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H á pouco mais de 100 anos os limites da história nas uma visão transdisciplinar poderá enxergar o objeto
abrangidos pela historiografia humana alcança- plurifacetado que é o processo comunicativo do homem.
vam modestos períodos de poucos milhares de E se concordamos que processos comunicativos são cons-
anos. Hoje o homem tenta lançar pontes (ainda que hipo- truções de vínculos, então temos de dizer também que a
téticas) não apenas sobre a origem do universo, sobre o rede dos objetos com os quais nos comunicamos encon-
chamado big bang, mas também sobre as raízes remotas tra-se em franca expansão, tal qual o universo. Expansão
dos códigos da comunicação humana. Constata que a ca- significa aqui não apenas espaço e tempo cada vez maio-
pacidade comunicativa não é privilégio dos seres huma- res; significa também relações internas cada vez mais
nos; está presente e é bastante complexa em muitos ou- numerosas. Há, portanto, um crescimento para fora e um
tros momentos da vida animal, nas aves, nos peixes, nos crescimento para dentro. Um vetor nos conduz ao infini-
mamíferos, nos insetos e muitos outros. O homem procu- to e outro ao transfinito. A conseqüência mais imediata é
ra compreender a complexidade de sua comunicação a que o instrumental de que a ciência dispunha para a in-
partir de uma reconstrução hipotética da evolução filo- vestigação dos processos comunicativos seguramente não
genética de seus códigos. É como se o tempo de nossa consegue mais dar conta da complexidade do objeto.
história se tivesse expandido também em um tipo de ex- Vejamos alguns aspectos desta complexidade, lembran-
plosão. do sempre que a palavra “complexus” vem do latim e tem
três grandes grupos de significados: aperto, abraço; pele-
EXPLOSÃO DA INFORMAÇÃO ja, combate corpo a corpo; e amor, vínculo afetuoso (Fa-
ria, 1967:216). O conceito pressupõe, em todos os seus
Os recortes sincrônicos de breves períodos da história três significados, uma ação entre pelo menos dois sujei-
não dão mais conta das necessidades cognitivas da atua- tos, portanto, algum tipo de vinculação, o que é, sem dú-
lidade. Expande-se o tempo que deve ser conhecido e vida, instrumental apropriado para o campo de estudos
expande-se o espaço dos objetos que devemos levar em da comunicação.
conta para o conhecimento de uma determinada área. A
ampliação do espectro visível espelha o espantoso cresci- COMUNICAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO
mento dos objetos com os quais o homem hoje, de algu- ESPAÇO-TEMPO
ma forma, tem de lidar, seja como objeto de sua investi-
gação científica, seja como conhecimento que modifica Todo processo comunicativo tem suas raízes em uma
sua práxis. Com esse espectro cada vez mais amplo, ain- demarcação espacial chamada corpo. O que se denomina
da em crescimento exponencial, pode-se dizer que não “comunicação” nada mais é que a ponte entre dois espa-
apenas houve e está havendo uma explosão informacio- ços distintos. A consciência deste espaço enquanto enti-
nal na sociedade humana de nosso tempo, como também dade autônoma inicia-se no momento do nascimento. A
se pode dizer que a investigação da comunicação humana mudança de um espaço quente e aquoso para um espaço
passa por uma explosão similar, compreendendo que ape- frio, aéreo e hostil exige a manifestação explícita do novo
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ser, seja pelo choro, seja pelas outras linguagens de seu SISTEMAS BÁSICOS DE VINCULAÇÃO
corpo: linguagens térmicas (a febre ou a hipotermia), lin-
guagens olfativas (odores normais e anormais) ou lingua- As investigações dos chamados sistemas afetivos en-
gens visuais (arroxeamento ou amarelecimento da pele, tre primatas superiores, dos quais nós humanos somos
da face, dos lábios, cor das fezes). O nascimento deveria parte, nos trazem esclarecimentos essenciais a respei-
ser definido como momento inaugural de toda comunica- to da natureza e da motivação dos vínculos primor-
ção social, conforme afirma Oliveira (1995). O momento diais de seu sistema comunicativo. O biólogo H. F.
