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Dostoiévski e Nietzsche

Do homem-deus ao super-homem
In
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/nietzsche_dostoievski.htm

F.Dostoiévski
(1821-1881)

Os privilégios do homem excepcional

"[...] é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar


sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste
sentido, tudo é permitido [...] Como Deus e a imortalidade não existem, é
permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no
mundo a viver assim." - F. Dostoiévski - O diálogo com o demônio (in Irmãos
Karamazov, 1879)

O jovem estudante Raskolhnikov angustiava-se no seu pequeno quarto, na


verdade uma gaiola desbotada que o sufocava. Ali matutava como um ser
dotado de inteligência reconhecidamente superior, como a dele, estava
reduzido àquela vida miserável, sem tostão e sem futuro enquanto que,
naquela mesma cidade de São Petersburgo, a capital do império russo, à bem
poucas quadras dali, uma velha usurária, chamada Aliona Ivanovna podia
entregar-se livremente à exploração de desgraçados como ele.

Porque não eliminar aquele ser parasitário, inútil, e utilizar-se do seu dinheiro
para sair daquela situação apremiante, salvando também sua mãe e sua irmã,
reduzidas ao opróbrio? Foi nestas circunstâncias terríveis que o jovem
estudante desenvolveu sua doutrina do "direito ao crime", na qual todo aquele
que se sente além das convenções tradicionais acerca do bem e do mal, que
percebe-se mais forte do que os demais homens, na verdade tem "direito a
tudo", inclusive o direito de eliminar os que considera estorvantes e prejudiciais
ao seu objetivo, pois o homem extraordinário deve, obediente às exigências do
seu ideal, "ultrapassar certas barreiras tão longe quanto possível".

O surgimento do homem-idéia

Esta é a essência da novela que F. Dostoiévski publicou em 1867 com o título


de Crime e castigo. Uns anos depois ele manifestaria ainda seu fascínio por
este tipo de personagem, pelo homem-idéia, pelo ateu que vive de acordo com
suas próprias regras, indiferente ao sofrimento que suas ações possam
provocar. Esse personagem típico da era moderna reaparece em Os demônios,
de 1870, nas roupagens do jovem aristocrata, o barin Nikolai Stavroguin. Como
líder de um grupo subversivo (acredita-se que esse personagem tenha sido
inspirado no terrorista Netcháiev) que conspira contra as autoridades no seu
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lugarejo natal. Para atingir seu fim de atacar a ordem social todos os caminhos
são válidos, inclusive o premeditado e brutal assassinato de um jovem
conjurado arrependido. Tempos antes, quando morava na capital, Stavroguin
não hesitou em praticar pequenos roubos e em molestar sexualmente uma
menina.

"Se Deus não existe....."

Pouco antes de morrer, Dostoiévski voltou novamente ao homem-idéia pois


entendia-o como a encarnação maléfica das pulsões modernas; o ateísmo, o
liberalismo, o socialismo e o niilismo, que ameaçavam sua Santa Rússia
ortodoxa. Desta vez esse personagem ressurge nos Irmãos Karamazov, de
1879, na figura do filho mais velho de Fiodor Karamazov, Ivan. O pai, o velho
Karamazov, um incorrigível libertino, um canalha completo, terminou
assassinado por um servo, seu filho bastardo, chamado Smerdiakov, que
confessa a Ivan que o que motivou para o crime foi um artigo que soube ter ele
escrito no qual defendia a idéia de que "se Deus não existe, tudo é permitido".

Na inexistência de um Criador, de um grande ser moral, o homicida


Smerdiakov não se via um degenerado, nem mesmo um abominável parricida,
mas sim um daqueles homem-deus aos quais tudo é possível. Aterrorizado
pela confissão do seu meio-irmão, atacado por culpas mil, Ivan mergulha numa
febre nervosa em que, em meio a uma alucinação, até o demônio dialoga com
ele.

O ser ideológico

Dostoiévski foi o primeiro grande nome das letras do século passado a


perceber a emergência do moderno homem-idéia, dos seres ideológicos, os
quais vivem, matam e morrem em função de uma causa desvinculada de
injunções religiosas. Como cristão convicto, chegando por vezes ao
fundamentalismo, tentou combatê-los fazendo com que, em seus romances,
eles se vissem atacados por terríveis dilacerações depois de terem cometido
seus crimes, mostrando-os vítimas de delírios, de convulsões, tendo sua vida
transformada num inferno. O jovem Raskolhnikov entrega-se à polícia e, na
prisão, dá os primeiros passos para reencontrar-se com o Cristianismo. Nikolai
Stavroguin, deixando uma impressionante confissão, suicida-se, enquanto que
Ivan Karamazov simplesmente enlouquece, arrasado pelas conseqüências do
seu artigo ateu.

Nietzsche e o super-homem

Nietzsche, porém, um confesso admirador de Dostoiévski, quase no mesmo


momento em que o grande russo baixava à sepultura, em 1881, chegou à
conclusões totalmente opostas ao grande russo quando iniciou a redação de
Assim falou Zaratustra. A sua concepção de super-homem parece-me extraída
diretamente daquelas novelas.

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Ateu militante, Nietzsche tirou as conseqüências últimas do homem-deus, não
visualizando para ele nenhum grande tormento caso ele seguisse o seu ideário
até o fim. Ao contrário, previu e enalteceu o homem-idéia que, em função da
sua causa seria uma máquina de insensibilidade, trafegando, altaneiro, bem
acima dos preceitos morais do seu tempo. Fazendo novas regras restritas a
uma elite, o Übermensch teria seu comportamento a amoral regulado apenas
pela sua inata vontade de domínio - Wille zur Macht - e por uma compulsiva
sede de vida.

Uma nova ordem

Uma nova casta se formaria em torno de princípios e identificações comuns,


uma nova Ordem dos Templários, composta por seres que não só "saibam
viver mais além dos credos políticos e religiosos, senão que também hajam
superado a moral." Podiam fazer o que lhes desse na telha, sem receio de
qualquer tipo de punição supersticiosa. Nietzsche, antes de Freud, aboliu o
pecado.

E assim foi feito. Os homens-idéia do nosso século, os nazi-fascistas, os


comunistas, os liberal-imperialistas, transformaram nosso mundo numa grande
arena ideológica, eliminando dela tudo aquilo que, em algum momento, lhes
pareceu adverso, dissidente, parasitário, bizarro, nocivo, atrasado ou banal... a
maioria deles sem esboçar um remordimento sequer. Nietzsche, em essência,
nada mais fez do que transpor para a filosofia o discurso do demônio relatado
por Dostoiévski, o que não lhe causou nenhum constrangimento moral, porque,
afinal, se Deus não existe, também não há Satanás.

Nietzsche internado

Nietzsche (1844-1900)
Consta que Nietzsche foi internado depois de um estranho acidente em que se
envolveu em Turim, em janeiro de 1889. Ao ver da sua janela um pobre cavalo
ser brutalmente espancado pelo dono, interpôs-se entre o carroceiro e o
animal, envolvendo-o com um abraço, beijando-lhe o focinho em lágrimas.
Repetia, inconscientemente, a cena descrita no sonho de Raskolhnikov;
quando aquele, ainda criança, enlaça e beija a carcaça ensangüentada de uma
égua brutalizada por um bando de bêbados. Foi a última homenagem de
Nietzsche, já demente, fez à ficção de Dostoiévski. Conduziram-no primeiro
para um sanatório na Basiléia, do qual foi removido para Naumburg, aos
cuidados da mãe. Em 1897, com ela morta, sua irmã Elizabeth levou-o para
Weimar, onde faleceu em 25 de agosto de 1900.

NIETZSCHE: TRAÇOS O PENSAMENTO DE NIETZSCHE -


BIOGRÁFICOS - Acompanhe Os episódios da Comuna de Paris
algumas importantes passagens da foram fundamentais para o
vida do filósofo: seu nascimento, em acirramento das posições políticas
Röken; sua única paixão, Lou de Nietzsche, que o colocaram ao

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Salomé; a relação com Wagner e a lado dos antidemocratas, dos anti-
esposa, Cosima; a profetizção do socialistas, e contra todo e qualquer
Übermensh (super-homem); a tipo de pregação que visasse a
loucura em Turim; e a morte, igualdade, tornando-o um apologista
assistido pela irmã mais nova, da distinção.
Elisabeth, em Weimar.

AS INFLUÊNCIAS DE NIETZSCHE DOSTOIEVSKI E NIETZSCHE -


- Conheça as personalidades que Nietzsche foi grande admirador de
influenciaram o pensamento de Dostoievski, autor que inspirou-o
Nietzsche e saiba o que cada um com seu homem-idéia, que vive de
deles contribuiu na vida do filósofo. acordo com as próprias regras,
indiferente ao sofrimento que suas
ações possam provocar.

EM BUSCA DO SUPER-HOMEM - NIETZSCHE FILÓSOFO - A


Nietzsche profetizou para um futuro doutrina nietzschiana é anti-
adiante à sua vida a chegada de um intelectualista por excelência. Ao
super-homem, um messias que acentuar o ato, e não a reflexão ou a
colocasse a plebe em seu devido meditação, privilegia o
lugar e restabelecesse a associação "experimental". Se há indecisão
de "bom" e "justo" com "nobre" e entre Apolo e Dionísio, entre a razão
"digno", substituindo assim os tortos e a emoção, ele recomenda seguir o
valores do cristianismo. deus das bacantes.

NIETZSCHE: ESCULPINDO O NIETZSCHE, A CONSTRUÇÃO DO


INDIVÍDUO - A tentativa de prever ZARATUSTRA - Que motivo levou
os novos tempos da humanidade um ateu assumido como Nietzsche a
rendeu diversas e contraditórias fazer de um carismático líder
repostas de pensadores, filósofos e religioso do passado, Zaratustra, o
homens de letras. Qual seria o novo veículo da sua mensagem? Esse ato
paradigma do homem ocidental do mostra que o pensador alemão,
futuro? Para Nietzsche, certamente apesar de não ser mais cristão
seria o super-homem, um racional e intelectualmente,
egocêntrico que se oporia às carregava os traços de um filho de
multidões. pastor.

NIETZSCHE E A DECADÊNCIA - NIETZSCHE E O ASCETA - Nem


Para Nietzsche, a democracia mesmo a vida do homem santo, tão
representava um regime decadente. admirada e enaltecida pelo
Sua misericórdia para com os fracos cristianismo, escapou do arguto e
e doentes era um sinal de contundente olhar de Nietzsche. O
decomposição dos valores filósofo classificou a repúdia dos
superiores, que iam-se perdendo à ascetas aos prazeres da vida como
medida que o poder era transferido um exemplo da forma extrema da
para as massas. orgulhosa vontade de poder.

A MORTE DE DEUS - Laplace,


Kant, Strauss, Pasteur, Darwin e
Nietzsche estão entre os nomes
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daqueles que, de uma forma ou de
outra, contribuíram no século XIX
para o rompimento do homem com o
sobrenatural, desvendando os
mistérios que cercavam a
humanidade. O castigo e a redenção
dos homens não vinha de Deus,
mas de nós mesmos.

Nietzsche, traços biográficos

"...Sim já sei de onde venho...tudo o que tocam as minhas mãos se torna luz e
o que lanço não é mais do que carvão. Certamente, sou uma chama!" -
Nietzsche, 1888

Vida de cigano

Quem o conheceu naquela época, entre 1880-90, não deixou de se comover


ao vê-lo. Friedrich Nietzsche, devastado por uma miopia de 15 graus, andava
como que às cegas, tateando com as mãos ou com a bengala o perigoso
espaço embaçado que imaginava na sua frente. Desde que o aposentaram
precocemente aos 34 anos da Universidade de Basiléia na Suíça, deu-se a ter
uma vida de pobre cigano, arrastando-se de pensão em pensão, de quarto em
quarto, por cidades italianas (Gênova, Veneza, Sorrento, Turim), francesas,
(Nice) ou recantos suíços (como Sils-Maria). Se bem que nascido em Röcken,
em 15 de outubro de 1844, no coração da Saxônia, pode-se dizer que
Nietzsche passou seu tempo de adulto mais fora do que dentro da Alemanha.

O pai, um pastor, parece que talentoso, um monarquista convicto e preceptor


de princesas, batizou-o com o nome dos reis prussianos - Frederico. Deu-lhe o
nome e infelizmente também lhe legou uma estranhíssima doença. Era isso
que o fazia agora, homem feito, ver-se jogado na cama por dias a fio torturado
por pavorosas enxaquecas, seguidas de eternas indisposições estomacais e
tonturas de toda ordem.

Uma só escassa paixão

Foi este estado lastimoso que fez com que uma sua
conhecida Malwida von Meysenburg, uma dedicada
senhora casamenteira, não parasse de arranjar-lhe
encontros com umas moças que passavam por seu
salão. Era uma luta arrancar aquele misógino do fundo
da pensão em que estivesse para que fosse dar uma
passeio com alguma daquelas prometidas.

Lou Salomé rejeitou


casar com Nietzsche
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Por uma pelo menos ele se interessou - dizem que chegando à paixão - uma
jovem russa que vivia no Ocidente chamada pelo exótico nome de Lou Salomé
e por quem ele, inutilmente, se entusiasmou por uns oito meses no ano de
1882. Ela, mais tarde, casou-se com o poeta Rainer Maria Rilke, e também
freqüentou Freud, de quem se tornou discípula.

O caso Wagner

Seu melhor momento de relacionamento foi com Richard


Wagner e com a mulher dele, Cosima, quando freqüentou
assiduamente, em peregrinações de fim de semana, a
mansão do compositor em Tribschen, na Suíça. Amizade
que começou a desmoronar em 1878 quando farejou no
grande mestre sinais de concessões ao gosto popular e
acenos indiscretos ao cristianismo, religião a qual ele
devotou um ódio crescente. Ao Cristianismo e à idéia da
Wagner
Igualdade!
decepcionou
Nietzsche
Wagner, um egocêntrico assumido, queria que o iniciante Nietzsche (era trinta
anos mais jovem que o compositor) fosse uma espécie de arauto das suas
óperas e não um intelectual independente que "caminhasse junto a ele".
Nietzsche, anos depois, disse que os dois, ele e Wagner, eram dois barcos
navegando na mesma direção, encontrando-se aqui e ali, mas com rotas
diferentes, e que se não se davam bem entre as águas, seguramente o fariam
quando se encontrassem num outro lugar. Nos céus!

Um notável escritor

Durante mais de dez anos aquele esquisito professor alemão, que chamava a
atenção das pessoas por andar com um bigodão de cossaco, trancado com
seus livros e papéis em aposentos soturnos, dedicou-se a produzir candentes
escritos contra tudo o que era estabelecido e até mesmo o que consideravam
não convencional (como o socialismo e o feminismo). Poucos deixam de ler
uma página de Nietzsche sem uma forte impressão - a favor ou contra. E que
escrita! Ninguém como ele empunhara o alemão assim, a marteladas.

Um pensador impressionista

Nada de sistema ou de portentosos tratados, nenhum pedantismo caracteriza


os escritos de Nietzsche. Ao contrário, redigiu versos, aforismos, uma prosa de
parágrafos curtos, frases secas, certeiras, com extraordinária carga emocional.
Realizou uma façanha - era o primeiro pensador moderno da Alemanha a
abominar a paixão nacional pelo texto obscuro (religiosamente respeitada pelos
intelectuais alemães). Viu-se na pele de um novo profeta: um Zaratustra, o
velho mago iraniano, renascido bem no meio da Europa Ocidental. Alguém que
vinha anunciar a todos que uma Nova Ordem adviria. E nela, malgrado os
crentes, Deus não mais existia! O próprio homem como conhecíamos,
desapareceria.
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O profeta Zaratustra, voando
para Ahura Mazda (O Senhor
da Sabedoria)
O super-homem

Se foramos em algum dia remoto, como Charles Darwin sugerira, um macaco,


o homem de agora era uma ponte, uma passagem para um outro devir a ser: o
do Übermensh, o super-homem. Liberto dos entraves do bem e do mal, este
novo ser, um titã, um colosso egocêntrico, viria para a conquista futura do
mundo. Uma nova raça de homens, recuperando e restaurando as autênticas e
primitivas pulsões (bárbaras, violentas, extremadas) sufocadas pela moral
convencional e pela religião, levaria tudo de roldão.

Loucura e morte

Máscara mortuária de
Nietzsche

Paradoxalmente, disse num certo momento, que não queria discípulos. Era
serio? Teve-os aos magotes. Endoidou de vez em Turim, em janeiro de 1889,
quando acharam-no aos prantos abraçado num cavalo espancado. Durante os
dez anos restantes afundou-se numa densa névoa. Morreu na pequena
Weimar, a capital cultural da Alemanha, no dia 25 de agosto de 1900. A sua
irmã mais nova Elizabeth recolhera-o para lá em 1897, entendendo de que
somente o sítio de Goethe era suficientemente ilustre para acolher em seus
últimos dias o famoso e infeliz irmão louco.

