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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto:

teatro sacro e alegorias de um discurso teológico-político


Luciano de Oliveira Fernandes

Levando-se em consideração que o barroco foi um fenômeno urbano no qual a

igreja se tornou um teatro sacro, que os atos litúrgicos assumiram aspecto espetaculoso

e os rituais e festas afirmavam a hierarquia social, que a devoção e importância de um

povoado se media pela suntuosidade ornamental de sua igreja matriz, que a opulência

do ouro era considerada uma dádiva divina e, que a glória de deus era a glória do

estado; percebe-se que a crença no dogma se relaciona com a manutenção do poder.

Fundem-se num só discurso princípios da teologia e da política veiculados pela imagem

e pela alegoria através das linguagens escrita, plástica e teatral. Procurar-se-á apontar as

imagens e alegorias existentes na ornamentação da Igreja Matriz de Nossa Senhora do

Pilar1 de Ouro Preto foram utilizadas para a difusão de um discurso teológico-político

através da pompa e da ostensividade da arte barroca joanina.

1
Houve uma antiga capela de Nossa Senhora do Pilar feita em madeira e taipa no local do atual templo; o
qual foi construído sob administração da Irmandade do Santíssimo Sacramento com projeto atribuído ao
sargento-mor e engenheiro Pedro Gomes Chaves, sendo João Fernandes de Oliveira o arrematante da obra
principal. A construção em adobes e taipa foi iniciada pela nave a partir de 1728-30. Foi demolida a
antiga capela que servia como capela-mor provisória da atual em 1731 (ocasião em que o Santíssimo
Sacramento e Imagens foram trasladados para a Capela do Rosário dos pretos). A estrutura arquitetônica
do novo templo foi concluída em 1733 (ano do Triunfo Eucarístico). Entre 1735-7 a ornamentação da
nave foi realizada integrando seis altares e dois púlpitos laterais em talha dourada. Os altares Santo
Antônio e NS Dores (1º e 3º do Evangelho) antecedem aos outros quatro da nave e talvez sejam da capela
primitiva, mas com os coroamentos refeitos por Antônio Francisco Pombal. Não há documentação a
respeito desses altares laterais e púlpitos, os quais foram construídos por confrarias particulares. Todo
esse conjunto deve se situar no período compreendido entre 1730 e 1740. A reconstrução e talha da
capela-mor entre 1741-54 foi um período conturbado pela falência do arrematante Antônio Francisco
Pombal em 1744 e morte do entalhador Francisco Xavier de Brito em 1751, ano em que foi concluído o
arco-cruzeiro. Reconstrução da abóbada da capela mor em 1770. Os trabalhos de pintura,marmorização e
douramento perduraram até 1774 e são atribuídos a João de Carvalhais e a Bernardo Pires. Em 1781 foi
feito reparo urgente em uma torre. Em 1818 uma parede ameaça ruir e em 1825 houve substituição da
parede de taipa do lado da Epístola por alvenaria de pedra. Em 1848 foram terminados o frontispício e a
torre do Evangelho. A fachada da igreja ganha a configuração atual com aspecto neoclássico. O imóvel
foi objeto de tombamento individual pelo IPHAN, conforme Processo nº 75-T Inscrição nº 246 - Livro de
Belas Artes, Fl. 42, em data de 8 de setembro de 1939. Entre 1952-65 houve obras de restauração
realizadas pelo IPHAN (recuperação dos trabalhos de douramento e pintura). O Museu de Arte Sacra foi
instalado em espaço adaptado no porão sob a sacristia no ano 2000 e reúne peças de escultura, prataria e

1
A classificação geral dos retábulos utilizados para a ornamentação interna dos

templos durante o ciclo barroco-rococó em Minas Gerais denomina como segunda fase

o estilo joanino, ou Dom João V. Devemos aqui pontuar o fato de que os trabalhos de

construção e ornamentação do templo foram realizados no período compreendido entre

1728 e 1848, contudo, a Igreja matriz de nossa Senhora do Pilar apresenta

características internas predominantemente joaninas devido ao período de execução dos

trabalhos de talha e da utilização de mão de obra especializada essencialmente

portuguesa no que diz respeito aos arrematantes, mestres de obra e entalhadores. O

período joanino é o mais carregado e esplendoroso momento do ciclo barroco-rococó

em Minas Gerais. A arte que se produziu nesse momento é tão inebriada, ostensiva e

representativa em aspectos religiosos e políticos.

Quanto aos aspectos técnicos, a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar

apresenta estrutura arquitetônica caracterizada pela justaposição de duas formas

quadrangulares: a primeira correspondente à nave ou corpo da igreja; a segunda à

capela-mor e sacristia (com consistório no segundo pavimento), cujo acesso é feito por

corredores laterais encimados pelas tribunas da capela mor. A forma poligonal da nave

advém de uma estrutura postiça de madeira com pesados esteios que suportam a

armação dos retábulos e das tribunas prolongando-se até a cobertura. Essa forma

confere à nave um aspecto elíptico que cria maior efeito de movimento para o conjunto

da ornamentação interna. Entre essa estrutura de madeira e as paredes de alvenaria

encontram-se, no primeiro pavimento, passagens irregulares que se comunicam pela

parte posterior com os corredores que levam à sacristia e permitem também o acesso aos

alfaias pertencentes à paróquia. Dados coligidos a partir de: Fundação João Pinheiro. Dossiê de
Restauração. Plano de Conservação, Valorização e Desenvolvimento de Ouro Preto e Mariana.
1973/1975; BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v
I e II; e BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais; e de
informações fornecidas pela paróquia.

