos os cálculos de comparação de investimentos, pois
o capital ainda não se transformou no fator infinitamente abundan-
te. A mais-valia foi execrada pelos dogmas marxistas, mas o lucro

1
Esse problema, aliás, parece estender-se a todos os países do bloco comunista, o que toma muito difícil a comparação
de suas experiências de desenvolvimento com as das nações do Ocidente. Note-se, nesse particular, que as taxas de
crescimento do produto real para os quatro países comunistas listados no Quadro 40, excedem as de todas as demais na-
ções do bloco ocidental, exceto Japão e Israel. Note se também que as taxas de crescimento econômico desses pauses
foram muito maiores no decênio de 1950 do que no qüinqüênio seguinte.
continuou sendo a principal fonte de financiamento de expansão do
parque industrial. O mercado negro continua sendo teoricamente pu-
nido com a pena de morte, mas entre o rublo oficial e o rublo de
mercado continua havendo enorme diferença. E a revolução de Liber-
man parece ter sido uma descoberta indireta dos méritos do sistema
de mercado, com louvável apoio à programação linear, mas com al-
guns séculos de atraso em relação ao Ocidente.
Não obstante, o regime comunista compreendeu dois pontos es-
senciais, sem os quais a União Soviética jamais teria chegado ao
seu posto de hoje no concerto mundial. Primeiro, que nenhum pro-
cesso de desenvolvimento pode ser construído sem enorme esforço de
poupança. Com a Cortina de Ferro, com o rigor stalinista e com uma
ditadura do proletariado que tratava de comprimir os salários ao
máximo, a Rússia conseguiu sustentar uma taxa de investimentos em
torno de 30% do seu produto interno bruto. Segundo, que o processo
de crescimento depende primordialmente da formação de recursos hu-
manos e que nenhum país pode progredir satisfatoriamente em meio
ao analfabetismo e à estagnação tecnológica. Nesse sentido temos
que absorver a lição soviética. De fato, a Rússia foi dos primei-
ros países a compreender que o binômio analfabetismo-subdesen-
volvimento constitui um círculo vicioso que deve ser rompido pelo
ataque do Estado à primeira de suas componentes. E, se no campo
das artes o comunismo parece ter transformado a Rússia num país
pouco criativo, no campo da ciência e da tecnologia a contribuição
soviética se alinha entre as mais importantes já registradas na
história da civilização. Ideologia à parte, o grande mérito do co-
munismo foi o de compreender que a poupança e a educação constitu-
em as armas fundamentais do desenvolvimento econômico.
Vejamos agora o caso do Japão. O seu exemplo é notável pelo
desafio que contém a uma estrutura extremamente avara de recursos
naturais. O território japonês é uma pequena ilha vulcânica e su-
per-povoada, mas o produto real do país vem crescendo a taxas vi-
zinhas de 10% ao ano há mais de três lustros. Na realidade o mila-
gre japonês é o resultado da poupança, da educação e do trabalho
árduo e inteligente. A parcimônia com que vive o povo e a absten-
ção do consumo supérfluo permitem que o Japão exiba a maior taxa
de investimentos do mundo, superior a 35% do produto interno bru-
to. O analfabetismo praticamente não existe no país, e uma estru-
tura de ensino extremamente pragmática prove a melhor qualificação
da mão-de-obra em todos os níveis exigidos pelo mercado. O traba-
lho é regido por uma disciplina férrea. Enquanto nós aqui cogita-
mos da redução das horas de trabalho, o comércio japonês funciona
sete dias, e o Governo seis dias por semana. Os operários japone-
ses, nos movimentos de greve, afixam seus cartazes de protesto nas
portas das fábricas, mas continuam trabalhando em seus postos.
Outra lição admirável oferecida pelo Japão é a de que é possí-
vel conciliar altos índices de produtividade com técnicas que usam
intensivamente a mão-de-obra. Nesse particular, poucos países mos-
traram tanto engenho em adaptar a tecnologia a uma dotação precá-
ria de recursos naturais. Com a escassez de terras cultiváveis e
com a superpopulação, era óbvio que o país deveria adotar uma a-
gricultura "labor-intensive" (o Japão certamente não é o lugar pa-
ra o desenvolvimento da pecuária). O perigo desse tipo de opção
era chegar-se a um sistema altamente ineficiente, como o do nosso
minifúndio. Mas os japoneses souberam solucionar o problema desen-
volvendo uma agricultura extremamente sofisticada, baseada no em-
prego intensivo dos fertilizantes e dos métodos de seleção genéti-
ca, uma agricultura que usa muito cérebro e muita mão-de-obra, mas
pouca terra e equipamentos. E, para suplementar as exigências pro-
teínicas, os japoneses souberam adaptar sua dieta alimentar, de-
senvolvendo uma indústria de pesca sem rival no mundo em matéria
de produtividade.
A liderança japonesa na eletrônica (lembre-se a revolução do
transistor) e na construção naval fornecem outro exemplo notável
de conciliação do uso intensivo da mão-de-obra qualificada com os
índices excepcionais de produtividade. O Japão, aliás, não cessa
de preocupar-se com a renovação tecnológica e com a conquista dos
melhores índices de eficiência. As fusões e associações de empre-
sas são freqüentes para racionalizar a produção e a comercializa-
ção. A recente e discutida fusão da Iawata com a Fuji, constituin-
do um gigante siderúrgico que só fica abaixo da United States Ste-
el, é um bom exemplo dessa busca incessante das economias de esca-
la e da renovação tecnológica.
Igualmente impressionante é a agressividade dos japoneses no
comércio internacional, um requisito indispensável ao seu desen-
volvimento econômico, pois a escassez de recursos naturais exige
um volume fortemente crescente de importações. Todos os adeptos
desse agradável esporte que é o turismo estão habituados a viajar
aos Estados Unidos ou à Europa e de lá voltar com uma boa mala de
produtos "made in Japan". Nesse particular os japoneses consegui-
ram revolucionar as teorias do comércio internacional, demonstran-
do à farta que a agressividade e a tecnologia são bem mais impor-
tantes do que a dotação de recursos naturais na geração das vanta-
gens comparativas. Tome-se o exemplo da siderurgia. O Japão nem
possui minério, de ferro nem carvão, mas conseguiu colocar-se na
vanguarda internacional das exportações de aço. É a prova de que
um bom aproveitamento das economias de escala, um bom conjunto de
cérebros, e um bom sistema portuário são mais importantes do que a
disponibilidade de matérias-primas para se alcançar a competitivi-
dade internacional.
O Estado de Israel oferece outro exemplo notável de como o en-
genho humano pode compensar a avareza do solo. É claro que a sua
experiência de desenvolvimento (que levou o produto real a crescer
em média de 11,1% ao ano no decênio de 1950 e de 10% ao ano no
qüinqüênio subseqüente) possui características "sui generis" que
não podem ser reproduzidas em outros países. Israel, em certo sen-
tido, foi apenas a concentração geográfica de uma nação que já e-
xistia espalhada pelo mundo. Isso valeu um considerável afluxo de
ajuda externa e uma imigração altamente qualificada, num estilo a
que nenhum outro país pode aspirar. Em todo o caso, o crescimento
econômico de Israel, às taxas em que se processou, parece um mila-
gre do trabalho e da técnica, sobretudo quando se leva em conta
que o país sempre teve que desviar boa parte de seus recursos para
objetivos militares, a fim de se defender das nações vizinhas. A
transformação de um solo desértico em terras férteis pela irriga-
ção e pelo uso adequado de fertilizantes foi o produto de um tra-
balho árduo e inteligente, numa demonstração de eficiência que
causa admiração a todo o mundo. E o retumbante sucesso da Guerra
dos Seis Dias serviu de prova de que até para fins bélicos mais
vale um bom conjunto de cérebros do que um grande exército de a-
nalfabetos.
Os cinco exemplos citados, o dos Estados Unidos, o da Alema-
nha, o da União Soviética, o do Japão e o de Israel desenvolveram-
se em contextos inteiramente diferentes em matéria de dotação de
recursos naturais, de estrutura política, de ordem jurídica, e de
tradições culturais. Todos eles, no entanto, basearam-se no tripé
"poupança-educação-racionalidade econômica e administrativa". Exa-
minemos cada um desses pontos.
Todo processo de desenvolvimento resulta de uma opção a favor
do futuro e contra o presente. Isso torna inviável a tão saborosa
idéia do desenvolvimento sem sacrifícios. É verdade que esses sa-
crifícios podem ser rapidamente recuperáveis com o crescimento do
produto real. Para dar um exemplo, um país que deseje expandir-se
aceleradamente, não pode cometer prodigalidades em matéria de po-
lítica salarial, sob pena de ter mutilada a sua capacidade de pou-
pança. Em compensação, com o aumento geral da produtividade os sa-
lários poderão crescer a taxas bastante favoráveis. Embora partin-
do de uma base mais baixa, em poucos anos esses salários ultrapas-
sarão os níveis que teriam sido alcançados pela política de maxi-
mizar o bem-estar presente em prejuízo do crescimento futuro.
É interessante, nesse sentido, contrastar duas experiências
recentes, a do Japão e a da Inglaterra. O Japão transformou-se na
civilização da poupança e do trabalho árduo. Entre 1961 e 1967 a
sua taxa média de investimentos se manteve em 36,5% do produto in-
terno bruto (Quadro 41). Com isso, o país pôde expandir seu produ-
to real a taxas da ordem de 10% ao ano, e melhorar com incrível
rapidez o padrão de vida de seu povo. Veja-se agora o caso da In-
glaterra, que optou por um estado social, fortemente voltado para
o consumo a curto prazo, e para as conquistas de trabalhismo e da
previdência social. Sua taxa média de investimentos no período em
análise limitou-se a 18,3% do produto interno bruto, taxa relati-
vamente baixa para o seu nível de renda per capita. Em compensa-
ção, o produto real só cresceu, em média de 3% ao ano.

