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Do homem-deus ao super-homem
In
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/nietzsche_dostoievski.htm
F.Dostoiévski
(1821-1881)
Porque não eliminar aquele ser parasitário, inútil, e utilizar-se do seu dinheiro
para sair daquela situação apremiante, salvando também sua mãe e sua irmã,
reduzidas ao opróbrio? Foi nestas circunstâncias terríveis que o jovem
estudante desenvolveu sua doutrina do "direito ao crime", na qual todo aquele
que se sente além das convenções tradicionais acerca do bem e do mal, que
percebe-se mais forte do que os demais homens, na verdade tem "direito a
tudo", inclusive o direito de eliminar os que considera estorvantes e prejudiciais
ao seu objetivo, pois o homem extraordinário deve, obediente às exigências do
seu ideal, "ultrapassar certas barreiras tão longe quanto possível".
O surgimento do homem-idéia
O ser ideológico
Nietzsche e o super-homem
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Ateu militante, Nietzsche tirou as conseqüências últimas do homem-deus, não
visualizando para ele nenhum grande tormento caso ele seguisse o seu ideário
até o fim. Ao contrário, previu e enalteceu o homem-idéia que, em função da
sua causa seria uma máquina de insensibilidade, trafegando, altaneiro, bem
acima dos preceitos morais do seu tempo. Fazendo novas regras restritas a
uma elite, o Übermensch teria seu comportamento a amoral regulado apenas
pela sua inata vontade de domínio - Wille zur Macht - e por uma compulsiva
sede de vida.
Nietzsche internado
Nietzsche (1844-1900)
Consta que Nietzsche foi internado depois de um estranho acidente em que se
envolveu em Turim, em janeiro de 1889. Ao ver da sua janela um pobre cavalo
ser brutalmente espancado pelo dono, interpôs-se entre o carroceiro e o
animal, envolvendo-o com um abraço, beijando-lhe o focinho em lágrimas.
Repetia, inconscientemente, a cena descrita no sonho de Raskolhnikov;
quando aquele, ainda criança, enlaça e beija a carcaça ensangüentada de uma
égua brutalizada por um bando de bêbados. Foi a última homenagem de
Nietzsche, já demente, fez à ficção de Dostoiévski. Conduziram-no primeiro
para um sanatório na Basiléia, do qual foi removido para Naumburg, aos
cuidados da mãe. Em 1897, com ela morta, sua irmã Elizabeth levou-o para
Weimar, onde faleceu em 25 de agosto de 1900.
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Salomé; a relação com Wagner e a lado dos antidemocratas, dos anti-
esposa, Cosima; a profetizção do socialistas, e contra todo e qualquer
Übermensh (super-homem); a tipo de pregação que visasse a
loucura em Turim; e a morte, igualdade, tornando-o um apologista
assistido pela irmã mais nova, da distinção.
Elisabeth, em Weimar.
"...Sim já sei de onde venho...tudo o que tocam as minhas mãos se torna luz e
o que lanço não é mais do que carvão. Certamente, sou uma chama!" -
Nietzsche, 1888
Vida de cigano
Foi este estado lastimoso que fez com que uma sua
conhecida Malwida von Meysenburg, uma dedicada
senhora casamenteira, não parasse de arranjar-lhe
encontros com umas moças que passavam por seu
salão. Era uma luta arrancar aquele misógino do fundo
da pensão em que estivesse para que fosse dar uma
passeio com alguma daquelas prometidas.
O caso Wagner
Um notável escritor
Durante mais de dez anos aquele esquisito professor alemão, que chamava a
atenção das pessoas por andar com um bigodão de cossaco, trancado com
seus livros e papéis em aposentos soturnos, dedicou-se a produzir candentes
escritos contra tudo o que era estabelecido e até mesmo o que consideravam
não convencional (como o socialismo e o feminismo). Poucos deixam de ler
uma página de Nietzsche sem uma forte impressão - a favor ou contra. E que
escrita! Ninguém como ele empunhara o alemão assim, a marteladas.
Um pensador impressionista
Loucura e morte
Máscara mortuária de
Nietzsche
Paradoxalmente, disse num certo momento, que não queria discípulos. Era
serio? Teve-os aos magotes. Endoidou de vez em Turim, em janeiro de 1889,
quando acharam-no aos prantos abraçado num cavalo espancado. Durante os
dez anos restantes afundou-se numa densa névoa. Morreu na pequena
Weimar, a capital cultural da Alemanha, no dia 25 de agosto de 1900. A sua
irmã mais nova Elizabeth recolhera-o para lá em 1897, entendendo de que
somente o sítio de Goethe era suficientemente ilustre para acolher em seus
últimos dias o famoso e infeliz irmão louco.
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Nietzsche: influências
Friedrich Nietzsche
Em busca do super-homem
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("É que, hoje, os pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores...isso,
agora, quer tornar-se senhor de todo o destino humano. Oh, nojo! Nojo! Nojo!"-
Zaratustra - IV parte, 3)
O que fazer?