2
púlpitos. Os retábulos e púlpitos apresentam características do joanino inicial, são

profusamente dourados e excessivamente ornados. O forro da nave é composto por

quinze painéis representando personagens e temas do Antigo Testamento, os quais se

integram à estrutura arquitetônica da cimalha por caixotões curvilíneos e retilíneos com

molduras em marmorizados e faiscados. As paredes são totalmente revestidas por

madeira entalhada, policromada e dourada. A talha da capela-mor inaugura em Minas o

estilo de Francisco Xavier de Brito, já num momento considerado como estilo joanino

evoluído. O trabalho demonstra nítida preocupação arquitetônica e a trama estrutural do

retábulo é organizada em função da tribuna central. Apliques e painéis de talha integram

o retábulo-mor aos painéis parietais de pintura a óleo2. Um painel circular no centro da

abóbada representa a Última Ceia. Integradas à talha das sobrevergas das tribunas da

capela-mor, figuras representam as Virtudes.

No que diz respeito ao conceito de teatro sacro, notemos que a estrutura

arquitetônica do templo se integrada à talha, à pintura e à imaginária; confere ao edifício

um aspecto interno verdadeiramente teatral. Além do fato de a montagem da estrutura

dos altares obedecer a técnicas muito semelhantes às técnicas de cenografia teatral,

notemos que a utilização de recursos como a marmorização (pintura sobre madeira para

cria efeito de mármore) cria uma ambientação ainda mais cênica. Percebemos também o

douramento cria o efeito ostensivo de riqueza e esplendor, mas é um artifício de fina

camada de ouro sobre madeira. Às ilusões não se conferia o caráter de falsidade, pois já

lhes era dado o caráter de representação. Complementam a cena litúrgica os diversos e

luxuosos objetos de cerimoniais3 que ‘davam ao culto aspecto mais digno e elevado’.

2
quatro painéis com os quatro evangelistas (registro parietal superior, nível das tribunas laterais); um
painel representando coluna com trigo e outro com arvore ceifada envolvida por ramos de uva (registro
parietal intermediário); e quatro painéis para as estações do ano (registro parietal inferior)
3
Prataria, imagens e alfaias pertencentes à paróquia e hoje reunidos no Museu de Arte Sacra: turíbulos,
navetas, âmbulas, cálices, patenas, galhetas, sacras, salvas, caldeiras e asperges, espivitadeira, varas e

3
Também os retábulos joaninos muito se assemelham às estruturas utilizadas como

ornato para as bocas de cena dos palcos, encimados por dossel que se abre em

cortinados para deixar entrever o camarim no qual se entronizam imagens do sagrado. O

ritual se confunde com o espetáculo. A cena determina os atos de uma sociedade que

afirma suas relações nesse espaço. Os espaços determinados pelo projeto arquitetônico

definem usos e classes: a nave é destinada aos fiéis, que reunidos em irmandades se

posicionavam em frente ao altar de seu padroeiro. Como nos camarotes de um teatro, os

mais nobres ocupavam as tribunas superiores da nave, enquanto o povo se posicionava

no piso térreo. E como por coxias de um palco, o sacerdote saía da capela mor, passava

pelos corredores irregulares que eram camuflados pela ornamentação da nave e aparecia

no púlpito como num ato de lúdica interpretação durante um espetáculo. A fala

eloqüente do sacerdote era iluminada pelo Divino Espírito Santo que, representado no

abaixa-voz do púlpito, pairava sobre sua cabeça como pairara antes sobre a do Cristo no

Rio Jordão. O espaço anterior à nave (entre a porta central da igreja, o tapa-vento e o

arco que sustenta a sacada do coro) é dividido em dois pavimentos: o segundo é o

espaço do coro e dos músicos; o primeiro é denominado nártex e consiste no espaço no

qual deveriam permanecer os catecúmenos (ainda em preparação para o batismo) e no

qual se instala o batistério (normalmente no lado do evangelho). O arco cruzeiro divide

os espaços da nave e da capela-mor, a qual é destinada ao clero e aos irmãos do

Santíssimo Sacramento. A irmandade do Pilar se posicionaria no espaço compreendido

entre o arco-cruzeiro e a mesa de comunhão (nome que se dá à parte central da cercada

que divide a nave da igreja em dois espaços, local onde é ministrado o sacramento). É

cruzes processionais, custódias, ostensórios, palmas, castiçais e tocheiros, recipientes para os santos
óleos, esquife, pedras de penitencia, paramentos, e a mesa de Eça utilizada nas exéquias (de corpo
ausente) de D João V. Num dos corredores laterais à capela mor podem ainda ser observados
curiosos quadros representando: um mulato como demônio; a morte (esqueleto acompanhado por
atributos macabros como ampulheta, pira, foice, tíbias cruzadas); a ressurreição do cristo; e a fama
(figura feminina).