QUADRO 41
TAXAS DE INVESTIMENTO EM ALGUNS PAÍSES
(Formação bruta de capital em percentagens do Produto Interno Bruto)

Alemanha Grã-
ANO Israel Itália Japão Suécia
Ocidental Bretanha

1961 26,5 28,1 24,8 41,0 18,2 24,0


1962 26,4 31,5 24,9 26,5 16,9 23,1
1963 25,8 29,2 24,9 35,4 17,0 22,8
1964 27,5 32,0 22,5 37,0 19,9 24,3
1965 28,0 27,8 19,7 33,3 19,2 25,2
1966 25,7 21,1 19,7 34,0 18,5 24,2
1967 21,9 15,2 20,7 38,3 18,6 ....

Média 26,0 26,4 22,5 36,5 18,3 23,9


O segundo requisito de qualquer processo acelerado de desen-
volvimento é a adequação quantitativa e qualitativa do sistema e-
ducacional. Não um ensino retórico e acadêmico, que acaba produ-
zindo, como na Índia, o fenômeno do literato desocupado. Mas uma
educação para as massas, voltada para a erradicação do analfabe-
tismo, para a generalização do ensino primário, para a tecnifica-
ção do secundário, e para o ajustamento das universidades às exi-
gências do mercado de trabalho.
O terceiro requisito é a racionalidade econômica e administra-
tiva. Nenhum país se desenvolve sem bons quadros administrativos,
nem enquanto as decisões econômicas se baseiam no emocionalismo
ideológico em detrimento da análise pragmática dos fatos. Um país
subdesenvolvido não pode partir do objetivo de minimização dos sa-
crifícios, mas deve esforçar-se por extrair desses sacrifícios o
máximo de rendimento. Nesse sentido valeria absorver a lição das
revoluções comunistas. Numa primeira fase, em que o movimento é
guiado por critérios predominantemente emocionais, a economia en-
tra em colapso pela irracionalidade das decisões, como aconteceu
na União Soviética nos dez anos que se seguiram à Revolução de
1917. Ao cabo de alguns anos os erros acabam sendo corrigidos
pois, afinal, o monopólio da inteligência não está concentrado no
Ocidente. Mas, no meio tempo, corre muito sangue e muito sacrifí-
cio inútil.
Essas observações nos devem pôr em guarda contra aquele tipo
de reformismo histérico, muito do gosto de esquerdistas e estrutu-
ralistas, segundo o qual o principal obstáculo ao nosso desenvol-
vimento está nas resistências contra a implantação das reformas de
base. É óbvio que o desenvolvimento exige mobilidade social e um
conjunto adequado de instituições (muitas delas, aliás, já vêm
sendo reformadas desde 1964), mas o tipo de pregação em causa en-
cerra três defeitos básicos: primeiro, o de salientar os aspectos
mais fáceis, e omitir os mais árduos da política de desenvolvimen-
to; segundo, o de envolver as reformas em critérios ideológicos,
ao invés de orientá-las numa direção pragmática; terceiro, o de
recomendar um distributivismo prematuro nocivo ao potencial de
poupança e à eficiência do trabalho.
Os exemplos citados mostram que o desenvolvimento acelerado é
compatível com várias alternativas institucionais. Mas nenhum qua-
dro institucional leva ao desenvolvimento se não estiver apoiado
no tripé poupança — educação — racionalidade econômica.