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Nietzsche: influências

Arthur Schopenhauer (1788-1860) filósofo do


pessimismo, autor do Mundo como Vontade e
Representação, edição de 1844, que trouxe ao cenário
filosófico a importância da Vontade (Wille)

Jacob Burckhardt (1818-1897) historiador suíço, pioneiro


da história da cultura, autor de "A Civilização da
Renascença italiana", de 1860, que passou a Nietzsche a
idéia da construção histórica da individualidade.

Fédor Dostoievski (1821-1881) novelista russo, uma das


maiores influências literárias de Nietzsche, especialmente
pelo contraditório fascínio que o romancista revelou pelo
homem-idéia, pelo niilista, o homem sem Deus da era
moderna.

Richard Wagner (1813-1883) compositor alemão, autor


do mítico "Anel dos Nibelungos" (1853-1874),
transposição para a música da saga dos germanos.
Nietzsche viu nele um novo Dionísio, um deus da música.

Friedrich Nietzsche

Em busca do super-homem

A decadência da sociedade ocidental

Nietzsche tinha a firme convicção de que a sociedade européia em que vivia


estava atacada por profundos males, cujas sinais de decadência mais
evidentes revelavam-se: a) pela expansão do liberalismo (visto como doutrina
de uma burguesia senil e covarde, sem energia para reprimir a emergência
da nova barbárie); b) pela crescente demanda pela democracia feita por
sindicatos e pelo populacho em geral, ao qual se associavam movimentos
feministas e outros libertários ("porque, bem sabes, chegou a hora da grande,
pérfida, longa, lenta rebelião da plebe e dos escravos; que cresce e continua
a crescer"- Zaratustra, IV parte) ; c) pelo crescente império do mau gosto, no
teatro, na ópera, na música, exposto pela difusão e divulgação da arte popular

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("É que, hoje, os pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores...isso,
agora, quer tornar-se senhor de todo o destino humano. Oh, nojo! Nojo! Nojo!"-
Zaratustra - IV parte, 3)

Origens mais remotas da decadência

Deve-se ao cristianismo, segundo Nietzsche, a origem mais remota da


crescente debilitação da elite européia, na medida em que aquela religião
retirou dela, da antiga casta nobre, a capacidade de retaliação. Esta era
necessária para afirmá-la como poder, mas devido à pregação da tolerância, e
pelo exercício inútil da piedade, da compaixão e do perdão, a velha estirpe se
enfraqueceu, senilizou-se.

O cristianismo é uma religião de escravos que louvava a pobreza, a humildade


(dos pobres é o Reino dos Céus) e a covardia (dar a outra face), opondo-se à
ética dos fortes, dos senhores romanos. O ódio paulino ao sexo nada mais era
do que um disfarce do ódio que o cristianismo devota à vida, devido ao
sentimento de inferioridade intrínseca daqueles que se ressentiam contra os
seus dominadores. A influência dos evangelistas envenenou Roma,
contribuindo para a sua decadência ao fazer com que o senhores do império
perdessem o elã e a crueldade que era preciso para manter coeso o seu
domínio do mundo. Os conceitos de bem e do mal estão superados porque
Deus morreu, logo era preciso encarar a realidade e concentrar a atenção na
elaboração de uma outra ética que se baseasse apenas na força do caráter e
da personalidade do indivíduo.

O que fazer?

O príncipe-tirano,
um modelo do
super-homem
(gravura de S.Dalí)

A expectativa de Nietzsche, a única esperança que ele vislumbrou para evitar a


bancarrota da grande cultura ocidental, ameaçada pelo mau gosto do
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populacho e pela possível insurreição das massas (como correra com a
Comuna de Paris em 1871), era aguardar a chegada do super-homem. A ele, a
este novo messias, estaria reservada a tarefa hercúlea de enquadrar a plebe,
reprimindo seus anseios político e sua desqualificação estética. O super-
homem não existia na época em que Nietzsche viveu, mas profetizou sua
chegada para o futuro. Ele é quem executaria a transmutação dos valores,
fazendo com que "Bom" e "Justo" voltassem a ser associado a "Nobre" e
"Digno", e não mais a "Pobre" ou "Humilde", como ocorria na moral cristã.

Quem é o super-homem?

Este poderoso e tão popular personagem da imaginação nietzscheana derivou


do romantismo alemão (com sua incontida celebração do gênio, do indivíduo
dotado de virtudes incomuns) mas também da secularização da mitologia,
encarnada num Prometeu redivivo, já assinalado por Goethe. O gênio é uma
força irracional, um fenômeno da natureza, quase divino e absolutamente
extraordinário: assim o enalteceram Goethe, Fichte e Hegel (que afinal
conviveram com Napoleão Bonaparte). Ele encontrava-se bem acima dos
demais mortais, sendo característico dele usar os outros seres humanos
apenas como degrau para sua ascensão. É um forte, um aristocrata (não no
sentido de sangue, mas de personalidade), um colossal egocêntrico que faz
suas próprias leis e regras e que não segue as da manada. Mas o super-
homem pode ser visto também como o resultado último da uma concepção
evolucionista. Se, no passado remoto, como ensinou Darwin, fomos precedidos
pelos símio, sendo o homem do presente apenas uma ponte, o futuro seria
irremediavelmente dominado pelo super-homem.

No passado remoto No presente No futuro


O símio (forma primitiva O homem (ponte O super-homem (personalidade
de existência) para o devir) dominante do futuro)
Aproximando-se de Maquiavel

"Amo os valentes; mas não basta ser espadachim - deve-se saber, também,
contra quem sacar a espada!" – Zaratustra

Nietzsche, com sua admiração pelas personalidades fortes, determinadas a


tudo, alinhou-se a Maquiavel. Ambos manifestaram sua preferência pelos
homens titânicos que povoaram a época renascentistas. Audazes, egoístas,
incorrendo no crime e na mentira, artistas do embuste e do engano, vivendo
perigosamente entre a vida e a morte, aqueles tiranos, tais como Cósimo de
Medici (1519-1575) ou do seu pai Giovanni de la Bande Nere (1498-1526), que
eram capazes de, ao mesmo tempo que cometiam as piores barbaridades,
proteger, estimular e patrocinar, a mais esplendorosa manifestação artística
que a Europa conheceu - a cultura do Renascimento. Paralelo a eles,
compartilhando o mesmo cenário dos príncipes mecenas e condotieros
italianos, celebrou o artista-tirano, o aventureiro a la Benvenuto Cellini (1500-

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1571), que somava sua habilidade com a espada e o lidar com venenos com o
mais refinado bom gosto artístico. Logo, uma das conclusões que Nietzsche
chegou, ao interessar-se por aquelas personalidades, é de que em nome da
preservação e do deleite da arte superior, perene, magnífica, qualquer
sentimento ético ou humanitário passava a ser desprezível, senão mesquinho.
As atribulações daqueles príncipes, com os quais simpatizou, lhe chegaram ao
conhecimento por meio da cultivada amizade que ele estabeleceu com o Jacob
Burckhardt, um suíço, grande historiador da cultura grega e renascentista, com
quem ele privou na cidade de Basiléia a partir de 1870, e que escrevera um
ensaio clássico sobre o tema (A Civilização da Renascença italiana, 1860).

Cósimo de Medici,
exemplo do tirano
refinado
Influência de Darwin

O darwinismo, difundido largamente após a publicação em 1859 da "Origem


das Espécies", ensinou que a Natureza é amoral. A sobrevivência dos seres
existentes não é determinada por critério éticos, nem pelas regras do Bem e do
Mal. A seleção dos mais aptos não se faz obedecendo aos princípios morais,
mas sim pelo desenvolvimento da capacidade de sobrevivência e de
adaptação. As conseqüências morais lógicas extraídas dessa visão naturalista
da existência, aplicadas à sociedade em geral, conduzem à eugenia de Francis
Galton, não podendo ser outras senão em ter que concordar que somente os
mais capazes têm direito à vida. Aos fracos cabe um destino inglório: a morte
ou a submissão! - "o fraco não tem direito à vida". Nietzsche de certa forma,
ainda que com desavenças, elaborou a metafísica do darwinismo, fazendo da
sua filosofia uma espiritualização da teoria da seleção das espécies e da vitória
do mais capaz, apresentada pelo grande naturalista.

Influência de Dostoiévski

Nietzsche impressionou-se com a literatura de Dostoiévski, o criador do


personagem niilista radical que, por sua vez, era inspirado no raznochintsy, o
solitário homem-idéia, um produto sócio-político do Movimento Narodniki, o
populismo russo do século XIX. Personagem vivamente extraído da realidade
russa do tempo do czar, é um ateu e materialista que vive em função de uma
causa, a quem ele se dá integralmente, ao estilo de Netcháiev. Por ela, pela
causa, dedica a sua vida, fazendo ele mesmo suas regras: "Se Deus não
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existe, tudo é permitido"(Ivan Karamazov). Nietzsche, ao contrário de
Dostoievski, não lamentou o surgimento desse novo "animal-político", o niilista
que vaga pelo mundo como um lobo solitário a serviço de algo que ele mesmo
elegeu como razão de ser da sua existência. Exalta-o como um exemplo do
super-homem que não se detém perante qualquer prurido moral na
concretização dos seus objetivos, sejam eles quais forem. Ele, esse
personagem fantástico, assume na totalidade as implacáveis conseqüências de
um mundo sem Deus, tirando disso as devidas conclusões morais. Defendendo
a emergência de uma nova ética, baseada nas virtudes do homem superior, ele
vive completamente afastado das massas, sempre aferrado à sua tarefa de
impor uma nova atitude perante à vida.

A projeção de Nietzsche

O tirano não tem


palavra (gravura de
S.Dalí)

Politicamente, ele tanto foi acolhido por anarquistas, que na linha de Max
Stirner (1806-56), que celebravam através da leitura dele o individuo-absoluto
(o homem solitário, quase uma fera, que enfrenta a sociedade burguesa a
quem vota desprezo e ódio), como também pelos nazi-fascistas, com a
identificação com a teoria de uma elite de homens fortes dotados de vontade
de domínio (uma nova raça superior liderada pela besta fera ariana,
dominadora e implacável). Seja como for, em se tratando de política, são os
extremistas ideológicos quem cultuam Nietzsche, não os democratas. O
mesmo evidentemente não ocorre com os literatos e filósofos, tais como
Heinrich e Thomas Mann, ou, mais recentemente, com Michel Foucault, que,
independentemente das inclinações contra-revolucionária de Nietzsche,
reconheceram nele uma fonte inesgotável de percepções originais, estéticas e
existenciais, todas elas relevantes, e que muito contribuíram para a
compreensão do homem moderno e para os fenômenos artísticos e políticos
que acometeram o século XX.

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Nietzsche e os quadrinhos

Suprema ironia deu-se com a idéia do super-homem - tornada popular com a


ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder na Alemanha dos anos trinta -pois
terminou por cair no agrado popular (para bem possível escândalo de
Nietzsche se vivo fosse) Nos Estados Unidos, de imediato, surgiram uma série
de comics, de heróis em quadrinhos dotados de poderes extraordinários. O
mundo então foi inundado por uma enxurrada de curtas historias ilustradas que
fizeram por difundir e, claro, adulterar completamente o sentido original do
super-homem imaginado por Nietzsche. De certa forma, ocorreu uma incrível
metamorfose que fez com que uma ideologia elitista e exclusivista como a que
Nietzsche defendeu, acabasse, depois de apropriada pela indústria da cultura
de massas, por gerar um ícone cultuado pelas multidões de jovens anônimos
do nosso século. No final das contas as massas fizeram por canibalizar o
super-homem.

O super-homem,
cultuado pelas massas

Confluindo para o super-homem

"Eu assento minhas coisas no Nada" ("Ich hab, mein Sach' auf Nichts gestellt) -
Max Stirner - O Eu e o seu próprio, 1845

Podemos, em síntese, identificar quatro origens na configuração


nietzscheana do super-homem

Inspiração Fontes
Mitológica Prometeu, o titã que ousou desafiar os deuses Olímpicos,
(grega) passando a viver de acordo com seus princípios
Renascentista O príncipe maquiavélico, o tirano que utiliza-se
(italiano) operacionalmente dos valores morais em função do poder
O gênio, concepção do romantismo alemão, a grande
Romântica personalidade que se confronta com seu época e vem
(alemã) anunciar um novo tempo, uma nova época, indiferente aos
clamores contrários que provoca
Populista O niilista russo, o raznochintsy, aquele que estava fora do

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(russo) sistema de castas da Rússia Czarista e que, revoltado,
empenhava-se com fervor em torno da causa.

Nietzsche: esculpindo o indivíduo

Em busca do indivíduo

Quem seria doravante o novo evangelista, o que sairia pelo mundo afora
anunciando a chegada dos novos tempos e sendo ele mesmo o novo símbolo
disso? Visto que o sacerdócio se esclerosara ou se exaurira durante a grande
expansão ocidental, era preciso que alguém o sucedesse. As respostas foram,
como não podia deixar de ser, múltiplas e contraditórias. Pensadores, filósofos,
homens de letras de todas as latitudes, lançaram-se, cada um ao seu modo e
de acordo com sua veneta, a descrever esse novo "animal-político" que,
segundo eles, seria o novo paradigma do homem ocidental do futuro.

O Homem do Renascimento

Aretino(1492-1556),
um modelo do
individualismo (tela
de Ticiano)

Jacob Burckhardt, por exemplo, o historiador da cultura, encontrou-o na figura


do homem do renascimento, um tipo idealizado que emergira da complexidade
da vida política peninsular e da economia mercantil avançada que a Itália
possuía à época da Renascença. Para Burckhardt todas estruturas da Itália
daquela época funcionaram para ressaltar e proporcionar a ascensão do
indivíduo extraordinário: do tirano sem escrúpulo (como César Borgia), do
aventureiro-artista (como Cellini), do condottieri (com Don Corleone), o
comandante de mercenários, ou ainda o escritor satírico que sozinho, com sua
pena corrosiva aterrorizava o mundo do poder (como Aretino o fez). Em suas
palavras:

"Foi a Itália, a primeira a rasgar o véu e a dar sinal para o estudo objetivo do
estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de
considerar os objetos, desenvolve-se o aspecto subjetivo: o homem torna-se
14
indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado...[tal como] se elevara
o Grego em face ao mundo bárbaro. (...)No século XIV, a Itália quase não
conhece a falsa modéstia e a hipocrisia. Ninguém tem medo de ser notado, de
ser e aparecer diferente do comum dos homens." (Jacob Burckhardt - A
Civilização da Renascença italiana, especialmente na IV parte)

Um titã a serviço do Progresso

Para o Conde Saint-Simon (no "Do sistema industrial", 1820) e


seus seguidores, particularmente para Prosper Enfantin, este
novo elemento responsável por transformações radicais seria o
capitalista empreendedor e inovador - o capitão da industria que
com arrojo e visão destemida, descortinava, graças ao avanço
da ciência e a expansão da tecnologia, um quadro de progresso
para a humanidade através de obras espetaculares (tais como as
de Ferdinand Lesseps, que abriu para a navegação o Canal de
Suez, em 1869). O herói saint-simoniano era um titã de carne e Lesseps,
osso, lidando com finanças, liderando forjas de aço e colossais (1805-1894)
empreendimentos espalhados por um mundo ainda a ser o indivíduo
conquistado, ao mesmo tempo em que, cartesianamente, saint-
domava a natureza ao seu redor. Detestando o parasitismo da simoniano
aristocracia e do clero, ele também deveria "retificar as linhas
fronteiriças do bem e do mal". Esse moderno Messias do Progresso, do
"iniciador científico", do implantador da "sociedade industrial", não leva de
maneira uma vida imaginativa ou sentimental, senão que "uma sucessão de
experiências". Para tanto ele devia seguir algumas regras que o habilitem a
levar uma vida produtiva e criativa:

Regras do saint-simoniano

1º - Levar, enquanto ainda dotado de vigor, uma vida a mais original e ativa
possível

2º - Inteirar-se cuidadosamente de todas as teorias e de todas as práticas

3º - Recorrer a todas as classes sociais e colocar-se pessoalmente em cada


uma delas, mesmo as mais diferentes, chegando inclusive a criar relações que
não existiram antes

4º - Empregar a velhice em resumir as informações coletadas sobre os efeitos


que resultaram das suas ações, para estabelecer novos princípios sobre a
base deles

Fonte: Sébastien Charléty - "História del sansimonismo", 1969, pag. 18

15
O Niilista revolucionário

Destoando desses modelos, que afinal enalteciam as Artes e o Progresso, um


novo tipo de indivíduo começou a ser esboçado pela intelligentsia russa na
século XIX. O herói niilista, o raznochintsy, o tipo fora da classificação social
conhecida, que elegia, inspirado na filosofia do romantismo alemão e no
socialismo francês, a entrega total a uma causa como a razão do seu destino.
Ele desprezava os valores em que vivia, elegendo o nada (niil) como ponto de
afirmação e de partida.