O príncipe-tirano,
um modelo do
super-homem
(gravura de S.Dalí)
Quem é o super-homem?
"Amo os valentes; mas não basta ser espadachim - deve-se saber, também,
contra quem sacar a espada!" – Zaratustra
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1571), que somava sua habilidade com a espada e o lidar com venenos com o
mais refinado bom gosto artístico. Logo, uma das conclusões que Nietzsche
chegou, ao interessar-se por aquelas personalidades, é de que em nome da
preservação e do deleite da arte superior, perene, magnífica, qualquer
sentimento ético ou humanitário passava a ser desprezível, senão mesquinho.
As atribulações daqueles príncipes, com os quais simpatizou, lhe chegaram ao
conhecimento por meio da cultivada amizade que ele estabeleceu com o Jacob
Burckhardt, um suíço, grande historiador da cultura grega e renascentista, com
quem ele privou na cidade de Basiléia a partir de 1870, e que escrevera um
ensaio clássico sobre o tema (A Civilização da Renascença italiana, 1860).
Cósimo de Medici,
exemplo do tirano
refinado
Influência de Darwin
Influência de Dostoiévski
A projeção de Nietzsche
Politicamente, ele tanto foi acolhido por anarquistas, que na linha de Max
Stirner (1806-56), que celebravam através da leitura dele o individuo-absoluto
(o homem solitário, quase uma fera, que enfrenta a sociedade burguesa a
quem vota desprezo e ódio), como também pelos nazi-fascistas, com a
identificação com a teoria de uma elite de homens fortes dotados de vontade
de domínio (uma nova raça superior liderada pela besta fera ariana,
dominadora e implacável). Seja como for, em se tratando de política, são os
extremistas ideológicos quem cultuam Nietzsche, não os democratas. O
mesmo evidentemente não ocorre com os literatos e filósofos, tais como
Heinrich e Thomas Mann, ou, mais recentemente, com Michel Foucault, que,
independentemente das inclinações contra-revolucionária de Nietzsche,
reconheceram nele uma fonte inesgotável de percepções originais, estéticas e
existenciais, todas elas relevantes, e que muito contribuíram para a
compreensão do homem moderno e para os fenômenos artísticos e políticos
que acometeram o século XX.
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Nietzsche e os quadrinhos
O super-homem,
cultuado pelas massas
"Eu assento minhas coisas no Nada" ("Ich hab, mein Sach' auf Nichts gestellt) -
Max Stirner - O Eu e o seu próprio, 1845
Inspiração Fontes
Mitológica Prometeu, o titã que ousou desafiar os deuses Olímpicos,
(grega) passando a viver de acordo com seus princípios
Renascentista O príncipe maquiavélico, o tirano que utiliza-se
(italiano) operacionalmente dos valores morais em função do poder
O gênio, concepção do romantismo alemão, a grande
Romântica personalidade que se confronta com seu época e vem
(alemã) anunciar um novo tempo, uma nova época, indiferente aos
clamores contrários que provoca
Populista O niilista russo, o raznochintsy, aquele que estava fora do
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(russo) sistema de castas da Rússia Czarista e que, revoltado,
empenhava-se com fervor em torno da causa.
Em busca do indivíduo
Quem seria doravante o novo evangelista, o que sairia pelo mundo afora
anunciando a chegada dos novos tempos e sendo ele mesmo o novo símbolo
disso? Visto que o sacerdócio se esclerosara ou se exaurira durante a grande
expansão ocidental, era preciso que alguém o sucedesse. As respostas foram,
como não podia deixar de ser, múltiplas e contraditórias. Pensadores, filósofos,
homens de letras de todas as latitudes, lançaram-se, cada um ao seu modo e
de acordo com sua veneta, a descrever esse novo "animal-político" que,
segundo eles, seria o novo paradigma do homem ocidental do futuro.
O Homem do Renascimento
Aretino(1492-1556),
um modelo do
individualismo (tela
de Ticiano)
"Foi a Itália, a primeira a rasgar o véu e a dar sinal para o estudo objetivo do
estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de
considerar os objetos, desenvolve-se o aspecto subjetivo: o homem torna-se
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indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado...[tal como] se elevara
o Grego em face ao mundo bárbaro. (...)No século XIV, a Itália quase não
conhece a falsa modéstia e a hipocrisia. Ninguém tem medo de ser notado, de
ser e aparecer diferente do comum dos homens." (Jacob Burckhardt - A
Civilização da Renascença italiana, especialmente na IV parte)
Regras do saint-simoniano
1º - Levar, enquanto ainda dotado de vigor, uma vida a mais original e ativa
possível
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O Niilista revolucionário
Origem literária
I.Turgueniev (1818-
1883), difundiu o
niilista
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O niilista, um perdido
M.Bakunin (1814-1876),
exemplo para os
niilistas
Acredita-se que a forma mais extremada desses niilistas foi assumida pelo
terrorista Sérgio Netcháiev (um seguidor de Bakunin, que, entusiasmado disse
dele "São magníficos esse jovens fanáticos, crentes sem deus, heróis sem
frases"). Ele, juntamente com Tkachév, expôs no "Programa das ações
Revolucionárias", de 1869, uma verdadeira cartilha do terrorista, o ideal do
comportamento niilista.