10.3 — Cinco Grandes Problemas

Em suma, para escapar ao círculo vicioso da pobreza relativa


precisamos enfrentar e solucionar cinco grandes problemas: o da
poupança, o da educação e tecnologia, o da explosão demográfica, o
da exportação e o da racionalidade econômica e administrativa.
Comecemos pelo problema da poupança. Pelas contas nacionais
estimadas pela Fundação Getúlio Vargas, entre 1947 e 1964 nossa
taxa média de investimentos (a preços correntes) limitou-se a
16,3% do produto interno bruto. Isso é bem menos do que aquilo que
tem sido sustentado pelos países que se desenvolvem aceleradamen-
te. É verdade que os critérios estatísticos talvez deformem essa
comparação internacional, primeiro porque a nossa conta de capital
parece subestimar as margens de comercialização embutidas no preço
dos equipamentos, segundo porque muitos países, contrariamente à
nossa praxe, levam os gastos de educação à conta de capital. De
qualquer forma temos que nos preocupar bastante com o problema do
fortalecimento da poupança. Como assinalamos no Capítulo II, no
decênio de 1950 pudemos contar com uma relação capital/produto ar-
tificial e excepcionalmente favorável pelo estilo extensivo da ex-
pansão da agricultura, pelos subsídios cambiais à importação de
bens de capital e pelo negligenciamento de certos investimentos em
infra-estrutura social. Essas condições, no entanto, não parecem
reproduzíveis daqui para o futuro, o que nos exige maiores sacri-
fícios de poupança para um desenvolvimento acelerado.
A técnica do fortalecimento da poupança é bastante simples,
embora exija extrema austeridade política. Supondo que não se de-
seje aumentar a carga tributária, que entre nós já é bastante pe-
sada, do lado do Governo cumpre comprimir as despesas de custeio,
subsídios e transferências, liberando maior parte da arrecadação
para o financiamento das inversões públicas. Do lado da empresa,
prestigiar o lucro e incentivar a sua reinversão. Do lado dos in-
divíduos, estimulá-los a economizar pela criação de instrumentos
atrativos no mercado de capitais (como vem sendo feito nos últimos
anos). Do lado externo, a criação de incentivos ao contínuo afluxo
de capitais estrangeiros. E, como base de coordenação de toda essa
política, o entendimento de que a maximização do bem-estar presen-
te, pelo distributivismo prematuro e pela prodigalidade salarial,
é incompatível com a maximização futura desse bem-estar.
O segundo grande problema é o da educação e da tecnologia. O
Capítulo VIII examinou em pormenores os progressos alcançados e os
vícios remanescentes em nosso sistema educacional. Daqui por dian-
te precisamos partir para a erradicação do analfabetismo, para a
generalização do ensino primário e para a ruptura do binômio repe-
tência-evasão; para a ampliação do secundário gratuito; para a re-
dução do seu academicismo pela criação do ginásio polivalente; e
para a transformação do secundário num valor terminal, com a mul-
tiplicação dos currículos técnicos. Dada nossa extensão territori-
al, a carência de professores, e a massa da população economica-
mente dispersa a ser escolarizada, a solução do problema envolve o
apelo a vários métodos pioneiros de ensino, com o apoio dos méto-
dos audio-visuais, da instrução programada, da rádio e televisão
educativas. Quanto ao ensino superior, pelos altos custos ele deve
corresponder a um processo seletivo. Nesse particular cumpre re-
formular o conceito de excedente, mensurando-o pelo déficit das
necessidades do mercado e não pelo superávit das inscrições nos
vestibulares. E rever a distribuição de verbas no ensino superior,
reforçando-as nos cursos técnicos (em particular para a criação de
carreiras curtas) e desestimulando a proliferação das universida-
des-prestígio, a fim de que não venhamos a padecer do mal da Ín-
dia, o do literato desempregado.
No que tange à adoção de uma tecnologia adequada às nossas ne-
cessidades de desenvolvimento, o problema depende em parte da su-
ficiente preparação de recursos humanos pelo sistema educacional,
em parte de uma opção convenientemente orientada de política eco-
nômica. Um país com carência de capitais e abundância de mão-de-
obra, como o nosso, deveria em princípio especializar-se nas téc-
nicas de produção "labor-intensive". Esse princípio básico, no en-
tanto, arrisca-se a conduzir a soluções simplistas. Às vezes, as
técnicas aparentemente adequadas para um país subdesenvolvido, pe-
lo uso intensivo do fator trabalho, fracassam por três razões:
primeiro, por não conseguirem obter um produto com as especifica-
ção técnicas desejadas (lembre-se a esse propósito a desastrada
experiência da produção de aço em fornos de quintal promovida na
China de Mao-Tse-Tung; não só o produto foi em grande parte inuti-
lizado pela sua precariedade qualitativa, como a descentralização
da produção exigiu gastos incríveis de transporte, para a congre-
gação das matérias-primas e a distribuição dos produtos finais);
segundo, por não gerarem um multiplicador suficientemente grande
de emprego no setor terciário; terceiro, por só se tornarem econo-
micamente adequadas ou com uma redução de salários reais ou com
uma elevação dos custos de capital pouco viáveis do ponto de vista
prático.
Contudo, o problema está longe de ser insolúvel. A experiência
do Japão mostrou como é possível conciliar as técnicas "labor-
intensive" com a obtenção de altos índices de produtividade — o
uso intensivo do fator trabalho não necessariamente significa a
adesão ao obsoletismo. É importante que pesquisemos alguns cami-
nhos análogos. Para tomar um exemplo concreto, alguns economistas
brasileiros, como Julian Chacel e Isaac Kerstenetzky, vêm se preo-
cupando com a pequena taxa de crescimento do emprego no setor se-
cundário, e o excessivo acúmulo de mão-de-obra nos serviços. Tendo
em vista a nossa explosão demográfica, recomendam esses economis-
tas a adoção de uma tecnologia agrícola capaz de reter em maior
escala a população nos campos. Não se trataria da reprodução do
modelo japonês, pois possuímos abundância de terras, mas da im-
plantação de uma tecnologia na agricultura que melhorasse a produ-
tividade pelo uso intensivo da irrigação e dos fertilizantes, mas
que não repelisse a mão-de-obra para as cidades pelo excessivo a-
pelo à mecanização. O problema precisaria ser estudado com maior
profundidade empírica, pois, como se assinalou anteriormente, a
produtividade do trabalho no setor terciário ainda constitui uma
grande incógnita. Mas esse é o tipo de sugestão digna de análise.
Fora isso, é essencial que a política econômica procure incentivar
os programas setoriais capazes de absorver vastos contingentes de
mão-de-obra, como é o caso do plano habitacional, e poderia ser um
plano de turismo.
O terceiro grande problema a enfrentar é o da explosão demo-
gráfica. Como assinalamos no Capítulo I, o que nos deve preocupar
não é a possibilidade de expandir o produto real a taxas superio-
res à da expansão populacional, o que parece bastante viável, mas
a recuperação do atraso de nossa renda per capita em relação à das
nações mais desenvolvidas, recuperação essa que dificilmente será
conseguida sem a redução das taxas de aumento demográfico. Como
ninguém cogitará de fechar o país aos progressos de medicina mo-
derna, a solução está em conter as taxas de natalidade. É possível
que se trate de um problema difícil, mas essa não é uma razão para
que fiquemos de braços cruzados aderindo ao fatalismo demográfico.1
Em primeiro lugar é preciso que se reconheça oficialmente a gravi-
dade do problema da explosão demográfica, o que até hoje não foi
feito (salvo, de uma forma discreta, pelo Programa Estratégico de
Desenvolvimento, mas em contradição com alguns pronunciamentos o-
ficiais). Em segundo lugar cumpre criar postos de assistência e de
instrução sobre a matéria, e livrar os anticoncepcionais da semi-
clandestinidade em que vivem. Por último, confiemos em que a téc-
nica bioquímica rapidamente evoluirá no sentido da popularização
dos anticoncepcionais mais práticos e acessíveis.
A expansão das exportações constitui o quarto problema funda-
mental a ser solucionado. Como assinalamos no Capítulo VI, a fór-
mula do desenvolvimento introvertido pode ser bem sucedida a curto
prazo, mas não constrói um caminho permanente de crescimento. Não
será fácil, para o Brasil, baixar consideravelmente o coeficiente
de importações nos próximos trinta anos. Isso significa que, se
não formos capazes de inverter a tendência declinante das exporta-
ções, teremos o nosso crescimento bloqueado pelo gargalo da capa-
cidade de importar. A primeira condição para esse aumento de ex-
portações é a manutenção de uma política cambial realista e a am-
pliação dos incentivos fiscais às vendas ao exterior (o que vem
sendo feito nos últimos tempos com bons resultados). A segunda es-
tá na melhoria dos serviços portuários, na desburocratização dos
canais de comércio e no aumento da agressividade das vendas. A
terceira consiste na revisão daqueles preconceitos, segundo os
quais não é desejável exportar produtos primários, ou que as ex-
portações se devam limitar aos excedentes não absorvidos pelo mer-
cado interno. A quarta condição é a retificação da nossa estrutura
industrial no sentido da melhoria da produtividade e do seu nive-
lamento aos índices de competividade internacional, retificação
essa lastreada no entendimento de que o aumento obsessivo dos ín-
dices de nacionalização muitas vezes conduz ao desperdício, e não
à economia de divisas.
Por último, o grande subcapítulo do problema educacional: uma
educação de elites que conduza o país à racionalidade econômica e
administrativa indispensável ao desenvolvimento. Infelizmente nem
temos a tradição de pensar a longo prazo nem a de raciocinar prag-
maticamente nas questões econômicas. A estreiteza dos horizontes
de programação nos levou à perda dos mercados externos pela valo-
rização artificial dos produtos, ao excessivo apego à inflação de-
senvolvimentista e ao endividamento internacional desordenado, e a
uma industrialização quantitativamente brilhante, mas em muitos
casos mal dimensionada e excessivamente onerosa. A falta de prag-
matismo levou-nos ao desperdício de inúmeras oportunidades de
crescimento e ao caos da produção e da moeda por volta de 1953. Ao
mesmo tempo ressentimo-nos da falta dos quadros administrativos
indispensáveis à boa execução de um programa de desenvolvimento.
Isso é verdade no setor privado, onde seria necessário refinar os
métodos de decisão dos empresários, e particularmente no setor pú-