Origem literária

I.Turgueniev (1818-
1883), difundiu o
niilista

Literariamente ele tornou-se um personagem fascinante desde que apareceu


na pele de Bázarov, na novela "Pais e Filhos" de Ivan Turguéniev, em 1862, e
principal responsável pela difusão da palavra "niilista". Dostoievski, a seguir,
apresentou-o como um radical que colocava-se acima da lei e de tudo o mais,
acreditando-se superior e com "direito ao crime", como o seu personagem
Raskhólnikov, no celebrado romance "Crime e Castigo", de 1867. Um lobo
solitário que rondava a sociedade aristocrática ou burguesa, imaginado mil
maneiras de levá-la a destruição, sempre pronto a apresentar planos de
regeneração social através da violência individual ou revolucionária. A arte para
ele, assim como estava, manifestação do supérfluo, só servia às classes cultas.
Era preciso engajá-la, fazer dela um instrumento de emancipação dos povos
agrilhoados. Só assim ela teria uma razão de ser.

16
O niilista, um perdido

M.Bakunin (1814-1876),
exemplo para os
niilistas

Acredita-se que a forma mais extremada desses niilistas foi assumida pelo
terrorista Sérgio Netcháiev (um seguidor de Bakunin, que, entusiasmado disse
dele "São magníficos esse jovens fanáticos, crentes sem deus, heróis sem
frases"). Ele, juntamente com Tkachév, expôs no "Programa das ações
Revolucionárias", de 1869, uma verdadeira cartilha do terrorista, o ideal do
comportamento niilista.

O Catecismo do Revolucionário

1 - O revolucionário é um homem perdido. Não tem interesses próprios, nem


causas próprias, nem sentimentos, nem hábitos, nem propriedades; não tem
sequer um nome. Tudo nele está absorvido por um único e exclusivo interesse,
por um só pensamento, por uma só paixão: a revolução.

2 - No mais profundo do seu ser, não só de palavra, mas de fato, ele rompeu
todo e qualquer laço com o ordenamento civil, com todo o mundo culto e todas
as leis, as convenções, as condições geralmente aceitas, e com a ética deste
mundo. Será por isso seu implacável inimigo, e se continua vivendo nele será
somente para destruí-lo mais eficazmente.

3 - O revolucionário deprecia todo o doutrinarismo: renunciou a ciência do


mundo, deixando-a para a próxima geração. Ele só conhece uma ciência: a da
destruição.

4 - Despreza a opinião pública. Despreza e odeia a atual ética social em todas


as suas exigências e manifestações. Para ele é moral tudo o que permite o
triunfo da revolução, e imoral tudo o que a obstaculizar.

17
5 - O revolucionário é um homem perdido. Implacável com o estado e, em
geral, com toda a sociedade privilegiada e culta, de quem ele não deve esperar
piedade nenhuma... Cada dia deve estar disposta a morte. Deve estar disposto
a suportar a tortura

6 - Severo consigo mesmo, deve ser severo com os demais. Todo os


sentimentos ternos e abrandados sentimentos de parentesco, de amizade, de
amor, de agradecimento e inclusive de honra, devem ser sufocados nele por
uma única e fria paixão pela causa revolucionária.

7 - A natureza de um autêntico revolucionário excluiu todo o romantismo, todo


sentimentalismo, todo entusiasmo e toda a sedução.. Exclui também o ódio e a
vingança pessoal. A paixão revolucionária convertida nele em paixão de cada
dia, de cada minuto, deve ser seguida pelo cálculo frio. (...) Liguemo-nos com o
mundo livre dos bandidos, o único autenticamente revolucionário na Rússia.

8 - Reagrupar este mundo numa força invencível; eis aqui a nossa


organização, nossa conspiração, nossa tarefa.

Fonte: Franco Venturi - El populismo ruso, 1975, Vol II, pag. 595-6

O super-homem de Nietzsche

Nietzsche (1844-
1900), o criador do
super-homem (óleo
de Baroda)

Chega-se por fim a idéia do super-homem (Übermensch) de Nietzsche, que


também constituiu-se numa formidável tentativa intelectual do idealismo e da
metafísica alemã (já presente no "Fausto" de Goethe, e no "Ich!" de Fichte) em
dar sua contribuição para a construção desse novo indivíduo que, para o
pensador, certamente emergiria no vindouro. Ele é pois um amalgama e
18
também uma síntese das idealizações anteriores. Porém o super-homem
nietzscheano não esboça nenhuma ação para prover as multidões, nem vem
para libertá-las de regimes injustos e opressores. É um egocêntrico, que, ao
contrário do herói niilista, irá tentar opor-se às multidões, às massas. Ele se
identifica com a força e com a soberba e não com o desvalimento e a tibiez.
Com o punho duro, fechado, que brada uma exigência ou uma ameaça, e não
com a mão trêmula e arqueada do pedinte. Ele é corpóreo, é sensual, ama a
vida e fascina-se pelo domínio, de si e o que exerce sobre os outros. Quer ser
grande, quer ser reconhecido, pois "o mundo gira em torno dos inventores de
valores novos: gira invisivelmente; mas em torno do mundo giram o povo e a
glória; assim anda o mundo".

As novas tábuas do super-homem

Despreza a religião cristã, com seu Deus morto, cuja ética ele considerou uma
espiritualização da antiga casta dos sacerdotes que se juntou à fraqueza, à
pobreza e à covardia da gente comum. O Cristianismo é uma teologia de
ressentidos, uma fé de enfermos e de desgraçados. Liberto das cangas
pesadas e inibidoras da moralidade cristã e burguesa em que foi educado e
formado, o super-homem, seguramente, irá forjar "com companheiros que
saibam afiar a sua foice" uma nova moralidade. Habitando "a casa da
montanha" ou a floresta, incessantemente superando a si mesmo, altivo como
a águia e astuto como a serpente que acompanham Zaratustra, o seu
anunciador, ele, com seus colaboradores, chamados de "destruidores e
desprezadores do bem e do mal", inscreverá "valores novos ou tábuas novas".
Ele é o devir a ser, ele é o futuro.

As características do super-homem
Como se Pela personalidade extraordinária e pelo caráter forte,
reconhece inquebrantável. Não pelo nascimento nem pela educação, mas
pela inequívoca presença e fascínio que exerce sobre os
demais. Por sua olímpica arrogância.
Onde ele se No futuro, no devir a ser, ele trará as novas tábuas não mais
encontra presas aos conceitos do bem e do mal
Qual a sua A casa da montanha, os altos picos, acompanhado pela águia e
morada pela serpente, bem distante da moralidade convencional e do
cristianismo
Quais as leis As que ele mesmo faz. O super-homem é o legislador de si
que obedece mesmo e o autor das suas próprias e exclusivas regras
O que ele O seu corpo, do qual não tem vergonha. Ele se exibe, se
ama mostra, aceita a sensualidade como natural e não tem a mínima
idéia do que é ou representa o pecado. A vida é proliferação e
exuberância, é domínio, amor e crueldade. Em seguida a isso,
ama os valentes, os corajosos, os que dizem sim a vida, os
audazes que não se prendem aos limites e não temem o
desconhecido.

19
Quais são Os sacerdotes, os pregadores da morte, seres vingativos que
seus detestam a vida e veneram o além. O cristianismo com sua
inimigos moral de escravos, de gente impotente e ressentida com a vida.
O que ele A canalha, o populacho, porque envenena tudo o que toca. O
detesta seu sentimentalismo mela tudo, tem bocarra grotesca e sede
insaciável. Chega a duvidar que a vida tenha a necessidade
deles. Não tem consolo para o corcunda, para o doente, para o
fraco e covarde. Quer que eles desapareçam, que sumam.
O que mais A idéia de igualdade defendida pelos democratas e pelos
odeia socialistas. O injusto é tentar fazer iguais os desiguais.

A Morte de Deus

O século XX foi o século da morte de Deus. Não só a ciência desprendeu-se


definitivamente de qualquer apelo ao sobrenatural, como a maioria das
constituições políticas dos novos regimes que surgiram afirmaram sua posição
secular e agnóstica, separando-se das crenças. Chegou-se até ao radicalismo
soviético que pronunciou-se como um Estado ateu. Se bem que a religião
ainda constitui um poderoso fator de mobilização das massas e um, até agora,
insubstituível apoio ético e moral, deve-se reconhecer que as elites modernas
deram as costas a Deus. Mas esse gigante da religião, da teologia e da
imaginação prodigiosa dos homens não morreu de uma vez só. Foi morto aos
poucos ao longo do século XIX, de Laplace a Nietzsche.

Deus criou o homem (Miguel Ângelo)

20
Deus, uma hipótese descartável

Ao enviar a Napoleão Bonaparte uma cópia do seu trabalho


Méchanique céleste (A Mecânica Celeste, 5 vols., 1799-1825),
o matemático Laplace, quando questionado pelo imperador
sobre o papel de Deus na criação, respondeu que "Je n'avais
pas besoin de cette hypothèse-là", que ele não necessitara da
hipótese da existência de Deus para edificar a sua teoria do
sistema solar. Com isso, com tal declaração arrogante, que fez
o gosto e deliciou Napoleão, aquele expoente maior da física
do Iluminismo rompia definitivamente com os elos dos seus Laplace, Deus
predecessores Galileu e Newton, que ainda ligaram o Todo- é uma
Poderoso à formação do cosmo e à sua preservação. hipótese
desnecessária

O agnosticismo e a humanização de Cristo

Se, no século XVIII, a Revolução de 1789 e a moderna ciência


francesa davam início ao banimento de Deus, na Alemanha a
pregação pelo afastamento do Todo-Poderoso das coisas do
mundo se fez pela verve da filosofia e, pasme-se, pela própria
teologia. Kant, com a sua doutrina agnóstica, que afastou as
coisas da fé de qualquer provável entendimento racional (fé e
razão atuam em esferas distintas, inconciliáveis), abriu caminho
para que a geração seguinte de cientistas e pensadores
passassem à crítica direta da religião. Sintoma disso foi a
Um Cristo humanização crescente da figura de Jesus, como deu-se na
humano obra de David F. Strauss, um teólogo. No seu Das Leben Jesu
(A Vida de Jesus, 2 vol., 1835-36), identificou a vida de Cristo
com a teoria do mito, entendendo o Evangelho como algo historicamente
datado, afastando qualquer elemento sobrenatural dela. Linha que foi seguida
na França pela monumental obra crítica de Ernst Renan, que a partir da Vie de
Jésus (A Vida de Jesus, de 1863), que se estendeu por dezessete anos, até
1880 quando a encerrou com Marc Aurèle et la fin du monde antique (Marco
Aurélio e o fim do mundo antigo), apresentando a mais completa interpretação
até então concebida da história do Cristianismo na ótica do positivismo.

21
Deus é alienação

O passo seguinte ao do doutor Strauss, ainda na Alemanha, foi


dado em 1841 por Ludwig Feuerbach com a publicação do Das
Wesen des Christentums (A essência do cristianismo), onde
assegurou ser Deus uma projeção dos desejos de perfeição do
homem. Vivendo em meio a infelicidade e na insegurança do
sentimento de morte, os humanos idealizavam um reino perfeito
nos céus, onde serão eternamente felizes e imortais. Era a
alienação do homem que criara a crença no Ser Supremo, Feuerbach,
sentindo-se depois oprimido por ele. O mesmo fenômeno diria Deus é
Marx (outro "matador de Deus"), engendrara a sociedade alienação
capitalista moderna, onde o Capital manipula os burgueses e
oprime o proletariado.

Darwin e o desencantamento do mundo

O seguimento dessa "luta contra Deus" - dentro do que Max


Weber chamou de Erzauberung, o desencantamento do
mundo iniciado por obra dos Iluministas - , deu-se com a
espetacular e escandalosa publicação dos trabalhos
científicos de Charles Darwin na Inglaterra. O On the
Origins of Species (A Origem das Espécies), em 1859,
seguida do The Descent of Mann (A descendência do
Homem), em 1871, implodiram a teoria bíblica da criação do
Homem e da Natureza. Duas obras, diga-se, que tornaram-
se os primeiros best-sellers científicos do mundo
contemporâneo, com milhares de leitores entusiastas. As
Darwin, profeta concepções de Darwin, desde então, causaram um abalo
das ciências irreparável nas crenças religiosas da elite pensante.
naturais

Não é Deus quem pune, é o bacilo

O arremate disso deu-se nas ciências naturais com as descobertas dos bacilos
e micróbios pelo doutor Pasteur, na França em 1863, e nas descobertas do
doutor Koch na Alemanha, em 1882. Eram microorganismos que estavam por
detrás dos processos de putrefação e das doenças, como tifo e a tuberculose,
que assombravam os homens daqueles tempos, e não nenhum desejo do Ser
Supremo em punir os pecadores.

22
Doutor Pasteur e doutor Koch,
o bacilo é o inimigo

Deus é a imagem do pai

Mas faltava ocorrer a morte de Deus em algo mais íntimo do


homem, na sua consciência, na sua psicologia por assim
dizer. Então veio Sigmund Freud. Em 1900, ele publica o seu
célebre Traumdeutung (A Interpretação dos sonhos), como
que anunciando para o século XX entrante o surgimento de
uma nova mentalidade. Todos os terrores e fobias humanas
nada têm a haver com as coisas do sobrenatural ou com os
mistérios da alma. Tudo se dá no reino natural. É em meio a
Totem, relação familiar, do nascituro com seus próximos, que todas
metáfora as emoções e neuroses se formam. Desejos primitivos, mas
primitiva da naturais, reprimidos ou sublimados, é que dão energia à
divindade mente e moldam o comportamento dos indivíduos. Deus,
assegurou Freud no Totem und Tabu (Totem e Tabu, 1913),
nada mais lhe parece do que a poderosa projeção da imagem paterna
incrustada desde cedo na mente humana.

Deus foi assassinado

Deste modo, quando Nietzsche anunciou que "Deus está


morto" no primeiro canto do seu Also spracht Zaratustra
(Assim falou Zaratustra), em 1883, nada mais fez do que
escancarar para o mundo literário o que já vinha sendo feito
há muito tempo no terreno das ciências naturais e sociais. A
lanterna de Diógenes que ele carregava apenas veio jogar luz
sobre o que já corria solto no meio da ágora, Deus havia
morrido. Os homens o mataram. Agora um nova raça de
Nietzsche:
eleitos, segundo este burguês visionário (a expressão é de
Deus foi
Helmuth Walther), deveria por si só suportar o peso desse
assassinado
crime, alçando-se a si mesmo como um novo homem, como a
superação do homem, como um super-homem

23
O pensamento de Nietzsche

Nietzsche em 1870
Em defesa da Cultura

Friedrich Nietzsche estava se recuperando em Basiléia, na Suíça, de uma


doença que o atacara na Guerra Franco-Prussiana de 1870 (ao prestar serviço
de assistência aos feridos do exército alemão), quando chegou-lhe uma terrível
notícia. Em março de 1871 a população de Paris havia se rebelado contra o
governo derrotado. Pior, os operários estavam pondo fogo nos grandes prédios
públicos e depredando as obras de arte espalhadas pela capital francesa, entre
elas a bela Coluna de Vendôme. Era a Comuna de Paris que havia sido
proclamada no dia 18 de março de 1871, que se tornaria um dos mais violentos
levantes populares da Europa do século XIX.

Foi um choque para ele. Ainda estonteado pelas informações que recebera,
refugiou-se na casa do historiador da cultura Jacob Burckhardt (1818-1897), o
célebre helenista e historiador da cultura, pesquisador da Itália renascentista,
que igualmente estava desconsolado. Acreditaram os dois amigos que toda a
arte ocidental estava ameaçada. Séculos de beleza estavam em vias de ser
totalmente devastados pelo vandalismo das massas parisienses revoltadas.

Os episódios da Comuna de Paris foram fundamentais para o acirramento das


posições políticas de Nietzsche. Onde Karl Marx viu um momento de bravura
popular, Nietzsche identificou o surgimento de uma nova barbárie que era
preciso deter a qualquer custo. A Comuna será, pois, o ponto de partida para
uma série de escritos que ele desenvolveu ao longo dos próximos vinte anos
seguintes e que o colocaria ao lado dos antidemocratas, dos anti-socialistas, e
contra todo e qualquer tipo de pregação que visasse a igualdade, tornando-o
um apologista da distinção.

