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Alberto Aggio
Poucos foram os que reconheceram que ali se ensaiou uma perspectiva nova de se
propor a construção do socialismo. Para muitos, a via chilena ao socialismo foi vista, na época e
depois - em especial por boa parte da esquerda brasileira -, com tão-somente uma ilusão
reformista1[1]. Sem querer traçar aqui um painel exaustivo da literatura sobre o tema, parece-me
importante afirmar alguns pontos que nos ajudem na reflexão sobre inúmeras questões de
natureza política e também teórica que emergem da chamada experiência chilena.
1[1] Para a primeira tendência ver BITAR, S. Transição, Socialismo, Democracia: Chile
com Allende. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; para a segunda, ALTAMIRANO, C.
Dialética de uma derrota. São Paulo: Brasiliense, 1979. Para uma análise da literatura
sobre a experiência chilena ver especialmente o capítulo II de AGGIO, A. Democracia e
Socialismo: a experiência chilena. São Paulo, Editora UNESP, 1993.
Chile de Allende se configura como uma tragédia se sustenta na instituição de uma chave de
leitura na qual a história é vista como aproximação a um fim inexorável, impossibilitando que se
estude as intenções e estratégias, cálculos e erros, bem como o grau de responsabilidade dos
atores político-sociais envolvidos naquele processo, dimensões sem as quais não se explicariam
os três anos de governo, suas razões, suas vicissitudes, seus descaminhos.
Penso que nossa relação com o passado não deve ter um caráter tão instrumental.
Mesmo assim, não deixa de ser importante chamar a atenção para o fato de que, passados mais
de duas décadas do desfecho daquela experiência, a proposição de se caminhar para o socialismo
pela via da democracia parece algo consagrado nos projetos de qualquer esquerda que queira se
identificar como moderna e contemporânea, especialmente quando nos encontramos na situação
cristalizada de um mundo que conheceu o colapso do comunismo histórico.
A queda de Allende - e é inevitável começar pelo fim - foi o resultado de ações legais
e extralegais da direita chilena, com inegável apoio externo. Elas visavam desagregar
paulatinamente a legitimidade do presidente por meio de um duplo processo: ataque frontal à
legalidade das ações governamentais e, simultaneamente, estimulo ao recrudescimento da
polarização ideológica, objetivando a neutralização da Democracia Cristã (DC), partido que
ocupava o centro do espectro político. O objetivo era levar a situação para um ponto de
desinstitucionalização para em seguida desfechar o golpe final.
2[2] Ver principalmente PINTO, Anibal. Chile, un caso de desarrollo frustrado. Santiago:
Editorial Universitaria, 1958 e “Desarrollo economico y relaciones sociales” in VVAA. Chile
hoy. B. Aires: Siglo XXI, 1970.
Social (APS) da nova economia. De acordo com o programa da UP, objetivava-se: resolver os
problemas imediatos das grandes maiorias; garantir emprego a todos, com remuneração
adequada; libertar o Chile da subordinação do capital estrangeiro; possibilitar um crescimento
econômico rápido com o máximo desenvolvimento das forças produtivas; ampliar e diversificar as
exportações, abrindo novos mercados; e, promover a estabilidade monetária3[3].
Por esta razão, Allende mostrou-se, por todo tempo, preocupado em enfatizar o
objetivo e o percurso que deveria ser adotado. Dai sua insistência em pregar uma via política e
institucional para o socialismo. Nas palavras de Allende, isto seria possível através da conquista de
uma “legalidade socialista” que substituísse a “legalidade capitalista” mediante um processo de
transição integralmente dependente do realismo das forças políticas. A criação socialista no Chile,
de acordo com Allende, supunha um como fazer político-institucional que envolvia e dependia do
movimento de todos os atores políticos, das suas opções a cada passo, especialmente e
sobretudo da própria esquerda. Era esta, em essência, a sua via chilena ao socialismo4[4].
No entanto, a história não corrobora esta identificação. Mesmo que se tenha pautado
pela utilização de procedimentos democráticos visando a implantação do socialismo, a experiência
chilena apenas pode ser compreendida como uma tentativa de realização prática da via chilena,
uma vez que o projeto que a embasava nem sempre fora compreendido no interior da UP como
uma via democrática ao socialismo. A identificação entre via democrática e via chilena ao
socialismo não se configurou, portanto, como uma linha política clara e hegemônica nem no
governo nem entre os partidos que o apoiavam.