1
(1) Há certa semelhança de posição intelectual entre os adeptos do fatalismo demográfico e aqueles que se queixavam
da incapacidade de o setor privado atender à demanda crescente dos serviços de utilidade pública, na época em que as
suas tarifas eram limitadas pelo critério da remuneração e da depreciação pelo custo histórico nominal. Inibia-se o mer-
cado por um cuidadoso sistema de desestímulos e dai se partia para a conclusão de que o mercado não funcionava.
blico, que peca pela excessiva centralização, pelo inútil desper-
dício burocrático, pela aversão à responsabilidade, e pela mais
volúvel descontinuidade das equipes dirigentes. É fora de dúvida
que, desde 1964, melhoramos consideravelmente os nossos métodos de
formulação da política econômica, a qualidade da administração pú-
blica e até a sofisticação dos empresários privados (que tiveram
que entender a correção monetária e se preparar para o combate à
inflação). Resta saber se alcançamos o equilíbrio estável. Parte
de nossas elites ainda se perde em discussões economicamente irra-
cionais e que nenhum proveito trazem ao crescimento do país. E a
racionalidade deve emergir como uma atitude espontânea das elites,
e não como uma imposição militar.
Nenhum desses problemas comporta soluções óbvias. Mas também
não houve país que construísse uma grande civilização sem enfren-
tar os mais árduos desafios. Confiemos em que as previsões do Hud-
son Institute, segundo as quais estaremos cada vez mais enredados
no círculo vicioso da pobreza relativa, não se cumpram para o nos-
so lado. Mas é o esforço de nossa geração, e não a inércia, que as
poderá desmentir.
APÊNDICE I

ÍNDICES DO PRODUTO REAL — RESULTADOS E DISTORÇÕES

O crescimento global da economia de um país mede-se convencionalmen-


te pelo aumento dos índices do produto real. Há casos, porém, em que cer-
tos efeitos estatísticos levam essas taxas de aumento a superestimar os
resultados reais do desenvolvimento. Tal superestimativa pode ocorrer pe-
la presença de alguns dos seguintes fatores:

a) a queda das relações de trocas com o exterior;


b) o desperdício de esforços na produção de bens que não são absor-
vidos pelo mercado;
c) a concentração de esforços na substituição de importações com
desvantagens comparativas;
d) a introdução de racionamentos no consumo de alguns bens ou servi-
ços.

Nos dois primeiros casos é óbvio que os resultados ficam aquém dos
esforços. O terceiro caso pode ser facilmente compreendido com um exem-
plo.
Suponhamos um país hipotético (bem à moda dos exemplos dos livros
textos) que produza e consuma apenas duas mercadorias: café e automóveis.
Admitiremos que o país possa exportar café e importar automóveis na razão
de 50 sacos de café para cada automóvel. Suporemos que o país também pos-
sa fabricar automóveis mas que agora, por desvantagens comparativas, a
relação de trocas interna seja de 80 sacos de café para cada automóvel
Admitamos que os valores da produção, exportação, importação e de
disponibilidade de bens sejam, em dois anos diferentes, os seguintes (ad-
mitiremos sempre o balanço comercial equilibrado a fim de que a disponi-
bilidade de bens corresponda efetivamente ao resultado obtido pela produ-
ção realizada no pais):

ANO 1:
Produção = 990.000 sacas de café + 200 automóveis.
Exportação = 190.000 sacas de café.
Importação = 3.800 automóveis;
Disponibilidade = 800.000 sacas de café + 4.000 automóveis.

ANO 2:
Produção = 1.030.000 sacas de café + 1.400 automóveis.
Exportação = 150.000 sacas de café.
Importação = 3.000 automóveis.
Disponibilidade 880.000 sacas de café + 4.400 automóveis.

Não é difícil perceber que no exemplo anterior o crescimento econô-


mico do país do ano 1 para o ano 2, medido em termos do resultado da pro-
dução (isto é, no caso, da disponibilidade de bens) foi exatamente de
10%; não há aí nenhum problema de agregação pois o exemplo foi construído
de forma tal que tanto as sacas de café quanto os novos automóveis dispo-
níveis aumentaram exatamente na mesma proporção.
No entanto, se calcularmos o crescimento do Produto Real a partir de
um índice construído segundo as regras usuais chegaremos a uma taxa visi-
velmente superior a esses 10%. Com efeito, quando calcularmos o índice
iremos ponderar café e automóveis na razão dos preços internos, isto é,
na proporção de 1 para 80. Designando por I2,1 o índice do produto real do
ano 2 em relação ao ano 1 resulta:
I2,1 = 1.030.000 + 80 X 1.400/999.000 + 80 X 200 = 1,135