24
A destruição da Coluna
de Vendôme
(Paris,1871)

Nietzsche como Anticristo

O ataque direto que Nietzsche desencadeou contra o cristianismo radicalizou-


se com o seu "O Anticristo" (Der Antichrist), mas foi inicialmente exposto na A
genealogia da moral (Zur Genealogie der Moral), de 1887. Argumentou que a
ética cristã era uma moral de escravos, de gente fraca e vil que havia, através
do cristianismo, desvirilizado o espírito senhorial e dominante dos aristocratas.
A origem desse processo, segundo Nietzsche, remontava à aos tempos da
Palestina ocupada pela raça romana, raça de senhores. Os judeus, impotentes
em poder livra-se deles, terminaram por aperfeiçoar a psicologia do
ressentimento provocando uma inversão dos valores. Tudo aquilo que era
"débil", "humilde", "medíocre", eles apresentaram como "bom", enquanto
palavras tais como "nobreza', "honra", "valor", foram vistas como "mal". O
resultado desse trabalho de sapador, feito por séculos de pregação cristã, foi o
enfraquecimento das energias vivificantes da sociedade ocidental,
especialmente das suas elites, na medida em que o "doentio moralismo
ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos".

A rebelião dos escravos

A rebelião dos escravos na moral se deu devido a sua impotência para destruir
com a escravidão (ou o seu avalista, o poder romano). A nova religião - o
cristianismo - tornou-se o instrumento deles para canalizar o seu ódio
impotente, um "ódio que tinha a contentar-se com uma vingança imaginária". O
produto desse ressentimento foi fazer com que os escravos, a "raça inferior e
baixa", tornassem tudo aquilo que fosse digno e nobre em algo pecaminoso.
Transformaram a prostração e a pobreza em virtude, e a abjeta covardia de dar
o outro lado da face em caso de agressão, num ato sublime de perdão.

25
Via, portanto, o cristianismo como uma doença maligna que havia atacado o
Império Romano, contribuindo para que ele sucumbisse vitimado por uma
espécie de "febre das catacumbas". E, pior, "a mentalidade aristocrática foi
minada até o mais profundo de si própria pela mentira da igualdade das almas;
e se a crença na prerrogativa da maioria faz e fará revolução - é ao cristianismo
que devemos sua difusão. São os juízos de valores cristãos que qualquer
revolução vem transformar em sangue e crime. O cristianismo é uma
insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: O Evangelho dos
pequenos tornado baixo".

Cristianismo, religião dos fracos (tela


de Mantegna)

A volta às energias aristocráticas

Portanto, os nossos conceitos de bem e de mal eram estratagemas dos


derrotados, que fizeram a façanha de substituir os valores superiores da
nobreza. Dessa forma retiraram dela, enternecendo-a com rogos de piedade, a
seiva necessária para aplicar uma política de mão firme para conter esse
moderno movimento neobárbaro, cuja carantonha havia emergido na Comuna
de Paris de 1871. O socialismo não passava de um "cristianismo degenerado
[...] o anarquista e o cristão vêm da mesma cepa [...]". Era preciso, pois,
primeiro, expurgar de si esta moral de gente covarde. Retornar às fontes de
energia aristocráticas, aplicar uma política da impiedade, onde somente o mais
nobre e o mais viril fosse tomado em consideração.

"Deus está morto!" Foi sua mais célebre proclamação. Como conseqüência, os
homens deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional
divulgada pelo cristianismo; um retorno "à ordem de castas, à ordem
hierárquica [...] para a conservação da sociedade, para que sejam possíveis
tipos mais elevados, tipos superiores - a desigualdade dos direitos é a condição
necessária para que haja direitos". Concluiu dizendo: "Quais são aqueles que
mais odeio no meio da canalha dos nossos dias? A canalha socialista, os
apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o contentamento do trabalhador no
seu pequeno mundo - que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança [...] a
injustiça nunca reside na desigualdade dos direitos, ela está na reivindicação
de direitos iguais".
26
Nietzsche e a História

Nietzsche rompeu também com a relação entre a Filosofia e a História que


havia sido estabelecida por Hegel, entendida esta última como uma crônica da
racionalidade. Considerava que "o excesso de história" parecia "hostil e
perigoso à vida", limitador da ação humana, inibindo-a. Devia-se ousar,
avançar perigosamente para o ilimitado, porque a racionalização histórica
levava o homem a "perder-se ou destruir seu instinto fazendo com que ele não
ouse soltar o freio do 'animal divino' quando a sua inteligência vacila e o seu
caminho passa por desertos. O indivíduo torna-se então timorato e hesitante e
perde a confiança em si..." terminando por fazer com que "a extirpação dos
instintos pela história transforma os homens em outras tantas sombras e
abstrações."

Instinto contra a Razão

Nietzsche recolocou claramente o confronto outrora posto pelos românticos


quando opunham os instintos - geralmente entendidos como uma manifestação
da pureza e autenticidade humana - à razão, símbolo do utilitarismo cinzento e
materialista.

Opunha-se, como conseqüência, à idéia de que os acontecimentos históricos


ensinavam os homens a não repeti-los, defendendo a teoria do eterno retorno,
de remota inspiração na filosofia pitagórica e na física estóica, que
compreendia a aceitação de periódicas destruições do mundo pelo fogo e seu
ressurgimento. Desta forma, não só tudo poderia acontecer novamente como
tudo poderia ser tentado outra vez.

Em busca do super-homem

A idéia da necessidade da formação de uma nova elite - não contaminada pelo


cristianismo e pelo liberalismo - e que ao mesmo tempo os transcendesse,
acometeu Nietzsche desde muito cedo. Pode-se dizer que já pensava assim
nos seus tempo do internato em Pforta. Já naquele tempo mostrou-se
obcecado pela formação de uma seleta falange intelectual responsável pela
transmutação de todos os valores, cuja obrigação e dever maior era a proteção
de uma cultura superior ameaçada pela vulgaridade democrática.

27
Desde jovem
fascinou-se pela elite

O pensamento de Nietzsche

O culto ao gênio

A teoria do surgimento futuro de um novo indivíduo que conjugasse o


abandono dos valores do bem e do mal com um ateísmo engajado, foi, de certa
forma, a evolução decorrente do culto ao gênio professado pelos primeiros
românticos. A teoria do gênio vai ser retomada por Arthur Schopenhauer que
irá expô-la num apêndice acrescentado ao seu O mundo como vontade e
representação, na reedição de 1844, onde, num certo momento associa o
homem genial à dimensão do Monte Blanc, que, do cimo das suas neves
elevadas, contempla olimpicamente o resto da humanidade, mantendo-se fiel
apenas " ao fim objetivo" ... "uma meta a ser atingida, mesmo que seja um
equívoco, mesmo que seja um crime".

Thomas Carlyle, um reconhecido admirador do romantismo alemão, também se


abeberou da idéia do gênio, adotando-a na sua concepção da história como
sendo o palco exclusivo da ação do herói, do grande homem, que num só
gesto ou ato altera o destino de milhões. Ela - a história - não passaria, pois, de
um grande gesto heróico, onde a personalidade magnífica domina inteiramente
o cenário da sua época. E, é claro, a figura do super-homem já estava
esboçada anteriormente em Novalis, Heine e Goethe e, mais remotamente
ainda, num dos diálogos de Platão.

28
A influência de Dostoievski

Dostoievski previu a
revolução niilista

Uma das influencias mais significativas que Nietzsche recebeu foi-lhe inspirada
pela leitura de Fédor Dostoievski (1821-1881). O escritor russo foi o primeiro,
sob o enfoque cristão, a detectar o perigo da emergência do homem - idéia, ou
do homem-deus enaltecido pelos românticos, desde os tempos de Fichte. A
moderna sociedade liberal e progressista ao atacar os valores religiosos , sem
se dar conta do perigo, abria uma brecha nos valores estabelecidos por onde
aflorava o terrível homem-idéia, o indivíduo ateu e materialista que devotava
sua vida a favor de uma causa, normalmente de inspiração niilista. Ele era um
perigoso abnegado e um obcecado que rompia com os valores da sociedade,
criando um universo ético próprio, só dele, totalmente afastado do cristianismo.

Nos romances de Dostoievski ele, este indivíduo perigoso, aparecerá no


personagem do jovem estudante Raskolhnikov, em Crime e castigo; na do
intelectual Ivan Karamazov de Os irmãos Karamozovi; e no príncipe Stavroguin
no romance Os demônios. Todos eles são descritos como esses homens-idéia
gerados pela modernidade que Dostoievski abominava e a quem ele reservou,
em todos as novelas citadas, um final infeliz, na medida em que os considerava
uns "perdidos de Deus".

Pois foi justamente este homem-idéia, esse ateu de novo tipo, que Dostoievski
via com angústia e apreensão, que se tornou o arquétipo do novo homem
moderno, é que foi o herói de Nietzsche. Ele, e somente ele, teria a coragem
de doravante assumir a realidade de um mundo onde Deus estava morto. Mas
isso estava longe de significar uma vida sem sentido como muitos moralistas e
homens de fé acreditavam. Bem ao contrário! O terrível dito de advertência de
Dostoievski de que "se Deus esta morto, tudo é permitido", que o russo
entendia como uma chamamento à licença, à desordem e ao crime, Nietzsche
entendeu como uma liberação. A possibilidade do indivíduo construir o seu
destino não mais tolhido por qualquer regra, por qualquer impedimento,
dilatava os horizontes para extensões impensadas.
29
A liderança do super-homem

E era exatamente nisso que estava o significado inaudito dos tempos


vindouros. Devia-se aceitar na totalidade um mundo onde uma nova ordem
deveria fatalmente imperar, na qual as novas regras, acima do bem e do mal,
seriam impostas por essa figura exponencial que era o super-homem.
(Übermensch), Este titã moderno, liberto de toda e qualquer ladainha cristã-
humanitária, desprezaria qualquer sentimento de arrependimento, varrendo de
dentro de si a fraqueza da piedade . Como Nietzsche deixou dito no "Humano,
demasiado humano"(Menschliches, Allzumenschliches): "Se o homem
consegue adquirir a convicção filosófica da necessidade absoluta de todas as
ações e, ao mesmo tempo, da total irresponsabilidade destas, se consegue
converter essa convicção em carne e em sangue, então desaparecerá também
este resto de remorso de consciência".

O manifesto de Zaratustra

A singularidade do pensamento ideológico e filosófico de


Nietzsche é que foi exposta por meio de um grande poema: Assim
falou Zaratustra (Also spracht Zarathustra), iniciado em 1883. Nele
o filósofo-poeta se apresenta atrás da roupagem do profeta
iraniano Zaratustra ou Zoroastro (que viveu ao redor de 600 a.C. e
que compôs o Zend-E-Avesta, dividido em cinco Gathas, ou
canções proféticas), anunciando a boa nova da chegada do super-
homem (após ter passar anos no alto de uma montanha, o profeta,
exilado numa caverna, para onde havia se retirado a fim de
meditar, tinha como companhia apenas uma águia e uma
serpente).
O profeta
iraniano que
Dali Zaratustra desce para vaticinar a vinda daquele que irá
inspirou
superar o homem: o super-homem. "Que é o macaco para o
Nietzsche
homem?" - pergunta o profeta àqueles a quem encontra na praça
do mercado da cidade, e responde: "Um motivo de riso e dolorosa vergonha. E
é justamente isso que o homem deverá ser para o super-homem: um motivo de
riso ou de dolorosa vergonha". E, mais adiante, diz ao povo que "o homem é
uma corda estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre um
abismo"... o homem é ao mesmo tempo "uma transição e um ocaso". Uma
nova era, de superação de antigos tempos está para vir "... não existe Diabo,
nem inferno", diz Zaratustra "a tua alma estará morta ainda mais depressa do
que o teu corpo; portanto não receies nada!"

As metamorfoses do espírito

Os homens, segundo Zaratustra, teriam passado por três metamorfoses do


espírito: foram primeiramente camelos, por carregarem em si as culpas do
mundo, o sentimento do pecado ensinado pelos religiosos. Depois tornaram-se
leões na medida em que se rebelaram contra esse passado de fadigas e
culpas ignominiosas, onde seus instintos puros eram condenados como
pecaminosos e, finalmente, assumiram a forma de crianças, na esperança de
30
renascer numa nova moralidade, distinta da anterior, livres dos preceitos
estabelecidos pelo bem e pelo mal.
O futuro é das águias

"Lembrem-se: Quanto mais alto planamos, menores vemos são as pessoas


que não conseguem voar". - Nietzsche

Mas esse devir radioso, liberto da moral passada, não é um lugar reservado a
todos "[...] Na árvore do futuro, construamos o nosso ninho; para nós os
solitários, águias deverão trazer alimento em seus bicos! E, como fortes ventos,
queremos viver acima deles, vizinhos das águias, vizinhos da neve, vizinhos do
sol: assim vivem os ventos fortes. E tal como o vento forte, quero algum dia,
soprar no meio deles [da canalha] e, com o meu espírito, tirar o respiro ao seu
corpo: assim quer meu futuro". Zaratustra detesta "os pregadores da igualdade"
que, segundo ele, não passam de " tarântulas e bem ocultas almas vingativas".
Concluindo não querer "ser confundido com esse pregadores da igualdade.
Porque, a mim, assim falava a justiça: os homens não são iguais".

A morada do super-homem é nas


alturas (cena dos Alpes)

O super-homem está no devir

O profeta não vê as características do super-homem entre os integrantes da


antiga nobreza. Eles também já foram contaminados pelo liberalismo ao
fazerem concessões políticas ao populacho (no caso, as primeiras leis sociais
e de previdência aprovadas por Bismarck no IIº Reich alemão). Portanto, o
super-homem ainda está por nascer e será identificado por sua integral e total
devoção aos princípios exclusivista que defende, pelo seu caráter de aço!

Não se fará reconhecido por nenhum atributo genético, por nenhuma


descendência aristocrática, mas sim pela consciência e poder que irá
naturalmente transbordar da sua pétrea personalidade. A missão dele será
partir "as velhas tábuas". Ele formará "uma nova nobreza, que se oponha a
toda a plebe e a toda a tirania e que escreverá novamente em novas tábuas a
palavra 'nobre".

31
Zaratustra esperançoso olha para a frente: "A minha águia está acordada e,
como eu, presta homenagem ao sol. Estende suas aduncas garras de águia
para a nova luz. Sois os animais certos para mim; eu vos amo. Mas faltam-me,
ainda, os meus homens certos!"

Maquiavel e Nietzsche

Maquiavel, o teórico do
amoralismo

Tal como Maquiavel encerrava O príncipe na expectativa de que surgisse na


Itália dilacerada do seu tempo uma figura magnífica, despida de preconceitos,
que lançasse mão de quaisquer recursos, mesmo que inescrupulosos, para
unificar o país ameaçado pelos bárbaros, Nietzsche-Zaratustra esperava o
mesmo na emergência de um super-homem.

Só que os temores da época de Nietzsche eram outros. Os novos bárbaros que


assustavam o Ocidente que ele pretendia defender eram as idéias
democráticas, o socialismo (que para ele eram sinônimos) o feminismo, o mau
gosto vulgar da nascente cultura de massas, que devia ser exorcizado.
Portanto, chegou mesmo a considerar - em nome da boa arte - a necessidade
da escravidão. Toda a beleza apolínea da arquitetura grega antiga e sua
imorredoura qualidade estética havia sido produto de uma sociedade
escravista. O Pártenon poderia dever muito à iniciativa de Péricles e ao gênio
de Fídias, mas também à chibata do feitor!

32
O pensamento de Nietzsche

O programa do super-homem

O grande programa do super-homem, portanto, estava pronto.


Tratava-se de uma abrangente reforma que procurava dar um
senso de propósito a uma existência na terra abandonada pela
deidade. Os interesses de poucos deverão ter proeminência
sobre todos os demais, a força do espírito sobrepujará a
fraqueza, a saúde do espírito sucederá qualquer tibiez, a guerra
dos espíritos substituirá a paz. Como conseqüência lógica disso,
as necessidades dos indivíduos excepcionais terão sempre César Borgia
precedência contra o espírito nivelador estabelecido pela (1475-1507),
gravitação imposta pela mediocridade. O mundo filisteu, o tirano
dominado pela pasmaceira da vida rotineira deverá dar lugar à exemplar
audácia, à dança, e à destreza intelectual. A de viver-se perigosamente.

A revolta contra o tédio

A pregação de Zaratustra foi entendida por George Steiner como uma


desconformidade, entre tantas outras, com a vida tediosa da sociedade
burguesa fin de siècle, onde o mundo aventureiro e belicoso do aristocracia
cedia espaço ao utilitarismo frio, prático e calculista, do homem burguês
ocidental. Uma época absolutamente banal na qual a sociedade científico-
positivista via-se crescentemente dominada pelo espírito liberal-igualitário, que
impedia o afloramento da individualidade singular, a emergência do grande
homem, da personalidade fora de série, que o profeta vinha pressagiar. Um
estado de espírito que encontrou sua melhor expressão no dito do poeta
Théophile Gautier: "Prefiro a barbárie ao tédio!"