da criação de vínculos de linguagem entre o bebê e a mãe Harlow (1972), em um famoso experimento a respeito
será a matriz primeira da complexa comunicação social. do conceito de amor materno entre chimpanzés, clas-
Para o recém-nascido não há outro objeto senão seu pró- sifica os cinco sistemas afetivos de base em: sistema
prio corpo. É o corpo que transmite suas mensagens, é a afetivo maternal; sistema de amor do filho pela mãe;
respiração, a temperatura, é a vibração das cordas vocais sistema afetivo da mesma faixa etária; sistema afetivo
que produz o choro que se transformará mais tarde em heterossexual; e sistema paternal ou adulto. As inves-
sons articulados. E talvez os seus primeiros e mais im- tigações de Harlow apontam para uma compreensão
portantes sentidos receptores neste momento não sejam complexa dos vínculos afetivos (e comunicativos) pri-
nem a visão, nem a audição ou o olfato, mas o tato e a mordiais entre os primatas. Revelam como cada um dos
propriocepção (Montagu, 1986). A partir de sua inteli- sistemas interfere no outro e como a sociabilidade de
gência tátil e proprioceptiva, desenvolverá a consciência um indivíduo pode ser prejudicada por falhas ocorri-
de corpo e, conseqüentemente, seu primeiro meio de co- das em um dos sistemas básicos.
municação. Também as descobertas da Etologia Humana e Com-
Assim, é de enorme relevância o conceito de “mídia parada têm constituído uma vertente importante das in-
primária”, formulado por Harry Pross em seu livro vestigações dos meios primários. As descobertas de Eibl-
Medienforschung (Investigação da mídia). As investiga- Eibesfeldt, em seu livro Amor e ódio (1993), oferecem
ções da mídia primária, o corpo e suas incontáveis possi- subsídios importantes para uma arqueologia da comuni-
bilidades de produção de linguagens têm sido relegadas a cação dos meios primários. O autor estuda os padrões e
um segundo plano nas ciências da comunicação (mas não as propensões ou as dificuldades do homem para agre-
na Psicologia, na Etologia Humana, na Antropologia). Os gar-se em uma sociedade anônima complexa, sendo oriun-
sons e a fala, os gestos com as mãos, com a cabeça, com do de pequenos grupos individualizados. A necessidade
os ombros, os movimentos do corpo, o andar, o sentar, a de estabelecer vínculos amistosos com estranhos, domi-
dança, os odores e sua supressão, os rubores ou a palidez, nando sua própria agressividade, termina por modificar o
a respiração ofegante ou presa, as rugas ou cicatrizes, o sistema comunicativo do homem, levando-o a mediações
sorriso, o riso, a gargalhada e o choro são linguagens dos sofisticadas de suas mensagens básicas de amor e ódio.
meios primários. Assim, afirma Pross: “toda comunica- Em seu El hombre preprogramado (1983), ele faz um
ção humana começa na mídia primária, na qual os indiví- mapeamento dos gestos básicos de vinculação presentes
duos se encontram cara a cara, corporalmente e imediata- nas mais diversas culturas e povos, demonstrando o pa-
mente, e toda comunicação retorna para lá” (Pross, pel importante da mídia primária na constituição dos vín-
1972:128). culos comunicativos.
Em época de adoração das tecnologias da chamada Por fim, devem-se considerar ainda indispensáveis
“virtualidade”, nunca será demais relembrar esta verda- para a investigação das ciências da comunicação as fren-
de, afirmada com pioneirismo pelo pensador alemão. tes de trabalho, como aquela aberta pelo etólogo ho-
Aquilo que Pross já dizia em 1972 (e que repete em seu landês Frans de Waal. Em seu último livro Good
Sociedade do protesto de 1997) continua cada vez mais natured, de 1996, ele trata das origens dos conceitos
atual. A instância “corpo” é fundante para o processo co- de “certo” e “errado”, quer dizer, de um protoconceito
municativo. É com ele que se conquista a vertical, a di- de ética entre os chimpanzés. Em seu outro livro
mensão do espaço que configura as codificações do po- Peacemaking among primates, de 1989, investiga os
der. É com ele que se conquista a dimensão da horizon- códigos da diplomacia, da preservação da paz e da ne-
talidade e as relações solidárias de igualdade. É com o cor- gociação de conflitos entre chimpanzés, bonobos e
po, gerando vínculos, que alguém se apropria de seu pró- babuínos, mostrando a sofisticação destas operações de
prio espaço e de seu próprio tempo de vida, compartindo-os prevenção e reparação de vínculos deteriorados.