4
mister observar que tais posições definem uma hierarquia social. O uso dos espaços no

interior do templo demonstra ascendência social e espiritual. No que diz respeito à

ascendência social, observemos que as tribunas superiores à nave colocam em evidência

os nobres, que vêem o povo de cima. Quanto à ascendência espiritual, notemos que, ao

entrar pela porta do templo, classificam-se os não batizados (no nartex), os fiéis (na

nave), o clero e os ministros da eucaristia (irmos do Santíssimo) na capela-mor. O fiel

comum, não iniciado na prática do auxílio dos rituais, apenas adentraria a capela mor

nas circunstancias dos sacramentos da vida adulta: o casamento ou a ordenação clerical.

Ainda se faz importante ressaltar o sentido simbólico que tem o espaço destinado aos

fiéis leigos, a nave. O termo nave significa nau, embarcação. Remete à transcendência

do material para o espiritual na medida em que representa a igreja como condução do

homem ao paraíso após a morte e o juízo final. Durante o ritual, a profusa utilização de

música, de incenso, de iluminação a velas que tremulavam com o vento conferindo

maior movimento às formas da ornamentação, das litanias em latim, do efeito cênico

proporcionado pela ornamentação do templo e pela pompa da liturgia, criam o mais

envolvente arrebatamento dos sentidos: a visão vê os portais do paraíso, os anjos e

santos; o olfato sente a pureza do incenso; os ouvidos percebem os coros dos anjos; o

paladar comunga a paixão do cristo, a redenção dos pecados, a ressurreição da carne, a

vida eterna ao lado de deus pai todo poderoso; as mãos rendem graças e súplicas a deus,

o tato conta o rosário. Também a morte se fazia presente durante os rituais pelo cheiro

dos corpos em putrefação nas igrejas onde ocorriam velórios e sepultamentos em

campas internas que ocupavam todo o piso da nave e da capela-mor. A riqueza, a

exuberância e o impacto dessa cena tendem a envolver o homem barroco, procura nele

despertar a mais profunda emoção para que a fé seja instituída juntamente com a ordem

que se estabelece no rito. Esse espaço cênico produz uma impressão naqueles que se

5
encontram ali inseridos; e há uma clara demonstração dos extratos que compõem a

sociedade e um evidente destaque para aqueles aos quais a sociedade confere destaque

por sua formação religiosa, ou por seus títulos de nobreza. “’É nesse teatro que as

pessoas encenam, então, o papel que cada uma delas assume dentro da rígida e

hierarquizada sociedade colonial”4. Pontuaremos a seguir o significado de algumas

alegorias existentes na ornamentação do templo.

Observemos que o altar-mor é estruturado por colunas salomônicas (que

remetem às colunas do templo de Salomão, representadas no baldaquino do vaticano e

indicam virilidade e força). O coroamento do altar afirma o dogma da Santíssima

Trindade, representado por meio de uma alegoria composta por três figuras dispostas na

forma de um triangulo eqüilátero formado em sua base pelas imagens do cristo (à

esquerda) e de Deus pai (à direita), e tendo ao vértice superior a imagem centralizada de

uma pomba com raios de luz (representando o espírito santo). Cristo é representado

como homem jovem com os estigmas da paixão e sustendo a cruz do martírio; Deus Pai

é representado como homem velho de barbas longas (indicando experiência e

sabedoria), com triangulo sobre a cabeça (remetendo à perfeição dessa forma

geométrica) e um cetro à mão esquerda (representado sua majestade celestial)5. A porta

do sacrário (no qual ficam guarnecidas as hóstias consagradas depositadas em uma

âmbula) apresenta-se como um pequeno painel de talha no qual é representado o tema

da Ressurreição do Cristo (com imagem do cristo envolvido pelo perizônio ascendendo

do sepulcro com a cruz nas mãos, ao lado do sepulcro, madalena vê a tumba vazia). No

topo do trono do camarim há uma imagem do Cristo Ressurreto, na base do trono,

acima do sacrário, a imagem da Senhora do Pilar. O retábulo é profusamente ornado

4
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 72
5
Por vezes a figura de Deus Pai, o Criador, é também representada com a orbi em uma das mãos
(remetendo à criação divina).

6
com anjos de diversos tipos, dentre os quais podemos destacar: anunciantes (anjos de

corpo inteiro com aspecto jovem e vestimenta que se posicionam no coroamento do

altar sobre o dossel e sobre os arcos interrompidos apontando para o trono do altar ou

para a alegoria da trindade); putis (ou no singular, puto, não tem asas, são criancinhas de

colo); adoradores (anjos vestidos de aparência adulta ajoelhados e com as mãos postas

em prece); querubins (cabeças de anjos com um par de asas cada, representam maior

pureza por apresentarem menor porção de matéria); atlantes (anjos de feição adulta com

vestimenta e posicionados sob as colunas do altar como se sustentasse seu peso sobre as

costas, remetem a Atlas). A talha do altar mor parece se alastrar pelas paredes na

capela-mor integrando o entablamento do altar à estrutura das verdadeiras cimalhas

laterais, e integrando a ornamentação do retábulo à das paredes laterais; nas quais se

encontram painéis de talha6 e de pintura.