O Catecismo do Revolucionário
2 - No mais profundo do seu ser, não só de palavra, mas de fato, ele rompeu
todo e qualquer laço com o ordenamento civil, com todo o mundo culto e todas
as leis, as convenções, as condições geralmente aceitas, e com a ética deste
mundo. Será por isso seu implacável inimigo, e se continua vivendo nele será
somente para destruí-lo mais eficazmente.
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5 - O revolucionário é um homem perdido. Implacável com o estado e, em
geral, com toda a sociedade privilegiada e culta, de quem ele não deve esperar
piedade nenhuma... Cada dia deve estar disposta a morte. Deve estar disposto
a suportar a tortura
Fonte: Franco Venturi - El populismo ruso, 1975, Vol II, pag. 595-6
O super-homem de Nietzsche
Nietzsche (1844-
1900), o criador do
super-homem (óleo
de Baroda)
Despreza a religião cristã, com seu Deus morto, cuja ética ele considerou uma
espiritualização da antiga casta dos sacerdotes que se juntou à fraqueza, à
pobreza e à covardia da gente comum. O Cristianismo é uma teologia de
ressentidos, uma fé de enfermos e de desgraçados. Liberto das cangas
pesadas e inibidoras da moralidade cristã e burguesa em que foi educado e
formado, o super-homem, seguramente, irá forjar "com companheiros que
saibam afiar a sua foice" uma nova moralidade. Habitando "a casa da
montanha" ou a floresta, incessantemente superando a si mesmo, altivo como
a águia e astuto como a serpente que acompanham Zaratustra, o seu
anunciador, ele, com seus colaboradores, chamados de "destruidores e
desprezadores do bem e do mal", inscreverá "valores novos ou tábuas novas".
Ele é o devir a ser, ele é o futuro.
As características do super-homem
Como se Pela personalidade extraordinária e pelo caráter forte,
reconhece inquebrantável. Não pelo nascimento nem pela educação, mas
pela inequívoca presença e fascínio que exerce sobre os
demais. Por sua olímpica arrogância.
Onde ele se No futuro, no devir a ser, ele trará as novas tábuas não mais
encontra presas aos conceitos do bem e do mal
Qual a sua A casa da montanha, os altos picos, acompanhado pela águia e
morada pela serpente, bem distante da moralidade convencional e do
cristianismo
Quais as leis As que ele mesmo faz. O super-homem é o legislador de si
que obedece mesmo e o autor das suas próprias e exclusivas regras
O que ele O seu corpo, do qual não tem vergonha. Ele se exibe, se
ama mostra, aceita a sensualidade como natural e não tem a mínima
idéia do que é ou representa o pecado. A vida é proliferação e
exuberância, é domínio, amor e crueldade. Em seguida a isso,
ama os valentes, os corajosos, os que dizem sim a vida, os
audazes que não se prendem aos limites e não temem o
desconhecido.
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Quais são Os sacerdotes, os pregadores da morte, seres vingativos que
seus detestam a vida e veneram o além. O cristianismo com sua
inimigos moral de escravos, de gente impotente e ressentida com a vida.
O que ele A canalha, o populacho, porque envenena tudo o que toca. O
detesta seu sentimentalismo mela tudo, tem bocarra grotesca e sede
insaciável. Chega a duvidar que a vida tenha a necessidade
deles. Não tem consolo para o corcunda, para o doente, para o
fraco e covarde. Quer que eles desapareçam, que sumam.
O que mais A idéia de igualdade defendida pelos democratas e pelos
odeia socialistas. O injusto é tentar fazer iguais os desiguais.
A Morte de Deus
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Deus, uma hipótese descartável
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Deus é alienação
O arremate disso deu-se nas ciências naturais com as descobertas dos bacilos
e micróbios pelo doutor Pasteur, na França em 1863, e nas descobertas do
doutor Koch na Alemanha, em 1882. Eram microorganismos que estavam por
detrás dos processos de putrefação e das doenças, como tifo e a tuberculose,
que assombravam os homens daqueles tempos, e não nenhum desejo do Ser
Supremo em punir os pecadores.
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Doutor Pasteur e doutor Koch,
o bacilo é o inimigo
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O pensamento de Nietzsche
Nietzsche em 1870
Em defesa da Cultura
Foi um choque para ele. Ainda estonteado pelas informações que recebera,
refugiou-se na casa do historiador da cultura Jacob Burckhardt (1818-1897), o
célebre helenista e historiador da cultura, pesquisador da Itália renascentista,
que igualmente estava desconsolado. Acreditaram os dois amigos que toda a
arte ocidental estava ameaçada. Séculos de beleza estavam em vias de ser
totalmente devastados pelo vandalismo das massas parisienses revoltadas.