Isso significa que, nas condições do exemplo acima, o índice do pro-


duto real cresceria de 13,5% do ano 1 para o ano 2.
Como se vê, um índice do produto real pode conduzir a uma superava-
liação do crescimento (em termos de resultado) de um país que substitui
importações com desvantagens comparativas.
Em última análise, esse tipo de distorção provém das diferenças en-
tre as relações de trocas internas e externas. Como os pesos se baseiam
nas relações de trocas internas, o índice do produto real passa a super-
estimar os efeitos das substituições de importações com desvantagens com-
parativas sobre o crescimento econômico do país, desde que se entenda que
o crescimento se deve medir em termos de resultados e não de esforços.
Assim, se um país deixar de produzir determinadas mercadorias de ex-
portação e, em contrapartida, substituir, com desvantagens comparativas,
as importações que poderiam ter sido pagas com aquelas exportações, o seu
índice de produto real crescerá. Parece pouco sensato, porém, admitir que
nessa hipótese o país se tenha desenvolvido.
Por último, o crescimento do produto real pode superestimar o aumen-
to do bem-estar coletivo quando o consumo de alguns bens ou serviços é
reduzido em virtude de racionamentos. Trata-se de uma sutileza teórica
que merece ser analisada.
A teoria do consumidor mostra que um indivíduo que não muda de gos-
tos melhora de situação do período 0 para o período 1 quando o índice de
Paasche das quantidades à sua disposição:

P = ∑ p1 q1/∑ p1 q0

for superior à unidade. A demonstração é bastante simples. Se P>1, então


∑p1q1 > ∑p1q0. Isso significa que as quantidades compradas no período 0
teriam sido acessíveis ao orçamento do indivíduo no período 1. Se ele
preferiu adquirir as quantidades (q1) é porque elas lhe propiciavam maior
satisfação do que as quantidades (q0) do período anterior. Em suma, o
consumidor melhorou de posição.
É fácil verificar que essa demonstração deixa de ser válida se algu-
ma das quantidades relativas ao período 1 diminuir em relação ao período
0 por força da imposição de racionamentos. De fato, nesse caso não mais
se pode afirmar que as quantidades do período 0 são acessíveis ao consu-
midor no período 1 (pois além das restrições orçamentárias há, agora, as
de racionamento). Com o auxílio de funções-utilidade ou curvas de indife-
rença é fácil construir exemplos em que o índice de Paasche do consumo é
superior à unidade e o indivíduo, pelos racionamentos, piora de posição
em relação ao equilíbrio inicial. Esse é o substrato teórico da afirmação
de que um índice de produto real pode superestimar os resultados do cres-
cimento econômico quando o consumo de certos bens ou serviços passa a ser
racionado.
APÊNDICE II

O ÍNDICE DE CONCENTRAÇÃO DE LORENZ

Um dos critérios mais conhecidos para a medição do grau de desigual-


dade das rendas individuais é o do chamado índice de concentração de Lo-
renz. Esse índice é calculado da seguinte maneira:
a) Classifica-se a população por ordem crescente de rendas;
b) calcula-se para cada percentagem da população, de 0 a 100%, a
percentagem da renda por ela auferida no total da renda da comunidade;
c) traça-se, como na figura abaixo, a curva correspondente a essas
percentagens, marcadas em abcissas as da população e em ordenadas as de
renda. Obtém-se assim uma curva convexa (ARC na figura abaixo);
d) calcula-se a área compreendida entre a curva ARC e a diagonal AC
(área hachurada na figura);
e) divide-se essa área pela do triângulo ABC. O resultado obtido é o
índice de concentração de Lorenz.

Embora algo convencional, o índice em questão dá uma idéia do grau


de concentração das rendas individuais. Numa distribuição inteiramente
igualitária, a curva de Lorenz se reduziria à diagonal AC, e o índice de
concentração seria igual a zero. Se toda a renda se concentrasse nas mãos
de um único indivíduo, a curva praticamente se transformaria no ângulo
ABC: o índice de concentração se tornaria igual a 1.
Um exemplo simples esclarece a metodologia de cálculo do índice em
questão. Admitamos que numa população se encontre a seguinte distribuição
de renda:

Percentagem
Renda indi- Renda total
da
vidual por grupo
população
10 10 100
20 30 600
30 50 1500
25 80 2000
10 150 1500
5 250 1250

A partir dessa tabela podem-se construir os seguintes valores acumu-


lados:
Percentagem
Percentagem
Renda total acumulada
acumulada
acumulada sobre a ren-
da população
da total
0 0 0
10 100 1,44
30 700 10,08
60 2200 31,65
85 4200 60,43
95 5700 82,01
100 6950 100,00

A primeira coluna da tabela acima forneceria as abscissas e a última


coluna as ordenadas da curva de Lorenz. O índice de concentração, no ca-
so, seria igual a 0,387 (38,7%).
APÊNDICE III

MODELOS DO CIRCULO VICIOSO DA POBREZA

Uma das idéias mais popularizadas nos primeiros estudos sobre desen-
volvimento econômico, elaborados por Gunnar Myrdal, e outros economistas,
foi a do chamado circulo vicioso da pobreza. Admite-se que um país é po-
bre porque poupa pouco; e poupa pouco porque é pobre.
É interessante desenvolver a idéia com certa sofisticação formal.
Quando se diz que um pais poupa pouco porque é pobre, admite-se que a ta-
xa de investimentos s(y) é função crescente da renda per capita y. Desig-
nando por v a relação capital/produto, a taxa de crescimento do produto
real se exprimirá por s(y)/v. Se a taxa de crescimento demográfico d é
tal que