Os painéis de pintura existentes nas paredes da capela-mor são dispostos,

conforme as regras do decoro, em nível ascendente de acordo com o teor dos temas. Os

elementos mundanos abaixo: as quatro estações (primavera, verão, outono e inverno)

representam a passagem do tempo e a vanicidade da vida terrena. Os painéis que

representam os quatro evangelistas7 (João, Lucas, Marcos e Mateus) são posicionados

entre das tribunas da capela mor. Os evangelistas remetem à difusão da palavra do

Senhor (que também é a palavra da salvação) e são exemplos da salvação pela Fé.

6
Os painéis de talha já apresentam algumas rocalhas (elementos do rococó, posteriores à ornamentação
joanina do templo mas intergrados harmonicamente ao conjunto).
7
Os atributos de São João Evangelista “são a águia, o livro dos evangelhos e a pena, a caldeira de óleo e a
palma do paraíso. (...) A águia simboliza a ascensão aos céus”. São Lucas, patrono dos médicos e
pintores, “tem como atributos o boi, com ou sem asas, o livro dos Evangelhos e um quando com a
imagem da Virgem. O boi simboliza o sacrifício de Cristo”, e o quadro remete à tradição de que ele “foi
o primeiro pintor da Virgem”. São Marcos “tem como atributos o livro, a pena, o leão alado e o livro
dos evangelhos. O leão simboliza Cristo na ressurreição”. São Mateus tem como atributos “um anjo ou
um homem alado, o livro dos evangelhos, uma pena e uma lança”; “exercia a profissão de cobrador de
impostos (...) quando Cristo o convidou para se apóstolo. (...) é invocado contra o pecado capital da
avareza” Conforme CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC,
1993. p 47

7
Devemos ainda lembrar que João remete também à escatologia (aos fins últimos do ser

humano como a morte, o juízo, o purgatório, o inferno e o paraíso), uma vez que é

também autor do livro do Apocalipse (ou livro dos sete selos). No mesmo nível em que

se encontram os painéis dos evangelistas há dois outros painéis. Um deles representa

ramos de trigo sobre uma coluna: remete à eucaristia por trazer o trigo, do qual é feito o

pão, que representa o corpo de cristo; e à força e à segurança pelo sacramento, por trazer

a coluna. O outro painel representa uma árvore ceifada (que remete à morte) envolvida

por ramos de uva (remetendo ao vinho e, logo, a sangue de cristo). Nesses painéis o

corpo e o sangue de cristo se constituem como a força e a segurança da crença no

sacramento se sobrepondo à morte; o dogma do triunfa pela eucaristia. No nível mais

alto da capela mor, um painel circular aplicado no centro do forro (em abóbada de

aresta) representa a Última Ceia, momento em que Cristo instituiu o rito eucarístico.

O arco-cruzeiro é encimado por uma tarja ladeada por dois anjos anunciantes

(um a cada lado) que sustentam acima dela (da tarja) uma coroa (a qual representa a

majestade celestial de Maria e sua coroação pelos anjos). A tarja tem ao centro uma

cartela com a imagem de Nossa Senhora do Pilar sustendo na mão esquerda o Menino

Jesus e na Mão direita uma custódia com o Santíssimo Sacramento. A iconografia dessa

tarja representa o brasão da Irmandade de Nossa Senhora do Pilar, a qual que é a

padroeira do templo e recebe destaque pelo posicionamento de suas armas no topo do

arco; e remete também à irmandade do Santíssimo Sacramento pela presença da

custódia com a eucaristia. E devemos aqui lembrar que a “Irmandade do Santíssimo

Sacramento, que congregava os ‘homens bons’ das principais vilas, foi uma das mais

poderosas daquele período”8. A Invocação à Maria se divide em: mistérios da vida de

8
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 72

8
Maria9; graças e privilégios10; necessidades dos homens11; lugares12; e circunstâncias

diversas13. A devoção a Nossa Senhora do Pilar é uma invocação que remete ao local de

sua aparição, “teve origem na Espanha e, depois da Restauração, se difundiu em

Portugal”14. Segundo a tradição, “São Tiago Menor, após o martírio de Santo Estevão,

esmorecido pelas perseguições aos cristãos, foi pregar o Evangelho na Espanha. A

Virgem apareceu-lhe sobre um pilar, cercada de anjos, confortou-o e pediu-lhe que

edificasse uma igreja a ela dedicada”15.

As hagiografias (histórias sobre a vida dos santos) “estão entre as narrativas da

cultura ibérica mais difundidas no Brasil, oficialmente ou através da religiosidade leiga.

Sobrelevam aspectos de devoção (...) e terão sido os únicos livros que, durante séculos,

muita gente leu”16. Nesse sentido, os retábulos da nave trazem as representações de

Nosso Senhor dos Passos, Sant’Ana, e São Miguel (no lado da epístola); e de Nossa

Senhora das Dores, Nossa Senhora do Rosário, e Santo Antônio (no lado do evangelho).