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A destruição da Coluna
de Vendôme
(Paris,1871)
A rebelião dos escravos na moral se deu devido a sua impotência para destruir
com a escravidão (ou o seu avalista, o poder romano). A nova religião - o
cristianismo - tornou-se o instrumento deles para canalizar o seu ódio
impotente, um "ódio que tinha a contentar-se com uma vingança imaginária". O
produto desse ressentimento foi fazer com que os escravos, a "raça inferior e
baixa", tornassem tudo aquilo que fosse digno e nobre em algo pecaminoso.
Transformaram a prostração e a pobreza em virtude, e a abjeta covardia de dar
o outro lado da face em caso de agressão, num ato sublime de perdão.
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Via, portanto, o cristianismo como uma doença maligna que havia atacado o
Império Romano, contribuindo para que ele sucumbisse vitimado por uma
espécie de "febre das catacumbas". E, pior, "a mentalidade aristocrática foi
minada até o mais profundo de si própria pela mentira da igualdade das almas;
e se a crença na prerrogativa da maioria faz e fará revolução - é ao cristianismo
que devemos sua difusão. São os juízos de valores cristãos que qualquer
revolução vem transformar em sangue e crime. O cristianismo é uma
insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: O Evangelho dos
pequenos tornado baixo".
"Deus está morto!" Foi sua mais célebre proclamação. Como conseqüência, os
homens deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional
divulgada pelo cristianismo; um retorno "à ordem de castas, à ordem
hierárquica [...] para a conservação da sociedade, para que sejam possíveis
tipos mais elevados, tipos superiores - a desigualdade dos direitos é a condição
necessária para que haja direitos". Concluiu dizendo: "Quais são aqueles que
mais odeio no meio da canalha dos nossos dias? A canalha socialista, os
apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o contentamento do trabalhador no
seu pequeno mundo - que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança [...] a
injustiça nunca reside na desigualdade dos direitos, ela está na reivindicação
de direitos iguais".
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Nietzsche e a História
Em busca do super-homem
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Desde jovem
fascinou-se pela elite
O pensamento de Nietzsche
O culto ao gênio
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A influência de Dostoievski
Dostoievski previu a
revolução niilista
Uma das influencias mais significativas que Nietzsche recebeu foi-lhe inspirada
pela leitura de Fédor Dostoievski (1821-1881). O escritor russo foi o primeiro,
sob o enfoque cristão, a detectar o perigo da emergência do homem - idéia, ou
do homem-deus enaltecido pelos românticos, desde os tempos de Fichte. A
moderna sociedade liberal e progressista ao atacar os valores religiosos , sem
se dar conta do perigo, abria uma brecha nos valores estabelecidos por onde
aflorava o terrível homem-idéia, o indivíduo ateu e materialista que devotava
sua vida a favor de uma causa, normalmente de inspiração niilista. Ele era um
perigoso abnegado e um obcecado que rompia com os valores da sociedade,
criando um universo ético próprio, só dele, totalmente afastado do cristianismo.
Pois foi justamente este homem-idéia, esse ateu de novo tipo, que Dostoievski
via com angústia e apreensão, que se tornou o arquétipo do novo homem
moderno, é que foi o herói de Nietzsche. Ele, e somente ele, teria a coragem
de doravante assumir a realidade de um mundo onde Deus estava morto. Mas
isso estava longe de significar uma vida sem sentido como muitos moralistas e
homens de fé acreditavam. Bem ao contrário! O terrível dito de advertência de
Dostoievski de que "se Deus esta morto, tudo é permitido", que o russo
entendia como uma chamamento à licença, à desordem e ao crime, Nietzsche
entendeu como uma liberação. A possibilidade do indivíduo construir o seu
destino não mais tolhido por qualquer regra, por qualquer impedimento,
dilatava os horizontes para extensões impensadas.
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A liderança do super-homem
O manifesto de Zaratustra
As metamorfoses do espírito
Mas esse devir radioso, liberto da moral passada, não é um lugar reservado a
todos "[...] Na árvore do futuro, construamos o nosso ninho; para nós os
solitários, águias deverão trazer alimento em seus bicos! E, como fortes ventos,
queremos viver acima deles, vizinhos das águias, vizinhos da neve, vizinhos do
sol: assim vivem os ventos fortes. E tal como o vento forte, quero algum dia,
soprar no meio deles [da canalha] e, com o meu espírito, tirar o respiro ao seu
corpo: assim quer meu futuro". Zaratustra detesta "os pregadores da igualdade"
que, segundo ele, não passam de " tarântulas e bem ocultas almas vingativas".
Concluindo não querer "ser confundido com esse pregadores da igualdade.
Porque, a mim, assim falava a justiça: os homens não são iguais".
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Zaratustra esperançoso olha para a frente: "A minha águia está acordada e,
como eu, presta homenagem ao sol. Estende suas aduncas garras de águia
para a nova luz. Sois os animais certos para mim; eu vos amo. Mas faltam-me,
ainda, os meus homens certos!"