A vontade de poder

Se Schopenhauer, um pessimista assumido, desenvolveu a teoria de que a


vida não tinha nenhum sentido racional e que todos nós éramos apenas
expressões da vontade, uma vontade de viver instintiva, animal, cósmica, que
estava entranhada na natureza e em nós, Nietzsche irá atribuir à vontade uma
outra dimensão. Influenciado pelas teses de Charles Darwin (1809-1882), como
a luta pela vida e a sobrevivência do mais apto, ele considerou a vontade
(Wille)como uma força positiva sobre o Homem, uma energia que mobiliza-o,
fazendo-o ultrapassar os obstáculos e vencer os desafios que se lhe antepõem.
Daí reduzir quase tudo na existência à luta pela vontade de poder (Wille zur
Macht).

A necessidade vital que o homem tem de sempre lançar-se compulsivamente


sobre os demais objetos da natureza e sobre o resto da sociedade visando o
seu domínio, estaria assentada na antiga premissa de que "cada um de nós
deseja, no possível, ser o senhor de todos os homens, e preferivelmente deus".
Esta vontade de poder é vital e amoral, independe de critérios éticos, é uma
espécie de pulsão incontrolável que faz com que o homem enfrente todas as
33
vicissitudes para saciá-la (concepção que foi recentemente reaproveitada por
Michel Foucault na sua "microfísica poder", e com a visão de que a sociedade
é um conflito permanente entre poderes, que transcendem a simples luta
política partidária e ideológica, englobando as políticas clínicas, da saúde
pública, dos sanatórios e das prisões).

M.Foucault,
influenciado por
Nietzsche

A política de domínio

Isto conduziu a que Nietzsche aceitasse e enaltecesse qualquer política de


domínio, acreditando-a inevitável. No Além do bem e do mal (Jenseits von Gut
und Böse), concluída em 1886, e que é de certa forma, a complementação final
em prosa do Zaratustra, afirma que "a vida mesma é essencialmente
apropriação, ofensa, sujeição do estranho e mais fraco, opressão, dureza,
imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido,
exploração".

A vontade dos mais fortes

Evidentemente que esta manifestação de vontade de poder, em sua plenitude,


só pode ser exercida pelos mais fortes. Aos fracos cabe a obediência
respeitosa ou aceitar o extermínio silencioso. Esta figura vitoriosa, altaneira,
que impõe sua vontade sobre tudo e todos, não pode ser constrangida pela
moral comum dos homens vulgares, dos preceitos seguidos pelas maiorias, ou
pelo imperativo categórico kantiano, que desejava tornar toda e qualquer ação
numa lei universal.

O mais forte faz suas próprias regras, estabelece para si qual é a melhor
conduta e não espera de forma nenhuma que os outros o sigam (é o "façam o
que eu digo e não o que eu faço" de Napoleão). Ele não deve estranhar se o
consideram duro e insensível, quiçá até desumano, pois estes são os atributos
34
do super-homem, que trafega soberbo no seu Olimpo particular e só tem
gestos generosos para com os demais na medida em que isto o enaltece ou
satisfaz.

Despreza "o covarde, o medroso, o mesquinho o que pensa na estreita


utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a
si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que
mendiga, e sobretudo o mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas
que o povo comum é mentiroso". Ao homem comum, ao fraco em geral, só lhe
resta a serventia de ser um degrau de apoio sobre o qual a figura de escol
deverá calcar em sua ascensão os cimos mais elevados de uma existência
superior.

Uma contra-utopia

Nietzsche de certa forma esboçou, com sua prosa impressionista, o que


poderíamos considerar como uma contra-utopia ou uma utopia direitista. Na
sociedade futura que imaginou, a harmonia seria estabelecida apenas entre os
que se consideravam iguais - a nova nobreza formada pelos super-homens -
que regeriam uma comunidade rigidamente hierarquizada, despida da moral
comum, dominada pela "besta loura" que exerceria sua autoridade baseada
numa impiedosa vontade de poder.

A obra de Nietzsche, sob o estrito ponto de vista político e ideológico, foi a mais
profunda e radical manifestação intelectual contra as grandes cartas e
documentos que se posicionaram pela e igualdade e liberdade que vieram à luz
na cultura ocidental, desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão
da Revolução Francesa, passando pelo Manifesto comunista de Marx e Engels,
até as leis sociais da sua época.

"Eu sou dinamite!"

A rocha do Lago Silvanaplate, que


inspirou Nietzsche

O próprio Nietzsche nunca deixou de ter consciência de que suas posições,


assumidamente radicais, teriam conseqüências terríveis nos anos vindouros.
35
Que para ele seriam tomados por uma reação contra-revolucionária de
dimensões espantosas. No Ecce Homo, por exemplo, a sua autobiografia
publicada somente em 1908, oito anos após a sua morte, reconhece: "Conheço
a minha sorte. Alguma vez estará unido ao meu nome algo de gigantesco - de
uma crise como jamais haverá existido na terra, da mais profunda colisão de
consciência, de uma decisão tomada, mediante um conjuro, contra tudo o que
até esse momento se acreditou, exigiu, santificou. Eu não sou um homem, sou
dinamite".

O Pensamento de Nietzsche

Nietzsche: as melhores biografias

"Vida de Frederico Nietzsche" ou somente "Nietzsche",


do francês Daniel Halévy, cuja primeira publicação é de
1909, tendo uma reedição ampliada em 1944. Na edição de
Lisboa tem 409 págs.

"Nietzsche" de Ivo Frenzel, é uma das excelentes edições


de livro de bolso, com gravuras e fotografias dos principias
locais onde o poeta e pensador viveu. Edição alemã de
1966.

"Friedrich Nietzsche" (Friedrich Nietzsche. Biographie) de


Curt Paul Janz, em 4 volumes, surgida em Viena em 1978.
Trata-se de uma das mais recentes, extensa e detalhada,
biografia do pensador. Divide-se em "Infância e juventude"
(vol. I); "Os dez anos de Basiléia" (vol. II); "Os dez anos
como filósofo errante"(vol. III); "Os anos de naufrágio"(vol
4). Só existe uma tradução em espanhol da Alianza de
Madri, e provavelmente é a mais alentada de todas, tendo
mais de mil páginas.

"Nietzsche: el aguila angustiada. Una biografia"(Der


ängstliche Adler. Friedrich Nietzsche Leben, Munique,
1989), de Werner Ross, tradução espanhola da Paidós, de

36
1994. Trata-se de uma complementação dos dois tomos
escritos por Heidegger, enfocando a vida mesclada à obra
do pensador. É também monumental, com 865 páginas, e
extremamente agradável de se ler.

Nietzsche filósofo

A filosofia mundana

A filosofia do super-
homem (ilustração de R.
Edney)

Coube a Kant definir a existência de dois tipos de filosofia, a académica


(comprometida com um sistema de conhecimento racional, presa aos
interesses específicos dos pensadores e dos profissionais), e a mundana, que
abrange a todos, que não tem limites em suas ambições. A primeira, é antes de
tudo um exercício técnico, professoral, a segunda, literário e ideológico,
geralmente provocando enormes ressonâncias na sociedade. Evidentemente
que Nietzsche preenche inteiramente o segundo quesito. A prosa dele poucas
vezes recorre aos conceitos reconhecidos como "oficiais" da filosofia
tradicional, quanto à terminologia científica ela quase sempre aparece nela
oculta atrás de uma roupagem poética ou mesmo sacerdotal. Viu a filosofia não
como uma atividade especulativa, um estiolado exercício intramuros feito por
um especialista, apartado das coisas da vida, mas "uma procura voluntária" até
das "coisas mais detestáveis e infames". Uma "peregrinação através dos gelos
e do deserto" atrás de uma "história secreta", por meio de "um olhar diferente
do que até agora se filosofou".

Uma filosofia para a ação

A filosofia dele não é apenas iconoclástica no sentido de propor a "quebra das


tábuas" ou de apresentar uma outra leitura da tradição do pensar ocidental
(quando, por exemplo, aponta Sócrates como "decadente"), também o é no
37
sentido do próprio filosofar. Nada mais distante dele do que a recomendação
estóica da ataraxia, a procura da quietude, do ócio reflexivo, do apartar-se das
paixões. Ou ainda da recomendação de Spinoza para que a conquista do
entendimento se faça sempre acompanhada de um não ao riso, ao deplorar e
ao detestar.

Ela, a doutrina nietzschiana, clama por movimento, é uma convocação a toque


de caixa e clarim de todas a energias vitais do indivíduo superior, ela mesma é
uma pulsão incessante. Neste sentido é anti-intelectualista por excelência. Ao
acentuar o ato e não a reflexão ou a meditação (que aliás é uma prática abolida
do seu receituário, por ter "sido posto em ridículo o cerimonial e atitude solene
do que reflexiona"), privilegia o "experimental", como ele mesmo definiu sua
filosofia (Vontade do Poder - 476). Se há indecisão entre Apolo e Dionísio,
entre a razão e a emoção, ele recomenda seguir o deus das bacantes.

Neste nervosismo para cumprir com a obra (com a qual todo seguidor de
Nietzsche obrigatoriamente deve comprometer-se), "uma máquina em
movimento contínuo", a racionalização torna-se um impedimento, um freio
intelectual a ser desativado ou destravado. Não que a razão seja dispensada
mas sim que ela apenas deverá servir como um instrumento da ação e não
para atravancá-la. Pode-se dizer que os símbolos mais precisos do seu
filosofar são a ponte (a travessia, o ir para o outro lado, o transcender), e o
trapézio (a busca do perigo, do risco, de tentar viver no limite máximo das
experiências possíveis), para fazer da vida uma grande aventura. Assim
despreza os que acusam-no de fomentar a hybris, o excesso de ação, a falta
de limites, o exagero.

Uma filosofia da solidão

Heidegger disse ter sido Nietzsche o primeiro a conceber metafisicamente o


momento em que "o Homem se apressa a assumir o poder na terra na sua
totalidade". Sobre esse novo homem, sobre esse super-homem, recaem pois
todas a responsabilidades. Ele não tem mais para quem apelar tal como o
último dos homens ainda fazia no santuário em ruínas do seu Deus morto.
Logo, deve fazer crescer dentro de si forças vitais e existências extraordinárias:
"Sobe, pensamento vertiginoso, sai da minha profundidade!".... "O meu abismo
fala. Tornei à luz a minha última profundidade!"(Assim Falou Zaratustra, III, 1).
Não poderá, esse espírito livre, ter contemplação com suas fraquezas, ter
compaixão dos outros ou de si lhe é inominável. A palavra de ordem é
endurecer! Fazer do seu interior, do corpo e mente, uma intransponível
couraça, capaz de desviar de si o sentimentalismo e a piedade. Para
Nietzsche, afinal, sempre pareceu inaceitável um Deus todo-poderoso que se
deixasse levar por preces, ladainhas ou louvores, dos humilhados e ofendidos.

Esse ser de Nietzsche tem um fim em si mesmo, ele é a fonte exclusiva da sua
energia, ele é o seu próprio consolo porque, afinal, "Deus está morto!" Mas de
onde extrair firmeza para o extraordinário desafio que é viver num mundo sem
38
Deus? A que reservas humanas recorrer? Justamente aquelas, as mais
ocultas, as que foram sufocadas pelos valores religiosos e pela racionalidade
dos metafísicos, as virtudes do instinto, da preservação, da agressão, "o lado
mais poderoso, mais temível, mas verdadeiro da existência, o lado em que sua
vontade mais exatamente se exprime"(Vontade de Poder - 476). Deve-se
explorar esse interiores, "nossas plantações e jardins desconhecidos" .. pois
"somos todos vulcões esperando a hora da erupção"(Gaia Ciência, I,9). Esse
titã solitário e viril, tal como um deus de si mesmo, busca então as alturas para
fugir do ar empestado pelas multidões e pelo agito dos mercados, procurando
lá em cima nas estratosferas a companhia das estrelas. É com ele que as
águias se identificam.

Um filosofia para quem habita


os picos elevados (foto:Monte
Olimpo, Grécia)

O homem é um devir

Seguindo a lógica de Darwin, que via as espécies em luta permanente para


manterem-se e adaptarem-se, afirmou que o homem "é um animal ainda não
definido", é algo que ainda está em construção. Não obedecendo ao desígnio
divino mas sim as suas pulsões e instintos de sobrevivência, de uma natureza
humana que ama lutar, o homem faz a si próprio. Fazendo do agón, do
combate, a sua razão de ser, até mesmo o conhecimento superior que adquire
resulta de um duelo, provido que foi pela faísca resultante do entrechocar da
espadas umas contra as outras. Ao redor dele tudo é um guerra civil, contra os
outros e contra as adversidades em geral. Ele é um perpétuo superador de si
mesmo.

Portanto, ele não vê na Natureza uma mãe dadivosa e boa como Rousseau a
imaginou, mas sim uma madrasta que ao mesmo tempo que lhe permite a vida
é avara nas suas benesses: exuberante na sua licenciosidade mas mesquinha
nos seus benefícios. Exatamente por isso, a conquista seja lá do que for tem
um preço e um sabor incomparável. A decisão de enfrentar as coisas porém
não é uníssona e nem traz resultados iguais. Alguns se decidem e vencem, os
fortes; outros não, os fracos, os covardes. Merecem eles viver? Cabe à árvore
da vida suportar em seus galhos esses frutos inúteis, bichados, estragados,
sem esperar que nenhum vento salutar os abale e os derrube?

39
A psicologia de Nietzsche

A teoria do ressentimento como expressão dos vencidos da vida é uma


apreciável, se bem que questionável, contribuição de Nietzsche à psicologia
moderna. Tomou-a da leitura que ele fizera do "O homem do subterrâneo", de
Dostoievski, um relato tortuoso de um misantropo neurótico. Se Hegel
estruturou sua concepção da hierarquia social e da formação do estado a partir
de um duelo primeiro, onde o vencido, para manter-se vivo aceitava ser
escravo e reconhecia no vencedor o seu senhor (ver "Fenomenologia do
Espírito", 1807), Nietzsche também irá remontar à esse hipotético duelo para
extrair outras conseqüências.

O embate dele se dá na Palestina no tempo da ocupação romana, quando a


casta de sacerdotes judeus, impotentes em derrubar o conquistador, destilou
para todos os lados o veneno do ressentimento. Tudo aquilo que era associado
ao romano, o que era nobre, altivo, corajoso, passou a ser denunciado como
"mau". Por outro lado, o que era vil, fraco e covarde, pareceu-lhes ser "bom".
Dessa forma, por meio dessa sutil e corrosiva artimanha, deram começo ao
trabalho de sapa visando atingir a solidez psicológica do vencedor. Passado
algum tempo, os vencedores, os nobres romanos, minados por esse discurso
dos cupins sacerdotais, deram-se por vencidos. Abandonaram ou abdicaram os
seus princípios, o que até então lhes dava coragem, capitulando finalmente
frente a barbárie invasora.

A linguagem do fraco

Havendo uma linguagem do forte, há por sua vez uma do fraco, uma linguagem
do rebanho - a amarga retórica dos cativos. É dela que deve-se precaver. Há
nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do
mundo e da sua vida aos outros. Incapaz de assumir a sua responsabilidade
pessoal (atributo apenas dos fortes), seja lá no que for, o medíocre, o pequeno,
o de " alma estreita", transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e
decepções a tudo o que está além e acima dele (em Deus ou no diabo, nos
nobres, no senhor, no patrão, etc..). O sentimento melindrado do rebanho,
expressão coletiva do ordinário e do baixo, volta-se então contra o que se
destaca, para o excepcional, acusando-o com dedos numerosos e trêmulos de
não ter fracassado e sucumbido na vida como os demais. Condena igualmente
"as paixões que dizem sim": a altivez, a alegria, o amor do sexos, a inimizade e
a guerra - enfim, "tudo o que é rico e quer dar, gratificar a vida, dourá-la,
eternizá-la e divinizá-la - tudo o que age por afirmação". (A Vontade de Poder -
479)

Interessa constatar que Nietzsche foi um arguto observador das terríveis


mazelas e distorções psicológicas que a dominação de um ser humano sobre o
outro provoca. De certa forma ele inverte o primado marxista de que as idéias
dominantes são as da classe dominante. Para Nietzsche, ao contrário, são os
dominadores que têm que precaver-se com as perigosas e debilitadoras idéias
40
dos dominados, pervertidas que foram exatamente por terem sido de alguma
forma oprimidos, o pegajosos lodo plebeu que tudo envolve, invade e abala.