O Senhor dos Passos representa o Cristo carregando a cruz às costas quando da sua

subida para o martírio no monte calvário. Insere-se no tema cristológico da Paixão,

muito acentuado no culto religioso durante o século XVIII. No que diz respeito à

utilização e fatura das imagens do Senhor dos Passos em Minas Gerais, notemos que

“trata-se de figuras processionais, por isso mesmo de roca e articuladas, que saem em

9
Nossa Senhora da Angústia ou das Dores, da Anunciação, da Assunção ou da Glória, do Bom parto ou
do Bom Sucesso, da Imaculada Conceição, do Desterro ou da Fuga para o Egito, da Expectação do
parto ou do Ó, da Piedade, da purificação (da Luz, da Candelária ou das Candeias), da Soledade, da
Visitação.
10
Nossa Senhora dos Anjos ou da Porciúncula, Madre de Deus, Mãe dos Homens.
11
Nossa Senhora da Ajuda ou do Amparo, da Boa Morte, da Boa Viagem ou dos Navegantes, das
Mercês, das Necessidades, dos Remédios, da Paz.
12
Nossa Senhora de Belém, do Carmo, da Lapa, do Montserrate, de Nazaré, da Penha de França, do Pilar,
de Fátima, de Lourdes.
13
Nossa Senhora Divina Pastora, das Neves, do Rosário ou de Pompéia, do Terço.
14
CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC, 1993. p 30
15
Idem. p 30
16
Ibidem. p 11

9
cima de andores”17. Presentes em Minas desde o princípio do século XVIII, as

irmandades do Senhor dos Passos “eram associações estritamente masculinas e restritas

aos brancos”18, ricos, e muitas vezes aos militares. Juntamente com o Senado da

Câmara, eram responsáveis pelas obras de construção e ornamentação das capelas dos

passos19. O culto a Santana “tem uma ligação estreita com a formação de Minas Gerais.

Chegou com os bandeirantes, em seus oratórios ambulantes, e logo se instalou nas

igrejas matrizes. (...) O culto à mãe da virgem é bem antigo.”20 Na Igreja Oriental, em

Constantinopla, foram edificados em sua honra dois templos nos anos 550 e 705. Na

Igreja Ocidental “o culto a Santana ganharia relevo desde meados do século VIII,

segundo consta no livro pontifical do tempo de São Leão III, por mando do qual pintou-

se na basílica de São Pedro a história de São Joaquim e Santana”21. O Culto a Santana é

associado “à caridade e à cura de doenças (...) coube às confrarias de Santana a

construção de casas destinadas a servir como hospitais e asilos para os pobres, no

momento em que as misericórdias não haviam se fixado na região do ouro”22. Quanto

ao modelo iconográfico23, Santana Mestra é a variante mais recorrente em Minas

Gerais. A outra variante, a Santana Guia (apresenta a Santa de pé trazendo Maria

17
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 84
18
Idem. p 84
19
Conjunto de pequenas capelas com representações da via sacra e inseridas na malha urbana da vila de
acordo com o trajeto das procissões, levava para o urbanismo colonial a teatralidade do ritual religioso.
A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos foi constituída em Vila Rica aos 20/5/1715. Em 1717 a
Procissão dos Passos já era realizada no domingo de ramos. As capelas dos passos foram construídas a
partir de 1728 com pagamentos entre 1728-34 a Manoel Francisco Lisboa pela fatura dos Passos da rua.
Em 1786 a irmandade decidiu reconstruir as capelas em local mais conveniente. Foi o 1º passo
reconstruído entre 1788-92 em obra arrematada por Antônio de Barros. Estrutura autônoma e isolada.
Encontro do Cristo com Verônica representado em painel pintado por Athaíde (tela levada para o
Museu de Ate Sacra do Pilar). Também o Capitão-mor José Bento Soares recebeu pagamentos em 1843
pela obra do Passo de Antônio Dias (na rua Bernardo de Vasconcelos, antiga rua Direita de Antônio
Dias). Dados coligidos a partir de: Fundação João Pinheiro. Dossiê de Restauração. Plano de
Conservação, Valorização e Desenvolvimento de Ouro Preto e Mariana. 1973/1975. / Simões, Josanne
Guerra & Furtado, Júnia Ferreira. Ouro Preto Revisitada: roteiro histórico de seus monumentos
esquecidos. 1981 / BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro:
Record, 1983. v II / e www.iphan.gov.br
20
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 74
21
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 74
22
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 74
23
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 75

10
menina ao colo ou guiada pela mão) é pouco comum em Minas Gerais, mas recorrente

no nordeste brasileiro. Santana Mestra é representada assentada em uma cadeira, tendo a

seu lado esquerdo a Nossa Senhora menina, cujo olhar fixa-se atentamente no livro

apoiado no colo da mãe. Associadas à devoção a Santana estão as devoções a São

Joaquim e São José, que formam com Maria e Cristo a Sagrada Família. Por sua vez, a

devoção a São Miguel e Almas está “vinculada às irmandades para resgate das almas do

purgatório (...) sua importância se igualava às irmandades do santíssimo”24. A sua

representação em Minas Gerais está inserida numa “tradição iconográfica que resulta na

forma de mesclar duas cenas em uma só: a pesagem das almas [psicostasia] e a peleja

contra o demônio”25. Por referência à psicostasia traz geralmente segura na mão

esquerda uma balança; e pela alusão ao Apocalipse (12:7-8) aparece vestido como

guerreiro “portando uma lança (às vezes trocada por uma espada), com a qual desfere o

golpe mortal contra o demônio, que vem pisoteado a seus pés”26. Por uma “mudança de

sentimento por parte dos Irmãos das Almas, que começam a deixar-se sensibilizar pelo

tema relacionado à Paixão de Cristo”27 a partir do final do século XVIII, pode-se

perceber a presença da imagem do Cristo Crucificado ocupando o trono principal do

retábulo, deslocando a imagem de São Miguel para a borda do camarim na altura do

sacrário. A devoção a Nossa Senhora das Dores se insere nos ciclos que procuram

lembrar os sofrimentos da Virgem e é um dos mais recentes temas mariológicos, “sendo

que somente no início do século XVIII o culto veio a obter certa singularidade (...)

como pública e específica desde que o Papa Benedito XIII, em 22 de agosto de 1727,

24
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 73
25
Idem.
26
Ibidem.
27
Idem Ibidem. p 74

11
ordenou aos católicos rezar sobre as sete Dores de Nossa Senhora”28. Em Portugal o

culto foi instituído em 1761 na cidade de Braga pela Congregação do Oratório Divino.