Maquiavel e Nietzsche
Maquiavel, o teórico do
amoralismo
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O pensamento de Nietzsche
O programa do super-homem
A vontade de poder
M.Foucault,
influenciado por
Nietzsche
A política de domínio
O mais forte faz suas próprias regras, estabelece para si qual é a melhor
conduta e não espera de forma nenhuma que os outros o sigam (é o "façam o
que eu digo e não o que eu faço" de Napoleão). Ele não deve estranhar se o
consideram duro e insensível, quiçá até desumano, pois estes são os atributos
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do super-homem, que trafega soberbo no seu Olimpo particular e só tem
gestos generosos para com os demais na medida em que isto o enaltece ou
satisfaz.
Uma contra-utopia
A obra de Nietzsche, sob o estrito ponto de vista político e ideológico, foi a mais
profunda e radical manifestação intelectual contra as grandes cartas e
documentos que se posicionaram pela e igualdade e liberdade que vieram à luz
na cultura ocidental, desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão
da Revolução Francesa, passando pelo Manifesto comunista de Marx e Engels,
até as leis sociais da sua época.
O Pensamento de Nietzsche
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1994. Trata-se de uma complementação dos dois tomos
escritos por Heidegger, enfocando a vida mesclada à obra
do pensador. É também monumental, com 865 páginas, e
extremamente agradável de se ler.
Nietzsche filósofo
A filosofia mundana
A filosofia do super-
homem (ilustração de R.
Edney)
Neste nervosismo para cumprir com a obra (com a qual todo seguidor de
Nietzsche obrigatoriamente deve comprometer-se), "uma máquina em
movimento contínuo", a racionalização torna-se um impedimento, um freio
intelectual a ser desativado ou destravado. Não que a razão seja dispensada
mas sim que ela apenas deverá servir como um instrumento da ação e não
para atravancá-la. Pode-se dizer que os símbolos mais precisos do seu
filosofar são a ponte (a travessia, o ir para o outro lado, o transcender), e o
trapézio (a busca do perigo, do risco, de tentar viver no limite máximo das
experiências possíveis), para fazer da vida uma grande aventura. Assim
despreza os que acusam-no de fomentar a hybris, o excesso de ação, a falta
de limites, o exagero.
Esse ser de Nietzsche tem um fim em si mesmo, ele é a fonte exclusiva da sua
energia, ele é o seu próprio consolo porque, afinal, "Deus está morto!" Mas de
onde extrair firmeza para o extraordinário desafio que é viver num mundo sem
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Deus? A que reservas humanas recorrer? Justamente aquelas, as mais
ocultas, as que foram sufocadas pelos valores religiosos e pela racionalidade
dos metafísicos, as virtudes do instinto, da preservação, da agressão, "o lado
mais poderoso, mais temível, mas verdadeiro da existência, o lado em que sua
vontade mais exatamente se exprime"(Vontade de Poder - 476). Deve-se
explorar esse interiores, "nossas plantações e jardins desconhecidos" .. pois
"somos todos vulcões esperando a hora da erupção"(Gaia Ciência, I,9). Esse
titã solitário e viril, tal como um deus de si mesmo, busca então as alturas para
fugir do ar empestado pelas multidões e pelo agito dos mercados, procurando
lá em cima nas estratosferas a companhia das estrelas. É com ele que as
águias se identificam.
O homem é um devir
Portanto, ele não vê na Natureza uma mãe dadivosa e boa como Rousseau a
imaginou, mas sim uma madrasta que ao mesmo tempo que lhe permite a vida
é avara nas suas benesses: exuberante na sua licenciosidade mas mesquinha
nos seus benefícios. Exatamente por isso, a conquista seja lá do que for tem
um preço e um sabor incomparável. A decisão de enfrentar as coisas porém
não é uníssona e nem traz resultados iguais. Alguns se decidem e vencem, os
fortes; outros não, os fracos, os covardes. Merecem eles viver? Cabe à árvore
da vida suportar em seus galhos esses frutos inúteis, bichados, estragados,
sem esperar que nenhum vento salutar os abale e os derrube?