Homem, um animal doente

O dominado, o pequeno, o plebeu, é um ser aviltado. Ele não tem palavra nem
se guia pela verdade. Vive de estratagemas, quase todos bem longe do que
poderiam ser considerados como dignos ou honrados. Isto, por sua vez, ira
fazer com que Nietzsche denuncie a existência de um universo externo ao
indivíduo superior, composto, acima dele, por um poderosos discurso moral,
religioso e metafísico, repressor, e, abaixo dele, pelo ressentimento do
rebanho, que faz com que as pulsões naturais, fonte das suas características
maiores que alimentam o seu talento e o seu desafio, impossibilitadas de virem
a se realizar, voltem-se para o seu interior, corroendo-o, aviltando-o,
sufocando-o. E o que diz essa acusação opressora? Que tudo aquilo que
percorre no íntimo do humano, que seus instintos e fantasias outras que lhe
são sugeridas nos seus sonhos, são em geral pecaminosos, indignos,
profanadores de uma pureza que ele deveria preservar para poder salvar-se.
Que, dizem-lhe mais, a busca do ser bem dotado pela afirmação pessoal e pelo
exercício legitimo das suas qualidades não passa de orgulho, de hybris, de
ambição desmedida. O resultado disso, dessa crueldade para com a própria
espécie, é que o homem, psicologicamente mutilado, "torna-se um animal
doente". É um ser eternamente atormentado por ter que viver com uma
carnalidade e sensualidade latente, exigindo coisas que ele sempre terá que
negar, ocultar, contornar e sepultar, obrigando-o a rastejar frente a deuses que
o julgam culpado.

Os negadores da vida

De certo modo, ainda que por outro ângulo ideológico, Nietzsche segue a
tarefa da Ilustração no seu combate ao sacerdote. Não se trata somente de
alguém que vive da exploração da superstição e da crendice dos simples, que
quer manter o povo na ignorância para usufruir de prestigio e poder que a
posição clerical lhe confere. O homem de preto para Nietzsche é algo ainda
pior. É um inimigo da vida, ele persegue com denodo toda e qualquer forma de
expressão de autenticidade, de criatividade, de sensualidade, denunciando-a
como fruto do orgulho e da arrogância, tratando-as como uma perigosa
manifestação do pecado. É, pois, toda uma cultura religiosa milenar, herdada
dos mandamentos judaicos e do clericalismo romano, estruturada nos
mandamentos do "Não!"( "Não invocarás ..não roubarás...não matarás, etc...),
que deve ser denunciada em favor de uma doutrina da afirmação, que enfatize
um altissonante "Sim!"

Ele, o sacerdote, a pretexto de salvar a alma, é o responsável pela doença do


homem. Com a morte de Deus, a existência do bem e do mal se volatilizou, a
prédica religiosa não tem mais nenhum sentido. Mantê-la apenas prolonga o
mal estar entre os humanos. Aconselhar, ainda assim a todos, a mansidão, a
humildade, a tolerância e a caridade, só avilta ainda mais as gentes, além de
envergonhar os homens de força e talento. Desconsiderando serem eles os
41
portadores de uma exuberância animal, inibem ou mutilam a mais autêntica
potencialidade criativa que possuem.

Conclama assim que Jesus Cristo, martirizado na cruz, ícone da dor e do


sofrimento, seja sucedido por Dionísio, o deus pagão da alegria, do delírio
místico, que vem para celebrar e regozijar-se com a vida, e a coroa de
espinhos que apresilhava a testa sangrada do galileu, substituída fosse pelos
jocosos chifres do deus-bode dos velhos pagãos. Que, enfim, o inspirador da
castidade, da abstinência e do jejum, desse lugar ao estimulador do frenesi, da
sensualidade e do exagero. Em termos freudianos trata-se da libertação do id e
do ego das imposições do superego.

Dionísio, o deus da
folgança

A posição da filosofia de Nietzsche

Habermas, expondo o confronto que estabeleceu-se na Alemanha do século


XIX entre as duas correntes opostas emergidas ambas da filosofia de Hegel, os
hegelianos de esquerda, ou jovens hegelianos (Marx, Bauer, Hess, Ruge, etc..)
e os de direita (Rosenkranz, Hinrichs e Oppenheim), viu em Nietzsche um
repúdio e uma superação delas. Para os hegelianos de esquerda tratava-se de
erigir uma nova sociedade que definitivamente ultrapassasse aquela em que
viviam, para os de direita, ao contrário, apontavam a religião e o estado, como
os únicos capazes de voltar a aglutinar uma sociedade civil ameaçada de
dissolução. Perfilou-se deste modo aquilo que Moses Hesse chamou de "o
partido do movimento" e o "partido da permanência".

Frente a esse verdadeiro cabo-de-guerra entre a revolução e o


conservadorismo, que dominou o cenário alemão da época de Bismarck,
Nietzsche, rejeitando o radicalismo revolucionário bem como o imobilismo

42
reacionário, dedicou-se a um trabalho de sapa para abalar os fundamentos
deles, negando-se a aceitar fosse o governo da massas como o regime dos
reis. A síntese disso foi o super-homem que, simultaneamente, afastava-se das
multidões e dos socialistas e desconsiderava os sacerdotes e os monarcas.

Partido do movimento Nietzsche e o neo- Partido da permanência


romantismo
Jovens hegelianos que Opõe-se a ambos , Hegelianos de direita, que
pretendiam converter a reservando ao super- apenas desejam manter a
filosofia numa prática homem um papel de dinâmica da sociedade
capaz de conduzir a dupla superação, da burguesa, desde que ela não
sociedade ao socialismo revolução e da reação corroesse os primados
e ao igualitarismo sagrados da religião e do
estado.

Hegel, o paradigma
da filosofia alemã
moderna

Os cinco termos capitais de Nietzsche

Termo Significado
Niilismo Expressão polivalente. Movimento intelectual e político do
(Nihilismus) século XIX, e também expressão usada por Turgueniev
para definir a descrença nas tradições religiosas e
institucionais até então vigentes. Os crentes do Nada (do
latim nihil) talvez fosse apropriado dizer, apesar de
paradoxal ou contraditório. Assim classificaram-se os
militantes do ateísmo, os anarquistas, os populistas
russos, e todos aqueles que se empenhavam em desafiar
as normas de comportamento e a duvidar ostensivamente
da religião e da existência de Deus. Uma das marcas da
modernidade.
Transvaloração Exigência da filosofia nietzschiana na recuperação dos
(Umvertung aller valores nobres perdidos, fazer do "mau" voltar a ser
Werte) "bom", elogiar o orgulho, a vaidade, a soberba e a
arrogância humana, e até o desejo de vingança, desprezar
43
o que é vil, o que é fraco, o que é humilde, o que recende
à ralé. Inverter totalmente os valores éticos do
cristianismo, reabilitando os antigos valores esgotados da
cultura. De certa forma é a restauração do ethos pagão
que girava ao redor do herói e do guerreiro intrépido.
Super-homem Teoricamente aquele que irá superar (Über) o homem. Um
(Übermensch) novo ser que, trazendo as novas tábuas, assumirá na
totalidade a responsabilidade de viver num mundo ausente
de Deus. Caracteriza-se por sua determinação absoluta,
pela confiança em sua intuição, pelo seu caráter
inquebrantável, por uma solidão ativa, corajosa, e sem
concessões no tocante a sua meta (Werke). Ele é um
criador, um duro, que não se deixa tomar pela compaixão,
dele é o devir.
Vontade de Trata-se da pulsão permanente pela vida e pelo domínio.
potência (Wille zur Requer a mobilização completa das energias, físicas e
Macht) mentais, para incessantemente conduzir as coisas às
últimas conseqüências. Wille zur Macht é o domínio e a
superação de si, das debilidades, e, também domínio
sobre os outros e sobre a natureza. A vontade liberta
porque é criadora.
Eterno retorno Repto nietzscheano à idéia do progresso dos
(ewige Widerkunft) evolucionistas; à divisão em três etapas da história dos
positivistas; à crença do cristianismo na salvação da alma,
nascida em pecado e redimida pela graça. É uma
retomada da concepção cíclica (ciklós) dos pitagóricos e
dos estóicos que viam um eterno perecer e renascer da
natureza e da história. Tudo que houve exaurido o Grande
Ano, voltará a ocorrer, intermediado pelo fogo e pela
destruição periódica.

Nietzsche, Sócrates e o pragmatismo

44
Richard Rorty
Publicado originalmente no South African Journal of Philosophy, n. 10 v. 3,
1991
Traduzido por Paulo Ghiraldelli Jr.

Todas as citações dos textos de Nietzsche foram vertidas do inglês, conforme


tradução do alemão feita por Rorty.

Nietzsche, Socrates and pragmatism

Abstract: Nietzsche's views of truth and knowledge are often trought to be


incompatible with political liberalism. But these views are pretty much the same
as those of William James and John Dewey, who were right to see no such
incompatibility. The pragmatists, like Nietzsche, wanted to drop the congnitivism
which has dominated western intellectual life since Plato, but, unlike Nietzsche,
they wished to do so in the interests of an egalitarian society rather than in the
interests of a defiant and lonely individualism.

Key-words: truth - democracy - pragmatism – contingency

Resumo: As perspectivas de Nietzsche sobre a verdade e o conhecimento são


freqüentemente pensadas como incompatíveis com o liberalismo político. Mas
essas perspectivas são quase as mesmas que aquelas de William James e
John Dewey, que estavam certos de não verem nenhuma incompatibilidade.
Os pragmatistas, como Nietzsche, procuraram descartar o cognitivismo que
dominou a vida intelectual ocidental desde Platão, mas, diferentemente de
Nietzsche, eles desejavam com isso agir no interesse de uma sociedade
igualitária, e não no interesse de um individualismo solitário e desafiante.

Palavras-chave: verdade - pragmatismo - democracia - contingência

O trabalho de Johan Degenaar(1) combinou uma afeição à teoria e à prática da


política liberal com um entendimento do papel da arte e do mito na criação de
nossa própria humanidade, e também com uma apreciação da contribuição de
Nietzsche e Derrida ao entendimento deste papel. Políticos liberais que falem
bem de Nietzsche são difíceis de encontrar, e é mesmo raro de achar aqueles
que não rejeitam Derrida como um "irracionalista", um corruptor da juventude.
Filósofos típicos do liberalismo político seguem Kant, traçando uma linha nítida
entre moral e estética, entre a obrigação moral e a satisfação artística. As
disposições de Nietzsche e de Derrida em borrar esta linha, tanto quanto as
45
linhas entre mito e ciência e entre filosofia e literatura, são vistas pelos políticos
liberais como perversas e possivelmente perigosas.

Compartilho da admiração de Degenaar por Nietzsche e Derrida tanto quanto


das suas convicções políticas. No que segue quero mostrar como meus
próprios heróis filosóficos - William James e John Dewey - ilustram o modo que
muitas das críticas de Nietzsche ao "cognitivismo" comum a Platão e a Kant e
muito das perspectivas de Heidegger e Derrida sobre a função reveladora da
linguagem poética podem ser combinadas com um ponto de vista político
liberal.

Alguns de nós, filósofos americanos, nas últimas décadas, temos pensado em


Nietzsche como o mais eminente discípulo de Emerson, e como oferecendo
uma versão européia do pragmatismo de um outro seu discípulo, William
James. Vemos Nietzsche e James concordando que "a época do homem
socrático está encerrada" (GT/NT § 20), mas discordando sobre o que deve
sucedê-la. Assim é que vemos, também, as diferenças entre o mais eminente
discípulo de Nietzsche, Heidegger, e o sucessor de James, John Dewey.
Heidegger e Dewey estão juntos nas suas atitudes para com a tradição
filosófica que culmina em Kant, mas divergem completamente nas suas
percepções das possibilidades que estão abertas a uma cultura pós-socrática,
pós-kantiana.

O jovem Nietzsche pensava a alternativa ao homem socrático como o homem


que seria capaz de "ver a ciência com os olhos do artista, mas ver a própria
arte pela ótica da vida" (GT/NT, Tentativa de autocrítica, § 2). James e Dewey,
por contraste, concordavam que a ciência deveria ser vista através da ótica da
arte, mas eles procuraram ver a arte através da ótica da esperança social. Eles
não compartilharam da desconfiança de Nietzsche em relação aos sentimentos
cristãos nem da sua desconfiança em relação à democracia como
"cristianidade naturalizada". Assim, a alternativa deles ao socratismo não foi
um retorno à percepção trágica da vida. Ao contrário, foi uma visão
emersoniana e whitemaniana da democracia, da civilidade igualitária.

James e Nietzsche concordam que é essencial enfrentar o que este último


chamou "o problema da própria ciência" (GT/NT § 2). Ambos querem tornar a
própria ciência problemática e questionável quanto à sua condição de
paradigma da atividade humana, a ciência enquanto o lugar onde a mente
humana se defronta com algo diferente e maior que ela própria. Eles insistiram
em ver a matemática não como Platão a viu, como conhecimento da realidade
imaterial, mas como desenvolvimento de um conjunto de ferramentas úteis.
Ambos negaram que a física é uma representação acurada do que Locke
chamou de "qualidades primárias", ou do que Bernard Willians chama "a
realidade enquanto apartada das necessidades e das incertezas humanas".
Em vez disso, vêem as ciências naturais simplesmente como um modo de
satisfazer desejos humanos, e não como uma tentativa de corresponder à
realidade.
46
Esta renúncia à idéia de que a verdade científica é uma questão de
correspondência a uma realidade preexistente é o mais familiar e óbvio
exemplo de uma doutrina comum a Nietzsche e aos pragmatistas americanos.
Isto foi observado bem cedo, em um livro publicado na França em 1908
chamado Nietzsche, ou le pragmatisme allemand. Foi reenfatizado por Arthur
Danto em 1965 com Nietzsche as philosopher, um livro que atribuiu a
Nietzsche uma teoria pragmatista da verdade. Porém, alguns últimos
comentadores americanos de Nietzsche, notadamente Richard Schacht e
Alexander Nehamas, objetaram que Nietzsche deve ter mantido alguma forma
de teoria correspondentista da verdade. Seus argumentos estão baseados no
fato de que, no começo e no fim, Nietzsche fala da "falsidade como uma
condição de vida" (JGB/BM § 4). Em tais passagens, ele sugere um contraste
lockeano entre verdade e erro e mentira que necessitamos a fim de viver. Ele
contrasta o meramente humano, injustamente, com algo que é inumano,
verdadeiro e real.

Tais passagens são, de fato, difíceis de reconciliar com passagens de


trabalhos anteriores que soam pragmatistas, como a seguinte:
"(...) a questão de qual, entre duas, é a percepção mais exata é inteiramente
sem sentido, pois um critério para exatidão da percepção é simplesmente não
avaliável para nós. Mais genericamente, a noção de 'percepção exata' - a
noção de uma expressão adequada do objeto no sujeito - é uma
monstruosidade autocontraditória (widerspruchvolles Unding). Pois nenhuma
relação causal, nenhuma relação de 'expressão' ou de 'exatidão' relaciona
sujeito e objeto; a relação entre eles é, no máximo, uma relação estética
(WL/VM).

As passagens que Schacht e Nehamas enfatizam também contrastam com


passagens dos últimos trabalhos, como a seguinte:
"Nós eliminamos o mundo verdadeiro. Que mundo restou? Talvez aquele das
aparências? Mas não! Com o mundo verdadeiro também eliminamos o mundo
aparente" (GD/CI, Como o mundo verdadeiro finalmente tornou-se uma fábula,
§ 6).

Penso que temos de admitir que há aqui uma contradição entre as passagens
em que Nietzsche vê o conhecimento humano como erros úteis para a vida e
aquelas que simplesmente deixam de lado toda idéia de verdade como
fidelidade a uma realidade antecedente. As últimas são passagens que nos
incitam a simplesmente apagar de nossas mente noções tais como "verdade",
"erro", "aparência" e "realidade". Essas noções podem ser substituídas por
noções tais como "crenças vantajosas para certos propósitos, mas não para
outros" e "uma descrição de coisas úteis para certos tipos de pessoas, mas
não para outros". Estas são noções completamente pragmáticas, noções que
abandonaram inteiramente a metáfora da correspondência.

47
Não penso que esta contradição é resultado de um mero descuido, nem estou
convencido de que ela desaparece gradualmente no desenvolvimento do
pensamento de Nietzsche(2). Suspeito que esta contradição força-nos a admitir
que Nietzsche nunca foi suficientemente capaz de livrar-se da esperança de
que, se alguém pudesse, de alguma maneira, libertar-se de Sócrates, poderia
então transcender a condição humana - entrar de algum modo em relação com
alguma coisa mais real do que o humano. Como a vejo, esta incapacidade é o
último vestígio do que Habermas, no seu The Philosophical Discourse of
Modernity, chama "a filosofia da subjetividade" - a tradição que assegura que
os seres humanos tem algo profundo dentro deles mesmos, algo como Razão,
ou uma vontade de potência, algo que nos coloca em contato com alguma
coisa maior do que nós mesmos. Nietzsche foi um grande crítico da idéia de
que a finalidade da vida humana é tentar encarnar em alguma coisa maior do
que o meramente humano, ou filiar-se a tal, mas sua persistente tentativa de
ver todas as crenças humanas possíveis como erros e mentiras parece-me
mostrar que ele foi incapaz de abafar o desejo de transcender a condição
humana. Nisto, ao menos, Heidegger está certo ao ler Nietzsche como mais
um metafísico, certo de ver seu pensamento simplesmente como uma inversão
do platonismo. Mesmo que alguém possa criticar Heidegger com propriedade
por sua leitura altamente seletiva de Nietzsche, deve admitir que há passagens
que podem razoavelmente serem lidas como uma metafísica da Vontade de
Potência.