É representada de pé, “com vestimenta roxa, tendo seu peito trespassado por sete

punhais às vezes substituídos por apenas um punhal ou por um diadema com sete

estrelas”29. A imagem da Senhora das Dores é entronizada no retábulo anteriormente

ocupado30 pela Irmandade de Nossa Senhora da Conceição31. Temos aqui um caso de

re-ocupação do retábulo ou de substituição da devoção por parte do grupo. Posicionada

acima do sacrário desse retábulo há também uma imagem do “Menino Deus

abençoando o mundo”32 (criança nua representando Jesus sobre a orbi), a qual se insere

no ciclo cristológico por representar Jesus com imagem de sua infância. No que diz

respeito a Nossa Senhora do Rosário (e os santos negros São Benedito, Santa Efigênia,

Santo Elesbão e Santo Antonio do Noto), o culto chega às minas “ao mesmo tempo em

que os santos ‘bandeirantes’ (Nossa Senhora da Conceição, Santana e São José)”33. Sua

devoção “está associada à ocupação da África pelos portugueses e foi introduzida no

Congo pelos dominicanos (...) no ano de 1570”34. O culto migrou para o Brasil através

dos navios negreiros como um “verdadeiro símbolo da redução dos africanos à religião

católica”35. Considerado uma forma superior de culto a Nossa Senhora, o Rosário “foi

instituído sob a inspiração da Virgem Maria, por São Domingos de Gusmão (...). Seu

surgimento está ligado a um fato histórico concreto: a investida dos cristãos contra os

28
Ibidem Ibidem. p 81 – A saber: “1ª A profecia de Simeão: uma espada de dor trespassará sua alma”; 2ª
a fuga para o Egito; 3ª Perda do Menino Jesus no Templo; 4ª Encontro da Virgem com Jesus a caminho
do calvário; 5ª Morte de Jesus; 6ª Quando recebe o corpo de Jesus morto (a Piedade); 7ª a Soledade de
Nossa Senhora após o enterro de Jesus.” ALVES, Célio. p 92
29
Ibidem ibidem. p 81
30
Conforme apontado em NASCIMENTO, Adalgisa Arantes do. Introdução ao Barroco Mineiro:
cultura barroca e manifestações do rococó em Minas Gerais – Belo Horizonte: Crisálida, 2006. p 14
31
a qual desapareceu ainda na primeira metade do século XVIII, mas que deixou sua existência registrada
no cortejo do Triunfo Eucarístico
32
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 84
33
Idem.
34
Ibidem.
35
HORNAERT, Eduardo (Org). História da Igreja no Brasil. p 384

12
hereges de Albi, na França”36. As bases da devoção foram lançadas pelo dominicano

Álamo de Rupe por volta de 1470. O também dominicano Papa Pio V “atribuiu às

virtudes milagrosas do Rosário a vitória das forças cristãs sobre os turcos, na famosa

batalha de Lepanto, ocorrida em 7 de outubro de 1571”37. Após o século XV o rosário

assume sua forma atual de meditação38. Santo Antônio de Lisboa aparece contemplativo

carregando o Menino Jesus, “cena inspirada em uma visão milagrosa, em que o menino

Jesus aparece ao santo, roçando-lhe carinhosamente o rosto e, às vezes entregando-lhe

um ramo de açucenas, símbolo da pureza e castidade”39. Vivenciou sua vocação

religiosa fora de Portugal e faleceu em Pádua no ano de 1231, o sucesso da devoção de

implantou em Lisboa e cresceu no século XV após a chegada de uma relíquia do Santo.

São a ele atribuídos os poderes de “proteger as casas e as famílias, de advogar causas

justas e menos justas junto à Virgem e ao Menino Jesus; de interceder pelas almas do

purgatório (...) de protetor do amor e do casamento”40. Deve-se ainda apontar o fato de

que a religiosidade leiga atribuiu ao culto dedicado aos santos e à Virgem Maria

características bastante peculiares. O santo “compartilha ‘humanamente’ dos temores,

aspirações e alegrias dos fiéis. Em troca, recebe imagens, jóias, altares e festas. (...)

Santo e ouro, eis a mistura explosiva que forma as Minas Gerais”41.

As alegorias nos sacrários dos altares da nave remetem à eucaristia pela

representação do trigo e da uva. Representa-se também o cordeiro deitado sobre o livro

dos sete selos (Apocalipse) remetendo à segunda vinda de Cristo (durante o juízo final).