3[3] Cf. MARTNER, Gonzalo. El gobierno del presidente Salvador Allende, 1970/1973:
una evaluación. Santiago: PEDNA/LAR, 1988.
4[4] Cf. ALLENDE, S. Discursos. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1975.
Isto pode ser compreendido examinando-se a cultura política que informava os
partidos da esquerda chilena. Neste sentido, é importante enfatizar aqui que a estratégia defendida
por Allende apresentava-se como bastante inovadora para os dois principais partidos da esquerda
chilena, o PC e o PS. Para ambos, a necessária superação do Estado burguês no processo
revolucionário chileno se concluiria com o estabelecimento da ditadura do proletariado, única
situação em que se poderia pensar a implantação do socialismo.
Para o PC, contudo, devido à sua estratégia de revolução por etapas, a fase de
libertação nacional, na qual se inseria o governo da UP, deveria se processar sem alteração
substancial da institucionalidade vigente. Ultrapassada esta etapa, a questão da ditadura do
proletariado estaria colocada. Esta estratégia deixava em aberto se as conquistas democráticas
seriam consideradas como referenciais para a sociedade socialista que se queria construir ou se
seriam válidas apenas para o período de transição que precedia a conquista total do poder,
problematizando, aos olhos dos outros atores políticos, o projeto da via chilena concebido pelos
comunistas5[5].
5[5] Cf. FURCI, Carmelo. The Chilean Communist Party and the road to socialism.
London: Zed, Books, 1984.
6[6] Cf. WALKER, I. Del populismo al leninismo y la “inevitabilidad del conflicto: el Partido
Socialista de Chile(1933-1970). Santiago: Cieplan, n.91, 1986.
O discurso presidencial afirmou-se, assim, como uma estratégia própria, rejeitando
tanto a “revolução por etapas” quanto o “Estado paralelo”, embora compartilhasse outras visões
com os dois maiores partidos da UP. Em diversas oportunidades, Allende falou também de uma
“via socialista” para a superação do atraso - e nisto ele estava bastante próximo do seu partido.
Mas, a ênfase na manutenção das instituições sociais e políticas o aproximava taticamente dos
comunistas. Desta forma, a sua autonomia foi se definindo através de pontos de convergência
entre o PC e o PS, transformando sua liderança em elemento de equilíbrio do eixo comunista-
socialista, até que a realidade ruísse sob seus pés.
No entanto, esse elemento projetual, mais intencional do que dirigente de uma grande
política, perdeu poder de atração e eficácia no decorrer do governo, diluindo-se na imperiosa
necessidade de manter unida a coalizão de esquerda como forma de sustentação política. Do
ponto de vista prático, o que ocorreu foi que a via chilena ao socialismo de Allende acabou por
reduzir-se a um conjunto de operações táticas frente à economia e ao aparelho de Estado,
conformadas na chamada “via político-institucional” formulada com mais sistematização por Joan
Garcés, assessor político da presidência da República.
De toda forma, é importante deixar claro que a transição pela via socialista de que
falava Allende deveria se fazer no interior da legalidade existente, aprofundando e concretizando o
conteúdo democrático e formal do Estado, e ser sustentada pela mobilização de massas. Neste
sentido, a via socialista, de acordo com Allende, não poderia ser senão uma via democrática.
Allende supunha, contudo, que o processo se encaminharia para uma situação de ruptura,
transformando o Estado vigente em Estado antagônico ao capitalismo. A via socialista deveria ser
capaz, nestas circunstâncias, de articular simultaneamente criação socialista e resolução do
problema do poder como processos construtivos de desarticulação da dominação capitalista. Aqui
resoam ecos significativamente fortes do “socialismo de esquerda”europeu que, à época, criticando
o comunismo soviético e a direitização social-democrática dos partidos socialistas da Europa
Ocidental, procurava encontrar uma alternativa que vinculasse reforma e revolucão7[7].
7[7] Cf. AGGIO, A. Democracia e Socialismo: a experiência chilena. São Paulo: Editora
UNESP, 1993, especialmente o último capítulo.