s(y)/v = d

a renda per capita do pais realmente permanecerá estagnada, dentro da


concepção do circulo vicioso da pobreza. Por exemplo, se a taxa de inves-
timentos é de 9% do P.I.B. e a relação capital/produto é igual a 3 (medi-
da em termos anuais), a taxa de crescimento do produto real total será de
3% ao ano. Com a população se expandindo à mesma taxa, o produto real per
capita ficará estagnado.
O defeito desses modelos convencionados está em esquecer o problema
da estabilidade do equilíbrio. De fato, mantidas as funções e parâmetros
da análise, se a renda per capita se desviar um pouco para cima do nível
de estagnação, o círculo vicioso será rompido: a taxa de poupança aumen-
tará, o ritmo de crescimento do produto real ultrapassará o da população
e, ao invés do círculo vicioso, teremos uma espiral lentamente crescente
de renda per capita. Reciprocamente, se a renda per capita cair abaixo do
nível de estagnação, a tendência será a de uma baixa progressiva, e não a
de um retorno à posição inicial.
No decênio de 1950, vários economistas, como Harvey Liebenstein e
Richard Nelson, procuraram reformular os modelos do círculo vicioso da
pobreza, tentando explicar a estabilidade do equilíbrio ao nível da es-
tagnação da renda per capita. Como na análise tradicional, supõe-se que a
taxa de investimentos s(y) seja função crescente da renda per capita. In-
troduz-se, todavia, uma nova relação funcional: a taxa de crescimento de-
mográfico, ao invés de se tratar como variável exógena, é considerada
também dependente da renda per capita.
É importante esclarecer as hipóteses quanto a esta última relação de
dependência. Admite-se que a taxa de natalidade seja função decrescente
da renda per capita, caindo levemente nas primeiras etapas do progresso,
e mais acentuadamente nas fases subseqüentes (tendendo a um certo nível
mínimo assintótico). Supõe-se igualmente que a taxa de mortalidade caia
com o aumento da renda per capita, rapidamente nas primeiras fases e mais
lentamente nas posteriores. Como resultado da diferença de velocidades, a
taxa de crescimento demográfico variará, de acordo com a renda per capi-
ta, conforme a curva AB do gráfico abaixo: até certo nível de renda per
capita o ritmo de crescimento demográfico se elevará, pela combinação da
rápida queda da taxa de mortalidade com o lento declínio da de natalida-
de; a partir de certo ponto, as taxas de mortalidade quase se estabilizam
e as de natalidade declinam mais acentuadamente, com a conseqüente redu-
ção da taxa de expansão demográfica.
Em virtude do aumento da capacidade de poupança com o crescimento da
renda per capita, admite-se que a taxa de expansão do produto real varie
de acordo com a curva CD da figura. Se as duas curvas, a de crescimento
do produto real e de população, se cortarem como no gráfico apresentado,
o primeiro ponto de intersecção corresponderá a um equilíbrio estável
dentro do conceito do círculo vicioso da pobreza: qualquer aumento ocasi-
onal de renda per capita, embora gerando um adicional de capacidade de
poupança, tenderá a ser eliminado pelo aumento mais do que proporcional
da taxa de crescimento demográfico, e vice-versa. Assim, a renda per ca-
pita terá um baixo ponto estável de equilíbrio (ponto N do gráfico) pelo
efeito da "armadilha populacional". O círculo vicioso só poderia ser rom-
pido ou por uma contenção brusca da taxa de natalidade, ou por uma eleva-
ção abrupta da taxa de poupança, ou então por qualquer esforço crítico de
desenvolvimento que levasse a renda per capita além do ponto Q da figura.
APÊNDICE IV

EFEITO DO CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO NUMA FUNÇÃO COBB-DOUGLAS

No capítulo IV, ao examinarmos o efeito aritmético da explosão demo-


gráfica, tratamos o crescimento da população e do produto real como vari-
áveis independentes. Foi mencionado que os resultados numéricos se torna-
riam bem menos dramáticos se partíssemos de uma função de produção que
levasse em conta a contribuição do aumento da força de trabalho para o
crescimento do produto real. É interessante desenvolver esse exercício e
apontar as limitações de suas conclusões principais.
Tomemos por base uma função de produção do tipo Cobb-Douglas:

Yt = c (1 + i)t Kt" Lt1-" (1)

onde Yt = produto no ano t a preços, constantes;


Kt = estoque de capital no início do ano t;
Lt = população economicamente ativa no ano t;
i = taxa de crescimento do produto real devida às inovações e
progresso tecnológico;
c," = constantes.

Designando por yt = Yt/L7 o produto por trabalhador ativo, essa fun-


ção equivale a se ter:

yt = c (1 + i)t [Kt/Lt] (2)

Tomaremos em nosso exercício numérico i = 1,5% ao ano e a = 0,5, va-


lores aproximadamente compatíveis com a experiência brasileira. Daí re-
sulta:

yt = c 1,015t √Kt/Lt (3)

Tomando t = 0 é fácil verificar que a relação produto/capital inici-


al:

Mo = Yo/Ko = Loyo/Ko = c2/yo (4)

Aceitaremos o valor m0 = 0,5, também aproximadamente compatível com a


experiência brasileira. Resulta dai:

c = √0,5 yo (5)

ou seja:

yt = 1,015t √0,5 yo Kt/Lt (6)

Admitamos agora que:

a) a população ativa cresça geometricamente à taxa g por ano;


b) a taxa líquida de investimentos represente 12% do produto (o que
corresponderia a uma taxa bruta de aproximadamente 17%).

Essas duas hipóteses traduzem-se analiticamente pelas relações:

Lt - Lo (1 + g)t (7)
Kt+1 - Kt = 0,12 Yt = 0,12 Lt yt (8)
Tomando por base as três últimas relações é fácil verificar, com al-
guns algebrismos, que o produto por trabalhador ativo evoluirá de acordo
com a equação de diferenças finitas:

(1+g) y2t+i = 1,0302 y2t + 0,06 yo (l,0302)t+1 yt(9)

Com certo trabalho de cálculo (de preferência confiado a um computa-


dor) podem-se determinar os tempos necessários à duplicação e à multipli-
cação por doze do produto por trabalhador ativo:

Prazo (em anos) necessário à multiplicação


de produto por trabalhador ativo por:
Taxa de crescimento da popu-
lação ativa (% o.o.)
2 12

1,0 19 73
1,5 20 76
2,0 21 79
2,5 22 81
3,0 24 84
3,5 25 87

É fácil constatar que o efeito aritmético do crescimento demográfi-


co, no modelo acima, é bem menos dramático do que o apresentado no capí-
tulo IV, quando o aumento do produto real e da população foram tratados
como variáveis independentes. Até em termos relativos, o efeito é menos
pronunciado no prazo de dodecuplicação do que no de duplicação do produto
por trabalhador ativo. Esse aspecto resulta de uma peculiaridade da equa-
ção 8: qualquer que seja a taxa de crescimento da população ativa, a taxa
de aumento do produto por trabalhador tenderá assintòticamente para 3,02%
ao ano.
O problema é que a hipótese de que o mundo econômico se possa repre-
sentar por uma função Cobb-Douglas parece ainda mais irrealista do que a
suposição de que as taxas de crescimento da população e do produto real
sejam variáveis independentes. A valer uma função desse tipo, a explosão
demográfica em nada afetaria a relação incremental capital/produto (efei-
to-infra-estrutura social); sem qualquer aumento na disponibilidade de
fatores de produção (capital e mão-de-obra) o produto real cresceria es-
pontaneamente de 1,5% ao ano; e jamais se verificariam problemas estrutu-
rais de emprego: qualquer contingente adicional de mão-de-obra poderia
ser absorvido sem investimentos, pela simples realocação do capital já
existente.
Diga-se de passagem, ainda que fossem válidas as hipóteses envolvi-
das na função Cobb-Douglas, o declínio da taxa de expansão demográfica,
além do efeito aritmético assinalado, exerceria mais um impacto favorável
à melhoria da renda per capita: o de aumentar o coeficiente de ativação
da população (efeito-pirâmide etária) permitindo assim que a renda per
capita crescesse mais rapidamente do que o produto por trabalhador ativo.
Esse seria um efeito bastante sensível enquanto se estivesse desa-
celerando a taxa de explosão populacional.
APÊNDICE V

INFLAÇÃO E CRESCIMENTO ECONÔMICO — VERIFICAÇÃO EMPÍRICA

O objetivo deste apêndice é o de verificar se existe alguma evidên-


cia empírica de que a inflação brasileira tenha favorecido o crescimento
econômico. O exame será feito correlacionando-se certos indicadores do
desenvolvimento econômico com as taxas de inflação, testando-se a signi-
ficância dos coeficientes de regressão. Como a correlação se estabelecerá
entre parâmetros da mesma época, o que realmente se está verificando é se
há evidência de que a inflação tenha favorecido o crescimento a curto
prazo. Ainda que a resposta fosse positiva, seria possível cogitar que a
inflação prejudicasse o desenvolvimento num horizonte mais longo. Porém,
como veremos a seguir, nem essa resposta positiva pode ser obtida.