Como um bom americano, e como alguém que se pensa como um pragmatista,


é claro que sou inclinado a ver o pragmatismo como tendo duplicado todas as
melhores coisas de Nietzsche, evitando as contradições, inclusive a não
encoberta tentação de erigir uma metafísica. A diferença crucial entre
Nietzsche e os pragmatistas americanos, eu penso, é que Nietzsche, tal como
Heidegger, viu sua própria aventura pessoal de auto-superação como ligada à
história do Ocidente, como tendo uma importância histórica mundial. Nietzsche
e Heidegger foram incapazes de resistir em pensar suas próprias realizações
como sendo algo que irrompeu em uma claridade, um lugar onde nenhum
pensador tinha ainda entrado. James e Dewey, pelo contrário, estavam livres
da ambição histórico-mundial para eles mesmos. A única ambição que tinham
era para seu país, que viam como o lugar mais provável para uma democracia
social igualitária, o lugar mais provável para emergir uma sociedade romântica
esperançosa. A única ambição que tinham para o pragmatismo era de que ele
fosse de algum uso na construção de uma tal sociedade. Eles não viam a troca
de uma teoria da verdade como correspondência por uma teoria pragmatista
como uma irrupção através do escuro em direção à luz. Ao contrário, viam-na
como um ajustamento retórico menor, algo que podia fazer a vida intelectual de
uma sociedade democrática um pouco mais fácil.

A troca dos pragmatistas, deixando a encarnação em alguma coisa maior do


que o meramente humano, ou a filiação a tal coisa, e passando para a idéia de
expansão da justiça social e da liberdade pode, como sugeri, ser vista como
48
uma alternativa para a tentativa de superar e suplantar o que Nietzsche
chamou de o "homem socrático". Sócrates foi, aos olhos de Nietzsche, a figura
que sobrecarregou nossa civilização com a idéia de que a finalidade do ser
humano era conhecer. Ele era, como Nietzsche escreveu,
"(...) o protótipo do otimista teórico, a pessoa diferenciada por sua crença na
inteligibilidade da natureza das coisas, e assim pela convicção de que
conhecimento e entendimento são uma panacéia, e que o erro é o mal último"
(GT/NT).

Nietzsche e os pragmatistas concordam que o conhecimento - a formação de


crenças confiáveis - não possui um fim em si mesmo. Tal formação de crença
está a serviço dos desejos humanos. As crenças são simplesmente, como
disse Peirce, "hábitos de ação", e a formação e a correção de crenças são
simplesmente um modo de conseguir o que queremos. O que vemos quando
"olhamos para a ciência através da ótica da arte e a arte através da ótica da
vida" é a cultura humana, como algo que não aponta para nada maior ou mais
nobre do que a felicidade humana.

Mas para os pragmatistas nunca houve uma "ótica" exatamente


correspondente ao que Nietzsche chamou "vida". Pois "vida", a noção que
torna-se "potência" nos últimos trabalhos de Nietzsche, Dewey substituiu por
"crescimento". No vocabulário de Dewey, "crescimento" nada tinha a ver em
particular com potência, mas significava alguma coisa como "a capacidade
para uma experiência mais rica e mais completa". Esta não é uma capacidade
que o ser humano possa exercitar sobre si próprio - independente da
sociedade na qual ele vive. Ao contrário, é uma capacidade que se amplia na
medida em que se amplia a complexidade do comportamento dos membros da
mesma comunidade. Tal como Hegel, Dewey não via um modo de dar um
passo para fora da história, realizando o tipo de ruptura dramática com o
passado para a qual Nietzsche e o último Heidegger apontaram. Assim, para
Dewey, olhar a ciência pela ótica da arte significava olhar a ciência como o fim
da criação de uma sociedade que seria ela própria uma obra de arte. Sua visão
desta era a de uma sociedade igualitária e pluralista. Era a de uma sociedade
na qual a tolerância mútua estaria combinada, em um máximo possível de
acordo, com uma proliferação sem fim de variedades de estilo de vida e de
pensamento.

Essa é, obviamente, uma visão totalmente antinietzschiana. Nietzsche pensava


o socratismo como algo ligado ao cristianismo, ao utilitarismo e à democracia.
Ele não via nenhuma terceira alternativa, ao menos quando escreveu O
nascimento da tragédia, entre a perspectiva trágica que Sócrates suplantou e o
"otimismo socrático", e pensava o otimismo como um sintoma de exaustão.
Assim, ele pergunta:

"(...) a despeito de todas as 'idéias modernas' e de todos os preconceitos


criados pelo gosto popular, não poderia a vitória do otimismo, o predomínio do
razoável, o utilitarismo prático e teórico e mesmo a própria democracia (com a

49
qual todos somos contemporâneos) ser um sintoma de perda de potência, de
velhice, de fadiga fisiológica?" (GT/NT, Tentativa de autocrítica, § 4).

Para os pragmatistas, pelo contrário, não há conexão entre a idéia socrático-


platônica de que a perfeição humana é uma questão de cognição e o valor da
democracia. A única coisa que Dewey e James pensam que temos de
abandonar quando renunciamos a esta idéia é o que Nietzsche chamou de
"conforto metafísico". Podemos não mais acreditar que algum poder maior está
do lado de quem busca o conhecimento. Mas isto não conduz ao pessimismo,
a uma percepção trágica, nem ao abandono de noções cristãs e democráticas.
Pois a liberdade humana, tomada não em um sentido metafísico mas no
sentido político e concreto de capacidade dos seres humanos de viverem
juntos sem se oprimirem uns aos outros, ocupa o lugar da Verdade e da
Realidade como nossa finalidade. A diferença de tomar a Verdade como um
objetivo, com Sócrates, e tomar a Liberdade como um objetivo, com os
pragmatistas, é a diferença entre apontar para alguma coisa não-humana e
apontar para alguma coisa que, se em algum momento vier a existir, será uma
criação inteiramente humana.

O filosofar pragmatista existe com a compreensão de que, nas palavras de


Nietzsche,
"(...) a ciência, impelida pelas suas próprias poderosas ilusões, avança para os
seus limites, limites nos quais o otimismo que está embutido na lógica deve
estilhaçar-se" (GT/NT § 15).

O filosofar pragmatista começa com a sugestão de Kant de que a verdade


empírica é uma questão de coerência entre nossas representações, ao
contrário do que uma correspondência destas representações com o modo que
as coisas são em si mesmas. Nietzsche e os pragmatistas americanos
avançaram mais além do ponto de Kant, negando sua distinção entre a coisa-
em-si e o fenômeno, e então entre o empírico e o transcendental. Isso tornou
possível a ambos aliarem-se ao relato naturalista de Darwin dos seres
humanos. Também tornou possível a ambos verem a investigação e a cultura
como uma continuação do processo de adaptação evolutiva. Uma vez
assegurada esta assimilação do biológico e intelectual, o socratismo não é
mais possível. Não é mais possível manter uma imagem do conhecimento de
tipo sujeito-objeto, e então não é mais possível pensar a cognição humana
como alguma coisa que escapa às categorias biológicas. Uma tal concepção
darwiniana do conhecimento é o resultado do processo que Nietzsche
descreveu como "a volta da lógica sobre si mesma até morder sua própria
cauda" (GT/NT § 15).

Uma vez que esta aliança com Darwin está selada, a filosofia perdeu a posição
conquistada na cultura dominada pelo otimismo socrático. Pois a posição de
regina scientiarum torna-se vaga quando as ciências são simplesmente
pensamentos de ajuda à manipulação. Se há áreas da cultura que fixam a que
50
a manipulação deve servir, estas serão agora ou a arte ou a política: atividades
de autocriação individual ou social, e não alguma forma de autoconhecimento
socrático. Em uma comunidade democrática essas duas áreas dividem
responsabilidades. O consenso democrático fixará fins sociais, ao passo que a
arte - tomando o termo em um sentido amplo - fixará os fins idiossincráticos
dos indivíduos.

A diferença entre essas duas variedades de pós-socratismo - o pensamento


americano pós-emersoniano e o pensamento europeu pós-nietzschiano - pode
talvez ser melhor expressa como a diferença entre uma tentativa de separar a
arte da política e uma tentativa de assimilar as duas. Os intelectuais
americanos, na tradição de Emerson e James, têm pensado a tarefa de
modelar uma sociedade pluralista e igualitária como algo bastante diferente da
perseguição da grandeza. O único sentido no qual eles pensam uma sociedade
utópica como uma obra de arte é que a pensam como uma criação meramente
humana, não modelada por qualquer coisa maior do que o humano. Eles,
pode-se dizer, abandonaram a grandeza e a transvaloração de todos os
valores. Eles desistiram da retórica apocalíptica e escatológica. Na Europa, por
outro lado, a influência de Heidegger, e em particular sua tentativa de
ultrapassar Nietzsche, mantiveram viva tal retórica. O trabalho de Degenaar
deu-nos uma África do Sul paralela à tentativa dos pragmatistas americanos de
fazer igual justiça ao liberalismo democrático e à crítica da tradição kantiana e
platônica de Heidegger e Derrida.

Notas

(1) Johan Degenaar é professor da Stellenbosch University e autor de Myth &


Simbol. (N.T.)

(2) Ver, contudo, sobre esta última sugestão, o recente e admirável Nietzsche
on truth and philosophy de Maudemarie Clark (Clark 1).

Referências Bibliográficas

1. CLARK, M. Nietzsche on truth and philosophy. Cambridge: Cambridge


University Press, 1990.

2. NIETZSCHE, F. Beyond good and evil. Middlesex: Penguin, 1974.

3. _______. Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik. In: Werke, vol.
1. Frankfurt: Ullstein, 1979.

51
4. _______. "Versuch einer Selbstkritik". In: Werke, vol. 1. Frankfurt: Ullstein,
1979.

5. _______. "On truth and lies in a non-moral sense". In: BREAZEALE, D. (ed.).
Philosophy and truth: selections from Nietzsches's notebooks of the early
1870's. Nova York: Humanities Press, 1979.

6. _______. Götzen-Dämmerung. In: Werke, vol. 3. Frankfurt: Ullstein, 1979.


Ecce homo: um livro quase homem

Alexandre Mendonça
Mestrando do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro

Ecce homo: a book almost like a man

Abstract: The purpose of this article is to discuss some of the possible


meanings taken by Nietzsche's autobiography, regarding his conception of life
as a work of art.

Key-words: autobiography - life - art – metaphysics

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir alguns dos possíveis sentidos


assumidos pela autobiografia de Nietzsche, levando em conta sua concepção
da vida como obra de arte.

Palavras-chave: autobiografia - vida - arte - metafísica

Ao nome do filósofo alemão Friedrich Nietzsche costuma ser associada, quase


que imediatamente, a imagem de um crítico mordaz da tradição de
pensamento metafísico, de um demolidor da moral cristã, e ainda de um
eloqüente apologista da arte. De fato, ao longo de sua obra, o filósofo parece
ter se dedicado, por um lado, a denunciar, por trás do pensamento religioso,
filosófico, moral ou científico, as artimanhas para a mera conservação de uma
vida doente, enfraquecida, voltada contra si própria e, por outro, a apontar para
a arte como uma instância do pensamento afirmadora da vida, intensificadora
de sua potência. Não é à toa que, para o próprio filósofo, e ainda para muitos
de seus estudiosos, Assim falou Zaratustra - texto poético-filosófico, composto
entre 1883 e 1885 - ocuparia um lugar privilegiado entre seus escritos.
52
Nietzsche trata Zaratustra como a solução da parte afirmativa de sua tarefa
(EH/EH, Para além de bem e mal, §1). Eugen Fink - para citar um de seus
importantes comentadores - considera que "no Zaratustra Nietzsche encontra a
sua própria linguagem para os seus próprios pensamentos" (Fink 1, p. 65).
Tudo se passa como se, ao expressar o seu pensamento através da
dramatização de embates entre personagens conceituais, Nietzsche tivesse
driblado radicalmente a tradição racionalista, dificultando interpretações que
procurem no Zaratustra a voz de um sujeito racional veiculador de verdades
absolutas. No lugar de uma doutrina filosófica balizada por supostos valores
universais, o leitor toma contato com uma obra assumidamente ficcional. Se
por uma abordagem filosófica convencional, que exigiria uma argumentação
propriamente conceitual, a exposição da filosofia de Nietzsche no Zaratustra
poderia parecer deficiente, pela perspectiva nietzschiana de escapar à
valoração metafísica e produzir um pensamento guiado por valores artísticos, a
dramatização seria uma solução radical para a expressão de seu pensamento.

Como situar, então, o último texto escrito por Nietzsche para ser publicado - a
autobiografia Ecce homo - em relação à sua pretensão de escapar às
valorações metafísicas, que privilegiam a verdade como critério para a
avaliação do pensamento? Qual seria o estatuto de uma autobiografia no
interior de um pensamento que se pretende radicalmente crítico das noções de
verdade e sujeito? Um texto autobiográfico não implicaria um certo
compromisso com a veracidade? E ainda, não reforçaria a própria categoria do
sujeito tão criticada por Nietzsche? Em suma, a escritura de Ecce homo não
apontaria para um certo enfraquecimento da radicalidade de seu pensamento,
que teria atingido o ápice com o Zaratustra?

Para evitar respostas apressadas, dadas a mal-entendidos, seria interessante


atentar para o esforço, exercido pelo pensamento nietzschiano, no sentido de
ultrapassar a suposta oposição entre vida e arte através da sua concepção da
vida como obra de arte. E ainda para a articulação deste tema com a singular
concepção anti-metafísica do sujeito colocada em jogo por Ecce homo - não
como uma identidade prévia, entendida a partir dos modelo da alma ou do
espírito, mas como uma produção, um efeito de um jogo entre forças.

Parece certo que já em seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, escrito em


1871, Nietzsche anuncia a sua crítica ao espírito científico e toma a arte, mais
especificamente a arte trágica, como um modelo alternativo à racionalidade
socrática - entendida por ele como expressão da decadência da civilização
grega. Mas se seu pensamento já se constitui como anti-socrático,
antiplatônico, ainda não se pode detectar aí seu aspecto propriamente
antimetafísico. Ao contrário, Nietzsche, ainda preso a formulações
schopenhauerianas e kantianas, ainda discípulo de Wagner, superestima a arte
como atividade propriamente metafísica do homem. Faz da arte trágica lugar
privilegiado da revelação daquilo que haveria no fundo da existência, da
verdade sobre a vida. Nietzsche chega a opor a sua concepção de um certo
consolo metafísico oferecido pela arte trágica - traduzido na idéia "de que a
vida, no fundo das coisas, apesar de toda mudança das aparências
53
fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria" (GT/NT § 7) - à
pretensão socrática de, pelo fio da causalidade, penetrar no abismo do ser para
não só conhecê-lo, como também corrigi-lo (idem). Se a arte trágica ocupa,
neste momento, um lugar privilegiado no pensamento de Nietzsche é em
função dos pressupostos metafísicos que a cercam.

Ora, são justamente estes pressupostos que serão profundamente abalados a


partir da ruptura de Nietzsche com Kant, Schopenhauer e Wagner. Ruptura da
qual Humano, demasiado humano, escrito em 1878, seria o primeiro
testemunho público. Se a arte continuará a ser valorizada no pensamento
nietzschiano, não mais o será por expressar a verdade sobre a existência, mas
por servir de modelo de inteligibilidade da própria vida. Modelo antimetafísico
por excelência, que exclui a possibilidade de se pensar a vida em termos de
verdade e essência. Se é possível compreender a vida pelo modelo da arte é
porque a vida não repousa sobre nenhum fundamento, mas sobre a aparência,
a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivo e do erro (GT/NT, Tentativa de
autocrítica, § 5). A existência torna-se, para Nietzsche, algo da ordem do
provisório, do conflituoso, do inventado. E ainda que talvez se possa
argumentar que a compreensão da vida, ou do mundo, como fenômeno
estético não seja de todo estranha a O Nascimento da Tragédia (GT/NT, § 5),
não se pode ignorar que neste primeiro momento ela pressupõe um
fundamento metafísico - no caso, a vontade schopenhaueriana, como fundo
último sobre o qual repousaria o mundo da representação, dos fenômenos.
Nietzsche passa, então, de uma valorização metafísica da arte para uma
apologia da arte como modelo não-metafísico de compreensão da existência.
Compreensão que lhe permite ir longe na sua guerra contra o pensamento
dogmático, ultrapassando as oposições entre vontade e representação, coisa
em si e fenômeno, essência e aparência, verdade e mentira.