No fundo, a questão era muito anterior às vicissitudes e aos problemas da esquerda
chilena conformada em ator governante a partir de 1970. Como se disse anteriormente, esgotado o
arreglo democrático 8[8] que havia possibilitado a modernização do Chile, o país iria viver, nos
anos 60, o ardor pelos cambios radicales fermentariam nos segmentos progressistas uma
verdadeira aversão às reformas. Quando a esquerda chegou ao governo através de eleições,
colocou-se diante dela o desafio de elaborar e levar à prática a construção de um “novo consenso”,
uma vez que era necessário enfrentar realisticamente os problemas que se avolumavam para que
se pudesse falar, também com realismo, em construção do socialismo.
Entretanto, o tempo não havia passado em vão. A esquerda chilena que foi ao
governo com Allende em 1970 - e muito particularmente aquela que permaneceu fora dele,
notadamente o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionario) - era não apenas utópica mas
escatológica9[9]. Prisioneira de categorias e esquemas abstratos, ela se moveu naquele processo
sempre através da lógica do enfrentamento de classes e esteve - contrariamente ao que pensava
Allende e uma parte do governo - inclinada permanentemente para a idéia de uma ruptura com o
ordenamento político, buscando definir a chamada “questão do poder”, para usarmos aqui a
linguagem da época.
Havia na esquerda chilena uma espécie de obsessão pelo socialismo e, por essa
razão, ela estruturou sua política mais em função dele do que da democracia. Isso levou a que se
mantivesse e se reproduzisse no interior da Unidade Popular os impossíveis compromissos entre o
que se anunciava - a transição para o socialismo pela via da democracia - e estratégias de “duplo
poder” ou “pólo revolucionário”.
Por outro lado, não há como negar que, no Chile de Allende, havia uma situação
inédita. Entre a ativação de massas e a preservação da ordem democrática residia, efetivamente, o
enigma da transição democrática ao socialismo que se propunha na via chilena. Entretanto, no
contexto de afirmação das “alternativas globais” que se estruturaram no interior das elites políticas
chilenas a partir dos anos 60, o desencadeamento pela esquerda de um processo de “anti-
revolução passiva” em relação ao padrão reformista construído desde o final da década de 1930
acabou por gerar um ambiente de antagonismo e polarização precisamente num momento de
8[8] A expressão aparece em TIRONI, Eugenio. El Liberalismo Real. Santiago: Sur, 1986.
9[9] Esta avaliação aparece explicitamente em MOULIAN, Tomás, “La Unidad Popular:
fiesta, drama y derrota” in GAZMURI, J. (org.). Chile en el umbral de los noventa.
Santiago: Planeta, 1988.
emergência de massas no cenário político. Ao ser concebido e implementado como uma via
socialista, isto é, como uma “alternativa global” e antagônica, tal processo favoreceu, contra todas
as intenções democráticas esposadas na via chilena, o cancelamento da ordem democrática
vigente no país, contribuindo para o seu colapso.
Conclusivamente, parece correto afirmar que a experiência chilena viveu, por todo
tempo, o desacerto entre um programa que, implementado pelo governo, não configurava uma
revolução e o maximalismo da sua esquerda, inclinada a ver o período como a ante-sala do
socialismo, quando não o próprio socialismo. O discurso da via chilena ao socialismo, por não ter
se tornado para os partidos da esquerda mais do que uma bandeira agitativa, acabou jogando no
sentido de manter e reproduzir o mencionado desacerto, tornando difícil a manutenção de uma
direção única por parte do governo encabeçado por Allende. Mesmo com todas as diferenças no
seio da esquerda, imaginou-se que tudo pudesse ser resolvido por uma injeção de vontade política
e, no plano econômico, pelo aquecimento do mercado (demanda efetiva), como resultado a ser
colhido pela implementação do programa governamental, onde supunha-se que estatização e
redistribuição reforçar-se-iam mutuamente. Na prática, entretanto, o que o programa implementado
pela UP objetivava não era mais do que a intensificação da integração social através de políticas
sociais populares, o aprofundamento da democratização e da participação políticas e a
continuidade da industrialização substitutiva, mediante o processo de nacionalizações e
estatizações10[10].
No Chile de Allende era muito comum, como uma espécie de justificativa diante das
decisões nada fáceis que se tinha de tomar, a utilização da máxima “se hace camino al andar”.
Hoje, torna-se imperioso adicionar que, de fato, o caminho do novo só se constrói ao caminhar ...
desde que a cabeça governe os pés.