A) Relação entre taxa de crescimento do produto real e taxa de inflação

Tomemos as taxas de crescimento do produto real (y) e as taxas de


inflação (x) apresentadas no quadro 42 para o período 1921/1967. As taxas
de crescimento do produto real foram calculadas pela Fundação Getúlio
Vargas. Como taxas de inflação tornaram-se as do aumento do índice do
custo de vida no Rio de Janeiro até 1939 (na falta de melhor informação),
e as do aumento do índice geral de preços por atacado da Fundação Getúlio
Vargas a partir desse ano.

QUADRO 42
TAXAS DE CRESCIMENTO DO PRODUTO REAL E TAXAS DE INFLAÇÃO
(% a.a.)

Taxa de cres- Taxa de cres- Taxa de


Taxa de
ANO cimento do cimento do inflação
inflação
produto real produto real

1921 3,1 3,0 1945 2,9 15,1


1922 3,8 9,3 1946 8,1 14,5
1923 7,3 10,1 1947 2,1 6,3
1924 —1,7 16,9 1948 9,5 9,2
1925 —1,4 6,6 1949 5,6 9,0
1926 2,3 3,1 1950 5,0 13,4
1927 8,3 2,6 1951 5,1 19,8
1928 17,5 -1,5 1952 5,6 10,3
1929 2,7 -0,7 1953 3,2 15,1
1930 —3,4 —9,0 1954 7,7 30,3
1931 -6,4 -3,7 1955 6,8 13,1
1932 6,3 0,4 1956 1,9 19,2
1933 9,2 —0,9 1957 6,9 12,5
1934 6,0 7,7 1958 6,6 12,2
1935 -1,4 5,6 1959 7,3 37,7
1936 13,7 14,7 1960 6,7 30,9
1937 3,2 7,5 1961 7,3 38,1
1938 2,5 4,3 1962 5,4 53,3
1939 0,0 2,6 1963 1,6 73,5
1940 15,4 6,3 1964 3,1 91,6
1941 20,2 16,2 1965 3,9 51,2
1942 —0,3 18,1 1966 3,4 36,8
1943 6,5 19,3 1967 4,9 25,4
1944 -2,4 13,9

Fonte: Fundação Getúlio Vargas


Para o período 1921/1967 a equação de regressão obtida foi:

y = 4,90006 + 0,00165# ; R2 = 0,000039 (0,03887)

o número entre parênteses indicando o estimador do desvio padrão do coe-


ficiente de regressão. A comparação entre esse coeficiente e o estimador
do seu desvio padrão mostra que a regressão está longe de ser estatisti-
camente significativa. Aliás o coeficiente de explicação R2 é baixíssimo.
Para o subperíodo 1948/1967, obteve-se a seguinte equação de regres-
são:

v = 6,61759 - 0,04124# ; R2 = 0,206748 (0,01903)

O coeficiente de regressão negativo indicaria uma relação inversa entre


inflação e crescimento. Todavia, esse coeficiente não chega a ser signi-
ficativo a um nível de significância de 95%. O coeficiente de explicação
R2 continua bastante baixo, embora não tão ruim quanto na regressão para
o período 1921/1967.

B) Relação entre taxa de investimentos e taxa de inflação

Um segundo exercício que podemos desenvolver é o de correlacionar as


taxas de investimentos (y), a preços correntes e a preços de 1953, com as
taxas de inflação (x) no período 1948/1964. As taxas de investimento uti-
lizadas foram as apresentadas no Capítulo II. Como taxas de inflação usa-
ram-se as taxas de aumento do deflator implícito do produto interno bru-
to, estimadas pela Fundação Getúlio Vargas.
Para a taxa a preços correntes encontrou-se a equação de regressão:

y = 15,53457 + 0,02885#; R2 = 0,08128 (0,02504)

Como se vê, a regressão não é estatisticamente significativa, apre-


sentando um coeficiente de explicação muito reduzido.
Para a taxa a preços constantes, os resultados são ainda menos sig-
nificativos:

y = 14,50756 + 0,00693# ; R2 = 0,00350 (0,030161)

C) O Efeito-Poupança Forçada

Um outro exercício interessante é o de se verificar se há evidência


estatística de que a inflação tenha contribuído para o aumento da poupan-
ça do setor privado por meio do famoso mecanismo da poupança forçada. Pa-
ra isso correlacionaram-se as séries da poupança bruta do setor privado
(S), da renda disponível do setor privado (Y) e da taxa de aumento do de-
flator implícito (P) apresentados no quadro a seguir. A equação de re-
gressão obtida (para o período 1948/1964) foi a seguinte:

S = -10,8811 + 0,1461 Y + 0,3190 P ; R2 = 0,8191 (0,0470)(0,2482)

O coeficiente de explicação encontrado é satisfatório, devido à


clássica relação entre poupança e renda. O coeficiente de regressão cor-
respondente ao efeito-renda é altamente significativo. O relativo efeito-
poupança forçada no entanto, não é significativo a um nível de confiança
satisfatório.
QUADRO 43
ELEMENTOS PARA O CALCULO DA FUNÇÃO POUPANÇA

Poupança bruta do setor Renda disponível do se- Taxa de aumento do


ANO privado (S) milhões de tor privado (Y) milhões deflator implícito
NCr$ de 1953 de NCr$ de 1953 (%)

1948 22,1 262,8 3,9


1949 19,6 277,8 9,3
1950 33,1 313,2 11,9
1951 49,2 323,2 14,9
1952 55,7 343,2 8,9
1953 54,8 357,9 18,5
1954 61,0 388,8 20,4
1955 56,9 419,9 16,6
1956 70,0 426,5 25,3
1957 71,2 454,7 11,8
1958 46,2 471,7 16,2
1959 55,9 501,8 28,1
1960 51,6 518,4 25,6
1961 97,5 578,5 34,8
1962 104,4 616,0 49,2
1963 102,9 618,7 71,7
1964 107,9 649,3 90,8

Fonte: Valores calculados a partir das Contas Nacionais da Fundação Getúlio Vargas.