A referência à primeira vinda do cristo (para a redenção dos pecados da humanidade)

36
ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 70
37
Idem.
38
“com os quinze mistérios (cinco gozosos, cinco dolorosos e cinco gloriosos; os quinze Padre-nossos, as
150 Ave-Marias e as Litanias). (...) o Papa Joao Paulo II instituiu os denominados ‘mistérios
Luminosos’, elevando paa vinte o número dos mistérios” ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 70; 91.
39
Ibidem. p 73
40
Idem Ibidem. p 73
41
Ibidem ibidem. p 69-70

13
pode ser observada no painel central do forro da nave, no qual o cordeiro é representado

deitado sobre a cruz (símbolo do martírio do Cristo). Os demais painéis do forro da nave

representam cenas do Antigo Testamento (Sodoma e Gomorra, mulher tentando seduzir

José, Judite com a cabeça de Holofernes, Sacrifício de Isac,) e os doutores da igreja

(Jerônimo, Gregório, Ambrósio e Agostinho).

Ainda na nave, sustentados por hastes que se integram à ornamentação,

projetam-se acima dos retábulos laterais até o nível das tribunas seis pássaros de cujos

bicos pendem lustres42. Por sua morfologia indefinida, a tais aves já foram atribuídos os

sentidos de fênix, pelicano, e/ou águia. Observemos aqui a semelhança dessa imagem

com alguns dos atributos de São João Evangelista: “a águia, o livro dos evangelhos e a

pena, a caldeira de óleo e a palma do paraíso. (...) A águia simboliza a ascensão aos

céus”43. A João são atribuídos o Quarto Evangelho, o Apocalipse e três Cartas. Notemos

que muitas vezes a caldeira de óleo tem formato de lampadário e é trazida pelo bico da

águia nas representações do evangelista, imagem similar à dos pássaros que sustentam

os lustres da nave, remetendo à iconografia do evangelista e a seus textos no que diz

respeito à palavra da salvação (evangelho) e à escatologia (apocalipse) indicando o juízo

(luz) e a ascensão aos céus (águia).

Voltando à capela-mor, observemos que, no mesmo nível em que se encontra a

alegoria da Trindade (coroamento do altar mor), há dez figuras esculpidas em madeira

posicionadas sobre as vergas das tribunas das paredes laterais. Duas delas são anjos

posicionados um a cada lado, próximos ao arco cruzeiro, sustendo palmas (a palma do

paraíso representa o martírio do cristo e de sua vitória sobre a morte pela ressurreição).

As demais oito figuras são representações de Virtudes, distribuídas colocando-se quatro

42
Que iluminavam a nave provocando um lúdico efeito cênico de contraste e movimento pela luz das
velas incidindo sobre a talha e as imagens.
43
CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC, 1993. p 47

14
a cada lado. As quatro figuras posicionadas nas sobrevergas do lado do evangelho

trazem cada qual seu atributo: uma cruz; uma âncora; três crianças; uma serpente. As

quatro figuras do lado da epístola trazem: uma espada; uma coluna; uma trombeta; e um

espelho. O termo Virtude, registrado em língua portuguesa a partir do século XIII,

deriva do termo latino “virtus, utis, ‘força corpórea; ânimo, valor, bravura, coragem;

força de alma, energia; boas qualidades morais; mérito”. Sinonímia de austeridade,

castidade, condão e faculdade e antonímia de ardil, vício, indecência e lubricidade”44;

o termo virtude tem as seguintes acepções: “qualidade daquele que se conforma com o

considerado correto e desejável (...) do ponto de vista da moral, da religião, do

comportamento social, do dever, da eficácia, etc. (...) conformidade com o Bem, com a

excelência moral ou de conduta”45. Indica “hábito adquirido ou tendência inata para as

boas ações (...) capacidade de atingir os objetivos ou os efeitos de sua atividade,

finalidade, utilização, etc com eficácia, bom rendimento, mérito, propriedade”46. Para o

platonismo e o aristotelismo é uma “propriedade inerente à particularidade de um

determinado ser, como característica própria e definidora, cuja realização consuma a

excelência ou perfeição deste ser”47. Aplicada à condição humana, “tal definição indica

que cada indivíduo possui uma virtude própria, condizente com sua natureza inata e seu

papel social”48. No aristotelismo, o termo designa ainda “disposição de comportamento

adquirida por meio da vontade e do hábito, e se caracteriza por buscar o equilíbrio, a

justa medida na experiência dos afetos, em oposição a paixões extremas e

descontroladas”49. No epicurismo, empirismo e utilitarismo, é a “capacidade prudencial

e estratégica de conduzir a ação de tal forma a intensificar os prazeres e minimizar as

44
HOUAISS, Antonio. p 2.869-70
45
Idem.
46
Ibidem.
47
Idem ibidem.
48
Ibidem ibidem.
49
Ibidem ibidem.

15
dores”50. No cristianismo agostinista, é definida como a “disposição para o amor,

compreendida como a essência e finalidade suprema do espírito humano.”51 A

iconologia a considera uma “representação simbólica na arte cristã”52. Em diversas

descrições medievais significa “o segundo dos cinco coros (ordens) da hierarquia dos

anjos, o qual também inclui as Dominações e as Potências”53. No platonismo as quatro

virtudes fundamentais (prudência, justiça, fortaleza e temperança) que devem orientar a

organização perfeita do Estado e da alma humana são chamadas virtudes cardeais; e

foram “incorporadas nas doutrinas teológicas cristãs e prescritas ao comportamento dos

fiéis por representarem o eixo da vida moral”54. Segundo a teologia escolástica do

catolicismo, as três graças espirituais (fé, esperança e caridade) que dirigem a alma a