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A psicologia de Nietzsche
A linguagem do fraco
Havendo uma linguagem do forte, há por sua vez uma do fraco, uma linguagem
do rebanho - a amarga retórica dos cativos. É dela que deve-se precaver. Há
nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do
mundo e da sua vida aos outros. Incapaz de assumir a sua responsabilidade
pessoal (atributo apenas dos fortes), seja lá no que for, o medíocre, o pequeno,
o de " alma estreita", transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e
decepções a tudo o que está além e acima dele (em Deus ou no diabo, nos
nobres, no senhor, no patrão, etc..). O sentimento melindrado do rebanho,
expressão coletiva do ordinário e do baixo, volta-se então contra o que se
destaca, para o excepcional, acusando-o com dedos numerosos e trêmulos de
não ter fracassado e sucumbido na vida como os demais. Condena igualmente
"as paixões que dizem sim": a altivez, a alegria, o amor do sexos, a inimizade e
a guerra - enfim, "tudo o que é rico e quer dar, gratificar a vida, dourá-la,
eternizá-la e divinizá-la - tudo o que age por afirmação". (A Vontade de Poder -
479)
O dominado, o pequeno, o plebeu, é um ser aviltado. Ele não tem palavra nem
se guia pela verdade. Vive de estratagemas, quase todos bem longe do que
poderiam ser considerados como dignos ou honrados. Isto, por sua vez, ira
fazer com que Nietzsche denuncie a existência de um universo externo ao
indivíduo superior, composto, acima dele, por um poderosos discurso moral,
religioso e metafísico, repressor, e, abaixo dele, pelo ressentimento do
rebanho, que faz com que as pulsões naturais, fonte das suas características
maiores que alimentam o seu talento e o seu desafio, impossibilitadas de virem
a se realizar, voltem-se para o seu interior, corroendo-o, aviltando-o,
sufocando-o. E o que diz essa acusação opressora? Que tudo aquilo que
percorre no íntimo do humano, que seus instintos e fantasias outras que lhe
são sugeridas nos seus sonhos, são em geral pecaminosos, indignos,
profanadores de uma pureza que ele deveria preservar para poder salvar-se.
Que, dizem-lhe mais, a busca do ser bem dotado pela afirmação pessoal e pelo
exercício legitimo das suas qualidades não passa de orgulho, de hybris, de
ambição desmedida. O resultado disso, dessa crueldade para com a própria
espécie, é que o homem, psicologicamente mutilado, "torna-se um animal
doente". É um ser eternamente atormentado por ter que viver com uma
carnalidade e sensualidade latente, exigindo coisas que ele sempre terá que
negar, ocultar, contornar e sepultar, obrigando-o a rastejar frente a deuses que
o julgam culpado.
Os negadores da vida
De certo modo, ainda que por outro ângulo ideológico, Nietzsche segue a
tarefa da Ilustração no seu combate ao sacerdote. Não se trata somente de
alguém que vive da exploração da superstição e da crendice dos simples, que
quer manter o povo na ignorância para usufruir de prestigio e poder que a
posição clerical lhe confere. O homem de preto para Nietzsche é algo ainda
pior. É um inimigo da vida, ele persegue com denodo toda e qualquer forma de
expressão de autenticidade, de criatividade, de sensualidade, denunciando-a
como fruto do orgulho e da arrogância, tratando-as como uma perigosa
manifestação do pecado. É, pois, toda uma cultura religiosa milenar, herdada
dos mandamentos judaicos e do clericalismo romano, estruturada nos
mandamentos do "Não!"( "Não invocarás ..não roubarás...não matarás, etc...),
que deve ser denunciada em favor de uma doutrina da afirmação, que enfatize
um altissonante "Sim!"
Dionísio, o deus da
folgança
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reacionário, dedicou-se a um trabalho de sapa para abalar os fundamentos
deles, negando-se a aceitar fosse o governo da massas como o regime dos
reis. A síntese disso foi o super-homem que, simultaneamente, afastava-se das
multidões e dos socialistas e desconsiderava os sacerdotes e os monarcas.
Hegel, o paradigma
da filosofia alemã
moderna
Termo Significado
Niilismo Expressão polivalente. Movimento intelectual e político do
(Nihilismus) século XIX, e também expressão usada por Turgueniev
para definir a descrença nas tradições religiosas e
institucionais até então vigentes. Os crentes do Nada (do
latim nihil) talvez fosse apropriado dizer, apesar de
paradoxal ou contraditório. Assim classificaram-se os
militantes do ateísmo, os anarquistas, os populistas
russos, e todos aqueles que se empenhavam em desafiar
as normas de comportamento e a duvidar ostensivamente
da religião e da existência de Deus. Uma das marcas da
modernidade.
Transvaloração Exigência da filosofia nietzschiana na recuperação dos
(Umvertung aller valores nobres perdidos, fazer do "mau" voltar a ser
Werte) "bom", elogiar o orgulho, a vaidade, a soberba e a
arrogância humana, e até o desejo de vingança, desprezar
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o que é vil, o que é fraco, o que é humilde, o que recende
à ralé. Inverter totalmente os valores éticos do
cristianismo, reabilitando os antigos valores esgotados da
cultura. De certa forma é a restauração do ethos pagão
que girava ao redor do herói e do guerreiro intrépido.
Super-homem Teoricamente aquele que irá superar (Über) o homem. Um
(Übermensch) novo ser que, trazendo as novas tábuas, assumirá na
totalidade a responsabilidade de viver num mundo ausente
de Deus. Caracteriza-se por sua determinação absoluta,
pela confiança em sua intuição, pelo seu caráter
inquebrantável, por uma solidão ativa, corajosa, e sem
concessões no tocante a sua meta (Werke). Ele é um
criador, um duro, que não se deixa tomar pela compaixão,
dele é o devir.