com outros sujeitos. Mas é também aí, no estabelecimento Em resumo, a Etologia tem-nos ensinado que o espec-
de vínculos, materiais ou simbólicos, que inicia a apropria- tro dos processos comunicativos e suas raízes são muito
ção do espaço e do tempo de vida de outros. mais amplos e profundos do que se acreditava. E que a
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preender o cérebro é preciso interrogar os mitos, as obras de BYSTRINA, I. Semiotik der Kultur. Tübingen, Stauffenburg, 1989.
EIBL-EIBESFELDT, I. El hombre preprogramado. 4a ed. Madrid, Alianza, 1983.
arte, as sociedades, a história, mas para compreender os mitos,
__________ . Liebe und Hass. Zur Naturgeschichte elementarer
as obras de arte, as sociedades, a história, é preciso interro- Verhaltensweisen. 16 a ed. München, Piper, 1993.
gar o cérebro” (Morin, 1973:19). FARIA, E. Dicionário escolar latino-português. 4a ed. Brasília, MEC, 1967.
De forma análoga, o comunicólogo espanhol Vicente GAZZANIGA, M. “The split brain revisited”. Scientific American. Julho 1998,
p.35-39.
Romano (1993) propõe uma “ecologia da comunicação”,
HARLOW, H.F. “Love created, love destroyed, love regained”. In: CHAUVIN,
um pensamento processual que não ignore os vínculos de R. (org.). Modèles animaux du comportement humain. Paris, CNRS, 1972,
p.13-60.
sentido, uma perspectiva mais ampla e histórica que per-
IVANOV, V.V. Gerade und Ungerade. Stuttgart, Hirzel, 1983.
gunte ao mesmo tempo pelas raízes e pelas projeções
MONTAGU, A. Touching. The human significance of the skin. 3 a ed. New York,
prospectivas sociais, políticas, culturais e psicológicas dos Harper & Row, 1986. (Trad. Tocar. O significado humano da pele. São Paulo,
Summus, 1988. Trad. de Sílvia Mourão Netto).
fatos da comunicação.
MORIN, E. O paradigma perdido. Lisboa, Europa-América, 1973.
Buscar na arqueologia da comunicação suas possíveis
OLIVEIRA, M. do C. de. A comunicação do recém-nascido de 0 a 5 horas: a
projeções futuras e não esquecer, nas incursões prospectivas, respiração. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 1995. Disserta-
ção de Mestrado.
dos vínculos históricos mais profundos, nos quais se plas-
PROSS, H. Medienforschung. Film, funk, presse, fernsehen. Darmstadt, Carl
mam as bases da cultura e de onde provém a seiva do senti- Habel, 1972.
do: esta é a tarefa e este é o desafio que se colocam para a __________ . Der Mensch im Mediennetz Orientierung in der Vielfalt.
Düsseldorf, Artemis & Winkler, 1996.
compreensão desse universo de informações em explosão.
__________ . Protestgesellschaft. Düsseldorf, Artemis & Winkler, 1993. (Trad.
Sociedade do protesto. São Paulo, Annablume, 1997. Trad. Peter Naumann).
ROMANO, V. Desarollo y progreso. Por una ecología de la comunicación.
Barcelona, Teide, 1993.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1989.
BAITELLO Jr., N. O animal que parou os relógios. São Paulo, Annablume, 1997. __________ . Good natured. The origins of wright and wrong in humans and
BONNER, J.T. La evolución de la cultura en los animales. Madrid, Alianza, 1982. other animals. Cambridge, Harvard Univ. Press, 1996.
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