Deus por Cristo são chamadas virtudes teologais ou teológicas. Entende-se por virtude

infusa “cada uma das virtudes que a alma recebe no momento do batismo

(nomeadamente, as virtudes teologais e as cardeais)”55. Considera-se ainda que “a

memória, a inteligência e a hereditariedade fazem parte da Virtude”56. As imagens

esculpidas sobre as vergas das tribunas da capela mor da Igreja Matriz de Nossa

Senhora do Pilar de Ouro Preto representam as virtudes teologais e cardinais pelo

significado de seus atributos. As virtudes teologais são representadas pela cruz (Fé),

pela âncora (esperança), e pelas três crianças acolhidas (caridade). As virtudes cardinais

são representadas pela serpente (prudência), pela espada (justiça), pela coluna

(fortaleza), e pela trombeta associada ao espelho (temperança). A trombeta, instrumento

de sopro de grandes proporções, representa aquilo “que propala, divulga, anunciador” 57,

50
Ibidem ibidem.
51
Ibidem ibidem.
52
Ibidem ibidem.
53
Ibidem ibidem.
54
Ibidem ibidem.
55
Ibidem ibidem.
56
CAMINO, Rizzardo da. Dicionário maçônico (1918). São Paulo: Madras, 2004. p 404
57
HOUAISS, Antonio. p 2.775

16
e ao mesmo indica alarme, “sinal para advertir sobre ameaça de guerra ou ataque”58;

remete à fama e à virtude cardeal da prudência. O espelho pode ser interpretado como

“parcela representativa de alguma coisa, amostra (...) modelo a ser seguido; exemplo

(...) plano de boca de uma peça de artilharia (...) sinonímia de modelo”59; remete ao

exemplarismo da cristandade lusitana. Tomando esses dois últimos atributos (a trombeta

e o espelho) e articulando-os, observemos que a Temperança é a “virtude de quem é

moderado, comedido” e dotado de “parcimônia (...) proporção, sobriedade”60; ao passo

que o temperamento é o “conjunto de traços psicológicos e morais que determinam a

índole de um indivíduo; modo de ser (...) distanciamento de qualquer excesso (...) modo

de agir (...) mistura equilibrada de coisas”61. Ambos os termos (temperança e

temperamento) derivam do anteposto latino temper62, o qual também inclui em sua

cognição vernácula os termos obtemperação (obediência, submissão) e tempera

(sinonímia de austeridade e índole). Pela têmpera (ou mistura) dos conceitos (espelho e

trombeta) se forma a alegoria da temperança trazendo o espelho como representação do

modelo exemplar cristão de difusão da Fé mesmo que sob o temor das armas. Fundidos

a prudência, a fama, o exemplo e o modelo, instaura-se entre as virtudes a definição da

índole cristã e austera que caracteriza o Estado Português. Portanto, nesse caso a

temperança resulta do significado alegórico que articula a obtemperação ao dogma, a

organização perfeita do Estado e da alma humana pelos eixos da vida moral, e as graças

espirituais que dirigem a alma a Deus por Cristo. Devemos ainda lembrar que, na

58
Idem.
59
Ibidem. p 1.227
60
Idem ibidem. p 2689-90
61
Ibidem ibidem.
62
Ibidem ibidem.

17
teosófica mistura dos eruditos florentinos, a hierarquia celestial das Virtudes

correspondia à hierarquia poética de Clio, e significava o ‘desejo de glória’63.

As imagens e alegorias apresentadas no templo evidenciam ideais da contra-

refoma afirmando os dogmas, as doutrinas, o papel intercessor dos anjos e dos santos, e

o papel devocional da imagem. Observamos também o acentuado aspecto de defesa dos

sacramentos; a predileção pelo tema cristológico (nascimento, infância, vida pública,

paixão, morte e ressurreição) e pela exaltação da Virgem Maria; a ênfase ao culto aos

santos e figuras angélicas; a exaltação das virtudes para o alcance da glória. Notamos

que as alegorias interpretadas fundem princípios políticos e teológicos num discurso

absolutista e contra reformista. Podemos então atribuir também a essa alegoria do fausto

(o templo) uma finalidade edificante e um discurso que visava afirmar o poder e a

unidade do Estado, da Igreja e da Sociedade demonstrando uma imagem de harmonia,

riqueza e devoção que tentou representar o êxtase e o êxito do Estado português na

descoberta das minas de ouro e diamantes como prêmio pela propagação da Fé. Não

apenas indício do período colonial, esse teatro sacro é um signo teológico-político.

63
Conforme HANSEN, João Adolfo. Alegoria. pp 165-8

18
BIBLIOGRAFIA

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e Arte: Imaginária Religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Edusp, 2005. pp 69-121.

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Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1995.

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Portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss e Editora Objetiva Ltda, 2001.

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e manifestações do rococó em Minas Gerais – Belo Horizonte: Crisálida, 2006. p 14

SIMÕES, Josanne Guerra & Furtado, Júnia Ferreira. Ouro Preto Revisitada: roteiro
histórico de seus monumentos esquecidos. 1981

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