Vontade de Trata-se da pulsão permanente pela vida e pelo domínio.
potência (Wille zur Requer a mobilização completa das energias, físicas e
Macht) mentais, para incessantemente conduzir as coisas às
últimas conseqüências. Wille zur Macht é o domínio e a
superação de si, das debilidades, e, também domínio
sobre os outros e sobre a natureza. A vontade liberta
porque é criadora.
Eterno retorno Repto nietzscheano à idéia do progresso dos
(ewige Widerkunft) evolucionistas; à divisão em três etapas da história dos
positivistas; à crença do cristianismo na salvação da alma,
nascida em pecado e redimida pela graça. É uma
retomada da concepção cíclica (ciklós) dos pitagóricos e
dos estóicos que viam um eterno perecer e renascer da
natureza e da história. Tudo que houve exaurido o Grande
Ano, voltará a ocorrer, intermediado pelo fogo e pela
destruição periódica.
44
Richard Rorty
Publicado originalmente no South African Journal of Philosophy, n. 10 v. 3,
1991
Traduzido por Paulo Ghiraldelli Jr.
Penso que temos de admitir que há aqui uma contradição entre as passagens
em que Nietzsche vê o conhecimento humano como erros úteis para a vida e
aquelas que simplesmente deixam de lado toda idéia de verdade como
fidelidade a uma realidade antecedente. As últimas são passagens que nos
incitam a simplesmente apagar de nossas mente noções tais como "verdade",
"erro", "aparência" e "realidade". Essas noções podem ser substituídas por
noções tais como "crenças vantajosas para certos propósitos, mas não para
outros" e "uma descrição de coisas úteis para certos tipos de pessoas, mas
não para outros". Estas são noções completamente pragmáticas, noções que
abandonaram inteiramente a metáfora da correspondência.
47
Não penso que esta contradição é resultado de um mero descuido, nem estou
convencido de que ela desaparece gradualmente no desenvolvimento do
pensamento de Nietzsche(2). Suspeito que esta contradição força-nos a admitir
que Nietzsche nunca foi suficientemente capaz de livrar-se da esperança de
que, se alguém pudesse, de alguma maneira, libertar-se de Sócrates, poderia
então transcender a condição humana - entrar de algum modo em relação com
alguma coisa mais real do que o humano. Como a vejo, esta incapacidade é o
último vestígio do que Habermas, no seu The Philosophical Discourse of
Modernity, chama "a filosofia da subjetividade" - a tradição que assegura que
os seres humanos tem algo profundo dentro deles mesmos, algo como Razão,
ou uma vontade de potência, algo que nos coloca em contato com alguma
coisa maior do que nós mesmos. Nietzsche foi um grande crítico da idéia de
que a finalidade da vida humana é tentar encarnar em alguma coisa maior do
que o meramente humano, ou filiar-se a tal, mas sua persistente tentativa de
ver todas as crenças humanas possíveis como erros e mentiras parece-me
mostrar que ele foi incapaz de abafar o desejo de transcender a condição
humana. Nisto, ao menos, Heidegger está certo ao ler Nietzsche como mais
um metafísico, certo de ver seu pensamento simplesmente como uma inversão
do platonismo. Mesmo que alguém possa criticar Heidegger com propriedade
por sua leitura altamente seletiva de Nietzsche, deve admitir que há passagens
que podem razoavelmente serem lidas como uma metafísica da Vontade de
Potência.
49
qual todos somos contemporâneos) ser um sintoma de perda de potência, de
velhice, de fadiga fisiológica?" (GT/NT, Tentativa de autocrítica, § 4).
Uma vez que esta aliança com Darwin está selada, a filosofia perdeu a posição
conquistada na cultura dominada pelo otimismo socrático. Pois a posição de
regina scientiarum torna-se vaga quando as ciências são simplesmente
pensamentos de ajuda à manipulação. Se há áreas da cultura que fixam a que
50
a manipulação deve servir, estas serão agora ou a arte ou a política: atividades
de autocriação individual ou social, e não alguma forma de autoconhecimento
socrático. Em uma comunidade democrática essas duas áreas dividem
responsabilidades. O consenso democrático fixará fins sociais, ao passo que a
arte - tomando o termo em um sentido amplo - fixará os fins idiossincráticos
dos indivíduos.
Notas
(2) Ver, contudo, sobre esta última sugestão, o recente e admirável Nietzsche
on truth and philosophy de Maudemarie Clark (Clark 1).
Referências Bibliográficas
3. _______. Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik. In: Werke, vol.
1. Frankfurt: Ullstein, 1979.
51
4. _______. "Versuch einer Selbstkritik". In: Werke, vol. 1. Frankfurt: Ullstein,
1979.
5. _______. "On truth and lies in a non-moral sense". In: BREAZEALE, D. (ed.).
Philosophy and truth: selections from Nietzsches's notebooks of the early
1870's. Nova York: Humanities Press, 1979.