Se no primeiro livro de Humano, demasiado humano a arte, ao ter a sua


auréola metafísica desmitificada, parece esvaziada de valor, já na Miscelânea
de Opiniões e sentenças - publicada como complemento ao primeiro volume de
Humano demasiado humano - Nietzsche parece apontar para um outro modo
de valorizá-la, absolutamente desvinculado da chamada metafísica de artista
característica de seu primeiro escrito. Interessado em abalar a crença
romântica no pretenso valor inquestionável das obras de arte, o filósofo chega
a escrever um aforismo intitulado "Contra a arte das obras de arte" (§ 174).
Pelo próprio título já se pode perceber que a crítica de Nietzsche incide sobre a
arte institucionalizada, presa a limites que a separam da vida. O que não
impede uma valorização da arte para além de tais limites. Ao contrário, o
filósofo chega a atribuir à arte a tarefa primeira de embelezar a vida, de
"reinterpretar tudo o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante
que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de acordo com a
condição da natureza humana" (VM/OS § 174). A arte aliada à vida serviria
como uma arma para se vencer o pessimismo, inventando um sentido para as
paixões, as dores e as angústias da alma, fazendo transparecer o significativo
mesmo no inevitável ou insuperavelmente feio" (idem). Frente a esta dupla
função daquilo que Nietzsche passa a conceber como arte, a chamada arte
54
propriamente dita, a das obras de arte, é interpretada por ele como um mero
apêndice. As obras de arte seriam criações de homens que sentem em si um
excedente de forças reinterpretativas da própria vida e que descarregariam tal
excedente também nas chamadas obras de arte. O erro moderno, para o
filósofo, estaria em tomar o apêndice como finalidade primeira, em começar a
refeição pela sobremesa, e privilegiar a arte enquanto obra de arte, ignorando
as forças artísticas voltadas para a própria vida.

Esta concepção da arte como uma atividade do pensamento eminentemente


criativa, aliada ao próprio movimento da existência e, portanto, liberada dos
limites que constituiriam as chamadas obras de arte, é retomada de forma mais
intensa em vários dos aforismos que compõem o livro IV de A gaia ciência.
Num deles, intitulado "O que é preciso aprender dos artistas" (§ 299), a arte é
explicitamente tomada como uma atividade reinterpretativa da vida, como um
meio de tornar as coisas belas , atraentes e desejáveis, mesmo quando elas
não o são - aliás o filósofo chega a crer que por elas mesmas as coisas jamais
o são. Ao recusar a idéia de que possa haver uma verdade última sobre a vida,
Nietzsche se afasta tanto da perspectiva metafísico-religiosa tradicional quanto
da perspectiva científica moderna, aliando a sua gaia ciência a um saber que
se quer criativo, valorizando a arte, de forma bastante polêmica, pelo que ela
tem de artificial, perspectivo e parcial:
Afastar-se das coisas até que tenhamos delas uma visão parcial e falha e
ajuntar muito por nós mesmos para continuar a vê-las ainda; ou contemplar as
coisas a partir de um ângulo para vê-las parcialmente; ou vê-las através de um
vidro colorido, sob a luz do crepúsculo; ou ainda dar-lhes uma superfície e uma
pele que não possua uma transparência completa: tudo isso precisamos
aprender com os artistas. (FW/GC § 299).

Ora, se para o Nietzsche antimetafísico não existem verdades absolutas,


universais, imparciais, a arte pode ser duplamente valorizada. Primeiro por se
tratar de uma criação que se afirma enquanto tal - ao passo que a filosofia, a
moral, a religião, ou ainda a ciência se constituem em criações, em
perspectivas, que se pretendem não-condicionadas, universais. Mas sobretudo
por investir no artifício de modo a possibilitar a produção de um sentido
afirmativo para a existência, apesar de seus possíveis pesares. Fica claro aqui
que a apologia de Nietzsche à arte já não se limita a obras de arte. Trata-se da
apologia de um modo de pensamento capaz de afirmar o artifício, ou mesmo a
vontade de ilusão, como instância constitutiva da própria vida. Por isso,
Nietzsche, mais uma vez, não deixa de dirigir sua crítica ao artista que se
restringe aos limites das chamadas obras de arte. Se é preciso aprender algo
dos artistas, também é preciso ser mais sábio que eles. A razão disso reside no
fato de que entre os chamados artistas "essa força sutil que lhes é própria
cessa geralmente onde termina a arte e começa a vida" (idem). Nietzsche, no
entanto, interessado em ultrapassar os limites entre arte e vida, pretende que
nos tornemos poetas de nossa própria existência - e isso diante mesmo das
pequenas coisas do cotidiano. Num outro aforismo do livro IV de A gaia ciência,
intitulado "Uma única coisa é necessária" (§ 290), a concepção da vida como
obra de arte é desenvolvida minuciosamente em sintonia com aquilo que,
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segundo o filósofo, seria imperativo para as naturezas fortes. Para o homem
pleno de forças criativas, a única coisa necessária seria "dar estilo" a seu
caráter. Esta atividade, que pressupõe uma lenta preparação e um trabalho
cotidiano, consistiria em perceber em seu conjunto tudo o que a natureza
oferece de forças e fraquezas para, em seguida adaptá-la a um plano artístico,
até que cada coisa apareça em sua arte e que as próprias fraquezas sejam de
tal modo transmutadas que cheguem a ofuscar os olhos (FW/GC § 290).
Mesmo aquilo que é feio, embora talvez não possa ser suprimido, pode ser
mascarado, tornado sublime por este homem que se torna poeta de sua própria
vida (idem). Em "Ilusão dos contemplativos", outro aforismo - também do livro
IV de A gaia ciência -, Nietzsche não deixa de nos prevenir que em muitos
casos esta verdadeira atividade artística empreendida por um tal homem
superior pode perfeitamente lhe passar despercebida: ele freqüentemente
"acredita situar-se como espectador e ouvinte diante do grande espetáculo que
é a vida; diz que sua natureza é contemplativa e não se apercebe que é o
verdadeiro poeta e criador da vida" (FW/GC § 301). Mas ainda que este
verdadeiro artista da existência pareça compactuar por um momento com a
ilusão contemplativa, com a crença estabelecida pela metafísica num
conhecimento objetivo sobre a vida ou sobre o mundo, e neste ponto seja
menos altivo do que possa ser, isto não faz dele menos poeta no sentido forte
que Nietzsche parece pretender dar à palavra - isto é, criador da própria vida.
Noutras palavras: a valorização antimetafísica da arte, através da concepção
da vida como obra de arte, não faz da obra de arte uma forma de expressão
privilegiada em relação às demais. Neste sentido, acreditar que Nietzsche, em
sua crítica à vontade de verdade, se limita a uma simples apologia da arte,
parece tão ingênuo quanto desqualificar Ecce homo por julgar que uma
autobiografia implica necessariamente uma subordinação a categorias
metafísicas como verdade e sujeito.

Neste momento, já é possível arriscar a seguinte questão: que sentido teria o


gesto autobiográfico de Nietzsche senão o de dar estilo ao seu caráter, o de
reinterpretar a sua própria vida de modo a embelezá-la, tornando mesmo o
feio, o angustiante, significativo? Ainda que um texto autobiográfico possa
sugerir um comprometimento com a verdade, com a imparcialidade, um pacto
com a ilusão contemplativa ao promover o retrospecto de sua vida, não
podemos esquecer que para o Nietzsche antimetafísico não existem fatos em
si, apenas interpretações. Assim, o seu gesto autobiográfico, longe de indicar
um enfraquecimento de seu pensamento, por compactuar com uma forma de
expressão supostamente vinculada a valores metafísicos, parece perfeitamente
afinado com a sua concepção da vida como obra de arte, com a sua intenção
de se tornar poeta da própria existência. Ao invés de se deixar capturar pela
exigência de compor um texto verídico, Nietzsche parece efetivamente
interessado em combater a verdade em seu próprio terreno, inventando,
através da escritura de Ecce homo um sentido, afirmativo, embora
necessariamente provisório, para a série de acontecimentos que teriam
composto a sua vida até então.

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Um leitor não necessariamente perspicaz pode depreender este caráter
eminentemente ficcional da autobiografia de Nietzsche já pelo pouco volume do
texto - demasiado sumário caso se tratasse de uma biografia "cuidadosa" - e
ainda pelo tom provocativo de alguns de seus capítulos (Por que sou tão sábio,
Por que sou tão esperto, Por que escrevo livros tão bons). Ecce homo, a
começar pelo próprio título, é uma paródia de autobiografia. Contudo, não se
trata simplesmente de tornar a autobiografia uma obra de arte, uma ficção que
contrariasse as exigências de veracidade e imparcialidade - uma vez que isto
talvez ainda deixasse intactos os limites que separariam vida e arte - mas de
tornar indecidível a fronteira entre a existência e a atividade artística, entre
realidade e ficção. Trata-se sobretudo de elevar a ficção à condição de ser, de
conceber a própria existência como ficção, ou ainda, para retomar o título de
um aforismo de Humano, demasiado humano, de tornar um livro quase homem
(VM/OS § 208). A concepção de uma autobiografia como obra de arte não se
limita a fazer de uma forma de expressão tradicionalmente comprometida com
a verdade uma forma de expressão artística, mas, sobretudo, parece criar uma
imagem da vida como puro artifício, sem qualquer essência metafísica que lhe
sirva de apoio. Por essa perspectiva, talvez o próprio Zaratustra pudesse ser
lido positivamente como uma ficção que não respeita os limites que separariam
arte e vida, deixando-se contaminar por um certo tom autobiográfico. Zaratustra
e Ecce homo: os dois textos não estabeleceriam entre si uma curiosa
cumplicidade? De um lado uma ficção autobiográfica, de outro uma
autobiografia ficcional. Mas, em ambos os casos, não se tratariam de saídas
originais e antidogmáticas criadas pelo filósofo para expressar seu
pensamento?

Também não parece interessante interpretar o texto autobiográfico como um


reforço da já tão criticada por Nietzsche categoria do sujeito. A concepção da
vida como obra de arte faz do sujeito não uma identidade prévia - como se
concebe comumente a alma, o espírito - mas uma criação provisória. Ecce
homo, ao invés de representar o retorno de Nietzsche a categorias identitárias
como o ser, o sujeito, a verdade, parece efetuar a radicalização de um outro
modo de pensar, necessariamente crítico da lógica da identidade. De certa
forma, o subtítulo do livro se presta a desfazer possíveis mal entendidos a este
respeito: Como Alguém se torna o que é. O próprio Nietzsche adverte: "que
alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o
que é" (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 9). É o ser que pressupõe o vir-a-
ser, o tornar-se. Sua concepção é a de que alguém só pode ser aquilo que até
então se tornou. Em vários fragmentos póstumos acerca do eterno retorno, o
filósofo insiste na idéia de que qualquer ínfimo acontecimento é imprescindível
à existência de qualquer um. Como não há identidades prévias, ou uma
substância subjacente a seus acidentes, é a série exata de acontecimentos de
uma vida que constitui o seu ser. Cabe ao poeta de sua própria existência
revestir os mínimos acontecimentos, mesmo os mais terríveis ou vis, com este
sentido de necessidade. Se, no caso de Nietzsche, escrever um texto
autobiográfico é contar como se tornou aquilo que é, não se trata portanto de
revelar uma essência, uma identidade embutida desde a origem que teria se
desdobrado no tempo, ou ainda aquilo que constituiria previamente o seu ser e
que permaneceria como tal apesar de todo o vir-a-ser. Trata-se sim de afirmar
o próprio vir-a-ser, de criar, através da escritura, um sentido para a série de
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acontecimentos que até então teriam constituído o seu ser. Sentido
necessariamente retrospectivo e provisório, jamais prévio ou definitivo. Vale
lembrar que para Nietzsche "a 'obra' do artista, do filósofo, só ela inventa quem
a criou, quem a teria criado" (JGB/BM § 269).

Mas se a força de Ecce homo estaria não em resgatar verdades sobre um


sujeito idêntico a si mesmo, mas em dar estilo ao caráter de Nietzsche, de
inventar um sentido, uma imagem para a vida do filósofo, que sentido, que
imagem seria esta? Ora, a imagem do filósofo trágico, do afirmador do eterno
retorno, do homem dionisíaco, anticristão por excelência. Mas, para isso, não
basta se dizer discípulo de Dioniso. O texto autobiográfico de Nietzsche parece
exigir do filósofo uma tomada de posição em relação a toda sua vida, na
medida em que coloca em jogo a criação de um sentido para a série de
acontecimentos que a teriam composto; parece exigir que o filósofo dê provas
de ter se tornado um afirmador do eterno retorno, de não se ressentir de ter
vivido o que viveu. Nietzsche precisará retornar ao longo do texto
autobiográfico a todas as suas outras obras, e ainda reinterpretá-las, de modo
a torná-las afinadas com o seu pensamento trágico. Mesmo o seu primeiro e
mais problemático livro, por se tratar de um texto ainda metafísico, será posto à
prova. É afirmando o eterno retorno de toda a sua vida, através de seu último
livro, que Nietzsche parece levar a cabo o projeto de se tornar poeta da própria
existência. Apesar de sua suposta morte filosófica com o colapso de Turim, em
janeiro de 1889, é a imagem do filósofo trágico, produzida por seus últimos
escritos, e passada a limpo por Ecce homo, que se eterniza. É através dela que
hoje lemos mesmo seus primeiros e ainda metafísicos escritos. Ecce homo,
este livro quase homem, parece ter adquirido uma certa independência em
relação a seu próprio autor, parece mesmo tê-lo criado, tê-lo tornado imortal.

Nietzsche sabia o quanto se paga por se tornar imortal: "morre-se várias vezes
em vida" (EH/EH, Assim falou Zaratustra, § 5). Num texto do livro Armarinho de
Miudezas, Waly Salomão, ao comentar o suicídio de Torquato Neto, sugere ser
próprio do poeta "morrer" diversas vezes em vida. E mais: para o autor, o que
parece permitir ao poeta experimentar e continuar a experimentar a "morte" são
as aspas: ele ousa "morrer", mas "morre" entre aspas. O suicídio de Torquato
seria, então, efeito de um esquecimento - ele teria esquecido as aspas e
simplesmente morrido. Se nos apropriássemos desta idéia e nos
esforçássemos por lançar alguma luz sobre a chamada morte filosófica de
Nietzsche, seríamos tentados a admitir que o filósofo, em seus escritos, e
sobretudo em Ecce homo, sempre soube lidar com as aspas ao flertar com a
"loucura". Talvez, no colapso de Turim, Nietzsche tenha delas se esquecido, e,
então, enlouquecido literalmente.Talvez a máscara da loucura, vestida com
tanta freqüência, tenha lhe pegado à cara - como sugere a Tabacaria, de
Fernando Pessoa (Pessoa 9, p. 256). Ou talvez pudéssemos compreender esta
experiência singular, não universalizável, de uma forma absolutamente
afirmativa, como uma aventura original, que lhe teria permitido livrar-se da
máscara enrijecida do homem comum, e fazer variar sobre o seu não-rosto
identidades múltiplas - daí as estranhas insígnias para seus bilhetes pós-
colapso, daí afirmar ser no fundo todos os personagens da história. E assim,
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talvez ainda valesse a pena atentar para uma canção de Caetano Veloso, na
qual o suposto eu-lírico, além de se confundir com Renato Aragão, Mussum,
Dedé e Zacarias - verdadeiros bufões da civilização contemporânea - e
lembrar, repentinamente, que sua identificação - seu registro geral - carece de
revisão, ainda nos adverte: "Não me digam que eu estou louco/ É só um jeito
de corpo/ Não precisa ninguém me acompanhar" (Veloso 11, p. 46). Mas isso
já valeria um outro texto, com outras palavras.

Referências Bibliográficas

1. FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Tradução de Joaquim Lourenço. Lisboa:


Presença, 1983.

2. NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por


Colli e Montinari, 15 volumes. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1988.

3. _______. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho.


São Paulo: Abril Cultural, 1974.

4. _______. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César Souza. São


Paulo: Companhia das Letras, 1992.

5. _______. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. São Paulo:


Circulo do Livro.

6. _______. Ecce homo. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

7. _______. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo:


Companhia das Letras, 1996.

8. _______. The gay science. Tradução de Walter Kaufmann. New York:


Vintage Press, 1976.

9. PESSOA, F. O Eu Profundo e os Outros Eus. Seleção poética de Afrânio


Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

10. SALOMÃO, W. Armarinho de miudezas. Salvador: Fundação Casa de


Jorge Amado, 1993.

11. VELOSO, C. Songbook. Organização de Almir Chediak. Rio de Janeiro:


Lumiar, 1989.

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