Como se vê, não há evidência empírica de que a inflação brasileira


tenha contribuído sistematicamente para a melhoria dos índices de cresci-
mento a curto prazo — e muito menos, portanto, para a aceleração do de-
senvolvimento a longo prazo. Essa é a conclusão que se extrai do fato de
não serem significativos os coeficientes de regressão apurados, em face
dos respectivos desvios-padrão. Talvez a metodologia das equações de re-
gressão possa ser criticada por partir da hipótese de que a relação média
entre as variáveis analisadas seja linear, e de que os desvios obedeçam a
uma distribuição normal homoscedástica. Em todo o caso ela representa o
melhor processo conhecido de verificação empírica das hipóteses econômi-
cas.
APÊNDICE VI

DIVIDA EXTERNA E BALANÇO DE PAGAMENTOS

Admitamos uma economia que tenha no início do ano 0 uma dívida ex-
terna igual a D0. Suponhamos que nesse ano as exportações do país sejam
iguais a X0 e o ingresso líquido de capitais estrangeiros a Ao. Designe-
mos por m a relação entre esse ingresso líquido e as exportações:

M = Ao/Xo

Suponhamos que as exportações e o ingresso líquido cresçam anualmen-


te à taxa i. No ano n as exportações serão expressas por:

xn = xo (1+i)n

A dívida externa no início do ano n será igual à do início do ano 0,


mais o saldo acumulado dos ingressos líquidos de capital estrangeiro até
o fim do ano n-1 (estamos incluindo na dívida os capitais de risco, além
dos de empréstimo):

Dn = D0 + A0 + A0(1 + i) + ... + A0 (1 + i)n-i

ou seja:

Dn = Do + Ao [(1+i)n – 1/i]

Segue-se daí que a relação dívida externa/exportações será, no ano


n, dada por:

Dn/Xn = i Do–Ao/Xoi(1+i)n + Ao/Xoi

Quando n tende para o infinito, essa expressão tende para o limite:

Lim Dn/An = Ao/Xoi = m/i


NÆ∞

Essa foi a expressão utilizada nas discussões do Capítulo VI. Seria


fácil demonstrar que, se o ingresso líquido de capitais estrangeiros
crescesse a taxa superior à do aumento das exportações, a relação dívi-
da/exportações tenderia para o infinito. Se ocorresse o contrário, a re-
lação em causa tenderia para zero (embora, eventualmente, pudesse crescer
numa primeira fase).
O estilo das projeções da seção 6.3 se inspirou na metodologia do
exercício acima. Admitiu-se que as exportações crescessem à taxa anual i,
partindo do nível de 2 bilhões de dólares em 1969. Teríamos assim, no ano
2000, o seguinte valor para as exportações de bens e serviços:

X = 2(1 + i)31 (1)

Admitiu-se também que o ingresso líquido de capitais estrangeiros


crescesse à taxa anual j, partindo de 300 milhões de dólares em 1969, e
atingindo assim no ano 2000 o nível:

A = 0,3 (1 + j)31 (2)

A renda líquida enviada para o exterior no ano 2000 seria igual ao


nível inicial de 300 milhões de dólares em 1969 mais 6% (taxa de juros)
sobre o ingresso acumulado de 1969 a 1999:
R = 0,3 + 0,018 [1 + (1+j) + ... + (l+j)30] (3)

Restaria, pois, para as importações de bens e serviços no ano 2000,


a seguinte importância em bilhões de dólares:
(4)
M = X + A - R

O limite do produto Y no ano 2000, calculado pelo critério do comér-


cio exterior, seria dado por:
(5)
Y = M/m'

m' designando o coeficiente de importações projetado para o ano 2000.


Partindo do nível de 28 bilhões de dólares em 1969, o produto real cres-
ceria à taxa:
31 (6)
r = √Y/28 = 1
APÊNDICE VII

DESENVOLVIMENTO E PROGRESSO TECNOLÓGICO

Os estudos sobre a relação entre desenvolvimento e progresso tecno-


lógico, geralmente, partem da hipótese de que o produto real Y de um país
evolua de acordo com a função de produção:
(1)
Y = f (K, L, t)

onde K representa o estoque de capital, L a força de trabalho e t o tem-


po. Supõe-se, usualmente, que a função de produção seja homogênea do pri-
meiro grau em relação ao capital e ao trabalho; isso, em virtude do teo-
rema de Euler, implica em se ter:
(2)
Y = (hY/hK).K + (hY/hL)L

Admite-se também que e função de produção melhore com o correr do


tempo em virtude do progresso tecnológico e das inovações. Tratando o
tempo como variável contínua, a taxa de crescimento espontâneo do produto
real,
(3)
J = 1/Y hY/ht

isto é, a taxa à qual cresceria o produto real se o estoque de capi-


tal e a força de trabalho não se alterassem, e denominada taxa de pro-
gresso tecnológico, exprime-se por:
(4)
1/Y dY/dt = 1/Y hY/hK . dk/ht + 1/Y. hY/hL.dL/dt + 1/Y hY/ht

Designemos agora por:

0Y = 1/Y dY/dt = taxa de crescimento do produto real.


0K = 1/K dK/dt = taxa de crescimento do estoque de capital.
0L = 1/L dL/dt = taxa de crescimento da força de trabalho.
gK = hY/hK.K/Y = elasticidade do produto em relação ao capital.
gL = hY/hL.L/Y = elasticidade do produto em relação ao trabalho.

é fácil verificar que na nova notação, as fórmulas (2) e (4) se exprimem


por:

gK + gL = 1 (5)

0Y = gK 0K + gL 0L + J (6)

Esta última fórmula decompõe a taxa de crescimento do produto real


em três parcelas: a contribuição gK 0K do aumento do estoque de capital; a
contribuição gL 0L do incremento da força de trabalho; e a contribuição
J da educação e do progresso tecnológico.
Na maior parte dos estudos econométricos sobre a matéria tem-se usa-
do uma função Cobb-Douglas com uma componente de progresso tecnológico:

Y = k e8t KgK L1-" (7)

k, ", 8 constantes, e designando a base dos logaritmos neperianos. As


séries estatísticas fornecem os valores Y, K, L. Os valores de k, 8 cos-
tumam determinar-se pelo método dos mínimos quadrados.
Na função Cobb-Douglas acima temos:
— elasticidade do produto em relação ao capital:

gK = "

— elasticidade do produto em relação à mão-de-obra.

gL = 1 - "

— taxa de progresso tecnológico:

J = 8

o que facilita bastante as conclusões estatísticas.

Um conceito importante associado à fórmula (6) é o de taxa de equi-


líbrio. Diz-se que o produto real cresce à taxa de equilíbrio, quando ele
está crescendo à mesma taxa que o estoque de capital. É fácil obter a ex-
pressão dessa taxa. Tomando 0K - 0L na fórmula (6) e substituindo gK por
1 - gL, de acordo com a equação (5) obtém-se:

0EQUIL = 0L + J/gL (8)

Um teorema importante é o que demonstra que, se forem constantes a


taxa de progresso tecnológico, a taxa de crescimento da força de traba-
lho, as elasticidades do produto em relação às quantidades dos fatores e,
ainda, a taxa de investimento:

S = 1/Y dK/dt = K/Y 0K (9)

então, a taxa de crescimento do produto real convergirá assintoticamente


para a taxa de equilíbrio.1 Segue-se daí que a taxa de crescimento do
produto por trabalhador ativo, convergirá para o limite:

0EQUIL - 0L = J/gL (10)

exclusivamente dependente da taxa de inovações e da elasticidade do pro-


duto em relação à mão-de--obra. Daí a observação de que seria impossível
sustentar permanentemente o crescimento da renda real per capita caso
cessasse o progresso tecnológico.

---------------

Fim!!!

Revisão: Argo – www.portaldocriador.org

1
A observação básica para demonstração do teorema é a de que 0Y - 0K será crescente, estacionaria ou decrescente con-
forme seja menor, igual ou maior do que zero.

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