Alexandre Mendonça
Mestrando do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro
Como situar, então, o último texto escrito por Nietzsche para ser publicado - a
autobiografia Ecce homo - em relação à sua pretensão de escapar às
valorações metafísicas, que privilegiam a verdade como critério para a
avaliação do pensamento? Qual seria o estatuto de uma autobiografia no
interior de um pensamento que se pretende radicalmente crítico das noções de
verdade e sujeito? Um texto autobiográfico não implicaria um certo
compromisso com a veracidade? E ainda, não reforçaria a própria categoria do
sujeito tão criticada por Nietzsche? Em suma, a escritura de Ecce homo não
apontaria para um certo enfraquecimento da radicalidade de seu pensamento,
que teria atingido o ápice com o Zaratustra?
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Um leitor não necessariamente perspicaz pode depreender este caráter
eminentemente ficcional da autobiografia de Nietzsche já pelo pouco volume do
texto - demasiado sumário caso se tratasse de uma biografia "cuidadosa" - e
ainda pelo tom provocativo de alguns de seus capítulos (Por que sou tão sábio,
Por que sou tão esperto, Por que escrevo livros tão bons). Ecce homo, a
começar pelo próprio título, é uma paródia de autobiografia. Contudo, não se
trata simplesmente de tornar a autobiografia uma obra de arte, uma ficção que
contrariasse as exigências de veracidade e imparcialidade - uma vez que isto
talvez ainda deixasse intactos os limites que separariam vida e arte - mas de
tornar indecidível a fronteira entre a existência e a atividade artística, entre
realidade e ficção. Trata-se sobretudo de elevar a ficção à condição de ser, de
conceber a própria existência como ficção, ou ainda, para retomar o título de
um aforismo de Humano, demasiado humano, de tornar um livro quase homem
(VM/OS § 208). A concepção de uma autobiografia como obra de arte não se
limita a fazer de uma forma de expressão tradicionalmente comprometida com
a verdade uma forma de expressão artística, mas, sobretudo, parece criar uma
imagem da vida como puro artifício, sem qualquer essência metafísica que lhe
sirva de apoio. Por essa perspectiva, talvez o próprio Zaratustra pudesse ser
lido positivamente como uma ficção que não respeita os limites que separariam
arte e vida, deixando-se contaminar por um certo tom autobiográfico. Zaratustra
e Ecce homo: os dois textos não estabeleceriam entre si uma curiosa
cumplicidade? De um lado uma ficção autobiográfica, de outro uma
autobiografia ficcional. Mas, em ambos os casos, não se tratariam de saídas
originais e antidogmáticas criadas pelo filósofo para expressar seu
pensamento?
Nietzsche sabia o quanto se paga por se tornar imortal: "morre-se várias vezes
em vida" (EH/EH, Assim falou Zaratustra, § 5). Num texto do livro Armarinho de
Miudezas, Waly Salomão, ao comentar o suicídio de Torquato Neto, sugere ser
próprio do poeta "morrer" diversas vezes em vida. E mais: para o autor, o que
parece permitir ao poeta experimentar e continuar a experimentar a "morte" são
as aspas: ele ousa "morrer", mas "morre" entre aspas. O suicídio de Torquato
seria, então, efeito de um esquecimento - ele teria esquecido as aspas e
simplesmente morrido. Se nos apropriássemos desta idéia e nos
esforçássemos por lançar alguma luz sobre a chamada morte filosófica de
Nietzsche, seríamos tentados a admitir que o filósofo, em seus escritos, e
sobretudo em Ecce homo, sempre soube lidar com as aspas ao flertar com a
"loucura". Talvez, no colapso de Turim, Nietzsche tenha delas se esquecido, e,
então, enlouquecido literalmente.Talvez a máscara da loucura, vestida com
tanta freqüência, tenha lhe pegado à cara - como sugere a Tabacaria, de
Fernando Pessoa (Pessoa 9, p. 256). Ou talvez pudéssemos compreender esta
experiência singular, não universalizável, de uma forma absolutamente
afirmativa, como uma aventura original, que lhe teria permitido livrar-se da
máscara enrijecida do homem comum, e fazer variar sobre o seu não-rosto
identidades múltiplas - daí as estranhas insígnias para seus bilhetes pós-
colapso, daí afirmar ser no fundo todos os personagens da história. E assim,
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talvez ainda valesse a pena atentar para uma canção de Caetano Veloso, na
qual o suposto eu-lírico, além de se confundir com Renato Aragão, Mussum,
Dedé e Zacarias - verdadeiros bufões da civilização contemporânea - e
lembrar, repentinamente, que sua identificação - seu registro geral - carece de
revisão, ainda nos adverte: "Não me digam que eu estou louco/ É só um jeito
de corpo/ Não precisa ninguém me acompanhar" (Veloso 11, p. 46). Mas isso
já valeria um outro texto, com outras palavras.
Referências Bibliográficas
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